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L’ANTROPOLOGIA CRISTIANA
TRA MODERNITÀ E POSTMODERNITÀ
Ignazio Sanna –
Queriniana – Brescia (Italia) – 2001
BIBLIOTECA DI TEOLOGIA CRISTIANA –116 [BTC]
Tradução de Dom Altamiro Rossato, CSsR

CAPITULO SEGUNDO
(Pg 44-135)

A ANTROPOLOGIA DA MODERNIDADE

2.1 – Qual é o rosto da modernidade?

.
2.1.1. A antropologia da modernidade, de certo modo, propedêutica da pós-
modernidade, desenvolveu-se e foi se configurando lentamente num arco de tempo que
abraça alguns séculos e numa moldura histórico–geográfica contrassignada por ideais
específicos de racionalidade científica e filosófica e de autonomia do poder político pela
tradição religiosa. Antes de proceder à descrição das coordenadas conceituais e culturais
desta antropologia, é necessario, então, ter um quadro o mais completo possível do que
seja, em concreto, a modernidade, de qual seja seu vulto preciso, levando-se em conta o fato
de que sobre sua natureza e sobre a sua cronologa existe hoje uma grande divergência de
opiniões.(cf.Ignazio Sanna, L´Antroplogia Cristiana tra Modernità e Postmodernità, Queriniana, 2001,
pag.44, nota 1,). A própria pós-modernidade, por outro lado, enquanto ponto de chegada da
cultura ocidental, é um conceito relativo à modernidade, enquanto ponto de partida da
mesma. Também para ilustrar a antropologia da pós-modernidade, por isso, é ididspensavel
partir da precisão da natureza e dos limites temporais da modernidade à qual, de qualquer
modo, a pós-modernidade indiretamente e dialeticamente, sempre se refere.

Ora, pelo que lhe diz respeito, antes de mais nada, o nome mesmo de modernidade, o
uso do adjetivo “modernus” (de modus hodiernus, em latim, neu–Zeit, tempo novo, em
alemão) que está na base do conceito de modernidade, aparece no baixo latim no fim do V
século para caracterizar o recente mundo cristão em relação do grego-romano. A sua origem
imediata, portanto, deve-se colocar no advérbio latino ‘modo’, que significa recentemente,
agora. O primeiro significado seria, por isso, estreitamente cronológico, mesmo que não se
deva excluir uma sua certa conotação valorativa. Na Idade Média, a conotação cronológica
acabou por adquirir um significado prevalentemente depreciativo. “Modernus“ indicava o que
é recente enquanto decadente, isto é, comportava a consciência de uma velhice. A distinção
entre ‘antiqui’ e ‘moderni’ significava, de fato, uma superioridade dos antigos sobre os
modernos, superioridade ideal, pois que a antiguidade não adquiria o seu valor pelo mero fato
da distância temporal, mas era, sobretudo, o lugar dos verdadeiros valores, dos valores
eternos. No século XIV, como é sabido, o termo ‘moderno’ foi usado para para denominar a
‘via moderna’, ou seja o novo modo de fazer teologia e filosofia, em oposição a ‘via antiqua’,
representada pelo tomismo, pelo escotismo, pelo agostinismo, e por outros grupos que
seguiam os filósofos do século XII. Os pensadores da ‘via moderna’ se opuseram ao realismo
das escolas nascidas da filosofia do século XIII e foram conhecidos conhecidos como
nominalistas. Seu expoente principal tornou-se Guilherme Ockham. No fim de ulteriores
tranformações semânticas, o termo ‘moderno’ adquiriu um valor ideológico e começou a
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indicar uma atitude critica, racional, científico, em cotraposição ao dogmatismo da tradição. A


sua colocação na história das idéias e da civilização européia, depois, como veremos melhor
se seguida, mudou conforme as convicções pessoais dos historiógrafos que descreveram e
circonscreveram a modernidade de diverso modo e com diversos critérios de valorização.

2.1.2. Por outro lado, se se toma em consideração a configuração epistemológica, a


modernidade, em forma extremamente sintética, até agora foi caracterizada como o primado
do conhecimento cientifico crítico, estendida também ao campo da tecnologia, de modo todo
particular das tecnologias de informação. A revolução cientifica que está, exatamente, na
origem do conhecimento científico e que, segundo Butterfield, supera em importância todo
outro acontecimento do surgimento do cristianismo, mudou “o caráter das habituais
operações mentais dos homens, transformando o diagrama inteiro do universo físico e a
estrutura da própria vida humana: esta aparece claramente como a verdadeira origem do
mundo moderno e da moderna mentalidade.” Ela iniciou com a elaboração galileana da nova
ciência e com a conseqüente leitura matemática da natureza que levou sucessivamente à
exaltação do saber científico. Os historiadores das idéias contemporâneas fizeram ver como o
surgimento deste novo saber levou, com o tempo, a uma mudança radical na visão do mundo,
o qual tornou-se um objeto da planificação da assim dita razão calculante. A passagem,
depois, para aquisição de conhecimentos, levados adiante sistematicamente por meio do
método, ‘’provando e reprovando’’ ou da ‘’prova e erro’’, conduziu à idéia de que tudo
também poderia ser diverso de como apareceu até agora, e que o erro no campo cientifico
não pode mais ser socialmente sancionado. À mutabilidade de uma realidade contingente
corresponde o acrescido poder de dispor da parte de um sujeito ele mesmo contingente, que
procura a afirmar-se aumentando o próprio saber..
A matematização da natureza, portano, reduziu o conhecimento ao só
conhecimento experimental, de modo que a racionalidade científica se constituiu como
critério normativo para avaliar todo outro tipo de conhecimento. Isto produziu, conforme a
reprovação de Husserl, o esquecimento da presença e da importância, no universo do
conhecimento, do mundo da vida, dos problemas da subjetividade e da existência humana, os
quais, fugindo do domínio da razao, cairão, finalmente, na irracionalidade. De fato, o
desenvolvimento científico, baseando-se na racionalidade que se interessa somente pela
aplicação mais econômica dos meios para alcançar deteminados fins, é totalmente incapaz de
avaliar tais fins, isto é, de dar um significado ao mundo da vida e provocou o seu eclipse: o
agir humano não se funda mais na ordem das coisas ou na vontade de Deus, mas
simplesmente na razão que se torna o único ‘metro’ aceitável. O eclipse dos fins fez, sim,
que a razão instrumental, em vez de tornar o homem patrão e dono da natureza, tenha
terminado por torná-lo escravo da tecnologia e da civilização produzida por ele mesmo. A
razão instrumental tratou as coisas como mateira prima e as espoliou de sua dimensão de
magia e de mistério. Ela produziu o efeito do assim dito ”desencantamento do mundo”, isto é,
da liberação do mundo do mágico, do mítico, do sobrenatural, e levou a “mecanicização da
imagem do mundo”.

2.1.2.1. Além disso, pelo que diz respeito à configuração social, hoje em dia, em nível muito
geral, o termo modernidade evoca as condições de vida típicas de uma sociedade avançada
que se espelham sempre mais no que acontece no Ocidente industrializado. Isto indica as
relações sociais, os estilos de vida, os modos de agir característicos do tempo presente, que
suplantaram as formas organizativas da sociedade tradicional. Entre as suas características
constitutivas destacam-se a liberdade, que é concebida como emancipação, o progresso, que é
considerado como necessário e sem fim, o domínio progressivo sobre a natureza que é
reduzida a uma materia prima a ser transformada e utilizada, a secularização das centrais
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sociais que produzem signficados, que não são mais monopolizados pela religião, mas se
estenderam a ideologias socio-políticas e à própria economia.
Portanto o rosto, digamos assim, ‘justo’ da modernidade, hoje em dia adquire as
feições de uma sociedade dominada pelo pelos enormes progressos realizados pela
humanidade nos últimos séculos de sua história. Com o maior conhecimento das forças da
natureza e dos meios de produção, de fato, massas mais vastas de homens conseguiram
condições mais humanas de vida, categorias antes maginalizadas e ignoradas gozaram de
um contínuo estender-se dos direitos fundamentais, tomou-se sempre mais clara consciência
da igual dignidade de todos os homens, vendo-a também lá onde, até ontem, não se sabia ou
não se queria reconhece-la em formas de vida e de civilização distante dos nossos modelos.
Mas é óbvio, todavia, que há também o reverso da medalha, que existe também um
rosto social e cultural ‘negativo’ da modernidade e que também o iluminista mais convicto
não pode não dar-se conta de quão frágeis são as conquistas dos ideais da modernidade e a
luz da razão, internamente e externamente expostas a todas as idéias absurdas, a todos os
erros, a todos os devios. Na realidade, se se aceita um diagnóstico honesto e ideologicamente
neutro da realidade social contemporânea, se deve reconhecer que a modernidade por assim
dizer realizada e completada, isto é, aquela que deveria espelhar altos parâmetros sociais e
culturais, é às vezes mais virtual que real. Não se pode ignorar, de fato, que os direitos
humanos, também de mais extensos que no passado, sejam ainda terrivelmente pisados em
inumeráveis situações, circunstâncias e lugares da terra. Os delirios nacionalistas e as
arrogâncias etnocêntricas divagam quer no Ocidente quer nos paises a caminho do
desenvolvimento. A economia global está na rota de colizão com os ecossistemas da terra.
Sabemos inventar maquinas sempre mais sofisticadas, transplantar genes, viajar no cosmos,
mas falta água potável a um bilhão de pessoas, a atmosfera perdeu o equilibrio, as espécies
vivas se estinguem. A velocidade com a qual as espécies desaparecem desde que apareceu o
homem tornou-se de 1000 a 10.000 vezes superior à taxa natural de extinção, sobretudo nos
ambientes particularmente delicados como, por exemplo, as florestas tropicais Os materiais
se tornaram sempre mais complexos e melhores mas não resolvem os problemas ecológicos.
Hoje são utilizados todos os 92 elementos da táboa periódica presentes em a natureza.
Há cem anos utilizavam-se pouco mais de vinte. Os objetos era de madeira, de
cerâmica, e de metais. Este aumento torna difícil a reciclagem e introduz níveis de toxidade
muito elevada, Substancialmente, a maior eficiência conseguida no emprego dos materiais,
mesmo se relevante, permanece sempre insuficiente se o aumento do consumo requer
derrubadas de forestas, abertura de novas minas, utilização sempre maior de recusos hídricos
e poluição do ar e da água. Massas enormes de deserdados pressionam e pressionarão os
confins dos Paises ricos, com uma pressão que provavelmente se fará insustentável e
provocará situações trágicas, por que será trágico quer acolher um numero sem limites, quer
rejeitá-lo com violência. Pela primeira vez na história, o desenlvimento econômico não cria
mas frequentemente reduz os postos de trabalho, e se toma consciência de que o mercado
sozinho não garante a liberdade e melhora das condições de vida. A solidariedade
internacional, quer no campo político, quer no campo econômico, torna-se, muito
frequentemente, seletiva e, portanto, cessa de ser verdadeiramente solidariedade, como o
demonsta o fato de que para a limpeza étnica do Kosovo, no ano de 1999, se moveram todos
os países da NATO, enquanto que para as matanças análogas e os genocídios perpetrados
no mesmo ano ou nos anos precedentes nos Países da África Central, ninguém moveu um
dedo.

2.1.2.2. Históriadores e sociológos se esforçam em escrever que o século XX, o assim


chamado século breve, conforme a definição dada pelo históriador Hobsbawm, não terminou
bem e se soblinhou frequentemente o terrível, o primado de hecatombes e extermínios,
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operados com uma monstruosa simbiose de barbárie e racionalidade científica. De fato, na


história da humanidade o século XX (Novecentos) possui o triste primado da classificação
das vítimas de operações bélicas: mais de 200 milhões os caidos, na maior parte civís. No
século XX os conflitos armados, revoluções e outras operações bélicas
ensanguentaram a terra como nunca no passado. Além das duas guerras mundiais, estiveram
ininterruptamente multiplicadas atrocidades de todo gênero, e se conheceu uma longa fileira
de ditadores: Hitler, Mao, Stalin, Pol Pot, Pinochet, Idi Amin, Bokassa, Papa Doc, Kim II
Sung., Ceausescu e muitos outros. Palavras desconhecidas no século passado fizeram o seu
ingresso no nosso léxico cotidiano: bomba atómica, gás nervini (sarin?), gulag, campos de
concentração, bombas inteligentes, esquadrõ da morte. A capacidade do homem de infligir
dor ao homem no século XX atingiu seus cumes nunca superados. Nunca, em toda a história
morreram tantos seres humanos tão cruelmente. Se são somados os milhões de mortos nas
duas guerras mundiais, nas sucessivas guerra coloniais, Argélia, Vietnam, Congo, Rodésia,
America Central, às vitimas do terror interno; some-se o extermínio ordenado por Hitler
contra os judeus, os católicos, se se volve o olhar aos sos comunistas, os ciganos, os eslavos e
os homossexuais, ao extemínio sistemático dos próprios companheiros antes, e de milhões
de cidadãos depois, nas prisões de Stalin e se atingem cifras verdeiramente impressionantes.
Se depois do século XX se volve o olhar aos séculos passados, deve-se levar em conta
com realismo que o “homo homini lupus” de Hobbes manchou as grandes conquistas
científicas e artísticas do milênio. A intolerância foi deslocada dos tribunais castólicos e
protestantes até os trbunais de Vishinky e de Mc Arthy. No meio, uma história universal da
violência escreveu páginas de dor crescente na conquista da América, na Guerra dos Trintas
Anos, na perseguição e na expulsão das minorias árabe e hebréia da Europa, no ataque
colonial europeu contra a África Negra, a Índia, a China, mas também na expansão
econômica, graças ao trabalho forçado da escravidão racista e a marginalização das mulheres.
O milênio de maior progresso técnico e científico da história, comparativamente, coincidiu
com o milênio de maior atraso político e moral da história.A tragédia do milênio é que
podendo contar com todos meios para assegurar a felicidade, estes foram desperdiçados
enquanto foram empregados os piores métodos para garantir a desgraça. Fleming, Salk, Crik
e Watson, Pauling, Maria Curie, todos grandes benfeitores do século XX, deverão conviver
para sempre com as sombras do carrascos fatais, mas não necessários, os criminosos
históricos que não tiveram necessidade nem justificação alguma para matar milhões de seres
humanos.
2.1.3. Existe, portanto, um vulto ‘justo’, e um vulto ‘negativo’ da modernidade. Não só.
Hoje é preciso ter em conta também que existem, de fato, diversos vultos da própria
modernidade, nem sempre reduzíveis a parâmetros de unidade e homogeneidade. Segundo o
quanto observa S.N. Eisenstadt, professor emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém, de
fato, a descrição dos carateres distintivos da sociedade moderna, feita pela maior parte dos
historiadores e sociólogos, parte de duas convicções de fundo: antes de mais nada, de que a
civilização ocidental tenha que se caracterizar por uma espécie de exemplaridade e seja
depositária de um modelo social vencedor no curso da história. Em segundo lugar, que o
progresso para a modernidade seja a longo prazo inevitável, e que portanto, as várias
sociedades convirjam para uma moderna civilização universal. Todavia.os acontecimentos
no decurso da história e os processos sociais realizados sob os nossos olhos, em várias partes
do mundo, não confirmam este modo de pensar a modernidade e a modernização. Hoje há
muitas vias para a modernidade, com diversos modelos nos quais se articula e se exprime a
assim chamada civilização. Com isto não se coloca em discussão que exista uma civilização
(cujo motor é representado pelo desenvolvimento econômico) ou que o processo de
modernização tenha que interessar a muitas sociedades do planeta. Mas, este assunto ou esta
constatação não implica nem que todas as sociedades do mundo tenham como meta última o
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processo de modernização, nem que a civilização européia seja a manifestação e o


paradigma mais importante e puro dessa mesmo processo. Dói à humanidade que se sugira ás
populações Amish dos condados de Lancaster, na Pensilvânia, ou dos condados do Ohio nos
USA ou que largos estratos das populações da ortodoxia dos países do Leste regeitem
qualquer processo de modernização e regeitem até mesmo a energia elétrica e as máquinas a
combustível. Há dois mil anos, havia um mundo politicamente unido e pacífico, tornado
bastante homogêneo pela difusão dos valores do cristianismo que transformaram e plasmaram
a consciência humana. Hoje, ao contrário, a aspiração à unidade do mundo, é contradita pela
divisão política, que traz e é fruto de uma divisão religiosa, cultural e social.
Obviamente, o modelo da civilização européia se difundiu muito no mundo também
com as conquistas coloniais, a ponto de conseguir identificação do mundo inteiro com o
Ocidente, terra da modernidade.Os modelos culturais, políticos, sociais, nascidos no ocidente
e transformados em Ocidente se tornaram modelos universais: as estruturas políticas e
econômicas do Ocidente se estenderam gradualmente e se mudaram em estuturas do mundo
inteiro.
A história ocidental foi configurada como medida propriamente humana por
filósofos como Hume, Herder, Locke. No Século das Luzes que deixava na sombra a maioria
da humanidade não branca, não européia, Montesquieu se perguntava ironicamente como
seria possível ser persas. A conquista dos povos não europeus os introduziu na história
universal, mas com a condição de que se deixassem colonizar, isto é, civilizar ou ‘explorar’.
Foi a era das monarquias absolutas pelo direito divino, depois irrompeu o surgimento das
borguesias industriais e mercantis, cuja gritaria de emancipação foram as revoluções francesas
e americana. Ainda hoje as crianças latino-americanas, euro-latinas, franco-africanas e
franco-asiáticas estudam a história universal dividida em épocas classicas de Idade Média,
de Idade Moderna e de Idade Contemporânea. A primeira começa com o consolidação do
cristianismo depois da queda de Roma. A segunda, à escolha, com a descoberta da América
ou com a queda de Constantinopla. E a terceira com a revolução francesa de 1789. Esta é
claramente uma história do Ocidente para o Ocidente.
Mas o fenômeno da reconquista da presença histórica dos povos
Marginalizados da Ásia, da África e da América Latina, que foi um dos fatos fundamentais do
milênio, leva à constatação de que não há e não pode existir uma só história, mas mais
histórias, que não existe e não pode existir uma só história, mas mais histórias, de que
existe e nem pode existir uma só cultura, mas mais culturas. A expansão da cultura ocidental,
que hoje se está repropondo sob o aspeto do poder informativo, e que vai inserindo múltiplas
reações e conflitos, deve de qualquer maneira fazer as contas com muitas culturas e formas
organizativas locais, com várias tradições e memórias. Apesar dos avanços da globalização
em quase todos os setores de vida econômica e cultural do mundo contemporâneo,
permanece e adquire significados sempre novos uma grande variedade de sociedades
modernas ou em vias de modernização, uma coexistência no planeta de ‘modernidades
outras’, em relação àquelas de civilização puramente ocidental.

2.1.4. Finalmente, também pelo que diz respeito à relação entre modernidade e
cristianismo, segundo Henri de Lubac pode-se sustentar que a modernidade seja antes um
fenômeno complexo, pois não se dá uma só modernidade, não existe uma só imagem do
moderno, mas existem diversas modernidades encarnadas por personalidades e correntes bem
identificáveis. O grande jesuíta francês, mais vezes, expressou a convição de que a
modernidade existe como uma variegada realidadede de produções culturais e de praxis
históricas em cuja filigrama é possivel, ultimamente, discernir o configurar-se de duas
ordens, uma de matriz imanentista e outra, ao invés, fiel à tradição.
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Relativamente à corrente imanententista se pode constatar que a idéia de um divino


imanente na mente faz parte da filosofia cristâ de Agostinho a Rosmini e, neste sentido,
Descartes, que procurou fundamentar o conhcimento de Deus independentemente da
Revelação cristã, concebendo Deus como imanente na mente humana, se moveu do interior
desta filosofia. A perda da Revelação como fundamento acabou por conduzir a afirmação da
auto-suficiência da razão, a ponto de ela reduzir o próprio conteúdo da Revelação a um
verdadeiro processo. O caminho que conduz de Espinosa a Hegel, onde atinge o seu vértice,
coincidiu com a redução do cristianismo à dialética da razão. A corrente fiel à tradição, ao
invés, se identifica em todas aquelas tentativas que foram feitas para procrastinar a leitura
sapiencial da história da parte da teologia dos séculos XIX e XX, até àquela da estação
conciliar.
2.2. A cronologia da modernidade.
Para dar, agora, ao leitor a possibilidade de ler a história da modernidade com
categorias de pensamento o menos subjetivo possível, e para que ele tenha condições de
fazer-se uma idéia da modernidade não pre-concebida, achamos útil expor brevemente, e em
resumo, a origem e também a causa e a natureza desta história moderna no âmbito da
sociedade ocidental. O conjunto destes elementos nos permitirá, depois, colocar em relevo e
configurar os possíveis contornos de uma antropologia da modernidade. Começamos, por
isso, com o acenar à cronologia da modernidade.
2.2.1. Pelo que diz respeito, antes de mais nada, à cronologia da modernidade, ela é muito
suscitível de datação diversa, segundo como se considera a origem e a natureza da mesma.
É um dado de fato, de qualquer modo, que os confins temporais deste fenômeno
determinante da história ocidental frequentemente se tornaram confins ‘ideológicos’, que
tomam como ponto de referência não os eventos históricos mas a sua interpretação. Poder-
se-ia dizer, todavia, que pela normal articulação dos manuais de história, a modernidade
indica aquele período da história européia que vai do Humanismo/Renascimento do século
XV e XVI, e também da Reforma luterana, até o século XX. Ela seria o ‘novo’ que, do
século XV ao XX, viu a luz do mundo europeu e que se contrapôs ao ‘antigo’ o qual, na
época, era constituído pela Idade Média. Por isso, seria ‘moderno’ o que se opõe ao
medieval ou também o que não é mais medieval.
Enquanto os manuais de história, portanto, colocam o início da modernidade no XV-
XVI século, o históriador americano Theodore K. Rabb, como veremos mais adiante, o
coloca na segunda metade do Seculo XVII coincidindo com o fim das guerras religiosas, e o
historiador alemão Reinhart Kosellek, desloca as linhas do início da idade moderna para um
âmplo período entre a metade do XVII e metade do XIX, e submete a própria modernidade
a um processo de decomposião e relativização, em aberto desafio à rigida esquematização
dos manuais tradicionais. Para Koselleck, a revolução francesa e a industrial incidiram
muito mais profundamente na realidade do que a Reforma. As novidades introduzidas por
Lutero e Calvino seriam antes recolocadas no quadro da história da Igreja. Enquanto, entre
1750 e 1850, foram outras novidades, e sobretudo a revolução francesa e a industrial, que
incidiram muito mais profundamente de maneira maior em modelar um novo tipo de
civilização. Começou-se falar de um ‘novo mundo’, ’novo espaço’ não em relação a
América, mas ao ambiente circunstante; mudou a concepção do tempo que vem a ser algo
que inicia contiuamente e não como qualquer coisa que se repete, como um cíclo; quando no
século XIX se introduziu o termo ’era moderna’, não se quer mais definir, a posteriori, um
período passado – como fora no caso da ‘Idade Media’ ou o ‘Renascimento’ – mas sim o
momento histórico em curso, do qual de qualquer modo se percebia o início. Além disso, não
é preciso esquecer que não existe, de fato, uma só modernidade, mas várias, como já
observamos citando Eisenstadt e de Lubac, porém a história não se desenvolve sempre de
modo uniforme em todos os níveis, mas existem transformações que acontecem lentamente,
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outras, ao invés, são rápidas. Consequentemente, é preciso fixar os fatores de mudanças de


modo diverso conforme o âmbito a que nos referimos.Se, por exemplo, se devesse escrever
uma história da alimentação, a mudança estrutural, a ‘modernidade’, chegaria somente na
metade do século XIX com o advento da química e, em particular, com os fertilizantes, que
superam o velho modelo maltusiano da relação demografia-recursos.

