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PE.

JULIO MEINVIELLE

CONCEPÇÃO
CATÓLICA
DA ECONOMIA
Vitória/ES
1ª Edição - 2020

CENTRO
ANCHIETA
EDITORA
Concepção Católica da Economia
Pe. Julio Meinvielle

Título Original: Concepción Católica de la Economía

Os direitos desta edição pertencem à


Editora Centro Anchieta.
Rua José Farias, 160, Santa Luíza, Vitória-ES.
CEP - 29045-300 – Telefone: +55 27 99620-1672
E-mail: editora@centroanchieta.org

Tradução: Lagasse Corrêa e Yuri Márcio Pianzola Soave


Prefácio: Marcos Eugênio P. de A. Lopes
Revisão: Marcos Eugênio P. de A. Lopes e Igor Awad Barcellos
Notas: Arturo Ruiz Freites (edição eletrônica, 2017)
Capa e projeto gráfico: Danilo Croce

Imagem da capa: Reprodução


Coordenador Editorial: Marcos Eugênio P. de A. Lopes

M514c

Julio Meinvielle, Padre, 1905-1973


Concepção Católica da Economia: Julio Meinvielle; tradução
Lucas Lagasse Corrêa e Yuri Márcio Pianzola Soave; Vitória, ES:
Editora Centro Anchieta, 2020.
232 p.; 21 cm.

Tradução de: Concepción Católica de la Economía


ISBN 978-65-86798-02-9

1. Filosofia e Teoria da Religião 2. Cristianismo e Teologia Cristã


3. Ciência Política I. Título

CDU 101:2

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução


desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica,
fotocópia, gravação ou qualquer meio.
SUMÁRIO

PREFÁCIO..................................................................................................... 5
PRÓLOGO................................................................................................... 10

CAPÍTULO 1
A economia e a economia moderna.................................................................. 14
CAPÍTULO 2
A produção da terra .............................................................................................34
CAPÍTULO 3
A produção industrial........................................................................................... 57
CAPÍTULO 4
As finanças................................................................................................................82
CAPÍTULO 5
O consumo................................................................................................................118
CAPÍTULO 6
Ordem econômico-social....................................................................................139

EPÍLOGO................................................................................................... 162

APÊNDICE 1
Bula Detestabilis, de Sixto V ............................................................................186
APÊNDICE 2
Bula Vix Pervenit, de Bento XIV.....................................................................189
APÊNDICE 3
Sobre o empréstimo a juros................................................................................197
APÊNDICE 4
Nota sobre a questão judaica............................................................................210

NOTAS........................................................................................................ 216
PREFÁCIO

Deus me concedeu a graça de participar dos esforços do


Centro Anchieta, instituição da qual me alegro ser um dos
fundadores e seu primeiro presidente, para a publicação das
obras de Padre Julio Meinvielle pela primeira vez em português.
O primeiro livro, trazido a público em 2018, foi o Concepção
Católica da Política, de 1932. Desde então, outras preciosidades vão
sendo aos poucos apresentadas aos leitores de língua portuguesa.
Nessa nova leva editorial, entregue em 2020, consta outra
“Concepção Católica”, dessa vez, da Economia, editada origi-
nalmente em 1936. Esta bela e essencial obra, que aqui prefacio.
Pe. Meinvielle, um dos maiores tomistas argentinos, não
propõe, neste livro, metodologias e sistemas econômicos. Ele
reapresenta princípios para uma Economia real e verdadeiramente
humana: a Economia Católica. Digo reapresenta, pois liberalismo
e marxismo nos foram apresentados como “tônicos milagrosos”

5
PREFÁCIO

para a solução de todos os nossos problemas. Mas como o pode-


riam ser se compostos por blends em diferentes concentrações de
Lutero, Descartes, Rousseau e Marx?
Tais sistemas econômicos, defendidos por ideólogos mate-
rialistas, aproveitaram-se de uma cristandade ferida para esta-
belecerem-se na Cidade dos Homens, com o fim último de nos
distanciar da Cidade de Deus. Daí a clara oposição escancarada
nestas páginas: “só há duas economias verdadeiramente opostas:
a cristã, que usa das riquezas para subir a Deus, e a moderna ou
capitalista (seja liberal ou marxista), que abandona a Deus para
escravizar-se na riqueza”.
Os fundamentos da Economia Católica e os principais erros
dos sistemas modernos são apresentados no primeiro capítulo
do livro, “A Economia e a Economia Moderna” e a sabedoria
da Doutrina Social da Igreja, permeada em toda a obra, muito
provavelmente frustrará as expectativas de simpatizantes do
socialismo, do comunismo e do liberalismo.
Por exemplo, o princípio da subsidiariedade rechaça o assis-
tencialismo, marca caraterística de regimes socialistas e co-
munistas, uma vez que “cada um tem o direito de iniciativa
econômica, cada um usará legitimamente de seus talentos
para contribuir para uma abundância que seja de proveito
para todos, e para colher os justos frutos de seus esforços”
(Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 336).
Da mesma forma, o princípio da destinação universal dos bens
nega o individualismo, típico da doutrina liberal, pois “requer que
se cuide com particular solicitude dos pobres, daqueles que se
acham em posição de marginalidade e, em todo caso, das pessoas
cujas condições de vida lhes impedem um crescimento adequado
(Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 182)”.

6
Concepção Católica da Economia

É necessário, portanto, como didaticamente nos aponta o


autor, identificar aquilo que pode ser aproveitado dos sistemas
econômicos modernos, porém considerar sua falibilidade,
trabalhando sempre para que os fundamentos de uma Economia
Católica possam ser aplicados e ampliados. Em outras palavras,
“se a economia moderna nasce do pecado, é essencialmente
perversa e nefasta. Poderá haver nela muitos elementos materiais
bons, mas a conformação dos mesmos é intrinsecamente satânica”.
Como católico, Engenheiro Agrônomo de formação e estu-
dioso de questões ecológicas, a identificação com esta obra foi
imediata. Pe. Meinvielle destaca a superioridade da agricultura na
Economia, em função do trato sem intermediários do homem,
desejado por Deus no topo da hierarquia da criação, com o
restante das criaturas. Este tema ocupa o segundo capítulo do
livro, “A Produção da Terra”.
Aliás, Economia e Ecologia possuem a mesma raiz etimo-
lógica grega, oikos (eco), que significa casa ou meio ambiente.
Logo, a sua relação, representada pelo “cultivar e guardar” do
Gênesis (Gn 2,15), é autoevidente. Pe Meinvielle deixa claro
que “como a terra é a que quase diretamente nos proporciona
o necessário para comer, vestir e habitar, e por sua vez a indústria
nos subministra de preferência o supérfluo, segue-se que, num
regime econômico ordenado, a produção da terra e suas riquezas
devem obter primazia sobre a produção industrial, a vida do
campo sobre a vida urbana”.
Nesse âmbito, nós brasileiros temos o privilégio de ser de
um país que possui quase 70% de seu território reservado para a
proteção ambiental e, ainda assim, ser um dos maiores produto-
res agropecuários do mundo, abastecendo o mercado interno e
liderando as exportações do excedente de itens como café, soja,

7
PREFÁCIO

carne bovina, carne de frango, açúcar, suco de laranja e milho. Em


pouco mais de 25% do território, os produtores rurais, latifundiá-
rios e pequenos agricultores familiares, praticamente sustentam
a Economia brasileira, sobretudo em tempos de crise. Não por
acaso, é este segmento o mais injustamente atacado sob as falsas
alegações de destruidores da natureza, de atrasados tecnicamen-
te e de obsoletos socioculturalmente. Felizmente, apesar de todas
pressões, por ora o setor se mantém e parece se fortalecer por aqui.
Não padecemos da falta de alimentos, mas de ideologias políticas
que dificultam sua justa partilha, sobretudo aos mais vulneráveis.
Pelo exposto, Pe. Meinvielle não dá importância aos setores
da indústria e dos serviços? Muito pelo contrário. Mesmo por-
que o setor agrícola possui sinergia com os demais e necessita
dos mesmos para, dentre outros, garantir o beneficiamento e a
distribuição de sua produção e o aperfeiçoamento de sua gestão
administrativa e financeira.
No capítulo III, o autor ocupa-se de clarificar o devido lugar que
a produção industrial deve ocupar numa Economia Católica: “E a
produção industrial? Será necessário sepultar como inútil a
estupenda expansão da técnica e da máquina? De maneira alguma.
Será tão somente necessário assinalar um lugar secundário já
que vem a satisfazer necessidades do homem também secun-
dárias. Ninguém achará difícil admitir isso, se tem em conta
que só é economia aquela que aperfeiçoa o homem, que satisfaz
seu bem-estar material humano; pois bem, este bem-estar é
hierárquico: porque primeiro é comer, depois vestir-se e habitar,
e só depois gozar do supérfluo, que perfeitamente fornece a
indústria. Logo, também deve ser hierárquica a produção. A
terra há de ter primazia sobre a indústria”.
Os três últimos capítulos do livro são um choque de realidade

8
Concepção Católica da Economia

para nossos tempos. Ao tratar sobre “As Finanças” (Capítulo 4),


“O Consumo” (Capítulo 5) e a “Ordem Econômico-Social” (Capí-
tulo 6), não duvido - e ouso garantir - que haverá arrepios e caras
e bocas naqueles mal-acostumados com os sistemas econômicos
materialistas hodiernos. Contudo, um livro escrito na década de
30, em um contexto muito diferente do nosso, tem muito a nos
ensinar. Sobretudo, o respeito do homem em relação ao trabalho,
enquanto sacrifício necessário decorrente da mancha do pecado
original. Modernistas tratarão esta obra como um anacronismo
desnecessário. Considero, por outro lado, um realismo urgente.
Finalizo com um trecho lapidar, característico da concisão e
perspicácia de Pe. Meinvielle, apenas para aguçar ainda mais no
leitor o deleite destas páginas: “Um regime econômico verdadei-
ramente humano deve estar de tal forma estruturado, que tendo
em conta os instintos perversos que aninham no coração do
homem, impeça-os e, se possível, frene-os. Os valores de uma
construção econômica devem ser exercícios de virtudes e não
prática de vícios. Daqui que todo o empenho em demonstrar
no presente livro, as condições sob as quais podem e devem
integrar-se numa economia católica – a única verdadeira-
mente econômica – a propriedade, o capital, o salário, o uso
da máquina etc”.

Vitória - ES, 05 de julho de 2020.

