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Introdução ao pensamento de Marx

(Notas de um curso de 1958)

Milcíades Peña
Introdução ao pensamento de Marx - (Notas de um curso de 1958)
Milcíades Peña

1ª Edição: Fevereiro de 2007. (150 exemplares).


Compilação, notas e edição Sebastián del Cerco, do CEUR.
Tradução para o português brasileiro (2021): RLVS
Revisão da tradução para o português brasileiro (2021): IRV

Notas de um curso de 1958.


Fonte do original em espanhol: www.rebelion.org

A reprodução total ou parcial deste livro e todo o conjunto de técnicas coletivas que se
aplicaram em sua produção não é proibida, mas encorajada e apoiada em especial quando contribua
para a revolução política por uma sociedade nova sem explorados nem oprimidos.

Colectivo Editorial “Ultimo Recurso”


Rosario – Santa Fe – Argentina
Feito no depósito e impresso nas oficinas gráficas da Editora Ultimo Recurso.
NOTA ESCLARECEDORA PARA A PRESENTE EDIÇÃO.............................................................4
O marxismo de Milcíades Peña............................................................................................................5
Uma concepção humanista e não determinista da história..............................................................6
Alienação e liberdade em Marx.......................................................................................................6
O materialismo.................................................................................................................................8
A dialética........................................................................................................................................9
SEÇÃO UM OU PRIMEIRA REUNIÃO..........................................................................................12
[O processo de aprendizagem].......................................................................................................12
[O processo do conhecimento]......................................................................................................12
[Esquema do curso: concreto, abstrato, concreto].........................................................................14
O que é e o que quer o marxismo?.................................................................................................15
[A alienação]..................................................................................................................................16
[A concepção marxista de liberdade].............................................................................................19
[Conclusão]....................................................................................................................................21
SEÇÃO DOIS OU SEGUNDA REUNIÃO.......................................................................................23
[A alienação nos textos de maturidade de Marx]...........................................................................23
[Marxismo e filosofia]...................................................................................................................27
[A dialética]....................................................................................................................................28
[O materialismo]............................................................................................................................33
NÚMERO TRÊS OU TERCEIRA REUNIÃO..................................................................................35
[A consciência e a “teoria do reflexo”]..........................................................................................35
[Necessidade do socialismo]..........................................................................................................37
[A práxis].......................................................................................................................................38
[O marxismo, totalidade aberta]....................................................................................................38
NÚMEROS QUATRO - CINCO OU QUARTA E QUINTA REUNIÃO..........................................40
[Marxismo e ciências sociais]........................................................................................................40
[Marxismo e economicismo].........................................................................................................43
[Concepção materialista das ideologias]........................................................................................47
[Teoria das classes sociais]............................................................................................................48
NÚMERO SEIS OU SEXTA REUNIÃO..........................................................................................50
[Teoria das classes sociais/continuação]........................................................................................50
[Sobre a fórmula estrutura/superestrutura]....................................................................................56
NOTA ESCLARECEDORA PARA A PRESENTE EDIÇÃO
Para a presente edição, usamos duas versões do texto. A primeira foi tirada de
www.rebelion.org, e tem o prólogo por Marcelo Yunes com um pequeno artigo que também
reproduzimos. A segunda foi editada em papel por Ediciones El Cielo Por Asalto no ano 2000, com
um estudo introdutório de Horacio Tarcus, de parte do qual tomamos as seguintes notas explicativas
da origem destas denominadas Notas de um curso de 1958:
“A presente edição baseia-se na versão a mimeógrafo, em cuja capa se pode ler: Milcíades
Peña, “Notas de iniciação marxista”. São cinco livretos, numerados de I a VI (o IV e V estão
reunidos em um só), sem indicação de editor nem data, embora saibamos que foram editados
enquanto transcorria o curso durante 1958. As numerosas notas e indicações bibliográficas da
primeira classe permitem conjecturar que tais “Notas...” foram anotações redigidas por Peña. O
tom coloquial do texto, as frequentes interpolações, assim como as frequentes referências
bibliográficas imprecisas, abonam a tese de que se tratava de registros de um dos participantes do
curso, com a mera intenção de servir de documento de trabalho. Das oito reuniões – como se verá,
Peña evita falar de “aulas” e as nomeia como “reuniões” -, infelizmente só foram transcritas as
primeiras seis, que são as que se reproduzem aqui.”
Nesta primeira edição que colocamos à disposição de todos, privilegiamos a centralidade do
pensamento de Peña em relação aos acontecimentos da sua vida. Apenas corrigimos alguns
comentários confusos, sublinhamos alguns pedaços de pensamento que por sua heterodoxia nos
resultaram por demais interessantes, e anotamos alguns pequenos comentários próprios.
Todas as nossas notas de edição aparecerão da seguinte forma: [N. do Editor. CEUR]. As
notas de outros editores serão assinaladas de acordo com o caso e as notas de rodapé dos autores
não terão menção especial.
Como um novo aspecto, incorporamos uma pequena seção de Interpretações e Análises
que visa completar a leitura com iniciativas de pensamento mais abrangentes e critérios de debate
mais amplos na perspectiva.
Com este material esperamos iniciar uma múltipla trajetória de publicação de escritos de
militantes marxistas heterodoxos, latino-americanos e argentinos, tantas vezes ignorados,
desacreditados e diminuídos pela esquerda ortodoxa, burocrática e stalinista.
Esta é uma dívida pendente com vocês e conosco mesmos que a partir desta pequena
pesquisa editorial começamos a saldar.

S. del Cerco.
CEUR.
Janeiro de 2007.
O marxismo de Milcíades Peña
Por Marcelo Yunes

Milcíades Peña (1933-1965) foi um dos mais agudos e rigorosos marxistas argentinos, que
em sua curta vida deixou um notável conjunto de estudos e debates, especialmente sobre história
política e econômica argentina. Marxista militante (integrou durante um período a corrente
trotskista orientada por Nahuel Moreno, que fundara o MAS), foi implacável com a atmosfera de
pedantismo e isolamento dos círculos acadêmicos; por outro lado, jamais aceitou o julgamento
sumário para os intelectuais por parte da maioria das organizações de esquerda de seu tempo. Esta
localização o transformou em uma avis rara, um curioso exemplar de marxista: desprezado pelos
intelectuais por seu caráter autodidata e seu compromisso com a política revolucionária, era
considerado, por sua vez, por muitas correntes políticas militantes, um mero intelectual.
Apesar de se tratar de notas não revisadas e até incompletas (o curso original consistia em
oito partes, das quais apenas seis são preservadas), a riqueza e profundidade da concepção de Peña
sobre o marxismo podem ser apreciadas desde o início. É notável que, num período em que
pululavam no ambiente da esquerda (tanto acadêmica como política) infinidades de “manuais” de
marxismo, de materialismo histórico, de Filosofia marxista, etc., assustadoramente dogmáticos e
esquemáticos em sua maioria, o primeiro alerta de Peña consista em fugir da ideia de que “o
marxismo é uma espécie de vitrola caça-níqueis [onde] se aperta um botão e sai uma resposta para
o problema que se quer resolver (...) Isso é a negação do marxismo, [que] exige um sério e intenso
esforço do pensamento (...) O marxismo dos burocratas [quer] transformar o pensamento marxista
em um dicionário onde o verdadeiro e o falso são classificados (...) Diante disso, o pensamento
dialético, o autêntico pensamento marxista, afirma com Hegel que ‘a verdade não é uma moeda
que possa ser dada e recebida sem motivos’. A verdade é alcançada pelo esforço militante do
pensamento, e é alcançada através do erro, do permanente confronto entre verdade e erro (...) O
marxismo é pensamento vivo e vivente... em permanente confronto com a realidade e consigo
mesmo” (os destacados, salvo indicação em contrário, são meus. MY).
Contra as visões então (e ainda agora) em voga, que consideravam o marxismo ou como
uma teoria e nada mais, ou como essencialmente uma ideologia política, Peña resgata, das fontes do
próprio Marx e em consonância com as mais fecundas interpretações do marxismo do século XX
(entre as quais Peña destaca especialmente as de Henri Lefebvre, Korsch e o primeiro Lukàcs), o
múltiplo caráter do marxismo, que não se esgota em uma única faceta. Por isso define o marxismo
provisoriamente, numa primeira etapa da investigação, mas como uma base sólida, da seguinte
maneira:
"1) Uma concepção geral e total do homem e do universo; 2) em função dessa concepção do
mundo, uma crítica da sociedade em que nasceu o marxismo, a sociedade capitalista; 3) em função
dessa crítica, como resultado dessa crítica da sociedade capitalista, é uma política, um programa
de ação para a transformação revolucionária da sociedade, para a criação de um novo tipo de
relação entre os homens. (...) Para o público, até mesmo para o público que supõe ser marxista, o
marxismo é apenas uma crítica e um programa de luta pelo socialismo. Mas, na realidade, estas
são apenas partes do marxismo, e partes subordinadas à concepção marxista do homem, que é a
essência e o ponto de partida do marxismo, lógica e cronologicamente”.
Uma concepção humanista e não determinista da história
Peña inscreve-se decididamente na tradição marxista dialética, antipositivista e inimiga da
adoração fatalista de circunstâncias além do alcance humano, sejam elas chamadas Deus, o Destino
ou as Leis da História. A rejeição das religiões e a sua ideia de que o destino humano está traçado
por alguma Divina Providência não requer maior explicação; em vez disso, vale a pena considerar a
polêmica que envolve Peña contra o determinismo histórico tão habitual então à esquerda: o
marxismo, diz ele, “é profundamente otimista, porque acredita que o homem é capaz de forjar um
destino cada vez mais humano (...) esta única característica basta para torná-lo inimigo irredutível
de toda religião. Mas atenção. O otimismo revolucionário não tem nada a ver com o
"progressivismo" [que] acredita que as contradições são resolvidas por si mesmas ao longo do
tempo. Assim esconde ao homem seu próprio papel e anula o elemento humano ativo, sem o qual
não pode haver nenhum progresso". Por isso, continua Peña, a confiança do marxismo no futuro
“não é o otimismo cego e complacente do 'progressivismo'. O marxismo sabe que a categoria do
perigo é essencial, é parte integrante de todo processo de avanço e desenvolvimento da
humanidade. E, portanto, sabe que o término desse processo pode ser a catástrofe, e que as maiores
possibilidades de criar um melhor destino vão incessantemente acompanhadas pelas mais
tremendas possibilidades de voltar para trás e anular todo futuro humano. E o único que tem a
chave de mudanças para indicar o caminho a ser tomado é o homem, apenas [sua] vontade
consciente e ativa (...)”. Esta passagem reúne a melhor tradição de Rosa Luxemburgo e sua crítica
ao positivismo da social-democracia alemã. A este respeito, nos permitimos remeter ao artigo de
Michel Löwy publicado em SoB Nº 7, “O significado metodológico de Socialismo ou barbárie”1.

Alienação e liberdade em Marx


A matriz da interpretação do marxismo em Peña é, então, indiscutivelmente humanista,
oposta à tradição economicista e determinista das correntes estalinistas (cujo peso em 1958 era
enormemente maior que na atualidade, o que ressalta a audácia de Peña). E essa preocupação em
colocar o homem no centro da reflexão revela-se no lugar que Peña atribui à teoria da alienação, por
então quase desconhecida pelos leitores de língua espanhola devido à inexistência de tradução do
trabalho mais conhecido de Marx sobre o tema, os Manuscritos de 1844 (pode-se consultar nosso
comentário sobre parte desses textos em "Trabalho e alienação", em SoB Nº 5)2.
Para Peña, o marxismo “afirma que o sofrimento e a exploração do ser humano existem
porque ainda não é plenamente humano, porque se alienou, e só deixarão de existir quando o
homem for plenamente homem e se desalienar. É por isso que fala (...) do resgate do homem, do
reencontro do homem com suas novas qualidades. Alienação e desalienação (...) sintetizam os dois
conceitos fundamentais do marxismo, a essência, o coração do pensamento marxista. Alienação
significa que o homem é dominado por coisas que ele criou (...) Em três realidades, trabalho,
produção de novas necessidades e família, estão dados todos os elementos que originam a
alienação do homem. (...) A alienação é revelada quando os produtos do trabalho do homem
ganham existência independente (...) as relações sociais entre os homens aparecem como coisas
que escapam a seu controle e parecem reger-se por leis próprias, quase 'naturais'; [em que] o
produto do trabalho de uma parte da humanidade se transforma em poder da outra parte da
humanidade; [em que] o homem já não existe como homem senão como operário ou lojista, como
intelectual ou pedreiro, como parte de homem, nunca como totalidade humana; [em que] o próprio

1 Michel Löwy: “La significación metodológica de Socialismo o Barbarie”. [N. do Editor. CEUR.]
2 Veja: http://www.mas.org.ar/revista/sob5/manuscritos.htm [N. do Editor. CEUR.]
homem se torna coisa, instrumento que outros homens utilizam para seus próprios fins, e por fim,
quando o próprio trabalho também se separa do homem e se torna coisa. Já não é a realização da
capacidade criadora, mas sim um instrumento para satisfazer necessidades. (...) Desalienação
significa que o homem ponha sob seu controle essas coisas que o oprimem e que são partes de si
mesmo, fruto de seu trabalho".
O interesse por esta problemática era escasso na esquerda em geral e nulo no estalinismo e
na Social-Democracia. Daí que Peña fale de vulgarização e simplificação do marxismo, o que levou
à sua desnaturalização, a ser reduzido a "uma simples interpretação econômica da história" ou a um
"programa de melhorias para a classe operária". E insiste em seu questionamento aos “aparelhos
burocráticos (...) que adotaram o marxismo como um instrumento para a justificação da sua
política", e que deste modo "ajudaram, com todo o seu poder material, a manter as noções vulgares
do marxismo e a esconder a sua essência, isto é, a luta contra a alienação, a luta para desenvolver
o homem".
Contra todas as correntes do marxismo (as burocráticas em primeiro lugar, mas também o
estruturalismo de Althusser e o positivismo de Della Volpe, por exemplo), Peña rebate a ideia
generalizada de que a alienação é uma preocupação inicial, "filosófica", do jovem Marx, sem maior
influência em sua obra ulterior (que, para Althusser, havia sido escrita mesmo contra essas
concepções iniciais). Pelo contrário, Peña é taxativo: “sem compreender a teoria da alienação não
pode entender-se o pensamento econômico de Marx, porque todo O Capital não é mais que um
desmascaramento da alienação humana, tal qual ela aparece escondida nas categorias e leis
econômicas da sociedade capitalista (...) A teoria da alienação não é uma coisa da Juventude de
Marx, que tenha sido depois posta de lado. A teoria da alienação permeia todo o pensamento de
Marx em todos os seus momentos (...) É em O Capital que encontramos a cada passo a crítica à
alienação e o impulso para a desalienação do homem, que é o motor do pensamento marxista". A
afirmação parece imprudente, mas a revisão que em sustento desta tese faz Peña das obras de
maturidade de Marx, e especialmente de O Capital, encontra-se entre as páginas mais brilhantes e
reveladoras de todo o curso, e merecem ser trabalhadas com atenção.
Uma afirmação de Marx de 1842, "a liberdade é a essência do homem", resgatada por Henri
Lefebvre, é por sua vez levantada por Peña como bandeira de uma concepção do marxismo alheia a
todo economicismo unilateral. Fazendo um impecável resumo dos textos de Marx, Engels e Lenin
sobre o tema (também aqui o trabalho do autor com as citações é realmente extraordinário), conclui
Peña em que "os clássicos marxistas insistem decisivamente em que a liberdade do homem é a
aspiração fundamental do marxismo. O marxismo quer homens plenamente humanos, livres
de fetiches opressores. Melhorar o padrão de vida é um passo absolutamente necessário, e o
primeiro passo para esta libertação do homem, mas apenas o primeiro passo "(o último
destaque é de Peña).
Por isso, Peña retoma sua definição inicial do marxismo para destacar que os três aspectos
mencionados (a concepção do mundo, a crítica à sociedade e o programa de luta para transformá-la)
têm como "objetivo único e decisivo (...) a luta para desalienar o homem, a aspiração para
resgatar para o homem a plenitude humana. No marxismo, todo o resto são apenas meios
para esse fim. O desenvolvimento material das forças produtivas (...) a liquidação do
capitalismo (...) a ascensão da classe trabalhadora ao poder (...) é fundamental e é muito bom
(...) Mas, para o marxismo, esses são meios e nada mais. Porque o que o marxismo quer – e
esta é a sua essência – é um novo tipo de relações entre os homens, nas quais os homens não
são dominados por coisas nem fetiches, nas quais o homem seja o mestre absoluto de suas
faculdades e produtos, e não escravo da mercadoria e do dinheiro, da propriedade e do
capital, do Estado e da divisão do trabalho".
Esta extraordinária invocação, décadas antes do colapso das sociedades mal chamadas
"socialistas", mostra até que ponto o marxismo gozava de parâmetros para julgar se a URSS, a
China, o leste Europeu, etc., cumpriam, ou pelo menos se aproximavam de cumprir, o "objetivo
único e decisivo" de criar na verdade um novo tipo de sociedade humana. O colapso estridente das
variantes burocráticas do "socialismo" é ao mesmo tempo a expressão cabal do fracasso do tipo de
marxismo sobre o qual pretendiam apoiar-se. Tanto esse socialismo quanto esse marxismo não
podiam estar mais distantes das intenções de Marx, e é isso que as palavras de Peña nos vêm
lembrar.

O materialismo
Poucos aspectos da teoria marxista têm sido tão mal ou pouco compreendidos – inclusive
barbaramente deturpados – quanto o materialismo. Mais uma vez, Peña se vê obrigado a recorrer a
um exame detalhado, quase filológico, dos textos clássicos do marxismo para desacreditar as
versões mais vulgares e empobrecedoras do materialismo, a cargo, mais uma vez, do estalinismo,
mas que se estendeu muito além de suas fronteiras.
A citação de Lênin escolhida por Peña como uma seção virtual desta passagem (“o
materialismo inteligente se encontra mais próximo do idealismo inteligente do que do materialismo
insensato”) de certo modo serve como um resumo da crítica de Peña ao dogmatismo de manual.
Começando pelo conceito de matéria, que é despojado de toda conotação metafísica e de toda
oposição abstrata com o mundo humano: "a matéria que toma como base o marxismo não é a
matéria física ou a natureza mecânica, nem uma matéria geral carente de qualidades. A matéria da
qual parte o marxismo é o conjunto das relações sociais que pressupõem, certamente, uma natureza
mecânica e, sobretudo, fisiológica, mas que não coincidem, muito menos, com ela. A matéria da
qual o materialismo histórico toma o seu nome não é nem mais nem menos que a relação de uns
homens com outros e com a natureza (Bloch). O materialista vulgar, diz Marx, não vê que ' o
mundo sensível ao seu redor... é um produto histórico (...) Ainda, os objetos da evidência sensível
mas imediata lhe são dados... graças ao desenvolvimento da sociedade, da indústria e do comércio'
(...) O materialismo vulgar – que é o que os estalinistas pretendem fazer passar por marxismo – cai
na metafísica da matéria, e ainda da matéria mecânica, não da matéria constituída pelas relações
sociais e a atividade do homem (...) considera a matéria como uma coisa perenemente isolada do
sujeito, sempre condicionando ao homem e nunca condicionada pelo homem".
No mesmo sentido, Peña já tinha apontado seus canhões contra a suposta "ortodoxia", ao
enfatizar que “o marxismo não é simplesmente materialismo (...) O marxismo nega que o homem
seja, assim sem mais, produto direto das circunstâncias e do meio. O marxismo reivindica a
autonomia criadora do homem. Tanto a burocracia dos partidos social-democratas como a
burocracia soviética praticam esta redução do materialismo a um materialismo de visão estreita
[que] reduz a nada a iniciativa criadora do homem e eleva às nuvens o conservadorismo dos
aparelhos burocráticos, caracterizados por seu apego e submissão rasteira às circunstâncias,
rejeitando a luta por modificá-las".
E a diferença entre este materialismo grosseiro e vulgar e o marxismo é resumida como se
segue: “a metafísica da matéria, a crença de que a matéria tem uma independência absoluta em
relação ao sujeito que conhece – que a transforma – tem uma origem religiosa, e é por isso que se
dá tão bem com o senso comum”. De fato, o mundo, segundo a religião, já foi encontrado pelos
homens como algo acabado e imodificável. O marxismo, pelo contrário, sem deixar de reconhecer,
é claro, que o mundo físico tem uma existência prévia ao mundo humano, levanta uma decisiva
mudança de sotaque: “desde que o homem aparece sobre a terra, a matéria deixa de existir
independentemente da consciência do homem, porque desde o primeiro momento o homem age em
e sobre a matéria, e a transforma. (...) Desde a aparição do sujeito, o objeto perde sua
independência, entra em permanente relação com o sujeito, e ambos só existem em função de e
através do outro, sem que nenhum possa conceber-se 'independente' do outro".
Digamos que, mais recentemente, uma crítica muito semelhante podemos encontrar, por
exemplo, no filósofo argentino-mexicano Enrique Dussel. A refutação do materialismo vulgar, que
ele não chama, como Peña, “metafísico”, mas “cosmológico”, pode-se rastrear em suas obras mais
recentes, por exemplo, em A produção teórica de Marx (um comentário aos Grundrisse), México,
século XXI, 1998, páginas 35-37.
No mesmo sentido se orienta a crítica à teoria de que a consciência “reflete” a realidade,
cujas credenciais marxistas têm sua origem em um muito discutível trabalho de Lenin de 1908,
Materialismo e empiriocriticismo. Novamente, Peña se apoia nas melhores elaborações de seu
tempo: "Lefebvre afirmou recentemente que nada é mais contrário à dialética marxista do que
colocar o real de um lado e do outro seu reflexo na cabeça dos homens. Tem toda a razão. Porque o
marxismo coloca a ênfase não na chamada realidade, nas coisas que estão fora do homem, mas à
atividade criadora do homem que conhece, transforma e cria essa realidade, e essas coisas
exteriores (...) Para os aparelhos, ser materialistas é adaptar-se às condições exteriores (...) [Mas]
o homem não se limita a tirar fotos da realidade; o homem constrói a realidade. Por isso, melhor
que 'reflexo' – que sugere uma recepção passiva - tem que falar de interação, de relação, de
projeção do objeto no sujeito, e do sujeito no objeto".
Em relação com a tão maltratada questão da consciência (cujo papel tem sido tão
frequentemente desfocado por causa do poder irrestrito das “condições objetivas”), Peña não hesita
em defender sua importância contra a vulgata: “o marxismo afirma que a consciência não pode
explicar a si mesma (...) não existe no ar , mas tem as suas raízes na terra. Mas atenção: de modo
algum a consciência pode ser reduzida a um mero reflexo do meio. O idealismo, coloca a
consciência entre as nuvens (...) O materialismo vulgar, pelo contrário, à reduz a nada e tira toda
autonomia, considerando-a como uma mera secreção cerebral, como uma espécie de caspa que sai
na forma de ideias que não fazem mais do que refletir, como fotografias, o objeto exterior”.
E conclui a sua exposição com uma definição que soa como uma martelada: “o desprezo
pela consciência e por seus problemas é totalmente estranho ao marxismo. A grande batalha do
marxismo é travada precisamente no terreno da consciência”.