2.2.2. Assim sendo, ao passarmos a propor nossa leitura cronológica do nascimento e do


ocaso da mesma, nós nos encontramos numa espécie de embaraço de escolha. Desemaranhar-
se na selva e no “confito das interpretações” - para recorrer ao título de uma obra famosa de
Paul Ricoeur - nem é sempre fácil e, de qualquer modo, quando por fim se deve fazer uma
escolha por uma ou por outra escola, esta escolha poderá sempre ser julgada arbitrária e
precavida. Bem consciente desta situação de pluralidade de interpretações, achamos útil fazer
e propor um percurso nosso. Para a reconstrução cronológica da modernidade que, pela
natureza de nosso estudo, limitamos ao âmbito filosófico, nos serviremos, embora com nossos
acrescimos e integrações, de um recente estudo de G.Penati, dedicado a uma leitura
diacrônica do pensamento filosófico ocidental. O estudioso milanês delineia as diversa fases
fundamentais da filosofia ocidental em quatro horizontes: o clássico, o medieval, o
moderno, o pós-moderno. No horizonte clássico se fala da natureza como principio (arche)
constituído e imutável e, portanto, como suprema ordem na qual se realiza a própria natureza
do homem. Também os mesmos deuses e o destino estão sujeitos a tal ordem. No horizonte
medieval a ordem da natureza se encontra frente à liberdade criativa do absoluto que se
espressa na palavra da Sagrada Escritura. Neste contexto o tempo é tirado (tolto), isto é,
elevado à eternidade segundo o sentido latino do “tollere”. Desse modo o homem permanece
suspenso escatologicamente até o último dia frente ao juízo de Deus. Quando diminui a
consciência desta esperança, descamba a religiosidade medieval e a ela se substituem outras
esperanças mundanas e históricas. Surge assim o horizonte da modernidade, cuja
característica de fundo, confome G Penati, é a confiança ilimitada no mito do conhecimento e,
portanto, no mito do progresso. A queda da confiaça neste mito que envolve o homem e a
história assinala, por sua vez, o ocaso da modernidade e, portato, o advento do pós-moderno.
Os pensadores determinates que seguem tal passagem, segundo esta análise, sãoMarx,
Kierkegaard, Nietzche, Heidegger. O pensamento de Heidegger, de modo particular, com a
sua nova dimensão do ser e da verdade, põe o foco em uma nova metafísica que pode ser
considerada a metafísica do pós-moderno.
2.2.3. Numa primeira etapa do longo percurso do afirmar-se e do decair da modernidade,
conforme a recostrução cronológica de Penati, os fundadores do saber crítico moderno e, ao
mesmo tempo, os demolidores do saber tradicional, emblematicamente representado por
Aristóteles, seriam Francisco Bacon (1561-1626), G. Galilei (1564-1642), R. Descartes
(1596-1650). Nas obras destes grandes gênios da cultura ocidental, como demonstra
E.Cassirer, existiria uma certa inspiração ‘platônica’ comum, uma espécie de “scepsi”
socratico-platônico, que tem muito mais afinidade com a mentalidade moderna do que a
sistematica do saber aristotelico. O modelo cognocitivo da ‘nova ciência”, do novo saber
crítico, funda o sinal da evidência absoluta, ‘clara e distinta’, subtraída à toda dúvida presente
e futura, exclusivamente sobre relações matemáticas, quantitativas ou qualificáveis. As
observações realizadas com o telescópio e com o microscópio, a nova astronomia e a nova
mecânica, as experiências no vazio, a descoberta da circulação do sangue, as grandes
aquisições da matemática virando ao avesso a tradicional imagem do céu e da terra, bem
como do corpo e da mente do homem. A ciência moderna não nasceu no terreno da
generalização de observações empiricas, mas de uma análise capaz abstração, isto é, capaz
de abandonar o plano do senso comum das qualidades sensiveis, da experiência imediata. A
ciência ‘força os homens a imaginar’. Esta constrição, todavia, será na base de uma liberdade
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intelectual que por séculos foi desconhecida pela humanidade, mas que na Europa de Galileu,
de Descartes, de Newton, coseguiu modelar as instituiçoes da pesquisa. Hoje é totalmente
normal reter que, na ciència, ver quer dizer quase exclusivamente interpretar sinais gerados
por instrumentos, e que a melhor chave interpretativa é procurada na matemática. A pesquisa
seria inconcebível sem custosos laboratórios e potentes cmputadores. Galileu, porém, não
tinha à disposição nada destes instrumentos atuais, e se construiu um ‘tubo ótico’ para
descobrir montanhas na lua, satélites de Jupiter, e um céu povoado por inumeráveis astros.
Preparou para si sozinho os aparelhos e as máquinas das quais tinha necessidade para ”fazer
violência ao senso comum”, e colher as razões matemáticas dos fenômenos que andava
investigando. “A sede de conhecer vai diretamente à realidade das coisas.
Independentemente de modelos precedentes, o homem quer ver com os seus próprios olhos,
examinar com a sua inteligência e chegar a um juízo criticamente fundado. Isto vale para a
natureza e nascem assim a moderna experimentação e a teoria racional. Vale para a tradição, e
nascem assim a crítica humanista e a ciência histórica, baseada nas fontes. Vale para a vida
social e nascem assim as novas doutrinas do Estado e do direito. A ciência, como domínio
autônomo da cultura, afirma a independência frente àquela unidade de vida e ação que fôra
determinada pela religião. Do século XVII, com Descartes, o espírito científico da matemática
estabeleceu o seu domínio em novas bases, ousando até demonstrar a existência do Deus
cristão a partir da pura razão, como um princípio matemático.

2.2.4. Esta primeira etapa da ciência galileana e do racionalismo cartesiano, que adotava uma
rigidez matemático-mecanicista também na argumentação filosófica, que introduziu a
rcionalidade, o rigor lógico, a controlabilidade das asserções, a publicidade dos resultados e
dos métodos de pesquisa é substituida por uma segunda etapa na qual prevalecia o saber
histórico que ambicionava reformar, mudar e dirigir a história para um nível de bem-estar
seguro e de contínuo progresso da humanidade. “Foi, de fato, o saber hsitórico, entendido
numa nova dimensão crítica e pragmática, que dominou o horizonte do século das Luzes
como campo de prova da eficácia reformadora da Razão, e ao mesmo tempo como fonte de
novas prospectivas de interpretação da própia história da Razão e de seu eventual auto-juízo
sobre a eficácia socio-politica e de subrogação da fé
nela a respeito das velhas crenças. O século de G.W. Leibniz (1646-1716), G.B.Vico (1668-
1774), L.G.E. Lessing (1729-1781) e J.G. Herder (1744-1803) faz da história e da sociedade
humana o banco de prova e, ao mesmo tempo, o campo do eventual sucesso ou insucesso da
nova ciência e cultura toda critico-racional na tarefa de reconstrução radical do mundo
humano.
Para o fundador do saber histórico G. B. Vico, o cartesianismo, como cultura, tinha
dado uma importância quase exclusiva às disciplinas físico-matemáticas, que são reguladas
pelo critério da razão abstrata. Mas, por si, não existe somente uma cultura baseada nas
disciplinas matemáticas. Existe também uma cultura humanística e clássica, baseada na
poesia, na literatura, na arte, na história. A razão cartesiana ofereceria uma interpretação
unilaterial e, em última análise, mortificante da natureza humana. Esta, com efeito,
considerada na globalidade dos seus valores, não é somente razão, mas também sentimento,
intuição, fantasia, engenho e, em quanto razão, não é somente razão abstrata, mas é também
razão concreta, que torna razoável um âmbito bastante mais vasto que o da geometria e da
mecânica, ao qual, ao invés, o cartesianismo a restringia. O cartesianismo, na sua dimensão
filosófica, pode ser criticado quer no seu princípio, o ‘cogito’, quer no seu critério, a idéia
‘clara e distinta’. Do
Critério, que é totalmente subjetivo, não se pode tirar outra coisa senão “ceticismo
bastante disfarçado de verdade”; do principio do ’cogito’, que é presencialidade imediata e
pura constatação, não se pode atingir muita verdade para a construção da ciência reflexa e
9

consciente, pois que não se obtém ciência em sentido pleno, a não ser como consciência
reflexa e mediata.
No fundo.o critério cartesiano da idéia ‘clara e distinta’,se revela inadequado porque
concebe o conhecer intelectivo na medida que é a medida do conhecer sensitivo e, isto é,como
pura constatação de um presecialidade. O verdadeiro critério se deve procurar,invés, no
sentido da possibilidade e capacidade de explicar as coisas, que são a atividade específica e
propria da inteligencia.Se explicar uma coisa siginifica conhecer a sua causa,se tem uma
explicação plena e ,portanto, uma possessão crítica da mesma,somente quando se está em
grau de revelar não só a causa,mas o mecanismo mesmo da causalidade, o processo causal
próprio de modo tal de ser capazes de produzi-lo ou reproduzilo. Uma causa a se conhece a
fundo,quando se é capz de faze-la: ‘verum ipsum factum’.É esta a famosa fórmula
‘vichiana’,na qual a produtividade ou eficiencia é conhecida na esfera cognoscitiva e não na
existencial.Fazer objeto significa possuir com a mente os elementos,de modo tal de poder
recocstruir a estrutura. Neste ato de reconstrução se adquire a certeza crítica,a verdade pela
qual o conhecer e o fazer,o ‘verum e o ‘factum se identificam.
O conhecimento histórico, precisa Vico, adquire sua dignidade e seu caráter de
ciência na medidade em que se pode aplicar a ela o critério do ‘verum-factum’. A história
pode elevar-se à dignidade e ao valor de ciência, isto é, enquanto se apresenta conjuntamente
como certeza e como verdade, ou seja, enquanto é conjuntamente averiguação do certo e
certificação do verdadeiro. O certo é o que consta, ou seja o dado, o particular; não o dado
físico que se funda na natureza, mas o dado civil, como as leis, os costumes, as línguas, que
se funda na autoridade humana. O verdadeiro é o que faz saber de verdade, ou seja a razão,
o universal. Isso significa, então, que a história é filologia e filosofia.Se a razão e o universal
na historia são a própria natureza e mente humana, a pesquisa histórica deve, através da
vicissitude histórica (filologia), manifestar a concretude da mente humana (filosofia), dar
intrínseco sigificado à vicissitude histórica (filologia). Ora, a concretude da mente humana,
como se revela numa pesquisa feita, se desdobra segundo um rítmo que Vico define senso
(sentido), fantasia, razão e que se exprime em três momentos sucessivos do devir histórico:
idade dos deuses, dos heróis, e dos homens. De fato, escreve Vico, “os homens
primeirarramente sentem sem advertir, depois advertem com o ânimo perturbado e
comovido, finalmente refletem com mente pura”. Vico sustenta ter achado com isto a lei do
devir histórico, ou seja,”a história ideal eterna sobre a qual correm ao mesmo tempo as
histórias de todas nações”. Por ela se poderá, portanto, verificar a vicissitude histórica e
introduzir aquele ”deveis, deve, deverá’, sem o qual a história não é ciência.
Da observação da história da civilização se constata, segundo Vico, de uma parte, a
existência de uma despropoção entre os fins e os meios da ação humana, que é muito limitada
e bastante rude, e, de outra parte, o grande resultado da civilização que esta mesma ação
atingiu do curso dos séculos. Vico explica a heterogênese dos fins entre o que a ação humana
pode fazer e o que realmente fez com o recurso ao conceito de uma colaboração divina, isto
é, o conceito de Providência. Esta Providência possui dois carateres: é transcendente e
natural ao mesmo tempo. Quanto ao caráter da transcendência, se reconhce que as criaturas,
enquanto tais, são diversas e distintas da substância de Deus. Ao invés, quanto à naturalidade
dos interventos providenciais na história humana, se reconhece que a Providênncia não age
na história com intervenções extraordinárias e miraculosas. Há, sim, uma história em que a
Providência usa caminhos extraodinários e milagrosos, e é a história do povo hebraico; mas
esta, justamente por esta razão, não pode ser tomada em consideração, assim como não se
pode tomar em consideração a história do cristianismo como tal, sendo esta baseada na graça
e na ordem sobrenatural. Mas, na história dos outros povos a Providência age por caminhos
naturais, através do conhecimento e da vontade humana. Pelo fato de que a mente humana
conhece, venera, teme, ama um ser superior, isto é, Deus, os homens são capazes de superar
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egoísmos e paixões, de moralizar-se e civilizar-se. E porque o conhecimento e o amor de


Deus correspondem, de fato, aos constitutivos da religião, deriva a estreita e necessária
conexão entre a religião e a civilização. Trata-se, obviamente, da religião natural e não de
religião revelada ou do cristianismo. Em outros termos, se trata daquela religião que está
conexa com o conceito mesmo que os homens sempre se fazem de Deus, e que, por isso, se
encontra desde os inícios junto a todos os povos. O mundo dos povos, em toda parte,
começou com as religiões, enquanto o rude primitivo não pôde começar a desligar-se do
egoísmo e da paixão que o fechavam totalmente em si mesmo. Embora aberrantes e
imperfeitas, conclui Vico, tais religiões são melhores que o ateismo, porque com elas
surgiram luminosíssimas nações, mas com ateísmo não se fundou no mundo nenhuma.
Vale lembrar, finalmente, que não só a origem e os inícios da civilização estã
ligados à religião, mas também o seu progresso e a sua decadência. Se o nascimento e o
desenvolvimento das sociedades e da civilização são frutos da colaboração humano-divina,
então, o abandono de Deus e da religião comporta quase automaticamente a decandência da
sociedade e da civilização.

2.2.5. Mas a tentativa de extensão do poder da ciência ao mundo histórico e o nascimento do


projeto de uma ciência histórica, provocaram no iluminismo a crise da época do seiscentos
(século XVII),físico-naturalistico, da razão,e impeliram para a procura de novos fundamentos
do conhecimento. J.J Rousseau (1712-1778) e E.Kant (1724-1804) por um lado, e
G.W.F.Hegel (1770-1831), por outro lado, numa terceira etapa da história do pensamento
filosófico da modernidade, podem ser indicados como principais responsáveis destes novos
fundamentos, que predisporão a definitiva crise da modernidade.

2.2.5.1 Os inícios do pensamento de Rousseau consistem na recusa do postulado iluminístico


de que o progresso das ciencias e das artes tenha contribuído para purificação dos costumes e
na colocação em crise da confiança em uma relação automática entre progresso do
conhecimento e avanço ético da sociedade. O Emílio (1762) e o Contrato social (1762) serão
textos essenciais de referência para a revolução, primeiro ideológica e, depois, político-social
e educativa, de grande parte do século XIX. Na visão antropológica roussoniana é ao
sentimento e não à razão institucionalizada e impessoal que o homem deve atingir no mais
profundo sentido do viver, e a sua mesma fé religiosa entendida como fé moral imediata na
bondade da criação. Retornar à natureza, para o filósofo de Genebra, quer dizer
substancialmente realizar uma vida perfeitamente equilibrada, na qual exista um plena
correspondência entre a necessidades do homem e a sua capacidade de satisfazê-las, entre
aquilo que o homem sente e aquilo que o homem faz, entre seu instinto de conservação e as
ações aptas a satisfazer este instinto. A vida segundo a natureza é boa, não já por que haja a
vida social, má em si mesma, mas por que o homem no estado de natureza, não tendo ainda a
noção de mal, não tem a possibilidade de realizá-lo.

2.2.5.2. E. Kant, expoente emblemático da autonomia da razão humana, limitou o conhecer


ao campo dos dados espaço-temporais, ao campo dos fenômenos, e negou a possibilidade de
uma ciência da realidade em si, não fenomênica, isto é, de uma metafísica, atribuindo às
idéias da razão caráter de puras exigências subjetivas: eu, mundo, Deus. Ele deu valor às
exigências ínsitas no homem, tais como a lei do dever moral conexa necessariamente com o
postulado da liberdade do agir, e consideração estético-finalista da própria natureza. Para
Kant, o homem não é nem uma obra imperfeita de Deus, nem um produto natural do mundo.
A lei natural da geração dos seres vivos não é suficiente para fundar o princípio supras-
sensível da pessoa humana, porque a liberdade de determinar a si mesmo não pode derivar da
determinação, isto é, da causalidade da natureza. Mas, se ela não pode, de outra parte, nem
11

memo derivar do fato de que um Deus, fora e acima de nós, criou o homem à sua imagem e
o dotou, ao mesmo tempo, de liberdade de
poder se rebelar também contra a vontade de Deus, então, a existência do homem e de sua
liberdade permanece um enigma insolúvel. Frente à alternativa das possibilidades que dizem
respeito à origem do homem, ou mediante criação divina ou mediante evolução natural, Kant
escolhe a solução pratico-moral e afirma que o homem traz a própria origem de si mesmo e e
faz de si aquilo que é e deve ser autenticamente.
12

Ao homem foi assinalada a tarefa de criar a si mesmo como pessoa. Ele deve e pode
fazer-se tal porque é autonomo no ato no qual se submete a lei do dever. O fato de que o
homem, e somente ele, como ser sensivel-suprassenível possa conformar a si mesmo a Deus e
possa colocar-se infinitamente acima da esfera de sua e de toda natureza, é uma
possibilidade que permanec, mas, como um enigma. Kant nunca pretendeu aclarar a
causalidade da liberdade a partir de uma outra origem; reconheceu-a como um fato que foge
à compreensão e a chamou ”o mais assombroso de todos os enigmas”. Para a reflexão crítica
kantiana, Deus, a liberdade e a imortalidade não são tanto artigos de fé, mas “matéria de fé”
da razão pura prática. Em síntese extrema, pode-se dizer que o filósofo de Königsberg
subtraiu da filosofia a sua tarefa mais alta, a possibilidade da construção de um saber
metafísico.
A única autoridade que Kant admitia no campo doconhecimento e do juízo Moral era
a razão. O seu programa era:”Sapere aude!” Ousa saber, ousa investigar, ousa compreender.
Tem a coragem de servir-te de tua inteligência! Quando a razão aparece e se afirma como
única fonte de verdade e de entendimento, deve desaparecer a revelação, para a qual resta
somente a tarefa ou o mérito de ter operado como parteira da religião. Se o Evangelho,
escrevia o filósofo de Königsberg, não tivesse ensinado já antes as leis morais em toda sua
pureza e perfeição, seguramente a razão não as teria podido colher nesta sua perfeição. Mas,
uma vez que elas foram anunciadas e consequentemente conhecidas, elas podem se impor a
cada um com a simples força da razão. Também Lessing, no “Educação do gênero humano”
(1880), sustentava que a revelação não dá ao gênero humano nada que não lhe possa dar a
razão sozinha.