Marcos Eugênio P. de A. Lopes


Eng. Agrônomo, DSc. Eng. Ambiental

9
PRÓLOGO

“Buscai primeiro o Reino de Deus e sua Justiça, e tudo o


mais vos será dado por acréscimo”, disse Jesus.
Estas palavras não são uma máxima piedosa. São uma lei
da realidade. O mundo moderno, que quis buscar antes de
tudo o econômico, não só não conseguiu isto, mas perdeu por
acréscimo o reino de Deus.
Este livro pretende registrar este fato. Sobretudo, quer fazer
ver que o Evangelho e a Doutrina da Igreja – expressada tão
maravilhosamente por Santo Tomás de Aquino - contém os
princípios essenciais da vida humana, que nenhuma economia
pode esquecer.
A economia não tem um fim em si, como se fosse um deus.
A economia está em função do homem. Deve servi-lo. E não a

10
Concepção Católica da Economia

um homem forjado no cérebro de um filósofo, senão a serviço


do homem real, como criatura criada por Deus, com todas as
virtualidades hierárquicas que em si encerra.
Se se esquece esta verdade de sentido comum, expõe-se a um
forjar de criações verdadeiramente maravilhosas, mas nefastas.
É o que acontece com os regimes econômicos modernos e
com as teorias dos economistas, que parecem construções su-
mamente grandiosas. Mas, de que valem se em lugar de servir,
sacrificam a coletividade humana?
Dá pena contemplar o alarde sobre a complicada técnica de
muitos economistas em elucubrações admiráveis que caem no
vazio por não ter presente esta verdade elementar: uma eco-
nomia vale na medida em que é benéfica ao homem. Por tal
razão este livro não é nem pode ser um livro de técnica. É sim-
plesmente uma reflexão de sentido comum, sobre realidades
da vida econômica.
Quando a vida econômica está ordenada em um sentido
humano, a técnica pode desempenhar uma benéfica função,
fazendo mais ajustável os distintos órgãos da atividade eco-
nômica com um rendimento mais humano. Mas se falta este
ordenamento humano, toda técnica resultará estéril, quando
não maléfica.
Não é que se deprecie a técnica. A técnica tem uma missão
útil, mas secundária. A técnica é per se míope. Deve ser ilu-
minada pelos sentidos superiores. É possível, por exemplo,
que, no “conjunto x de fenômenos econômicos”, um técnico
que compara o movimento financeiro descubra um progresso
nas atividades que possa traduzir-se em uma ascensão de cur-
vas matemáticas; mas, se segue daí que a vida econômica real

11
PRÓLOGO

progrediu, aportando melhoras reais de riqueza e bem-estar a


todos os que atuaram no “conjunto x de fenômenos econômicos”?
Não é possível que esse progresso de curvas assinale um aumento
real no conjunto total, mas como há desigualdade na distribuição,
esse progresso fez-se em benefício de uns poucos e a expensas do
corpo social? Acaso não é uma coisa manifesta que nunca houve
na humanidade um movimento financeiro, mercado de ações
especialmente, tão enorme como hoje, e que, sem embargo, o
bem-estar humano não é melhor com respeito a outros tempos?
Demonstra isto que a técnica per se míope deve estar ilu-
minada por vistas superiores da inteligência. Da inteligência,
digo, que vê a razão e essência das coisas, e que se chama sentido
comum quando procede bem pelo instinto próprio de alcançar a
verdade, e que se chama Filosofia Aristotélico-Tomista quando pode
justificar reflexivamente que procede bem.
Daí que este livro seja, na verdade, uma filosofia católica da
Economia. Mas ao dizer filosofia, não se imagine que é uma
criação caprichosa do cérebro. A verdadeira filosofia não é mais
que a penetração reflexiva nos seres, tratando de determinar
suas leis essenciais. O filósofo autêntico não cria nem inventa,
senão que lê.
Por isso, o presente livro quer pôr em relevo o ordenamento
essencial de toda economia que está a serviço do homem: sim-
plesmente, da economia. Porque uma economia que não sirva ao
homem é um contrassenso. Seria uma economia antieconômica.
Que sirva ao homem total com as virtualidades hierárquicas
que em si encerra. O homem não é puro estômago. Além de
estômago, o homem é racional; além de homem, tem, pela
misericórdia de Deus, um destino divino. A Economia deve

12
Concepção Católica da Economia

procurar ao homem social os bens de seu corpo, para que o


homem alcance esse destino divino. Só respeitando esta lei
essencial do homem, a procura dos bens materiais será em
verdade uma Economia.

13
CAPÍTULO 1

A economia e a economia moderna

𝕆 mundo vive hoje sob o signo da inquietude econômica,


pois se perdeu o sentido da economia. Conhece-se uma
infinidade de fenômenos econômicos, chamados produção, terra,
capital, trabalho, finanças, consumo; registram-se pretendidas
leis econômicas; constroem-se teorias e se criam escolas eco-
nômicas; mas não se possui o sentido da economia, porque se
perdeu o da vida humana.
O mundo moderno – chamo mundo moderno o engendrado
pela ação anti-tradicional da Reforma Protestante, perpetuado
no liberalismo do século XI e disposto agora a sepultar-se na
anarquia bolchevista –, o mundo moderno, digo, não sabe nem
pode saber que é a vida, porque se privou do ato próprio da

14
A economia e a economia moderna

inteligência, que é “julgar”. No “juízo”, a inteligência conhece o


valor real (ontológico) das coisas. É um ato essencialmente
teleológico. Diante de um ser, não tanto quer conhecer seu
funcionamento, seu mecanismo, sua realidade fenomênica,
como sua essência determinada por sua finalidade: “Para que é tal
ser?”, e conhecida sua finalidade, ajustar a ela seu funcionamento.
Por isso, nossa preocupação constante no presente livro
será formular um juízo de valor sobre a realidade econômica.
Entraremos nas entranhas mesmas dos fenômenos econômicos
modernos, para descobrir sua conformação essencial e ver se há
neles uma perversão congênita, e, neste caso, propor as condições
do medicamento eficaz. Como os fenômenos econômicos que
nos rodeiam são essencialmente capitalistas, nada mais justo que
precisar a natureza da Economia capitalista.

MATÉRIA E FORMA DA ECONOMIA

Em toda construção econômica concreta, por exemplo: a


Economia capitalista liberal, podemos distinguir dois ele-
mentos distintos, unidos substancialmente em um único ser;
usando a linguagem aristotélico-tomista, chamaremos maté-
ria ao elemento passivo e informe que recebe como que uma
alma e conformação de outro elemento, que denominaremos
forma. Da união substancial desta matéria e desta forma,
engendra-se uma construção econômica concreta do mes-
mo modo que todo ser material, a água por exemplo, resulta
de uma determinada quantidade de matéria informada pelo
princípio determinante e específico, que é a forma. A matéria
é um elemento comum que pode estar informada por formas
distintas, dando lugar então a seres ou essências distintas.

15
CAPÍTULO 1

Quando, por exemplo, bebemos água, e esta se converte em nossa


carne, a forma de água desaparece e dá lugar à de carne; mas a
matéria é a mesma, e sustenta agora a forma de carne como antes
sustentava a água. Quer dizer isto que pode haver dois seres
sucessivamente distintos que tenham uma mesma matéria.
Apliquemos esta doutrina à economia capitalista liberal. Nela,
a máquina, o crédito, o intercâmbio mundial de produtos, por
exemplo, são como a matéria do edifício econômico, e a con-
formação que se dá para esses elementos é como a forma. Se
para esses elementos se lhes imprimisse uma conformação
distinta, se lhes determinasse com outra forma, poderia surgir
também uma economia distinta. Por isso, o interessante para o
conhecimento de uma construção econômica é a determinação
daquele princípio formal que o constitui como sua alma.
Não obstante, os elementos materiais oferecem também inte-
resses, por quanto uma forma determinada não pode informar
uma matéria se não se está em certas disposições propícias: as-
sim, por exemplo, o alimento que comemos não se assimila em
nossa substância senão depois de um processo de transformação,
realizado pela ação do suco gastrointestinal, que dispõe a matéria
para a recepção de uma determinada forma. E a forma, por sua
parte, como se une substancialmente à matéria, imprime nela um
selo característico.
Esta distinção aristotélico-tomista de matéria e forma apli-
cada à Economia é fundamental se se quer precisar o alcance
das críticas que se formulam contra o capitalismo. Estas crí-
ticas não alcançarão os elementos materiais (por exemplo, a
máquina, o intercâmbio comercial mundial, o capital), mas a
conformação que imprimiu a estes elementos materiais, o uso
que fez da máquina, do capital.

16
A economia e a economia moderna

Precisemos, pois, a essência da Economia Capitalista deter-


minando sua matéria e forma.

ELEMENTOS FORMAIS DO CAPITALISMO

A forma no-la manifestará o estado do homem no momento


em que este imprime, como oficialmente, o impulso à Economia
capitalista liberal. Acontece isso no final do século XVIII, quando,
agonizando o mundo antigo, empreende uma carreira vitoriosa a
ciência físico-matemática, com suas aplicações técnicas, a demo-
cracia liberal, com o desmonte da aristocracia e a exaltação bur-
guesa, e a economia política, com as teorias dos fisiocratas e da
escola liberal. Dão-se, simultaneamente, então, fatos tão empol-
gantes como a Independência Americana e a Revolução Francesa,
a construção da máquina a vapor e a liberdade de comércio.
Qual é o estado do homem neste momento preciso?
O homem encontrava-se numa ladeira pela qual vinha rodan-
do há mais de três séculos. A Idade Média havia logrado o milagre
único na história do equilíbrio humano. Acalmadas suas paixões,
o homem vivia em paz consigo mesmo, e vivia em paz com seus
irmãos, no ordenamento hierárquico da vida social. Havia ordem
sem violência, porque todas as partes da sociedade se moviam
livremente no âmbito de suas funções, cada uma em sua própria
esfera, sem absorver a inferior nem atropelar a superior. No cimo
do universo social, hierarquicamente ordenado, dominava o
Servo dos servos de Deus, como no cimo das preocupações
humanas dominava “o único necessário”: o amor d’Aquele que
se nos manifestou como Pai.
Não se trata de fazer apologia da civilização medieval,
“mais bela nas recordações depuradas da história que na

17
CAPÍTULO 1

realidade vivida”1, senão de fazer vislumbrar o tipo normal


de uma civilização humana.
Lutero quebra oficialmente este belo ordenamento, ani-
quilando a vida religiosa que, sem pretendê-lo, sustentava
igualmente a vida intelectual e moral do homem. Sem a graça
sobrenatural, despontaram os instintos da fera humana, em
especial a avareza, a execranda sede de ouro, que é como idolatria,
segundo o Apóstolo.
“Enquanto o mercantilismo do século XVI e XVII anuncia o
liberalismo do XIX e a pirataria legalizada de Isabel deixa para
trás os especuladores modernos”2, Descartes e Kant, destruindo
a vida da inteligência e substituindo-lhe a razão, ou seja: uma
faculdade que não percebe as essências senão tão somente
realidades abstratas, mecânicas, de uma magnitude compa-
rável, mudam as bases de uma economia física, ajustada a leis
mecânicas invariáveis, como o curso dos astros, e, como este,
subtraído à regulação própria do ser humano.
O curioso é que enquanto crescia a dominação da avareza
e o sentido racionalista ou mecânico da vida, esta sentia-se
debilitada em seu interior e, portanto, ansiosa de romper os
vínculos que a obrigavam a manter-se em ordem. Rousseau
proclama oficialmente a era da absoluta liberdade, porque,
como não há Deus, não há soberano, e o homem indivíduo se
constitui em sua própria lei.
Com Rousseau coincide, por outra parte, a exaustão do impulso
protestante e racionalista, e, portanto, a perda definitiva da vi-
talidade sobrenatural e intelectual do homem moderno. Sem

1
J. Maritain, Religion et Culture.
2
Marcel Malcor, Nova et Vetera, Abril-Junho, 1931.

18
A economia e a economia moderna

vida espiritual e inteligente, surgiu o tipo homem-estômago,


o burguês, entregue com toda sua mente, com todo seu coração,
com todas as suas forças ao econômico.
Daí que, no final do século XVIII, soa a hora da Economia,
de uma economia avara, para a qual o preparou Lutero3, de
uma economia racional ou mecânica, para a qual o preparou
Descartes; de uma economia liberal ou individual, para a qual
o preparou Rousseau.
A concepção (a alma, a forma) que se forjará, então, o homem
da economia será a de uma estrutura mecânica, subtraída da
regulação humana (Descartes) com expansão individual ili-
mitada (Rousseau) destinada a multiplicar em forma ilimitada
a ganância (Lutero). Em palavras mais simples: uma maqui-
naria, em mãos do indivíduo, movida pela concupiscência
infinita do lucro.

