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COLÓQUIO -Rascunho.

O tema da “morte de Deus” não pode ser entendido sem uma prévia e breve contextualização
histórico-social. Nietzsche, considerado o filósofo da cultura, enfrenta essa mesma cultura como
um contraposto à civilização, a dizer, à formação (Bildung)1, à cultura (Kultur)2 e à civilização
propriamente dita (Civilisation)3. Em verdade, a luta de Nietzsche nesse sentido se realizará no
processo de tornar formação em cultura, e em tudo contradizer o espírito de sua época, a dizer,
os modernos. Homens modernos, filisteus da cultura, técnicos do Estado, ou mesmo homens de
ciência são seu alvo para a construção dessa nova cultura desejada, em todos os níveis:
filosófico, artístico, religioso, científico, e, sobretudo, moral. Dentre os níveis de historicidade
da primeira Filosofia da cultura de Nietzsche, encontramos num nível social uma necessidade
de construção de um projeto na sociedade a partir dos modelos da estética atemporal de Wagner
e da Filosofia pessimista de Schopenhauer. Nietzsche nos propõe uma atualização de sua
herança política-cultural.

Nas palavras do próprio Nietzsche: “E, para não deixar nenhuma dúvida a respeito do que eu
desprezo: é o homem de hoje, o homem do qual eu sou fatalmente contemporâneo. (...) Mas
meu sentimento muda, explode, tão logo me aproximo da época moderna, da nossa época”
(1997).

A civilização funciona como uma espécie de amansamento do homem moderno, que, tendo, ao
fundo o processo histórico do Cristianismo e sua hegemonia no campo dos valores, transforma-
se no substrato ético de onde emanam os supremos valores de nossa cultura. E Nietzsche atacará
esses mesmos que escamoteiam seus valores religiosos nos valores vigentes na filosofia, nas
artes, na moral, nas ciências, etc. Também na Democracia, no Socialismo e no Anarquismo,
Nietzsche irá acusar a presença da igualdade cristã e da fraternidade nesses movimentos. Como
vemos, é a moral cristã que está ao fundo e é o alvo de todas as suas críticas.

Quanto à nossa questão capital, sobre a “morte Deus”, devemos nos fazer três perguntas
essenciais: que Deus é esse visado; de que morte morreu; e, quais as consequências desse
acontecimento para o mundo. À primeira vista, estamos diante do bom e velho Deus cristão,
mas isso não é tão claro assim, uma vez que atravessa a história desse Deus todo um processo
metafísico que perpassa seus aspectos. Nietzsche tomará Platão como o iniciador dessa história
de nossa cultura ocidental, com sua ideia de bem conduzindo o mundo, a partir da noção de
divindade. Acresce-se a isso a visão da bipartição da realidade em mundo sensível e inteligível,
nas esferas do devir e do real, enfim, na transcendência. Essa é uma ideia geral e básica das
ideias de Platão que sustentam aquela velha máxima nietzschiana de que: “O Cristianismo é um
platonismo para o povo”(1997); ou seja, um Cristianismo transcendente, dividido entre dois
mundos, o do aquém e do além, de um mundo que é um vale de lágrimas e outro o paraíso, e o
da negação do corpo em prol da alma.

A crítica de Nietzsche à tradição ocidental se dá em três níveis, a partir do socratismo, do


platonismo e do Cristianismo. Sócrates e socratismo não são o mesmo, bem como Platão e
platonismo não o são. Aqui marcaremos a diferença entre Sócrates, personagem dos diálogos
platônicos - segundo Nietzsche figura decadente da cultura grega, e opositora aos instintos
1
Bildung: formação cultural; que busca uma unidade dentre as diversas tradições filosóficas, sociais e
estéticas ( In: LEMOS, 2015).
2
Kultur: uma verdadeira origem do espírito alemão; defende a necessidade de sua renovação (Idem).
3
Civilisation: Civilização.
2

trágicos; e o socratismo, que impregna toda a cultura ocidental, que, em última análise, irá dar
na ciência socrática e nos valores morais incutidos nesta, promotores do mais puro pensamento
metafísico. Desse modo, Nietzsche traçará uma linha que vai do racionalismo que surge na
Grécia com Sócrates e Platão e o cientificismo moderno.

O racionalismo socrático, no qual Nietzsche critica o gesto de fundação de pensamento


metafísico-moral, daria continuidade ao que chamaríamos de socratismo na filosofia. O
racionalismo de origem socrático-platônico marcaria a fundação do pensamento metafísico
ocidental de diversas maneiras: com o rebaixamento dos discursos da mera aparência ao nível
do falso, com as representações de caráter negativo, com as imagens inferiores dadas as suas
não-relações com o verdadeiro Ser. Essas aparências seriam más, perigosas ao conhecimento de
uma suposta verdade de cunho racional. Em suma, o socratismo se sustentaria no suposto de que
a razão teria de penetrar no âmago da própria existência e curá-la.

Nietzsche contrapõe o socratismo ao pensamento trágico em relação à realidade, este enquanto


uma atitude de adoração do mundo em todos os seus aspectos, evitando uma atitude de
retificação da vida em seus aspectos terríveis. Inimigo de um “povo são”, com sua visão trágica
do mundo, Nietzsche entende a influência de Sócrates como decisiva para a instauração do
mundo teórico de encarar a realidade.

Passo a passo, o modo depreciativo de se referir ao racionalismo socrático, que se infere do


interior dos diálogos platônicos, instaura-se como um tipo de pensamento a partir do qual a
tradição metafísica teria sido inaugurada. Distinguiremos também, Platão de platonismo, e, a
partir daqui, na medida em que temos os diálogos de Platão, a relação entre este e Sócrates. Em
primeiro lugar, a ideia de Bem de Platão torna-se a divindade, e o espaço cósmico fechado dos
Antigos abre-se para a absolutização de um mundo infinito e aberto. Na verdade, o
antiplatonismo de Nietzsche se disporá contra a predominância do saber científico e da razão
universal, já acusados em Sócrates, a dizer, a verdade ou Deus. Nietzsche ratifica seu alvo de
ataque no Sócrates platônico ao mesmo tempo que traz à cena Platão e seus questionamentos.