2.2.5.3. G.W.F. Hegel parte do princípio de que se se quer revitalizar a fé cristã e tornar
compreensíveis e aceitáveis as verdades dogmáticas é preciso traduzí-las em conceitos
filosóficos, é preciso racionalizá-las de qualquer modo. O homem deve crer em Deus, mas
deve também ‘pensar’ Deus, deve conseguir pensar a essência lógica de Deus, deve entender
em que sentido o Absoluto seja espírito-lógos. Pode-se dizer que a religião deve tornar-se
filosofia e a filosofia deve torrnar-se religião. A filosofia, em última análise, é a única
religião capaz salvar o homem. Se Deus não devesse ser conhecido, no sentido de ser
pensado, o homem que é espirito não poderia ineressar-se por ele, mas se interessaria
somente pelas coisas não espirituais, de coisas finitas. Uma filosofia, porém, que conhecesse
somente as coisas finitas não seria mais nem mesmo filosofia, seria um simples conhecimento
do mundo e do homem, seria areal no banco da areia do temporal. Para que a filosofia seja
filosofia, e isto é religião, deve poder pensar Deus.
Ora, quem pode pensar Deus que, só ele, é verdadeiro e eterno; que, enquanto Espirito
e Absoluto, não comparece na natureza, a qual é somente qualquer coisa de casual, de caduco,
é um nada em si e por si, um agregado de finitudes, que não possui em si mesmo um ser
verdadeiro e eterno? O animal, em realidade, não tem religião, porque não possui o
pensamento.Quem pensa se eleva ao sobre-sensível, ao universal, ao espiritual, e o animal não
pode elevar-se a tanto, porque permanece no âmbito da intuição e da observação sensivel do
ambiente circunstante.O animal não pensa, não pensa a si mesmo e, portanto, não pode pensar
nem mesmo Deus e o mundo. Somento o homem pode pensar Deus porque somente o
homem é espírito, é um ‘eu’ consciente que pode abstrair o particular do todo, e ate da própria
vida. Somente o homem pode deixar tudo, até mesmo a própria vida, pode cometer suicídio.
O animal não o pode. O homem enquanto espirito, está em condições de se opor ao instinto
natural de autoconservação da própria vida. Como ser espiritual pode sair de si, ou ‘ex-sitere’
e retornar de novo a si. Este sair de si em uma materia extrinseca se realiza em toda sua
atividade com a qual ele cultiva a matéria, a transforma segundo um seu projeto, uma sua
idéia. O animal não transfigura nada,não transforma nada, mas cosume tudo.Os animais não
13

produzem um segundo mundo do espírito e da história, mas vivem e consomem o único


mundo no qual eles se encontram.
Pelo fato que Deus é espírito, ele pode ser pensado somente por um espírito, isto é, somente
mediante o homem que é, justamente, espírito por essência, e não pela natureza, que não
possui nenhuma relação esporitul com Deus. É preciso, então, superar a concepção clássica
dos gregos,que colocavam no centro da realidade o cosmo, a natureza, considerados como
um todo orgânico e completo, e colocar no centro da mesma realidade o homem. Para este fim
a primeira e mais importante verdade de fé que deve ser traduzida em um conceito filosófico é
a Encarnação de Deus. Com esta e em seguida a ela, se pode passar de uma cosmo-teologia
que colocava no centro da realidade a natureza e o cosmo, e divinizava em certo sentido esta
mesma natureza e este cosmo, a uma antropo-teologia, na qual Deus, uma vez que se
manifesta em cado homem histórico, manifesta também que o homem como tal é
essecialmente de natureza divina, que natureza divina e atureza humana são idênticas por
essência, de uma identidade dialética na qual Deus possui a sua autoconsciencia no homem.
O homem é aquele que pensa Deus, e só por isso, ele é o caminho de Deus, enquanto
possui uma natureza espiritual e porque Deus se encarnou num homem e não na natureza O
homem é o camnho de Deus, porque somente ele é espírito. Somente o homem, que conhece
Deus e a si mesmo, foi feito à imagem de Deus. A natureza é obra de Deus e, portanto, é um
ser-outro, exterior e finito, da idéia absoluta e do espírito infinito. O mundo não é o cosmo
eterno, não possui em si mesmo um ‘logos’, mas é criado, é obra de Deus, não é a ‘natura
naturans’ originária mas ‘a arte de Deus’, a criação de Deus. O dito délfico “conhece a ti
mesmo’, significava em concreto: reconhece que tu, enquanto homem, és somrnte um mortal
e não um Deus imortal ou um cosmo eterno. Isto é, portanto, um convite a permanecer no
âmbito do que é finito, a permanecer no mundo. O cristianismo, ao invés, abre o coração do
homem ao coração de Deus, a mente do homem à mente de Deus. Abre o homem ao
Absoluto, a Deus. Segundo Hegel, todas as maravilhas do céu estrelado são um nada em
confronto com o homem que, mesmo no seu pensamento mais delituoso, manifesta ser um
espírito e, como tal, de poder conhecer Deus. Definitivamente, a grandeza do homem não
está no fato que ele é obra das mãos de Deus, mas no fato de que ele pensa. A dignidade da
imagem está no pensamento e não na liberdade, na razão e não na vontade. Esta realidade
pode estar na base do sentimento de humildade da criatura diante de Deus, mas também do
totalitarismo da razão que torna real toda atrocidade racional.

2.3.A causa da modernidade.


Na passagem do exame não tanto do início temporal,mas da causa da modernidade, é
conhecido como K.Löwith sustenta que ela está cercada de complexas vicissitudes do
processo de secularissação da fé cristã. Segundo o estudioso de Heidelberg, durante todo o
período compreendido entre a ‘Cidade de Deus’ de Santo Agostinho, no século V, e o
‘Discurso sobre a história universal’ de Jaques Bénigne Bossuet, em 1681, a história foi
interpretada providencialmente. Pensava-se que ela fosse guiada por Deus, e em última
análise se interpretavam as vicissitudes do mundo e do hmem segundo uma concepção
teológica da história. A começar com Voltaire, e chegando até Hegel e Marx, a teologia da
história lentamente se transformou na filosofia da história, e a idéia da providência divina que
guia o curso da hitória foi substituída pela idéia do progresso da humanidade em seu
desenvolvimento histórico. O sujeito e o guia da história, no interior de uma visão filosófica e
laica do mundo, não é mais Deus, mas o homem ou a humanidade.
2.3.2 - Hans Blumenberg, que provinha da escola fenomenológica de Husserl, contestou
violentamente a tese de Löwith segundo a qual o nascimento da cultura moderna
corresponderia à secularização do cristianismo, porque neste caso toda a cultura moderna
seria ’ilegítima’: “se a idade moderna fosse pela sua entidade histórica um bem secularizado,
14

então, ela deveria compreender a si mesma como uma quinta essência do que por si não
deveria ser. Então seria uma especie de culpa cultural objetiva”. A tese de Hans Blumenberg
é que, ao contrário, através da evolução da idéia cristã de Deus na tardia Idade Média,
desembocada num absolutismo teológico, o homem teria sido colocado em meio a tantos
apuros, que deveria se revoltar, num ato de autoafirmação humanística, contra o Deus cristão.
A exaltação da idéia de onipotência da doutrina ockamista do poder absoluto de Deus, unida
à discricionalidade da predestinação divina, teria privado o homem de toda colocação sensata
no contexto do mundo, assim que, ao homem teria permanecido somente a alternaiva da
rebelião contra este Deus. A qualidade espiritual da “curiositas” poderia ser um vício para o
homem da Idade Média, porque o distraía da contemplação de Deus, mas é certamente uma
vitude para o homem moderno, porque constitui a mola secreta da vontade de saber, de
querer, de construir.
Esta controversia sobre a legitimiidade ou não da modernidade continua
ainda hoje e existe ainda muita incerteza, por exemplo; na avaliação se foi a secularização que
produziu o nihilismo ou se foi o nihilismo que trouxe a secularização. Em outros termos
pergunta-se: é a secularização que produz o niilismo ou o nihilismo que revela a
secolarização?
Para o filósofo F.Botturi, segundo uma primeira interpretação, se admite que a
secularizan não nasça como antítese ao cristianismo, mas, sim, como sua deslocação em
relação a interesses vitais, não percebidos mais, existencialmente e depois teoricamente,
como representados pela fé cristã. Poder-se-ia dizer que ela nasce como projeto de um
humanismo paralelo e depois alternativo ao cristão, em seguida ao fenômeno epocal da “crise
da consciência européa’ que contibuiu para não mais poder identificar no humanismo
cristocêntrico o modelo e a garantia da identidade e da universalidade do humano. Deste
ponto de vista, a grande epopéia do racionalismo moderno, de Descartes a Hegel, pode ser
lida como procura progressiva e invenção de figuras alternativas ao humanismo teológico, na
crescente consciência da necessidade de uma recompreensão especulativa do crisianismo, ou
de sua transcrição em termos primeiro éticos (como em Lessing e Kant) e depois metafísicos
(como em Hegel). A secularização atinge assim o seu apice de um modo ainda religioso, mas
já segundo uma chave ética e metafísica, que se quer superior e, por isso, capaz de ‘demitizar’
a sacralidade resídua da religiosidade tradicional para salvar o essencial compatível com a
racionalidade moderna. O humanismo cristão seria derrubado : Cristo não é mais sacramento
de salvação do homem, mas figura do humanismo realizado. O que é de Cristo e de sua
Igreja pode ser atribuido à razão e ao seu devir histórico como espírito.
Segundo uma outra interpretação, a secularização pode ser, por isso, também
manifestação do nihilismo, quando este assumir o papel de figura originária do Ocidente,
produzida e concebida pela vicissitude da aparente contraposição do religioso hebraico-
cristão e do cientifico-técnico moderno. Nihilística é pretenção do ‘platonismo’ da
consciência ocidental de objetivar metafisicamente o divino e de dominar tecnicamente o
mundo. Objetivação e dominação que sobrepõem constantemente ao longo da história do
Ocidente, e especialmente por obra do cristianismo, qual potente gerador de objetivismo
teológico e, por obra da nova ciência e do corolário tecnológico, como fatores de produção
expansão da atitude dominativa do homem.

2.3.3. Para o teólogo Pannenberg, as tentativas de Blumenberg e Barth de explicar a ruptura


epocal entre Idade Média e modernidade em termos de história espiri-tual, que interpreta a
modernidade como uma rebelião da auto-afirmação mística contra o absolutismo do Deus
cristão, seriam somente algumas entre muitas tentativas de hermenêutica da história.
Também Hegel teria considerado o mundo da idade moderna como uma realização profana
da liberdade cristã reproposta pela Reforma. F.Gogarten teria derivado a origem da cultura
15

moderna da distinção própria da Reforma entre reino temporal e espiritual, com limitação da
Igreja à sua tarefa espiritual. Max Weber teria colocado as raízes do capitalismo na
secularização da ética calvinista, na sua subordinação a uma aspiração puramente profana ao
sucesso.
Todavia todas estas tentativas, seja por Pannenberg, seja por outros
motivos, pelo já citado históriador alemão Reinhart Koselleck, devem ser considerdas falidas.
O teólogo luterano de Munich da Baviera, sustém de modo particular que “foram as
consequências não queridas pela Reforma no plano da história mundial que criaram a posição
de partida para o nascimento do universo cultural secular da modernidade. A ruptura da
unidade da Igreja desembocou emn um período de guerras por motivos confessionais e por
contrastantes interesses civis, as quais após um prelúdio na Alemanha, a guerra de Smalcalda
dos anos 1546-1547, passando pelas guerras dos huguenotes na França e pela guerra
começada em 1566 nos Países Baixos, durou até o fim da guerra dos Trinta Anos na
Alemanha. Durante a fase final da guerra dos Trinta Anos teve lugar na Inglaterra, a partir de
1640, a revolução puritana que levou à execução capital do rei inglês Carlos I e à devastadora
campanha para a submissão da Irlanda nos anos de 1649 a 1650”. Ora, uma das consequências
mais importantes destas guerras de religão foi a convicção de que a unidade da religião não
mais podia ser a base eficaz da paz social, e que esta base precisava, então, ser procurada
alhures. Ugo Grotius, por exemplo, procurou individuar a base da ordem social e também da
paz entre os estados no direito natural e, em conexão com isto, em uma religão natural
comum a todos os homens. Nascia o que Wilhelm Dilthey chamou de “sistema natural” das
ciências do espírito: os conceitos fundamentais do direito, da religião, da moral e da política
viriam reformulados sobre o terrenos da pergunta sobre “o universalmente humano”, sobre a
“natura” do homem. Em lugar da religião, que estava fundamentada sobre uma autoridade
transmitida, deveria tornar-se a base da ordem pública e da paz social aquilo que é comum a
todos os homens, isto é, a “natura” do homem. Esta evolução no modo de considerar a
natureza humana e a religião tornar-se-ia o ponto de partida do desenvolvimento de uma
cultura secular na Europa.

2.3.4. Pannenberg, ao sustentar esta tese sobre a origem da cultura secular européia, fazsua a
aanálise do historiador americano Theodore K. Rabb, da universidade de Princeton, o qual
apresentou em 1975 uma pesquisa sobre os estudos que,, a partir da II Guerra Mundial, se
ocuparam com os fenômenos de crise nos séculos XVI e XVII na Europa, e com a virrada
epocal e o novo início depoisda metade do ´sculo XVII. O ressultado desta pesqueisa foi que
afase das guerras de religião, que termina no segundo terço do século, e especialmente, o
período da Guerra dos Trinta Anos na Alemanha constitui um profundo corte no curso de toda
a históoria européia. Em seguida a este rompimento o comportamento dos homens assume
uma atitude radicalmente nova, determinada sobretudo pelo regresso da intolerância religiosa.

so de toda a hstória européia. E seguido a esta censura ocomportamento dos homens assumiu
uma atitude radical . Até aproxximadamente 1631 teria sido ainda uma coisa totalmente
impensável que se formassem coalizões políticas com o adversário da própria parte
16

confessonal. Mas quando, algum ano mais tarde, o cardeal católico Richelieu se aliou com o
protestante Gustavo Adolfo da Suécia, a voz de protesto de Inocêncio X contra a paz de
Westfalia de 1648 foi inteiramente não ouvida. Dede então toda intromissão da religião na
política estaria destinada a fracasso seguro. A revogaçâo do Edito de Nantes na França
em1685 e conexa repressão aos huguenotes foram uma ultima explosão de intolerância
religiosa.

2.3.5. Em conclusão, até agora estavam acostumados a considerar o Renascimento italiano


do século XV ou também a Reforma protestante do do século XVI, ou a fundação do saber
crítico moderno da parte de Bacon, Descartes, Galileu Galilei, como as mais profundas
cesuras no caminho da história europea moderna. Ora, ao contrário, de uma parte, as
pesquisas mais recentes sobre século XVII pareceriam concluir que a mais importante
demarcação epocal moderna foi o fim do período das gerras de religão. Em todo caso, a
origem do ordenamento secu-larizado da sociedade e da secularização da cultura oficial na
Europa remonta ao tardio período seiscentista, e não mais ao Renascimento. Os resultados da
pesqui-sa de Rabb sobre a importância do Século XVII como virada da história euro-péia,
portanto, não fariam senão confirmar as pesquisas sobre a história espiritual espiritual de
Wilhelm Dilthey, segundo as quais o primeiro e mais potente motor da nova orientação do
pensamento para a natureza comum dos homens no século XVII se encontra na rachadura da
Igreja e nas devastadoras guerras de religião. Da outra parte,os estudos de Koselleck sobre os
séculos XVIII e XIX e sobre as grandes revoluções políticas e industriais que as caracterizam,
colocam à luz que é propriamente o Século XIX o século no qual a modernidade atinge a sua
maxima potência e de fato adquire o próprio nome de ‘modernidade’.
Não de pode não levar em consideração, portanto, que hoje exista um difuso consenso
a respeito do papel decisivo desenvolvido pelas guerras de religião consequente ao
rompimento da Igreja do Ocidente. A necessidade de sair da desvastadora condição de
conflitualidade longamente alimentada pelas diversas confissões que, na mesma verdade
revelada, uma apelava contra a outra, pode efetivamente ser interpretada como um elemento
determinante no dirigir progressivamente a moderna consciência européia, de uma parte, a
desatar o nexo que vinculava religião e sociedade e, de outra parte, a fundar o ordenamento
estatal, jurídico, ético e religioso desta última não mais na referência à revelação e às diversas
modalidades de acesso a ela, mas sim na universal natureza humana e na consciência
emancipada da referência à revelação. A nosso parecer, porém, seria necessário reconhecer
que cada um dos períodos indicados tem a sua importância na causa da mudaça epocal da
modernidade, mas nenhum deles poderia ser considerado “a única” causa de um fenômeno
tão complexo e tão extenso no tempo. Seria mais profícuo falar de uma série de causas que
agiram de modo diverso e em tempos diversos para criar um novo estágio cultural. A idade
moderna é, portanto, maturada a partir de um série de tradições diversas, que se podem
combinaar entre si, mas que também conservam sempre uma sua especificidade e
originalidade.

2.4. A natureza da modernidade.

Finalmente vindo a considerar a ‘natureza’ da modernidade, poder-se-ia antes de mais


nada convir com a análise feita pelos jesuítas da ‘Civiltà Cattolica’ segundo a qual ela, ”sob o
aspecto cultural, é subjetivismo, autonomia da consciência, primado da razão, imanentismo,
liberdade absoluta, progresso indifinido; sob o perfil político, é democracia liberal, distinção
entre politica e religião, separação entre Estado e Igreja, privatização da religião, primado da
lei e igualidade de diretos; sob o perfil científico, é a absoluta confiança na racionalidade
ceintífica e, portanto, na capacidade da ciência e da técnica de levar a humanidade a um nível
17

sempre mais alto de progresso e de bem-estar material; sob perfil social, é mobilidade e
mudança contínua, é incessante superação e renovamento dos modelos anteriores, é cultura
de massa mediante a difusão capilar e gigantesca dos meios de comunicação social; é
dissolução da família patriarcal e redução da fecundidade; é passagem da civilização
colonial, rural, à civilização industrial, urbana”.( Cf. La Civiltà Cattolica, La fede cristiana nel
póstmoderno, in L’uomo e il suo destino,cit, 288 Il sociologo della politica contemporânea Luciano Pellicani,
nel saggio Modernizzazione e secola-rizzazione, Il Sagggiatore 1997).
As passagens que caracterizam a modernidade, assim como elencadas pela descrição da
revista dos jesuítas, seriam: com o Renascimento, a passagem de uma visão teocêntrica,
religiosa e sobrenatural a uma visão antropocêntrica, terrestre e naturalistica; com Copernico,
de uma visão do universo tendo no centro a terra a uma visão tendo como centro o sol; com
Gallileu, passagem do critério de verdade baseado na autoridade àquele baseado na
experiência e na experimentação cientifica;
com Bacon, do saber como contemplação e como prcura da verdade ao saber como poder
sobre natureza; com Macchiavell, passagem da política sejeita a lei moral à política
desvinculada de toda norma moral; com a Reforma, de uma religião objetiva da Igreja ao
subjetivismo religioso de cada um. Num estágio sucessivo, que abraça os séculos XVII e
XVIII, a modernidade é caracterizada por quatro grandes revoluções: a cultural que,
assumindo os movimentos de Descartes e indo até Kant, possui a máxima expressão no
movimento do iluminismo, que opõe a luz da razão à obscuridade do mistério e do dogma e
faz da razão humana a norma única suprema do verdadeiro e do justo; a revolução científica,
inaugurada por Galilleu com as descobertas no campo físico e astronômico, e sobretudo por
Newton, com a formulação da gravitação universal; a revolução política, cujo núcleo central
está na mudança da fonte e da legitimação do poder político, enquanto quem funda e ligitima
o poder não é mais Deus, como era na teoria do poder divino dos reis, mas o povo, tornado
nação através um contrato social. Esta revolução política encontra a sua expressão histórica
nos últimos trinta anos do período setecentista com a revolução americana (1776) e com a
francesa (1789); a revolução industrial, iniciada na segunda metade do século dezessete na
Inglaterra com a introdução, na atividade produtiva, de novas máquinas (a máquina a vapor),
de novas fontes de energia (o carvão fóssil) e de novos meios de transporte (a ferrovia), e
com a nova organização do trabalho (a fábrica capitalista), que levou à concentração nas
cidades de numerosos assalariados provindos dos campos (urbanização) e, portanto, à
criação de um vasto proletariado urbano.
De nossa parte, porém, queremos propor algumas leituras transversais da mesma, de
caráter ontológico, ético-histórico, escatológico, das quais salta com toda evidência como,
com efeito, se confirma a já ilustrada pluralidade de registros para interpetrar e datar este
importante fenômeno histórico e cultural.

2.4.1. O caráter ontológico da modernidade: Romano Guardini.

Partimos o exame do caráter ontológico e apresentaremos, em primeiro lugar, a


sugestiva descrição clássica que Romano Guardini fez da época moderna. Para o grande
pensador ítalo-alemão, a época moderna inicia no curso do século XIV italiano. A começar
deste periodo histórico, a visão simbólica do mundo vem colocada a partir da visão critico-
positiva através da observação, da experiência e a teoria racional, e substituída com a visão
do mundo natural, cientifícamente acessível e tecnicamente dominável. Segundo Guardini,
neste período histórico a unidade da imagem medieval do mundo se dissolve. Esvai-se a
natureza imediata e óbvia com a qual diversos campos da existência e da criação humana
eram solidáros naquela unidade. Esvai-se a segurança com a qual o pensamento e a ação
passavam de uma dimensão a outra: do plano sobrenatural da fé para aquele do conhecimento
18

natural do mundo; dos territórios da ética para aqueles da arte; da filosofia para para a política
e assim por diante. Diminui aquela desenvoltura que permitia aplicar os critérios e as regras
de um setor a outros, e de colher resultados e conquistas de uma certa forma de aproximação
à realidade em outras.
Guardini, com uma leitura sincrônica da história do pensamento filosófico ocidental,
individua os elementos fundamentais da imagem moderna da existência no modo
característico de conceber a natureza, a subjetividade, a cultura: “à pergunta em que modo
exista o ser, escreve ele, a consciência moderna responde: como natureza, como sujeito e
como cultura. A estrutura destes três momentos indica alguma coisa de radical, além da qual
não é possível colher mais nada. É autônoma, não tem necessidade de justificação e não tolera
norma acima de si. Tal resposta vem de um conjunto da idade moderna e não depende por
isso de pensadores individuais. Ela exprime uma atitude geral de vida e de pensamento
dentro do qual o singular nasce e de fronte do qual é chamada a decidir. Semelhante a um
‘habito’ preexitente de sensibilidade comum ou a uma comum posse hereditária, ela incide na
consciência de cada um até quando se a rejeita. Vejamos um pouco mais de de perto estes
três absolutos da modernidade.