ESSÊNCIA DO CAPITALISMO: ELEMENTOS MATERIAIS

Esta forma da Economia encontrou nas condições materiais de


então um corpo, diríamos, disposto, que sustentasse esta forma,
que por sua vez parecia estar feita a propósito para tal corpo.
Graças às ciências físico-matemáticas, alcançou-se a domi-
nação das leis mecânicas que regem o movimento do universo
e, com isso, a conquista prática do mundo. Na boca de todos
estão os louvores das transformações técnicas operadas pela
fundição dos minerais nos fornos de carbono em 1738, a produção
do ferro fundido em 1750 e a aplicação da máquina na indústria
de algodão e a lã em 1760, precisamente nas colossais indústrias

3
Ver Nota 1 ao final do livro.

19
CAPÍTULO 1

de Lancashire. Desta sorte, a máquina ajustava-se à concepção


mecânica que havia feito Descartes sobre a economia.
Ao mesmo tempo que a máquina aumentava na Europa
vertiginosamente e com regularidade matemática as possibili-
dades de produção, o estado agrícola do mundo abria mercado
ilimitado à indústria europeia. É fácil imaginar que uma indús-
tria nascente, frente a mercados enormes e ilimitados, vá exigir
também que a produção seja ilimitada. Derrubaram-se, pois, as
antigas barreiras aduaneiras que se opunham à livre circulação,
aos regulamentos que limitavam a produção e as disciplinas
morais e políticas que continham as iniciativas privadas.
O mercado ilimitado oferecia, pois, uma condição material pro-
pícia à concepção liberal que havia feito Rousseau da economia.
O incremento da especulação da alta finança, representada
como caso típico pela Maison Rothschild, ao invés de acelerar
com o crédito a capacidade da máquina e o mercado ilimitado,
proporcionará uma condição propícia ao instinto do lucro que
estava aberto no homem desde a Reforma Protestante.
As condições materiais do mundo ajustam-se a suas condições
formais. Tudo está preparado, nos fins do século XVIII, para que
surja o capitalismo liberal, assim como agora, nos últimos ofegos
do capitalismo, o mundo, tanto por suas condições materiais
como formais, está pronto para submergir-se numa gigan-
tesca anarquia.

DEFINIÇÃO DO CAPITALISMO

Podemos definir, então, o capitalismo: É um sistema eco-


nômico que busca o crescimento ilimitado da ganância pela
aplicação de leis econômicas mecânicas.

20
A economia e a economia moderna

Capitalismo é todo sistema que busca o lucro ilimitado, para


o qual quer ilimitados a produção e o consumo. Define-se,
então, com a mesma fórmula que usava o Doutor Angélico
para condenar todo negócio que busca o lucro como um fim:
“O crescimento sem limites das riquezas” (S. Th. II-II. q. 77 a. 4).
Definição que se aplica ao liberalismo e ao marxismo. Os dois
são imperialistas; os dois pretendem apurar a aceleração econô-
mica para obter o máximo de rendimento e impor a felicidade
econômica nesta terra, que não deve ser um vale de lágrimas
habitável como quis o cristianismo senão o paraíso confortável.
Mas enquanto o liberalismo concentra a riqueza na oligarquia
dos multimilionários, a avareza marxista a acumula na oligarquia
de uma minoria proletária que se converteu em Estado.
Em uma idêntica configuração genérica, existem, sem embar-
go, diferenças específicas, pois o liberalismo chega à concentração
injusta partindo da riqueza individual e da liberdade ilimitada, e
o marxismo a implanta em virtude da propriedade coletivista.
Ademais, enquanto o liberalismo, em virtude da influência
cartesiana, assimila o trabalho humano como operação de uma
pura mecânica, o marxismo (teoricamente) faz dele um ele-
mento irredutível, de caráter biológico. Este descobrimento do
caráter biológico do trabalho é sintomático, pois anuncia uma
Economia nova; Economia desastrosa, se não se purifica o ho-
mem de seu instinto da avareza, pois se implantará uma tirania
proletária, como na Rússia; benéfica ou católica, se se a purifica.
Exposta a natureza do capitalismo e indicadas rapidamente
suas duas espécies principais, vamos formular sua crítica, a qual
se dirigirá perfeitamente ao capitalismo liberal.

21
CAPÍTULO 1

O CAPITALISMO É ANTIECONÔMICO

Omitamos o fato de que uma economia regida pela con-


cupiscência do lucro como lei fundamental deve resultar um
Moloch devorador do bem-estar econômico do operário, que,
por sua vez, torna-se uma vil mercadoria submetida ao vai e
vem do mercado:

Ջ Devorador do interesse do consumidor, que não entra em


conta senão enquanto permite a aceleração da produção,
e, com esta, a aceleração da ganância (por isso, como coisa
genérica, se lhe proporcionam artigos supérfluos, ou de
má qualidade, a preços relativamente caros);

Ջ Devorador do produtor, que viverá febril na aceleração


de sua produção e no melhoramento de utensílios técnicos,
se não quer sucumbir na concorrência industrial;

Ջ Devorador do comerciante, que se submeterá ao febril di-


namismo do consumidor regido pela infinita velocidade
do capricho e à aceleração das novidades industriais, sem
ter tempo de liquidar seus estoques antigos; devorador do
financista, que irá à casa do consumidor, do produtor e do
comerciante, para acelerar também ele, vertiginosamente,
sem dormir, a produtividade de seu dinheiro.
Omitamos, digo, todos estes transtornos delirantes, e observe-
mos tão somente que o capitalismo, precisamente em virtude de
sua essência capitalista ou concupiscência do lucro, leva em suas
entranhas sua própria ruina sem poder jamais, nem sequer por
um instante, proporcionar o bem-estar econômico do homem.
Em outras palavras: é essencialmente antieconômico.

22
A economia e a economia moderna

Com efeito, podemos defini-lo: “aceleração do lucro pela


aceleração da produção e do consumo”. Pois bem, enquanto não
se chega ao limite que equilibra a produção com o consumo, en-
quanto existem mercados ilimitados abertos à produção, é evi-
dente que a aceleração desenfreada do maquinismo e do crédito
é favorável ao desenvolvimento da economia capitalista, melhor
digamos o seu entumescimento, como o de certos tumores que
parecem plenitude de saúde; mas, uma vez que a produção
chega a equilibrar a possibilidade de consumo (note-se bem,
digo a possibilidade), o capitalismo liberal morreu. Porque,
para que continue vivendo, seria necessário imprimir uma igual
aceleração ao consumo que à produção, a qual é impossível, pois
esta pode alcançar por ano de 25% a 40%.
Morreu: porque se não pode acelerar a produção, não pode
acelerar o lucro; e como este constitui sua essência, uma vez
que o consumo se sente saturado, deve quebrar e desfazer-se.
A crise atual do capitalismo – sua crise definitiva – tem
este sentido.
Perguntará alguém: como é possível falar de saturação, de
equilíbrio entre a produção e o consumo se hoje não se consome o
que se pode consumir e restam imensas riquezas para explorar e
enormes comodidades para alcançar?
Esta objeção foi prevista quando se disse: “equilibrar a
possibilidade de consumo”, porque o capitalismo morreu,
não quando se chega a produzir o que se consome, mas o que
se pode consumir; quer dizer, que o capitalismo não teve nem
terá, sequer por um instante, o fugaz consolo de satisfazer
plenamente o consumo. E isto está na essência do capitalismo.
Com efeito, no capitalismo, a produção e, ainda melhor, o
financiamento da produção obtêm primazia sobre o consumo;

23
CAPÍTULO 1

logo, procurar-se-á a todo custo a maior produção, subordi-


nando a ela o consumo. E assim que à produção, no período
de não saturação, lhe é mais proveitoso não assegurar ao tra-
balhador o justo salário, os meios necessários de subsistência,
porque assim se dispõe de mais riqueza produtiva; logo, nesse
período sujeita a imensa multidão à lei da fome. É a história
do capitalismo liberal no século XIX. Em vez disso, quando se
alcança a saturação, como é necessário frear violentamente a
produção, produz-se uma forçosa desocupação, e se observa,
como contemplam hoje nossos olhos, uma enorme riqueza,
capaz de alimentar, vestir e divertir a todo o gênero humano
e, por outro lado, uma imensa multidão na miséria, sem poder
consumir por não ter os meios de aquisição.
Logo, o capitalismo sucumbe sem ter assegurado jamais o
bem-estar econômico do gênero humano.
É que o capitalismo é essencialmente futurista. Pode afir-
mar-se uma economia libertadora da vida humana, pois espera
seriamente para todo o mundo no porvir, ainda enquanto tanto
só o é em proveito de uns poucos. É a mesma linguagem e o
mesmo método do Capitalismo soviético. Mas este porvir, este
amanhã não pode chegar nunca, pois essa impossibilidade
está em sua essência. Contraste profundo entre o Capitalismo
e a economia preconizada por Cristo no Sermão da Montanha.
Esforça-se para enriquecer-se - diz o Capitalismo - que só
isso importa. Não vos preocupeis – diz, por sua vez a Sabedoria
Eterna – pelo cuidado de encontrar o que comer para sustentar vossa
vida ou de onde achar vestidos para cobrir vosso corpo. Vejam as aves
do céu, não semeiam nem têm celeiros, e vosso Pai celestial as alimentam.
Vejam os lírios do campo... (Lc XII, 22-31).

24
A economia e a economia moderna

O Capitalismo anda ansioso, acumulando para o amanhã.


Jesus Cristo, contrariamente, nos diz: Não vos preocupeis
com o dia de amanhã; (...) basta a cada dia seu próprio esforço”.
Palavras de Jesus Cristo, que não são conselhos piedosos.
Expressam a lei da vida econômica. A economia deve pensar
antes de tudo nas necessidades do presente. Deve-se produzir
hoje o que reclama o consumo de hoje. Porque, se levados pela
avareza, produz-se hoje o que se necessita para todo o ano, e
assim se trabalha cada dia, com o propósito de acrescentar a
ganância, sucederá que hoje não se consumirá para não diminuir
a produção que se reserva para o amanhã (Capitalismo durante
o século XIX com os salários de fome), e amanhã, porque terá
que parar a produção para acabar os estoques armazenados; e
ao parar não haverá salários, logo não haverá possibilidade de
consumo (Capitalismo no período de apogeu)4.

A AVAREZA, ESSÊNCIA DO CAPITALISMO

Há uma perversidade essencial no capitalismo, qualquer que


seja sua espécie, pois este é um sistema fundado sobre o vício
capital que os teólogos chamam avareza. Busca o crescimento
sem limites das riquezas como se fosse este um fim em si, como se
sua pura possessão constituísse a felicidade do homem.
“E é impossível - como ensina textualmente o Angélico (S.
Th. I-II, q. 2, a. 1) - que a felicidade do homem consista nas rique-
zas. Duas são as classes de riquezas: as naturais e as artificiais. As
naturais são aquelas que remediam as necessidades naturais do

4
Ver Nota 2 ao final do livro

25
CAPÍTULO 1

homem, tais como as vestimentas, o alimento, os veículos, a habi-


tação e outras coisas semelhantes. Artificiais são aquelas que por
si não remediam nenhuma necessidade natural, como o dinheiro,
que a indústria do homem o adotou como medida das coisas ve-
nais, para facilitar o câmbio. Pois bem – prossegue o Angélico - a
felicidade do homem não pode consistir nas riquezas naturais, já
que estas se empregam para sustentar a natureza do homem, são
meios e não fim; de onde todas as riquezas naturais foram criadas
para proveito do homem e colocadas de baixo de seus pés, como
diz o Salmista (VIII)”.
Com menor razão pode consistir nas riquezas artificiais,
já que estas não têm outra finalidade que a de servir de meio
para adquirir as riquezas naturais necessárias para a vida.
Pois bem, diz o Santo Doutor, se tanto as riquezas naturais
como as artificiais têm por finalidade satisfazer as necessidades
materiais do homem, segundo a condição de cada um, sua
aquisição só é boa na medida em que serve para satisfazer estas
necessidades; logo, sua possessão e produção devem estar
reguladas. Se se quebra esta medida e se quer reter e possuí-las
sem limite algum, comete-se um pecado chamado avareza,
que consiste em “um desejo imoderado de possuir as coisas
exteriores” (S. Th. II-II, q. 118, a. 2).
Precisamente, é esta concupiscência do lucro que constitui
a essência da economia moderna. Não que a avareza só tenha
existido nela; avaros sempre existiram, e o Espírito Santo disse
pela boca de Salomão que “ao dinheiro obedecem todas as coisas”;
mas nunca como nela, este impulso perverso que se entranha
na carne pecadora do homem se organizou num sistema econô-
mico, nada como ela fez de um pecado uma construção babélica.