A dialética
Para começar, a abordagem proposta por Peña para estudar este aspecto fundamental do
pensamento se diferencia das tradicionais: “a dialética não se reduz de modo algum à série de leis
que os manuaizinhos apresentam como dialética: a transformação da quantidade em qualidade, a
unidade dos contrários, etc. Estas são apenas algumas partes da dialética, que é a lógica, e nada
além que partes. Colocá-las separadas do conjunto, como receitas a aplicar à realidade, é o mais
antidialético que possa ser concebido. Acabamos de entrar no terreno da dialética quando nos
esforçamos para entender quando, como, onde e em que condições uma quantidade se
transforma em qualidade, ou um polo em seu oposto3. Ou seja, só entramos no terreno da
dialética quando nos esforçamos para captar a realidade viva, em sua totalidade, com seu
movimento, suas contradições e suas mutações”.
A definição inicial surpreende tanto pela sua simplicidade como pela sua originalidade, que
revelam uma profunda compreensão de Hegel e Marx. De acordo com Peña, “a dialética é um foco
que trata de captar a realidade exatamente como é e ao mesmo tempo como deve ser, de acordo
com o que ela mesma contém em potência. A dialética significa conhecer as coisas concretamente,
com todas as suas características, e não como entes abstratos, vazios, reduzidos a uma ou duas
características. Por isso a dialética significa ver as coisas em movimento, isto é, como processos;
por isso a dialética descobre e estuda a contradição que existe no seio de toda unidade, e a unidade
à qual tende toda contradição. O pensamento formal comum, que tem a sua coroação na lógica
formal, tende a despojar a realidade de sua imensa riqueza de conteúdo, de sua infinita
complexidade, e reduz tudo a esquemas e fórmulas vazias de conteúdo. (...) Ao contrário, penetrar
profundamente na realidade, captá-la assim como está em sua complexidade (...) isso é dialética”.
A diferença entre a abordagem formal e o dialético se baseia na operação de separação que
leva à cabo o primeiro, que, sobrecarregado pela riqueza e complexidade da realidade, abstrai,
separa os seus componentes, fazendo-os perderem a sua unidade primitiva na qual as tendências de
seu movimento são reveladas. É essa reunificação dos diversos planos e conteúdos da realidade que
caracteriza o pensamento dialético.
É instrutivo o resumo de Peña da evolução do pensamento; ela começa com o homem
primitivo, o qual “não entende coisas isoladas, vê situações, conjuntos, totalidades, do mesmo
modo que as crianças pequenas não entendem letras mas sim palavras, isto é, conjuntos concretos
dotados de sentido. Mas quando a humanidade começou a dominar a natureza e a conhecê-la
melhor, pôde e deve ter criado uma formidável ferramenta intelectual, que é o conceito abstrato. O
homem pôde parar de ver as coisas em sua totalidade; ele foi capaz de decompô-la em partes, ele
foi capaz de analisá-las, pôde realizar a abstração. (...) Assim avançaram as ciências naturais. A
lógica formal (...) foi um formidável passo em frente... mas ao mesmo tempo um formidável passo
para trás [porque] perdeu por muitos séculos essa riqueza que caracterizava o pensamento do
primitivo, esse frescor da capacidade de apreender a realidade como é, como um todo complexo e
mutável (...) A dialética recupera para o pensamento moderno essa riqueza de conteúdo, essa
criação, esse frescor, mas incorpora-lhe o rigor, a precisão, a exatidão que tem contribuído séculos
de pensamento abstrato e lógica formal (...) ‘A verdade está na totalidade’, diz Hegel. Ou seja: a
ideia verdadeira é superação de verdades limitadas e parciais, que se transformam em erros ao
considerá-las imóveis. Somente a captação da totalidade, onde se unem o idêntico e o distinto, o
um e o múltiplo; ou seja, a captação do concreto, apenas isso nos mostra a verdade (...) E esta é a
genial contribuição de Hegel para o pensamento humano”.
Porque, de fato, captar a contradição dentro da unidade não é outra coisa senão captar as
vicissitudes do que está vivo. Apenas o morto não muda. Como disse Hegel, ‘a força da vida
consiste em levar dentro de si a contradição, suportá-la e superá-la’. É isso mesmo que leva Peña a

3 O destaque é nosso. Quantas vãs disputas, muitas vezes em torno da propriedade privada de determinados conceitos
ou conhecimentos, poderiam ser evitadas se em muitas das atuais discussões da esquerda e seus distintos
agrupamentos, se tivesse presente esta precoce elucidação e aposta intelectual. Pensemos, por exemplo, na atual
“teoria” do acontecimento, ou do eventual, que supostamente se erige em superação do pensamento dialético. [N.
do Editor. CEUR.]
definir a filosofia marxista e o marxismo como uma totalidade aberta, seguindo Gramsci e Labriola:
“é totalidade porque é uma filosofia que abrange o conjunto dos problemas, não é parcial ou
fragmentária, mas total. Uma filosofia que não é um conjunto de teorias dispersas, mas um todo
sistemático, com uma estrutura e uma organização interna. Por isso, o marxismo é uma totalidade.
Mas é uma totalidade aberta, porque não é um sistema fechado, que pretende estar terminado,
pronto para a eternidade e para ser aprendido de cor. Pelo contrário, o marxismo reclama o
fornecimento contínuo de novos dados, que se articulam com os já existentes (...) Para entender
melhor o que é isso de uma totalidade aberta, não é mais preciso observar o que é um ser vivo. Um
ser vivo é uma totalidade com uma estrutura, mas é uma totalidade em movimento, que
continuamente incorpora novos elementos, que tem conflitos, que se modifica, mas que continua
sendo essencialmente o mesmo. Isto também é o marxismo: uma totalidade aberta, que se enriquece
com cada novo avanço do conhecimento humano”.
Deixamos esclarecido que aqui nos referimos apenas a alguns dos problemas relacionados
com o marxismo que Peña trata. Para desespero do leitor, mencionaremos alguns dos que não
pudemos resenhar: a teoria das classes sociais (que revela um notável conhecimento da sociologia
moderna), as relações entre marxismo e ciência, a concepção marxista das ideologias, mais
discussões concernentes ao economicismo e à fórmula estrutura/superestrutura, comentários das
Teses sobre Feuerbach e o conceito de práxis e, inclusive, umas valiosíssimas indicações a um
grupo de estudo da História da Revolução Russa de Trotsky que mostram uma abordagem à
pedagogia e um critério metodológico para o estudo dignos do melhor marxismo. Em breve
tentaremos fazer justiça a esse material. Enquanto isso, esperamos ter despertado o interesse em
conhecer esta e outras obras deste marxista argentino.
MILCÍADES PEÑA

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE MARX

SEÇÃO UM OU PRIMEIRA REUNIÃO

[O processo de aprendizagem]
O marxismo rejeita a concepção tradicional do ensino como um processo em que uma
pessoa ativa ensina e muitas pessoas passivas aprendem. Esta concepção – que se baseia na divisão
entre teoria e prática, entre o trabalho intelectual e o trabalho manual – deve ser substituída pelo
ensino como um processo criador em que todo o grupo, onde se ensina e se aprende, trabalha
ativamente, confrontando os seus conhecimentos e ideias, e que através deste confronto consegue
transmitir o novo conhecimento ao que aprende e consegue aprofundar o conhecimento do que
ensina.
Hegel disse a seus alunos: “a primeira coisa que precisa aprender aqui é a ficar de pé”. Ou
seja, em tensão, alertas, e em atividade, em atitude criadora. “Se a aprendizagem se limitasse a
simplesmente receber, não daria muito melhor resultado do que escrever na água.” Quem estuda
algo deve recriar esse algo dentro de si mesmo. Não é uma questão de receber algumas noções de
marxismo. O que precisa ser feito é investigar o marxismo, enfrentá-lo, penetrar intensamente na
matéria que se quer aprender e deixar que essa matéria penetre profundamente no intelecto e na
emoção de quem aprende. Se não, não há aprendizagem possível.
Apenas se aprende através da pesquisa. Assim, a nossa tarefa será investigar juntos o
marxismo; juntos teremos que descobrir e redescobrir o marxismo, começando pela sua essência,
que é a coisa mais difícil de captar, e fugindo como se fosse da peste, das vulgarizações e
simplificações ao estilo dos manuais como o chamado Princípios de Filosofia de Politzer, que se
assemelham tanto ao marxismo quanto uma folha seca à uma rosa recém-cortada.

[O processo do conhecimento]
Existem algumas fórmulas básicas e elementares do marxismo, tais como a luta de classes, a
importância da estrutura econômica da sociedade, o materialismo, etc., que foram as mais
popularizadas pelos divulgadores do marxismo que escreveram manuais para uso das grandes
massas. Essas fórmulas, que não são nada além de elementos do pensamento marxista, parecem
oferecer à primeira vista explicações maravilhosamente simples e rigorosas para os problemas mais
complexos. E claro, as mentalidades semi-intelectualizadas se agarram com unhas e dentes à essas
fórmulas, que lhes permitem explicar-se todos os problemas – isto é, eles acreditam que os
explicam – sem nenhum esforço mental. Infelizmente, ao movimento revolucionário, e sobretudo
aos grandes movimentos de massas e aos grandes aparelhos burocráticos empoleirados sobre a
classe operária, aproximam-se uma infinidade de semi-intelectuais, de operários e sobretudo de
pequenos burgueses semi-intelectualizados, que tomam o marxismo como um aparelho que poupa o
trabalho de pensar e que dá a resposta a todos os problemas. Para essas pessoas o marxismo é uma
espécie de máquina caça-níqueis: aperta-se um botão e sai uma resposta para o problema que se
quer resolver.
Pois bem: o marxismo não é isso, e isso é a negação do marxismo. O marxismo exige um
esforço sério e intenso do pensamento. Labriola dizia: “os doutrinários, os que têm necessidade de
ídolos do espírito, os criadores de sistemas bons para a eternidade, os compiladores de manuais e
enciclopédias, buscarão loucamente no marxismo o que ele jamais quis oferecer a ninguém. Veem
em pensamento e em saber algo que existe materialmente, mas não entendem o saber e o
pensamento como atividades que são in fieri”, que estão constantemente sendo feitos.
O pensamento vulgar, disse Hegel, acredita que o verdadeiro e o falso são entidades imóveis,
coisas com existência própria, uma das quais se ergue do lado de lá e a outra do lado daqui, cada
uma delas isolada e fixa, sem contato com a outra. Este também é o modo de pensar do marxismo
vulgar, do marxismo dos burocratas, que querem transformar o pensamento marxista em um
dicionário onde está classificado tudo o que é verdadeiro e tudo o que é falso, tudo o que há para
conhecer e tudo o que não há para conhecer. Diante disso, o pensamento dialético, o autêntico
pensamento marxista, afirma com Hegel que “a verdade não é uma moeda cunhada que possa ser
dada ou recebida sem mais nem menos”.
A verdade se alcançada pelo esforço militante do pensamento, e se alcança através do erro,
do permanente confronto de verdade e erro. O marxismo não é uma moeda cunhada que se toma e
se dá. O marxismo é pensamento vivo e vivente, que está em permanente confronto com a realidade
e consigo mesmo, afirmando-se e negando-se a si mesmo à cada instante, para poder afirmar-se
novamente em um nível superior.
O marxismo é implacável consigo mesmo, porque está contra mitos e falsidade, contra
mistificação. O marxismo quer tirar os disfarces, impor a clareza. Disse Lukàcs: para o proletariado,
a verdade é a arma da vitória, ainda mais porque é a verdade, sem subterfúgios4.
Tudo isso que afirmamos significa que devemos levar em conta o seguinte: aqui não vamos
receber o marxismo em pílulas. Aqui vamos conhecer as linhas fundamentais do marxismo para
investigá-lo depois, cada um com seu pensamento.
Consideremos ainda que este salão, este grupo de pessoas que nós constituímos, constitui
um sistema social e reflete a sociedade em que vivemos. A sociedade, suas diferenças de classe,
seus dilaceramentos materiais e ideológicos, já estão aqui, neste grupo, dentro de nós, nos
conhecimentos, nos hábitos, na personalidade que cada um traz já quando cruza essa porta. E a
sociedade está também neste pequeno sistema social que constitui o nosso grupo porque desde este
momento em que nos reunimos para estudar juntos o marxismo, todos nós estamos assumindo
papéis em relação uns aos outros: temos e continuaremos a ter diferenças e agrupamentos, simpatias
e antipatias, prestígios e falta de prestígios. Quer dizer, que todas as categorias da sociedade e os
conflitos existentes na sociedade, já estão no nosso grupo, como em todo grupo de trabalho. E nós,
ao contrário do que acontece com o ensino tradicional, que finge ignorar esses problemas, temos
que ser conscientes deles e torná-los explícitos, e aproveitar as tensões e conflitos que surgem para
tornar mais penetrante e mais profundo nosso estudo do marxismo.

4 “Esta citação de Georg Lukàcs pertence ao ensaio “O que é marxismo ortodoxo?” (1919), correspondente ao
primeiro capítulo de História e consciência de classe. O original alemão desta obra publicada em 1923, era então
indisponível, não só na Argentina, mas inclusive na Europa. Peña cita esse ensaio através da tradução francesa
realizada por Kostas Axelos, aparecida na revista Arguments, nº 3, Paris, 1957. Na tradução espanhola de Manuel
Sacristán (Georg Lukàcs, História e consciência de classe, México, Grijalbo, 1969) as linhas citadas por Peña
podem ser encontradas na pág. 23.” [N. do Editor. CEUR. Tirada da edição do Livro de Peña de El cielo por asalto,
Bs. Ás. 2000.]
[Esquema do curso: concreto, abstrato, concreto]
Entendo que o objetivo que nos propusemos – ou seja, tomar os fios condutores
fundamentais do pensamento marxista que permitirão depois, uma investigação pessoal do
marxismo por parte de cada um – podemos alcançá-lo em oito reuniões básicas. Na primeira, vale a
pena dizer, hoje, tentaremos responder a essa pergunta: o que é e o que o marxismo quer? Esta é a
grande questão com a qual deve iniciar-se e com a qual deve terminar todo estudo de marxismo.
Dentro de alguns momentos, enfrentaremos essa questão. E em nossa última reunião vamos discutir
novamente sobre “o que é e o que o marxismo quer”, mas em um nível superior, mais rico em
conteúdo.
Ou seja, vamos de uma abordagem sintética e concreta do marxismo, que faremos hoje, a
uma abordagem analítica e abstrata – ou seja, tomando não a totalidade, mas elementos isolados –
que faremos nas próximas reuniões. E finalmente voltaremos a realizar uma abordagem sintética e
concreta, mas muito mais concreta do que a que faremos hoje, porque então teremos à nossa
disposição um conteúdo mais rico, teremos o conhecimento conceitual e o conhecimento
interpessoal que iremos obtendo em nossas sucessivas reuniões.
A ordem dos problemas que estudaremos nas próximas reuniões é dada pela seguinte
consideração: existem três categorias – ou seja, três pontos de vista para estudar a realidade – que
são básicos para compreender o marxismo. Essas categorias são a natureza, o trabalho e a
sociedade.
A natureza é a realidade fundamental de onde vem a vida em geral, a vida do homem em
particular e os elementos básicos para perpetuar a vida do homem.
A sociedade é a realidade propriamente humana, inseparável do homem, porque jamais
existiu o homem como indivíduo isolado, e ao dizer homem dizemos implicitamente sociedade.
E o trabalho é a atividade criadora pela qual o homem, isto é, a sociedade, atua sobre a
natureza e modifica o próprio homem e a sociedade.
Pois bem, a concepção das relações entre sociedade, natureza e trabalho é o abc da filosofia
marxista, e a isso nos dedicaremos na próxima reunião.
A concepção marxista da relação entre trabalho e sociedade, e da relação da sociedade
consigo mesma, é o tema que podemos denominar sociologia marxista, e a veremos na terceira
reunião.
O problema da evolução da sociedade no tempo é o tema da concepção marxista da história,
e veremos isso na quarta reunião.
Ora, desta crítica da sociedade desprendeu-se um prognóstico marxista sobre a evolução do
capitalismo e sobre a nova sociedade que nasceria da sociedade capitalista. E desprendeu-se
também uma política marxista tendente a destruir a sociedade capitalista. O problema do
prognóstico marxista, quer dizer, a teoria do socialismo, veremos na sexta reunião; o problema da
política marxista, na sétima reunião.
E, finalmente, na última reunião, veremos quais são os problemas atuais, os novos
problemas e as novas abordagens para os velhos problemas que se enfrenta hoje em dia o
marxismo. E assim responderemos novamente, mas dispondo de novos elementos, à pergunta que
vamos enfrentar pela primeira vez agora mesmo:
O que é e o que quer o marxismo?
O marxismo é: 1) uma concepção geral e total do homem e do universo; 2) é, em função
dessa concepção do mundo, uma crítica da sociedade em que nasceu o marxismo, ou seja, a
sociedade capitalista, e 3) em função dessa crítica e como resultado dela, é uma política, é um
programa de ação para a transformação revolucionária da sociedade, para a criação de um novo
tipo de relação entre os homens.
Em geral, para o público, inclusive para o público que supõe-se ser marxista, o marxismo é
apenas uma crítica da sociedade capitalista e um programa de luta pelo socialismo. Mas, na
realidade, estas são apenas partes do marxismo, e partes subordinadas à concepção marxista do
homem, que é a essência e o ponto de partida do marxismo, lógica e cronologicamente. Por isso,
para responder à pergunta do que é o marxismo e o que quer é preciso começar,
imprescindivelmente, pela parte essencial e menos conhecida – mais oculta, poderia dizer – do
marxismo, que é a concepção marxista do homem.
O marxismo afirma que não existe nada na terra e seus arredores superior ao próprio
homem. O único criador que o marxismo reconhece é o homem, que com seu trabalho cria um
mundo novo e modifica a natureza e modifica a si mesmo. O marxismo rejeita o conceito de Deus e
de qualquer força extra-humana ou sobre-humana, situada acima do homem e que domine o
homem, chamem-na de Deus, História, Destino ou Espírito Santo5. Para o marxismo, todo o poder
que as religiões atribuem aos deuses não é senão poder humano que o homem, por diversas
circunstâncias, projetou fora de si mesmo e as atribui à seres ou coisas existentes fora dele6.
O marxismo acredita que o paraíso e o inferno, não estão fora do mundo, no além, mas aqui,
na terra. E que o criador e o mestre do paraíso e do inferno é o homem, que os cria com o seu
trabalho7. O marxismo não acredita que a história acabará um dia, que um dilúvio virá e então a
humanidade se precipitará em um inferno eternamente cheio de torturas ou em um paraíso onde não
haverá problemas de nenhuma natureza. O marxismo acredita que sempre haverá problemas, lutas e
conflitos. Mas é profundamente otimista, porque acredita que o homem é capaz de forjar um destino
cada vez mais humano; isto é, um destino no qual o homem não explore outro homem, no qual o
homem possa aplicar boa parte da sua capacidade criadora, não a lutar contra outros homens para
comer e vestir-se, mas em criar uma vida mais cheia de conforto e beleza, de solidariedade e
liberdade, isto é, uma vida mais propriamente humana. Ou seja, que esse futuro venturoso que as
religiões colocam no céu e para depois da morte, o marxismo o coloca no “mais aqui” e sobre a
terra, não como produto da morte, mas como produto da vida criadora do homem.

5 “A história”, disse Marx, “não faz nada, ‘não possui uma riqueza imensa’, ‘não trava combates’. Antes de tudo é o
homem, o homem real e vivo, que faz tudo isso e trava combates; estejamos certos de que não é a história que se
serve do homem como um meio para realizar (...) os seus fins; não é mais que a atividade do homem que persegue
seus objetivos” (A Sagrada Família, Edit. Claridad, p. 131). O homem é o autor e ator de sua história. E em parte
Marx aponta: “toda a suposta história do mundo não é outra coisa senão a produção do homem pelo trabalho
humano, e por conseguinte o devir da natureza por obra do homem” (Manuscritos econômico-filosóficos, Terceiro
Manuscrito, tradução de MP) (Nota de Milcíades Peña, daqui em diante designado como M. P.).
6 O marxismo quer reivindicar para o homem, como propriedade do homem, “os tesouros que foram dilapidados no
céu” (Hegel) (Nota de M. P.).
7 O marxismo nega o além e, consequentemente, afirma a capacidade criadora deste mundo. O marxismo nega uma
vida melhor no céu e, portanto, alega o seguinte: a vida deve e tem que melhorar na terra. O futuro melhor, que é
para as religiões o objeto de fé ociosa no que virá depois da morte, transforma-se com o marxismo no objeto do
dever, da atividade humana (Nota de M.P.) .
Ou seja, o marxismo é profundamente otimista, e essa única característica é suficiente para
torná-lo irredutivelmente inimigo de toda religião. Mas atenção. O otimismo revolucionário do
marxismo não tem nada a ver com o “progressivismo”. O “progressivismo” acredita que as
contradições se resolvem sozinhas ao longo do tempo. Assim, esconde do homem seu próprio papel
e anula o elemento humano ativo, sem o qual não pode haver nenhum progresso (Lukács). A
confiança no progresso ilimitado do “campo da URSS e do socialismo”, por exemplo, é a réplica
pseudo-marxista da confiança que os liberais spencerianos do século passado tinham na paz
perpétua e no mundo de fraternidade livre-cambista que se alcançaria com o comércio universal. O
marxismo tem otimismo e confia no futuro. Mas seu otimismo não é o otimismo cego e
complacente do “progressivismo”. O marxismo sabe que a categoria de perigo é essencial, é parte
integrante e fundamental de todo processo de avanço e desenvolvimento, e também do processo de
desenvolvimento da humanidade. E por isso sabe que o fim desse processo pode ser a catástrofe, e
que as maiores possibilidades de criar um melhor destino humano vão incessantemente
acompanhadas pelas mais tremendas possibilidades de voltar para trás e anular todo destino
humano. E o único que tem a chave de mudanças para indicar o caminho a ser tomado é o homem.
Somente a vontade ativa e consciente do homem decidirá. Por exemplo, se construiremos um novo
mundo com o átomo ou se semidestruiremos o mundo também com o átomo.

[A alienação]
As religiões acreditam que os sofrimentos do homem, a exploração do ser humano por outro
ser humano, existem porque o homem é homem, e só podem deixar de existir quando o homem
morre. Por isso falam da salvação do homem post mortem, no além. O marxismo, pelo contrário,
afirma que o sofrimento humano e a exploração do ser humano existem porque o homem ainda não
é plenamente humano, porque se alienou, e somente deixarão de existir quando o homem for
plenamente homem e se desaliene. Por isso não fala de salvações no além, mas do resgate do
homem, do reencontro do homem com suas novas qualidades.
Nós usamos as palavras alienação e desalienação. Estas duas palavras sintetizam os dois
conceitos fundamentais do marxismo. O conceito de alienação e da luta pela desalienação, são a
essência, o coração do pensamento marxista.
Alienação significa que o homem está dominado por coisas que ele criou. Alienação
significa que o homem projetou partes de si mesmo, transformou-as em coisas, e que essas coisas
dominam o homem8. Desalienação significa que o homem ponha sob o seu controle essas coisas
que o oprimem e que são partes dele mesmo, produtos de seu trabalho. Desalienação significa que,
ao dominar essas partes de si mesmo que se tornaram coisas que hoje o oprimem, o homem se
reencontre consigo mesmo, se resgate a si mesmo.