2.4.1.1. O conceito moderno de ‘natura’ começa a partir da Idade Média tardia, isto é, a
partir do momento no qual se iniciou a dissolução da estrutura medieval no Renascimento, e
atingindo o seu comprimento no século dezassete. A partir do Renascimento, a natureza é
compreendia como “uma unidade fechada‘ da existência e de sentido, como totalidade em si
estante (autônoma) e por si suficiente (autárquica). Assim, como dado singular, diante do
qual não somente é impossível, mas não é permitido nenhum recurso a outro: ao invés, é
pedido voltar-se totalmente a ele”. A natureza “designa a totalidade das coisas, de tudo o que
existe. Mais exatamente: de tudo o que existe antes do homem fazer alguma coisa. E portanto:
as estrelas, a terra, as suas plantas, os seus animais, e também o homem enquanto realidade
orgânica e espiritual. Tudo isto se oferece à experiência como qualquer coisa de profundo, de
potente, de magnífico: como uma plenitude de vida à disposição” (ibid.). A observação, a
experimentação e a interpretação dissolvem a idéia medieval de um mundo religiosamente
ordinário, e, ao contrário, emerge a concepção de um mundo ’natural’, científicamente
compreensível e tecnicamente dominável”.
Guardini nota que o carácter simbólico da criação na Idade Média era sentido tão
vivamente que a realidade das coisas arriscava, de fato, de não ser tomada em consideração.
Consequentemente, para o homem medieval o finito não era senão inautêntico reflexo do
Absoluto, e o tempo não era senão um limiar não essencial da eternidade. O Absoluto é tido
de tal modo importante e decisivo que o finito passava sempre para segunda ordem e não
tinha nenhum valor próprio. A consciência revaloriza o valor da realidade finita e temporal e
acompanha esta valorização do finito com tomada de consciência de que o mundo já foi
confiado à mão do homem; Com o início de era moderna o homem deu um passo irreversível
para uma nova responsabilidade a respeito do mundo. Pode-se afirmar que, em relação ao
mundo, em relação ao mundo, o homem moderno já está maduro.
Na concepção de Guardini da mordenidade, a natureza indica o que é ‘natural’, ou
seja, o justo, o são, o perfeito e é contraposta ao ‘inatural’, que é artificial, desviado, malsão,
corrompido. A natureza é o dado por excelência e, justamente por isto, é o dado exclusivo, é a
norma ‘tout court’, o natural. Consequentemente existe na modernidade uma vida segundo a
naturza representada na história pelo espírito do conceito de ’bonnête homme’ (a idéia do
homem justo) dos séculos XVI e XVII, do coinceito do ‘homme de la nature’ de Rouseau, do
conceito de vida ‘racional’ do iluminismo, e da beleza ‘natural’ do classicismo. Além disso, o
conceito moderno de natureza exprime algo de supremo e de radical: tudo o que é deduzido
da natureza é considerado definitivo, é tudo que se funda sobre ela já é justificado em si. E
19

porquer anatureza carrega em si um arcano caráter de principio de fim, tem uma grande
dimensão de mistério e torna-se o “Deus-natureza”, objeto de religiosa veneração. Ela é
louvada como criadora, sábia, bernigna; é a “mãe-natureza”, à qual o homem deve se
abandonar com absoluta confiança. portanto, o que é natural é sagrado e religioso a mesmo
tempo.
Um último caráter da natureza como é concebida na época moderna é a
autosuficincia. Ela subsiste em si mesma e por si mesma; na prática, não tem causa. A
causalidade, enquanto tal, vige somente no interno de cada componente da natureza, nos
processos da natureza, não na natureza como totalidade. Além da natureza, não há nada pelo
simples motivo de que ela, como tudo, não tem nenhuma causa, mas simplesmente é, existe.
Os conceitos de criação e de senhorio divino não mais servem para explicar a origem das
coisas. Deus vem absorvido no próprio mundo como seu fundamento e seu mistério e,
portanto, o mundo pode se considerar como fundado em si mesmo. “Na prrimeira impressão,
escreve Guardini, Deus aparece como desponteciado (sem poder). Para a experiência
imediata, Ele frente ao mundo perde valor de realidade, imponência e força de significação.
Em compensação, este mundo, aparentemente finito, aparentemente absoluto, começa a se
sentir autosuficiente”. O homem modernio parece estar convencido de que “nem na periferia
do mundo existe um espaço livre onde haja alguma coisa de supramundano, nem no íntimo
do mundo haja uma lacuna, onde possa entrar qualquer coisa de extramundano.” Para a
consicência religiosa anterior à epoca moderna, a representação da periferia e da lacuna eram
a representação de um espaço vazio do mundo no qual entrava Deus, mas não é assim para a
consciência moderna”.
Em síntese, o conceito de natureza, segundo o pensador ítalo-alemão, exprime
qualquer coisa de supremo, além do qual não se pode ultrapassar. O que se pode deduzir
disso é considerado definitivo. O que tem um fundamento natural é justificado de per si. Tudo
isto, porém, não signfica que a natureza possa ser compreendida em si. Ela possui um caráter
misterioso de causa originária e de fim último. Ela é ‘Deus-natureza’, como já vimos, e
objeto de grande respeito e religiosa veneração.

2.4.1.2 Além do conceito de natureza, nascida nos tempos modernos, também mudou
radiclmene a visão do homem, isto é, do ”sujeito”. Enquanto a antropologia medieval
interpretava o homem como criatura de Deus, a moderna procura libertar o ser humano de sua
ligação com o Criador. O conceito-cheve da moderna visão do homem é o conceito de
autonomia que, segundo Guarnini,suge no renascimento. A autodeescoberta do homem, a
consciência da liberdade e da força criativa levam ao sentimento de que o homem seja medida
de si mesmo e de seu agir, senhor de seu ser. Para a verdade, já para o fim d Idade Média,
existiam os pressupostos da idéia de autonomía, então a subjetividade começou a aparecer
antes de mais nada como ’personalidade’ e o homem começou a se compreeder de maneira
nova, como algo de importante e interessante, como dono de si. A ‘personalidade’ adquiriu
um papel autojustificante, diante do qual as normas éticas perdiam o caráter de absoluto e se
tornavam relativas. Os grandes perssonagem pensavam ter em si a lei da própria existência, de
serem, de algum modo, leis por si mesmos.
De qualquer maneira, no sistema kantiano a definição de autonomia adquire a sua
maior clareza. “Nela encontramos a expresão mais aguda na filosofia de Kant, escreve
Guardini, pela qual o sujeito lógico, ético e estetico é um elemento primordial, além do qual
não se pode conceber nada mais. Ele possui o caráter de autonomia, está fundado em si
mesmo e estabelece o sentido da vida do espírito”. Este conceito kantiano de sujeito lógico,
ético e estético se insere no mais amplo contexto do espírito iluminista, que visava levar o
homem à emancipação, à autonomia do pensamento, e encontra a sua elaboração
respectivamente nas três grandes Críticas, a da razão pura, a da razão prática e a do juízo.
20

Estas tratam, respectivamente, sobre o conhecimento da moral e da arte, ou seja, do


verdadeiro, do bom e do belo. A sua mensagem conjunta consiste na separação das três
noções ou esferas uma da outra, e no reconhecimento de sua autonomia. O conhecimento
vinha de tal modo emancipado da autoridade da Palavra, a moral da obediência forçada aos
imperativos eterenômos e, em fim, a arte vinha liberada de qualquer limitação que a relegava
a instrumento de puro entretenimento ou de glorificação dos poderosos. Parece que Max
Weber foi o primeiro que caracterizou o conceito de modernidade nos termos da autonomia
das três esferas kantianas de conhecimento, de moralidade e de arte.
Guardini colocou bem em evidência que Kant entende por sujeito lógico,
ético,estético, algo de radical, um senhor absoluto do mundo espiritual. Além do sujeito, nada
há em que se possa firmar. A natureza, ou seja o objeto que é a realidade em si das coisas e do
mundo, se apresenta ao homem como um caos. O sujeito lógico transforma aquilo que seria
um caos, mediante a preparação e a prescripção de leis corespondentes. As leis da natureza,
em última análise, são as leis impostas pelo próprio intelecto, porque o intelecto com suas
categorias começa a constituir o objeto da experiência.
Fichte terminou por radicalizar o pensamento idealístico até o ponto em que, na sua
visão, o sujeito tornou-se ato que põe o objeto O sujeito é o eu enquanto põe o não-eu, o
outro de si. Com Hegel, depois, o sujeito chegou ao vértice da pura teoricidade, e a realidade
‘objetiva’ foi assimilada em diverso modo ou reconduzida à atividade do sujeito.
Na prática da autonomia, o critério de um vínculo objetivo, que existe nas próprias
coisas, foi substituído por aquele da autenticidade pessoal, e aquele de uma verdade
universialmente válida por aquele da própria convicção. A autonomia, para o homem,
significa que ele age como se Deus não existisse. E como se toda a realidade existente se
exaurisse na história humana, fechada para qualquer abertura ao trascendente, e
completamente autosuficiente em si. O conceito de autonomia, além disso, exprime a idéia de
que o homem é lei para si mesmo, que, portanto, as normas morais não lhe são impostas do
exterior como obrigações eterônomas, mas são desenvolvidas por ele mesmo pela força de
uma razão. O homem autônomo é aquele que está em harmonia com a lei que ele mesmo se
deu, de modo que o conceito de economia termina por significar autodeternação formal.
Enquanto o homem não era ainda de maior idade, Deus era necessário para encontrar o
sentido de sua vida. Mas, apenas ele se tornou de maior idade, Deus se tornou um obstáculo
no caminho da sua plena realização. Segundo Guardini, as últimas consequências deste modo
de conceber a autonomia do homem “F. Nietzsche as deduziu quando declarou que o homem
já estava mduro para assumir por si aquelas iniciativas e aquelas responsabilidades que antes,
ainda imaturo, tinha colocado numa divindade. De agora em diante, o homem tem de ser a
instância absolutamente decisiva: e de modo tão total que ele será capaz e se empenhará não
só em descobrir as normas e os valores, mas ele as criará”.
Como se vê claramente, a afirmação da autonomia do homem se fundou
essencialmente numa falsa concepção de Deus, porque se pensou que este fosse um “outro”,
e não já “Outro” que, como ser transcendente, não entra nunca em concorrência com o
homem. Na realidade, Deus é aquele que faz do homem uma pessoa, pelo fato de que só Nele
o ser pessoal encontra o seu fundamento ontológico. Se o homem renega este fundamento,
renega também a possibilidade de realizar-se segundo todas as suas potencialidades de ser
livre e racional. A autonomia que, segundo a modernidade, devia dar ao homem a plena
liberdade e o domínio de si, conduziu na realidade à escravidão da técnica, da massa, do
estado totalitário, e de suas forças anônimas.

2.4.1.3 Em fim, relativamente ao conceito de ‘cultura’, Guardini sustenta que a obra


cultural da época medieval era orgânica, porque no modo pelo qual o homem compreendia a
natureza, comportava-se diante dela, a utilizava, lhe imprimia uma forma, se esbelecia uma
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espécie de equilibrio entre a razão, o instinto e a imaginação. Este equilibrio se rompeu pela
metade do século XIX. Até então, de fato, a obra da cultura humana não alterava a natureza
no seu profundo significado, não a destruía. Ela permanecia de certo modo quase ‘natural’, e
tinha o poder de unir-se à natureza sem, de outra parte confundir-se com ela, pois natureza e
cultura são duas coisas distintas e como tais devem permanecer. Da metade do século XIX em
diante, a obra cultural cessou de orientar-se para o ‘orgânico’, e o seu ponto de partida tornou-
se a força natural isolada, concebida racionalmente e tornada eficaz em virtude da máquina.
Esta última outra coisa não é senão a razão traduzida em aparelho. A medida humana e
natural é substituída por uma lógica racional e mecânica.
A orientação cultural da modernidade se separou e se afastou gradualmente da
Revelação. Na medida em que o mundo cessou de ser criação e tornou-se natureza, a obra do
homem cessou de ser um serviço a Deus e tornou-se manipuaçõa de objetos. O homem, de
servidor tornou-se criador e se fez senhor da própria existência. Na sua vontade de cultura, ele
emprendeu a construção da existência como obra própria. A cultura começou ser
compeendida como um todo autônomo e autarquico. Consequentemente, com o início dos
tempos modernos, se desenvolveu um vasto e autônomo setor de cultura (ciência, economia,
política, arte, pedagogia), que se desvinculou dos laços com religião e proclamou a sua
independência diante de Deus e da Revelação. Os diferentes setores do conhe-cimento, da
ação e da criação construíram suas própias leis.
A obra do homem progressivamente absorveu e reivindicou para si o significado que
antes era atribuído à presença e obra de Deus no mundo. De Galileu em diante, a criatividade
não se referiu mais à inteligência criadora superior, mas ao homem que se colocou no lugar do
Criador e se autoconstituiu como criador. A Revelação cristã, então, cessou de ser
concebida como base da existência humana, e não mais determinou de maneira decisiva o
desenvol-vimento da cultura e da história. A autonomia da cultura consiste no fato de que
toda a atividade cultural se desenvolve fora da relação de obediência a Deus, e declarada
como uma criação idependente e soberana. E, não obstante, a ciência, a técnica e tudo o que
delas deriva, foram possíveis somente por meio do cristianismo. “Somente porque o homem
vem ao ser por chamado de Deus e subsiste em tal chamado; porque ele é o ‘tu’ evocado por
Aqule que chama a si mesmo ‘Eu sou’, se dá a possibilidade de que possa crer-se um ‘eu’
autônomo. Somente porque o Deus Criador realmente colocou mão na obra do mundo, o
homem pôde chegar a pensar de ter a construir uma autônoma cultura.” (Cf. Guardini,
Mondo e persona, cit.Ignázio Sanna, Antropologia cristiana tra modernità e posmodernità, Queriniana, Brescia,
2001, p.19; idem p.83). Segundo Guardini, nada é mais falso do que a opinão segundo a qual o
domínio moderno do mundo no campo do conhecimento e da técnica deva ser alcançado
lutando em contradição com o cristianismo. O contrário é verdadeiro. “O enorme risco da
ciência e da técnica moderna tornou-se possível somente sobre o fundamento daquela
independência pessoal que Cristo deu ao homem. Somente Cristo dá ao homem uma outra
posição a respeito do mundo. A partir desta posição o mundo será relativizado e se abre
caminho para o domínio sobre ele.”
Guardini não deixa de fazer notar que, pelo que diz respeito ao princípio da
autonomia, a cultura moderna não diverge muito da cultura pós-moderna. Esta última, porém
favoreceu o afirmar-se de fenômenos, como a técnica e o poder, que representam uma
verdadeira ameaça para humanidade. O pensamento técnico racional, de fato, fez desaprecer
da existência do homem o elemento ‘natureza’ e fez tudo tornar-se ‘história’, isto é, obra do
homem. Por um lado, tornou-se sempre mais insignificante o que vem de si e, por outro lado,
tornou-se sempre mais forte o que brota da iniciativa do homem. A existência humana
adquiriu sempre mais um caráter artificial, e o homem passou de um mundo a ele dado e a ele
preexistente, a um mundo criado e determinado por ele. Enquanto o homem moderno baseava
as normas da técnica na utilidade, o homem pós-moderno não se interessa tanto da utilidade
22

e nem do bem-estar, mas de domínio. Segundo Guardini, a técnica pós-moderna conduz ao


domínio sobre o mundo e à construção de uma nova forma de existência. O domínio da
técnica leva à mudança da própria estrutura do mundo. A vontade de domínio pós-moderna
não respeita a estrutura natural do ser, mas escolhe arbitrariamente os seus fins que traz de
consideração puramente racionalísticas. “O novo domínio coloca em dúvida se as coisas em
absoluto sejam fundadas sobre uma essência. Recorre a elementos fundamentais e construi as
formas, como ele quer que elas sejam para ele. A sua imagem fudamental não é o rei, que
guarda a essência - antigo conceito do pastor do povo - mas o ditador que impõe a essência.
Em conclusão, considerando o mundo como ‘natureza’, o homem o situa em si
mesmo; e concebendo a si mesmo como ‘personalidade’, se faz senhor do mundo da própria
existência; na sua vontade de ‘cultura’, ele empreende a construção da existência como obra
própria. A origem de conceito de natureza coincide com os fundamentos da ciência moderna.
Dela nasce a técnica, o conjunto dos procedimentos através dos quais o homem torna-se capaz
de estabelecer a seu prazer as prróprias metas. Ciência, política, economia, arte, pedagogia se
desvinculam sempre mais conscientemente das ligações com a fé, mas também de uma ética
universalmente obrigante, e se constituem em modo autônomo, partindo da própria singular
natureza. Embora todo setor encontre em si mesmo o próprio fundamento, se estabelece entre
elas, em linha de princípio, uma relação recíproca, que possui a sua origem neles e juntamente
as rege. É a cultura’ como complexo da obra humana, independentemente diante de Deus e da
Revelação.

2.4.2. O CARÁTER ÉTICO-HISTORICO DA MODERNIDADE: CHARLES TAYLOR.

Charles Taylor, em complementariedade com a visão ontológica da modernidade


oferecida por Guardini, apresenta uma interpretação, por assim dizer, ‘ético-histórica’ da
mesma. O sociólogo e filósofo americano, na sua tentativa de descrição da identidade
moderna, para conseguir sobretudo a sua originalidade ética, pensa que a passagem da
antiguidade à modernidade seja caracterizada sobretudo, pelo que diz respeito à ética e à
gnoseologia, por um processo de interiorização dos quadros de referência moral. É conhecido
como os pais clássicos da tradição antiga, Platão e Aristóteles, fizeram referência a uma
ordem cósmica externa, que preside o desenvolvimento do curso natural das coisas. O
homem, embora conservando o seu lugar no centro do universo, era inserido neste mesmo
universo ou cosmos em nível ôntico e, por isso, tinha com ele uma certa continuidade de ser e
de existência. Na disposição geral do universo, as formas constitutivas das coisas
estabeleciam por si mesmas o que é bom, de tal modo que uma coisa tinha sempre tudo o que
era próprio de sua natureza. Em termos mais formais, se dizia que ‘agere sequitur esse’, isto
é, que o operar das coisas era cosequente ao seu ser e as conduzia a sua perfeção. A forma
perfeita é o que o homem colhe quando conhece segundo a verdade, e é também o bem, ou
seja, qualquer bem que seja. Também pelo que lhe diz respeito, o homem conhece segundo a
sua natureza e colhe o que convém ao seu desejo racional de bem. As fontes da racionalidade
e do bem coincidem, e são inseparáveis de um cosmos bem ordinado: são firmes e imutáveis
como a natureza.
Da natureza do cosmos como lugar, fonte e origem de moralidade, com o passar dos
anos, através de processo de interiorização, passou à natureza do homem, para encontrar nela
a verdadeira fonte da moralidade. A primeira interiorização, por si, como já acenamos, foi
realizada por Agostinho, que colocou originariamente as idéias e as formas na mente de Deus
criador, e o lugar da procura da verdade no íntimo do homem: “noli foras ire, in te ipsum redi,
in interiore homine habitat veritas, et si tuam naturam mutabilem inveneris, trascende et te
ipsum” (De vera religione 39,72).P or meio da tradição luterana e sobreudo da filosofia
cartesiana, ela, em seguida prolongou e de certo modo radicalizou e secolarizou na
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modernidade. Segundo Taylor, o primeiro a excluir das coisas todo tipo de sentido ou ‘logos’
ôntico, a promover o desencanto do mundo, de tal modo que o verdadeiro significado das
coisas seja aquele linguistico, reconhecido racionalmente, este foi, sem dúvida, Descartes. Na
concepção cartesiana das coisas, a evidência da verdade e do bem são filtrados pelo
procedimento metódico e, com isso, se origina uma cocepção procedural e não mais
substancial da razão. Também as “paixões da alma’ terminam por ser consideradas como
energias puramente instrumentais e objetivas, que a razão utiliza assim como se utiliza em
qualquer objeto externo. Locke estendera este método de observação externa e de descrição
das experiências pessoais também ás ideias e à motivações interiores.

