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O Pensamento Moderno
Transcendência Cristã e Imanência Moderna
Achamos a característica específica do pensamento clássico na solução
dualista do problema metafísico. Existem o mundo e Deus, mas são separados
entre si: Deus não conhece, não cria, não governa o mundo. Tal dualismo não
será negado, mas desenvolvido no pensamento cristão mediante o conceito de
criação, em virtude da qual é ainda afirmada a realidade e a distinção entre o
mundo e Deus, mas Deus é feito criador e regedor do mundo: o mundo não
pode ter explicação a não ser em um Deus que transcende o mundo. O
pensamento moderno, ao contrário, finaliza em uma concepção monista-
imanentista do mundo e da vida: não somente Deus e o mundo são a mesma
coisa, mas Deus é resolvido num mundo natural e humano.
Consequentemente, não se pode mais falar em transcendência de valores
teoréticos e morais, religiosos e políticos, pois "ser" e "dever ser" são a mesma
coisa, o "dever ser" coincide com o "ser".
É evidente que a passagem da concepção dualista (clássica) à
concepção teísta (cristã) é um desenvolvimento lógico, que se manifesta
especulativamente no desenvolvimento tomista de Aristóteles. Pelo contrário, a
passagem da concepção tradicional, teísta, à concepção moderna, imanentista,
representa teoricamente uma ruptura. O pensamento moderno, todavia,
especialmente o pensamento da Renascença, tem seu precedente lógico no
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rica contribuição de fatos, o seu profundo senso histórico, o seu interesse pela
concretidade.
Costuma-se inculpar a civilização medieval por ter aniquilado o estado
nacional concreto, orgânico, para construir uma unidade política grandiosa,
mas abstrata, uma utopia universalista, como o Sacro Império Romano. No
entanto, isto não foi senão uma expressão exterior daquela estrutura profunda
que se chama a cristandade: equivalente civil da igreja católica, capaz de
abraçar os mais diversos organismos políticos. Nem se deve esquecer que
precisamente na comuna medieval se encontra a primeira origem do estado
moderno, interiormente organizado e politicamente soberano. E é na Idade
Média que se formam as grandes nações modernas. Noutras palavras, é na
Idade Média que se formou o Estado distinto da Igreja, mas não leigo,
imanentista, ateu, bem como o laicado distinto do clero e organizado civilmente
em graus de corporações, mas cristão, católico, romano.
Poder-se-ia fazer notar que tal efetiva distinção e relativa autonomia do
Estado (e do laicado) com respeito à Igreja (e ao clero) foram alcançadas
através de uma longa luta contra o predomínio e a invasão destes últimos. Mas
cumpre ter presente que, na alta Idade Média, no período bárbaro, nos séculos
de ferro, a igreja romana e o clero católico desempenharam funções também
leigas e profanas, como, por exemplo, a instrução cultural, a assistência
hospitalar, e até a agricultura, a indústria, o comércio, as comunicações, etc.,
pelo fato de que ninguém estava em condições de fazê-lo. E é devido a isso
que a civilização não pereceu, e foi conservada para a idade moderna. Aliás, a
Igreja católica estava apta e disposta - a prescindir-se das intenções dos
homens e de suas fraquezas fatais - a livrar-se desses cuidados estranhos
gravosos e perigosos para o seu ministério transcendente e sobrenatural,
quando os homens e os tempos estivessem maduros. Basta lembrar, a este
respeito, a atitude da Igreja, praticamente liberal, compreensiva e ativa com
respeito ao Estado, desde os comunas medievais até às grandes monarquias
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teórica da nova atitude espiritual, que será constituída por todo o pensamento
moderno em seu desenvolvimento lógico.
O grandioso edifício ideal da Idade Média, em que a religião e civilização,
teologia e filosofia, Igreja e Estado, clero e laicado, estavam harmonizados na
transcendente unidade cristã, foi, de fato, destruído pelo humanismo
imanentista, que constitui o espírito característico do pensamento moderno.
Este pensamento começa com a prevalência dada aos interesses e aos ideais
materiais e terrenos, com o conseqüente esquecimento dos interesses e ideais
espirituais e religiosos; e torna-se completo com a justificação dos primeiros e a
exclusão dos segundos. É precisamente o que acontece com os homens
inteiramente entregues aos cuidados mundanos: primeiro se esquecem das
coisas transcendentes, e, em seguida, querendo ser coerentes, negam-nas.
Entretanto, se não há causas lógicas do pensamento moderno, há,
porém, precedentes especulativos, que, valorizados pela nova atitude
espiritual, se tornarão fontes especulativas do próprio pensamento moderno.
Tais precedentes especulativos podem ser resumidos desta forma: o
panteísmo neoplatônico, o aristotelismo averroísta e o nominalismo ocamista,
os quais foram-se afirmando contemporaneamente a uma gradual decadência
do genuíno pensamento escolástico (racional, teísta, cristão), especialmente
tomista, com que se acham em oposição. E tal decadência cultural é
acompanhada, por sua vez, pela decadência da Igreja e do Papado - o exílio
avinhonês e o cisma do ocidente.
O panteísmo neoplatônico teve a sua primeira grande manifestação, no
âmbito do cristianismo, com Scoto Erígena. Tentará afirmar-se de novo na
própria época de Tomás de Aquino com Mestre Eckart, o iniciador da mística
alemã. E receberá uma nova original elaboração do Humanismo com Nicolau
de Cusa, que não pouco deve aos precedentes; e, sobretudo, com Giordano
Bruno, o maior pensador da Renascença, o qual depende, por sua vez, de
Nicolau de Cusa. O averroísmo latino afirmara na Idade Média a sua famosa
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doutrina das duas verdades: o que não é verdadeiro em filosofia pode ser
verdadeiro em religião e vice-versa. Em uma idade cristã, como a Idade Média,
a afirmação religiosa podia Ter a prevalência sobre a negação filosófica;
obscurecendo-se a fé, como na Renascença, devia prevalecer uma concepção
anticristã, aristotélica ou não. O occamismo marca a conclusão lógica da
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Prof. Borges
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