26
A economia e a economia moderna

E, como a avareza é um vício capital com muitas filhas – se-


gundo explica o Doutor Angélico (S. Th. II-II, q. 118, a. 8) -, o Ca-
pitalismo erigiu consigo uma prole de pecados, sistemas que os
economistas denominam leis econômicas.
“Porque, como consiste a avareza em um amor supérfluo das riquezas,
há nela uma dupla desordem; pois, ou se as retém indevidamente, ou se
as adquire de forma ilícita. Há desordem em sua retenção, no caso de
inumanidade ou de endurecimento, quando o coração não se abranda
de misericórdia na presença dos necessitados, e assim o capitalismo,
como todo avaro, fecha seus olhos às misérias do pobre; ao capi-
tal, monstro anônimo com mil atribuições e sem nenhuma res-
ponsabilidade, não lhe interessa a caridade, nem a piedade, nem
mesmo a equidade, nem sequer acredita ter deveres: para com os
indivíduos a quem emprega, ou, em todo caso, este dever é da
mesma ordem com que se tem ao capital máquina, a saber, uma
manutenção escrupulosa e metódica; enquanto esta manuten-
ção produz negócio: a greve ou o desemprego quando as cifras
os exigem ou os preferem”.5 Há, ademais, desordem na avareza,
porque se adquirem as riquezas, ou com afecção desordenada,
ou recorrendo a meios ilícitos. Porque a avareza engendra uma
“inquietude mórbida e uma febril preocupação com o supér-
fluo”, que faz dizer o Eclesiastes, v.9, que o avaro nunca se fartará
de dinheiro; e assim, o capitalismo, dinâmico, vertiginoso, in-
saciável, emprega todos os minutos (“tempo é dinheiro”) para
acelerar o lucro, e com ele, a produção e o consumo; a vida é
uma carreira sem descanso em busca de ouro; não se busca a
riqueza para viver, senão que se vive para enriquecer-se. Quão

5
Cf. Marcel Malcor. Nova et Vetera, julho de 1931.

27
CAPÍTULO 1

longe estamos da economia católica, regida pela preocupação


do pão de cada dia!
A avareza engendra, assim mesmo, como tantas outras filhas,
a violência, a mentira, o perjúrio, a fraude e a traição. O capita-
lismo peca por violência, porque, com sua fome de concentração,
devora a pequena indústria e a pequena propriedade; peca por
mentira, porque promete a libertação de todo gênero humano
e a cada dia lhe submerge profundamente na miséria, pois a
concentração por um lado corresponde a desolação pelo ou-
tro; peca por perjúrio, quando à mentira se une o juramento,
e o capitalismo rubrica com o crédito seu engano, como se ex-
plicará no 4º capítulo; peca por fraude, porque com o crédito
ou empréstimo a juros apodera-se da poupança (economias)
do gênero humano e os maneja como se fosse proprietário,
porque submete o trabalhador à lei de fome, e porque asse-
gura um consumo mau e caro; peca, finalmente, por traição,
porque aniquila a pessoa humana, fazendo do homem um mero
indivíduo, uma simples roda na maquinaria gigantesca do edifí-
cio econômico, pois destrói a família, lotando as fábricas, como
em tropas, com homens e mulheres, e porque destrói a educação
com a padronização da escola e a supressão da aprendizagem.
Em resumo, o capitalismo é como a erupção de toda uma
família de pecados, é o reino de Mamon. E isto se aplica tanto
ao capitalismo liberal como ao marxista.

A ECONOMIA CATÓLICA

A economia, por sua vez, a única possível, está fundada sobre


a virtude que Santo Tomás chama liberalidade, a qual nos ensina

28
A economia e a economia moderna

o bom uso dos bens deste mundo concedidos para nosso sustento
(S. Th. II-II, q. 117).
Acaso as riquezas artificiais e naturais devem ser produzidas
e acumuladas porque sim? Sem dúvida que não. São coisas des-
tinadas ao proveito do homem, para seu uso; em outras palavras,
“para o consumo”. Resultam bens e não simplesmente coisas
na medida que servem ou podem servir ao homem. Logo, todo
processo econômico, pela exigência da mesma economia, deve
estar orientado ao consumo. Portanto, há uma dupla falha
antieconômica no capitalismo, qualquer que seja sua espécie,
pois se consome para produzir e se produz para lucrar. A finança
regula a produção, e a produção regula o consumo.
E os bens, para que se consomem? Ou seja, o processo eco-
nômico total, para onde se orienta? A satisfazer as necessidades
da vida corporal do homem. E como esta não tem um fim em si
mesma, senão que sua integridade é requerida para assegurar a
vida espiritual do homem, que culmina no ato de amor a Deus,
toda economia deve estar a serviço do homem para que este se
coloque a serviço de Deus.

“Santo Tomás ensina que para levar uma vida moral, para desenvol-
ver-se na vida das virtudes, o homem tem necessidade de um mínimo
de bem-estar e de seguridade material. Este ensino significa – diz
Maritain (Religion et Culture) – que a miséria é socialmente, como viram
claramente León Bloy e Péguy, uma espécie de inferno; significa, assim
mesmo, que as condições sociais que colocam a maior parte dos
homens na ocasião próxima de pecar, exigindo uma espécie de he-
roísmo dos que querem praticar a lei de Deus, são condições que
em justiça estrita devem ser denunciadas sem descanso e que deve
esforçar-se para mudar”.

29
CAPÍTULO 1

Santo Tomás expôs na “Suma contra os Gentios” o lugar da


economia numa hierarquia de valores.

“Se se considera bem as coisas, todas as operações do homem estão


ordenadas ao ato da divina contemplação como a seu próprio fim.
Pois, para que são os trabalhos servis e o comércio, senão para
que o corpo, estando provido das coisas necessárias à vida, esteja
no estado requerido para a contemplação? Para que as virtudes
morais e a prudência, senão para procurar a paz interior e a calma
das paixões de que tem necessidade a contemplação? Para que o
governo civil, senão para assegurar a paz exterior necessária à con-
templação? Donde, se se considera bem, todas as funções da vida
humana parecem estar a serviço dos que contemplam a verdade”
(L. IV, cap. 37).

Enquanto não se admite esta hierarquia de valores, não se


superará o capitalismo, porque ou se serve a Deus ou a Mamon, o
deus das riquezas.

A ECONOMIA, UMA ÉTICA

Do exposto resulta que a economia é uma ética (contra a


concepção mecânica de Descartes) que tem por objeto especí-
fico a procura dos bens materiais úteis ao homem; digo bens,
isto é, que respondam às exigências da natureza humana, não a
seus caprichos ou concupiscências. Daí que todas aquelas coisas
que sobram, uma vez satisfeitas as necessidades do próprio
estado, são supérfluas e não resultam bens se se mantêm acumu-
lados ou se usam para satisfazer a sede dos prazeres. Há obrigação
grave, segundo determinaremos na próxima seção, de participar
de seu uso a todos os membros da comunidade social, para que

30
A economia e a economia moderna

resultem bens úteis ao homem, isto é, bens materiais humanos,


que só devem ser usados conquanto conduzam à plenitude racio-
nal e à destinação sobrenatural do homem. Devemos servir-nos
da riqueza como filhos de Deus que nos chamamos e somos.
Logo, a economia é uma parte da prudência, como ensina
Santo Tomás (S. Th. II-II, q. 51, a. 3), que tem por objeto o reto
ordenar das ações humanas encaminhadas a procurar o sustento
próprio ou da família, ou da sociedade.
E como na lei da graça na qual vivemos não pode haver virtu-
de perfeita – segundo ensina o Angélico - senão pela ordenação
de tudo a “Deus amado sobre todas as coisas”, é necessário que a
prudência, e com ela a economia, subordinem-se perfeitamente
à caridade, que é a mais excelente das virtudes, e sem a qual não
pode haver verdadeira virtude.
Do dito resulta que “as leis econômicas não são leis puramente
físicas como as da mecânica ou da química, senão leis da ação, humana,
que implicam valores morais. A justiça, a liberdade, o reto amor do pró-
ximo, formam parte essencial da realidade econômica. A opressão dos
pobres e a riqueza tomada como um fim em si não estão somente proi-
bidas pela moral individual, mas são coisas economicamente más, que
vão contra o fim mesmo da economia, porque este fim é um fim humano”.6
Daí que a justificação dos elementos e valores econômicos
há que se buscar nas exigências da ação humana, e, que seja
sua moralidade, sua moralidade intrínseca, a condição de seus
efeitos benéficos para o homem.

6
Cf. Maritain, Religion et Culture, p. 46.

31
CAPÍTULO 1

TRANSCENDÊNCIA DA ECONOMIA CATÓLICA

Não sei se ficará exposta suficientemente a oposição funda-


mental da economia (porque só se pode chamar simplesmente
economia a verdadeiramente humana) e a Economia moderna
ou Capitalismo. Uma está fundada sobre um pecado, e a outra
descansa sobre uma virtude. Uma, como todo pecado, sob ma-
ravilhosos disfarces, escraviza o homem, pois o que comete
pecado é escravo do pecado, segundo diz o Apóstolo. A outra,
humildemente, sem ostentação, liberta-o, pois a verdade nos
faz livres, como ensinava Cristo.
Se a economia moderna nasce do pecado, é essencialmente
perversa e nefasta. Poderá haver nela muitos elementos materiais
bons, mas a conformação dos mesmos é intrinsecamente satânica.
Do exposto, a doutrina econômica da Igreja, nascida de
uma virtude, é uma doutrina que está infinitamente por cima
de todas as outras doutrinas econômicas, as socialistas ou libe-
rais. Não se compara com elas. Não está no centro delas, como
o cume de um monte elevado recolhe, transcendendo, todos os
pontos de verdade contidos nas distintas escolas econômicas;
porque como não existe o mal ou erro absoluto, assim toda esco-
la, por desvairada que seja, tem em seu interior muitas verdades
adulteradas. O liberalismo, por exemplo, insiste no caráter indi-
vidual da possessão dos bens terrenos; o socialismo no caráter
social; e o fascismo quer equilibrar ambos. Mas só a Igreja, que se
apoia na eternidade do céu, pode obter verdadeiro equilíbrio do
homem e da riqueza, porque incorporada a Cristo, e por Cristo
unida a Deus, pode submeter a riqueza ao homem, e o homem a
Deus. O homem está colocado em um meio, entre as riquezas e

32
A economia e a economia moderna

Deus. Jamais pode governar. Por isto, se não quer ir a Deus, se se


recusa a aceitar o governo de Deus, tenderá a cair sob o governo
das riquezas. Ou Deus ou Mamon. Não se pode servir a dois
senhores. Mas tem que servir: se recusa o governo paternal de
Deus, cairá sob a escravidão do bezerro de ouro.
Só há duas economias verdadeiramente opostas: a cristã,
que usa das riquezas para subir a Deus, e a moderna ou ca-
pitalista (seja liberal ou marxista), que abandona a Deus para
escravizar-se na riqueza.
Parece que a Misericórdia Divina, compassiva pela es-
pantosa sorte do homem, que perdeu o paraíso sobrenatural
e vive um inferno terrestre, quer nesta hora libertar-nos da
opressão capitalista. Este é o sentido da crise profunda que
pesa sobre o mundo.
Mas há dois caminhos para que a liberdade se realize. Porque,
se entendo o homem no plano de Deus que quer libertar-nos
da opressão burguesa, da escravidão do ouro, se presta atenção
aos desejos divinos e, com espírito de penitência, renuncia ao
supérfluo. E para expiar sua perversa ganância ainda se priva do
necessário, o Senhor, que perdoou Nínive, devolverá ao homem
o sentido da economia e, com ela, o sentido da Vida. A liberdade
dar-se-á, então, na paz do Senhor.
Se, por sua vez, não entende o plano de Deus, o faz como se
não o entendesse, o Senhor o libertará, é certo, mas depois de
purificá-lo em uma espantosa catástrofe de terror e anarquia.