O papel de Deus nos confrontos da natureza, na filosofia de Descates e de


Locke, é puramente exterior, no sentido de que entre a natureza e Deus, entre a ordem das
idéias e a das coisas, não há mais uma ligação constitutiva e intrínsica. A natureza tem sua
ordem, suas leis diante das quais Deus permanece totalmente livre. Na natureza existe
certamente um plano, mas Deus realiza este plano do seu externo, orquestrado e manobrando,
a seu bel prazer, os diversos mecanismos naturais que, em si mesmos, são totalmnte
indiferentes. Consequentemente, o plano providencial sobre o mundo é realizado no estilo do
‘grande relojoeiro’, que desde sempre combinou juntos os vários elementos que agora
funcionam de modo maravilhoso, mas puramente extrínseco e mecânico, para conseguir
eficazmente escopos divinos, inspirados de qualquer maneira em benevolência para com os
homens.
Se, agora, segundo Taylor as fontes constitutivas da moralidade que estão na base da
convivência civil do mundo ocidental, não possam mais ser atingidas diretamente pelas
proprias coisas, é preciso encontrar outras instâncias com as quais se possa atingi-las. Estas
instâncias são representadas por três principais correntes filosoficas: teistas, racional e
expressiva. O homem que na sua vida e no seu agir, faz referência última a Deus e aos
valores cristãos, é bem diverso do homem que faz referência à livre racionalidade e
benevolência universal, assim como é diverso do homem que coloca em primeiro lugar a
auto-expressão e a auto-realização da própria identidade indvidual, cultural e nacional. Estas
diversas orientações antropológicas são caraterizadas, em última análise, pela diversa
importância que elas atribuem a um bem, o qual se torna um ‘super-bem’, um valor
qualitivamente superior e propriamnte incomparável, em relação a todos os outros. Sempre
segundo Tayor, a adesão a um valor ’supremo’ da parte de uma orientação antropológica não
exclui por si a percepção qualitativa dos outros valores, os quais, mesmo se sob ordem,
mantêm para todo homem moderno um sentido ético fundamental e são fontes de força moral.
O reconhecer a bondade de outros valores ao lado do ‘valor supremo’, não deveria todavia,
desenbocar num pluralismo ético. Antes, esta realidade alimenta na sociedade e na
consciência de cada indivíduo tensões e conflitos acerca das normas morais às quais se deve
dar sempre precedência absoluta, e confirma que um valor de bondade e de honestidade não
anula automaticamente outro valor de igual bondade e hones-tidade. O sociólogo americano
mantém, portanto, que na condição moderna seja mais sustentável e realístico o conflito do
que o pluralismo.
O possível conflito de valores, em todo caso, não impede o reconhecimento de que na
nossa sociedade existam valores predominantes que, consciente ou inconscientemente, se
impõem sobre os outros, como por exemplo, aqueles mecanicísticos e instrumentais, herdeiros
da racionalidade desencarnada que permaneceu predominante, graças à sua afinidade com a
ciência. As pesquisas críticas de Taylor colocaram em evidência como o domínio da
reacionalidade mecanicistica se impôs também nas ciências do homem, sacrificando a
tomada em consideração de todo o mundo dos sentimentos, dos afetos e das motivações
morais. A corrente mecanicista utiliza, para a determinação dos processos de conhecimento,
24

os mesmos pressupostos epistemológicos que utiliza nas ciências naturais. E, na base destes,
as intenções e os sentimentos do homem não são valorizados em si mesmos, pelo que são e
pelo que eles valem, mas somente segundo a ‘explicação melhor’ e a compreensão melhor
que eles podem oferecer da realidade.humana.
Definitivamente, segundo Taylor, a identidade da modernidade pode ser resumida em
três caracteristicas que correspodem a outros tantos “incômodos”: a perda de sentido, com a
diminuição dos horizontes morais; o eclipse dos fins diante da estensão da razão
instrumental; uma perda de liberdade.
Relativamente à perda de sentido, Taylor observa que se vive num mundo no qual os
homens possuem direito de escolher por si o modo próprio de vida, de decidir em plena
liberdade de consciência quais convicções abraçar, de forjar a sua vida em mil diversas
maneiras sobre os quais os seus antepassados não tinham nenhum controle. E, geralmente,
estes direitos são defendidos pelos modernos sistemas jurídicos. Em linha de princípo os
seres humanos não são mais sacrificados às exigências de ordenamentos presumidamente
sacros que os transcendem. No passado os homens costumavam ver-se como parte de uma
ordem mais ampla. Em alguns casos tratava-se de uma ordem cósmica, de uma grande
’Corrente do Ser’, na qual os homens figuravam no lugar que lhes cabia, ao lado dos anjos,
dos corpos celestes e de outras criaturas terrestres, a eles semelhantes. Este ordenamento
hierárquico do universo se refletia na hierarquia da sociedade humana. Os homens se
encontram muitais vezes confinados em um dado lugar, em um papel e em uma condição que
eram propriamente os seus e dos quais praticamente era impensável afastar-se. A liberdade
moderna nasce do descrédito em que caíram estes ordenamentos, e, em seguida ao descrédit
o destes ordenamentos os homens não têm mais o sentido de um escopo superior, de
alguma coisa pela qual valha a pena morrer. Eles aspiram aos prazeres ”pequenos e vulgares”
próprios da época da democracia, segundo Tocqueville; sofrem uma falta de paixão, segundo
Kierkegaard; não aspiram outra coisa a não ser a um miserável “bem-estar”, segundo
Nietzsche. Em última análise, o lado escuro do individalismo é o seu centrar-se sobre o eu,
que ao mesmo tempo esconde e restringe a vida humana, empobrece o seu significado e a
afasta do interesse pelos outros e pela sociedade. O individuaismo leva à sociedade
permissiva, da “me generation” do narcisismo. Enquanto os grandes ordenamentos davam
um sentido ao mundo e à atividade da vida social, as coisas que nos circundam não eram mera
matéria prima ou simples instrumentos potenciais dos nossos projetos, mas tinham o
sigificado que lhe era conferido pelo o lugar que ocupavam na ’Cadeia do ser’. O descrédito
destes ordenamentos foi chamado de o desen-cantamento do mundo. Com isso as coisas
perderam uma parte de sua magia.
A racionalide instrumental ou mecanicista é aquela que calcula a apli-cação mais
econômica dos meios disponíveis para alcançar um determindo fim e cujo parâmetro de
medida é a tomada em consideração da melhor prestação e da melhor relação custo-produção.
Tudo é materializado e quantificado, porque é medido na base de seu valor econômico. Por
exemplo, a vida humana não é medida por seu valor intrínseco, mas pela quantidade de
dólares de que ela precisa para ser vivida, para ser defendida, para ser salva. Isto importa o
desaparecimento de finalidades independentes, de significados espirituais e a afirmação de
critérios de ação puramente econômicos e eficientes. A razão instrumental, ao perseguir seus
fins e ao realizar as suas ações, adota a solução tecnológica mais adequada e não se interroga
sobre os significados de sua ação e sobre sua liceidade moral ou humana ‘in genere’. No
campo da medicina, de modo particular, a oferta tecnológica para a cura do paciente é
preferida à oferta humana. A liceidade moral de uma determinada interveção, por isso, não é
determinada pelo seu factível humano, mas pela sua realizabilidade técnica.
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Em seguida à aplicação desabusada da razão instrumental, todas as coisas perdem o seu


valor intrínseco e assumem um valor econômico, sem mais nenhuma relação com uma
verdade de caráter transcendente e vinculante universalmente. Entre os efeitos desta aplicação
podem-se mesmo enumerar a não procura de alguma forma de tradição e de desinteresse pelos
valores provenientes das várias formas de vida associada, a indiferença pela conservação do
ambiente natural e do patrimônio artistico e cultural e, sobretudo, a indiferença aos deveres de
solidariedade humana. A lógica da razão instrumental que anima toda forma de sujeito, se
torna a última instância do agir e conduz ao predomínio da lei do mais forte ou à
insignificância do próprio agir.Lá onde falta um significado objetivo das coisas, um sentido e
um valor das coisas condividido e aceito, se abre o espaço ao exercício da força.

A perda da liberdade se verifica pelo fato de que ela se encontra de fronte a um


generalizado “poder imenso e tutelar” sobre o qual os homens não podem exercer controle
algum verdadeiramente eficaz. As instituições e as estruturas da sociedade industrial-
tecnológica limitam muito as escolhas. Para um estilo de vida individual é dificil ir contra a
corrente, Um homem sozinho, por exemplo, é impotente frente à toda estrutura de algumas
cidades modernas que torna mais árduo viver sem um automóvel, especialmente lá onde os
transportes publicos foram preteridos em favor da motorização privada. A maioria preferirá
permanecer em casa e gozar as satisfações da vida privada, enquanto o governo em
exercício, seja qual for, não produza os meios destas satisfações e faça uma grande
distribuição. Isto faz emergir uma forma de ‘despotismo mórbido’ que, mesmo se não evoca
a antiga tirania do terror e da opressão, governa todas as coisas com um poder imenso e
tutelar.
Estes transtornos da modernidade, de qualquer modo, podem ser superados por meio do
ideal moral da autorealização ou da fidelidade a si mesmos, que Taylor chama de o ideal da
autenticidade. Com isso se entende “o quadro daquilo que seria um sistema de vida melhor
ou mais elevado, onde melhor e mais elevado são definidos em termos do que desejamos ou
do que temos necessidades, mas oferecem um modelo do que deveremos desejar”. A
autenticidade é um ideal plenamente válido que, contra toda forma de sujetivismo, se pode
provar argumentando simplesmente segundo a razão, com argumentos que repelem todas
aquelas explicações da modernidade que prendem o homem moderno na ‘gaiola de aço’, ou
seja no sistema predominante, seja ele o capitalismo, a sociedade industrial, ou a burocracia.

2.4.3.As características escatológicas da modernidade: Jacó Taubes.

A última leitura ‘transversal’ da natureza da modernidade diz respeito à sua


interpretação escatológica. Ela afunda as raizes muito atrás no tempo e pode se faze-la
remontar à teologia da história de Joachino da Fiore. O abade de Florença, de fato, não
limitou sua obra à exegese e à teologia trinitária (censurada em 1215 pelo IV Concílio de
Latrão), mas a continuou na teologia da história, acrescentando uma nova visão do mundo.
Imagina a história humana e divina em três idades: antiga aliança, que corresponde ao Pai; a
nova aliança, que corresponde ao Filho, ele chega à conclusão de que a humanidades mesma,
para entrar na terceira idade, no fim do tempo, onde servirá de guia um restrito círculo de
homens, eleitos pelo Espirito Santo e pelas suas dependências . Ponto nodal do pensamento
da abade florentino é o conceito de ‘concórdia’- uma novidade no campo hermenêutico - que
ele aplica aos dois Testamentos, distinguido-a da alegoria: ele não quis predizer o fim dos
tempos, ou a iminência do fim do mundo, mas se limitou, ao invés, em tirar do Antigo e Novo
Testamentos a ‘concórdia’, isto é, a semelhança paralela entre um e outro, a fim de
esclarecer as escuras predições do Apocalipse e advertir os homens sobre a iminente
conclusão da segunda idade. Ele, tendo intuído que a história humana é como uma
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manifestação permanente de Deus, nas três pessoas da Trindade, se comporta como quem,
tendo subido à uma ’specula montis’ e tendo contemplado a história passada e a presente,
pôde estabelecer que já passaram duas idades e uma ainda está por vir, aquela na qual se
manifestará a pessoa do Espirito Santo.

2.4.3.1 Um dos primeiros a interpretar e valorizar o valor particular da posteridade


espírtual do abade calabrês foi H.de Lubac. Ele considerou as teorias do Joaquim como
estranhas aos esquemas das escatologias tradicionais, porque o abade se diferenciava de toda
escatologia messiânica ou milenarista precedente, pelofato de que enquanataoo “o que todos
esperavam era o retorno de Cristo”, Joaquim anunciava a vinda do reino do Espírito que
representaria uma efetiva superação da economia de Cristo, reduzida assim a uma simples
etapa na progressiva manifestação da verdade espiritual”.
Embora os grandes homens da Igreja que viveram nos séculos XIII e XIV, tanto
católicos como protestantes, fossem atentos a uma interpretação ortodoxa das teses de
Joaquim, segundo de Lubac dois movimentos em particular teriam interpretado de modo
heteredoxo as mesmas teses e teriam aberto a estrada à negação moderna e iluminista da
verdade cristã: os Libertinos contra os quais lutou Calvino em Genebra, e os Cabalistas
cristãos, cujo principal representante foi Guilherme Postel. A linha mestra da posteridade
Joaquinina partiria de Lessing e, passando por Herder e Fichte, chegaria até Hegel. Nestes
autores a tradição joaquiniana de uma idade de plenitude e do Espirito, seria secularizada e
se afastaria da idéia origináriamente teológica da idade do Espirito. Lessing está entre os
principais artífices e responsaáveis da virada: ele “rejeita a idéia de intervenções divinas, de
revelações sucessivas ou de efusões do Espírito de inteligência, que escandiram o curso da
história, dividindo-a numa série de idades distintas, e a substitui com a idéia de um lento
processo imanente à ’natureza’, isto é, à humanidade”.(p.327); “a história tornou-se para ele a
própria revelação” (p.333). Ao longo da parábola traçada por Lessing se incluem, entre outros,
Herder, Schleiermacher (o primeiro), Fichte, Hölderlin e finalmente Hegel. Com Hegel se
atinge o cume e a plena consciência da vicissitude da secularização do patrimônio teológico
luterano e joaquiniano. Em particular, a época do Espírito absoluto hegeliano, no qual toda
tensão entre autoconsciência finita e autoconsciência infinita aparece já superada, pode ser
comparada ao terceiro estado da radical novidade joaquiniana.

2.4.3.2. O rabino Jakob Taubes.estudioso do judaísmo e do marcionismo, retomou a


tese de De Lubac sobre a importância decisiva de Joaquim da Fiore na gênese da
modernidade, no seu estudo sobre a escatologia ocidental, editado ao logo depois do fim da
segunda guerra mondial, no ano 1947 e reimpressão 1991 e em 1997. O estudioso hebreu é
aquele que, de fato, apresentou uma interpretação ‘escatológica’ da época moderna e, no
elaborar um ‘ethos’ “apocalíptico”, leu meia civilização ocidental no sinal de Joaquim vendo
nela um fio vermelho que parece percorrer a história do ocidente, quer em seu traços utópicos
quer nos dissolutivos e que se estende sobre o milênio que está chegando ao fim, justamente
de Joaquim até Hegel e ao comunismo de Marx. Este fio vermelho seria a idéia da história
como lugar do sentido e portanto da plenitude. O nó central do milênio seria dado pela
concepção joaquiniana sobre a história da Igreja, a qual pensava que haveria um terceiro
tempo da Igreja no qual a Igreja papal seria abolida e seria substituída por uma Igreja
espiritual.
A previsão do abade calabrês, na realidade, não se realizou do ponto de vista histórico.
A sua grandeza e a sua herança, segundo o historiador medievalista M.Sensi, está antes no ter
dado um fecundo estímulo à teologia da história: a era do Espirito Santo, proclamada pelo
vidente de Sila, suscitou, de fato, esperanças e expectativas ansiosas, e por isso o tema é
retomado, a poucos anos da sua morte, pelos Amalricianos, por um grupo de franscicanos que
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se autodefiniram ‘espirituais’, por visionários políticos, os quais, porém, mais que de


Joaquim, se alimentaram de escritos pseudo-joaquinianos, particularmente pelos comentários
sobre Isaias e Geremias. Entre os séculos XV e XVI as espectativas escatológicas realizaram
depois uma virada e se uniram com a crítica à Igreja como organização hierárquica, definida
‘ecclesia carnalis’; com a mística; com a literatura antiturca; com a conquista do novo mundo;
com a autopia comunista de Thomas Münzer. E, contudo, na consciência européia a obra de
Joaquim se apresenta ainda como a espera de um retorno do divino sobre a terra. È nesta
dimensão religiosa que é colocada a ânsia profética e escatológica de um Gerônimo
Savaranola e de seu conteporâneo Cristóvão Colombo.
Taubes encompridou no tempo a influência do pensamento do abade Florense e viu a
espiritualidade joaquiniana presente no iluminismo, isto é, na visão de uma nova sociedade
que rompe com o tempo obscuro que a precedeu, presente no moralismo de Kant, pelo qual a
verdadeira Igreja visível seria a que representa o reino moral de Deus na terra; presente no
sistema hegeliano, porque o ‘passar’ (transire) joaquinita seria análogo ao “aufheben“ (tirar-
superar) de Hegel. A religião se realiza na filosofia, a razão realiza a religião e, ao mesmo
tempo, a tira e a supera.

2.4.3.2.1. O progresso de repercorrer a história do Ocidente, recuperada e recomprendida


como história da idéia messiânica reconhecida ou negada, e de traçar nela, em particular, um
itinerário que dependesse ou ao menos reconheccesse o percurso da idéia messiânica, segundo
o quanto lhe dá relevo Michele Ranchetti no prefácio à ultima edição da obra, era um ‘tópos’
da cultura a qual Taubes procou reclamar para si. O seu projeto, de fato, se coloca no caminho
dos traçados propostos por expoentes de duas confissões religiosas diversas: a católica, de
von Balthasar, e a propestante, de Althaus, com a intenção de interrogar a história para nela
encontrar uma razão que compreendesse Auschwitz “como elemento necessário e não como
exceção. Para fazer isto, Taubes se moveu no campo da exegese já percorrido por von
Balthasar e por Althaus, mas aprofundando obviamente o específico da tradição hebraica, na
convicção de que só a tradição hebraica possa conhecer verdadeiramente as razões, a tarefa e,
sobretudo, o êxito do presente, de modo particular, da tragédia de Auschwitz. Para uma leitura
da história moderna e de suas leis, segundo Taubes, não se pode recorrer à categoria
historiográfica da secularização, como por exemplo fez K. Löwith na sua interpretação da
modernidade que já examinamos, por que ela, além de ser aberrante, seria tembém vazia. Não
existiria no presente, assim como nunca existiu no passado, um processo de secularização. O
‘século’ adquire um significado particular, somente se é referido dialeticamente ao sagrado,
assumido sob qualquer forma: igreja, profecia, classe. Ao contrário, um método adequado de
interpretação da história moderna é o de reconduzir a realidade aos elementos primários de
sua sacralização interna, ou melhor, de recoduzir a hstória e a cultura aos ‘novíssimos’. Por
isso, escreve Ranchetti, as asserções de Taubes não são nem verdadeiras nem falsas, são
elementos de uma teologia ou, melhor, de uma teodicéia sistemática que não se quer
construir para deixar à divindade a liberdade de interferir a seu arbítrio na história que lhe
pertence. Toda a sistematização, com efeito, é coercitiva e estruturante e, portanto, lesiva ou
ao menos em contradição com uma idéia de Deus não antopomorfa e muito mais com toda
forma de apropriação do conhecimento de Deus e de seus projetos por parte de qualquer um
e em particular de toda Igreja.

2.4.3.2.2. A caraterística particular da obra de Taubes, definido como um “apocalíptico da


revolução”, pertencente, enquanto hebreu, àquele povo do tempo subtraído ao enraízamento
no espeço, foi a de interrogar o percurso da história enqunto declaração da verdade, mas
usando instrumento exterior a ela: o tempo, a origem, o fim, o ser. A prospectiva na qual ele
se coloca é a da presença de uma espécie de índice messiânico que se revela somente aos
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poucos, mas que constitui a razão e também a natureza, por assim dizer, ‘meta-histórica” da
história. Segundo a sugestiva imagem de Ranchetti, Taubes faz correr o pêndulo do
apocalipse, escatologismo, messianismo spbre a história de Ocidente e,quase como uma vara
de rabdomante, registra as vibrações do terreno para individulizar a preseça de um veio
sensível a estas categorias. Taubes, todavia, na sua pesquisa histórica, não interroga um dos
termos do percurso, isto é, o êxito final, que permite a compreensão da história ’secundum
finem’, embora de maneira traumática, interrogue também o primeiro termo do mesmo
percurso, isto é, a origem. “Assim, a pergunta inaugural do livro não pode senão colocar-se
fora da história e, portanto, dar à narração, cronologicamente ordenada, variantes que ela
apresenta um caráter, num certo sentido, anti-histórico.

2.4.3.5. Em última análise, ’a escatologia ocidental’ é uma hermenêutica da história segundo


o ‘eschaton’, é um repensamento e um percurso da história do Ocidente numa perspectiva
apocalíptica e escatológica. A reconstrução da história perseguida por ela prescinde de fatos,
de acontecimentos, eventos, da singularidade, e do desenvolvimento da mesma história, de
modo bastante contraditório, depende de e se se conforma a uma interrogação que é possível
colocar somente fora dela e se comprende no conceito de fim; mas somente se e quando
também ele é concebido fora da história. Entre dois incognoscíveis, entre o dois pontos
inicial e final se atua história sem nexos racionais, mas somente conforme princípios atingidos
pelo vocabulário da mística, e mais particularmente pelas categorias do pensameto
apocalíptico hebreu. Assim um percurso é interrogado por conceitos fora dele: o tempo, o fim,
o ser. A aplicação mais notável deste método particular de ler a história moderna é o caso do
Holocausto. Como veremos em seguida, todos conhecemos a dificuldade que hoje se
experimenta para encontrar um sentido da história após as terríveis tragédias das duas guerras
mundiais e da perseguição aos judeus. Nestas tristes vicissitudes da humanidade moderna e
contemporânea não se vê uma explicação racional satisfatória. Para Taubes, ao invés, se o
povo eleito é destruído e perseguido, a perseguição só pode corresponder a um desígnio
religioso, de outro modo ela literalmente não tem nem sentido, nem sinal. Por isso ele
interpreta a pereguição acontecida no tempo histórico mediante a reconstrução da escatologia
de um processo/projeto que se desenvolve na história, mas é anti-histórico, e recupera o
sentido do morticínio no interior deste processo.

2.4. As caracteristicas da antropologia de modernidade

Delineado, agora, com relativa suficiência, o vulto ou, como temos precisado, os vultos da
modernidade, e configurado, portanto, o quadro de referência histórica e conceptual de sua
antropologia, devemos passar a descrever mais propriamente esta antropologia que, por um
lado, animou os ideais comuns da cultura ocidental e, por outro lado, teve raizes muito
distantes e nem sempre unanimemente reconhecidas. Ela é, de fato, toda centrada na
capacidade do homem de conhecer as coisas e na sua autonomia e liberdade de juízo e de
ação. Se, de qualquer forma, queremos prescindir de interpretações mais ou mesnos
ideológicas da modernidade e nos atemos simplesmente aos dados da sua cronologia, causa e
natureza, que até aqui expusemos, podemos resumir a antropologia desta época histórica em
algumas características fundamentais, comumente definidas também como “absolutos
terrestres”.