Reza a lenda que Platão, um aristocrata ateniense, também teria sido um poeta trágico, e que,
após seu encontro com Sócrates, teria queimado seus poemas e tornado seu discípulo. Segundo
Nietzsche, Platão teria encarnado o páthos da decadência socrática e trazido para seus próprios
textos a dissolução dos instintos encarnada naquela tendência. Sob influência socrática, o
discípulo teria abandonado suas inclinações artísticas nos moldes gregos e fundado as bases do
discurso filosófico de caráter racional. A presença da metafísica, e consequentemente do
platonismo no pensamento ocidental se daria, sobretudo, pela adoção da noção de verdade,
através do combate ao mundo sensível e também por meio do moralismo manifesto nessa
filosofia. Os textos desta tradição incipiente fomentariam o fortalecimento de uma visão de
mundo que, a partir de então, se chamaria atividade filosófica tão simplesmente.

Assim, o antiplatonismo de Nietzsche é feito muito mais do que de Platão, uma história de mais
de dois milênios, marcada pela pressão cristã eclesiástica, a absolutização do saber científico e
da razão universal, a dizer, a verdade ou Deus. Daí ser esse evento da “morte de Deus” tão
central para o pensamento libertador proposto por Nietzsche na base dos valores.

Conforme pudemos observar, Nietzsche vê uma linha de continuidade entre o platonismo e o


Cristianismo. A filosofia de Nietzsche leva a cabo a crítica das formas superiores da cultura no
Ocidente, descendentes dos valores suprassensíveis da filosofia platônica, na sua teoria das
ideias, os valores supremos como Bem, Belo e Verdade, e das virtudes em geral. Para
Nietzsche, o esteio moral do homem moderno se dá na base do Cristianismo, formação
3

hegemônica do ocidente, com suas ideias de punição, pecado, má consciência, ressentimento,


ideal ascético e Reino do Além.

Partindo dessas premissas, a genealogia da cultura ocidental que Nietzsche vai empreender
atinge, antes de tudo, a moral cristã e seus dispositivos de valor. Uma vez delineado qual Deus é
visado nesse deicídio proposto por Nietzsche, nos atearemos às consequências dessa morte para
o homem moderno, e, enfim, nos preocuparemos com o modo segundo o qual essa morte se
realiza. O Cristianismo é, para Nietzsche, a religião da décadence ‘par excellence’, e portanto,
fonte do Niilismo. Para Nietzsche, as principais religiões da humanidade são niilistas em sua
forma: o platonismo, o cristianismo e o budismo. O platonismo prevê uma degeneração da vida
em prol de um além suprassensível; o cristianismo também irá marcar essa vontade de nada na
anulação da vida na terra no sentido de um Além-mundo; e, o budismo sublinha o sofrimento
como marca do real que apenas pode ser suprimido ao negar o querer-viver. O Cristianismo
seria a mais alta constituição da vontade de nada, um vazio a ser explicado.

Como vontade degenerada, o Niilismo deseja a morte. A décadence se opõe às positividades e


valores aos quais se opõem as forças culturais decadentes, como as que aparecem na metafísica
tradicional e na moral cristã. A decadénce, implícita no Niilismo, é processo de degeneração,
uma unidade em desagregação, em suma, declínio. Giacoia (1997) nos descreve que as
“formações de declínio podem ser entendidas como entidades naturais, formações do mundo
orgânico, estruturas psicológicas, e também organismos complexos como indivíduos, classes,
nações e estados. São concreções históricas em que se configuram relações de poder, cuja
duração será determinada na relação umas com as outras”.

Esta destruição de formas entre si é, no entanto, um evento natural do mundo orgânico. Ainda
afirmará Giacoia que essa deformação e dissolução de uma complexa formação de domínio
deve ser considerada como processo. E esse processo de decadénce, em formações superiores,
expressa-se como crise de valores. Será este ponto que nos interessará aqui. As forças
decadentes não criam ou estabelecem valores, apenas revertem o sentido dos valores
estabelecidos. Os valores ascendentes determinam-se a partir de uma longa história de ascensão
e queda.

[ Formações complexas de domínio constituem-se a partir de relações entre forças, cuja


natureza consiste em vontades de potência* Enquanto a vontade de potência deseja sempre ter
mais domínio no embate entre as forças, no processo de décadence há a aniquilação das
condições de sustentação e incremento dessa mesma organização vital, isto é, sua escala de
valores.

[ Segundo nossa autocompreensão até aqui, a instituição da moral metafísica e cristã foi posta
como um precário escudo usado pelo homem para proteger-se do Niilismo, ou seja, para não ser
forçado a admitir uma ausência de sentido da vida e do mundo. Tal crença nessas morais dava
em troca uma pretensa segurança consigo – a ideia de que a verdade possui grande valor.
Estamos diante da vontade de verdade, conceito que desenvolveremos mais adiante.

Assim, voltando à questão do Niilismo, desejamos compreender o lugar de Nietzsche nessa


linha da metafísica em que foi posto por Heidegger, como seu epígono e finalizador: o último
dos metafísicos. Aqui, se nos deparamos com a vontade de potência, uma categoria que não é
propriamente um princípio metafísico, mas que Heidegger insiste, por ela, a caracterizar
Nietzsche como o último metafísico.
4

Na interpretação de Heidegger encontrada em “Caminhos da Floresta”, no capítulo “O dito de


Nietzsche “Deus está morto””, o âmbito do suprassensível vale como o mundo verdadeiro e
autenticamente real desde Platão. O mundo suprassensível é o mundo metafísico. E o que
significa para Nietzsche o Niilismo? – “Que os valores supremos se desvalorizaram”. Segundo
Heidegger, os nomes Deus e Deus-cristão no pensar de Nietzsche são usados para a designação
do mundo suprassensível em geral. Deus é o nome para o âmbito das ideias e dos ideais. Assim,
o pensar de Nietzsche vê-se sob o signo do Niilismo. Ainda no dizer de Heidegger, Nietzsche
resume a sua interpretação na breve frase: “Deus morreu”. O dito de Nietzsche estaria a
mencionar dois milênios de história ocidental.

