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Existe um
Rosacrucianismo “clássico”?
O objetivo deste artigo é mostrar ao leitor que, assim como outros movimentos espirituais
contemporâneos (que se travestem de um ar “clássico” para arrogar a si alguma autoridade
histórica, sem ter bases de comprovação dessa autoridade), o Rosacrucianismo é na verdade
uma corrente esotérica moderna, alinhada aos ideais da Reforma Protestante e do movimento
renascentista do século 16.
O primeiro “manifesto rosacruz” (a Fama Fraternitatis) é considerado pelos rosacruzes como uma
espécie de “bíblia filosófica”, e divulga os pressupostos metafísicos e filosóficos do
Rosacrucianismo “clássico”. A Fama Fraternitatis foi inicialmente divulgada no início do século 17,
no ano de 1614. A partir desta informação, já temos uma constatação sugestiva a você leitor: o
movimento rosacruz “clássico” teve início no mesmo país onde eclodiu a Reforma
Protestante(Alemanha), aproximadamente 1 século após a divulgação das teses reformistas de
Martinho Lutero (divulgadas em 1517). Seria isso uma coincidência histórica? Para o pesquisador
Tobias Churton, não.
Esse pensamento liberal da Fama Fraternitatis fez o Rosacrucianismo “clássico” adotar uma
postura essencialmente panteísta sobre a Criação: para o autor da Fama Fraternitatis, Cristo não
podia ser interpretado pela ótica católica; ao contrário: devia ser interpretado por um viés mágico,
esotérico, sempre o associando à interpretação pessoal de cada buscador. Assim:
Cristo não estava apenas crucificado
sobre o altar, ou além das estrelas
fixas à mão direita de Deus. Cristo
estava no coração do crente, e uma
vez entronizado no centro do ser do
Homem, Ele poderia ser encontrado
em todos os lugares. (CHURTON, 2009,
p. 34).
O Rosacrucianismo é um movimento
esotérico de base totalmente protestante.
Na foto acima, vemos uma das árias Como se vê, o pensamento rosacruz “clássico” bebe dos
comprovações da associação entre o
mesmos ideais protestantes de Lutero: como fruto da
movimento rosacruz e a reforma luterana:
a semelhança entre o Brasão de Lutero ereforma luterana, o Rosacrucianismo vai procurar fazer
o selo Rosacruz é explícita. alianças filosóficas com toda e qualquer corrente de
pensamento e movimento espiritual que se
contraponha de alguma maneira ao Catolicismo e à
Roma. Assim, não é de espantar que o Rosacrucianismo defenda ideias espirituais de inimigos
históricos da Sagrada Tradição, como o Gnosticismo e até mesmo o Islamismo! (considerado pelos
rosacruzes como uma “fonte de bom senso e sabedoria”).
Para os rosacruzes, a busca pelo sagrado deve ser uma busca individual e descentralizada (um
pensamento claramente gnóstico). Assim, o contato com o sagrado (Cristo) deve ser feito sempre
de forma relativizada, da maneira como cada buscador achar conveniente. Na prática, o
movimento rosacruz rejeita também a Sagrada Liturgia, uma vez que desconsidera a importância
da Tradição nas celebrações, e rejeita quaisquer vestígios tradicionais nas práticas espirituais. Isso
deixa mais do que claro que o chamado “Rosacrucianismo clássico” é na verdade um misticismo
de caráter protestante (KREEFT, 2008).
a) A ideia de que o Ocidente estava “corrompido” pelo Catolicismo, e de que a “corrupção moral”
católica seria “purificada” pelo Protestantismo, que se apresentava como o “verdadeiro
cristianismo” (assim como o Gnosticismo também se apresentava!);
b) A ideia falaciosa (advinda do Renascimento do século 15) de que a Idade Média havia sido um
período de “trevas e escuridão”, e de que o Rosacrucianismo serviria para divulgar de forma
“sábia” os “ensinamentos” da Reforma, estimulando uma visão particular de ciência paganizada
que originou um pré-cientificismo promotor de um culto ao “saber científico” (sob a ótica rosacruz);
Segundo Churton (2009), o mito de uma pretensa origem mítica dos manifestos rosacruzes é
desconstruído de forma definitiva quando se comprova o fato de que o personagem Christian
Rosenkreutz não possui validação histórica: trata-se pura e simplesmente de uma entidade
fictíciaconstruída como pilar de sustentação para a divulgação das ideias rosacruzes do século 17.
