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1 A RELEITURA CRÍTICA

Se as narrativas da história oficial celebram grandes feitos de figuras ilustres,


o fazem às custas do silenciamento das inúmeras vidas anônimas sacrificadas em
prol da execução de tais planos. Saramago parece fazer uma alusão a essa crítica
no trecho em que o narrador lista um nome de cada letra referindo-se, na viagem,
ao "pessoal peão":

[...] tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também,
sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos
falarlhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes
escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los
imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino; Brás, Cristóvão, Daniel,
Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor,
Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier,
Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados,
porventura nem todos estes nomes serão os próprios do tempo e do lugar,
menos ainda da gente, mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não se
acabarão os trabalhos, e alguns destes estarão no futuro de alguns
daqueles, à espera de quem vier a ter o nome e a profissão [...]

Pelo contrário: justamente as personalidades majestáticas, como o rei e a


rainha, são retratados de uma maneira caricata e jocosa ("os ares não andam bons
no paço, como agora se averigou ao dar o rei um flato rijo [...]") , ao passo em que
um casal de marginais (um soldado e uma vidente) dá testemunho de uma lealdade
sublime, "[...] afinal o amor existe sobre todas as coisas". A vulgaridade dos nobres
de Portugal é exposta em diversos momentos, como quando o Infante Dom
Francisco treina pontaria disparando contra marinheiros:

[...] Levantemos agora os nossos próprios olhos, que é tempo de ver o


infante D. Francisco a espingardear, da janela do seu palácio, à beirinha do
Tejo, os marinheiros que estão empoleirados nas vergas dos barcos, só
para provar a boa pontaria que tem, e quando acerta e eles vão cair no
convés, sangrando todos, um e outro morto, e se a bala errou não se livram
de um braço partido, dá o infante palmas de irreprimível júbilo, enquanto os
criados lhe carregam outra vez as armas, bem pode acontecer que este
criado seja irmão daquele marinheiro, mas a esta distância nem sequer a
voz do sangue é possível ouvir, outro tiro, outro grito e queda, e o
contramestre não se atreve a mandar descer os marujos para não irritar sua
alteza […]

Confessores da nobreza, o clero compactua com sua ambição em troca de


poder e é, também, caricaturizado. Destaca-se a sátira com que o narrador conta de
uma manifestação de freiras reivindicando a visitação para além dos parentes do
segundo grau:
[...] Agora sairão as freiras de Santa Mónica em extrema indignação,
insubordinando-se contra as ordens de el-rei de que só pudessem falar nos
conventos a seus pais, filhos, irmãos e parentes até segundo grau, com o
que pretende sua majestade pôr cobro ao escândalo de que são causa os
freiráticos, nobres e não nobres, que frequentam as esposas do Senhor e as
deixam grávidas no tempo de uma ave-maria, que o faça D. João V, só lhe
fica bem, mas não um joão-qualquer ou um josé-ninguém. Acudiu o
provincial da Graça, querendo reduzi-las ao sossego e ao acatamento da
real vontade, sob pena de excomunhão se a quebrassem, mas elas num
rompante se amotinaram, trezentas mulheres catolicamente enfurecidas por
assim as cortarem do mundo, primeira vez o fizeram, segunda vez tornam,
agora se verá como forçam portas frágeis mãos femininas, e já saem as
freiras, trazem consigo violentamente a madre prioresa, vêm com sua cruz
alçada, em procissão pela rua fora [...]

Tal passagem remete ainda ao episódio histórico em que o Dom João V fora
pai de filhos bastardos gerados por freiras, especialmente ironizado pelo narrador:

[...] de el-rei não falemos, que sendo tão moço ainda gosta de brinquedos,
por isso protege o padre, por isso se diverte tanto com as freiras nos
mosteiros e as vai emprenhando, uma após outra, ou várias ao mesmo
tempo, que quando acabar a sua história se hão-de contar por dezenas os
filhos assim arranjados, coitada da rainha, que seria dela se não fosse o seu
confessor António Stieff, jesuíta, por lhe ensinar resignação [...]

São assim postas em xeque as auras de superioridade com que se


apresentam revestidas as autoridades gloriosas e suas proezas, uma vez expostas
as contradições da sociedade da época: "a S. Francisco de Assis lhe bastaria um
ermo, mas esse era santo e está morto" (passagem referente à escolha de Mafra) -
desmascaramento da construção oficial de um passado que silencia:

[...] um dia virá em que quereremos saber, Afinal, quanto terá custado
aquilo, e ninguém dará satisfação dos dinheiros gastos, nem facturas, nem
recibos, nem boletins de registo de importação, sem falar de mortes e
sacrifícios, que esses são baratos [...]