A tentativa de comentar o dito de Nietzsche “Deus morreu” é equivalente à tarefa de interpretar


aquilo que Nietzsche compreende por Niilismo, e assim mostrar como o próprio Nietzsche está
em relação a esse mesmo Niilismo. O não diante dos valores vigentes até agora procede do sim
à nova instauração de valores. O próprio Nietzsche interpreta metafisicamente o curso da
história ocidental, e isso como o despontar e o desenrolar-se do niilismo. Com Nietzsche
cumpre-se uma inversão, o suprassensível torna-se num produto inconsistente do sensível.
Decorre daí que Nietzsche seja considerado o “último metafísico do ocidente”, encerrando
definitivamente o circuito de reflexão que há milênios domina nosso horizonte.

No entanto, Heidegger não reconhece em Nietzsche aquele que pôs fim à metafísica, mas
apenas como uma intersecção entre o fim de uma época e o início de um novo começo.
Heidegger reconhece Nietzsche como o continuador de uma tradição que este pretendia superar.
Ainda segundo Heidegger, Nietzsche com sua vontade de potência e através da ideia de além do
homem ( Übermensch)4 não fez mais que consumar o esquecimento do ser e o domínio
incondicional da totalidade do ente por uma subjetividade ávida em domínio e controlar todas as
dimensões do real.

No entender heideggeriano, a metafísica da vontade de potência não representaria uma ruptura


como pretendia Nietzsche, com as filosofias do sujeito, mas representa sua consumação. Nesse
sentido, o pensamento nietzschiano possuiria a mesma natureza metafísica do pensamento
ocidental que se desenvolveu desde Platão. Na compreensão de outros, por exemplo, Nietzsche
seria aquele pensador no qual essa tradição teria realizado suas últimas possibilidades na
vontade de potência.

Na verdade, a crítica nietzschiana dirige-se a todo sistema da moral ocidental que pretende
fundar-se sobre um consenso tradicional e na justificação das ações pelo apelo à consciência do
Sujeito pensante. O desprezo pelo corpo empreendido pelos metafísicos tem como contrapartida
a exaltação da alma, do espírito. A noção de alma bem como um certo sentimento de sujeito já
se encontram nessa superstição do eu que se manifestou no espírito puro de Platão, se
consolidou no cogito cartesiano, permaneceu no eu penso kantiano, e se mantém na retaguarda
das filosofias posteriores.

Mas, na esteira da compreensão do dito “Deus morreu”, só o abarcaremos a partir daquilo que
Nietzsche pensa com o termo valor, que é a chave do entendimento de sua metafísica, embutida
na noção de vontade de potência. O devir é para Nietzsche, a vontade de potência, e esta é o
traço fundamental da vida. Vontade de potência, devir e ser são, na linguagem nietzschiana, o
mesmo. A vontade de potência mesma é o fundamento da mais superabundante vida.

Nos dizeres de Heidegger:

4
Übermensch
5

“A vontade de potência avalia na medida em que constitui a condição do aumento e fixa a


condição da manutenção. A vontade de potência é, segundo a sua essência, vontade
instauradora de valores” (p.273).

Desse modo, concebemos que o conceito nietzschiano do niilismo e o dito “Deus morreu” só se
deixam pensar suficientemente a partir da essência da vontade de potência. A clarificação
daquilo que Nietzsche pensa com o termo valor é a chave para a compreensão de sua metafísica.
Com a consciência de que “Deus morreu” começa a consciência de uma transmutação radical
dos valores até agora. A vontade de potência é experimentada e assumida propriamente como a
realidade efetiva do que efetivamente é real. Do ponto de vista heideggeriano, a
degenerescência dos valores paradigmáticos está no fim e a sensação de que o niilismo dos
valores supremos se desvalorizaram está ultrapassada.

No entanto, temos que, no comentador Müller-Lauter, a própria interpretação heideggeriana da


vontade de potência como princípio metafísico em Nietzsche seria equivocada, já que
Heidegger concebe uma unidade na vontade de potência a qual se manteria através da constante
superação de si. De acordo com Heidegger, Nietzsche acaba se pronunciando sobre a totalidade
do ente, ao conceber sua essência como vontade de potência e sua existência como eterno
retorno do mesmo. Contudo, Müller-Lauter entende que o todo em Nietzsche só se dá como um
caos. O ente enquanto tal não é mais fixável. Não teria, portanto, sentido falar de qualquer
fundamento do ente em Nietzsche.

Talvez, possa-se, assim entender que possa emergir um Nietzsche que seja não apenas o
herdeiro e continuador da tradição metafísica iniciada com Platão, mas quem sabe, o ponto de
partida de um pensamento originário.

Retomemos a questão da “morte de Deus” numa passagem emblemática - a do aforismo 125 da


Gaia Ciência; um homem louco com uma lanterna na mão em pleno dia, sai a proclamar:
“Procuro Deus! Procuro Deus!” E que Deus é esse? Passamos aqui, da imagem estratificada da
metafísica da tradição, o Deus de Platão, para a passagem cristã-eclesiástica de um Deus que é o
Sumo bom.

“”Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu.
Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber
inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos
nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos
movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás,
para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e
‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na
pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente?
Não temos de acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a
enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses
apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto? E nós o matamos. Como nos
consolar a nós, assassinos entre os assassinos? (...)” (NIETZSCHE,2012, P.137-
138).

Aqui nesta passagem, além da determinação de qual Deus nos referimos nós nessa morte
anunciada, fica também a pergunta de quem foram aqueles que o mataram. “Quem matou Deus
fomos nós”, mas nós quem? No início da passagem o texto refere-se aos que não criam em
Deus, em suma, os niilistas de toda ordem, os que ficaram sem o Deus cristão e os que ficaram
6

órfãos dos valores supremos. Pois o “Deus cristão” é o Deus Bom, o Sumo Bom, que, em última
análise remete-nos à ideia primeira de Platão, a do Bem, dos valores supremos, enfim, as
virtudes.