Esse tipo de estratégia foi utilizado também pela própria maçonaria moderna (também chamada de
“maçonaria especulativa” ou “simbólica”), que usou o
personagem Hiram Abiff para sustentar o mito de
uma origem maçônica lendária (que na verdade teve
sua origem pós-século 15).
A esta altura, já deve estar ficando mais claro a você leitor, que o movimento rosacruz não é uma
filosofia tão “clássica” assim como propõe ser: trata-se pura e simplesmente de uma corrente
esotérica moderna, completamente alinhada aos ideais luteranos e fruto direto da Reforma
Protestante (GUÉNON, 2017).
Só essa breve descrição, por si só já deveria ser suficiente para comprovar que o Rosacrucianismo
nunca poderia ser uma corrente filosófica pertencente à Tradição Espiritual Ocidental. Porém,
ainda assim, muitos rosacruzes da atualidade insistem em defender ideias relativistas sobre o
conceito de “Tradição”, e defendem (muitas vezes até de forma sincera, apesar de terem pouco
estudo a respeito do tema) que o movimento rosacruz seria uma das diversas “correntes
alternativas” da espiritualidade ocidental.
Segundo Churton (2009), dos três manifestos rosacruzes, a Fama Fraternitatis é aquele que possui
o texto mais claro em relação aos objetivos do movimento rosacruz: para o autor, o texto da Fama
Fraternitatis deixa explícito a todo momento sua completa aversão a tudo que seja considerado
“tradicional”, e enfatiza até mesmo o alinhamento ideológico de Christian Rosenkreutz às ideias de
Lutero (ainda que Christian Rosenkreutz seja um personagem fictício). Assim, Tobias Churton faz
uma análise detalhada de trechos da Fama Fraternitatis, explicitando as ideias reformistas
de Johann Valentim Andreae (o verdadeiro autor do texto), como no trecho a seguir:
Aqui, vemos no próprio texto da Fama Fraternitatis que em nenhum momento, Johann Valentin
Andreae (autor do texto) nega ou sequer disfarça os objetivos
O teólogo luterano Johann Valentin Andreae Bettencourt (1958) nos dá um esboço da resposta a
é o verdadeiro nome por trás de todo esse questionamento: para o teólogo brasileiro, uma das
movimento rosacruz “clássico” do século 17. chaves do movimento rosacruz para conquistar a
Foi Andreae que produziu os manifestos simpatia do público europeu do século 17 foi apresentar
rosacruzes, usando o movimento como o Rosacrucianismo não como uma religião, mas como
ferramenta de divulgação da Reforma um movimento espiritual “ecumênico” que iria misturar o
Protestante de Lutero. melhor de várias correntes espirituais diferentes
(obviamente rejeitando apenas a Metafísica católica,
representante maior da Tradição Ocidental).
Para Bettencourt (1958), o Rosacrucianismo “diz que fala de Deus e da felicidade do homem, mas
de maneira compatível com os credos religiosos” (BETTENCOURT, 1958, p. 5). Assim, o adepto de
qualquer religião poderia estudar as ideias da Rosacruz sem ofender a sua fé, como estuda
química, música, jurisprudência…
Percebemos aqui uma falácia grandiosa, disfarçada de “benesse”: ao mesmo tempo em que o
movimento rosacruz “clássico” se apresentou como algo progressista (em oposição à doutrina
católica, classificada como “obscurantista” e “intolerante”), o próprio Rosacrucianismo também
exalava uma intolerância gigantesca ao conceito de “Tradição” (a mesma rejeição protestante).