2.5.1. UMA ANTROPOLOGIA FUNDADA SOBRE O PRIMADO DO SUJEITO

2.5.1.1 A visão antropocêntrica da realidade substituiu a teocêntrica medieval, e colocou o


homem no centro de todo o universo, confiando-lhe, e somente a ele, a responsabilidade do
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seu destino pessoal e o de toda humanidade. O lugar da eficiência criadora do ser e do


domínio do ente enquanto criado foi ocupado pela subjetividade do sujeito humano. Esta
reviravolta foi possível não imediatamento e diretamente em virtude do pensamento dos
gregos, mas propriamente em virtude do constituir-se do pensamento cristão, que se
encontrou e se fundiu com o pensamento dos gregos exatamente enquanto o submeteu a um
processo que poderia chamer-se também de conversão. Não a helenização do cristianismo,
mas sim cristianização do helenismo, subtraiu o homem do ‘cosmocentrimo sacral’ da
antiguidade pagã, impelindo-o para o ‘antropocentrismo secular’ da modeernidade. Em
virtude da idéia de criação, o homem criado à imagem de Deus, foi de fato estabelecido numa
posição de privilégio a respeito do mundo e de responsabilidade diante de Deus. Em outros
termos, enquanto o homem se tornou ‘pessoa’ e interlucutor de Deus, o mundo tornou-se
’coisa’ e submetido ao domínio do homem.
Em seguida ao processo de uma secularização prática, o homem se fez garantia da própria
salvação, contrapôs, de fato, e à humanização de Deus, própria da encarnação, a deificação
do homem. Esta passagem ou esta contraposição tornou-se, de certo modo, explícita com
Galileu Galillei e Renato Descartes em termos de conhecimento, e com Francisco Bacon, em
termos de poder. Galileu, de fato, depois de ter matematizado o “o grande livro da natureza”,
fez observar que se o conhecimento possuído de Deus, ’extensive’, isto é, quanto ao número
das coisas conhecidas, supera o conhecimento possuído do homem, o próprio conhecimento
‘intensive’, isto é, quanto ao modo de conhcer as coisas conhecidas, é idêntico, porque a
verdade é indivisível. Se o homem, porém, possui a capacidade de conhecer como Deus, o
consciência humana possui a possibilidade de se colocar como critério do verdadeiro e do
falso. Colocando-se assim, o homem possui a possibilidade de adequar a realidade a si
mesmo, e de realizar, segundo quanto retém Bacon, a ordem bíblica dada ao homem de
dominar a terra. Neste ponto, observa U.Galimberti, a ciência de Deus passa ao homem e
com a ciência a sua onipotência, se não como dado de fato, como projeto, que é o quanto
basta para que o homem possa emprender a sua aventura de criação de uma nova terra, à
imitação de Deus, e também sem Deus. Ao ‘reino de Deus’ sucede o que Bacon chama de o
‘reino do homem’, no qual se procura realizar aquilo que, com a fé em Deus, se nos limitava,
ao invés, somente a esperar.
O homem progressivamente reconquistou os poderes dos quais se teria ‘alienado’ no
curso dos séculos passados, e tornou-se independente de qualquer forma de autoridade
externa. Para ele aceitar qualquer coisa por simples fé já significaria submeter-se à
escravidão, querer ser depedente de um outro. Hegel colocou o devir totalmente na mente e
nas mãoa do homem, libertando o sujeito histórico de toda hipoteca transcendente e
responsabilizando-o até o final como único artífice do próprio destino. Em exata
contraposição a tude quanto escrito por Lutero no ‘De servo arbitrio”, que tinha teorizado a
equivocidade de Deus, a concepção, isto é, para quem Deus é absolutamente outro, e
defendido a dependência total do homem de Deus, “para a maior gloria de Deus”, Marx
escreveu nos ‘Manuscritos economico-filosóficos de 1844’, que o homem é índependente
quando não vive por graça de um outro, quando a sua vida é a sua própria criação, quando, em
última analise, se afasta de Deus. Escrevendo assim, Marx praticamente deu origem ao
humanismo ateu-marxista.
Este humanismo ateu-marxista foi declinado em diversos tons, conforme se colocou o
acento ora sobre a utopia do reino do homem por parte de E.Bloch, ora no socialismo como
eliminação das causas da infelicidade humana por parte de A. Schaff, ora na transcendência
abstrato do homem por parte de R. Garaudy ou, em fim, na reivindicação abstrata de uma
necessidade real da parte H Marcuse. Ao lado do humanismo ateu-marxista, porém, o século
XX viu florecer toda uma série de outros humanismos que vão desde o exitencialismo da
revolta de A. Camus ao da existência como empenho de J.P. Sartre; da virada de W.C.
30

Heisenberg na física contemporânea à antropologia e à psicanalise de Binswanger; à filologia


de W. Jaeger; até a revolução
personalista e comunitária de E.Mounier e ao humanismo integral de J. Maritain.
No humanismo científico particularmente, com a construção de geometrias tão
rigorosas quanto à euclidiana, com a introdução da hipótese do ‘quanto’ de energia, com a
formulação da teoria da relatividade e, finalmente, com a descoberta do inconsciente, a
ciência contemporânea mostrou como não se pode prescindir da consideração extrínseca do
sujeito. Werner Heisenberg pôde afirmar que o objeto da pesquisa não é mais a natureza em
si, mas a natureza subordinada ao modo humano de colocar o problema. Os próprios
resultados que a pesquisa científica obtém, depois, mais que imagem da realidade, mais
descrição de qualquer um de seus aspectos particulares, são expressões da relação do homem
com ela, do recíproco condicionamento que intercorre entre eles no plano cognoscitivo, como
também, talvez, no biológico mais em geral. Para Ludwig Binswanger não somente o
psicólogo, como também o físico, o químico, o biólogo pressupõem nas suas pesquisas uma
escolha antropológica bem definida.

2.5.1.2. É necessario precisar, obviamente, que o primado do sujeito e a consequente


centralidade do homem no universo, colocada em ação pelos humanismos de modernidade,
não são, por si, alguma coisa de negativo, porque não são automaticamente sinônimo de
emancipação do homem de Deus, mas sim de autoconsciência reconquistada das próprias
responsabilidades. Ela se torna negativa somente quando pretende ser governada em
contraposição à presença criadora e sustentadora de Deus no mundo. Pode dar-se que o
reclame a respeito da ‘ordem’ divina das coisas por parte do homem, ao exercitar a sua
atividade no mundo, tenha despertado, no passado, o temor que viesse a ser “impedida a
autonomia dos homens, das sociedades, das ciências (GS 36). Hoje este temor não tem mais
razão de ser. Para afugentá-lo e para rebater que o valor de uma atividade humana depende
de sua orientação religiosa, o Vaticano II afirmou um princípio de grande importância e de
forte valor inovativo, que inspirou a moderna relação Igreja-mundo: as realidades terrestres
são autônomas. Isto significa que “todas as realidades que constituem a ordem temporal, isto
é, os bens da vida e da família, a cultura, a economia, as artes e as profissões, as instituições
da comunidade política, as relações internacionais e outras semelhantes, como também o seu
desenvolvimento e progresso, não somente são meios em relação ao fim último do homem,
mas também possuem um valor próprio, colocado neles por Deus, seja consideradas em si
mesmas, seja consideradas como parte de toda a ordem temporal (AA 7).
Antes mesmo do Vaticano II, de qualquer modo, a característica principal da época da
modernidade, ou seja, do mundo ’tornado adulto’ e por isso, ‘maiorene’, foi descrita
positivamente por Dietrich Bonhoeffer numa página, merecidamente famosa, de suas cartas
do cárcere nazista, publicadas postumamente. O pastor luterano, mártir do nazismo, escreveu
que ”o movimento da direção da autonomia do homem (entendendo com isto a descoberta das
leis segundo as quais o mundo vive e basta a si mesmo na ciência, na vida da sociedade e do
estado, na arte, na ética e na religião, que tem início[…] pelo século XIII), conseguiu em
nosso tempo uma certa realização. O homem aprende a se bastar a si mesmo em todas as
questões importantes sem o auxílio da hipótese do trabalho:Deus. Nas questões que dizem
respeito à ciência, à arte, a ética, isto tornou-se um fato dado como certo, que praticamente
não se ousa mais colocar em discussão; mas há cerca 100 anos isto vale, em medida sempre
maior, para as questõe religiosas.

2.5.2. Uma antropologia fundada no primado da razão.


31

2.5.2.1. A partir do iluminismo, que representa a emancipação dos vínculos das


autoridades positivas, históricas ou sobrenaturais, a razão humana constituiu a norma única e
suprema da verdade e do comportamento humano: “saindo a razão da minoridade, na qual por
própria culpa tinha permanecido, o iluminismo confia a ela, tornada finalmente maiorene,
uma ação reformadora do mundo até então nunca imaginada. Por tudo isso é a primeira
oposição total de pricípio contra a forma dualistico-sobrenatural da religião. Com a afirmação
do primado da razão, também a religião foi confinada dentro de seu limites. O fundamento da
existência e da moral foi cercado não por fora ou por cima, mas sim dentro da capacidade da
razão. A razão, absorvendo Deus, afogou em si toda alteridade possível e restou a única
responsavel do futuro do mundo. Todo limite lhe é insuportável. A ideologia, em todas as
suas formas teóricas, como também nas suas realizações práticas, é a expressão desta fome e
sede de totalidade.
A palavra chave que contradistingue a inteira época do domínio da razão, que está sob o
signo do iluminismo, é ‘emacipação’. Ela exprime bem o projeto característico da razão
moderna de tornar o homem adulto, livre de hipotecas ultramundanas, capaz de querer-se e
de ser sjeito da própria história. Com ela se quis indicar o processo de auto-libertação e de
auto-afirmação do homem, quer tomado singularmente numa espécie de triunfo da
subjetividade, quer entendido coletivamente nos dinamismos históricos de mudança
revolucionária.
Na vertente filosófica, de Kant a Hegel, a Marx, até aos seus epígonos burgueses ou
revolucionários, a emancipação interpretou o projeto antroplógico de fundo, a ânsia e a meta
cobiçada pela modernidade. Kant, como já vimos, tinha afirmado que “o iluminismo é uma
saída do homem da sua condição de minoridade imputável a si mesmo. A minoridade é
incapacidade de servir-se do próprio inteleto sem a guia de um outro“. Esta minoridade é
imputavel ao próprio homeme quando sua causa não está na falta de intelecto, mas na falta de
decisão e de coragem de servir-se do próprio do intelecto sem a guia de um outro. Hegel
continuou na mesma direção sustentando que: “Desde que está o sol no firmamento e os
planetas lhe girando ao redor, nunca se tem visto que o homem colocasse na cabeça, ou seja,
no pensamento, e construisse a realidade segundo este último. Anaxágoras tinha dito por
primeiro que o ‘nus” rege o mundo, mas somente agora o mundo chegou a entender que o
pensamento deve reger a realidade do espírito. E esta é uma alvorada preciosa”. E o jovem
Marx testemunhou uma não diversa confiança na capacidade da consciência dos dos homens
de emancipar-se: “Aparecerá claro […] como há tempo o mundo possua o sonho de uma
coisa, da qual não se tem consciência, para possui-laa realmente. Aparecerá claro como não
se trata de traçar uma linha reta entre passado e futuro, mas, sim, de realizar os pensamentos
do passado’.
Na vertente teológica o programa da emancipação se traduziu na rejeição da imagem de
um Deus concorrente com o homem e na redução de todo Absoluto ao devir aprisionado no
horizonte mundano. F.Nietzsche soube traduzir a grandeza e a tragicidade desta empresa no
citadíssimo aforisma intitulado ”L’uomo folle”(O homem louco): Ouviste daquele homem
louco que acendeeu uma lanterna à luz clara da manhã, correu ao mercado e se pôs a gritar
incessantemente:’Procuro Deus!’ E já que justamente lá se encontravam reunidos muitos
daqueles que não acreditavam em Deus, suscitou grande riso. ‘Está, talvez, perdido?, disse
um. ‘Perdeu-se como uma criança?’ disse outro. Ou, quem sabe, está escondido?. Tem medo
de nós? Embarcou-se? Emigrou?”- gritavam e riam numa grande confusão. O homem louco
pulou no meio deles e os traspassou com seus olhares. “Para onde foiDeus?”- gritou. “Vo-lo
direi! Fomos nos que o matamos, vós e eu! Somos todos nós os seus assassinos! Mas como
fizemos isto? Como podemos esvaziar o mar bebendo-o até a última gota? […]Não estamos
tavez vagando como através de um nada infinito? Não sopra sobre nós e espaço vazio? Não se
32

fez mais frio? Não continua a vir noite, sempre mais noite? Não devemos acender lanternas
pela manhã?”

2.5.2.2 O preço da vitória da razão, entre outros, foi colocado em trágico relevo por Franz
Rosenzweig, o qual escreveu : “A razão venceu, o fim releva o início, o objeto supremo do
pensamento é o mesmo, não tem nada de inacessível à razão; o próprio irracional é somente
o seu limite, não um além. Vitória, portanto, em toda linha, mas a que preço! O grande
edifício da realidade está destruído: Deus e o homem volatizados no conceito limite de um
sujeito do conhecimento; mundo e homem, de outro lado, no conceito limite de um puro e
smples objeto deste sujeito, e o mundo[…] tornou-se uma simples ponte entre estes conceitos
limites.

Também para primado da razão, todavia,vale quanto foi dito para primado do sujeito, isto é,
que o uso da razão, enquanto tal, não deve ser considerado negativamente, mas positivamente,
porque é doutrina comum da tradição cristã, a partir de santo Agostinho, para passar através
de S.Ansermo e Santo Tomás, que a fé procura ser entendida com inteligência e a inteligência
procura a razão da fé. O Vaticano I precisou que “embora a fé esteja acima da razão, não
poderá haver verdadeira divergência entre fé e razão, porque o mesmo Deus que revela os
mistérios e comunica a fé, coloca também no espirito humano o lume da razão, este Deus não
poderia negar a si mesmo, nem a verdade contradizer o verdadeiro” (DS 3018).; “e não só a
fé e a razão não podem nunca estar em contradição entre si, mas podem dar-se um mútuo
auxílio: a reta razão, de fato, demonstra os fundamentos da fé e, iluminada por sua luz, pode
cultivar a ciência das coisas divinas; a fé, ao invés, libera e protege a razão dos erros e a
enriquece de muitos conhecimentos” (DS 3019).A enciclica woitiliana “Fides et ratio”,está
toda dedicada a demostrar a integibiligidade da fé e a necessidade de pensar esta última, para
poder vivê-la e testemunhá-la com a vida .”A filosofia, escreve João Paulo II, se configura
como uma das tarefas mais nobres da humanidade, pois que a é próprio da filosofia manter
vivas as perguntas de fndo que caracterizam o percurso da existência humana: Quem sou?
De onde venho? E para onde vou?, porque a presença do mal?, que coisa nos acontecerá
depois da vida? ”A encíclica, todavia, mesmo insistindo sobre os poderes da razão humana,
acentua mais vezes também os limites. De fato, é convicção condividida de que a salvação
não pode vir da razão. A razão humana coloca perguntas existenciais às quais só Cristo
oferece uma resposta satifatória. De fato, onde o homem poderia procurar a resposta às
dramáticas perguntas, como aquelas sobre a dor, o sofrimento do inocente e a morte, a não ser
na luz que provém do mistério da paixão, morte e ressurreição de Cristo? A razão não pode
esvaziar o mistério do amor que a cruz repesenta, enquanto a cruz pode dar à razão a resposta
última que ela procura”.

2.5.3. Uma antropologia fundada no primado da ciência.


2.5.3.1 Quando se fala de afirmar-se no primado da ciênci, é bom recordar, antes de mais
nada, que Platão afirmava que só a filosofia seria capaz de atingiir a essência das coisas além
dos fenômenos e das aparências exteriores, e que o ’ipse dixit’ do flosófo não poderia nunca
ser colocado em discussão. Justamente porque ‘o’ filósofo e, portanto, aquele que diz a
verdade, Aristoteles podia fazer as afirmações mais estranhas como, por exemplo, que a
mulher tem menos dentes do que os homens; que as crianças concebidas quando sopra o vento
norte tem mais saúde. Porque o filósofo tinha feito estas asserçõe, ninguem lhes verificava a
veracidade. As coisas mudaram radicalmente com Galileu Galilei. Este, em vez de ater-se à
teoria do filósofo, construiu para si um telescópio para ver de perto a lua, as estrelas, o sol e,
assim fazendo, juntamente com F. Bacon, inaugurou o método da nova ciência. O fruto
33

daquela empresa temerária foi a aquisição de um novo modo de pensar e de uma mentalidade
científica moderna, pela qual os filósofos positivistas do Círculo de Viena podiam considerar
a ciência experimental como a forma mais pura do conhecimennto raconal e os cientistas de
hoje podem afirmar de querer saber alguma coisa para poder fazer alguma coisa. A
racionaliade cientifica já de muitos filósofos e pesquisadores é cosiderada como a única
produtora de verdade, poque se admite que somente aquilo que científico é o verdadeiro e
somente a realidade física é a verdadeira realidade.
A ciência moderna, de fato, nasceu na cristandade e, também, como expansão dela..
Galileu e Newton, nas suas ntenções, acrescentaram novas perspectivas ao conhecimento
cristão, como Cristóvão Colombo tinha acrescentado novas terras à cristandade. A nova física,
de Kepler a Galileu e a Newton, foi inaugurada por cristãos que admitiam conhecer a mente
divina justamente mediante a análise racional dos fenômenos. Galileu pensava que a nova
física tivesse alcançado o modo divino de conhecer as coisas, Newton admitia que o tempo e
o espaço fossem a presença divina no universo. As coisas estão presentes a Deus mediante
estas demonstrações que incluem as coisas e não somente as coisas.
Mas com o afirmar-se a mentalidade científica moderna, se esqueceu
facilmente esta origem cristã, ‘l’esprit de finesse’ cedeu o passo ao ‘esprit de geometri’, se
rejeitou, como critério de conhecimento, quer o recurso às fontes da Escriturs, quer da
Tradição. O método científico moderno, derivado diretamente da aplicação da racionalidade
científica, tornou-se exemplar para cada procura da verdade e comportou, de fato, uma
restrição do conceito de verdade e, antes, um compreenção má da experiência do verdadeiro,
que também se dá no câmbito extra-cientifico. O estatuto da London Royal Society, no 1660,
podia proclamar que ela teria presciindido de toda discussão de religião, retórica, metafísica,
moral e política; não teria pressusposto dogma algum; não teria formulado hipóteses; teria
conhecido a natureza unicamente atrvés da experiência. E Ernest Renan disse no seu tempo
que a ciência, e somente a ciência, pode dar à humanidade aquilo o sem o qual ela não pode
viver.
Esta confiança na ciência levou rapidamente a uma forma de otimismo científico,
porque foi conferido ao homem o poder de conhecer o universo,desde a menor célula do
organismo humano até a maior galáxia do firmamento, o poder da manipulação da matéria e
das fontes da vida, graças ás tecnologias muito avançadas, para eliminar os males da pobreza,
da doença, da ignorância, da opressão. Foi-lhe favorecida a vontade de estar bem, porque se
conserva a beleza por mais tempo, se envelhece sempre mais tarde, porque pode viver com o
coração de um outro, com um pulmão artificial,se fazem filhos além de qualquer barrera da
biologia, porque se poder tornar-se mãe aos 60 anos. A pesquisa cientifica abriu tais e tantas
possi-bilidade de bem estar físico que a expectativa de um mundo sem doenças, já parece a
muitos mais que legítima, mesmo se, de um ponto de vista concreto, a derrota de fantasmas
como o cancer, a Aids, ainda está longe para ser uma realidade, porque o cancer continua
sendo a principal causa de morte nos paises ocidentais e, embora o desafio para cronicizar o
virus da Aids tenha dado bons resutados, não se dispõe ainda das relativas vacinas. Mas a
ciência concientizou que os remédios, a cirurgia, as técnicas podem fazer muito pelo nosso
corpo e fazem nascer um otimismo irracio-nal de preferência. Por exemplo, o pesquisador
italiano Pier Giuseppe Pellicci, diretor do IEO, (Instituto Europeu de Oncologia) de Milão,
em Dezembro de 1999, afirmou ter escoberto p66shc, acima citado, por brevidade, ‘scic’, o
genes da vida, responsável pelo envelhecimento da celula, e afirmou que cietificamente não
existem provas que a morte seja geneticamente determinada por uma necessdade biológica.