Assim, voltando às imagens compostas neste aforismo de A Gaia Ciência , observamos: “Como
conseguimos beber inteiramente o mar?” “Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte?”
“Que fizemos nós, ao desatar a terra de seu sol”. E inferimos: o mar inteiramente bebido traz as
ideias de inesgotabilidade, infinitude e universalidade. O horizonte encerra em si as ideias de
transcendência e incompreensibilidade. E, por fim, o sol traz características como superioridade,
centralidade e a condição de possibilidade de sustentação do mundo. De fato, a referência ao sol
no conto é a mais extensa. O homem louco preocupa-se com o desatar da terra do seu sol,
predizendo-nos uma queda contínua para todos os lados, e um vagar “como que através de um
nada infinito”. Num sentido geral, as qualidades gerais do sol em sua centralidade, evocam
também o caráter universal e o perene. Seguindo a tradição, são essas as mesmas qualidades do
Deus Sol de Platão5. Em suma, no tocante à “morte de Deus”, Nietzsche está claramente a
dialogar com a filosofia platônica. As figuras do mar, do horizonte e do sol indicam a
perenidade e a presença universal de uma estrutura cósmica que as aproxima do Deus de Platão.

Nietzsche confere ao sol, na relação da terra a este, o status de ponto fixo e seguro, central e
superior. Tanto em Nietzsche quanto em Platão Deus diz respeito ao substrato último da
realidade, seja na forma de essência, substância, princípio, fundamento, etc. Quanto à imagem
do sol, ambos os filósofos a compreendem de um mesmo modo: o ente metafísico, supremo,
absoluto e divino, princípio de subsistência dos demais entes e fonte de significação da
existência humana. Por outro lado, apesar de suas descrições do Deus metafísico coincidirem, o
objetivo de cada um dos filósofos diverge imensamente. Enquanto Platão visa implantar o
fundamento último da realidade, Nietzsche pretende exatamente denunciar esse mesmo
fundamento, como a anunciar o fim de sua vigência e eficácia na história do pensamento
ocidental. Em suma, estamos diante do fenômeno contemporâneo do “fim da metafísica”.

Mas, em paralelo a esse Deus platônico das categorias cósmicas, temos também no texto, a
referência a um Deus que entra em estado de “putrefação” 6. “Também os deuses apodrecem”. E
ainda anuncia:” Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda não chegou aos ouvidos dos
homens”. A pergunta que se faz é a seguinte: se os homens que ali estavam “não criam em
Deus”, porque o anúncio dessa morte lhes seria extemporânea? Em verdade, ao que o louco se
refere é, não à morte de Deus, mas às consequências desse ato. Nietzsche se refere ao
esvaziamento, à dessencialização que esta morte ocasionaria aos homens. Uma esterilidade
marcada pelo Niilismo de um mundo sem Deus. Segundo esse mesmo louco, “os atos, mesmo
depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos”.

Assim, a queda dos valores suprassensíveis não significou ainda, verazmente, a perda total do
horizonte do homem moderno. Resta-nos ainda o Cristianismo e o homem cristão com sua
moral. Resta a substituição de Deus pela razão e pela ciência. Compreendamos, a queda dos
valores superiores, como Deus, por exemplo, não significa o desaparecimento de sua moral
como um todo do horizonte moderno. O Cristianismo ainda pode funcionar como esse valor
suprassensível que cumpre o papel de preencher o vazio deixado por Deus. Nietzsche fará a
crítica, sobretudo, do sacerdote, do padre cristão, que, tomando o lugar de Deus cumprirá as
5
“- Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos
anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira
que lá existia à força do Sol”, PLATÃO, “A República”, Livro VII, 517-B.
6
Verwesen: Apodrecer, decompor-se.
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suas funções. Mas, antes de tudo, pergunte-mo-nos por quem seja esse Deus Sumo Bom da
tradição da humanidade. De onde viria a sua bondade?

Precisamente em A Genealogia da Moral, Nietzsche proporá um novo método, o genealógico,


onde apurará todas essas questões entre os valores sobre o bom e o mau, bom e ruim. Nietzsche
proporá a criação humana demasiado humana dos valores, contra a origem transcendente dos
ideais. O filósofo marcará o traço imanente das valorações humanas em sua crítica, em
contraponto com as ideias do além, para então construir uma noção de “bom” que passe pela
historicidade e mobilidade dos signos.

Nietzsche nos contará em tom de fábula, que, aos 13 anos, naquela idade em que as crianças se
ocupam com os brinquedos e com Deus, ele, o menino, se ocupava com os problemas da origem
do Bem e do Mal, estando certo de que a paternidade deste último estaria em Deus. Já aqui
vemos Nietzsche transmudando a hierarquia dos valores usuais, para comportar uma verdadeira
“transvaloração dos valores” do conceito de “bom”.

Nessa sequência, em A Genealogia da Moral, parte da crítica da psicologia inglesa dos céus
“azuis” dos ideais, para em seguida introduzir a cor “cinza” dos documentos, preferida pelos
etimólogos em suas perspectivas históricas, descartando aquela analítica utilitária. Na verdade, a
crença desses psicólogos num hábito, antes de tudo, para Nietzsche é completamente falsa. Da
repetição das ideias utilitárias não surge o hábito de conceitos como o “bom”. Ao contrário,
mesmo do esquecimento da função da utilidade, com o hábito, não é o “bom”, o valor que
permanece. Assim, na concepção de Nietzsche, seja na qualidade de julgador, ou de nomeador
do seu opositor, é o nobre que cria as oposições entre “bom” e “mau”; do mesmo modo em que
o estudo histórico da etimologia dessas palavras mostrará a transmutação do sentido das
palavras segundo um princípio classista, aristocrático, para, enfim, tornar-se uma depuração
espiritual.