33
CAPÍTULO 2

A produção da terra

ℕ o capítulo anterior descobrimos a perversão essencial e


funesta de toda economia que, como o capitalismo, está
regida intrinsecamente pela concupiscência do lucro.
Sendo esta um instinto insaciável, infinitamente vertiginoso,
dinâmico, acelerador, é rebelde a toda medida, e por isso importa
uma radical inversão dos valores humanos, e ainda dos mesmos
valores econômicos.
Dos valores humanos: pois, em lugar de colocar a economia
a serviço da vida corporal do homem, para que assim possa este
alcançar a integridade de sua vida intelectual e espiritual, e pôr-se
a serviço de Deus, único Senhor que merece plena adesão, a
concepção econômica moderna absorve todas as energias
espirituais e materiais do homem e as coloca à mercê do

34
A produção da terra

gigantesco edifício econômico, ao redor do qual todo mundo


está obrigado a prostrar-se em religiosa reverência - desde o
último desocupado até o poderoso financista.
Inversão dos mesmos valores econômicos: pois, em lugar
de empregar o dinheiro como um puro meio de câmbio que
facilite a distribuição e difusão das riquezas naturais, faz-se
dele precisamente o oposto, quer dizer, o fim último, com uma
poderosa força de atração que concentra em poucas mãos o
mesmo dinheiro, e com ele as mesmas riquezas naturais.
De tal sorte está armada a economia capitalista, que tudo
concorre à multiplicação do ouro: as riquezas e o crédito servem
para multiplicar o ouro; se se consome é para se produzir mais
e com isso comercializar mais, e poder multiplicar o ouro. De
modo que a vida é uma dança perpétua ao redor do ouro, ao
qual, para culminar o paradoxo, nada vê porque dorme nas
cavernas misteriosas dos grandes bancos.
De modo que o consumo, que deveria ser o fim próximo
regulador de todo o processo econômico, vem a estar, em último
término, contingenciado à produção, ao comércio e à finança;
e, por sua vez, a finança, que devia ocupar o último lugar como
um puro meio, obtém o primeiro, de fim regulador.

HIERARQUIA DA PRODUÇÃO

Essa aceleração mórbida devia provocar ao mesmo tempo um


transtorno profundo nos fenômenos econômicos particulares,
tais como a produção.
Sem entrar em considerações metafísicas que podem parecer
profundas, apliquemos o sentido comum e perguntemos: qual

35
CAPÍTULO 2

é a finalidade da produção de riquezas? Para que se emprega


o homem no trabalho, e se produz? Sem dúvida, para dispor de
bens que possa consumir. Não quer dizer isto que só se produza
o que diariamente se consome. De modo algum. Pode e deve
produzir mais, e poupar aquilo que não consome, e formar um
patrimônio estável que o assegure a vida de amanhã para si e
sua família e que se perpetue entre seus herdeiros. Mas, ainda
isto que não consome imediatamente, o produz em previsão do
consumo que necessitará amanhã sem podê-lo então produzir.
Logo, sempre será verdade que produz para consumir. E quais são
os primeiros bens de cujo consumo necessita o homem? Gozar,
viver em habitação conveniente, vestir-se ou comer? Sem dúvida
que primeiro é comer, e depois vestir-se, e logo ter habitação
conveniente, e por fim desfrutar de honestos passatempos.
E como a terra é a que quase diretamente nos proporciona o
necessário para comer, vestir e habitar, e por sua vez a indús-
tria nos subministra de preferência o supérfluo, segue-se que,
num regime econômico ordenado, a produção da terra e suas
riquezas devem obter primazia sobre a produção industrial, a
vida do campo sobre a vida urbana.
Quer dizer, exatamente o inverso do que acontece e forço-
samente deve acontecer na economia moderna. A economia
capitalista é, em sua essência, pura aceleração. A produção da
terra e o consumo de seus produtos subtrai-se à aceleração:
não é possível, por exemplo, obter trigo em poucos dias ou em
algumas horas, ou consumir 10 kg de pão em vez de um. Em vez
disso, a produção do supérfluo pode aumentar ilimitadamente,
pois sempre é possível criar novas necessidades supérfluas
e satisfazê-las infinitamente. Logo a economia capitalista,

36
A produção da terra

por sua mesma essência, sente-se impulsionada ao fenômeno


“contra naturam” (que viola as exigências naturais) de fazer da
indústria, da fábrica, o tipo normal de produção e, por sua
vez, imaginar a agricultura como um acoplado arrastado pela
indústria. Henry Ford teve a franqueza de confessá-lo, conside-
rando a agricultura como uma indústria “auxiliar ou subsidiária”,
segundo palavras textuais.1
Este deslocamento da produção devia engendrar fenômenos
tão típicos do capitalismo como o que a produção e o consumo
de um artigo são tanto maiores quanto mais inúteis. Assim, por
exemplo, a mulher americana gastou em 1925, por termo médio,
três vezes mais em cosméticos do que gastou em pão, e agora,
em plena crise, vemos que, com um evidente subconsumo de
alimento e vestido, há um gasto com cigarros, diversões, diários,
álcool, etc.; depois, o fenômeno do esmagamento humano nas
chamadas grandes cidades, onde se passa uma vida raquítica
e miserável, mas acomodada de divertimentos, enquanto os
campos ficam desertos; o fenômeno desses mesmos campos, sob
posse e proveito de uns poucos proprietários, que se divertem
no harém da cidade, enquanto os colonos se consomem no
suor da miséria; e, por fim, o fenômeno da exploração agrícola
industrializada e mercantilizada, de sorte que não assegura a
vida decente do lavrador.
Esta inversão total da hierarquia da produção, esta absorção
que o mercado e a indústria fazem da terra e sua produção
provocam um transtorno radical do mesmo campo. É necessário
persuadir-se que o problema do campo não tem solução numa

1
Em Aujourd hui et demain, p. 230; citado por Marcel Malcor, Nova et Vetera, janvier et mars, 1929.

37
CAPÍTULO 2

economia capitalista, em uma economia que esteja impulsionada


pela avareza como próprio fim. Erro nefasto de todos os que,
vivendo a angústia da propriedade e da exploração agrícola,
querem remediá-lo apelando a uma distribuição equitativa de
terras ou a uma cooperação solidária, sem corrigir antes a torcida
ou invertida ordem da vida econômica.
Ainda que se fizesse uma repartição ideal da terra e se im-
plantasse uma exploração também ideal, não se remediaria
absolutamente nada enquanto não se reformasse a mesma
concepção econômica moderna, e não se lhe restituísse o sentido
da hierarquia econômica natural. Porque, como disse antes, o
desajuste econômico do campo, que entre nós atinge plena-
mente, está provocado por causas industriais, comerciais e
financeiras, e não tem solução verdadeira enquanto a terra e
os produtos naturais não recobrem a função reguladora da
produção a que lhe destina a mesma natureza da realidade eco-
nômica. Observação que a muitos parecerá pouco prática, mas
que se pode comprovar pelo simples fato da crise: uma colheita
abundante e um gado de primeira classe que não se pode
colocar nos mercados mundiais a preço vantajoso basta para
submergir na miséria e na fome a toda população campesina.

PRODUÇÃO TIPO DOMÉSTICO E RURAL

Para que este simples fato que se aduz tão somente como um
mero exemplo não sirva para diminuir o alcance desta obser-
vação, adverte-se que o desajuste do campo é permanente, pois,
permanentemente, sua vida está atraída e como que imantada
pela vida anêmica da cidade, uma vez que sua produção está

38
A produção da terra

arrastada pela produção industrial e comercial; ainda que,


evidentemente, o desajuste será maior quando, por sua vez, se
produz um transtorno na mesma indústria e comércio.
Quando a terra perde a própria vida e vai acoplada ao in-
dustrialismo e ao mercantilismo, a revolta dos compatriotas
é eminente; os proprietários de terra que vivem na cidade podem
apresentar-se à degolação.
Será conveniente recordar o que sucedeu no século IV no
norte da África:
Numídia e Bizacena, no século III e IV, fornecem azeite de
oliva ao mundo civilizado; adiantando-se às fórmulas modernas,
estabelecem um cultivo e indústria especializados e orientados
até a exportação. E, evidentemente, são estas duas razões para que
os grandes domínios, melhor organizados, equipados de me-
lhores recursos, sobretudo desde o ponto de vista do comércio
estrangeiro, absorvem aos pequenos. E assim, no século IV,
a África está dividida em poucas explorações. O trabalhador
proprietário desapareceu, os servos são menos numerosos; os
colonos ou compatriotas livres de então, reduzidos a um ver-
dadeiro proletariado, hão de pagar caro seu pão em domínios
nos quais tudo está sacrificado às explorações industriais.
Tropas impessoais de assalariados invadem os campos.
Um dia, uma revolução agrária varre toda uma classe de
proprietários do solo, e cidades de luxo, cidades de proprietários
como Lambeza, Tirngad, Aquae Regiae, Thisdrus, desaparecem
de golpe. Os colonos repartem entre si as terras, e o poder debi-
litado passa às mãos dos vândalos, assim chamados por aqueles2.

2
Marcel Malcor, Nova et Vetera, abril-junho, 1931.

39
CAPÍTULO 2

Não é meu intento infundir pavor. Só quero deixar esta-


belecido que uma produção ordenada da terra exige que a
produção econômica não seja primordialmente nem financista,
nem mercantilista, nem industrialista.
A produção da terra deve estar mais generalizada e deve
ser preferida à produção industrial. E dentro da mesma terra, a
produção deve ser, primeiro, doméstica e, só depois, mercantil.
Se ninguém, obcecado pelo monstro do progresso capitalista,
sofre escândalo, vou escrever a palavra: a produção econômica
deve ser perfeitamente patriarcal. Quer dizer, que dominará na
possessão do tipo solar, na qual possa viver frugalmente uma
família modesta, e na produção, o tipo de produtos domésticos e
de granja, de sorte que o tipo comum de família, podendo produ-
zir na própria casa, não se veja, por nenhuma eventualidade, na
miséria. Disse bem: pois haverá cidades e indústrias, ainda com
pessoal assalariado, mas não deve dominar; devem ocupar um
lugar secundário, o mesmo que a exploração agrícola em grande
escala. Portanto, se se contempla a fisionomia geral de um regime
ordenado, humano, de produção econômica, este deve ser rural
em oposição a urbano, doméstico em oposição a mercantil.
Pensem os glorificadores da economia capitalista que todos
seus elogios ao Progresso, à Indústria, à Urbe, se desfazem como
bolhas de sabão, quando aos pés destes colossos, levantados com
o suor do pobre, se contempla a miséria espiritual e material do
proletariado famélico e a ruína e as incertezas do arrendatário
nos campos. Se certo pretendido progresso há de servir para
escravizar o homem, fornecendo-lhe prazeres que não necessita
e privando-lhe do pão espiritual e material que sustenta, afunda
em boa hora o Progresso. Como talvez algum ingênuo socialista
imagine que o ideal seria levantar o proletariado e sentá-lo no

40
A produção da terra

festim do paraíso burguês, é bom recordá-lo que não delire.