2.5.3.2. Nos últimos decênios, a confiança irracionaal no poder da ciência começou a trincar-
se, sobretudo depois que os limites do absolutismo científíco foram postos em evidência
pelos filósofos da Escola de Franckfurt e pela controvertida epistemo-logia de Karl R.
34

Popper. Este último fez notar que as teorias cientificas vão e vêm, são e permanecem
desmentíveis. Além disso, lentamente convenceram-se de que os discursos não científicos,
como as teorias filosóficas, não são de fato insensatos como pretendem os neopositivistas; que
o cérebro não explica a mente; que o determinismo não é sustentável; que também não é
sustentável o consequente fatalismo, porque o futuro permenece fundamentalmente aberto
para as nossas escolhas e para o nosso empenho de cidadãos livres e responsáveis numa
sociedade aberta. Para algns seria exatamente um correspondente ‘científico’ do nihilismo
religioso ou filosófico pelo fato de que muitos cientistas têm a sensação que a empresa
científica poderá desenbocar no nada. “Existe, de fato, uma consciência crítica, ‘na ciência’,
da possibilidade de um fracasso da razão E esta consciência não é apenas colocada
historicamente nos momentos de introspecção e de revisão crítica dos princípios, como foi,
por exemplo, pela crise dos fundamentos da matemática do começo do século XX. Pode-se
perceber um sentido de perigo e de ameaça também nas palavras de cientistas empenhados em
grandiosas inovações, que parecem emanar um sentido de poder e de otimismo mais do que
fraqueza ou de crise. Ao contrário, existe frequetemente, uma consciência, na própria
atividade científica, do nihilismo silenciosamente operante por trás das grandes conquistas da
religião”.
Em nossos dias, de qualquer modo, ninguém mais coloca em dúvida que as realidades
terrenas sejam autônomas e temos o leis próprias e estatutos próprios epistemológicos, que
devem ser respeitados por todos aqueles que estão empenhados em uma profissão civil. A
pesquisa científica e a atividade humana em geral, se desenvolvem segundo as próprias leis e,
em relação às normas morais, não se opõem nunca à fé, porque “as realidades profanas e as
realidades da fé possuem origem no mesmo Deus” (GS 36). A este propósito, o Vaticano II,
citando o caso de Galileu Galilei, deplorou a atitude daqueles cristãos que, no passado, não
perceberam nem aceitaram a legítima autonomia da ciência e confundiram a mensagem
religiosa revelada com uma visão particular do mundo no qual ela foi expressa. (GS 36). João
Paulo II acentuou que a Igreja nutre grande estima pela pesquisa científica e técnica, já que
constiuem uma signficativa expressão do domínio do homem sobre a criação. (C.da Ig.Católica,
n.2293) e um serviço à verdade, ao bem e à beleza”.
Mas, de qualquer maneira, é evidente que não será nunca a ciência que nos dirá aquilo
que devemos fazer; nem será a ciência que nos ensisnará em que coisa nós podemos esperar.
Ela, por principio, não responde às perguntas mais importantes e decisivas da existência
humana, porque pára na explicação do ‘como’ da realidade e não pode dizer nada sobre o
“porque” da mesma realidade. A encíclica “Fides et Ratio”, assim como colocou em guarda
contra do absolutismo racionalístico, colocou também em guarda contra o absolutismo
científico e denunciou o fato de que a concepção filosófico-científica se recusa em admitir
como válidas as formas de conhecimento diversas daquelas que são próprias das ciências
positivas, relegando aos confins da mera imaginação, quer o conhecimento religioso e
teológico, quer o saber ético e estético. Para o cientismo, os valores são relegados a smples
produtos da emotividade e a noção do ser é posta de lado, para dar espaço à pura e simples
factualidade. A ciência domina todos os aspectos da existência humana através do progresso
tecnológico e a mentalidade cientista conseguiu fazer aceita por muitos a idéia, segundo a
qual, o que tecnicamente factível se torna, por isso mesmo. também moralmente admissível
(Fides et Ratio,88).

2.4.1. Uma
antropologia fundada nos ideais de liberdade e de democracia.

2.4.2. Segundo
HEGEL, a liberdade é o sinal distintivo da idade moderna, com a qual o homem entrou no
35

“período do espirito em que se sabe livre, enquanto quer o que é verdadeiro, eterno, universal
em si e por si”. Esta liberdade nutriu a aspiração e a esperança de todo o século das luzes,
inspirou os ideais dos teóricos da perfectibilidade indefinida do homem, como Jean-Antoine
Condorcet, que escreveu o famoso ensáio sobre confiança absoluta no progresso do homem.
A revolução francesa e, depois dela, todas as outras que se sucederam em lugares e tempos
diversos, proclamaram, ao menos formalmente, os ideais da liberdade, da fraternidade e da
igualdade, como a base de toda forma de convivência civil e de toda orgnização democrática.
O primeiro artigo da Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 26 de agosto de
1789, que afirma que “os homens nascem e permanecem livres e iguais”, pode ser consi-
derado como o início do longo caminho da emancipaçao que percorreu a moderna civilização
ocidental. Os últimos séculos da história ocidental, de fato, foram caracterizados por
processos de emancipação e de liberdade que mudaram o aspeto e a configuração da
sociedade. Pense-se na emancipação do sujeito, promovida pela correntes filosóficas do
iluminismo, na emancipação do cidadão, inaugrada e defendida pela revolução francesa, na
emancipação da classe operária, inspirada pelas teses revolucionárias do marxismo, na
emancipação da mulher, na defesa dos diversos movimentos feministas, na emancipação dos
critérios morais divergentes, proposta pela cultura radical mais libertária, pela qual existe
somente a liberdade da e a liberdade de, mas não a liberdade para.
A antrologia imanentista na qual aproaram estas correntes de pensamento, todavia, fruto
direto da eliminação e da rejeição de toda forma de transcendência, levou a considerar o
homem como o centro absoluto da realidade, fazendo-o ocupar artificialmente o lugar do
próprio Deus. O ter enfraquecido Deus, ou pior ainda, o ter esquecido Deus abriu um
vastíssimo espaço para o livre desenvolvimento do nihilismo no campo filosófico, do
relativismo no campo do conhecimento e, no campo moral, do pragmatismo e até do
edonismo cínico na configuração da vida quotidiana. Seguiu-se o sonho de construir um
mundo verdaderamente humano num único fundamento das puras potecialidades do homem.
O eclipse de Deus na consciência moderna levou a uma visão desmedida da subjetividade
como fonte última e fundamento da verdade. Neste quadro, a liberdade, entendida como fonte
última de toda a verdade, acabou por ser considerada dona e soberana do mundo, desprovida
de outra lei que não seja o seu próprio projeto. Tudo isso levou não somente a uma particular
violação dos direitos das pessoas, mas também à concepção e à praxe do ‘estado tirano’, livre
de qualquer valor e norma que não seja a pópria soberania. O nacional-socialismo e o
comunismo foram as manitestações mais nefastas deste conceito de estado. Mas, no Ocidente
e no Oriente, nem mesmo as democracias se subtrairam da ameaça de serem manipuladas e de
se transfomarem, assim, em receptáculo de atos e atitudes sociais que colocam em perigo,
quando não os violam diretamente, os direitos invioláveis da pessoa humana e das instituições
originárias que a protegem. A passagem de uma lógica de normas e de limites a uma lógica na
qual tudo é negociável e opinável, produziu uma sociedade da incerteza na qual se combinam
técnicas de controle ou de consenso sobre pessos e formas violência gratuita, da qual
dificilmente se sai com resignação do incômodo ou com a forte proclamação da tolerância
zero.

2.5.4.2 Uma dimensão muito importante dos ideais de democracia e de liberdade que
contradistinguem a visão antropológica da modernidade é seguramente a concepção da
tolerância. Da idade moderna em diante, de fato, o sentido da identidade e superioridade
adquirido pelos cristãos europeus, que chegava a justificar deveras a pena de morte para os
hereges internos e a guerra de religião para os hereges externos, deveria se confrontar com a
presença de mais cristianismos, cada um dos quais apresenta a pretensão de possuir uma
verdade sua, e está disposto a usar a força para defender esta sua verdade e eliminar
fisicamente o adversário. A Reforma protestante tinha reduzido a cacos a unidade dogmática,
36

litúrgica e disciplinar da cristandade medieval e colocado em crise os esquemas teóricos e


práticos da convivência com os “diferentes”.Isto, por um lado, levou à demonização do
‘diferente’(o ser luterano para os católicos, ou ser papista para os sequazes da Reforma) e à
radicalização do desencontro entre as cofissões religiosas no plano civil e político, e, por
outro lado, ao emergir da necessidade, mais pragmática que teórica, de tolerar o adversário
que não conseguia eliminar.
Com o nascimento do problema da relação entre diversas confissões, da possível
exclusão da força e do recurso à autoridade civil para resolver questões de ordem estritamente
confessional, a partir da metade do século XVI, o tema da tolerância adquiriu uma verdadeira
dignidade teórica e política. Pelo fim do século XVI e no século XVII, a causa da tolerância e
a da liberdade de consciência assumiram importância determinante sobretudo na França, na
Holanda e na Inglatera, ou seja, naqueles países nos quis o radicalizar-se do desecontro entre
o Estado e as diversas confissões religiosas investia a mesma reflexão sobre o sentido, os
limites e as prerrogrativas da autoridade pública. Na cultura francesa destes séculos, em
seguida ao advento do absolutismo real e da consequente revogação das liberdades religiosas,
as idéias de tolerância e de liberdade de consciência asumiram, também por causa do
movimento ‘libertino’, o significado político de contestação ao absolutismo. Ao mesmo
tempo, elas receberam um novo impulso teórico com o afirmar-se do racionalismo, do
pensamento crítico e da mentalidade científica. Após a revogação do Edito de Nantes (1685),
P. Bayle, sustentando a relatividade da certeza da razão e da fé, revindicou o direito
intocável da liberdade de consciência ondividual. Na base do reconhecimento da inexistência
de um critério racional objetivo capaz de estabelecer a verdade e da convicção que a fé é
conquista moral da consciência de cada um, ele se declarou a favor da tolerância como
escolha razoável de progresso e de paz no seu Dictionnaire historique et critique (1697).
Análoga convicção expressou o filósofo holandès Baruch Spinosa no seu Tractatus
theologicus, publicação anônima em Amsterdam, em 1670. Spinosa defendia uma liberdade
religiosa incondicionada, baseada na asserção geral da liberdade intelectual e civil,e garantia
pelo supremo valor normativo da razão. A tolerância, então, não era mais uma escolha
oportunista, guiada por motivações políticas, mas sim uma escolha racional de liberdade e de
democracia,
Todavia, pode-se sustentar que o signficado moderno de tolerância seja estabelecido
especialmente por J. Locke. No mesmo ano em que na Inglaterra era promungado o
Toleration Act (1689), saía a carta anônima De Tolerantia, na qual o filosofo inglês deu uma
completa sistematização às prospectivas presentes no seu precedente ‘An Essay concerning
Toleration (1667). A questão da tolerância era afrontada do ponto de vista político, com a
finalidade de atuar uma pacífica convivência civil.
A tolerância constituía um elemento fundante da ideologia liberal, centrada na clara
separação entre autoridade civil e autoridade religiosa e sobre a consequente impossibilidade
de interferência recíproca. De um lado, está o Estado, uma sociedade humana que possui
como fim a conservação e a promoção dos bens civis, como a vida, a liberdade, a
propriedade, a segurança, a paz e detém o monopólio da força. O outro lado, está a Igreja,
uma sociedade livre de homens que espontânea e volun-tariamente se unem para a para a
salvação da própria alma e para adorar em público a Deus. Estas duas instituições são livres e
independentes uma da outra. A relevância política da tolerância teorizada por Locke será
colocada em particular evidência também pelo pensamento de Voltaire, autor do Traité Sur
la tolérance à l’occasion de la mort de Jean Calas (1763), e do vocábulo Tolérance no
Dictionnaire philosophique(1763).

Finalmente, o tratado On Liberty (1859) de Stuart Mill é considerado comumente como um


texto emblemático de referência do pensamento liberal do seculo XIX. Nele se defende, com
37

força, a individualidade emancipada e libertade do cidadão de qualquer interferência e de


todo o vínculo social e político. Para Stuart Mill a realização da democracia política se baseia
no respeito incodicionado da liberdade individual de perseguir o próprio bem de modo
próprio, com a única exceção da violação dos interesses e dos direitos dos outros. Segue-se
que a sociedade deve, de um lado, tolerar os comportamentos anti-sociais (como, por exemplo
o etilismo e a cobiça) que não trazem nenhum dano diretamente a alguém e entram na
esfera soberana das preferências individuais e, do outro lado, consentir a máxima expressão
de todas as indivudalidades, defendo os direitos das minorias e promovendo as riquezas das
diversas experiências de vida.

Com a passagem da era modena à contemporânea, a concepção da tolerância sofreu


uma profunda evolução. O aparecimento, nas democacias ocidentais liberais, de fenômenos
como a reivindicação do reconhecimento público por de grupos minoritários internos e os
fortes fluxos migratórios provenientes de países mais pobres, fez emergir novos problemas
de tolerância tanto sob o perfil teórico como político. As sociedades liberal-democráticas
conteporâneas se relacionam de modo novo com as questões da tolerância, reexaminando a
natureza e os fins com argumentações quer de ordem política quer de ordem epistemo-lógica.

Pelo que diz respeito ao aspecto político da questão, a afirmação, nas sociedades
democráticas, de um pluralismo não só de idéias e de valorers mas também de gupos que
possuem ‘status’ diferenciados, que coexistem e reivindicam uma visibilidade pública,
deslocou o debate da filosofia política das temáticas da justiça distributiva dos anos setenta e
oitenta (do século XX) para as temáticas do pluralismo. A perspectiva mais significativa foi
elaborada pelo filósofo americano J. Rawls, que propôs a radicalização da noção Stuart Mill
de tolerância através da idéia da neutralidade do Estado. Na base da distinção entre
concepção do justo e concepção do bem, Rawls teorizou uma completa indiferença da parte
da autoridade pública nos confrontos das diversas e contrastantes concepções do bem que
cada grupos de cidadãos pode condividir. Em situações de pluralismo acentuado como as da
sociedade multiétnica contemporânea, a legitima política pode ser definida somente pelo
consenso. Este consenso exigido pela legitimidade é constituido, pois, por principios neutros
comuns, no sentido de que o que pode ser condividido numa sociedade pluralista, não pode
ser senão neutral e o êxito do acordo deve ser, por sua vez, neutral, sob pena de tratar de
modo discriminatório as diferenças morais. Os principios teóricos e operativos para obter o
consenso são um pluralismo razoável e um´’consenso por sobreposição’. Na base do gozo
comum dos direitos da palavra, da religião, da associação, da liberdade de imprensa, os
homens raciocinam e decidem de modo diverso e o fruto de seus raciocínios e das suas
decisõe pode ser acolhido, justamente, por um pluralismo razoável e por um consenso por
superposição

Pelo que diz respeito ao aspecto epistemológico, a questão da tolerância se coloca no


contexto da relação entre verdade e democracia e pretende superar a tese relativista
que pensa ser a única concepção compatível com.o pluralismo. O exemplo mais sisgnficativo
de justificação relativista da democracia é o texto clássico de H. Kelsen,’Os Fundamentos da
Democracia’ que sustenta a tese, segundo a qual, em um sistema baseado em valores
absolutos, não podem encontrar lugar valores democráticos, como a tolerância, os direitos
das minorias, a liberdade da palavra e de pensamento. Somente a perspectiva relativista, que
implica a possibilidade, quer lógica quer moral, de excluir juízos opostos de valor, está em
condições de se colocar como antenticamente democrática, enquanto que a crença numa
verdade absoluta comporta a imposição, pela força, da prória verdade a quem pensa
diversamente. Esta imposição relativista é rejeitada, entre outros, pelo epistemólogo K.R.
Popper, que tomou distância dela no ensaio ‘Tolerância e responsabilidade individual’
38

(1981). Popper, como se sabe, possui uma concepção problemática da verdade e sustenta
que, dado o caráter inevitavelmente congetural da ciência, a procura pública da verdade
deva adevir não com a imposição, mas com o diálogo, baseado em argumentos racionais e
condivisíveis.

2.6 - O cristianismo e a antropologia da modernidade.

Uma vez delineado o rosto da modernalidadee e uma vez configurada antropolgia com
as características que acabamos de descrever no último capítulo, nos resta ver como o
cristianismo se tem ralacionado com esta antropologia ao longo dos séculos passados e como
se relaciona ou deve se relacionar com ela em nossa situação da pós-modernanidade.

2.6.1. Partimos do fato inconteste de que a cultura cristã é, sem dúvida, o berço da
modernidade ocidental. Quer sob o ponto de vista histórico quer geográfico, quer do ponto de
vista espiritual quer intelectual, o nascimento e o desenvolvimento do mundo moderno
afundam as raízes na cristianidade. A própria a noção de Ocidente, assim como a de
mordernidade, estão ligadas ‘conteudisticamente’ à uma relação negativa ou positiva com a
cristianidade. O Ocidente, com efeito, etimologicamente, indica uma civilizção em declínio,
ou seja, o estado da civilização cristã como existe depois do moderno, isto é, depois da
tentativa de sua laicizização e depois da de sua destruição por obra do totalitarismo. A noção
de modernidade, ao invés, baseada numa indicação cronológica, está essencialmente ligada
ao desenvolvimento do tempo em sentido progressivo, introduzido na cultura ocidental pela
tradição hebraico-cristã. Foi Santo Agostinho, como já vimos, que transformou o tempo
cíclico dos gregos, concebido como um contínuo retorno ao idêntico, num percurso da alma;
que deu a este um valor e a espessura de história, porque o ligou à realização de uma
promessa de salvação futura. Foi sempre o mesmo Agostinho que assinalou um papel
determinate à antropologia nos processos do conhecimento da verdade da fé e que inaugurou
a virada antropológica, muito tempo antes de que ela fosse tematizada pela filosofia e
teologia contemporâneas, quando propôs como itinerário para chegar concepção de Deus Uno
e Trino, a interioridade humana, em substituição à exterioridade do mundo da natureza. Não
obstante algumas tentativas tenazes de tirar toda referência cristã à medida do tempo, nós
vivemos um tempo histórico estruturado pelo advento de Cristo. O calendário cristão, que
mede o tempo a partir do conhecimento de Cristo, se impôs a todos os outros calendários e a
história universal, de fato, é medida por um valor cristão anônimo mas real e eficaz.

Por outra parte, pense-se como a Bíblia marcou profundamente a história e a cultura do
Ocidente, a ponto ter sido definida o grande código da cultura ocidental. Arquitetura, pintura,
escultura, música, teatro, cinema buscam nas Esrituras temas, perguntas, propostas; e artistas
do calibre de Giotto e Cimabue inventaram o alfabeto da linguagem artística ocidental. Pense-
se, ainda, na contribuição fundamental que o monaquismo deu ao desenvolvimente da
agricultura, além da arte e da liturgia. Monges como Bento, Beda, Desiderio e Gregório
Magno, São Bernardo, Sâo Romualdo fizeram a Europa. A mesma concepção blíblica de
Deus teve profundas consequências para a concepção do homem e do mundo. A Biblia, com
efeito, cultivou sempre um rígido monoteísmo e apresentou e defendeu a divindade do único
Deus e Senhor ”criador de todas coisas” (Gn 10,16). A consequência direta e imediata da
defesa deste monoteísmo foi a mundanização do mundo. Pode-se sustentar que a teologia da
criação foi, com efeito, o primeiro pressuposto de uma autêntica secularização, porque na
medida em que se afirma que o mundo foi criado por Deus, se afirma que ele não é divino,
mas finito, secular, mundano. O mundo é o não-divino e, como tal, se contrapõe a Deus, numa
relativa autonomia. Justamente a reafirmação da dimensão mundana do mundo e da afirmação
criatural da criatura levou a dizer que as modernas ciências naturais e a técnica, e em gral e
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a moderna consciência secularizada, são, ‘de fato e de direito’, uma consêquencia de uma
revelação hebraico-cristã a respeito da criação. Ela, com efeito, reduz o mundo a ser objeto
de pesquisa teórica e do domínio prático do homem. A fé na criação confiou o mundo,
como pofano mundo mundano, ao saber investigador e à vontade plasmadora do homem,
porque, quer o Antigo Testamento quer o Novo Testamento, já desde sempre atuaram uma
fundamental e densa demitologização do mundo.

À mundanização do mundo corresponde, quase especularmente, uma respon-


sabilidade mais acentuada do homem, esta entendida como entrega em confiança de algo a
administrar e cuidar, e não como uma emacipação do homem e do mndo do domínio e da
presença de Deus, O risco de extinção da humanidade não vem mais de uma ameaça cósmica
externa, mas da própria atividade humana. Pela primeira vez, no processo conhecido como
hominização, o ser humano se dotou de instrumentos capazes de o destruir. Criou-se o
princípio de auto-destruição que possui a sua contrapartida no princípio de responsabilidade.
De agora em diante, a biosfera estará à mercê da decisão humana. Para continuar a viver, o ser
humano deverá quere-lo.”Deus coloca o que está colocado e a diferença disto em relação a
ele. Mas, justamente porque Deus coloca o que está colocado e a diferença disso em relação a
ele, isto que é colocado é diferente de Deus, é realdade autêntica, não mera aparência atrás da
qual se celebrariam Deus e a sua verdadeira realidade”. A lei de fundo que subjaz à relação
cristã ‘Criador e criatura’ é por isso: a dependência radical e a autêntica realidade do
existente, que tem a sua origem em Deus, crescem em proporção direta e não inversa”. Na sua
‘teologia do mundo’ Metz escreveu que “a mundanidade do mundo, como andou surgindo no
processo moderno de mundanização e como se apresenta a nós hoje, em forma globalmente
exasperada, surgiu em seu fundamento, mesmo senão em cada manifestação histórica, não já
contra, mas sim graças ao cristianismo; ela, originalmente, é um acontecimento cristão e
assim testemunha a capacidade de dominação interna da história da hora de Cristo em nossa
situação mundana”. De outra parte, as idéias como a universlidade da razão, a liberdade
pessoal, a abertura ao futuro da historicidade humana, a superioridade do homem sobre a
natureza, a unidade da humanidade, próprias da idade moderna, nada mais são que formas
derivadas e secularizadas de verdades originariamente cristãs.