Nietzsche nos traz exemplos das línguas alemã, grega, iraniana, eslava e latina, relacionando,
em cada uma delas, o significado de “bom” àquilo que caracteriza os nobres, aproximando-se
em certos momentos dos conceitos de verdadeiro, poderoso, guerreiro, e mesmo divino, em
contraposição ao mentiroso, plebeu, covarde ou ao homem de raça inferior. Por exemplo, “a
palavra ‘esdlos’ significa pela origem, “alguém que é”, alguém que é real, que é verdadeiro”;
depois, por uma modificação subjetiva, o verdadeiro vem a ser verídico” (NIETZSCHE, 2011,
p.34). Em palavras que designam os plebeus, como mau/feio (‘kakos’), tímido/covarde
(‘deilos’), enfatiza-se a covardia – o que leva à hipótese de que outra expressão que serve para
designar “bom” (‘agathos’) estaria relacionada em sua origem à ideia de coragem. No latim,
(‘mélas’), “negro” estaria relacionado a (‘hic niger est’), o homem plebeu de cor morena e de
cabelos pretos. Neste último exemplo, temos a palavra derivada de características das raças
conquistadas, contrapondo-se às raças dos conquistadores.
“Para mim, é evidente, antes de tudo, que com essa teoria estão buscando o conceito de
‘bom’ num lugar que não é sua verdadeira fonte genética: o julgamento de ‘bom’ não vem
daqueles aos quais se manifesta a ‘bondade’! Antes, são os próprios bons, isto é, os nobres,
os poderosos, os homens de condição superior e espírito elevado, que se sentiram bons e
estimaram os seus atos como bons, de primeira ordem, em oposição a tudo o que é baixo,
mesquinho, comum e vulgar” (NIETZSCHE, A Genealogia da Moral, 2000, p.50)

A partir de tais análises, a designação de “bom” provém de uma característica interna, do seu
“ser”, de uma qualidade, e jamais de uma função ou utilidade “externa”. Tais designações
implicam avaliações, e a definição inicial do que é merecedor de estima ou desprezo deu-se
sempre a partir dos “nobres”, pautada em seus critérios valorativos. Segundo vimos, os
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conceitos de “bom” e “mau” são humano demasiado humanos e; para além do bem e do mal.
Sua compreensão genealógica tem princípios históricos e etimológicos; introduzindo, assim,
uma nova forma de interpretar e avaliar os valores; e nos perguntamos: Quem interpreta os
valores? E a resposta dada será: A Vontade de Potência.

Com este conceito, acima já explorado por nós, Nietzsche inaugura um novo modo de filosofar
e propõe um novo núcleo de valores a partir do qual todos os demais deveriam ser valorados.
Assim, no caso humano, forças de potência empurram o homem a superarem-se em valor e
estima, do mesmo modo que, aquelas ditas forças reativas têm o condão de lançarem-se sobre as
forças ativas para agirem no modo do ressentimento.

Tem-se uma dupla possibilidade de valoração para os juízos “bom” e “mau”, “bom” e “ruim”.
Azeredo, introduzindo em seu texto a interpretação deleuziana, nos colocará uma dupla questão:
”O que é o bom quando a interpretação do senhor é determinante? O que é o bom quando a
interpretação vil vige?” (AZEREDO, 2000, p.55). Segundo Deleuze, Nietzsche toma os
fenômenos como sintomas, cujo sentido deve ser buscado nas forças e na vontade de potência,
“que estabelece a diferença de quantidade das forças em relação” (Ibdem, p.56).

Está claro que existem dois tipos distintos de forças: a dominante e a dominada; que por serem
ambas vontades de potência adviriam da mesma natureza. Mas a diferença na quantidade entre
elas, conformaria a qualidade delas como ativas e reativas. Desse modo, tem-se a força do
senhor, que seria interpretada como ativa; enquanto a do escravo seria predominantemente
reativa. Essa distinção dos valores em termos de quantidade marca, essencialmente, a questão
da diferença segundo Deleuze. A diferença encontra-se presente na consciência do senhor que a
afirma e, a partir dela cria valores. Em Para Além de bem e mal:
“As diferenciações morais de valor nasceram seja sob uma espécie dominante, que se sentia
bem em tomar consciência de sua diferença em relação à dominada – ou entre os
dominados, os escravos e dependentes de todo grau. No primeiro caso, quando são os
dominantes que determinam o conceito ‘bom’, são os estados de alma elevados,
orgulhosos, que são sentidos como o distintivo e determinante da hierarquia. O homem
nobre aparta de si os seres em que o contrário de tais estados orgulhosos e elevados chega à
expressão: ele os despreza” (NIETZSCHE, 201l, §260).

Paralelo a essa genealogia dos conceitos de “bom”, Nietzsche nos apresentará também uma
genealogia da moral, ou seja, a cada par de conceitos valorativos relativos ao “bom”, um dado
representante de um tipo da moral será relacionado. A cada tipo de homem, senhor ou escravo,
corresponde-se uma modalidade de moral. Apresentando sua avaliação dos valores de “bom”,
Azeredo constituirá uma topografia para a moralidade dos senhores e dos escravos. A moral
aristocrática, a dos guerreiros, dos fortes, dos potentes - a moral dos senhores, será aquela que
parte de dentro para fora. O senhor é aquele que possui uma superposição de forças, ele é ativo,
mesmo na reação ele age. Na moral do escravo o que prima é a negação. Primeiro ele afirma seu
opositor, o “bom” como o “mau”, para depois qualificar-se como coitado, o passível de piedade,
e, por isso, o “bom”. Há aí, claramente, uma transvaloração da moral dos escravos e também do
que seja a moral do ressentimento. Os escravos são os negativos por excelência, pois negam-se
quando afirmam-se, e reage quando nega, nem desse modo chega à ação. Assim, dizemos que o
homem da moral escrava é também o homem do ressentimento, do espírito de vingança.