2 A MULTIPLICIDADE DE PERSPECTIVAS POSSÍVEIS

O narrador dá-nos a conhecer a perspectiva íntima de figuras humildes como


Bartolomeu, Blimunda e Baltasar - seus sonhos e anseios, suas próprias versões
dos mesmos acontecimentos. São personagens que parecem representar vozes
caladas pela verdade oficial (soldados mandados para guerra, mulheres
perseguidas pela inquisição), a que se faz homenagem rendendo-lhes rica vida
interior. Por exemplo, o amor autêntico e apaixonado de Blimunda (essência)
contrasta com a submissão formal e forçada da rainha (aparência) que sonha com
seu cunhado:

[...] São meandros do inconsciente real, como aqueles outros sonhos que
sempre D. Maria Ana tem, vá lá explicá-los, quando el-rei vem ao seu
quarto, que é ver-se atravessando o Terreiro do Paço para o lado dos
açougues, levantando a saia à frente e patinhando numa lama aguada e
pegajosa que cheira ao que cheiram os homens quando descarregam,
enquanto o infante D. Francisco, seu cunhado, cujo antigo quarto agora
ocupa, alguma assombração lhe ficando, dança em redor dela, empoleirado
em andas, como uma cegonha negra. Também deste sonho nunca deu
contas ao confessor, e que contas saberia ele darlhe por sua vez, sendo,
como é, caso omisso no manual da perfeita confissão. Fique D. Maria Ana
em paz, adormecida, invisível sob a montanha de penas, enquanto os
percevejos começam a sair das fendas, dos refegos, e se deixam cair do
alto dossel, assim tornando mais rápida a viagem [...]

Outro exemplo de perspectiva alternativa presente na obra é quando


Sebastiana, mãe de Blimunda, toma o posto de narradora em protesto contra as
acusações pelas quais fora condenada. Sebastiana denuncia com voz ativa os que
a levaram à fogueira, contestando sua "verdade oficial":

[...] e esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que
tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento,
que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito demoníaco, que
sei que posso ser santa como os santos o são, ou ainda melhor, pois não
alcanço diferença entre mim e eles, mas repreenderam-me de que isso é
presunção insuportável e orgulho monstruoso, desafio a Deus, aqui vou
blasfema, herética, temerária, amordaçada para que não me ouçam as
temeridades, as heresias e as blasfémias, condenada a ser açoitada em
público e a oito anos de degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as
sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão [...]

A mesma inquisição também ameaçava o projeto do padre Bartolomeu.


Protegido pelo rei, Bartolomeu expressa sua atitude crítica e questionadora contra a
ordem estabelecida:

[...] para o Santo Ofício não há vontades, há só almas, dirão que as


mantemos presas, a almas cristãs, e as impedimos de subir ao paraíso,
bem sabem que, querendo o Santo Ofício, são más todas as razões boas, e
boas todas as razões más, e quando umas e outras faltem, lá estão os
tormentos da água e do fogo, do potro e da polé, para fazê-las nascer do
nada e à discrição, Mas, estando el-rei do nosso lado, o Santo Ofício não irá
contra o gosto e a vontade de sua majestade [...]

3 O AFASTAMENTO DELIBERADO DO REAL

Ressignificando o valor simbólico atrelado aos acontecimentos concretos,


Saramago permite tornar a passarola um emblema para a liberdade quando,
afastando-se do realismo, faz das vontades humanas seu combustível. O poder
mágico de Blimunda de sondar os íntimos confere-lhe um caráter de desveladora
dos sentimentos humanos reprimidos pelo autoritarismo exteriormente imposto,
paradoxalmente comunicando-nos a verdade da realidade interior ao passo em que
parece violar o caráter realista do romance (convidando-nos a um "mais real"
através do fantástico). O fantástico dá, assim, abertura para o sonho humano,
realidade mais vivaz que a concretude exterior, posto figurar o desejo da liberdade:

[...] mas o éter, dêem agora muita atenção ao que vou dizer-lhes, antes de
subir aos ares para ser o onde as estrelas se suspendem e o ar que Deus
respira, vive dentro dos homens e das mulheres, Nesse caso, é a alma,
concluiu Baltasar, Não é, também eu, primeiro, pensei que fosse a alma,
também pensei que o éter, afinal, fosse formado pelas almas que a morte
liberta do corpo, antes de serem julgadas no fim dos tempos e do universo,
mas o éter não se compõe das almas dos mortos, compõe-se, sim, ouçam
bem, das vontades dos vivos [...]

São as vontades colhidas que permitem fazer voar a "passarola",


possivelmente transformada por Saramago em metáfora para a realização da
liberdade humana ("Um dia voarão os filhos do homem, disse o padre Bartolomeu
[...]"). Unidos, os três (Bartolomeu, Baltasar, Blimunda) parodiam uma trindade "às
avessas", terrestre e humana, cujo ternário é formado de pessoas marginalizadas e
humilhadas, que jamais figurariam heróis nacionais nem protagonizariam histórias
da realeza portuguesa.

REFERÊNCIAS

ALVES, Ida et al. Literatura Portuguesa II: volume 2. Rio de Janeiro: Fundação
Cecierj, 2016.

ESTEVES, António. O romance histórico: origem e percursos. In: O romance


histórico brasileiro contemporâneo (1975-2000). SP: UNESP, 2010.

OLIVEIRA, Maria Lúcia Wiltshire de; SANTOS, Jane Rodrigues dos. Literatura
Portuguesa I. v. 1. Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2013.

SARAMAGO, José. Memorial do Convento. 1ª ed. São Paulo: Companhia das


Letras, 2013.

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