8 Alienação é o que Heine descreveu na Inglaterra, “onde as máquinas se comportam como seres humanos e os
homens como máquinas”. (Nota de M. P.)
“A ação conjunta dos indivíduos – diz Marx – vai criando mil forças produtivas. Mas uma vez criadas, essas forças
deixam de pertencer aos que a criam, tornam-se hostis e tiranizam-nas”. “Assim como nas religiões o homem é
dominado pelas criaturas de seu próprio cérebro, na produção capitalista o vemos dominado pelos produtos de seu
próprio braço” (O capital, I). Os preços das mercadorias “mudam constantemente, sem que nela intervenham a
vontade e o conhecimento prévio nem os atos das pessoas entre as quais se realiza a mudança. Seu próprio
movimento social cobra aos seus olhos a forma de um movimento de coisas sob cujo controle eles estão, em vez de
serem eles que o controlam” (O capital, I). (Nota MP).
Como é produzida a alienação do homem? Desde que existe, o homem está ligado a três
realidades que se ligam intensamente entre si. Elas são o trabalho, a reprodução de necessidades
novas e a família.
O trabalho é a soma de todos os esforços, antes de tudo práticos, e depois também teóricos,
que o homem tem que realizar para poder sustentar a sua vida em geral. A produção de
necessidades novas é produto do trabalho realizado para satisfazer as necessidades primárias,
porque para satisfazer uma necessidade o homem cria um instrumento, e isto por sua vez origina
uma nova necessidade, e assim até o infinito. Mas os homens não só trabalham para atender às suas
necessidades elementares, eles não só criar novas necessidades, mas também fazem outros homens,
ou seja, eles se reproduzem. Entra-se assim na relação entre homem e mulher, pais e filhos, isto é, a
família.
Pois bem: nestas três realidades, trabalho, produção de necessidades novas e produção de
homens ou família, estão dados todos os elementos que originam a alienação do homem ao longo da
história até hoje.
Pelo trabalho nascem objetos, que possuem uma espécie de existência independente em
relação ao seu criador, que é o homem. Nas sociedades primitivas, onde o produtor consome seus
próprios produtos, essa independência do objeto se esgota rapidamente no momento em que seu
criador o consome. Mas quando começa a produção de mercadorias, sobretudo na sociedade
capitalista, os objetos, convertidos em mercadorias, escapam ao controle do produtor - que já não os
consome ele mesmo - e adquirem independência, dominando o homem através da lei do valor, do
dinheiro, do preço e demais categorias e leis econômicas.
Por outro lado, tanto a produção de objetos como a produção de outros homens somente
podem ser feitas pela cooperação de diferentes indivíduos. Desta cooperação surge um emaranhado
de relações sociais e de instituições que vão aumentando em extensão e complexidade e acabam por
dominar o homem, aparecendo-lhe como coisas tão naturais e afastadas de seu controle como os
astros ou os outros planetas.
Além disso, já na produção de outros homens existe uma situação que se desenvolve cada
vez mais à medida que o domínio da humanidade sobre a natureza progride. Trata-se da divisão do
trabalho. Homens e mulheres têm diferentes funções no trabalho da reprodução, e esta é a primeira
divisão do trabalho que o homem conhece. Mas depois surgem novas divisões. Surge a tremenda
divisão entre trabalho manual e intelectual. E surge a possibilidade – e depois a realidade – de que
uma parte da humanidade se torne beneficiária do trabalho da outra parte. Surge a possibilidade de
alguns homens se apropriarem do produto do trabalho alheio.
E com a divisão do trabalho começa o desenvolvimento unilateral do homem. Desde o início
da divisão do trabalho, cada um tem uma localização determinada e exclusiva, que é imposta a ele e
da qual não pode mais sair. O homem já não é mais primordialmente homem; é antes de tudo
operário ou camponês ou burguês ou artesão, e tem de continuar a sê-lo se não quiser perder os seus
meios de vida.
Bem, a divisão do trabalho, o trabalho produtivo e a produção de novas necessidades se
desenvolvem através da história, e com elas crescem os objetos produzidos pelo homem, mas que o
homem não domina. A unilateralidade do desenvolvimento de cada homem é acentuada. O homem
aliena-se a respeito de suas obras, das coisas que ele criou, isto é, aparecem-lhe como objetos
estranhos regidos por leis próprias que lhe são impostas apesar de sua vontade. E finalmente, ao
dividir-se a sociedade em classes, o homem se aliena em relação a si mesmo, e a alienação entre o
homem e o homem é produzida. Assim como os produtos de seu trabalho lhe resultam coisas cujo
controle lhe escapa, o homem começa a usar outros homens como um meio ou instrumento, como
uma coisa para a satisfação de suas próprias necessidades.
O homem torna-se uma coisa, uma mercadoria que outros homens compram para seus fins.
E tudo o que o homem trabalhador produz já não lhe aparece como uma coisa estranha que ele não
domina; agora esse produto do seu trabalho se torna um poder estranho, no poder de outra classe, de
outros homens que se encontram sobre ele. E desde então, ao ficar alienado, o homem fica alienado
de seu trabalho. Já não só os produtos de seu trabalho aparecem diante do homem como coisas e
poderes estranhos. Agora é seu próprio trabalho que lhe aparece como algo estranho, externo. O
homem já não trabalha porque trabalhar é a essência humana e só no trabalho se realiza o homem.
Agora o homem alienado trabalha para viver. O trabalho não é mais a condição e o pressuposto
superior da vida, mas é simplesmente um meio, um instrumento, não para realizar a vida, mas para
atender às necessidades biológicas mais importantes. Este é o quadro geral – muito por cima – do
que o marxismo chama de alienação do homem, e que podemos resumir em alguns pontos. A
alienação é revelada em que:
- os produtos do trabalho do homem cobram uma existência independente; o mundo das
coisas criadas pelo homem move-se independentemente da vontade humana;
- as relações sociais entre os homens aparecem como coisas que escapam também ao
controle do homem e parecem reger-se por leis próprias, quase “naturais”;
- o produto do trabalho de uma parte da humanidade se transforma em poder da outra parte
da humanidade;
- o homem já não existe como “homem” senão como parte de homem, como operário ou
lojista, como intelectual ou pedreiro, como parte de homem, nunca como totalidade humana;
- o próprio homem torna-se coisa, instrumento que outros homens usam para seus próprios
propósitos;
- e, enfim, o próprio trabalho também se separa do homem e se torna coisa. Já não é a
realização da capacidade criadora do homem, mas um instrumento para satisfazer necessidades9.
E em que consiste a alienação do trabalho? “Consiste antes de tudo – diz Marx – em que o
trabalho é externo ao operário, isto é, não pertence ao seu ser, e portanto no seu trabalho o
operário não se afirma, mas se recusa, sente-se insatisfeito, infeliz, não desenvolve uma livre
energia física e espiritual, mas esgota o seu corpo e destrói o seu espírito. Por isso apenas fora do
trabalho o operário se sente dono de si, e em vez disso se sente fora de si no trabalho. Está em casa
se não trabalha, e se trabalha não está em casa. Portanto, seu trabalho não é voluntário, mas
forçado. É um trabalho forçado. Não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de
satisfazer necessidades estranhas. Tão estranho é o trabalho, tão pouco pertence ao operário, que
apenas desaparece a coerção física ou de outra ordem, o trabalhador escapa do trabalho como da
peste. O trabalho alienado é um trabalho de sacrifício de si mesmo, de mortificação... Certamente o
trabalho produz para os ricos coisas maravilhosas, mas para o operário, deformações. Ele
substitui o trabalho por máquinas, mas joga uma parte dos trabalhadores em um trabalho bárbaro

9 Trata-se na realidade, na maioria das vezes, de necessidades fetichizadas, por um lado, e de falsas necessidades em
geral, por outro. [N. do Editor. CEUR.]
e transforma a outra parte em máquina. Produz coisas espirituais, mas para o operário produz
idiotismo e cretinismo” (Manuscritos..., tradução de MP).
Isto dizia Marx em 1844. Pois bem, os melhores sociólogos norte-americanos estão
chegando nos nossos dias, por via empírica, às mesmas conclusões, e eles redescobrem o problema
da alienação do homem10.
O filme “A mulher do próximo” – que deveria ser chamado de “A única assinatura sem
adiantamento”, já que seu título em inglês é “No down payment” – merece ser visto porque é uma
excelente e descarnada manifestação da forma como vive a classe média ianque, e ali se veem
claramente alguns aspectos essenciais da alienação de um pequeno povo burguês contemporâneo
num país capitalista privilegiado.

[A concepção marxista de liberdade]


Propondo-se chegar às massas mais atrasadas, e precisamente para poder chegar às massas,
o marxismo vulgarizou-se, simplificou-se. E pagou um preço tremendo, porque se desnaturou e
perdeu sua riqueza, e chegou a ser confundido com uma simples interpretação econômica da
história, ou com um programa de melhorias para a classe operária. A isso foi reduzido.
E depois, os aparelhos burocráticos que se ergueram sobre a classe operária e que adotaram
o marxismo como um instrumento para a justificação de sua política, ajudaram com todo seu poder
material a manter as noções vulgares do marxismo e a esconder a sua essência, isto é, a luta contra a
alienação, a luta para desalienar o homem. Claro, os aparelhos burocráticos têm que esconder isso
porque equivale à sua própria liquidação. Se o marxismo fosse apenas lutas por melhorias
econômicas, ou pela reorganização da economia, os aparelhos burocráticos não correriam nenhum
perigo, e até poderiam se apresentar como fiéis executores do marxismo. Mas se o marxismo é – e
efetivamente é – luta permanente contra a alienação, ou seja, contra todas as potências
materiais e místicas que oprimem o homem, então os aparelhos burocráticos estão
absolutamente condenados, e não há convivência possível entre eles e o marxismo11.
Assim fica claro porquê no chamado Dicionário filosófico marxista de M. Rosental e P.
Iudin o conceito de alienação não apareça em nenhum modo, nem explícita nem implicitamente,
nem direta nem indiretamente.
Em um texto de 1842, Marx escreveu que “a liberdade é a essência do homem”. Henri
Lefebvre retomou esta citação esquecida e afirma com profunda razão que “o marxismo nasce de
uma aspiração fundamental à liberdade, de uma exigência impaciente, de um desejo de
florescimento”. Um crítico stalinista reprova-lhe que com isto quer fundar o marxismo “não sobre o
materialismo e a ciência mas sobre uma exigência moral”. Na realidade, Lefebvre tem razão: a
concepção da desalienação, da libertação do homem, é a essência do marxismo12.
10 Ely Chinoy, Automobile Workers and the American Dream [Los trabajadores automotrices y el Sueño Americano],
New York, 1955; Charles Walker, The Man on the Assembly Line [El hombre de la línea de montaje],
Massachussetts, 1952; C. Wright Mills, Las clases medias en Norte América, Madrid, 1957 (Nota de MP).
11 O destacado é nosso. Ressaltamos daqui em diante e em negrito, aqueles fragmentos do pensamento de Peña que
nos chamam poderosamente a atenção enquanto mostram a clareza e contundência de seu marxismo ao mesmo
tempo “ortodoxo” (marxiano) e heterodoxo (não estalinista nem dogmático). [N. do Editor. CEUR.]
12 “Lefebvre, Henri, Problèmes actuels du marxisme, Paris, PUF, 1958. A citação de Marx – que não é de 1843, mas
de um ano anterior - pertence à série de artigos “Os debates sobre a liberdade de imprensa”, aparecidos na Gazeta
Renana em maio de 1842. V Karl Marx, Em defesa da liberdade. Os artigos da Gazeta Renana, Valência,
Fernando Torres, 1983, p. 75."[N. do Editor. CEUR., tirada da edição do livro de Peña de El cielo por asalto, Bs.
Em 1857, enquanto prepara O Capital, Marx escreve um trabalho sobre economia política
que foi publicado em Moscou em 1939. Nesse trabalho, diz Marx que até agora a história registrou
dois tipos de sociedade: um no qual existem relações pessoais de dependência; outro, como no
capitalismo, em que existe a independência pessoal baseada na dependência material. A próxima
etapa, o socialismo, será aquela, diz Marx, em que existirá "a individualidade livre, fundada sobre o
desenvolvimento universal dos indivíduos e a subordinação a eles de sua produção social". Ou seja,
a missão da sociedade socialista é inaugurar o reino da individualidade humana livre sobre a terra13.
“O reflexo religioso do mundo real - diz Marx - somente pode desaparecer para sempre
quando as condições da vida diária, laboriosa e ativa, representem para os homens relações claras e
racionais, entre si e com respeito à natureza. A forma do processo social de vida, ou o que é o
mesmo, o processo material de produção, apenas se despojará de sua auréola mística quando esse
processo for obra de homens livremente socializados e posta sob seu comando de modo consciente
e racional” (Marx, O Capital, I, 1). Observe: homens livremente socializados14.
Por sua vez, Engels diz no AntiDühring que, com o socialismo, “cessa a produção de
mercadorias e com ela o império tirânico do produto sobre o produtor (...) Cessa a luta pela
existência individual, e com isso pode-se dizer, em certo sentido, que o homem sai definitivamente
do reino animal e se sobrepõe às condições animais de existência, para submeter-se a condições de
vida verdadeiramente humanas. As condições de vida que cercam o homem e que até agora o
dominavam são colocadas a partir desse instante sob seu domínio e comando, e o homem se torna
pela primeira vez senhor consciente e efetivo da natureza, ao tornar-se senhor e dono dos meios
naturais socializados. As leis de sua própria vida social, que até agora se erguiam diante do homem
como poderes estranhos, como leis naturais que o submetiam ao seu império, são agora aplicadas
por ele com pleno conhecimento de causa e portanto submetidas ao seu poderio. A associação
humana que, até aqui, se lhe impunha, por decreto cego da natureza e da história é a partir de
agora, obra sua. Pela primeira vez, ele começa a traçar a sua história com plena consciência do que
faz. A humanidade salta do reino da necessidade para o reino da liberdade”.
E Lênin diz em O Estado e a revolução que “o governo dos homens será substituído pela
administração das coisas e pela direção dos processos de produção”. E em outro trecho: “o fim
último que nos propomos é a destruição do Estado, isto é, de toda violência sistemática e
organizada, de toda violência sobre os homens em geral... Ao lutar pelo socialismo estamos
persuadidos de que desaparecerá toda necessidade de violência sobre os homens em geral, da
subordinação de um homem a outro, de uma parte da sociedade para outra”.
Como se vê, os clássicos marxistas insistem decisivamente em que a liberdade do
homem é a aspiração fundamental do marxismo. O marxismo quer homens plenamente

As. 2000. ]
13 "Peña refere-se aos manuscritos de Marx conhecidos como Grundrisse e editados em espanhol sob o título
Elementos fundamentais para a crítica de economia política (rascunho) 1857-1858, Buenos Aires, Século XXI,
1971-1976, 3 vols. Em 1958, quando se ditou este curso, só estavam disponíveis as edições russa (1939-1941) e
alemã oriental (1953) dos Grundrisse, praticamente inacessíveis na Argentina e escassissimamente difundidos
inclusive na Europa Ocidental; Peña valeu-se do adiantamento, pioneiro na difusão desta obra, que acabara de dar
uma revista francesa sob o título: "Valeur d'échange et aliénation générale", em Revue d' Histoire Economique et
Sociale, Vol.28, nº 2, Paris, que corresponde aos trechos dos Grundrisse conhecidos como "Valor de troca e
produção privada" e "O dinheiro como relação social". Na tradução do século XXI podem ser encontrados no Vol.
I. "[N. do Editor. Ceur, tirada da edição do Livro de Peña de El cielo por asalto, Bs. As. 2000.]
14 Destacado pelo próprio Peña [N. del Editor. CEUR]
humanos, homens livres de coisas e fetiches opressores. Melhorar o padrão de vida é um passo
absolutamente necessário, e o primeiro passo para esta libertação do homem, mas apenas o primeiro
passo.
O marxismo entende que a produção da vida material e a satisfação das necessidades são
uma atividade natural e indispensável. Comer, beber e procriar são funções autenticamente
humanas. Mas – diz Marx – nelas não se revela o que há de especificamente humano no homem.
Porque também o animal come e se reproduz. De modo que, se a satisfação material é separada do
resto da atividade humana, e se torna um propósito único e último, então essas funções são próprias
do animal e não têm em si nada de humanas. Por isso, acrescenta Marx, enquanto existir um regime
social em que para o homem o comer, o beber e o reproduzir-se apareçam como os propósitos
exclusivos de seus desejos, o homem será apenas superior ao animal e estará verdadeiramente longe
de alcançar seu verdadeiro estado humano.
“Um violento aumento de salários – diz Marx – não seria outra coisa senão uma melhor
remuneração dos escravos, e não elevaria o operário nem o trabalho à sua função humana e à sua
dignidade” (Manuscritos). Isto, em 1844. Em O Capital, Marx diz que “à medida que se acumula o
capital, tem necessariamente que piorar a situação do operário, qualquer que seja a sua retribuição,
seja ela alta ou baixa” (O Capital, I, 23)15.
O marxismo não é simplesmente materialismo, embora ignorado pelo crítico stalinista de
Lefebvre. O marxismo nega que o homem seja, assim sem mais, produto direto das circunstâncias e
do meio. O marxismo reivindica a autonomia criadora do homem. Tanto a burocracia dos
partidos da II Internacional como a burocracia soviética praticavam e praticam esta redução
do marxismo a um materialismo de visão estreita. Esta é a concepção das burocracias porque
reduz a nada a iniciativa criadora do homem e, portanto, eleva às nuvens o conservadorismo dos
aparelhos burocráticos, caracterizados pelo seu apego e submissão rastejante às circunstâncias,
rejeitando a luta por modificar as circunstâncias.
Marx explicou tudo isso muito claramente em suas “Teses sobre Feuerbach”: “A teoria
materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação esquece que as
circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser
educado. Conduz, pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas partes, uma das quais está
acima da sociedade” (Tese III).

[Conclusão]
E bem: o que é, então, o marxismo? O marxismo é, como já dissemos, uma concepção do
mundo, é uma crítica à sociedade capitalista, e é um programa de luta para transformar a sociedade.
E como eixo desses três aspectos, e como objetivo único e decisivo do marxismo, está a luta para
desalienar o homem, a aspiração a resgatar para o homem sua plenitude humana.
No marxismo, todo o resto são apenas meios para esse fim. O desenvolvimento material das
forças produtivas e a elevação do padrão de vida é importante, porque constitui a base material para
a desalienação do homem. A liquidação do capitalismo é fundamental porque constitui por sua vez a
condição básica para um maior desenvolvimento das forças produtivas. A ascensão da classe
operária ao poder é imprescindível porque constitui por sua vez o requisito básico para a liquidação

15 Interessantíssima conceitualização do que comumente se denomina como condições de vida dos trabalhadores. [N.
do Editor. CEUR]
do capitalismo. Tudo isso é fundamental e é ótimo, assim como são ótimos os satélites e as grandes
usinas e tratores, etc. Mas, para o marxismo, tudo isso são meios e nada mais. Porque o que o
marxismo quer – e isto é a sua essência – é um novo tipo de relações entre os homens, nas
quais os homens não sejam dominados por coisas nem fetiches; nas quais o homem seja o mestre
absoluto, dono soberano de suas faculdades e produtos, e não escravo da mercadoria e do dinheiro,
da propriedade e do capital, do estado e da divisão do trabalho.
SEÇÃO DOIS OU SEGUNDA REUNIÃO

[A alienação nos textos de maturidade de Marx]