O que importa aqui notarmos é como a moral cristã com seus piores representantes, começou a
produzir valores, a dizer, com o ressentimento, a má consciência e os ideais ascéticos. A
rebelião dos escravos na moral significou a transvaloração dos valores dos senhores, e portanto,
de todos aqueles poderosos e aristocráticos. A partir de então, nenhum mais rico passará pelo
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buraco da agulha da salvação. O Cristianismo é o responsável pelo rebaixamento do nobre e da


ascensão da escória, do pobre de espírito, do aleijado. “Tudo se judaíza, se cristianiza, e se
aplebeia a olhos vistos”. (NIETZSCHE, 2011, P.41).
“Só um povo de sacerdotes, um povo de vingança retraída, podia obrar assim. Os judeus,
com uma lógica formidável, enfrentaram e inverteram temivelmente a aristocrática escala
dos valores (“bom” é igual a “nobre”, igual a “poderoso”, igual a “formoso”, igual a
“feliz”, igual a “amado de Deus”). E, com o encarniçamento do ódio da impotência,
afirmaram: “Só os desgraçados são bons; os pobres, os impotentes, os pequenos são os
bons; os que sofrem, os necessitados, os enfermos são piedosos, são os benditos de Deus;
só a eles pertencerá a bem-aventurança, pelo contrário, vós, que sois nobres e poderosos,
sereis por toda a eternidade os maus, os cruéis os cobiçosos, os insaciáveis, os ímpios, os
réprobos, os malditos, os condenados””(NIETZSCHE, A Genealogia da Moral, 2011,
I,§7) .

Ainda em A Genealogia da Moral, teremos três conceitos de cardeal importância para a


compreensão do fenômeno do Niilismo, presença determinante desde a filosofia grega até os
estertores da “morte de Deus”. São eles: o ressentimento, a má-consciência e o ideal ascético.
Nos deteremos neste ponto por um instante antes de passarmos ao problema da “morte de Deus”
em si, a sua mortificação.

Em primeiro lugar temos o ressentimento que é definidor do tipo escravo – é-lhe inerente. No
senhor o ressentimento esgota-se imediatamente, por isso não o define. Seus inimigos, seus
acidentes, aparecem-lhe como algo sem importância. No tipo escravo, além do desenvolvimento
de uma extraordinária memória, nele determina-se a percepção do inimigo como mau. E, por
razões para além da moral, próprias do ressentimento, os sacerdotes em geral, são seres
vingativos, odiosos e ruins.

A transmudação da moral aristocrática em escrava se dá através do ressentimento do fraco e


esse momento de transmutação da moral é aquele em que o ressentimento se torna criador e
passa a criar valores. Nietzsche tem uma reveladora criação ao cunhar este conceito de
ressentimento no bojo do campo da moral. O filósofo criará um esquema em que, relacionando
o tipo do ressentido, também revelará seu tipo psicológico.

A ambição de Nietzsche é identificar um ponto histórico em que a saúde toma lugar da doença.
O ressentimento é definidor de um tipo, no caso, o tipo do escravo. O senhor, por seu lado, é o
criador de valores.

Em resumo, a má consciência é a interiorização dos impulsos em determinados casos, como nos


animais em seus processos de formação, e dos homens na realização de suas normas em
sociedades. Nesse último caso, devido aos obstáculos colocados pelas imposições sociais, esses
impulsos foram interiorizados. O mesmo homem selvagem, cuja força tentam domesticar, passa
a se perseguir e a se devorar. Não tendo inimigos exteriores se viu forçado a maltratar-se,
inventando, então, a má consciência, ou seja, o homem doente dele mesmo. A violência e a
crueldade são dirigidas para dentro. O homem passa a ser responsável pela própria dor porque é
culpado, passando a má consciência em consciência de culpa, um dos maiores maus na moral
cristã.

E, enfim, complementando a temática judaico-cristã de A Genealogia da Moral, apresentamos


então o ideal ascético e todo o seu poder deletério para a saúde do homem em geral; ideal este
gestado no seio dessa mesma moral. O sacerdote, seja judeu ou cristão, incarna esse ideal. O
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sacerdote valora a vida a partir da negação da efetividade, vinculando-se a uma síntese de


crenças: Deus universal, vida após a morte, além mundo, etc.

A significação do ideal ascético está ligado à busca de sentido e salvaguarda da vontade de


potência. O instinto não satisfeito do homem entra em contradição à vontade de vida. Aqui o
ressentimento entra em cena com uma mudança de direção, e a culpabilidade e o pecado tomam
conta do homem são. A vida sã possui vontade de viver – é tomada pela vontade de potência em
seu aspecto positivo – implica querer viver. Mas há um contraste da vida em que ela aparece em
seu aspecto de impotência da vontade, como ausência de plenitude e afirmação da vida. Daí que
essa vida mórbida vê nesse ideal ascético a única maneira de se conservar:

Nietzsche afirmará que no ideal ascético “a vida luta nele e por ele com a morte e contra a
morte, o ideal ascético é um artifício da conservação da vida” (2011, p.116).

Nesse sentido, a negação constitui-se como meio de manutenção e conservação. Nega a vida, e
coloca de um lado o mundo, a ficção, o suprassensível, Deus; e, de outro, a transitoriedade, a
particularidade e a diferença, ou seja, o mundo do vir a ser. O sacerdote do ideal ascético trata a
vida como um erro e coloca a verdade para além dela, em Deus. Esse tipo de vida representa um
tipo de ressentimento que se volta contra tudo o que é forte e próspero, signo da alegria e da
beleza, institui o sofrimento como algo afirmativo, convertendo a força ativa em reativa.

O sacerdote é aquele que tem na doença a vitória sobre a vida e sobre os fortes. Agrega os
doentes, os sofredores, os humildes, os malogrados, enfim, os rebanhos, os escravos de toda a
espécie. Querendo estar em outra parte, recebe em seu seio aqueles que querem organizar-se e
deixar-se comandar.

No entanto, a queixa mais grave de Nietzsche contra os sacerdotes é a sua vingança imaginária,
que transformou o senhor em escravo. E, ainda segundo Azeredo: “O sacerdote ascético,
formador de rebanhos, defende-os dos sãos e da inveja que aqueles inspiram, sendo um inimigo
natural de toda saúde” (2003, p.181).