Pois o paraíso estomacal do burguês levantou-se precisamente
porque é burguês, quer dizer, pois estava em vigor uma concepção
econômica que favorecia o enriquecimento individual.
Se a concepção econômica tivesse sido estatal, coletivista,
socialista, das duas uma: ou teria implantado o trabalho obriga-
tório, e então talvez se lograsse uma poderosa riqueza coletiva,
mas às custas da escravidão também coletiva, como na Rússia;
ou teria deixado na liberdade, e então não se produziria nem
para comer, porque se a coletividade produz e dá de comer não
falta que o indivíduo se preocupe.
Por isto, sem eufemismos, sem o afã de soluções práticas, digo
que se não se quer a escravidão capitalista, nem a escravidão
marxista, é necessário optar por uma economia patriarcal,
rural, doméstica.
Não digo – entenda-se bem – que seja proximamente possível
nem de aplicação prática imediata. Não poderia sê-lo: porque esta
fisionomia econômica está determinada pela liberdade, assim
como o capitalismo liberal e o marxista foram engendrados
pela avareza burguesa ou proletária, e atualmente o instinto
da avareza está muito mais virulento que nunca.
Digo sim que é a única configuração econômica que pode
libertar-nos da opressão capitalista ou marxista.

O USO COMUM DOS BENS EXTERIORES

Toda esta doutrina sobre a hierarquia dos fatores de produção


e sobre a necessidade de uma economia tipo patriarcal é corolário
de um admirável ensinamento de Aristóteles e Santo Tomás
sobre o uso dos bens materiais.

41
CAPÍTULO 2

O homem chega ao mundo e se encontra frente a uma infi-


nidade de bens exteriores: a terra com suas imensas riquezas
de plantas e animais, de peixes na água e de aves nos céus. Para
quem e para que são estes bens? Tudo está sob seus pés, responde
o salmista (Sl. VIII).
De modo que tudo está a serviço do homem; tudo é para
que o homem possa usar, ou seja, comer, vestir-se, formar sua
habitação, e desfrutar de um deleite humano na vida familiar.
Mas, tudo é para o homem: para qual homem? Para os de
uma raça, de uma nação, de uma cidade, de uma classe social?
De maneira alguma. Todos, o mais humilde dos seres humanos,
têm direito de usar, digo usar e não precisamente possuir, aquilo
que necessita para uma vida humana, ele e sua família. Ninguém
pode ser excluído. E um regime econômico que não assegurasse
permanentemente a todas as famílias o necessário para uma
subsistência humana, seria um regime nefasto, perverso, injusto.
E por isto Santo Tomás (S. Th. II-II. q. 66, a. 2, ad 7), seguindo a
Aristóteles (Pol. II, 4), diz: “Outra coisa que compete ao homem sobre
as coisas exteriores é seu uso. E enquanto a isto não deve o homem possuir
as coisas exteriores como próprias”.
A razão é clara: todo homem tem direito a viver em família;
logo tem direito aos meios que o assegurem uma subsistência
humana familiar; mas como estes meios são os bens exteriores,
todo homem tem direito aos bens exteriores que assegurem sua
subsistência e a de sua família. E observem bem que determino
agora o minimum do que deve um homem usar. Este mínimo
é a subsistência humana da família; humana, digo: portanto,
algo mais do que faz falta para comer e vestir. Certo bem-estar
humano permanente. Poderá ser pobre, isto é, não dispor de
riquezas supérfluas, mas nunca deverá ser miserável. Deus não

42
A produção da terra

quer a miséria de ninguém. E um regime que coloca o homem na


miséria é um regime injusto, reprovado por Deus.
Por isso estão condenados o socialismo e o capitalismo; por-
que um e outro, em virtude de sua essência, colocam o homem
permanentemente em um estado de miséria. O capitalismo, pois
concentra a propriedade e o uso dos bens em mãos de uns poucos
afortunados e milionários e deixa a multidão condenada a viver
(digo, morrer) de um salário precário e eventual; o socialismo,
pois, igualmente, concentra de forma brutal nas mãos do estado,
de onde a multidão se verá frequentemente privada de seu uso.
É verdade que o socialismo imagina a apropriação dos bens de
produção pelo estado para logo reparti-los e pô-los a disposição
do consumo de todos os homens; mas, como viram com olhar
penetrante Aristóteles e Santo Tomás, um tal regime ademais
de violentar a justa liberdade de todos e de não ter em conta
a desigualdade das naturezas individuais, teria como conse-
quência lógica a insuficiência da produção. Porque, como o
comprova a experiência cotidiana, o que pertence a todos nin-
guém não o faz. E se todos devem produzir em coletividade,
produzir-se-ia muito pouco.
Por isso que Santo Tomás, no mesmo artigo em que estabelece
o uso comum dos bens exteriores, afirma e demonstra a necessi-
dade da propriedade privada (S. Th. II-II. q. 66, a. 2).
Assim, colocando-se a questão de se é lícito ao homem possuir
algo como próprio, contesta:

“Responderemos que acerca da coisa exterior duas coisas competem


ao homem: 1ª - o poder de procurar e dispensar; e quanto a isso é
lícito que o homem possua coisas próprias e é também necessário
à vida humana por três motivos: 1º porque cada um é mais solícito

43
CAPÍTULO 2

em procurar algo, que convenha a si próprio do que o que é comum


a todos ou a muitos; pois cada qual, fugindo do trabalho, deixa
a outro o que pertence ao bem comum, como sucede quando há
muitos servos; 2º porque as coisas humanas são dirigidas mais ordena-
damente, se a cada um incube o cuidado próprio de olhar por seus
interesses; enquanto que seria uma confusão se cada qual cuidasse
de tudo indistintamente; 3º porque por isso se conserva mais pací-
fico o estado dos homens, estando cada um contente com o seu;
pelo qual vemos que entre aqueles, que em comum e pro-indiviso
possuem alguma coisa, surgem mais frequentemente contendas; a
2ª coisa que compete ao homem nas coisas exteriores é o uso das
mesmas; e quanto a isso não se deve ter o homem as coisas exterio-
res como próprias, senão como comuns, de modo que facilmente dê
parte delas a outros, quando as necessitam. Por isso diz o Apóstolo
(1 Tm 6, 17): manda aos ricos deste mundo... que deem e repartam
francamente de seus bens...”

A PROPRIEDADE PRIVADA

De sorte que o uso comum dos bens exteriores funda e justifica


a propriedade privada, como afirma Pio XI em sua maravilhosa
Quadragésimo Anno, quando diz:
“Todos (quer dizer, Leão XIII e os teólogos que ensinaram
guiados pelo magistério da Igreja) unanimemente sempre
afirmaram que o direito de propriedade privada foi outorgado
pela natureza, ou seja, pelo mesmo Criador, aos homens, para
que cada um possa atender às necessidades próprias e de sua família,
para que por meio desta instituição, os bens que o Criador destinou a
todo o gênero humano, sirvam em realidade para tal fim, todo o qual
não é possível lograr em modo algum sem a manutenção de
certa e determinada ordem”.

44
A produção da terra

Se se quer compreender o problema da propriedade privada,


é necessário compreender antes o uso comum dos bens, o que
é o mesmo; o direito à existência que cabe a todo membro da
família humana. O direito da propriedade privada é um meio
necessário, mas meio que tem como fim assegurar o uso comum
dos bens exteriores. Uso comum: que não quer dizer que todos
tenham que usar qualquer coisa senão que a ninguém faltará
aquele mínimo que necessita para viver.
Não se pode evitar eficazmente o liberalismo econômico, que
faz ilimitado o direito de propriedade, se esta não é obtida a partir
do uso comum dos bens. Nesta doutrina funda-se, ademais, a
doutrina dos teólogos católicos sobre o direito que tem todo
aquele que se encontra em extrema necessidade de tomar o
que necessita para si e sua família; “então - diz Santo Tomás
(S. Th. II-II, q. 66, a. 7) - pode qualquer um licitamente socorrer sua
necessidade com as coisas alheias, furtando-as, manifesta ou ocultamente,
e isso não tem propriamente razão de furto nem de rapina.
Na mesma doutrina funda-se o direito que compete ao Estado
de limitar e regular a propriedade privada de sorte que alcance
sua destinação comum. Porque, se a propriedade privada é para
assegurar o uso comum dos bens exteriores, o Estado, que tem
por missão promover o bem comum, deve regulá-lo para tal fim.
Pio XI recordou esta doutrina na “Quadragesimo Anno”,
quando escreveu:

“Portanto, a autoridade pública, guiada sempre pela lei natural e divina


e inspirando-se nas verdadeiras necessidades do bem comum, pode
determinar mais cuidadosamente o que é lícito ou ilícito aos possuido-
res no uso de seus bens. Já Leão XIII havia ensinado muito sabiamente
que ‘Deus deixou à atividade dos homens e às instituições dos povos
a determinação da possessão privada’. A história demonstra que o

45
CAPÍTULO 2

domínio não é uma coisa de todo imutável, como tão pouco são
outros elementos sociais; e ainda Nós dissemos em outra ocasião
nestas palavras: Que distintas foram as formas da propriedade pri-
vada, desde a forma primitiva dos povos selvagens, que ainda hoje
restam amostras em algumas regiões, até a que logo revestiu-se na
forma patriarcal, e mais tarde nas diversas formas tirânicas (usando
essa palavra em seu sentido clássico) e assim sucessivamente nas
formas feudais, e em todas as demais que se sucederam até os
tempos modernos”.

Nesta determinação da propriedade, a ação do Estado deve ser


tal que, longe de abolir a propriedade privada, tenda a garanti-la e
fazê-la efetiva; para que toda família, na medida do possível, pos-
sua o próprio solo estável que se perpetue de geração em geração.
O ideal da política governamental deve ser assegurar às famí-
lias urbanas e campesinas a propriedade de família, e protegê-la logo
com uma legislação eficaz. Precisamente, o contrário da política
liberal e socialista, empenhada em destruir a família, seja com leis
nefastas que atentam à indissolubilidade do vínculo matrimonial
ou que relaxem, pelo ensino público nominalista e imbecilizante,
a autoridade e educação paternal, seja com leis sobre a divisão da
herança, inspiradas no Código Napoleônico, ou sobre a imposição
de hipotecas ao próprio bem de família. É necessário, se se quer
um ordenamento da propriedade e da vida agrícola, restituir o
patrimônio de família. Que é um patrimônio de família? É um
bem do qual estão investidos os possuidores sucessivos porque se
vai perpetuando numa mesma linha, sem fraccionar-se. Bem não
descartável ou não hipotecável e não embargável, reconhecido
pelo direito germânico que Le Play chama família-estirpe3.