A propósito da alienação, problema sobre o qual tanto insistimos na reunião anterior,
assinalamos isto: a alienação revela-se também em que o indivíduo da sociedade capitalista carece
de uma personalidade integrada; sua personalidade é antes uma série de máscaras. O indivíduo é
uma pessoa quando trata seus superiores em seu trabalho, e outra quando trata aqueles que estão
abaixo dele; é uma pessoa quando está no cabeleireiro e outra quando está em uma reunião social; o
indivíduo é um amoroso pai de família durante a noite e um perfeito burguês das 8 da manhã até às
8 da noite. Ou seja, toda a série de contradições e aberrações que Charles Chaplin descrevia tão
profundamente no filme “Monsieur Verdoux”, onde um honorável senhor, amoroso pai de família se
mantinha explorando e assassinando mulheres.
Outro aspecto da alienação é apontado por Marx nestes termos: “o homem empobrece
continuamente enquanto homem, tem necessidade de cada vez mais dinheiro para se apropriar
desses seres hostis [as mercadorias], e a força de seu dinheiro diminui em razão inversa à massa da
produção, ou seja, sua necessidade aumenta à medida que aumenta a força de seu dinheiro. É por
ele que a necessidade de dinheiro é a verdadeira necessidade gerada pela economia política, a única
necessidade que gera. A quantidade de dinheiro torna-se cada vez mais na única necessidade
essencial do homem. A imoderação e a falta de medida resultam das suas verdadeiras medidas. Em
parte, esta alienação do homem manifesta-se no fato de gerar, por um lado, o refinamento das
necessidades e dos meios para as satisfazê-las e, por outro lado, a bestialização, a simplificação
grosseira e abstrata das necessidades... Para o operário, inclusive a necessidade de ar puro e livre
deixa de ser uma necessidade. O homem se acostuma a habitar cavernas que estão envenenadas pelo
aroma pestilento da civilização... A sujeira, esse sinal da queda e da degradação do homem, os
excrementos da civilização, tornam-se o meio vital do operário... O homem não somente deixa de
ter necessidades humanas, mas perde suas necessidades animais, porque o selvagem ou o animal
têm apesar de tudo, a necessidade de caçar, de se mover” (Manuscritos, tradução de MP).
Somente na teoria da alienação encontramos a chave da insistência marxista em considerar o
proletariado como emancipação da humanidade: “a classe possuidora e a classe proletária
representam a mesma alienação humana. Mas a primeira está bem; essa alienação confirma-a, ela
sabe que sua força está lá, que nela bebe a aparência de um existir humano; enquanto a segunda (o
proletariado) não vê nesta alienação senão o seu próprio aniquilamento, a sua impotência e a
realidade tangível de uma existência contrária ao homem (...) A propriedade privada é empurrada à
sua própria ruína porque cria o proletariado, a miséria física e moral conscientes, uma
desumanização que se conhece e tende por isso a suprimir-se” (Manuscritos).
“Se os escritores socialistas atribuem ao proletariado esse papel na história universal, não é
(...) porque o tenham por uma divindade. Pelo contrário. É porque o desaparecimento de toda
humanidade, de toda sombra de humanidade, está praticamente realizado no proletariado, é por isso
que este pode e deve libertar-se a si mesmo; porque as suas condições de vida presentes resumem
toda a desumanidade da sua vida; porque o homem, no proletariado, está perdido, mas adquiriu não
apenas a consciência teórica desta perdição, mas até os estímulos que o levaram a rebelar-se contra
a desumanidade (...) Mas não pode libertar-se senão suprimindo as suas próprias condições de vida,
e com isso a desumana situação de toda a sociedade presente, que se resume na sua” (A Sagrada
Família, tradução de MP).
Por outro lado, sem compreender a teoria da alienação não é possível entender o pensamento
econômico de Marx, porque todo O capital não é mais que um desmascaramento da alienação
humana tal qual ela aparece escondida nas categorias e leis econômicas da sociedade capitalista.
“A Economia Política – diz Marx – parte do fato da propriedade privada; não nos explica
ela... Nós partimos de um fato econômico atual. O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto
mais riqueza ele produz, quanto mais sua produção aumenta em potência e alcance. O trabalhador
transforma-se em uma mercadoria tanto mais barata quanto mais bens cria ele. Juntamente com a
valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos
homens... Este fato expressa que o objeto que o trabalhador produz, seu produto, se opõe a ele como
um ser alheio, como um poder independente do produtor... A vida que ele concedeu ao objeto se
opõe a ele de maneira hostil e alheia... A Economia Política esconde a alienação na essência do
trabalho” (Manuscritos, 1844, “O trabalho alienado”).
Na reunião anterior houveram aqui algumas dúvidas e alguns sorrisos céticos sobre o caráter
marxista da teoria da alienação. Pois bem: como já dissemos, a teoria da alienação não é uma coisa
da juventude de Marx, que Marx depois tenha deixado de lado. A teoria da alienação permeia todo o
pensamento de Marx em todos os seus momentos.
No Manifesto Comunista diz Marx: “O operário, obrigado a vender-se em pedaços, é uma
mercadoria como outra qualquer, sujeita portanto a todas as mudanças e modalidades da
concorrência, a todas as flutuações do mercado. A extensão da maquinaria e a divisão do trabalho
tiram a este, no regime atual, todo caráter autônomo, toda livre iniciativa e todo encanto para o
operário. O trabalhador torna-se uma simples mola da máquina, da qual só se exige uma operação
mecânica, monótona, de fácil aprendizagem. (...) Quanto mais repelente é o trabalho, maior é a
diminuição do salário pago ao trabalhador. (...) As massas operárias concentradas na fábrica são
submetidas a uma organização e disciplina militares. Os operários, soldados rasos da indústria,
trabalham sob o comando de toda uma hierarquia de soldados, oficiais e chefes. Não são apenas
servos da burguesia e do Estado burguês, mas estão todos os dias e a todas as horas sob o jugo
escravizador da máquina, do contramestre, e sobretudo do industrial burguês dono da fábrica. E
esse despotismo é tanto mais mesquinho, mais execrável, quanto maior a franqueza com que
proclama que não tem outro fim senão o lucro”. Isto em 1848.
Em 1856, Marx diz: “Há um grande fato característico deste nosso século XIX, um fato que
nenhum partido se atreve a negar. Por um lado, nasceram forças industriais e científicas que
nenhuma época da história humana do passado jamais suspeitou. Por outro lado, existem sintomas
de decadência que ultrapassam em muito os horrores registrados nos últimos tempos do Império
Romano. Nos nossos dias, tudo parece estar grávido do oposto. A maquinaria, dotada do
maravilhoso poder de encurtar e justificar o trabalho humano, nós a vemos esfomeá-lo e
sobrecarregá-lo. Por um feitiço estranho e horripilante, as fontes de riqueza recém-nascidas são
transformadas em fontes de necessidade. As vitórias da técnica parecem ter por preço a perda de
caráter. Ao mesmo tempo em que a sociedade mina a natureza, o homem parece tornar-se escravo
de outros homens ou de sua própria infâmia. Até mesmo a vida pura da ciência parece incapaz de
brilhar se não é sobre o fundo escuro da ignorância. Todas as invenções e progressos parecem ter
como resultado dotar as forças naturais de vida intelectual e estupidificar a vida humana
transformando-a em uma força material” (Discurso de Marx no People's Paper, 1856). É a mesma
linguagem dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, onde a teoria da alienação é formulada.
E finalmente, é em O capital, nesta obra que coroa o pensamento marxista, em O capital,
escrito não na juventude, mas na mais alta maturidade de Marx, em O capital que vem à luz em
1867, 23 anos depois de os Manuscritos, onde encontramos a cada passo a crítica à alienação e o
impulso para a desalienação do homem, que é o motor do pensamento marxista. Vejamos:
"O caráter misterioso da forma de estribo de mercadoria... em que projeta diante dos
homens o caráter social do trabalho destes como se fosse um caráter material dos
próprios produtos do seu trabalho, um dom natural destes objetos... O que aqui ganha
aos olhos dos homens a forma fantasmagórica de uma relação entre objetos materiais,
não passa de uma relação social concreta estabelecida entre os mesmos homens... Por
isso, se queremos encontrar uma analogia para este fenômeno, temos que remontar-nos
às regiões nebulosas do mundo da religião, onde os produtos da mente humana se
assemelham a seres dotados de vida própria, de existência independente e relacionados
entre si com os homens (...) Estas [as magnitudes do valor da mercadoria] mudam
constantemente sem que nela intervenha a vontade, o conhecimento prévio nem os atos
das pessoas entre as quais se desenvolve a mudança. Seu próprio movimento social
cobra aos seus olhos a forma de um movimento de coisas sob cujo controle eles estão,
em vez de serem eles quem os controlam (...) O reflexo religioso do mundo real só pode
desaparecer para sempre quando as condições da vida quotidiana, laboriosa e ativa,
representem para os homens relações claras e racionais entre si e para com a natureza. A
forma do processo social de vida, ou o que é o mesmo, do processo material de
produção, só se despojará de seu halo místico quando esse processo for obra de homens
livremente socializados e postas sob seu comando consciente e racional " (O capital, I,
Cap. 1).

"Encontramo-nos, em primeiro lugar, com a verdade, muito fácil de compreender, de


que o operário não é, desde que nasce até que morre, mais do que força de trabalho;
portanto, todo o seu tempo disponível é, por obra da natureza e por obra do direito,
tempo de trabalho, e pertence, como é lógico, ao capital para a sua incrementação.
Tempo para formar-se uma cultura humana, para aperfeiçoar-se espiritualmente, para
cumprir as funções sociais do homem, para o tratamento social, para o livre jogo das
forças físicas e espirituais da vida humana, inclusive para santificar o domingo – mesmo
na terra dos santuários, adoradores do preceito dominical - tudo uma pura futilidade!*”
(O capital, I, Cap. 8).

“Os meios de produção são imediatamente transformados em meios destinados a absorver


trabalho alheio. Já não é o operário que emprega os meios de produção, mas estes que empregam o
operário” (O capital, I, Cap. 9).
* Nota do tradutor para pt-br: colocamos aqui esse mesmo trecho na tradução de O capital pela Boitempo, na
tradução de Rubens Enderle (2013):
“Desde já, é evidente que o trabalhador, durante toda sua vida, não é senão força de trabalho, razão pela qual todo o
seu tempo disponível é, por natureza e por direito, tempo de trabalho, que pertence, portanto, à autovalorização do
capital. Tempo para a formação humana, para o desenvolvimento intelectual, para o cumprimento de funções
sociais, para relações sociais, para o livre jogo das forças vitais físicas e intelectuais, mesmo o tempo livre do
domingo – e até mesmo no país do sabatismo – é pura futilidade!”
“A divisão do trabalho na manufatura supõe a autoridade incondicional do capitalista sobre
homens que são outros tantos membros de um mecanismo global da sua propriedade. Por isso, a
própria consciência burguesa, que festeja a divisão manufatureira do trabalho, a anexação da vida
do operário à atividades menores e a subordinação incondicional destes operários parcelados ao
capital como uma organização do trabalho que incrementa a força produtiva deste, denuncia com
igual clamor tudo o que suponha uma regulamentação e fiscalização consciente da sociedade no
processo social de produção como se se tratasse de uma usurpação dos direitos invioláveis de
propriedade, de liberdade e de libérrima 'genialidade' do capitalista individual. E é característico que
esses apologistas entusiastas do sistema fabril, quando querem fazer uma acusação duríssima contra
o que seria uma organização geral do trabalho à base de toda a sociedade, digam que converteria a
sociedade inteira em uma fábrica” (O capital, I, Cap. 12).
A manufatura, segue Marx, “transforma o operário em um monstro, fomentando
artificialmente uma de suas habilidades parciais, à custa de esmagar todo um mundo de fecundos
estímulos e capacidades, ao modo como nas estâncias argentinas se sacrifica um animal inteiro para
tirar-lhe a pele ou tirar-lhe o sebo. Além de distribuir os diversos trabalhos parciais entre diversos
indivíduos, divide-se o próprio indivíduo, convertindo-o em um aparelho automático circunscrito a
um trabalho parcial, dando assim realidade à aquela inquietante fábula de Menênio Agripa na qual
aparece um homem convertido em simples fragmento de seu próprio corpo... Os conhecimentos, a
perspicácia e a vontade que se desenvolvem, mesmo que em pequena escala, no labrador ou no
artesão independente, como no selvagem que administra com sua astúcia pessoal todas as artes da
guerra, basta que as reúna agora toda a oficina em um conjunto. As potências espirituais da
produção ampliam a sua escala sobre um aspecto à custa de inibirem-se aos demais. O que os
operários parciais perdem concentra-se, enfrentando-se com eles, no capital. É um resultado da
divisão manufatureira do trabalho ao erguer diante deles, como propriedade alheia e poder
dominador, as potências espirituais do processo material de produção. Este processo de dissociação
começa com a cooperação simples onde o capitalista representa diante dos operários individuais a
unidade e a vontade do corpo social do trabalho. O processo continua avançando na manufatura,
que mutila o operário ao convertê-lo em operário parcial. E é concluído na grande indústria, onde a
ciência é separada do trabalho como potência independente de produção e restrita ao interesse do
capital. Na manufatura, o enriquecimento da força produtiva social do operário coletivo, e portanto
do capital, está condicionado pelo empobrecimento do operário em suas forças produtivas
individuais” (O capital, I, Cap. 12).
“A especialidade de lidar ao longo da vida com uma ferramenta parcial torna-se a
especialidade vitalícia de servir uma máquina parcial. A maquinaria é usada para transformar o
próprio operário, desde a infância, em uma máquina parcial... Na manufatura e na indústria manual,
o operário serve-se da ferramenta; na fábrica, serve à máquina. Ali os movimentos do instrumento
de trabalho partem dele; aqui, é ele quem tem que seguir seus movimentos. Na manufatura os
operários são outros tantos membros de um organismo vivo. Na fábrica, existe acima deles um
organismo morto, ao qual são incorporados como apêndices vivos... O trabalho mecânico ataca
muito o sistema nervoso, sufoca o jogo variado dos músculos e confisca toda a livre atividade física
e espiritual do operário. Até as medidas que tendem a facilitar o trabalho se convertem em meios de
tortura, pois a máquina não livra o operário do trabalho, mas priva-o de seu conteúdo. O tom em
uníssono de toda produção capitalista é que, longe de ser o operário quem maneja as condições de
trabalho, são estas que lhe manejam a ele; mas essa inversão não vislumbra realidade tecnicamente
tangível até a era da maquinaria. Ao se tornar um autômato, o instrumento de trabalho se enfrenta
como capital, durante o processo de trabalho, com o próprio operário; ergue-se diante dele como
trabalho morto que domina e absorve a força de trabalho vivo. Na grande indústria, erguida sobre a
base da maquinaria, consuma-se o divórcio entre as potências espirituais do processo de produção e
o trabalho manual, com a transformação daquelas em molas do capital sobre o trabalho. A perícia
detalhista do operário mecânico individual, sem alma, desaparece como um detalhe diminuto e
secundário ante a ciência, ante as gigantescas forças naturais e o trabalho social de massa que tem
sua expressão no sistema da maquinaria e formam com ele o poder do patrono (O capital, I, Cap.
13).
“A acumulação reproduz o regime do capital numa escala superior, cria em um dos polos
mais capitalistas ou capitalistas mais poderosos, e no outro mais operários assalariados. A
reprodução da força de trabalho, obrigada, queira ou não, a submeter-se incessantemente ao capital
como meio de exploração, que não pode desprender-se dele e cuja escravização ao capital não
desaparece... (...) Sob as condições de acumulação que até aqui vimos dando por supostas, as mais
favoráveis aos operários, o estado de submissão destes ao capital reveste formas algo toleráveis...
com o aumento do capital, em vez de se desenvolver de um modo intensivo, este estado de
submissão não faz mais que se estender; dito em outros termos, a órbita de exploração e império do
capital vai se estendendo com seu próprio volume e com a cifra de seus súditos. Estes, ao acumular-
se o capital, percebem uma maior parte do produzido, sob a forma de meios de pagamento, o que
lhes permite viver um pouco melhor, alimentar com um pouco mais de amplitude seu fundo de
consumo, dotando-o de roupas, móveis, etc., e formar um pequeno fundo de reserva em dinheiro.
Mas assim como o fato de alguns escravos andassem melhor vestidos e melhor alimentados, que
desfrutarem de um tratamento melhor e de uma poupança mais abundante, não destruía o regime de
escravidão nem faria desaparecer a exploração do escravo, não suprime tampouco a do operário
assalariado. O fato do trabalho subir de preço por efeito da acumulação do capital só quer dizer que
o volume e o peso das correntes de ouro que o operário assalariado forjou para si mesmo podem tê-
lo preso sem haver tensão... Ou seja, por mais favoráveis que sejam para o operário as condições em
que vende sua força de trabalho, estas condições levam sempre consigo a necessidade de voltar a
vendê-la constantemente e a reprodução constantemente ampliada da riqueza como capital” (O
Capital, I, Cap. 23).

[Marxismo e filosofia]
Vale a pena estudar a filosofia marxista - o que significa estudar toda a filosofia, antes e
depois de Marx? Uma anedota pode nos orientar: Lênin começou a ler a Lógica de Hegel em meio à
eclosão da Primeira Guerra Mundial, entre setembro e dezembro de 1914. É que Lênin era homem
de ação, mas uma ação sem verdade. Para Lênin – para o marxismo - a ação não se opõe ao
pensamento; a ação exige o pensamento. Para o marxismo, a prática política é uma prática
consciente. E para o marxismo a prática não significa apenas adaptar-se ao existente, significa não
só habilidade técnica para agir sobre o existente. Prática significa, para o marxismo, conhecimento
profundo da realidade e ação plenamente consciente - ou seja, baseada no conhecimento.
Além disso, sem entender o pensamento filosófico, em particular sem entender a filosofia de
Hegel, é impossível entender Marx. Com toda a razão, Lênin diz em seus comentários à Lógica de
Hegel: “não se pode entender completamente O capital de Marx, e particularmente o primeiro
capítulo, se toda a Lógica de Hegel não foi totalmente estudada e compreendida. A isto se deve o
que, desde há meio século, muitíssimos marxistas não compreenderam a Marx” (Cadernos
filosóficos, tradução de MP).
Na linguagem popular, fala-se de “levar as coisas com filosofia”. Isso significa levar as
coisas com paciência. Mas nesta frase vulgar há um núcleo de verdade que nos ajuda a entender o
que é a filosofia. Porque ao dizer “é preciso levar as coisas com filosofia” ou “filosoficamente”, faz-
se um convite à reflexão, ao emprego da própria capacidade racional, para compreender os
problemas. E filosofia é precisamente isso: enfrentar-se reflexivamente com a realidade, incluído
nele o próprio pensamento; ir além dos primeiros dados que são obtidos e tentar tirar deles todas as
implicações, todas as fases, todos os momentos, todas as relações que neles estão contidos. Vamos
agora enfrentar alguns problemas e teses fundamentais da filosofia marxista.
Ao terminar esta reunião, ninguém sairá daqui “sabendo” filosofia marxista. Mas todos
sairemos conhecendo em termos gerais que a filosofia marxista enfrenta tais e quais problemas, que
os enfoca de tal e qual modo, e que para conhecer isto em profundidade é indispensável ler as obras
fundamentais do marxismo. Essas obras são, creio eu, “A Ideologia alemã” de Marx e Engels,
“Lógica formal e lógica dialética”, de Henri Lefebvre; as “Teses sobre Feuerbach”, de Marx, e
“Filosofia e socialismo”, de Antonio Labriola. E acredito é preciso lê-las nessa ordem, para
entender claramente o que é a filosofia marxista (entenda-se que em um plano elementar).

[A dialética]
Vamos agora enfrentar o problema da dialética. A dialética é uma abordagem que trata de
captar toda a realidade exatamente como é, e ao mesmo tempo como deveria ser, de acordo com o
que ela mesma contém em potência. A dialética significa conhecer as coisas concretamente, com
todas as suas características, e não como entes abstratos, vazios, reduzidos a uma ou duas
características. É por isso que a dialética significa ver as coisas em movimento, isto é, como
processos; por isso a dialética descobre e estuda a contradição que há no seio de toda unidade, e a
unidade à qual tende toda contradição. O pensamento formal comum, que tem sua coroação na
lógica formal, tende a despojar a realidade de sua imensa riqueza de conteúdo, de sua infinita
complexidade, e reduz tudo a esquemas e fórmulas vazias de conteúdo. É por isso que a lógica
formal diz “toda coisa é igual a si mesma” e diz também “uma coisa é ou não é”. Assim se poupa o
trabalho de levar em conta que na realidade viva toda coisa ao mesmo tempo é e não é, porque em
tudo há movimento; e toda coisa é igual a si mesma, mas ao mesmo tempo é diferente de si mesma,
porque no seu seio existem diferenças, e havendo diferenças há o germe de contradições. Levar em
conta esta realidade, não renunciar ao seu conhecimento nem falsear seu conhecimento esquecendo
a riqueza do conteúdo do real, contentando-se com conhecer partes isoladas e dissociadas exceto de
uma ou duas características; ao contrário, penetrar a fundo na realidade, captá-la tal qual é, com sua
infinita complexidade, com sua inesgotável riqueza de conteúdos, isso é dialética.
No tempo de que dispomos para o nosso trabalho não poderemos estudar a dialética. Para
isso – ou melhor dizendo, para uma introdução ao estudo da dialética - precisaríamos de pelo menos
tantas reuniões quanto as que dedicaremos a todo o estudo do marxismo. Mas o importante é que
daqui saia claramente o seguinte:
A realidade é maravilhosa e infinitamente rica em complexidade, em contradições, em
movimento. Existem duas abordagens para conhecê-la:
- a abordagem mais elementar, mais simples: a abordagem do pensamento comum. Esta
abordagem diz: a realidade é muito complexa; eu não posso captá-la como ela é, porque então eu
não entendo nada. Para entendê-la, tenho que levar as coisas uma de cada vez, separando-as,
colocando-as lado a lado, evitando que se misturem ou mudem de lugar ou se transformem. Este
pensamento, que é abstrato, isto é, que separa, que rasga o que em realidade está unido, é o
pensamento formal abstrato;
- pelo contrário, há uma abordagem que tenta captar a realidade como ela é: rica,
contraditória, móvel. Essa abordagem não se contenta em entender a realidade em partes e
esvaziada de conteúdo; ao contrário, exige apreender a realidade com tudo o que ela tem. Essa
abordagem é precisamente o pensamento dialético.
Com isto, que fique dito que a dialética não se reduz de modo algum à série de “leis” que os
manuaizinhos apresentam como dialética: a transformação da quantidade em qualidade, a unidade
dos contrários, etc. Estas são apenas algumas partes da dialética, que é a lógica, e nada mais que
partes. E colocá-las separadas do conjunto, como receitas a serem aplicadas à realidade, é a coisa
mais antidialética que pode ser concebida16. Acabamos de entrar no terreno da dialética quando nos
esforçamos para entender quando, onde e em que condições uma quantidade se transforma em
qualidade, ou um polo se transforma em seu oposto, etc. Ou seja, só entramos no terreno da
dialética quando nos esforçamos para captar a realidade viva, em sua totalidade, com seu
movimento, suas contradições e suas mutações.
Nas sociedades primitivas o homem pensava concretamente. Para o homem primitivo, em
cada elemento da realidade se encontram o único e o múltiplo, a quietude e o movimento, a
identidade e a diferença. O homem primitivo pensava dialeticamente porque pensava em concreto,
ou seja, via as coisas como totalidades, no conjunto, com toda a riqueza do seu conteúdo. É por isso
que a linguagem do homem primitivo pinta e descreve a realidade em toda a sua riqueza: o
primitivo não diz “isso” em abstrato, diz “isso que eu toco”, “isso que está muito próximo”, “isso
que está de pé” ou “isso que está ao alcance da minha visão”. O primitivo não entende coisas
isoladas; vê situações, conjuntos, totalidades. Da mesma forma, as crianças pequenas não entendem
letras, mas entendem palavras, ou seja, conjuntos concretos que fazem sentido.
Mas quando a humanidade começou a dominar a natureza e a conhecê-la melhor, pôde e
efetivamente criou uma formidável ferramenta intelectual, que é o conceito abstrato. O homem foi
capaz de parar de ver as coisas na íntegra, foi capaz de decompô-las em partes, foi capaz de analisá-
las, foi capaz de abstrair. O homem aprendeu a dizer “este” em abstrato e “esta árvore”, sem dizer
“esta árvore verde aqui na colina” como dizia o primitivo. Assim, desintegrando a realidade em
partes, conseguiu avançar o conhecimento. Assim, avançaram as ciências naturais. A lógica formal,
com sua afirmação de que uma coisa é ou não é, coroou essa aspiração do pensamento abstrato e foi
um formidável passo adiante... mas ao mesmo tempo um formidável passo atrás. Um formidável
passo adiante, porque permitiu aplicar-se à análise minuciosa dos elementos e partes integrantes da
realidade; permitiu o estudo intensivo dos mesmos e contribuiu, assim, a imensa massa de
conhecimentos que constituem as ciências naturais. Mas o pensamento abstrato e a lógica formal
significaram também um formidável passo atrás, no sentido de que se perdeu para muitos séculos
essa riqueza que caracterizava o pensamento do primitivo, esse frescor da capacidade de apreender
a realidade como [ela] é, como um todo complexo e mutável, cheio de qualidades e atributos.