Por fim, na perspectiva nietzschiana, todo homem que sofre deseja saber a causa de seu
sofrimento. Daí a busca por um responsável por sua dor, visando um alívio. É que a descarga do
afeto produz a suspensão do mal estar. A projeção do outro como culpado atua como o
possibilitador dessa descarga. No entanto, dessa compreensão poderia vir o descontrole, por isso
a culpa será imputada a si próprio e não a outrem. A consequência desse retrocesso do
ressentimento é a introdução clara do conceito de pecado. Pecado, falta e condenação tornam os
doentes inofensivos.
“... impedir que os doentes ofereçam perigo, fazer com que os incuráveis se destruam a si
mesmos e com que os menos doentes os controlem, com que seu ressentimento se volte
contra eles mesmos (...) e, assim tirar partido dos maus instintos de todos aqueles que
sofrem com vistas à autodisciplina, ao autocontrole” (NIETZSCHE, 2011, p.123).

A noção de pecado, um mal estar fisiológico do ponto de vista moral e religioso, serve ao
sacerdote para incutir no homem a culpa, convertendo-o em pecador. Essa vida degenerada será
por aquele cuidada, dando-lhe um sentido, um ideal. Esse é o papel da religião para Nietzsche:
um narcótico. A vontade de potência na religião tem o papel de tornar a vida suportável.
Cumpre ressaltar que o homem prefere a dor à falta de sentido. Por isso Nietzsche acresce a sua
máxima: “o homem deve preferir a vontade do nada a nenhuma vontade” (2011, p.150).
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Por fim, chegamos ao ponto em que a própria morte de Deus será tematizada, de que morte
matamos nosso Deus. De que morte morreu o Deus cristão, por exemplo? Segundo Nietzsche da
morte mais ignominiosa de todas: a morte de cruz. E quem foram os responsáveis?

Os cristãos serão aqueles continuadores do espírito judaico, não há uma ruptura entre essas duas
raças, mas um alongamento. Assim, Nitzsche dirá que, o “amor novo” que brotou do solo judeu
não nasceu de sua oposição mas “saiu deste ódio como uma coroa triunfante da pureza, da luz e
do sublime” (2011, p.). O Cristo aparece, assim, como a sedução dos judeus para a sua causa.

Da Grausamkeit dos judeus, de sua crueldade, (de Grausam, cruel), só por isso houve
significado a morte da cruz. Para Nietzsche, então, essa cruz é vazia, representa o nada que o
desaparecimento desse Deus deixou após a sua morte, com a perda dos valores suprassensíveis
consequentemente.

Para Nietzsche, a cultura sacerdotal responsável por este novo domínio no campo axiológico foi
a judaica, que consolidou seus valores no Cristianismo. O que moveu, de fato, essa
transmudação do espírito judaico foi o espírito de vingança. Seres debilitados, propuseram com
a continuidade no espírito cristão uma vingança espiritual contra seus inimigos; um forte acento
de ressentimento contra os nobres, os romanos. Incapazes de agir, os sacerdotes judeus
propuseram um acerto de contas na imaginação, na vingança.

Através do Cristianismo operou-se uma “rebelião escrava da moral”: os valores nobres foram
apropriados pelos escravos e invertidos, o que se traduziu na “transvaloração-judaico-cristã”.
Um desprezo pelo que é nobre=poderoso=belo=feliz=caro aos deuses; e, uma estima do que é
pobre, fraco, sem energia, com baixa vitalidade, decorrentes de um deslocamento da avaliação,
do “ser” para a ação.

Os sacerdotes judeus inverteram a equação dos valores aristocráticos e o Cristianismo


completou essa revolta escrava na moralidade postulando um céu onde os mansos não apenas
entrariam, mas onde estariam salvos. Nietzsche, então, nos proporá a fórmula “Roma-Judeia,
Judeia-Roma”, e esta última será vencedora por mais de dois milênios. Onde quer que se
encontre os vencedores, encontrar-se-á três judeus e uma judia: Jesus de Nazaré, Pedro, Paulo, e
Maria, mãe de Jesus. Não é de se estranhar que o Cristianismo tenha sucedido o judaísmo. Os
judeus, em confronto com os romanos, tentarão seduzir a escória, aquele povo submisso ao
Nazareno; submetido este a uma morte das mais cruéis que houve, a morte da cruz, uma morte
não pelo pecado dos outros, mas pelos seus próprios, os políticos.

A sedução proposta pelos judeus no Cristianismo segue a necessidade de transformar o forte em


fraco, tornando todos inimigos. Segue-se na construção de “um ideal capaz de seduzir e de
persuadir os fortes mediante a compreensão da supremacia da fraqueza frente ao ideal
transcendente.”(Azeredo, 2000, p.71). Nietzsche chega a elaborar a hipótese de que essa
sedução visaria a buscar de todo jeito a adaptação dos homens aos valores judaicos.

Assim, segundo Nietzsche, o grande triunfo dos impotentes sobre a aristocracia guerreira deu-se
através do amor de Cristo. O amor que renuncia à força, que perdoa os inimigos, que dá a outra
face. O sacrifício de Jesus, ao menos segundo certas concepções, trouxe a “salvação” dos
fracos, e, ao mesmo tempo, trouxe uma vingança eterna aos fortes: tornarem-se-lhes afastados
do reino de Deus para sempre; que não o merece.

Acompanhando o pensamento de Schopenhauer, Nietzsche nos dirá que a compaixão e a


caridade são formas de enfraquecimento do homem, que, ao dar algo de si, e, ao não permitir
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que o outro o tome para si, cresça por si, a compaixão é a impossibilidade de subversão do
fortalecimento do homem, através da diminuição da sua vontade de potência.

E o que significa essa vontade de potência? É que existem as religiões que afirmam a vida e as
que negam. Nietzsche dirá que com os sacerdotes, houve uma desnaturalização da religião. Se
antes Deus abençoava as plantações e colheitas, um Deus das “benções”; depois, com a
desnaturalização empreendida pelos sacerdotes, o “pecado” tornou-se o responsável pelo castigo
de Deus às ações humanas. Um pecado que não tem fim, até o fim dos tempos.