Temos aqui o típico exemplo do “lobo vestido em pele de cordeiro”: os textos rosacruzes “clássicos”
propõem uma utopia iluminista que buscava (e ainda busca!) a liberdade total do ser humano em
todos os aspectos de sua vida (religião, comportamento, saúde, sexualidade, etc.). Porém, essa
busca pela liberdade anda acompanhada de uma rejeição intolerante a qualquer vestígio da
Sagrada Tradição, a única capaz de livrar o Homem de seus impulsos mais egoístas (AQUINO,
2001). Assim, com base no pensamento de Santo Tomás de Aquino, não podemos classificar o
Rosacrucianismo “clássico” de outra forma que não seja como um movimento egoísta por
essência, uma vez que a espiritualidade rosacruz é na prática, a espiritualidade protestante com
ares esotéricos.
O discurso de “grandiosidade” permeia todo o texto da Fama Fraternitatis: para isso, o manifesto
repete várias vezes que várias personalidades dos séculos 16 e 17 eram (ou haviam sido)
rosacruzes, como René Descartes, Francis Bacon e Paracelso. Tal estratégia buscava reafirmar a
ideia de que o movimento rosacruz seria algo “milenar”, que serviria como “base de formação
filosófica” a todos os grandes nomes da ciência iluminista (BETTENCOURT, 1958). Conforme
veremos a seguir, esse discurso de “influência espiritual” do movimento rosacruz “clássico” vai ser
ainda mais aprofundado no movimento neo-rosacruz do século 19, dando uma abordagem ainda
mais caricata e confusa ao Rosacrucianismo, e fazendo dele um quebra-cabeças esotérico que
guardou apenas uma fina essência das ideias do movimento rosacruz “clássico”.
Um dos principais argumentos rosacruzes atuais é apelar para um discurso de autoridade histórica
em favor do chamado Rosacrucianismo “clássico”. Para os rosacruzes do século 21, o neo-
Rosacrucianismo é um movimento esotérico falho porque se afastou da “verdadeira essência” do
Rosacrucianismo “clássico” do século 17.
O leitor que ouve defesas tão apaixonadas à “superioridade” do Rosacrucianismo “clássico” pode
até chegar a suspeitar que realmente haja algo de “tradicional” nos manifestos rosacruzes de 1614;
porém, a história nos mostra outros fatos.
Como deixamos claro ao longo deste artigo, a ideia de que o Rosacrucianismo “clássico” é algo
“milenar”, “mitológico” ou “superior” ao neo-Rosacrucianismo apenas por ser 200 anos mais antigo,
é uma falácia esotérica moderna. Do ponto de vista histórico, 200 anos não são suficientes para
caracterizar a superioridade filosófica de nenhum movimento espiritualista…uma vez que o alcance
da história é muito mais amplo que as considerações humanas (KREEFT, 2008). Com base nisso,
não é o fato de pertencer ao século 17 que faz do Rosacrucianismo “clássico” algo melhor que o
neo-Rosacrucianismo (ou mesmo algo “tradicional”).
Do ponto de vista filosófico, o Rosacrucianismo nem pode ser caracterizado como uma corrente
“clássica” ou “tradicional”, uma vez que rejeita completamente quaisquer vestígios considerados
tradicionais ou que se afinizem de alguma maneira à Metafísica do Catolicismo. Na verdade, como
fruto direto da Reforma Protestante, seus objetivos eram acima de tudo políticos (e não
espirituais): os manifestos rosacruzes divulgados (e produzidos!) por Johann Valentim
Andreae eram ferramentas de propagação das ideias luteranas na Europa do século 17,
inaugurando o Iluminismo e a divulgação de suas filosofias anti-tradicionais.
Diante de todos esses fatos, precisamos primeiramente entender o que é o movimento neo-
rosacruz do século 19, para só então podermos compreender porque o chamado
“Rosacrucianismo clássico” não é superior ao neo-Rosacrucianismo.