16 Muitas críticas foram feitas nesse sentido ao livro de Engels, O Anti-Duhring ou “A revolução crítica da ciência”
de Eugenio Duhring. Introdução ao estudo do socialismo.”, do ano de 1878. Para o debate sobre esta questão pode-
se ler um pequeno artigo de Riazanof escrito em 1928: “Apêndice. Cinquenta anos de Anti-Dühring.” Na edição da
Claridad, do ano de 1972 (4ª edição). [N. do Editor. CEUR]
A dialética recupera para o pensamento essa riqueza de conteúdo, essa criação, esse frescor
do pensamento do homem primitivo, mas incorpora-lhe o rigor, a precisão, a exatidão que
contribuíram séculos de pensamento abstrato e lógica formal.
Como diz Lefebvre, a dialética é a plena captação pelo pensamento de toda a efervescência
tumultuada da matéria, a ascensão da vida, a epopeia da evolução, interrompida de repente por
catástrofes; todo o drama cósmico, enfim. “A verdade está na totalidade”, diz Hegel. Ou seja, a
ideia verdadeira é superação das verdades limitadas e parciais, que se transformam em erros ao
considerá-las imóveis. Só a captação da totalidade, onde se unem o idêntico e o distinto, a quietude
e o movimento, o um e o múltiplo - ou seja, apenas a captação do concreto -, só isso nos mostra a
verdade. Nestas fórmulas - que não são fórmulas, mas a síntese de toda a prodigiosa evolução do
pensamento humano – estão contidas todo o pensamento dialético e esta é a genial contribuição de
Hegel ao pensamento humano.
A lógica formal diz que toda coisa é idêntica a si mesma. Mas para isso é preciso que seja
diferente de todas as outras, de modo que a identidade mais pura supõe já a diferença, mas a lógica
formal não toma nota disso.
Por outro lado, o fato de que a identidade, mesmo a identidade mais abstrata, contém em si a
diferença, revela-se em todo julgamento em que o predicado é distinto do sujeito. Ao dizer, por
exemplo, a rosa é vermelha, dizemos que a rosa, sem deixar de ser uma rosa, é vermelha, vale dizer,
algo diferente da rosa. Se quiséssemos evitar essa diferença no seio da unidade, se quiséssemos
cumprir rigorosamente o princípio lógico formal de que toda coisa é idêntica a si mesma e não pode
ser idêntica e diferente, então o pensamento seria algo completamente vazio, e os únicos
julgamentos seriam julgamentos próprios de retardados ao estilo de “a rosa é... a rosa”; “a vida é...
vida”, etc. Tanto quanto queremos fazer julgamentos inteligentes, tanto quanto queremos conhecer
as qualidades do real e captar sua complexidade, então fatalmente rompemos com a lógica formal e
lidamos com a identidade e a diferença de cada coisa consigo mesma.
Por isso explica Hegel que “quem postula que não existe nada que leve dentro de si a
contradição, como a identidade dos contrários, postula, ao mesmo tempo, que não existe nada vivo.
Pois a força da vida consiste precisamente em levar dentro de si a contradição, é suportá-la e
superá-la. Este pôr e remover da contradição de unidade ideal e desagregação real dos termos forma
o processo constante da vida, e a vida não é mais do que processo”.
E em outro lugar diz Hegel: “nada há no que não se possa e deva mostrar a contradição, isto
é, as determinações opostas; o abstrair do intelecto é o agarrar-se violentamente a uma
determinação, um esforço para obscurecer e afastar a consciência da outra determinação que ali se
encontra” (Lógica, parágrafo 89). E mais adiante: “a proposição que expressa a identidade é: toda
coisa é idêntica a si mesma: A=A, e negativamente, A não pode ao mesmo tempo A e não-A. Esta
proposição, em vez de ser uma verdadeira lei do pensamento, não é senão a lei do intelecto
abstrato. (...) Quando se afirma que o princípio de identidade não pode ser provado, mas que toda
consciência lhe empresta sua adesão e que a experiência o confirma, a essa pretendida experiência
há que opor a experiência universal de que nenhuma consciência pensa, nem tem representações,
nem sequer fala segundo essa lei; e que nenhuma existência, qualquer que seja, existe segundo ela.
Falar de acordo com esta lei pretendida da verdade (um planeta é... um planeta; o magnetismo é...
magnetismo; o espírito é... o espírito) passa, com plena razão, como um falar estúpido, e esta sim
que é uma experiência universal” (Lógica, parágrafo 115).
Dissemos que a dialética é pensamento concreto, e apontamos as limitações do pensamento
abstrato. O que significa “pensamento abstrato”? Vamos ouvir Hegel: “quem pensa em abstrato? O
homem inculto, não o culto. Me limitarei a dar alguns exemplos: um assassino é levado para o
cadafalso. Para o povo comum não é outra coisa senão um assassino. Talvez as senhoras, vendo-o
passar, comentem sua aparência física, digam que ele é um homem forte, bonito, interessante.
Ouvindo isso, o homem do povo exclamará indignado: Como! Um belo assassino! Um conhecedor
do homem tentará indagar a trajetória seguida pela educação deste criminoso; descobrirá talvez em
sua história, em sua infância ou em sua primeira juventude, ou nas relações familiares do pai e da
mãe; descobrirá que uma ligeira transgressão deste homem foi punida com uma força exagerada que
o fez rebelar-se contra a ordem existente, que o fez colocar-se à margem desta ordem e acabou
empurrando-o ao crime para poder subsistir”. Pois bem: pensar assim, ver todo o processo com
todos os seus elementos, é pensar em concreto. Em vez disso, pensar em abstrato é o pensamento
vulgar, que não vê no assassino mais que essa nota única e isolada, abstrata, a de que é um
assassino, de tal modo que esta simples qualidade destrói e não deixa ver quanto há nele de natureza
humana.
Como modelo de pensamento dialético, de pensamento concreto, que se move através da
inseparável unidade dos contrários, vejamos essas linhas de Trotsky:

“Interdependência dialética do fim e dos meios.

O meio só pode ser justificado pelo fim. Mas este, por sua vez, deve ser justificado. Do
ponto de vista do marxismo (...) o fim é justificado se levar ao aumento do poder do
homem sobre a natureza e à abolição do poder do homem sobre o homem.
Isso significa que, para alcançar esse fim, tudo é permitido?
(...) É permitido o que realmente leva à libertação da humanidade. (...)

Isso significa, apesar de tudo, que na luta de classes contra o capitalismo todos os
meios são permitidos: mentira, falsificação, traição, assassinato, etc.? (...) Só são
admissíveis e obrigatórios os meios que aumentam a coesão revolucionária do
proletariado, inflamam a sua alma com um ódio implacável pela opressão, ensinam-no
a desprezar a moral oficial e os seus súditos democratas, impregnam-no com a
consciência da sua missão histórica, aumentam a sua bravura e a sua abnegação na
luta. É precisamente disso que se depreende que nem todos os meios são permitidos.
Quando dizemos que o fim justifica os meios resulta para nós a conclusão de que o
grande fim revolucionário rejeita, enquanto meios, todos os procedimentos e métodos
indignos que elevam uma parte da classe operária contra as outras, ou que tentam
fazer a felicidade das outras sem seu próprio concurso, ou que reduzem a confiança das
massas em si mesmas e em sua organização, substituindo tal coisa pela adoração dos
‘chefes’. (…)
O materialismo dialético não conhece o dualismo de meios e fins. O fim é naturalmente
deduzido do próprio movimento histórico. Os meios são organicamente subordinados
ao fim. O fim imediato torna-se meio do fim ulterior. Em seu drama Franz von
Sickingen, Ferdinand Lasalle coloca as seguintes palavras na boca de um de seus
personagens:

"Não mostre apenas o fim, mostre também a rota


Pois o fim e o caminho tão unidos se encontram
que um em outro são alterados
e cada rota descobre um novo fim.”

(...) A interdependência do fim e dos meios é expressa, no caso dos versos reproduzidos,
de um modo inteiramente preciso. É preciso semear um grão de trigo para colher uma
espiga de trigo” (A moral deles e a nossa).

Em 1922 Lênin afirmou que “devemos organizar um estudo sistemático, dirigido do ponto
de vista da dialética de Hegel”. Esta é, de fato, uma grande tarefa aberta perante o pensamento
marxista.
Mas as burocracias são conservadoras e antidialéticas por definição. Seu sucesso
depende da administração do que existe, não de sua modificação. Por isso sua “filosofia” é a
escolástica e o dogmatismo que codificam e repetem o já foi pensado, e não admitem inovação
nem problema novo algum. Explica-se assim que a “filosofia” inspirada em Stálin e
companhia tenha tratado a dialética e Hegel como um cão morto.
O espírito da burocracia é ferozmente estático e antidialético. Ele não quer inovações ou
discussões. Vejamos o trabalho de Zhdanov “Sobre a história da filosofia”. Zhdanov era secretário
do Comitê Central do Partido Comunista russo, e este é um discurso dele com o qual o Congresso
de Filosofia realizado na Rússia em 1947 foi encerrado. Zhdanov esmaga terrivelmente o autor de
uma história da filosofia e diz que “o autor comete erros essenciais que afetam inclusive os
princípios”. Quais são esses “erros essenciais” que “afetam os princípios”. Quais são esses “erros
essenciais” que “afetam aos princípios”? Eles são, diz Zhdanov, “por exemplo”, a afirmação de que
“o caminho para o método dialético foi preparado pelas conquistas das ciências naturais desde a
segunda metade do século XVIII. Isto está em radical contradição com a célebre tese de Engels,
segundo a qual o caminho ao método dialético foi preparado pela estrutura celular do organismo,
pela teoria da conservação e a transformação da energia e pela teoria de Darwin. Todas essas
descobertas correspondem ao século XIX”. Ou seja, que a burocracia moscovita proíbe um filósofo
de dizer que o método dialético foi preparado pelas conquistas científicas do século XVIII, e é
proibido porque Engels disse que as conquistas em questão eram do século XIX, e a burocracia
entende que discordar com Engels nesta questão cronológica é “um erro essencial que afeta os
princípios”. Naturalmente, em tal clima não é possível que se desenvolva o pensamento dialético,
nem mesmo os estudos sobre a dialética. E se por acaso esses estudos surgem, a burocracia os
extirpa rápida e radicalmente. Neste mesmo discurso, Zhdanov não deixa dúvidas: “a discussão que
ocorreu aqui a propósito de Hegel é bastante estranha. A questão do Hegel está resolvida há muito
tempo. Não há razão alguma para levantá-lo novamente”. Com efeito, para a burocracia não há
razão alguma para levantar de novo o problema da dialética, “a álgebra da revolução”, como a
chamou o grande revolucionário russo Herzen. Em vez disso, relembramos Lenin: “devemos
organizar o estudo sistemático da dialética de Hegel”. Para iniciar este estudo, eu sugiro o livro de
Ernst Bloch, O pensamento de Hegel, editado pelo Fundo de Cultura Econômica.
Em uma frase famosa, Marx e Engels falaram sobre “colocar a dialética de Hegel de cabeça
para baixo”. Isso não quer dizer que, da dialética hegeliana, duas ou três coisas isoladas possam ser
tomadas e adicionadas a uma concepção materialista vulgar do mundo. Não. O pensamento
dialético de Hegel permeia totalmente o marxismo.
Hegel efetuou – em termos idealistas e com linguagem muito obscura, falando do “em si”,
da “negatividade”, do “ser outro”, etc. - uma análise muito rigorosa do pensamento humano através
da contradição. Colocar a dialética de ponta cabeça quer dizer estudar concretamente, na realidade
do desenvolvimento, como foram ocorrendo essas fases, esses estados do desenvolvimento, essas
transições que Hegel analisa em termos idealistas, mas com tremenda capacidade de compreender o
elemento de contradição e do movimento. E esta é uma tarefa que o marxismo tem que realizar. Eu
só conheço duas obras em que o pensamento marxista realizou este “endireitamento” da dialética,
onde a realidade foi captada em sua evolução, em suas contradições, em suas diversas fases
quantitativas e qualitativas. Essas obras são O capital de Marx e a História da Revolução Russa de
Trotsky. Mas o campo a explorar é imenso ainda; praticamente é toda a realidade.
Colocar a dialética de ponta cabeça é o que Marx faz em O capital, ou seja, desenvolver
dialeticamente uma ciência, neste caso a análise econômica da sociedade capitalista. Em vez disso,
tomar algum dos fenômenos naturais, ou um conjunto de conhecimentos científicos, e utilizá-los
como exemplos de que a quantidade se transforma em qualidade, ou de alguma outra lei de lógica
dialética, isso - que fazem os manuaizinhos que pretendem ensinar marxismo – é uma insolente
caricatura do pensamento dialético e, portanto, do marxismo.

[O materialismo]
Vamos agora focar o tema do materialismo. “O materialismo inteligente - diz Lênin – está
mais próximo do idealismo inteligente do que do materialismo insensato”. Isto é assim porque o
marxismo tomou como elemento essencial a atividade criadora do homem – que é o tema em que
insistiu o idealismo e rejeita absolutamente a concepção do homem como mero ente totalmente
produzido por circunstâncias externas, que é o que acredita o materialismo vulgar.
Por seu lado, observa Engels que “a aplicação exclusivista do nível da mecânica aos
fenômenos que eram de natureza química e orgânica e nos que, embora regulassem leis mecânicas,
estas passavam a segundo plano diante de outras superiores a elas, constitui uma das limitações
específicas” do materialismo clássico. Efetivamente, o materialismo clássico só reconhece como
“matéria” o mecânico, incluindo o físico e o químico, mas ignorando totalmente essa matéria
constituída fundamentalmente por relações inter-humanas, sociais e psicológicas.
Tenhamos então bem claro que a matéria que toma como base o marxismo não é a
matéria física ou a natureza mecânica, nem uma matéria geral carente de qualidades. A
matéria de que parte o marxismo é o conjunto de relações sociais que pressupõem certamente
uma natureza mecânica e, sobretudo, fisiológica, mas que não coincidem, nem muito menos,
com ela. A matéria de que leva o seu nome o materialismo histórico não é nada mais nem nada
menos que a relação de uns homens com outros e com a natureza (Bloch).
O materialista vulgar não vê, diz Marx, que “o mundo sensível ao seu redor não é uma coisa
dada imediatamente desde a eternidade, sempre igual a si mesma. É um produto histórico: o
resultado de uma atividade de uma longa série de gerações, das quais cada uma se apoia nas costas
da precedente, e vai desenvolvendo sua indústria e seu comércio e modificando sua organização
social de acordo com as necessidades novas que se suscitam. Mesmo os objetos da ‘certeza
sensível’ mais imediata lhe são dados (...) apenas graças ao desenvolvimento da sociedade, indústria
e comércio” (A Ideologia alemã).
E, em suas “Teses sobre Feuerbach”, que já citamos na reunião anterior, Marx diz: “O
defeito fundamental de todo materialismo anterior (...) é que somente concebe a coisa, a realidade, a
sensorialidade, sob a forma de objeto ou de intuição17, mas não como atividade sensorial humana,
como prática, não de um modo subjetivo” (Tese I). “A teoria materialista de que os homens são
produto das circunstâncias e da educação, e portanto homens modificados, produto de
circunstâncias distintas e de uma educação distinta, esquece que as circunstâncias são mudadas
precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado” (Tese III).
O materialismo vulgar – que é o que os stalinistas pretendem fazer passar por marxismo –
cai na metafísica da matéria, e ainda da matéria mecânica, não da matéria constituída pelas relações
sociais e pela atividade do homem. Este materialismo vulgar considera a matéria como uma coisa
totalmente isolada, perenemente isolada do sujeito, do homem, sempre condicionando o homem e
nunca condicionada pelo homem.
Na realidade, a metafísica da matéria, a crença de que a matéria tem uma independência
absoluta em relação ao sujeito que conhece – isto é, que a transforma – tem uma origem religiosa, e
por isso precisamente o materialismo vulgar se dá tão bem com o senso comum. Todas as religiões
ensinaram e ensinam que o mundo, a natureza, o universo, foram criados por Deus antes da criação
do homem e, portanto, o homem encontrou o mundo já acabado, catalogado e definido de uma vez e
para sempre. Por isso, quando o materialismo vulgar diz que a matéria existe absolutamente
independente do sujeito que conhece, não faz mais que confirmar essa crença religiosa em que
“Deus criou o mundo antes que ao homem”.
O marxismo, pelo contrário, afirma que certamente o mundo físico existiu antes do homem;
o universo existiu antes do aparecimento do homem. Mas, embora isso seja verdade, o marxismo
ensina que, desde que o homem aparece na terra, a matéria deixa de existir independentemente da
consciência do homem, porque desde o primeiro momento o homem atua em e sobre a matéria, e a
transforma. De modo que, se é verdade que o objeto existiu por si só antes da aparição do sujeito,
desde a aparição do sujeito o objeto perde sua independência, entra em permanente relação com o
sujeito, e sujeito e objeto só existem em função e através do outro, sem que nenhum possa ser
concebido "independentemente" do outro.

17 Na tradução a partir do alemão, de Wenceslau Roces, este parágrafo apresenta-se como segue: “o defeito
fundamental de todo o materialismo anterior – incluindo o de Feuerbach – é que só concebe o objeto, a realidade, a
sensorialidade, sob a forma de objeto [objekt] ou de contemplação, mas não como atividade sensorial humana,
como prática, não de um modo subjetivo.” (A concepção materialista da história; Tese sobre Feuerbach; Ediciones
de la Larga Marcha; Argentina, 1973.) Negrito adicionado pelo editor. [N. do Editor. CEUR]
NÚMERO TRÊS OU TERCEIRA REUNIÃO

[A consciência e a “teoria do reflexo”]


O que significa então a afirmação de que a consciência “reflete” ao objeto? Toda nova
concepção do mundo deve trabalhar com a terminologia forjada pelo desenvolvimento anterior da
humanidade. Mas como a nova concepção do mundo contribui conteúdos novos ao conhecimento,
acontece que essa velha terminologia não lhe serve em grande parte mais do que como metáfora, ou
como exemplo para se fazer entender, mas não expressa perfeitamente o que a nova concepção quer
expressar. Assim, por exemplo, o marxismo fala que a consciência “reflete” a existência. Mas esta
expressão - “reflete” -, tirada da ciência natural do século passado, para o marxismo é apenas uma
metáfora, um exemplo para se fazer entender.
A palavra “reflexo” não descreve exatamente o que o marxismo afirma a respeito da relação
entre sujeito e objeto, porque o marxismo começa por negar que o ser e a consciência sejam coisas
estáticas, isoladas, situadas uma fora da outra e sem outra relação que um contato externo, como,
por exemplo, o de um corpo que choca com outro. E, no entanto, o conceito de “reflexo” significa,
precisamente, e implica, uma concepção de duas coisas completamente distintas e externas uma em
relação à outra. Vale dizer que a palavra reflexo só reflete muito imperfeitamente o pensamento
marxista, porque está tomada de concepções anteriores, que o marxismo supera. O mesmo acontece,
como veremos mais adiante, com a expressão de Marx de que a economia constitui a “anatomia” da
sociedade.
Lefebvre afirmou recentemente que “nada é mais contrário à dialética marxista do que
colocar o real de um lado e de outro seu reflexo na cabeça dos homens”. Tem toda a razão. Porque o
marxismo coloca a ênfase não na chamada realidade, nas coisas que estão fora do homem, mas à
atividade criadora do homem que conhece, transforma e cria essa realidade, e essas coisas
exteriores.
É claro que os críticos stalinistas acusam Lefebvre de não ser materialista, porque para
os aparelhos o fundamental é ser materialista no sentido de se adaptar às condições existentes.
E os críticos stalinistas pretendem cobrir-se com citações de Lênin sobre a teoria do reflexo. Mas
em sua obra filosófica mais profunda e madura, em suas anotações sobre a Lógica de Hegel, Lênin
escreve: “O conhecimento é o reflexo da natureza do homem. Mas este não é um reflexo simples,
imediato, total; este processo consiste em toda uma série de abstrações, de formulações, de
formações de conceitos, etc.” (Cadernos filosóficos, tradução de MP). E mais adiante: “O reflexo da
natureza no pensamento humano não deve ser entendido como algo morto, ‘abstrato’, sem
movimento, sem contradições; ao contrário, é necessário compreendê-lo como o processo eterno do
movimento, do nascimento e negação das contradições”. E Lênin acrescenta, finalmente, que “a
consciência humana não somente reflete o mundo objetivo, mas também o cria”.
Com efeito, se o conceito, o conhecimento, “reflete” a realidade exterior, também é verdade
o contrário, a realidade exterior, na medida em que é modificada e criada pelo homem, “reflete” o
conceito. O sujeito “reflete” em sua consciência o objeto, mas então o objeto “reflete” também ao
sujeito que foi capaz de criá-lo ou modificá-lo. O homem não se limita a tirar fotos da realidade; o
homem constrói a realidade. Por isso, melhor que de reflexo – que sugere uma recepção passiva
– é preciso falar de interação, de relação, de projeção do objeto no sujeito, e de projeção do
sujeito no objeto.
Como diz Hegel: “O homem tende a manifestar-se a si mesmo naquilo que existe como algo
exterior a ele. Realiza este fim fazendo mudar as coisas exteriores, às quais imprime o selo de seu
interior, encontrando nelas, assim, seu próprio destino”. “O sujeito – diz Hegel – não vê nele que
enfrenta nada de estranho, um limite nem uma barreira, senão que se encontra somente a si
mesmo”18.
Engels disse que “a unidade do mundo consiste na sua materialidade, demonstrada pelo
longo e laborioso desenvolvimento da filosofia e da ciência”. Com isso temos uma valiosa chave
para compreender a concepção marxista da relação entre sujeito e objeto, entre o ser e a
consciência. É o trabalho do homem condensado no conhecimento filosófico e científico, é o
trabalho do homem, diz Engels, que demonstra a unidade material do mundo. Vale dizer que a
captação de que existe um objeto dotado de unidade material, longe de ser um simples “reflexo”, de
que existe um objeto independente do sujeito, é o resultado da ação recíproca entre o sujeito e
objeto, de sua interação, de sua unidade contraditória.
E o que o marxismo afirma sobre a consciência? O marxismo afirma que a consciência – o
que o homem pensa de si mesmo e do que o rodeia – não pode explicar a si mesma. O marxismo
tenta entender quais são as condições da consciência, isto é, como e por que o homem chega a
acreditar em algo de si mesmo e sobre o mundo. O marxismo faz a crítica da consciência e das
condições em que surge a consciência, e demonstra que a consciência pode ser verdadeira ou falsa.
E a chave para entender o porquê, está na história do homem. É por isso que Marx diz que “não é a
consciência que determina a existência, mas sua existência social que determina sua consciência”
(Prefácio de 1859 de a Crítica da economia política).
O marxismo demonstra que a consciência é determinada, isto é, que não existe no ar nem
flutua nas nuvens, mas tem suas raízes na terra. Mas atenção: se o marxismo afirma que a
consciência está determinada, afirma também que está determinada como consciência, vale dizer,
que pode explicar-se como o meio age sobre a consciência, mas que de modo algum pode reduzir-se
a consciência a um mero reflexo do meio. O idealismo coloca a consciência entre as nuvens, como
prolongamento de Deus, da Ideia ou de qualquer força mística extraterrestre, e atribui-lhe uma
autonomia e um poder sem limites. O materialismo vulgar, pelo contrário, reduz a nada a
consciência e tira toda autonomia, considerando-a como uma mera secreção cerebral, como uma
espécie de caspa que sai na forma de ideias que não fazem mais que “refletir” - como fotografias - o
objeto exterior. O marxismo mostra que as raízes da consciência estão na terra e na sociedade,
que a consciência não é onipotente; está condicionada. Mas o marxismo não coloca a
consciência no nível da caspa, não a reduz a uma mera fotografia do exterior. O marxismo
coloca a consciência entre as mais altas realidades humanas, e se esforça para que a
consciência, capturando as condições que a originam e incidem sobre ela, seja cada vez mais
lúcida e eficaz.
O desprezo pela consciência e pelos seus problemas é totalmente estranho ao marxismo. A
grande batalha do marxismo é travada precisamente no terreno da consciência. O marxismo luta
para modificar a consciência das classes oprimidas, para que estas tenham uma consciência
verdadeira de sua situação e da necessidade de revolucioná-la.