O símbolo da “santa cruz” leva Israel à face do mundo, como se até seus inimigos pudessem
morder esse anzol de grandiosa vingança. Nenhum ideal mais nobre subsiste a essa
transformação de valores. Na verdade, Nietzsche vê na morte na cruz um imenso vazio deixado
por Deus, subsistindo um nada de valores que nada pode substituir. Nietzsche não percebe a
gama de simbolismos implícita nesse ato dessa morte na morte, de um Deus vivo que se entrega
à morte para a salvação de todos.

Assim, do ponto de vista do João do Quarto Evangelho, a morte de Deus não nos aparece
mórbida como em Nietzsche, ao contrário, ela é gloriosa porque vivencia a liberdade. Esse
desejo pela morte faz parte do destino do Salvador.

O que Nietzsche não percebe, e nem a linhagem de comentadores de certa tradição que o
sucede, é que a morte de Deus é paradoxal: ela é humilhação ao mesmo tempo em que é
gloriosa. Os signos apontam para um martírio que é na verdade a confirmação régia de Jesus.
Nasceu como rei, viveu como rei e morreu como rei.

Jesus anunciou sua Paixão como os vindouros de seu enaltecimento e glorificação. Só na cruz é
que ele irá pronunciar o: “Está consumado!” Pois a hora de seu ser glorificado, seu passar desse
mundo, inclui a história da Paixão como um todo. “Depois de ele [Judas] ter saído, Jesus diz:
“Agora foi glorificado o Filho da Humanidade e Deus foi glorificado nele” (Jo, 13,31).

Na cena toda do processo, do flagelo e da crucificação, Jesus mostra sua superioridade, que se
pôde observar desde o início da história da Paixão. Não se relata inquérito algum, e é Agamben
quem apontará para essa ausência de julgamento em Pilatos, em seu “Pilatos e Jesus” (2014). A
base para um tal entendimento era a de que esse processo seria destituído de juízo, sem o
acompanhamento das formalidades procedimentais.

Na verdade, estamos diante de um fato insólito: o entrecruzamento dos tempos histórico e


eterno, de uma verdade temporal e outra celestial. A proposta de Agamben está em
compreender porque este cruzamento entre o histórico e o eterno, o profano e o divino tenham
assumido a forma de uma krisis, de um juízo processual.

Diante de Pilatos dois julgamentos e dois reinos parecem enfrentar-se: o humano e o divino, o
temporal e o eterno. E no caso, é o mundo dos fatos que deve julgar o da verdade. Jesus
responderá: ”O meu reino não é deste mundo” (Jo, 18,36).

No entender de alguns comentadores, o julgamento, em João, já teria sido realizado no Sinédrio,


e o que há em seguida é uma série de “entregas” (“entrega”= ‘paradosis’), “tradições”. Do
Sinédrio aos hebreus, dos hebreus a Pilatos, e, de novo, de Pilatos aos hebreus e aos romanos; e,
por fim, a “entrega de Jesus na cruz: “Está consumado!”

Na verdade, aqui temos dois reinos face um ao outro sem que seja possível o enunciamento de
um julgamento. Julgamento e salvação excluem-se mutuamente. No entanto, no entender de
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Agamben, para que haja um resgate do pecado a punição deve ser legítima, senão será mero
castigo. Jesus sabia desde o início de que morte deveria morrer, e, para que se cumprisse as
escrituras, cumpriria a pena capital, resultante do delito de lesa majestade, no caso o ato de auto
instituir-se Deus, o Messias, o Reino de Deus contra César.

O que cabe ressaltar aqui, no que tange ao Evangelho de João, é o tipo de acusação contra Jesus:
o auto proclamar-se o Messias, o representante do Pai. Os tributos honoríficos atribuídos a Jesus
no flagelo parecem escárnio à primeira vista, mas contêm um sentido profundo, Jesus é, de fato,
rei. Assim, no relato joanino da Paixão a questão não é a função judicial de Jesus, mas sua
dignidade régia.

Encaminhando-nos para a conclusão do trabalho, é preciso confirmar com Georges Bataille que
religião e erotismo andam juntos. Em Bataille, a morte de Cristo é uma experiência de
imanência, um mergulho no próprio corpo, em sua podridão e morte, uma sondagem de seus
limites em busca da superação. A mística é a doença do desejo, desejo de experiência que leva
ao transbordamento da experiência máxima do desejo. Bataille chama a isso de gozo na cruz –
um objeto que escapa.

Esse encontro de erotismo e religioso tem como fundamento vida e morte, daí entrelaçam-se à
noção de continuidade e descontinuidade. O homem não é redutível ao órgão do gozo, mas este
ensina-lhe o seu segredo. Por isso é possível ver um gozo na morte da gozo. O erotismo abre
para a morte. Cada forma de erotismo nos leva à indistinção, nos leva à eternidade, à morte e à
continuidade.

O sujeito é falha, fenda e é a consciência da negatividade que o impulsiona para a superação dos
seus limites, para a busca do êxtase no excesso que desvenda a identidade entre prazer e dor, na
descoberta de uma “alegria torturante”. O indivíduo percebe-se no seu dilaceramento,
experimentando inclusive aquilo que lhe seria insuperável, como prêmio da redenção. Segundo
Bataille o horror é o limite que sempre se deve colocar para se ir até o fim do êxtase e não se
perder no gozo.

Concluindo, desde essa última parte de trabalho em que deixamos transparecer elementos da
filosofia da religião, confrontados à filosofia de Nietzsche, a proposta e de ‘religere’, em latim
“reler”, as escrituras com um olhar subversivo e alheio à imposição da ortodoxia. Nietzsche em
sua apresentação da “morte de Deus” num vazio de sentido, desconsidera seu caráter político.
Desconsidera também a força dos paradoxos joaninos enunciados em pares de signos como
humilhação e glória, vida e morte, etc. Aqui neste momento, fazemos uma opção, a da cruz
cheia joanina, plena de significado, em detrimento da cruz vazia de Nietzsche, que aponta para
um niilismo estéril, fora do entrelaçamento entre vida e morte num só ato.

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