2.6.2. O conflito entre cristianimo e modernidade.

Tudo isto não quer dizer, porém, que a relação entre cristianismo e modernidade, no
curso dos séculos tenha estado sempre tranquila e isenta de conflitos. Se, com efeito, levando
em conta a multiplicidade dos aspetos da modernidade, se quer examinar como o cristianismo
se tenha relacionado com ela, antes demais nada é preciso constatar que o surgir e a
afirmação de muitas idéias modernas, como a liberdade individual e religiosa, a democracia,
a autonomia da pesquisa científica, inicialmente, tornaram a Igreja e os cristãos muito
suspeitos. Sobretudo a defesa da autonomia absoluta da razão humana era considerada como
ante-câmara da rejeição da fé em Deus e de toda referência transcendente. “É conhecido,
escreve Metz, que a Igreja católica e a tendência de fundo de sua teologia acompanharam a
história européia moderna com uma atitude mais ou menos defensiva. Assim, por exemplo,
ela não participou de um modo verdadeiramente produtivo da ‘história de liberdade’ da idade
moderna e, sobretudo, dos processos do iluminismo burguês e pós-burguês, frente aos quais,
ao contrário, o mais das vezes se fechou, Os assim chamados ‘tempos católicos’ da idade
moderna, sobretudo do iluminismo em diante, quase sempre, foram substancialmente tempos
‘contra’ : os tempos da contra-reforma, os tempos do contra-iluminismo, os tempos da
contra-revolução, os tempos da restauração política e do romantismo. Certamente, podemos
ver também uma notável sensibilidade pelas profundas contradições que agitavam o espírito
europeu do tempo e a sua história de liberade, e se pode reconhecer uma intuição da dialética
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interna a estes fenômenos. Podem-se ignorar, depois, os atrasos históricos que,


especialmente à Igreja católica e à sua teologia, tornaram tão difícil uma conjugação
criativa da história da religião com a história da liberdade”. É verdade que na Idade Média
foi exatamente a Igreja que se fez de madrinha para as primeiras universidades, e a Bíblia
era o principal objeto de estudo. Também é verdade, como rebateu João Paulo II no discurso
aos cientistas, por ocasião jubileu, por nós citado há pouco, que de Copérnico a Mendel, de
Alberto Magno a Pascal, de Galileu a Marconi, a história da Igreja e a história das ciências
nos mostram claramente como existia uma cultura científica radicada no cristianismo. Mas,
segundo o diagnóstico histórico de C. Allègre, depois de ter atraído a ciência ao próprio
território, o cristianismo procurou controlá-la e orientá-la e, não o conseguindo, a perseguiu.
Aos 17 de fevereiro de 1600 Giordano Bruno foi queimado vivo em Campo dei Fiori, pois
além de ter negado dógmas católicos fundamentais como o da Trindade e o da divindade de
Jesus, também sustentaou que o espaço é infinito e que as estrelas são outros sóis, ao redor
dos quais giram outros planetas.

Galileu Galilei, em 1663, foi obrigado a retratar diante do Santo Ofício a doutrina do
movimento da terra. A Sorbone de Paris, em1747, viu como um atentado à verdade do
Gênesis a teoria da terra de Georges Louis Leclerc, conde de Buffon, na qual se explicava
que as estruturas geológicas, que se podem observar no terreno, são o resultado de uma longa
história, e que a geologia é antes de tudo ciência histórica, dominada pelas relações entre a
terra emersa e o mar. No setor de biologia é bem conhecida a aversão inicial do cristianismo
contra a prática da medicina, porque se pensava que os doentes não deviam ser curados pois
a doença era fruto da vontade de Deus e preço de sofrimento a pagar pelo pecato original.
Não por acaso, durante toda a Idade Média os grandes médicos são de religião hebraica e
muçulmana, como o hebreu Moisés Maimonede (1135-1204) e o árabe Avicena (980-1037).
E a primeira escola medieval de medicina em Montpellier foi obra de médicos hebreus. A
Igreja católica se mostrou reticente nos confrontos com a medicina árabe e hebréia da Idade
Média e a ela prefria a medicina de Galeno, por toda uma serie de convicções, como, por
exemplo, aquela de que o corpo é sagrado, o sangue detestável, a dissecação suspeita e os
órgão genitais proibidos. A partir de 1131, proibiu-se aos clérigos a prática da medicina e
esta proibição permaneceu em vigor até a reforma conciliar do Código de Direito Canônico
de 1983. No início do século XIX, depois da derrota de Napoleão, a Igreja se opôs à
vacinação anti-varíola, sustentando que Deus poupa quem quer, fez a natureza com as
epidemias e não é tarefa do homem retificar a criação. A vacinação foi proibida no Estado
Pontifício e a epidemia de cólera de 1832 foi apresentada pela Igreja como uma punição
divina da revolução de 1830. Finalmente, a teoria da evolução biológica da espécie humana,
proposta pela primeira vez por Lamarck (1744-1829) e divulgada sobretudo pelas as obras de
Charles Darwin (1809-1882), foi condenada por todas as Igrejas, sem nenhuma ezitação.

Até o advento do iluminismo, primeiro, e ao estourar a Revolução Francesa, em seguida,


a convivência entre valores cristãos e modernidade podia, ainda, considerar-se bastante
pacífica e se aceitava sem particulares problemas a autoridade de uma verdade revelada,
embora a falta de acordo sobre como interpretar esta verdade tenha levado à condenação de
Galileu. A partir do iluminismo e da Revolução Francesa, a convivência com muitas idéias
da modernidade tornou-se sempre mais problemática e conflitual, a ponto de chegar, em 1864,
à condenação do mundo moderno a-cristão e anti-cristão pelo Sillabus de Pio IX, cujo o
critério-guia era que o Romano Pontífice não pode e não deve reconciliar-se, nem concordar
com o progresso, com o liberalismo e com a civilização moderna. O desencontro entre Igreja
e modernidade se aguçou exatamente sobre o conceito de homem, porque esta última partia
do principio de que para pensar o homem não era necessário pensar Deus. A moral podia
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muito bem existir ‘etsi Deus non daretur’. O cristianismo ocidental de algum modo foi
constrangido a se tornar anti-moderno,”na medida na qual a razão do Iluminismo tirava o
apoio (descalçava) à autoridade da revelação e da tradição e na qual o advento das sociedades
democráticas contestava diretamente o princípio hierárquico da sociedade-igreja”. A
resposta histórica proposta para manter a integridade da tradição cristã diante pretensões
sacrílegas da modernidade foi o “catolicismo intransigente”.

Mas justamente este catolicismo intransigente, segundo o historiador Giorgio Rumi,


impediu a camunidade cristã de dispor de um grande herói popular, como por exemplo foi
José Garibaldi para a comunidade política, o qual desse respaldo público `as convicções
pessoais da fé. A igreja italiana não teve um um grande herói popular do Ressurgimento,
apesar de o início do pontificado de Pio IX ter suscitado esperanças e ideais de liberdade.
Esta falta de presença pública entre os heróis do Ressurgimentos criou aquela separação
entre mundo civil e mundo cristão que ainda perdura. Justamente a oposição à modernidade
impediu o mundo cristão do século passado de dar força cultural aos próprios ideais de
liberdade, de respon-sabilidade e de participação.

Ao Ressurgimento italiano faltou um grande herói popular como, por exemplo, foi
Papa Pacelli (Pio XII) nos anos 1940-1945 da segunda guerra mundial. Neste quinquênio Pio
XII foi verdadeiramente o único ponto de referência para o País desanimado e humilhado.
Um Papa bom, presente, que manchou o hábito de sangue andando entre a gente
bombardeada.Um papa que soube assumir sobre si a respeitabidade que todos os outros
políticos e eclesiásticos tinham perdido.

Na verdade, já antes da laceração radical da revolução francesa, alguns homens de


Igreja vislumbraram a possibilidade de um assim dito ilumismo critão, isto é, de um
entendimento entre a fé e a razão, entre o catolicismo e a idéia de progresso. O progresso
podia ser visto também como participação do homem na atividade criativa de Deus. Por
exemplo, o pai da historiografia italiana, o abade de Módena, Ludovico Antonio Muratori,
(1672-1750), sentiu muito forte a exigência de uma reforma religiosa, quer para a prática
devocional, quer para a cultura historico-ecle-siástica. Ele apontou muito pára o elemento
crítico-racional e sustentou sempre o uso correto e comedido da razão, que não deve chegar a
perturbar as verdades de fé. Outros pensadores católicos do século XIX, como Gioberti, Man-
zoni, Newman, Möhler, Rosmini, Tapareli D’Azeglio, ainda nos tempos de confrontos
políticos e polêmicas ideais, procuraram inteligentemente distinguir os valores positivos da
racionalidade e da liberdade das formas de anticlericalismo político e de racionalismo
exasperado, e promoveram um estilo permeado de uma profunda espiritualidade, de um sério
empenho cultural, de uma serena militância social. Um estilo, sobretudo, inardinado na
prioridade da sociedade civil a respeito do estado. Para estes grandes homens de cultura e de
fé a contraposição entre catolicismo e liberalismo não deveria ser automática e inevitável.
Estes não participavam da escolha da Igreja de colocar-se como alternativa à modernidade no
plano social e político. Qualquer forma de dialética poderia ser certamente aceitável no plano
espiritual, já que a modernidade não reconhece a Revelação cristã como norma do
pensamento e da ação. Mas, pelo que diz respeito ao plano político, não era necessário
traduzir a diferença espiritual em diferença política ou social.

No início do século XX a inconcialibilidade entre cristianismo e modernidade


encontrou expressão emblemática no ‘non expedit’, a diretiva que proibia aos católicos
italianos participar na vida política por protesto contra a usurpação consumada com a
unificação do Reino da Italia, com danos ao Estado Pontificio. E nesta esteira nasciam depois,
num clima de separação e de contraposição, os sindicados católicos, os bancos católicos, etc.
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Frente às ideologias que toma-vam pé no novo século, como o liberalismo, o


socialismo e, depois, o comu-nismo, com a encíclica “Rerum Novarum”, Leão XIII dava
forma à doutrina social da Igreja, que deveria ter representado uma alternativa. Por sua vez,
Pio X, ao início do século, julga necessária uma intervenção drástica (1907) para decepar o
movimento modernista, dando a impressão a muitos, dentro e fora da Igreja, de tomar, assim,
posição hostil contra a modernidade, tanto mais que no plano cultural o embasamento no
neotomismo aparecia sempre mais intransigente. Nos anos 50, a expansão aparentemente
irresistível do regime sovietico, não só na Europa mas também na África e na Ásia, induzia
muitos católicos a ver nele uma ameaça mortal para o cristianismo; era, portanto,
indispensável e irrenunciável uma atitude de defesa. Assim a Igreja católica pareceu curvar-
se sobre si mesma, assumindo a aparência de uma cidadela assediada. Em 1950, Pio XII, com
a encíclica “Humani Generis”, expressou no mais alto estas preocupações, até o ponto de
desconfiar de quase todos os fermentos de renovação presentes no seio da Igreja, sobretudo
com o movimento ecumênico e bíblico.

2.6.3. A historização da modernidade.(resumo).

Augusto Del Noce apresenta a seguinte interpretação da modernidade. Segundo diz este
filósofo católico que embora a modernidade afirme a autonomia do homem, não seria por si,
um afastamento de Deus, não seria um ateísmo, por que no mundo moderno existe uma linha
de pensamento dirigida à recuperação e ao afinamento do pensamento metafísico e religioso
tradicional. Del Noce afirma o seguinte: não se deve dar um valor axiológico à idéia de
modernidade. Esta não deve ser entendida como uma visão do homem e do mundo que possui
mais valor e que, portanto, é melhor que aquela do passado. Não é necessário definir a
modernidade a partir da contraposição moderno-anti-moderno. A idéia de modernidade é
historizada e problematizada. E, consequentemente, são reconhecidos os valores da
civilização moderna, pelo que eles representam em si mesmos e não porque se afirmam em
oposição ao passado. Para cancelar o valor axiológico da idéia de modernidade, Del Noce se
refere, de modo particular, a Descartes, habitualmente considerado como iniciador do
pensamento moderno e, distinguindo-se dos outros filósofos, dá uma valorização ‘histórica’
do seu racionalismo. Descartes, se encontra diante de dois adversários, o protestantismo e o
ceticismo libertino, que tinham um ponto em comum: a depreciação da capacidade da razão
de compreender a verdade. Descartes propôs, então, a revalorização da dignidade da razão
sob forma do argumento do ‘cogito’, o qual exprime a convicção de que existe um método de
pensamento que leva à compreensão da realidade. Este método consiste em seguir a
evidência, a partir da evidência do ser do próprio “eu”. Neste modo, o racionalismo
cartesiano é avaliado na sua precisa função histórica e não é utilizado ou instrumentalizado
para contrapor uma ‘época boa’ à uma ‘época má’.

Não obstante, porém, a história da relação entre cristianismo e modernidade tenha sido
muito articulada e não tenha procedido nunca num sentido único, e apesar da positiva
interpretação historizada da modernidade da parte de Del Noce, a versão hodierna mais
frequente desta relação aceita por vários intérpretes da cultura ocidental, infelizmente, é a de
sua recíproca exclusão. Segundo alguns críticos, a história da modernidade é lida como
progressiva perda de Deus, a modernidade frequetemente identificada como uma antropologia
anticristã e antireligiosa, a autonomia do homem e da razão como um abandono da teonomia.
A modernidade teria teorizado a rebelião contra Deus ou pelo menos a tomada de distância
Dele, teria consumado a traição da natureza humana e procurado a decadência de toda forma
de humanismo. É óbvio que, se se levam em conta os tons particulares que a problemática
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moderna da autonomia assumiu nas obras de autores como Feuerbach, Marx e sobretudo
Nietzsche, se entende a razão profunda pela qual a teologia, ao menos inicialmente e por
instinto, tenha julgado um dever salvar a própria integridade com a regeição da moderna
pretenção à autonomia. Mas este autores, de fato, representam a face negativa da
modernidade, a radicalização das dimensões, por outro lado, positivas da autonomia da ação
e da racionabilidade do pensamento.

Muito frequentemente, na realidade, em alguns ambientes culturais, a dimensão


antropológica da teologia é confundida com a dimensão ‘antropocêntrica’ da mesma, e é
indicada como causa da perda dos valores cristãos da sociedade contemporânea. Se
estudarmos com suspeita as temáticas da antropologia teológica, se lhe coloca em dúvida a
própria legitimidade de estruturação e de expressão. O cristianismo terá um futuro, sustenta-
se, somente se renunciar à modernidade, porque os ideais desta última estão já ultrapassados
ou ao menos traídos.Vem almejado o fim da filosofia da subjetividade, isto é, daquela forma
de pensamento na base da qual toda a ordem do conhecimento da realidade é concebida à
partir do próprio homem A autonomia completa do homem ter-se-ia revelado simplesmente
utopia. Não existiria mais uma ’razão’, à qual todos se devam, ‘kantianamente’, se submeter.
Os sonhos de um progresso indefinido de civilização e de liberdade, nutridos por todos os
expoentes da modernidade, foram traídos pela atrocidade das duas guerras mundiais e pela
prática de toda forma de crueldade e de opressão da parte dos regimes desumanos e
totalitários.

O que distingue, segundo Rousseau, o homem do animal é precisamente a faculdade de se


aperfeiçoar e se melhorar. Mas a absurdidade moral de muitos modelos culturais
contemporâneos de comportamento coloca em crise, quer o conceito, quer a mesma
possibilidade de um processo de auto-aperfeçoamento do homem. G.Mucci vê na crise da
modernidade não somente a crise das certezas, mas sobretudo a crise dos modelos. ”O
pensamento moderno não aparece falimentar nos muitos desenvolvimentos ou aplicações
dele que derivaram, mas, sim, na sua impostação, segundo a qual a realidade é toda
penetrável pela razão. Não existem segredos ou mistérios de caráter científico que a razão,
corretamente usada com um método preciso, não possa desvendar e colocar, mediante a
técnica, a serviço do homem, libertando-o das utopias, das escravidões de vários gêneros, e da
irracionalidade. Se este programa triunfal é colocado em confronto com quanto a humanidade
sofreu com as guerras, grande ou pequenas, deste século e com o pesadelo da hecatombe
atômica, não se consegue acreditar que a razão tenha estendido o seu domínio. O modelo de
origem cartesiana se revela um modelo puramente intelectual, falimentar na sua pretensão de
transformar o mundo humanizando-o, incapaz de produzir certezas concretas.”

2.6.4. A reconciliação do cristionismo com a modernidade.

É possivel chegar a uma reconciliação do cristianismo com a modernidade sem que isto
signfique cair no vitu-perado totalitarismo da razão e no neotradicionalismo religioso? Na
história da teologia passada e recente, existiram diversas tentativas desta reconciliaçâo, nas
quais a teologia protestante e a teologia católica seguiram itinerários diferenciados, porque
eram diversos os pontos de partida, diversas eram as resistências das respectivas comunidades
e tradições, diversos os instrumentos de ação e de pensamento utilizados para atingir o
objetivo do diálogo e da reconciliação. É necessário, então, acenar, ainda que brevemente, à
sua colocação (impostação) e ao seu êxito histórico.

2.6.4.1. Relativamente ao campo da teologia protestante, no século XIX, uma grande


parte do protestatismo não se esforçou para condividir as impostações e as teses da
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modernidade cientifica e quase para identificar-se com elas. Basta pensar como o teólogo
Paul Tillich considerava os duzentos anos de pesquisas histórico-critica no campo bíblico:
“nenhuma religião na história humana jamais demonstrou semelhante audácia e nunca
percorreu semelhante risco. Nem o islamismo, nem a ortodoxia hebraica, nem o catolicismo
romano nunca fizeram outro tanto”. As resistências, porém, que a teologia protestante, no
início do Século das Luzes, teve que enfrentar e vencer para aceitar a modernidade, foram
muito importantes A primeira delas, em ordem de importância, era a interpretação literal da
Sagrada Escritura, própria da ortodoxia luterana. A aplicação do método historico-crítico à
leitura e à interpretação literal da palavra de Deus, de fato, tornava esta última uma verdade
profana sujeita à relatividade histórica e colocava de um modo totalmente novo a questão
hermenêutica do sentido. As assim chamadas ”teologias da reconciliação”, por outro lado, no
recurso ao uso do metodo histórico-crítico,e tembém na pesquisa autônoma do sentido,
adotavam necessariamente uma lógica antropocêntrica e imanente, que colocava em discussão
a lógica transcendente da fé e assignava um lugar prioritário à hermenêutica.

Numa primeira fase daquilo que podemos considerar como um itinerário de


reconciliação, F. Schleiermacher (1768-1834), além de ser o fundador da hermenêutica
moderna, foi também o primeiro a iniciar uma espécie de teologia da reconciliação, quando
deu ao conceito de religião um estatuto próprio centrado na “intuição do universo” e no
‘sentimento’. A essência da religião, para o filósofo e teólogo protestante, não é nem o
pensamento nem a ação, mas a intuição e o sentimento. Ela aspira a intuir o universo. A
metafísica considera a natureza finita do homem e quer determinar que coisa o universo possa
ser para ele, mantendo assim a distância incomensurável entre o finito e o Infinito. A moral
parte da consciência da liberdade, cujo reino ela quer estender ilimitatamente, mantendo
também ela o “inesgotável intervalo entre finito e Infinito. A religião, ao invés, vê no homem
o próprio Infinito, respirando lá onde a liberdade mesma é tornada natureza, colhe o homem
além do jogo das suas forças particulares e de sua personalidade. A experiência religosa está
toda no ‘sentimento de dependêcia’ que o homem percebe frente ao Tudo, ao Infinito. O
particular (o individual) não se perde nele, mas se sente em relação absoluta com o Absoluto.
Os dógmas e as crenças das religiões históricas possuem valor na medida na qual são
valorizados pelo sentimento de dependência absoluta, da qual são testificação simbólica. O
cristianismo é a religião mais perfeita não por força de sua revelação, não pelo valor racional
dos seus conteúdos doutrinais, mas pelo maior grau de adequação com qual estes conteúdos
atestam e sugerem o sentimento fundamental. A própria organização religiosa, a Igreja como
vida associada, é reconhecida e comprendida somente pela sua capacidade de suscitar e
conservar aquele sentimento.

Num segundo tempo e numa fase sucessiva a Escola de Tubinga, J. Wellhausen, A.


Kuenen e sobretudo A. von Harnack (1851-1930) adotaram o ‘paradigna liberdade’, com o
qual levaram à realização o divórcio entre pessoa de Jesus histórico e a idéia da fé cristã. Por
meio da crítica histórica, se pensa em reconstruir o pas-sado em toda sua objetividade, e
portanto conseguir o conhecimento de Jesus histórico, que seria muito diferente do Cristo da
fé da comunidade primitiva. Jesus não seria senão um grande profeta, um homem
perfeitamente livre diante das tradições, mestre paciente que separa a religião da política e do
culto e prega o caminho de uma paz interior com si mesmo e com Deus. Jesus, em última
análise, não é o redentor e o salvador, mas permanece o mesmo ponto de partida do mundo
cristão. Com a supressão da idéia de Cristo redentor, a teologia liberal faz aparecer também
toda forma de comunidade eclesial e cultual. Wellhausen sustentava a nação é mais
seguramente criada por Deus do que pela Igreja e Deus age seguramente mais na história
das nações do que na naquela da Igreja.
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O verdadeiro espaço no qual a religião do individuo moderno pode expandir-se se


torna o estado- nação e a sua racionalidade política. Para von Harnack, toda cristologia
eclesiástica era fruto da contaminação do pensamento grego: “toda a construção da cristologia
eclesiástica está fora da personalidade concreta de Jesus Cristo. A essência do cristianismo se
colhe somente percorrendo o caminho da história

O teólogo de Heidelberg, Ernest Troesltsch (1865-1923), comentado, em um ensaio de


1903, a obra harnackiana, “A Essência do Cristianismo”, escreveu que “o livro de Harnack é,
sem dúvida, o livro emblemático da tendência historicista da teologia” e a sua tentativa de
individuação da essência do cristianismo pela via histórica, substancialmente teria êxito. Mas
o tratado harnackiano se move exclusivamente ao longo da linha da história cristã, sem um
confronto com o campo mais vasto da história das religiões. A essência do cristianismo
deveria ser tirada de uma “história do cristianismo que inserisse ainda mais profundamente o
seu objeto na história geral da cultura, na história do espírito, mas também naquela dos
fundamentos reais e materiais do espírito”. O cristianismo, de fato, é um fenômeno histórico
e, como tal, uma realidade concreta e, portanto, não pode nunca ser visto como a realizaçõa
absoluta, incondicionada, exaustiva, imutável do conceito universal de religião.

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