18 Há neste trecho que Peña cita de Hegel um suposto problema de redação. Corrigimos, pois nos parecem um pouco
mais confusas, as diferentes edições que dispomos, nas quais o fragmento se apresenta da seguinte maneira: “o
sujeito – diz Hegel – não vê nisso que enfrenta nada de estranho, um limite ou uma barreira, senão que se encontra
somente a si mesmo.” [N. do Editor. CEUR]
[Necessidade do socialismo]
De que natureza são os julgamentos que o marxismo faz sobre a realidade social? Marx
demonstrou a necessidade do socialismo não com base em julgamentos éticos ou morais sobre o
que deve ser, mas com base no que é a realidade capitalista e suas perspectivas de evolução. Mas
para o pensamento marxista os julgamentos éticos ou de valor - “o que deve ser” - estão
inseparavelmente ligados aos julgamentos de fato, que se atêm a explicar “o que é”. O marxismo
afirma que a necessidade do socialismo está objetivamente fundada na estrutura e na
evolução do capitalismo, mas afirma também que o socialismo não virá por si só, como vem a
chuva das nuvens. O socialismo virá porque o homem faz um julgamento de valor e diz: “O
capitalismo não pode ser, o socialismo deve ser”, e luta por isso e alcança a transformação.
Os filósofos supostamente marxistas dos grandes aparelhos operários – a II Internacional, e
depois o stalinismo – eliminaram esta profunda unidade dialética entre juízos de valor e juízos
objetivos, e pretenderam transformar a teoria marxista do socialismo numa espécie de física da
sociedade, numa suposta ciência que afirma que o socialismo é necessário independentemente da
vontade dos homens e independentemente de que os homens o considerem bom ou mau.
Pelo contrário, o marxismo afirma que a sociedade não pode ser estudada “objetivamente”,
no estilo das ciências naturais que estudam física ou química. O marxismo demonstra que no
estudo da sociedade e nos julgamentos sobre ela sempre intervém, além do conhecimento
objetivo que descreve, [também] o julgamento de valor que afirma o que deve ser e o que quer
que seja. Isto é assim porque os homens que conhecem a sociedade e a história, são os mesmos que
fazem a sociedade e a história. E, portanto, o conhecimento da vida social e da história não é
ciência, mas consciência. Por isso, toda separação de juízos de valor e juízos de fato, toda
separação da teoria e da prática, do conhecimento do que é e da aspiração ao que deve ser, é
irrealizável quando se trata da compreensão da história da sociedade.
Ao compreender que por toda a estrutura da sociedade capitalista é necessário o advento do
socialismo, o marxismo afirma também que o socialismo deve ser, que o socialismo é conveniente
para o homem e, portanto, que o homem deve tomar consciência disso e deve conscientemente
trabalhar para o advento do socialismo.
Mas se, como afirmavam os escolásticos da burocracia reformista da II Internacional, ou os
escolásticos da burocracia moscovita, o socialismo é uma coisa que já está inscrita nos fatos, se é
algo que virá seja bom ou não, queira o homem ou não, com tanta certeza quanto virá a luz solar
amanhã à manhã, então o papel consciente revolucionário do homem fica reduzido a nada, e em vez
disso se eleva às nuvens dos aparelhos burocráticos, cuja função seria esperar que se realize essa
pretensamente inelutável aparição do socialismo.
O fatalismo mecanicista que supõe que o socialismo é inevitável, independentemente de que
o homem o queira ou não, concede sem dúvida uma grande tranquilidade de espírito, fortalece a fé
dos crentes; é quase uma religião. Mas não tem nada a ver com o marxismo.
O marxismo coloca ênfase na vontade real e atuante do homem. Os fatalistas, ao contrário,
substituem a vontade consciente que age em busca de um fim e a substituem por um ato de fé
simples e apaixonado em um suposto fim inevitável da história. Para esta gente, a História, assim
com maiúscula, vem substituir a fé na Divina Providência com que se consolam os religiosos. O
marxismo, vamos repetir, é justamente a antítese e a negação de tudo isso.
[A práxis]
E assim nos aproximamos do último grande problema da filosofia marxista que abordaremos
hoje. O marxismo fala da unidade inseparável de teoria e prática. O marxismo não acredita
que ambas sejam coisas distintas que se complementam entre si. O marxismo nega que a
teoria seja um “complemento” da prática, ou vice-versa. Para o marxismo, teoria e prática
são apenas momentos de um mesmo processo que é a práxis, isto é, a ação do homem.
A concepção marxista da práxis significa a mundanização, a terrenização absoluta do
pensamento. Práxis significa que quem forja o homem, o seu mundo, o seu destino, não é nenhuma
força extra-humana nem sub-humana. Práxis significa que o homem não é produzido nem
condicionado por Deus, como tampouco pela História, a Razão, o instinto, a herança, o meio, a
raça, etc. Práxis significa que a única coisa que produz ao homem e que o condiciona é a própria
atividade teórico-prática do homem.
Vejamos alguns parágrafos das “Teses sobre Feuerbach” onde Marx insiste no problema da
práxis:
“O defeito fundamental de todo o materialismo anterior (...) é que somente concebe a coisa,
a realidade, a sensorialidade, sob a forma de objeto ou de intuição, mas não como atividade
sensorial humana, como prática, não de um modo subjetivo. Daí que o lado ativo fosse
desenvolvido pelo idealismo (...)” (Tese I).
“O problema de saber se o pensamento humano pode ser atribuído uma verdade objetiva,
não é um problema teórico, mas um problema prático. É na prática que o homem tem que
demonstrar a verdade, isto é, a realidade e a força, a terrenalidade de seu pensamento (...)” (Tese II).
“A teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação (...)
esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens... A coincidência da
modificação das circunstâncias e da atividade humana só pode conceber-se e entender-se
racionalmente como prática revolucionária (...)” (Tese III).
“… a essência humana não é algo abstrato, inerente a cada indivíduo. É realmente o
conjunto das relações sociais (...)” (Tese VI).
“A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que empurram a teoria para o
misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática”
(Tese VIII).
“Os filósofos não fizeram mais do que interpretar de diversos modos o mundo, mas o que se
trata é de transformá-lo” (Tese XI).

[O marxismo, totalidade aberta]


Para terminar, vamos tornar perfeitamente claro algo que é fundamental para compreender a
filosofia marxista. A filosofia marxista constitui o que Lefebvre, e antes dele Labriola e Gramsci,
denominam uma “totalidade aberta”. É totalidade porque é uma filosofia que abrange o conjunto
dos problemas, que não é parcial ou fragmentária, mas total. Uma filosofia que não é um conjunto
de teorias dispersas, mas um todo sistemático, com uma estrutura e organização interna. É por isso
que o marxismo é uma totalidade. Mas é uma totalidade aberta, porque não é um sistema fechado,
ou seja, que pretende estar terminado, pronto para a eternidade e para ser aprendido de cor. Pelo
contrário, o marxismo reclama o aporte contínuo de novos dados, de novas abordagens, que se
articulam com os dados já existentes e façam assim cada vez mais completa e mais profunda a
concepção marxista do mundo.
Para entender melhor o que é isso de uma totalidade aberta, não é preciso mais do que
observar o que é um ser vivo. Um ser vivo é uma totalidade com uma estrutura, mas é uma
totalidade em movimento, uma totalidade que continuamente incorpora novos elementos, que tem
conflitos, que se modifica, mas permanece essencialmente o mesmo. Isso é também o marxismo:
uma totalidade aberta, que se enriquece com cada avanço do conhecimento humano.
NÚMEROS QUATRO - CINCO OU QUARTA E QUINTA REUNIÃO

[Marxismo e ciências sociais]19


Em reuniões anteriores, apontamos como a ciência oficial deturpa o pensamento marxista,
intencionalmente ou por ignorância. Vejamos um exemplo: “também não estão dispostos os
antropólogos – diz um cientista norte-americano – a deixar que os marxistas ou outros deterministas
culturais façam da cultura outro absoluto tão autocrático como o Deus ou o Destino de algumas
filosofias” (Kluckhohn, Antropologia).
Pois bem, nós vimos como o marxismo, o autêntico marxismo, rejeita todo determinismo
extra-humano. Para o marxismo, a única coisa que “determina” é a atualidade do homem. De
modo que este antropólogo ianque – que aliás é um homem de ciência muito respeitável –, quando
pretende criticar o marxismo, age como um vulgar charlatão que não sabe do que fala.
O marxismo aponta que, nas ciências humanas, as dificuldades para a pesquisa são imensas,
mas não são da mesma ordem que as apresentadas nas ciências naturais. O marxismo está bastante
consciente de que, além das dificuldades comuns a todas as ciências e a todo conhecimento das
relações humanas, em todos os seus níveis, tem dificuldades específicas. E essas dificuldades vêm
da interferência da luta de classes na consciência dos homens (Lucien Goldmann).
Sociólogos não marxistas objetam a “tomadas de posição política e aos julgamentos de valor
que devem ser observados e criticados na concepção marxista sobre as classes”, e por sua vez
dizem:
“Tentarei eliminar todo julgamento de valor subjacente, enquanto estiver consciente”
(George Gurvitch).
O marxismo sustenta que essa eliminação de julgamentos de valor não é possível ou
desejável. A sociologia não é ciência, é consciência (já conversamos sobre isso em uma reunião
anterior). O estudo das ciências humanas não pode ser “objetivo” no sentido em que as ciências
naturais são objetivas. Pode-se estudar o movimento dos astros, ou dos elétrons e prótons, sem
tomar partido, porque essas realidades não são produzidas pelo homem e portanto é absurdo dizer
que “está bem”, que é “bom” ou “ruim” que um planeta gire nesta ou naquela órbita. Mas as
ciências do homem atuam sobre uma realidade que é produto da ação do homem, e diante da qual é
impossível não fazer juízos de valor e não tomar posição. Por exemplo: ao estudar a escravidão, o
“não tomar partido” é tomar partido a favor, porque a indiferença equivale a sancionar o que existe.
O que habitualmente se denomina “sociologia”, essa suposta ciência que tenta agrupar e
classificar as relações entre os homens segundo modelos e categorias tiradas das ciências naturais, é
desprezada pelo marxismo. A pretensão de reduzir a experiência humana a “leis” de tipo mecânico
fatalista – como a lei de dilatação dos corpos, etc. – é rejeitada também pelo marxismo. A pretensão
de tratar os fatos sociais, ou seja, as relações entre os homens, como “coisas”, também é estranha ao
marxismo, o que demonstra que a tentativa de tratar as relações inter-humanas como “coisas” é um
produto da alienação.

19 A esta seção também se tem dado o nome de “Negação e confirmação do marxismo pelas ciências sociais”. Obras
completas de M. Peña I, Edições El cielo por asalto; 2000. [N. do Editor. CEUR]
Quando o Dicionário de Filosofia stalinista de Rosental e Iudin diz que “Marx demonstrou
que o curso das ideias depende do curso das coisas” está provando na realidade que este dicionário
não tem nada a ver com o marxismo. Na linguagem diária, e mesmo na linguagem da luta política
ou da interpretação de um fenômeno histórico particular, podemos dizer que “as coisas estão indo
mal ou bem”, que “o curso das coisas” força isso ou aquilo. Podemos dizer, por exemplo, que “pelo
curso das coisas” o estabelecimento de uma Universidade privada favorecerá as classes
privilegiadas. Isto é assim porque, na linguagem de todos os dias, inclusive em linguagem
política, nos movemos no terreno da alienação, no terreno em que as relações entre os homens
aparecem como relações entre coisas, que não estão submetidas ao controle do homem, mas
que o dominam. Mas quando levantamos a questão no terreno do marxismo, que é o terreno em
que se rompe com a alienação, em que se vê além das coisas para descobrir as relações humanas
por trás delas, neste terreno é infinitamente errado dizer que “o curso das ideias depende do curso
das coisas”. O curso das ideias depende do contexto social em que se desenvolvem, e este contexto
social não consiste em “coisas” – como as estrelas, ou a chuva, ou a Cordilheira dos Andes – , mas
em relações entre homens.
O pensamento vulgar contrapõe “a sociedade” e “o indivíduo”, e supõe que a sociedade é
um agregado de indivíduos que, em si mesmos, são distintos da sociedade. Marx, pelo contrário,
observa: “é necessário evitar fazer da sociedade uma abstração confrontada com o indivíduo. O
indivíduo é o ser social. Suas manifestações de vida são uma expressão e uma confirmação da vida
social” (Manuscritos..., tradução de MP).
Isto é assim porque para viver é preciso produzir. E não se pode produzir senão em
colaboração com outros homens. Para se reproduzir, são necessárias duas pessoas de sexo diferente.
Ou seja, já nas necessidades mais intimamente individuais está contida a absoluta necessidade de
relacionamento social com outras pessoas.
“O homem, pelo duplo aspecto que o caracteriza: de uma parte o de conservar a própria
vida, de outra, o de prolongar-se em outros seres, pertence certamente à natureza. Mas, por este
mesmo duplo aspecto, vem encontrar-se engrandecido também na sociedade*. E é que para alcançar
seus propósitos é preciso unir-se a outros indivíduos que com ele colaborem, sejam quais forem as
condições, o método e o objeto da colaboração. Daí o recíproco vínculo entre a forma determinada
que reveste a produção e o tipo de colaboração vigente e o grau de desenvolvimento da sociedade”
(Marx, A ideologia alemã, sublinhado de MP).
“A organização social e o Estado brotam da vida de determinados indivíduos. Mas da vida
desses indivíduos considerados não segundo eles se concebem em sua própria mente ou segundo os
concebem os demais, mas como são na realidade, isto é, segundo operam, produzem materialmente;
segundo como desdobram – restringidos por determinadas barreiras, sob imposição de determinados
orçamentos e sob condições de que não são proprietários – a atividade que lhes é própria. O
nascimento das representações, as ideias, a consciência, encontra-se imediatamente ligado desde os
seus primórdios à atividade e às relações materiais dos homens, com a sua vida real. O que os
indivíduos se representam, o que pensam, o que evidenciam no trato espiritual com seus
semelhantes é o resultado de sua vida material. E o dito dos produtos espirituais dos indivíduos

* Nota do tradutor. No original:


“El hombre, por el doble conato que lo caracteriza: de una parte el de conservar la propia vida, de otra, el de
prolongarse en otros seres, pertenece desde luego a la naturaleza. Pero, por este mismo doble conato, viene a
hallarse engranado también en la sociedad.”
aplica-se também aos de um povo inteiro, nas diversas ordens da língua, a política, a legislação, a
moral, a religião, a metafísica, etc. Mas – insistimos – os indivíduos a que nos referimos são os
indivíduos reais e ativos, sujeitos em sua ação ao grau de desenvolvimento de suas forças
produtivas e às relações (...) que os ligam uns aos outros, desde as que regem nos pequenos grupos
até aos que se estendem aos agrupamentos mais amplos” (A ideologia alemã).
Destaquemos a importância particular da afirmação “desde as que regem nos pequenos
grupos”, em vista das modernas pesquisas sobre dinâmica dos grupos.
A consciência brota no terreno dessa estrutura de relações inter-humanas. Nos termos de
Marx: “A consciência é, desde o início, um produto social, e continuará a ser enquanto houver
homens” (A ideologia alemã).
Todo o comportamento do homem é decisivamente plasmado pelo que os antropólogos
chamam de “cultura”. Por “cultura” a antropologia quer significar a maneira total de viver de um
povo, o legado social que o indivíduo recebe de seu grupo. Ou a cultura pode ser considerada como
“aquela parte do meio ambiente que foi criada pelo homem” (Kluckhohn, 1951).
O mais íntimo de cada indivíduo, o que se supõe como mais individual e mais privado, na
verdade não é tão individual nem tão privado. A psicologia de nossos dias comprova
cientificamente que “as manifestações exteriores de nossos afetos aparecem como deveres impostos
pelo grupo, como também o que são os próprios afetos. Para inúmeras circunstâncias da vida
cotidiana, a coletividade fixa-nos ao mesmo tempo os sentimentos que devemos ter e a forma como
temos que expressá-los” (Blondel, 1952).
“Nosso regime de conceito, com suas compatibilidades e suas incompatibilidades, suas
atrações e suas repulsões, sua hierarquia, sua ordem e sua escala de valores, nos vêm do grupo de
que fazemos parte. Grava-se em nós, sem que possamos contorná-lo, mediante a linguagem que
aprendemos desde a nossa primeira infância, pela disciplina coletiva que suportamos sem trégua
desde o nascimento até a morte. Não captamos a realidade como ela é, mas como ela é concebida e
desejada pela coletividade a que pertencemos. A realidade vista com os olhos do grupo, se assim se
pode dizer, é para nós indiscernível da própria realidade. E isso vale não só para a realidade
exterior, mas também para a vida interior. Refletir é falar-se o seu próprio pensamento; tentar ter
consciência clara de um estado de alma, por pessoal que em aparência seja, é captá-lo dentro do
quadro que a coletividade se fixou, afetado com o valor que ela lhe atribui; é confundi-lo com esse
quadro e esse valor mesmos. O regime de conceitos que devemos ao nosso grupo tem, pois, como
primeiro efeito, introduzir a objetividade própria das representações coletivas em todo o domínio de
nossa experiência, tanto interna como externa” (Blondel, citado por Dumas, 1948).
Margaret Mead diz: “A prova que as sociedades primitivas nos fornecem sugere que as
suposições que qualquer cultura faz sobre o grau de frustração ou satisfação contido nas formas
culturais, pode ser mais importante para a felicidade do que a questão de quais estímulos biológicos
se ocupa de desenvolver e quais de suprimir ou deixar sem desenvolvimento. Podemos tomar como
exemplo a atitude da mulher na era vitoriana, da qual não se esperava que gozasse na experiência
sexual e que na realidade não gozava”.
Na reunião anterior, no final, eu dizia a um de vocês que essas reuniões nossas não as
chamariam de “aulas”. E explicava algo que considero que vale a pena repetir para todo o grupo.
Sobre o marxismo não podem ser dadas “aulas”. Princípios e problemas podem ser expostos. Mas
não se pode dar aula no sentido estrito da palavra. E isso não por causa de um problema de técnica
didática, mas por uma razão essencial, que está na própria natureza do marxismo. E é a seguinte: o
marxismo não é uma “matéria” já terminada, que do período de luta e a polêmica – para fora e para
dentro – tenha entrado na fase de uma expansão orgânica. O marxismo não é uma coisa acabada. O
marxismo está fazendo-se. E precisamente o maior perigo dos clássicos cursos e manuaizinhos tipo
os de Politzer e companhia, reside em que tendem a dar a impressão de que o marxismo é algo que
já está pronto para aprender-se em certo número de lições, como se aprende geografia ou aritmética.

[Marxismo e economicismo]
Vemos então que diferentes organizações sociais correspondem diferentes personalidades
humanas, diferentes “naturezas” humanas. Mas quais são os aspectos decisivos, os pontos
nevrálgicos em que origina a diferença entre uma sociedade e outra? O marxismo responde a isso
com o conceito de “relações de produção”.
“Há – diz Marx – uma verdade de tal forma evidente que se impõe dá-la por pressuposta e
admitida. E ela consiste em que o homem, a fim de poder viver, tem que satisfazer certas
necessidades inescapáveis: antes de tudo a de alimentar-se, cobrir a sua nudez, abrigar-se debaixo
do telhado, etc. Se não as satisfaz, não poderá viver, e menos ainda fazer história.
Consequentemente, o primeiro fato da história do homem – fato que deve cumprir-se cada dia e
cada hora, hoje como há séculos – está em produzir os meios com que sustentar sua vida material.
(...) A primeira coisa, portanto, que todo historiador deve propor-se é examinar em todo o seu
significado e fazer justiça a este fato fundamental. (...)”
“É um fato, pois, que determinados indivíduos que trabalham e produzem de determinada
maneira contraem relações sociais e políticas. Qual é, concretamente, a ligação que media entre a
organização social e a produção? Isso não pode ser respondido de forma especulativa. Ela deve ser
estudada empiricamente em cada caso (...) Em qualquer período histórico que consideremos
encontraremos uma soma de forças produtivas, de circunstâncias, de um modo de relacionar-se os
indivíduos com a natureza e entre si, que a geração desse período recebeu em herança da imediata
precedente. A nova geração modifica sem dúvida o patrimônio legado pela geração anterior. Mas
isso não exclui que aquele influa poderosamente sobre ela, prescrevendo-lhe o caminho por onde
tem que se desenvolver e conferindo-lhe caráter especial. Portanto, as circunstâncias fazem os
homens não menos do que os homens às circunstâncias. Esta soma de forças produtivas e formas de
relação social, que cada indivíduo e cada geração encontra diante de si como algo independente da
sua vontade, é o fundamento real do homem...” (A ideologia alemã).
“Os mesmos homens que estabelecem as relações sociais segundo a sua produtividade
material, produzem também os princípios, as ideias, as categorias, segundo as suas relações sociais”
(Miséria da filosofia).
Agora: estas ideias, estas categorias ou estas crenças populares têm a mesma energia que
uma força material. Nas relações sociais não há força material pura; a força material é acompanhada
por uma forma ideológica e a forma ideológica tem um conteúdo material. “Os homens fazem sua
própria história – explica Marx – mas não a fazem a seu livre-arbítrio, sob circunstâncias escolhidas
por si mesmos, mas sob aquelas circunstâncias com que se defrontam diretamente, que existem e
transmitem o passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro
dos vivos” (O 18 brumário de Luís Bonaparte, I).
Quando Marx fala de “economia” não se refere à produção em geral, mas das relações de
produção, isto é, às relações dos homens com a natureza e entre si, em torno dos meios de produção.
Quase desde o momento em que começou a difundir-se o pensamento marxista, foi
caluniado – por inimigos e por supostos partidários – com a afirmação de que o marxismo é uma
“interpretação econômica da história”. Veremos que isto é totalmente falso. A única coisa certa é
que o marxismo colocou ênfase na necessidade de estudar a organização econômica da sociedade.
Para captar sem deformações que é o que o pensamento marxista afirma sobre a natureza da
organização social, é necessário abandonar expressões como “estrutura econômica” ou “base
econômica” da sociedade. Marx e Engels – sobretudo Engels – usaram às vezes estas expressões
para fazer seu pensamento mais acessível, mais didático. Mas hoje em dia, no esforço de simplificar
essas expressões, no esforço de repeti-las como receitas e dividi-las do conjunto do pensamento de
Marx, essas palavrinhas “estrutura” ou “base” servem para deformar o marxismo. Por isso nós
preferimos não falar de “estrutura” e menos ainda de “base” mas de formação econômico-social,
conceito que emprega Marx em O Capital. Em três palavras carregadas de sentido, explica
Lefebvre, esse conceito designa os elementos da sociedade e reconstrói sua totalidade indicando
que essa totalidade é um devir, uma história. Devemos distinguir o econômico do social, que são
dois níveis da realidade. Tomados isoladamente, são abstrações unilaterais. O concreto não existe
senão em sua unidade, e é captado somente concebendo-se sua unidade.
A relação entre o econômico e o social – explica Lefebvre – não pode ser concebida como
uma unidade confusa, nem como uma hierarquia estática, nem como uma simetria, nem como uma
redução, nem como qualquer outro tipo de relação lógica. Marx compara o econômico ao esqueleto,
e seu estudo à anatomia, enquanto a ciência do social se aproximaria da fisiologia. Em um sentido,
portanto, o econômico é mais real que o social: o organismo superior tem necessidade* de um
esqueleto; no entanto, o fisiológico é superior à sua “condição”, porque só ele vive. O social
representa um desenvolvimento da economia, representa o desenvolvimento de suas contradições.
Os fenômenos sociais são mais ricos, mais complexos do que sua essência “econômica”.
Ora, em essência, a formação econômico-social consiste nisto: homens que estabelecem
determinadas relações com outros homens. Como explicava Labriola, “nas vulgarizações da
sociologia marxista, as condições, as relações, as correlatividades de coexistência econômica se
transformam (...) em alguma coisa existindo imaginariamente acima de nós, como se no problema
houvesse outros elementos que estes: indivíduos e indivíduos, isto é, locatários e proprietários,
latifundiários e arrendatários, capitalistas e assalariados, patrões e domésticos, explorados e
exploradores, em uma palavra, homens e outros homens que, em condições dadas de tempo e lugar,
encontram-se em relações diferentes de dependência recíproca...” (Filosofia e socialismo,
sublinhado de MP).
Diz Engels que “a concepção materialista da história parte da tese de que a produção e com
ela a troca do produzido é a base de toda ordem social” (AntiDühring, sublinhado de MP). Este
parágrafo é extremamente perigoso para a compreensão do autêntico pensamento marxista se duas
coisas fundamentais não forem esclarecidas: 1) A “produção” a que se refere Engels não deve ser