O neo-Rosacrucianismo é o aprofundamento filosófico do Rosacrucianismo “clássico”, ocasionado
a partir do século 19. Segundo Tobias Churton, a principal característica do movimento neo-
rosacruz é seu sincretismo: as Ordens neo-rosacruzes misturam elementos de diversas doutrinas
e filosofias vigentes no século 19, e não se limitam mais a trabalhar apenas a espiritualidade
rosacruciana divulgada nos manifestos rosacruzes “clássicos”. Assim, é comum vermos Ordens
neo-rosacruzes que se dizem gnósticas, thelêmicas, e até mesmo espíritas (CHURTON, 2009).
Não iremos aqui citar nomes de instituições, nem mesmo entrar em detalhes sobre os sistemas
iniciáticos propostos por cada Ordem neo-rosacruz da atualidade. O que nos interessa é mostrar a
você leitor, que o neo-Rosacrucianismo é na verdade um verdadeiro “franksteinesotérico”: um
conjunto de ensinamentos difusos e misturados, que muitas vezes se opõem diametralmente entre
si e nem mesmo guardam relações filosóficas. Por isso mesmo, o movimento rosacruz moderno
guardou pouco da essência protestante do Rosacrucianismo “clássico”, a ponto de algumas
Ordens neo-rosacruzes nem mesmo se classificarem como cristãs! (BETTENCOURT, 1958).
De certa forma, o fato do neo-Rosacrucianismo não ter uma identidade sólida não é uma novidade:
por ser um movimento originado da Reforma Protestante, o Rosacrucianismo (seja ele o “clássico”
ou o moderno) guarda a essência reformista de sempre usar a seu favor tudo aquilo que considere
útil à sua doutrina, sem necessariamente sentir nenhum remorso por isso. Assim, o fato de se
apoderar de outros elementos (inclusive elementos da Sagrada Tradição) para constituir sua
própria filosofia, não constitui um problema para os protestantes (e obviamente para os
rosacruzes), uma vez que “Lutero diz que as boas obras não tornam um homem bom, e nem obras
más tornam as pessoas más” (DAWNSON, 2014, p. 116).
Podemos responder agora às perguntas feitas no início deste artigo: existe mesmo um
Rosacrucianismo “clássico”? O movimento rosacruz pode ser considerado algo “tradicional”?
Há sim um movimento rosacruz inicial que deu origem ao Rosacrucianismo, no século 17. Todavia,
esperamos ter deixado claro a você leitor, que o Rosacrucianismo “clássico” está longede ser um
movimento espiritual tradicional, e que o neo-Rosacrucianismo não passa do aprofundamento do
movimento rosacruz “clássico”, misturado as correntes de pensamento em voga a partir do século
19.
É importante que você leitor conscientize-se do fato de que o Rosacrucianismo é mais uma das
correntes esotéricas modernas que se apresentam ao público de maneira “grandiosa” e
“mitológica”. Ainda que as Ordens neo-rosacruzes possuam estudantes sinceros e dedicados entre
seus membros, a essência do Rosacrucianismo não muda: trata-se de uma corrente filosófica que
possui seu alicerce na Reforma Protestante do século 16, e que por isso mesmo não pode ser
considerada “clássica” ou “tradicional” (ainda que muitos de seus membros assim a considerem),
uma vez que um conceito não pode ser interpretado de duas maneiras diferentes ao mesmo
tempo: ou é interpretado de uma forma, ou é interpretado de outra forma. Assim, o moderno não se
torna tradicional (GUÉNON, 2017).
REFERÊNCIAS
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica: Vol. 1. Edições Loyola. Rio de Janeiro: 2001.
GUÉNON, René. A crise do mundo moderno. Tradução: Fernando Guedes Galvão. Instituto
René Guénon de Estudos da Tradução – IRGET: São Paulo, 2017.
KREEFT, Peter. Manual de defesa da Fé: apologética cristã. Ed. Acadêmico: Rio de Janeiro,
2008.