3
Ver LA TOUR DU PAIN, Vers um ordre social Chretien.

46
A produção da terra

Para continuar expondo o que uma concepção econômica sã


exige sobre a produção da terra, direi que uma vez restituído
o patrimônio de família o domínio rural, que é como a célula
orgânica da produção agrícola, será necessário coordenar de tal
sorte o trabalho das distintas famílias, quer dizer: a exploração
agrícola pequena ou mediana, que não se veja absorvida pela
grande nem devorada pelo poderoso proprietário de terras.
É necessária a cooperação. Cooperação que poderá amparar
os direitos do agricultor na natural concorrência econômica:
defendê-lo-á contra os usurários por meio das mútuas de Cré-
dito como as Cajas Reiffesen4; instrui-lo-á sobre as melhoras
que convém introduzir nos cultivos; facilitá-lo-á os abonos
convenientes, os instrumentos de produção, sobretudo os mais
custosos; libertá-lo-á da opressão comercial por meio das
cooperativas de consumo; e assegurá-lo-á o armazenamento
e venda das colheitas pelas cooperativas de produção. Em uma
palavra: constituir-se-ão verdadeiros sindicatos agrícolas que
proveem as necessidades comuns dos agricultores.
Evidentemente que todas estas medidas serão completamente
inúteis se o governo não evita com braço forte o monopólio e
as especulações dos intermediários internacionais. Como na
realidade, ao meu entender, chegamos a um ponto crítico, em
que o poder das especulações é quase indestrutível, enquanto
que o do Estado, por causa do liberalismo democrático, é muito
fraco, é necessário organizar de tal forma a terra que seja possível

4
Nota do Tradutor (N.d.T.): Friedrich Wilhelm Raiffeisen fundou, em 1864, a Associação de Caixa de
Crédito Rural de Heddesdorf, Alemanha. As caixas de crédito mútuo rurais são cooperativas mantidas pelos
depósitos de seus cooperados, que podem usufruir de benefícios, tais como, a obtenção de empréstimos
para o desenvolvimento de seu patrimônio.

47
CAPÍTULO 2

satisfazer as necessidades próprias do país; de sorte que a


produção abasteça primeiro o país antes de orientar-se ao
mercado mundial. Exigirá isto, evidentemente, uma distribuição
agrícola menos mercantilista, menos lucrativa, mas mais abun-
dante em bens naturais. Há que auspiciar uma exploração
mista, agrícola-hortícola-avícola-pecuária. Naturalmente que,
em nosso país5, será difícil para o elemento nativo reparar sua
indolência natural.
Teríamos, então, que a mesma exagerada especulação dos
monopólios, como o ritmo do mercado mundial, que é fran-
camente protecionista, sugere o retorno a uma produção da
terra de tipo patriarcal, da qual se falava anteriormente.

O ESTADO PODE LIMITAR A PROPRIEDADE PRIVADA

Sublinhava anteriormente que o uso comum dos bens exte-


riores justifica e regula a propriedade privada, de sorte que, no
possível, a toda família corresponda um patrimônio fixo ina-
lienável. Mas este foi exposto mais como um fim ao qual deve
tender-se, ainda que nunca se poderá lográ-lo perfeitamente.
Sempre haverá gente que por vontade própria ou por necessi-
dade não terá solar próprio. No campo, será esta a condição do
arrendatário ou do meeiro. Tanto o sistema de arrendamento
como o de parceria são em si justos, contanto que seja justo
o preço estipulado. Entre nós, são geralmente exorbitantes,
porque estão calculados para tempos de prosperidade excep-
cional. Ademais, é uma flagrante injustiça (ao menos social

5
N.d.T. A Argentina.

48
A produção da terra

enquanto vai contra o uso comum dos bens exteriores) que os


grandes proprietários de terra exijam nestes anos de perdas o
pagamento de seus arrendamentos ainda que os campesinos
se vejam no desamparo.
Ainda que o arrendamento como tal seja um sistema justo,
uma produção ordenada da terra exige que os cultivadores
sejam preferencialmente os mesmos proprietários. O que se
passa na Argentina, de que 70%, pelo menos, da terra em cul-
tivo seja arrendada (e isto em condições muito desvantajosas),
revela um profundo transtorno. Não é fácil indicar a solução
para este problema, mas é mister persuadir-se de que a solução
é necessária tanto para a justiça como para a paz social. O
colono é paciente, mas tudo tem limite, além de que não é justo
abusar da paciência de ninguém.
O Estado tem poder em virtude de sua função de procurador
do bem comum para aplicar a solução que contemple o bem
de todos.
Para fazer ver até onde pode chegar este poder, e ao mesmo
tempo demonstrar num exemplo a limitação que impõe à pro-
priedade privada o uso comum dos bens exteriores, vou expor
brevemente a política enérgica aplicada pelos Papas no século XV
contra os latifundiários e monopolizadores.
No fim do século XV, o agro romano, uma parte do campo de
Roma, estava num estado de lastimosa desolação, enquanto
em Roma existia uma penúria espantosa. Os proprietários
dos terrenos do agro romano preferiam deixar que as terras
produzissem espontaneamente erva para pasto de animais
brutos do que fazê-las por si ou por outros a dar fruto para
sustento dos homens.

49
CAPÍTULO 2

Foi então quando o Papa Sixto IV, em sua célebre bula Inducit
nos, de 19 de março de 1476, deu poder a todos, no território
de Roma, de arar e cultivar, nos tempos segundo o costume,
a terceira parte de qualquer fazenda que elegessem, qualquer
fosse seu dono, com a condição de que pedissem permissão,
mas com poder de lavrar ainda que não a obtivessem, ainda
que pagando uma cota ou renda aos proprietários.
Como se vê, neste caso, o Estado, em virtude de seu poder
jurisdicional ou justiça legal, sem privar os proprietários de
seu domínio (como o demonstra o pagamento de aluguel), o
regula em forma tal que o uso e usufruto da propriedade seja
participado por todos.
A Bula de Clemente VII demonstrará mais eficazmente até
onde alcança este poder.
Com a bula de Sixto IV havia-se conseguido que “muitíssimos
se dedicassem ao plantio”, mas como logo os barões proibiram seus
vassalos de transportar o grão colhido, com o fim de obrigá-los
a vendê-los barato para logo revendê-los, ninguém queria
seguir cultivando. É o caso do vulgar monopólio dos Dreyfus,
Bunge e Born, etc., já consignado em seu tempo por Aristóteles.
Que fez o Papa para remediar esta situação?
Proíbe severamente a todos os barões e nobres romanos e
a quaisquer outras pessoas: 1º) Comprar de seus vassalos trigo
e outros grãos, fora o necessário para o uso do sustento de sua
casa; 2º) Impedir-lhes que levem para Roma os mesmos grãos;
3º) Que eles mesmos transportem os grãos para lugar distinto
daquela cidade.
Para dar eficácia à proibição, ameaça que os que não obede-
cessem, dentro dos 15 dias de promulgação da bula, incorreriam

50
A produção da terra

em sentença de excomunhão, da qual não poderiam ser absolvi-


dos senão pelo Romano Pontífice, com expressa menção do caso,
no limiar da morte somente, e com expressa satisfação. Se ainda
assim não obedecessem, passados outros 15 dias, serão privados
inteiramente do feudo, o qual será confiscado em benefício da
Câmara Apostólica; e se, transcorridos seis meses depois dos úl-
timos 15 dias, recusarem obedecer, então, ipso jure, serão privados
de todos os povos, terras, quintas, feudos e direitos, com inca-
pacidade de recobrá-los ou possuir outros para sempre; e as
cidades, povos, terras, quintas e direitos serão incorporados
de pleno direito à Câmara Apostólica6.
Não se trata evidentemente de propor a aplicação deste
exemplo para remediar a nossa situação. Trata-se de fazer ver até
aonde pode chegar o poder do Estado na regulação da proprie-
dade. Que é tal esta regulação, que se alguém a desacatar pode
acarretar-se a pena da mesma expropriação. Pois, observe-se
bem que, no caso aduzido, o Papa não priva do domínio senão
depois que o proprietário se fez réu de delito contra a justiça
social; e é um delito não acatar a regulação que da propriedade
imponha o Estado em vista do bem comum.
Observe-se, ademais, que a aplicação de uma medida enér-
gica pode justificar-se pela doutrina do uso comum dos bens,
que autoriza àquele que se encontra em extrema necessidade a
tomar o alheio para não perecer de miséria. Se uma família pode
fazer justamente isso, parece que, se são muitas famílias que se
veem na miséria, pois o único capital que possuem, o trabalho
de suas mãos, vale zero (se há desocupação vale zero), o Estado

6
Cf. Narciso Noguer S. J. Cuestiones Candentes sobre la propiedad y el socialismo.

51
CAPÍTULO 2

mesmo deve então tomar a seu encargo a distribuição dos bens


que outros possuem superfluamente.

UMA SOLUÇÃO RADICAL COROLÁRIO DESTA DOUTRINA

Quiçá tenha chegado o momento, ou esteja para chegar, de


uma enérgica regulação da propriedade privada. Existe hoje
uma injusta acumulação de bens nas mãos de poucos enquanto
a multidão se encontra, não na pobreza, senão na miséria.
Implica isto uma injustiça social e uma séria ameaça para a
ordem social. É urgente dar-lhe solução.
Pois bem, o Estado, cuja missão é velar pela justiça social,
deve remediá-la apelando para soluções eficazes. Estas devem
ser tais que não desconheçam o direito de propriedade. O Estado
deve respeitar a propriedade privada, e como seria impossível,
no caso presente, determinar quais são os bens furtivamente
adquiridos, deve abster-se de intentar determiná-lo e deve deixar
os bens nas mãos dos que se encontram no presente.
Mas, respeitado o atual domínio, pode e deve buscar solução
ao problema da desocupação e miséria. Para isso, deverá fazer
um estudo amplo da atual repartição dos bens financeiros,
comerciais, industriais e agrícolas; examinará o rendimento
destes bens e sua distribuição para inquirir o porquê, ainda
com este rendimento de riqueza, há no país milhares de famílias
que não têm a subsistência necessária.
Uma vez examinadas estas causas, e para isso nada melhor
que consultar as forças econômicas do país (trabalhadores,
agricultores, fazendeiros, proprietários de terras, industriais,
etc.), aplicará com energia aquela solução que resulte melhor

52
A produção da terra

a justiça social, a saber: Não é possível que neste país rico de bens
naturais suficientes para uma população imensamente maior, haja al-
guém que em virtude da ordem econômico-social, careça da subsistência
humana estável a que tem direito como membro da coletividade social.
Imporá logo, como obrigatórias, aquelas medidas que encon-
tre necessárias para alcançar a realização desta exigência social,
tendo em conta que não é justo que haja milhares de famílias na
miséria enquanto outros gozam de uma renda de 5.000, 10.000,
20.000, 50.000, cem mil e duzentos mil pesos mensais.
As medidas do governo não consistirão em privar de suas
propriedades e riquezas os que fazem estes benefícios excessi-
vos, senão em obrigá-los a que façam extensivos estes benefícios
ao maior número de famílias necessitadas, seja proporcionando
trabalho, seja com uma melhor remuneração do trabalho, seja
entregando ao Estado estes benefícios para que ele os distribua
entre as famílias necessitadas da coletividade.
Se os detentores destas riquezas produtivas negam-se por
egoísmo ou carência de sentido social a submeter-se a esta
regularização, não hesite o governo em castigá-los como vio-
ladores da ordem social; e nenhum castigo mais eficaz que o
de privá-los de suas riquezas, de acordo com o exemplo dos
Papas acima mencionados.

UMA CONSIDERAÇÃO SOBRE NOSSO PAÍS

Em um país, com a riqueza natural como a do nosso, a mi-


séria não tem razão de ser. Se há, deve-se exclusivamente à má
ordenação de nossa vida econômica, que é mais economia de
lucro e não de subsistência. Nosso país foi e é explorado pelos

53
CAPÍTULO 2

estrangeiros como uma fábrica. Estruturado o país como uma


fábrica de produção para o estrangeiro, nosso bem-estar está à
mercê dos preços que nos impõem os especuladores. E quando
estes preços não cobrem o custo dessa produção, como sucede e
deve suceder agora, reina a bancarrota e a miséria mais espantosa.
E onde está a solução permanente que nos salve da miséria
hoje e amanhã, e que realize em nosso país o forjamento de
gerações genuinamente argentinas, arraigadas em nosso solo?
Em uma mudança total de nossa estruturação econômica:
que nossa economia deixe de ser de lucro, mercantilista, e seja
uma economia de subsistência, de consumo.
Há que se forjar o domínio rural para as famílias. Que as
famílias se arraiguem na terra; as ricas em suas estâncias e as
pobres em suas chácaras, quintas ou pequenas estâncias. Que
se arraiguem no próprio solo para perpetuarem-se nele em ge-
rações robustas e copiosas. E que vivam em suas terras. Como
é possível que os campesinos de hoje, postos em contato com a
terra, mãe fecunda, sofram miséria, senão porque trabalham
artificialmente “para vender” e não para viver?
Quando se muda esta orientação da vida econômica, as
famílias tomarão carinho ao próprio solo, e não viverão em
sobressalto angustioso como o campesino de hoje, vítima do
especulador, que não sabe como será o amanhã.
Restituído o domínio rural, como expliquei no corpo deste
capítulo, há que reconstruir também o mercado rural, dentro
de uma região, para ilustrar e estimular os agricultores. Na Itália
estão sendo feitas experiências que merecem ser aplaudidas
e imitadas.
Ademais, faz falta organizar em instituições nacionais toda

54
A produção da terra

a vida produtiva de nossa campanha para realizar sobre a base


da economia doméstica e rural a economia de suficiência nacional.