* “Organismo superior” aqui parece derivar da velha noção da “Scala naturae”, onde os demais animais formariam
uma escada “evolutiva” cujo cume seria a espécie humana. O uso do autor por essa terminologia não deve ser
repreendida, já que na época dele essa terminologia era corrente mesmo entre os biólogos e, na verdade, mesmo
hoje essa linguagem ainda não foi totalmente eliminada. O mesmo se pode falar da concepção de “necessidade”
biológica aqui nesse contexto, embora, mesmo na época dele, em frequência menor (nota do tradutor).
entendida como produção em geral, como processo técnico de produção, mas no sentido das
relações de produção, ou seja, as relações que os homens contraem no processo de produção e
reprodução de sua vida; 2) “base” é aqui uma má palavra, porque sugere algo estático e nitidamente
separado e separável do que está sobre a base. Mas, na realidade, as relações que os homens
contraem no processo de produção são dinâmicas por definição; além disso, estas relações só
podem ser separadas de todas as restantes na análise, na abstração do pensamento, mas na
realidade estão inseparavelmente unidas.
Isso que acabamos de dizer, significa que Engels “se equivocou” ou conscientemente
deformou o pensamento marxista que ele mesmo contribuiu para criar? Não. O que acontece é que,
como Lefebvre explica, “depois de ter contribuído para a formação do marxismo, Engels cuidou de
expô-lo didaticamente... Apesar de seu gênio, igual ao de Marx, Engels tendia a simplificar
pedagogicamente os problemas, a supô-los resolvidos, e por isso a esquematizar e sistematizar”
(Problemas atuais do marxismo, III).
E já no final de sua vida o próprio Engels advertiu os tremendos perigos que significava para
o marxismo essa simplificação pedagógica de seu pensamento; por isso afirmava Labriola que
lendo suas cartas finais “vê-se claramente que Engels temia que o marxismo se tornasse muito
rápido uma doutrina barata” (Filosofia e socialismo). Por isso, para fazer justiça a Engels e para
compreender o autêntico pensamento marxista, convém ler essas últimas cartas de Engels, que são
suas últimas obras teóricas:
“A concepção materialista da história também tem hoje em dia um monte de amigos a
quem esta serve de desculpa para não estudar história. (...) Em geral, a palavra
materialista serve a muitos jovens escritores alemães de simples frase pela qual se
rotula, sem mais estudo, todo tipo de coisas; colam essa etiqueta e acreditam que a
questão está resolvida. Mas a nossa concepção da história é, acima de tudo, um guia
para o estudo... É necessário reestudar toda a história, devem-se examinar em cada
caso as condições de existência das diversas formações sociais antes de tratar deduzir
delas os conceitos políticos, jurídicos, estéticos, filosóficos, religiosos, etc.” (Carta a
Conrad Schmidt, 5-8-1890). Observe-se como aqui Engels não fala de “base”, mas de
“formação social”.

E em outras cartas diz: “Segundo a concepção marxista da história, o elemento


determinante da história é, em última análise, a produção e reprodução da vida real. Nem Marx
nem eu afirmamos mais do que isso; portanto, se alguém o deturpa transformando-o na afirmação
de que o elemento econômico é o único determinante, o transforma em uma frase sem sentido,
abstrata e absurda” (Carta a J. Bloch, 21-8-1890). Lembremos o que quer dizer, concreto e
abstrato; falamos sobre isso na reunião em que trabalhamos sobre Hegel.
“Marx e eu temos em parte a culpa de que os jovens escritores às vezes atribuam ao
aspecto econômico maior importância do que a devida. Tivemos que sublinhar este
princípio fundamental diante de nossos adversários, que o negavam, e nem sempre
tivemos tempo, lugar ou oportunidade de fazer justiça aos demais elementos
participantes na interação. Mas quando se trata de apresentar um pedaço de história,
isto é, de uma aplicação prática, a coisa é diferente e não há erro possível” (Carta a J.
Bloch de 21-9-1890).
“Não é necessário mais do que olhar O 18 de brumário de Marx, que trata quase
exclusivamente do papel particular desempenhado pelas lutas e acontecimentos
políticos, certamente dentro de sua dependência geral das condições econômicas. (...)
O que falta a esses senhores é dialética. Nunca veem outra coisa além de causa por
aqui e efeito por ali. É que esta é uma abstração vazia, (...) e aquilo em que tudo é
relativo e nada absoluto, nunca terminam de verificá-lo*. Para eles, Hegel nunca
existiu” (Carta a Conrad Schmidt, 27-10-1890).

Fica claro então que o marxismo, como todas as esferas em que transcorre a atividade do
homem, é uma esfera concêntrica, e que no centro – centro que é ao mesmo tempo ponto de partida
e o limite de todo o conjunto – se encontram as relações que os homens contraem no processo de
produção e reprodução da sua vida. Isso não significa, de modo algum, que tudo o que o homem
faz esteja diretamente ligado às relações existentes em torno da produção. Como afirma
Antonio Gramsci “A pretensão de apresentar e explicar toda flutuação da política e da ideologia
como uma expressão imediata* da estrutura deve ser combatida teoricamente como um infantilismo
primitivo, e deve ser combatida praticamente com os testemunhos autênticos de Marx, escritor de
obras políticas e históricas concretas” (O materialismo histórico e a filosofia de Benedetto Croce,
tradução de MP).
Esta interpretação concreta, fresca, essencialmente dialética do pensamento marxista
encontramo-la na primeira obra de Lênin, que escreveu quando tinha 24 ou 25 anos. Nela Lênin
coloca a ênfase no conceito marxista de “formação econômico-social”, e cita esse conceito de Marx.
E polemiza contra aqueles que deturpam o marxismo, pretendendo reduzi-lo a um determinismo
econômico e “atribuindo-lhe o propósito absurdo de não levar em consideração todo o conjunto da
vida social”. E Lênin afirma que os marxistas “foram os primeiros socialistas que apontaram a
necessidade de analisar não apenas o aspecto econômico, mas todos os aspectos da vida social”, e
para provar isso cita os trabalhos da juventude de Marx, os trabalhos de 1843! (Quem são os
Amigos do Povo). Ou seja: Lênin, apesar da sua formação filosófica ainda ser elementar, embora
não tenha trabalhado a Hegel, capta o essencial do marxismo, que busca captar concretamente a
sociedade e não a “divide” desajeitadamente em “o econômico”, que seria “o fundamental”, e “o
ideológico”, que seria “o secundário”.
Pelo contrário, em Stálin vemos desde o início e até a sua última obra um pensamento
desajeitadamente mecanicista, que considera o marxismo como um sistema de verdades pronto para
os alunos aprenderem de cor e que tenta desajeitadamente “explicar” tudo como um simples
produto da economia ou da classe social. Vejamos este parágrafo de uma das primeiras obras de
Stálin que, em qualidade de pensamento, é tão antimarxista quanto a última que escreveu antes de
morrer : “A vida contemporânea está montada segundo normas capitalistas; nela existem duas
grandes classes: a burguesia e o proletariado. Em correspondência com estas duas classes, há uma
dupla consciência de classe, burguesa e socialista. A segunda ajusta-se com a situação do
proletariado” (Anarquismo e socialismo, 1905).

* No original: El que esto es una abstracción vacía, (...) y el que todo es relativo y nada absoluto, esto nunca
terminan de verlo. (nota do tradutor)
* Imediata: filosoficamente, sem mediações, direta (nota do tradutor).
[Concepção materialista das ideologias]
O fazer e o pensar estão inseparavelmente unidos, são momentos inseparáveis de uma
mesma atividade humana, mas não são idênticos. O que o homem pensa sobre o que ele faz nem
sempre coincide com o que ele realmente faz. Há profundas influências de ordem social – em
primeiro lugar a luta de classes – e de origem afetiva – essencialmente o sexo – que incidem para
que o homem se engane a si mesmo acerca de sua atividade e de suas obras.
Tomemos o caso do nosso grupo. Todos nós aqui temos algumas ideias sobre a existência e
as funções deste grupo e suas relações com outros grupos. Agora: essas ideias podem não coincidir
com o que esse grupo realmente é, com o que ele realmente faz. E para realmente compreender o
que esse grupo é, não poderíamos nos basear no que seus membros creem, mas no que o grupo faz.
Isso vale não só para o nosso grupo, mas para toda a sociedade. O marxismo busca “a
base real da ideologia” (A ideologia alemã), ou seja, quais são as condições em que se origina o
que o homem pensa que ele é. “Na vida corrente – diz Marx – qualquer lojista sabe distinguir
muito bem entre o que alguém finge ser e o que realmente é. O que é nossos historiadores, eles não
alcançaram esse conhecimento trivial. Eles acreditam sob palavra em uma época que é realmente o
que ele diz e o que ele imagina ser. (...) Será necessário rastrear as ilusões, sonhos e imaginações
distorcidas (...) que se explicam de forma muito simples pela sua posição na vida, pelas suas
ocupações e pela divisão do trabalho” (A ideologia alemã).
“A vontade é movida pela paixão ou pela reflexão. Mas as molas que por sua vez se movem
diretamente para estas, são muito diversas. (...) É preciso perguntar-se quais forças propulsoras
atuam, por sua vez, por trás dessas movimentações. (...) Tudo o que move os homens precisa
necessariamente passar por suas cabeças, mas a forma que assume dentro delas depende em grande
parte das circunstâncias” (Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã). E essas
circunstâncias são, em essência, o sistema de relações entre os homens.
A psicologia moderna compreende que os atos do doente mental não são meras “loucuras”
carentes de sentido, mas têm um profundo sentido cuja explicação deve encontrar-se na vida do
doente. O marxismo compreendeu muito mais cedo do que qualquer ideologia – incluindo o
preconceito e a crença em demônios – tem um sentido que precisa ser buscado na vida real da
sociedade. O pensamento racionalista clássico ocupava-se de comparar as ideologias entre si e com
a realidade e, segundo o que surgisse dessa comparação, distinguia entre ideologias certas e falsas,
considerando-as um produto da estupidez, do preconceito ou da má fé. O marxismo vai muito além.
O marxismo entende que “toda ideia, embora seja falsa, tem raízes na realidade. (...) Mesmo as
fantasmagóricas que se finge em seu cérebro se assentam necessariamente sobre a sua vida material,
verificável por via empírica, ligada a certos orçamentos materiais: são sublimações dela [da vida
material]” (A ideologia alemã).
O marxismo estuda o homem – isto é, a sociedade – procurando compreendê-lo
concretamente, tal como é na vida real. “Nosso ponto de partida – diz Marx – não é arbitrário. Não
é nenhum dogma. Se encontra na realidade. (...) O nosso ponto de partida são os indivíduos reais, a
sua ação e as suas condições de vida materiais, tanto as que se encontram realizadas como as que se
realizam graças àquela” (A ideologia alemã).
[Teoria das classes sociais]
Contudo: o marxismo afirma que há um aspecto da realidade que é o que mais
profundamente penetra no homem e mais completamente o circunscreve, condicionando o curso
geral da sua vida exterior e interior. Esse aspecto da realidade é a classe social à qual o indivíduo
pertence.
“Nós – diz um dos poucos filósofos marxistas que existem hoje em dia – vemos na
existência das classes sociais e na estrutura de suas relações, o fenômeno chave para a compreensão
da realidade social, e isso não por razões dogmáticas de fé ou de ideias preconcebidas, mas
simplesmente porque nossa própria pesquisa, assim como todos os trabalhos que pudemos
conhecer, nos demonstraram sempre a importância excepcional deste grupo social em relação a
todos os outros” (L. Goldmann, Ciências humanas e filosofia, tradução de MP).
Com efeito, todo o trabalho da sociologia não marxista dos nossos dias – trabalho que se
realiza principalmente nos EUA, cidadela do imperialismo, ao grito de abaixo Marx! – não faz mais
que evidenciar, empírica e até matematicamente, a decisiva importância das classes sociais na
configuração do homem contemporâneo. Vemos assim que um sociólogo ianque, reunindo uma
grande massa de informação, diz que “o sonho americano da igualdade de oportunidades tende a
desprezar a importância das diferenças sociais. Nossos clichês culturais afirmam que ‘não há aulas
nos Estado Unidos’. Mas a circunstância de que as pessoas sejam propensas a confundir seus
sonhos com a realidade e não estarem plenamente conscientes da influência de fatores de classe
sobre sua conduta e sua experiência, não significa que as classes sociais não existam. As diferenças
de riqueza, de renda, de ocupação, de prestígio, de autoridade e de poder, que são todas
manifestações da estrutura de classe, representam realidades básicas da nossa existência” (Mayer,
1955).
E acrescenta: “Tudo, desde a probabilidade de permanecer vivo durante o primeiro ano de
vida até a probabilidade de conhecer as melhores obras de arte, a probabilidade de crescer saudável
e forte, e se você ficar doente de se curar rapidamente, a probabilidade de evitar se tornar um
infrator juvenil e a probabilidade de obter uma educação superior – todas essas chances de vida –
estão crucialmente influenciadas pela posição que você ocupa na estrutura de classe”.
Em que a posição da classe é revelada? Em uma miríade de características, em uma
constelação de situações entre as quais temos: a ocupação, a renda, a riqueza, a duração da vida, a
saúde física e mental, a educação, a proteção da justiça, o comportamento sexual e familiar (Informe
Kinsey), as características temperamentais, etc.
As pesquisas demonstram que a classe social é uma constelação, uma configuração,
uma totalidade de condições e formas de vida, que sempre tendem a marchar juntas, e que se
estruturam em torno da relação que diversos grupos humanos estabelecem em relação a
outros, no processo de trabalho pelo qual se mantém a sociedade inteira.
Essas pesquisas demonstram que existe uma elevada correlação matemática –
estatisticamente testável – entre condições e formas de vida tais como: a) a propriedade (ou falta de
propriedade) de meios de produção, de transporte, de mudança, etc. ; b) a ocupação; c) o nível de
renda e a riqueza; d) o poder (a capacidade de controlar outros); e) o prestígio; f) a educação. Essas
mesmas pesquisas psicossociais estão revelando concretamente como a classe modela a
personalidade. Empiricamente, verifica-se como e através de que mecanismos as crianças das
classes dirigentes vão estruturando uma personalidade arrojada, agressiva, confiante, autoconfiante,
ambiciosa, ao passo que o contrário acontece com as crianças das classes exploradas.
Enfim, estes estudos insuspeitos de marxismo confirmam o que Marx afirmava em 1846:
“Em todas as épocas, o pensamento da classe que se encontra no topo do poder exerce um
predomínio absoluto. A classe que impera materialmente na sociedade, impera espiritualmente. A
classe que tem ao seu alcance os meios para a produção material, dispõe também dos meios para a
produção espiritual [antes de tudo, o tempo. MP], de modo que impõe seu pensamento àqueles que,
por carecerem dos meios materiais, não podem ser produtivos espiritualmente". (A Ideologia
Alemã).
NÚMERO SEIS OU SEXTA REUNIÃO

[Teoria das classes sociais/continuação]


Não confunda a posição de classe com a quantidade de dinheiro que você ganha.
Certamente, a classe dominante como um todo ganha muito dinheiro, enquanto a classe oprimida,
como um todo, ganha apenas o necessário para viver. Mas nos setores intermediários da sociedade,
e dentro de cada classe, as coisas não são tão líquidas e um burguês pode ganhar cem vezes mais do
que o outro, sem ambos deixarem de ser burgueses.
Por isso diz Marx que a divisão em classes não está fundada nem na magnitude da fortuna
nem na da renda: “O rude bom sentido transforma a distinção das classes em amplitude do porta-
níquel. (...) A medida do porta-níquel é uma diferença puramente quantitativa, pelo que se pode
sempre lançar um contra o outro a indivíduos da mesma classe” (“A crítica moralizante ou a moral
crítica”, publicada como apêndice à Sagrada Família).
Por outro lado, a classe social também não deve ser confundida com a profissão. Dentro de
cada classe existem inúmeras profissões. Como aponta o sociólogo francês Edmond Goblot: “São as
classes que influenciam a escolha das profissões. Um burguês não se faz serralheiro ou carpinteiro”
(Goblot, citado por Gurvitch, O conceito de classes sociais); e acrescenta: “Homens de profissões
muito diferentes são idênticos enquanto burgueses e se tratam como iguais”. Então, pois, “a
burguesia se reservaria as profissões de iniciativa, comando, inteligência, e deixaria às classes
populares os ofícios de execução, de obediência, de esforço físico” (idem).
Enfim, é preciso distinguir também entre “classe” e “casta”. A classe é um grupo social
“aberto”, no sentido de que legalmente nada impede que as pessoas mudem de classe. Se um
operário quer ser burguês, não há lei, escrita ou não, que o proíba. Só precisa de dinheiro... ou casar-
se com a filha de um burguês. A casta, ao contrário, é um grupo social fechado, no qual se nasce e
morre, sem modificação possível. O indivíduo não pode, por sua própria determinação, entrar ou
sair de uma casta. Caso típico: os negros nos Estados Unidos. Um negro, seja pobre ou milionário,
não pode entrar em restaurantes nem em outros lugares reservados para brancos, nem pode se casar
com uma mulher branca. Um negro pode ser capitalista e pertencer à classe capitalista, mas nunca
terá direitos iguais aos capitalistas brancos porque pertence a uma casta inferior, de acordo com a
sociedade yanque*.
A classe existe antes de cada indivíduo e independentemente de sua vontade, e modela os
indivíduos de acordo com as categorias que regem a existência da classe. Marx explica assim: “…
sendo iguais as condições de vida, o inimigo contra o qual vencer e os interesses, iguais tiveram que
resultar em toda parte os costumes, pelo menos em suas características gerais. (...) O que une aos
indivíduos de uma classe é a guerra comum que devem fazer aos de outra classe. O que não impede
que, devido à competição, os indivíduos de uma mesma classe enfrentem rivais hostis. Por outro
lado, a classe torna-se independente dos indivíduos. Estes encontram ao nascer prefixadas suas
condições de vida. A classe a que pertencem lhes aponta sua posição social, e com isso, a via pela
qual hão de desenvolver sua personalidade. Esta submissão dos indivíduos à classe em nada difere
de sua submissão à divisão do trabalho (...). (Já indicamos muitas vezes como esta submissão dos

* O presente trabalho foi ministrado em 1958, quando ainda vigorava, formal/legal e praticamente, o apartheid
estadunidense. Hoje o apartheid é criminal-judiciário (nota do tradutor).
indivíduos à classe vai derivando ao mesmo tempo em direção a uma submissão a ideias, etc.)” (A
ideologia alemã).
E em outro lugar diz Marx: “Sobre as diversas formas de propriedade, sobre as condições
sociais de existência, levanta-se toda uma superestrutura de sentimentos, ilusões, modos de pensar e
concepções de vida diversos e plasmados de um modo peculiar. A classe inteira os cria e os plasma
derivando-os de suas bases materiais e das relações sociais correspondentes. O indivíduo solto, a
quem se imbui a tradição e a educação, poderá então acreditar que são os verdadeiros móveis e o
ponto de partida de sua conduta " (O 18 de Brumário..., tradução e destaque de MP).
Com efeito, uma pesquisa realizada nos Estados Unidos por Richard Centers – A psicologia
das classes sociais – demonstrou, estudando uma amostra representativa da população, que, como
indicava Marx, as circunstâncias objetivas em que vivem as pessoas geram nelas uma percepção
mais ou menos clara ou confusa, mas perfeitamente observável, de que têm interesses comuns
distintos aos interesses de outros grupos; de que são iguais a determinada classe de pessoas e
distintos às de outra classe (Centers, 1947).
No entanto, apesar desta unidade geral que caracteriza as atitudes das pessoas integrantes de
uma classe, é indispensável ter em conta que dentro das classes existem grupos que têm distintos
status, distintos prestígios, distintas afinidades. Por exemplo, na classe dominante há uma
diferenciação muito importante que foi apontada por Marx: “A divisão do trabalho (...) ocorre
também na classe dominante. Nesta, o trabalho se divide em espiritual e material. Uma parte de
seus membros atua como pensadores (...). Claro que estando os membros da classe assim divididos,
nascem forçosamente entre eles hostilidades e ódios...” (A ideologia alemã).
Como vocês devem ter notado, o marxismo caracteriza as classes sociais pelo conjunto
de suas condições básicas de existência, não pelo que os homens acreditam ou podem acreditar
que são, mas pelo que realmente são no exercício de sua vida. Contudo, é concebível a existência
de uma classe sem que os indivíduos que a compõem percebam que constituem uma classe? Ou,
como diz o sociólogo francês Gurvitch, “Pode existir uma classe sem consciência?”. O marxismo
responde a esta questão distinguindo, com termos hegelianos, classe em si e classe para si.
A diferença entre classe “em si” e classe “para si”, e a transformação de uma em outra, Marx
a descreve nestes termos: “As condições econômicas haviam transformado a massa do país em
trabalhadores. A dominação do capital criou nesta massa uma situação comum, uns interesses
comuns. Assim, esta massa constitui já uma classe frente ao capital [em si mesma, isto é: uma classe
‘em si’; MP], mas não é ainda para si mesma. Na luta (...), esta massa se une, constitui-se em classe
para si mesma. Os interesses que defende tornam-se interesses de classe” (Miséria da filosofia).
Uma classe é “em si” pelo fato de existir. Uma classe é “para si” quando toma consciência
do que a distingue das outras classes; ou seja, quando adquire “consciência de classe”. Mas é
preciso advertir muito claramente que ter consciência de classe é diferente de ter consciência dos
interesses históricos a longo prazo, de uma classe. Lukàcs apontou que, do ponto de vista
psicológico, a consciência de classe é na verdade uma inconsciência, determinada pela posição
social, histórica e econômica do sujeito. As pesquisas empíricas recentes no campo da psicologia
demonstram que isso é verdade, efetivamente. Mesmo quando as pessoas são psicologicamente
inconscientes de que pertencem a uma classe, mesmo quando não sabem o que significa isso de
classe social, ou acreditam estar numa classe diferente daquela a que pertencem na realidade,
mesmo assim, essas pessoas se comportam – inconscientemente – de acordo com normas, padrões,
aos modelos de conduta determinados pela sua posição de classe e “sabem” inconscientemente que
podem fazer (ou não podem fazer) isto ou aquilo, que devem vestir-se assim e não de outro modo,
etc.
Um operário norte-americano fala contra o patrão, protesta contra o patrão, e no entanto
ainda afirma – de boa fé – que pertence à classe média. Este operário tem uma consciência de
classe, que psicologicamente se manifesta como impulso inconsciente a diferenciar-se do patrão e a
protestar contra ele. Mas ele não tem consciência dos interesses históricos de sua classe. Agora: a
consciência dos interesses históricos da classe tem que ser consciência em todos os sentidos,
inclusive o psicológico, porque requer uma série de experiências e conhecimentos políticos que
devem ser mais ou menos racionalmente canalizados pela classe inteira.
A consciência dos interesses históricos de uma classe – a classe trabalhadora em particular –
exige que esta classe eduque-se. Mas atenção!, que não é sobre educação no sentido escolar. Como
diz Lênin, “A verdadeira educação das massas nunca pode ir separada da luta política independente
e, sobretudo, da luta revolucionária das próprias massas. Só a luta educa a classe explorada, só a
luta descobre a magnitude da força, amplia seu horizonte, eleva sua capacidade, esclarece sua
inteligência e forja sua vontade” (Relatório sobre a Revolução de 1905).
O sociólogo francês Gurvitch critica o marxismo afirmando que “a ausência de uma
psicologia coletiva das classes representa, portanto, uma lacuna muito séria na teoria marxista e
uma de suas limitações mais indiscutíveis” (O conceito de classes sociais). Na realidade, a
limitação e a lacuna não estão no marxismo, mas na ciência da psicologia, que recentemente nestes
anos está trazendo as primeiras conclusões e generalidades mais ou menos concretas sobre os
problemas da psicologia individual e coletiva.
O marxismo não foi capaz de aprofundar o problema da psicologia das classes porque esse é
um problema de pesquisa de investigação sobre o qual só agora a ciência está produzindo
resultados, mas em todo momento o pensamento marxista tem prestado atenção fundamental ao
problema da psicologia das classes. E isto, pelo menos, pela razão fundamental de que a luta prática
do marxismo se desenvolve no terreno da psicologia das classes oprimidas e tenta modificá-la,
fazendo saltar as cadeias psicológicas pelas quais a classe dominante tem dominado e imobilizado a
capacidade de reação dos explorados.
Como explicou Trotsky: “o proletariado produz armas, transforma-as, levanta edifícios em
que se conservam, serve no exército e cria todos os seus equipamentos. Não são cadeados nem
muralhas as que separam o proletariado das armas, mas seu hábito de submissão, a hipnose da
dominação de classe. É suficiente destruir essas barreiras psicológicas e nenhuma muralha de pedra
permanecerá no caminho”.
Em vários lugares Trotsky insistiu na importância decisiva que tem o desenvolvimento da
psicologia das classes. No primeiro volume da História da Revolução Russa, diz: “As
transformações que se produzem entre o início e o fim de uma revolução nas bases econômicas da
sociedade e no substrato social das classes não são suficientes para explicar a marcha da revolução.
A dinâmica dos acontecimentos revolucionários é diretamente determinada por rápidas, intensas e
apaixonadas conversões psicológicas das classes constituídas antes da revolução” (História da
Revolução Russa, tomo I, Prefácio, tradução de MP):
"Alguns historiadores soviéticos tentaram, por mais estranho que pareça, criticar nossa
concepção como idealista. O Professor Pokrovsky insiste, por exemplo, que nós
teríamos subestimado os fatores objetivos da revolução: ‘entre fevereiro e outubro se
produziu uma formidável desorganização econômica’; é precisamente nestes
‘deslocamentos objetivos e não nos processos psíquicos variáveis – diz Pokrovsky –
onde convém ver a força motriz da revolução’. Graças à sua louvável clareza na forma
de levantar as coisas – continua Trotsky – Pokrovsky revela da melhor maneira possível
a inconsistência de uma explicação vulgarmente econômica da história, que muitas
vezes se disfarça de marxismo. As mudanças radicais que se produzem no curso de uma
revolução são provocadas, na realidade, não pelos descalabros econômicos que se
produzem episodicamente, que ocorrem no curso dos próprios acontecimentos, mas
pelas modificações capitais que se acumularam nas próprias bases da sociedade durante
toda a época precedente. Que, na véspera da queda da monarquia, assim como entre
fevereiro e outubro, o desastre econômico se tenha agravado constantemente,
aguilhoando o descontentamento das massas, é absolutamente inegável e nunca
deixamos de tê-lo em conta. Mas seria um erro muito grosseiro pensar que a segunda
revolução ocorreu oito meses após a primeira porque a ração de pão diminuiu durante
esse tempo, passando de libra e meia para três quartos de libra.

“Nos anos que se seguiram imediatamente à insurreição de outubro, a situação das


massas, do ponto de vista do aprovisionamento, continuou piorando. No entanto, as
esperanças dos políticos contrarrevolucionários, voltadas para uma nova insurreição,
sofreram fracassos contínuos. O fato pode parecer enigmático somente a quem se figura
o levantamento das massas como um movimento de ‘forças elementares’. Na realidade,
as privações não são suficientes para explicar uma insurreição, porque caso contrário as
massas estariam em perpétua insurreição; é necessário que a incapacidade
definitivamente manifesta do regime social tenha tornado intoleráveis essas privações, e
que novas condições e novas ideias tenham aberto a perspectiva de uma saída
revolucionária. Tendo tomado consciência de um grande destino, as massas mostram ser
capazes de suportar privações duplas e triplas”.

“A alusão feita por Pokrovsky a uma revolta da classe camponesa como ‘fator objetivo’
demonstra um mal-entendido ainda mais evidente; para o proletariado, a guerra
camponesa era, entende-se, uma circunstância objetiva, na medida em que, em geral, os
atos de uma classe se tornam impulsos externos para a formação da consciência de outra
classe. Mas a causa imediata da insurreição camponesa residiu nas modificações do
estado de espírito da campanha; um dos capítulos desta obra está consagrado a
investigar a natureza dessas modificações. Não esqueçamos que as revoluções são
realizadas por homens, mesmo que sejam anônimos. O materialismo não ignora o
homem que sente, pensa e age: o materialismo o explica.” (História da Revolução
Russa, Volume II, tradução de MP).

Marx disse que a história é a história da luta de classes. Vale dizer que o marxismo capta em
toda sua magnitude a incidência que tem a existência das classes – e as relações entre elas – no
desenvolvimento da sociedade. Mas isso não quer dizer que as classes ou a luta de classes sejam
uma varinha mágica que permita explicar tudo de uma só vez, como a luta entre Deus e o Demônio
serve a teologia para “explicar” todo o passado, presente e futuro. Como explica Trotsky: “Na
sociologia marxista, o ponto inicial da análise é a definição de classes do fenômeno dado. No
entanto, na maioria dos casos, a mera definição de classe é inadequada, porque uma classe consiste
em diferentes estratos, passa por diferentes estados de desenvolvimento, se encontra em condições
distintas, está sujeita à influência de outras classes, etc. É necessário lidar com esses novos fatores
para completar a análise. (...) O sistema muscular e o esqueleto não esgotam a anatomia de um
animal, mas um tratado de anatomia que tentasse ‘abstrair’ dos ossos e músculos, flutuaria no ar”
(Em defesa do marxismo, tradução de MP).
Marx formulou sua concepção sobre as classes há 112 anos. Esta concepção ainda é útil para
captar a realidade, explicá-la e transformá-la em sentido conforme às necessidades propriamente
humanas da sociedade? O sociólogo Gurvitch afirma que “a sociologia de hoje não pode se
contentar em aceitar e aplicar a teoria das classes de Marx” (O conceito de classes sociais). Bem,
certamente a teoria marxista das classes não é uma fórmula acabada e pronta para a eternidade, que
não há mais do que aceitar e aplicar, como a fórmula de base é aceita e aplicada por altura para
obter a superfície de um retângulo. Cabe, naturalmente, desenvolver, polir, aprofundar a concepção
marxista sobre as classes. Por exemplo, podemos aceitar que, como diz Gurvitch, “o problema da
consciência de classe e da ideologia de classe reivindica uma análise profunda, o mesmo que o
problema das relações existentes entre as classes sociais e os outros tipos de agrupamentos
particulares”. Mas a verdade é que a concepção marxista, é a única base sobre a qual trabalhar
frutuosamente para entender o problema das classes sociais.
Bem, antes de acabar com o problema das classes, digamos que na sociedade capitalista
existem três classes sociais fundamentais:
1) os proprietários do capital (fábricas, bancos, comércios, etc.). Esta classe vive do lucro
que lhe renda seu capital. É a classe capitalista ou burguesia;
2) os proprietários da terra. Este tipo vive da renda do solo. É a classe de latifundiários.
Como se adverte, estas classes são proprietárias dos fundamentais meios de produção com
que conta a sociedade atual.
No polo oposto está a outra classe:
3) aqueles que apenas são proprietários da sua força de trabalho. Esta classe vive do salário,
isto é, do que obtém com a venda de sua força de trabalho. É o proletariado ou classe operária.
Entre estas classes fundamentais se encontra um vasto setor intermediário chamado classe
média, no qual há que distinguir com precisão dois setores:
a) os pequenos produtores independentes e os profissionais independentes. Esta classe vive
da produção e venda de produtos ou serviços. Exemplos clássicos são o alfaiate, o médico, o
advogado, o camponês, o artesão. É a velha classe média;
b) os técnicos, empregados, profissionais, artistas, etc., que vivem de um salário que obtêm
pela venda de suas habilidades ou talentos. É a nova classe média.
A existência de classes sociais implica que na sociedade um grupo de pessoas têm poder.
Poder é a capacidade de controlar o comportamento de outras pessoas. E a existência de Poder, seja
qual for a sua forma, significa que existem relações de superior a inferior, de subordinação e
dependência.
As classes sociais, ou seja, a divisão da sociedade em grupos antagônicos ligados entre si
por relações de exploração, de subordinação e dependência, nem sempre existiram. A base
necessária para que as relações de classe apareçam, é que a sociedade obtenha um produto
excedente. Ou seja, que o seu trabalho produza mais do que o estritamente necessário para a
subsistência de cada trabalhador. Quando a sociedade produz apenas o estritamente necessário para
cada trabalhador, ninguém pode viver do trabalho de outro. Mas quando a sociedade é capaz de
produzir excedente, surge a possibilidade de que um setor se aproprie desse excedente, produzido
pelo trabalho de outros.
Na comunidade primitiva, que historicamente é o ponto de partida da sociedade humana,
não existem classes sociais. Esta “simples organização” – explica Engels – é apenas o seu
agrupamento espontâneo; é apta para pavimentar todos os conflitos que podem nascer no seio de
uma sociedade assim organizada. A guerra é o que resolve os conflitos exteriores; pode aniquilar a
tribo, mas não dominá-la (não há escravidão porque não serve. MP). O lado grandioso do regime da
gens, mas também o seu lado fraco, é que não permite dominação nem servidão. No interior ainda
não existe diferença entre direitos e deveres; para o índio não existe o problema de saber se é um
direito ou um dever tomar parte nos assuntos públicos, associar-se a uma vingança de família ou
aceitar uma composição; pensar nisso lhe pareceria tão absurdo como perguntar se comer, dormir
ou caçar é um dever ou um direito. Também não pode haver divisão da tribo e da gens em classes
distintas. (...) Nesta sociedade a divisão do trabalho é de todo espontânea, existe apenas de sexo
para sexo. (...) O domicílio é comum a várias e muitas vezes, muitas famílias. O que é feito e usado
em comum é de propriedade comum: a casa, os pomares, as barcaças. Só aqui se aplica a expressão
da propriedade, fruto de trabalho pessoal...” (A origem da família, da propriedade privada e
Estado).
Nesta sociedade, fundada na propriedade comum dos meios de produção e de vida, existem
certamente conflitos individuais. Mas não existem conflitos nem lutas de classes, pois não existem
classes. Por isso, esta sociedade comunitária não necessita de um órgão de repressão para
manter a ordem em benefício dos poderosos. Vale dizer que, nesta sociedade sem classes, o
Estado não existe.
O Estado, explica Engels, é “um produto da sociedade, quando chega a um certo grau de
desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se põe em uma irremediável contradição
consigo mesma, e está dividida por antagonismos irreconciliáveis, que é impotente para conjurar.
Mas para que as classes antagonistas, de opostos interesses econômicos, não se consumam a si
mesmas e à sociedade com lutas estéreis, torna-se necessário um poder que domine ostensivamente
a sociedade e se encarregue de dirigir o conflito ou mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’. E esse
poder, nascido da sociedade, mas que se opõe acima dela, e se torna cada vez mais estranho, é o
Estado. (...) Tendo nascido o Estado da necessidade de conter os antagonismos de classe, mas
nascendo também no seio do conflito dessas classes, como regra geral é o Estado uma força da
classe mais poderosa, da qual impera economicamente e que, por meio do Estado, se faz também
classe preponderante do ponto de vista político, e cria desse modo novos meios de atrasar e explorar
a classe oprimida” (Origem da família...).
Antes de terminar, por agora, com o problema das classes, apontemos isto: a incisão da
sociedade em classes foi um acontecimento inevitável no desenvolvimento da humanidade: “até
hoje – dizia Engels há 80 anos – todas as diferenças históricas entre classes exploradoras e
exploradas, dominantes e dominadas, tiveram sua raiz na mesma produtividade tão relativamente
imperfeita do trabalho humano. Enquanto a população realmente trabalhadora, absorvida pelo seu
trabalho necessário, não teve nem um momento livre para dedicá-lo à gestão dos interesses comuns
da sociedade – direção dos trabalhos, negócios públicos, encaminhamento de litígios, arte, ciência,
etc. – , tinha que existir necessariamente uma classe especial que, livre do trabalho efetivo,
atendesse a estes assuntos; classe que acabava sempre, infalivelmente, lançando novas e novas
cargas de trabalho sobre os ombros das massas produtoras e explorando-as em seu proveito.
Precisou vir a grande indústria, com sua gigantesca intensificação das forças produtivas, para
permitir que o trabalho seja distribuído sem exceção entre todos os membros da sociedade,
reduzindo assim a jornada de trabalho do indivíduo a limites que deixam a todos suficiente tempo
livre para intervir, teórica e praticamente, nos assuntos coletivos da sociedade. Só hoje se pode,
portanto, afirmar-se que toda classe dominante e exploradora é inútil, mais ainda, prejudicial e
entorpecedora para o progresso da sociedade...” (AntiDühring).

[Sobre a fórmula estrutura/superestrutura]


Na reunião anterior, assinalamos que a esfera das relações de produção – as relações que os
homens, grupos, classes, contraem no processo de produção – constitui ao mesmo tempo o ponto
de partida e o limite de todos os sistemas ou níveis de relações: familiares, políticos, ideológicos.
Nesse sentido usamos a imagem de esferas concêntricas, dizendo que a sociedade é um conjunto de
esferas concêntricas cuja esfera mais interior é o sistema de relações de produção. Desde agora, esta
imagem deve ser visualizada não como um conjunto de esferas rígidas e estáticas, mas como um
conjunto de esferas infinitamente plásticas que estão em perpétuo movimento, interpenetrando-se
incessantemente.
Mas insistimos também que entre a esfera das relações de produção (isto é, a chamada
estrutura econômica) e todas as outras esferas da sociedade (a chamada superestrutura) não há
relação mecânica de causa para efeito em um único sentido, mas uma relação dialética de unidade
contraditória, de interação e interpenetração mútua.
E no seio desta unidade contraditória, a esfera das relações de produção condiciona o
conjunto quanto é, ao mesmo tempo, insistimos, o ponto de partida e o limite de todas as demais
esferas. Em certo sentido, pode valer aqui uma analogia, desde que não a leve demasiado ao pé da
letra: as relações de produção são o limite de toda sociedade, e por isso a condicionam, assim como
o aparelho respiratório e o aparelho digestivo de um ser humano são o ponto de partida e o limite de
sua vida, e o condicionam; o que não significa que o ser humano consiste apenas num aparelho
respiratório e num aparelho digestivo, nem impede que outros níveis do organismo atuem sobre
esses aparelhos e modifiquem o seu funcionamento.
As relações de produção condicionam de modo geral, a evolução da sociedade. Se quiser,
pode-se dizer – eu não gosto – que a estrutura condiciona de modo geral a superestrutura. Mas isso
não significa que entre os dois níveis haja uma correspondência ou um encaixe perfeito e sem
contradições. Pelo contrário: as relações entre a esfera chamada estrutura e as restantes esferas da
sociedade são relações extremamente contraditórias, discordantes e explosivas. É fundamental
insistir e sublinhar que o pensamento marxista – por ser concreto, o pensamento mais
plenamente concreto – capta e põe em evidência não só a existência de uma “estrutura” que
condiciona de modo geral a “superestrutura”; o marxismo capta também, ao mesmo tempo, a
existência de uma superestrutura relativamente autônoma, que evolui segundo as suas
próprias leis e cujas relações com a “estrutura” constituem um complexo cruzamento de
tendências contraditórias que é preciso analisar em cada caso e que não podem ser explicadas
com nenhum esquema simplista.
Compreender isso tem uma importância infinita. Se isso não for compreendido, o
marxismo é reduzido a folhas secas. Vamos dar um exemplo. Em um famoso prólogo Marx
escreveu:
“Um estado social nunca morre antes que nele se tenham desenvolvido todas as forças
produtivas que podia encerrar. Novas relações de produção, superiores às antigas, não
ocupam seu lugar, antes que suas razões de ser materiais tenham se desenvolvido no
seio da velha sociedade” (Crítica da economia política).

Deste pensamento de Marx, os escolásticos tiraram esta conclusão: um fenômeno político-


social “de superestrutura” como é a conquista do poder pelo proletariado só pode ocorrer ali onde a
“estrutura” econômica esteja plenamente “madura”. Por isso afirmaram durante anos que era uma
loucura supor que a classe operária pudesse tomar o poder. E depois de 1917 eles disseram que
Lênin tinha “revisado” Marx. Voltaremos sobre isso mais tarde. Por enquanto, o que interessa
assinalar é isto: o parágrafo de Marx perde toda relação com o pensamento de Marx se se esquece
seu caráter de enunciado geral, que deve ser interpretado concretamente tendo em conta que para
Marx a superestrutura político-social, embora condicionada em termos gerais pelas relações de
produção, é relativamente autônoma e tem suas próprias leis, e pode entrar em contradição com a
estrutura e discordar com ela, produzindo-se assim fenômenos – e que fenômenos – de colossal
transcendência histórica, como o que o proletariado político e socialmente mais maduro para
conquistar o poder, apareça em países cuja estrutura econômica está muito longe de encontrar-se
madura para fazer brilhar relações de produção socialistas. E, inversamente, acontece que nos países
onde a “estrutura” econômica está mais madura para o socialismo, a “superestrutura” –
fundamentalmente, a maturação política do proletariado – está completamente atrasada em relação à
estrutura.
Trotsky analisou muito profundamente esse problema de desarmonia e contradição entre
“estrutura” e “superestrutura”, indicando a tremenda importância que esse problema tem para a
política revolucionária.
"A sociedade histórica viva – diz Trotsky – é profundamente desarmoniosa. A sociedade não
está organizada tão racionalmente que as probabilidades de uma ditadura do proletariado ocorram
justamente no momento em que as condições econômicas e culturais amadureceram para o
socialismo. Se a humanidade se desenvolvesse tão regularmente, não haveria necessidade de
ditaduras ou nem de revoluções em geral. A expressão das desarmonias, do desenvolvimento
combinado e contraditório da sociedade, encontra-se em um país atrasado como era a Rússia. Em
1917 a burguesia entrou em decomposição antes da completa vitória do regime burguês, e para
substituí-la como dirigente da Nação, não havia outra classe senão o proletariado” (História da
Revolução Russa, capítulo “O rearmamento do partido”, tradução de MP).
E em outro trecho aponta Trotsky: “embora a mecânica política da revolução dependa em
última análise de uma base econômica, não pode, no entanto, ser deduzida dessa base econômica
por meio da lógica abstrata. Em primeiro lugar, a própria base é muito contraditória e não pode
surgir de uma determinação estatística pura; e além disso a luta de classes e sua expressão política,
que se desenvolvem sobre os fundamentos econômicos, têm também sua própria imperiosa lógica
de desenvolvimento, da qual não se pode prescindir”.
A incompreensão da relação necessariamente contraditória entre “estrutura” e
“superestrutura” leva a conclusões realmente infantis e de uma falsidade ideológica pavorosa.
Assim, por exemplo, o professor Mondolfo afirma, a respeito da “imaturidade subjetiva”, que “não
pode ser senão um sinal de uma imaturidade objetiva das condições históricas”. A revolução,
observa mais tarde, “ou corresponde à maturidade das condições históricas, (...) ou não encontra
correspondência nelas. Se houver correspondência, a mesma maturidade histórica objetiva
corresponde-lhe naturalmente (...) uma maturidade histórica subjetiva da classe trabalhadora” (Em
torno de Gramsci e a filosofia da práxis). Isto é simplesmente infantil. Afirmar que a consciência
deve sempre e em todos os casos estar “naturalmente” em perfeita coincidência com a existência, e
deduzir da falta de consciência clara sobre uma realidade, a “imaturidade” da realidade, é tão
patentemente absurdo como seria negar a existência da exploração capitalista em nome de que nem
todo mundo está ciente dessa exploração.
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Racismo e Alienação: uma aproximação à base ontológica da temática racial


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Lukács e a Educação – Rafael Rossi


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Mészáros e a crítica à experiência soviética / Maria Cristina Soares Paniago,


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Mészáros e a crítica ao reformismo da social-democracia ocidental. Edvânia Melo


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A Ecologia da Economia Política de Marx – Foster.


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