O RETORNO À TERRA

É claro que é necessário descongestionar as cidades e empre-


ender a volta até a terra (magna parens), não para a explorar e
logo abandoná-la, senão para viver, viver e perpetuar-se em sua
fecundidade material e espiritual. Com este sentido da “economia
de subsistência” há que abrir a terra a todas as famílias que não
têm motivos para passear na vida anêmica da cidade servindo
aos vícios.
Na terra possuída como um patrimônio de família, sentirão os
homens sua união com os antepassados e se sentirão unidos com
as riquezas reais da terra, as quais os unirão com o Criador.
A terra com suas virtudes cósmicas e divinas está chamada a
solucionar não somente o problema de uma melhor distribuição
dos bens temporais senão também o problema da vida humana
para que o homem possa servir a seu Deus.
A terra que não permite uma absoluta mecanização, possível
em outros setores da economia, tem relações misteriosas com a
vida mesma: é profundamente biológica.
E é este sentido biológico, sentido da vida, irredutível a nenhu-
ma expressão mecânica, o que deve recobrar o homem moderno.
Se não recobra este sentido vital que perdeu, poderá reconstruir
uma economia nova, tipo corporativa, com um funcionamento
hierárquico, mas será uma mecânica da que o homem se sentirá
escravo e não senhor. Por isso é necessário que o homem viva um
ordenamento econômico novo e não que o construa, como uma
obra exterior.

55
CAPÍTULO 2

E a terra, fecunda com o trabalho do homem, o fará viver


este ordenamento.
Há que se levantar, então, o grito de retorno à terra com um
sentido profundamente humano. Só assim será uma solução
econômica e vital para o homem moderno, que entre papeis e
máquinas perdeu o sentido da realidade.
Para terminar este capítulo, digamos que a imposição de
uma ordem no problema da propriedade e na produção da terra
requer um governo forte, livre de compromissos políticos e de
prejuízos liberais, que livre o país do círculo de ferro em que o
tem amordaçado os financistas e especuladores internacionais,
que domine os interesses mesquinhos dos capitalistas e latifun-
diários, que conheça a realidade total do país e do mundo, que
não se amedronte com os clamores populares suscitados pela
classe política e que, somente guiado pelo bem comum, comum
das famílias segundo sua distinta condição e função social
(porque há de ter famílias pobres e ricas), imponha a ordenação
mais vantajosa.

56
CAPÍTULO 3

A produção industrial

ℕ o primeiro capítulo estudamos o conceito mesmo de eco-


nomia, e demonstramos que ela - através de seu objeto
formal próximo, ou seja, a procura dos bens materiais úteis ao
homem – busca o aperfeiçoamento do homem em seu aspecto
material; donde, é essencialmente humana ou moral.
Moral, não porque se ocupa dela o homem (também se ocupa
da química e da física, e estas não são ciências morais) nem por-
que as constrói ou edifica (também constrói obras de arte, e estas
não são por si mesmas morais), senão porque a economia está
ordenada, por sua natureza, a serviço do homem. Uma economia
que não servisse ao homem, que não contribuísse a seu bem-estar
humano, bem-estar social universal, comum, e não tão somente

57
CAPÍTULO 3

de uma classe, não é economia. Por isso que o Capitalismo não


é economia; que o Socialismo não é economia. Os tratadistas
modernos e as universidades modernas, que multiplicam teorias
econômicas - melhor dizer, as fórmulas de acrescentar as ri-
quezas -, ignoram a economia. Haverá em todos estes sistemas
e estudos um desperdício rentável de técnica, de observações
econômicas que poderiam integrar saudavelmente na economia;
mas esta integração não se realizou, senão que, pelo contrário,
estes elementos econômicos têm sido incorporados na concepção
antieconômica da Economia moderna, pela qual tem resultado
uma máquina devoradora do bem-estar humano. Em uma
palavra: a Economia moderna é antieconômica.
No segundo capítulo estudamos o fenômeno produção da
terra, e denunciamos o transtorno da Economia moderna, que
tende, por sua essência, ao acréscimo do lucro, a absorver a
produção da terra na produção industrial e comercial. Afir-
mamos que era necessário que a produção da terra recobras-
se o primeiro lugar de função reguladora de toda produção,
que lhe destina a mesma realidade econômica. Certos países
poderão dar maior impulso à indústria, enquanto outros, por
suas condições geográficas, o darão à agricultura e à pecuária.
Mas o ritmo econômico mundial não deve ser arrastado pelo
mercantilismo ou industrialismo, e ainda, um determinado
país não abandonará sua agricultura para dedicar-se exclusi-
vamente à indústria. Esse foi o grande erro “contra naturam”
cometido pela Inglaterra no alvorecer do capitalismo e san-
cionado definitivamente em 1842 com a lei dos cereais. Erro
cujas consequências mortais experimentam-se agora, quando
se encontra sem a agricultura que proporciona o sustento pri-

58
A produção industrial

mário do homem e sem mercados onde colocar seus produtos


industriais fora de moda.
Propiciamos, como necessário, e ainda como imposto pelo
mesmo ritmo francamente protecionista da economia mun-
dial, o retorno à uma produção econômica, tipo rural em opo-
sição a urbano, doméstico em oposição a mercantil.

A PRODUÇÃO INDUSTRIAL

E a produção industrial? Será necessário sepultar como


inútil a estupenda expansão da técnica e da máquina? De ma-
neira alguma. Será tão somente necessário assinalar um lugar
secundário já que vem a satisfazer necessidades do homem
também secundárias. Ninguém achará difícil admitir isso, se
tem em conta que só é economia aquela que aperfeiçoa o ho-
mem, que satisfaz seu bem-estar material humano; pois bem,
este bem-estar é hierárquico: porque primeiro é comer, depois
vestir-se e habitar, e só depois gozar do supérfluo, que perfei-
tamente fornece a indústria. Logo, também deve ser hierár-
quica a produção. A terra há de ter primazia sobre a indústria.
Ao propor isso faço perfeita conta que parecerá blasfêmia aos
que creem no conforto e concebem a missão do homem so-
bre a terra segundo o tipo esboçado pelo presidente Hoover1,
quando disse: “O homem que tem um automóvel padrão, um
rádio padrão e uma hora e meia de trabalho a menos, tem uma
vida mais plena e mais personalidade da que possuía antes”.

1
Herbert Hoover, 31º presidente dos Estados Unidos da América (1929 a 1933).

59
CAPÍTULO 3

Outra questão é saber se será possível restituir a indústria


ao lugar secundário que lhe corresponde.
Evidentemente que no atual estado anêmico do homem, é
absurdo imaginá-lo. Pois enquanto a vida industrial adqui-
riu uma corpulência de monstro (recorde-se a magnífica, a
vitoriosa história do industrialismo com a era do algodão, do
ferro fundido, da máquina a vapor, da química, da eletricida-
de, do motor a gasolina, invenções agora utilizadas matema-
ticamente na racionalização da vida industrial), enquanto a
vida industrial, digo, adquiriu uma corpulência monstruosa,
o homem continuando na brecha aberta por Lutero, Descartes
e Rousseau2, foi perdendo sua personalidade, e é hoje um sim-
ples grão de pólvora, acionado por infinitas circunstâncias.
Perdeu seu poder dominador. De tal sorte que enquanto a bes-
ta aumentou sua corpulência e coragem, o domador perdeu
seu império.
Não é difícil calcular qual há de ser a sorte do domador, de-
bilitado frente à besta enfurecida.
Figura poética, sem dúvida. Mas é muito possível que os
homens não atinem a colocarem-se de acordo sobre como
manter em limite o poder da máquina. E por enquanto, esta
os extermina.
Em resumo: que o problema da produção não tem solução
enquanto não se resolve o mais genérico da mesma economia,
e este por sua vez, enquanto não se resolve o da vida, segundo
expliquei no primeiro capítulo. Observação trivial que hão de

2
Ver J. MARITAIN em "Tres Reformadores", e BERDIAEFF em "Una nueva Edade Media?".

60
A produção industrial

ter presente os especialistas, os quais pretendem impor uma


ordem local sem atender à ordem total. A síntese é anterior à
análise, o uno ao múltiplo.

JUSTIFICAÇÃO MORAL DO CAPITAL

Depois destas considerações preliminares, estudemos a or-


denação que deve haver dentro da mesma vida industrial.
Teremos de justificar o capital, o salário, a gestão, a má-
quina, e harmonizar seus direitos. Observe-se que a justifica-
ção destes elementos o faço em geral, em abstrato, indicando
a conformação essencial que podem e devem ter. Não faço a
justificação destes elementos tal como se concretizaram no
capitalismo, precisamente porque este deu uma conformação
perversa e injusta àqueles elementos por si bons.
A justificação deve fazer-se desde o ponto de vista moral,
ou seja, da ação humana como humana. Podem, e em que me-
dida, justificar-se estes elementos como atos humanos? Po-
dem ser atos de virtude ou, contrariamente, são atos intrinse-
camente viciosos?
Se o primeiro (atos de virtude), podem justificar-se sempre
que em verdade procedam com boa ordenação; se o segundo
(atos intrinsecamente viciosos), jamais se justificam. Se o pri-
meiro, sempre que sejam bons serão benéficos; se o segundo,
serão nefastos.
Pois bem, isto posto, vejamos se se justifica o capital.
O capital justifica-se como exercício de uma virtude que
Santo Tomás chama de magnificência. Se recordamos bem,
dissemos num capítulo anterior que a propriedade privada

61
CAPÍTULO 3

tem uma função social, uma destinação comum – uso comum,


diz Santo Tomás. Em virtude desta destinação comum dos
bens exteriores, “o supérfluo que algumas pessoas possuem é
devido por direito natural à sustentação dos pobres; pelo que
diz Santo Ambrósio (serm. 64) ‘̒Dos famintos é o pão que tu
tens detido; dos desnudos as roupas que tens guardadas; da
redenção e absolvição dos desgraçados é o dinheiro que tens
enterrado’” (S. Th. II-II, q. 66, a. 7).
Será então necessário desprender-se do supérfluo, quer
dizer, daquilo que sobra uma vez satisfeita a necessidade e o
decoro da própria condição, e doá-lo aos pobres em forma de
esmola? Não é isto precisamente necessário. Poder-se-á in-
vestir esse dinheiro em empresas que proporcionem trabalho
e pão aos necessitados.
É esta a doutrina de S. S. Pio XI, ensinada admiravelmente
em sua encíclica sobre a Restauração da ordem social, quando diz:
“Aquele que emprega grandes quantidades em obras que pro-
porcionam maior oportunidade de trabalho, contanto que se
trate de obras verdadeiramente úteis, pratica de uma maneira
magnífica e muito acomodada as necessidades de nossos tem-
pos a virtude da magnificência, como se depreende dos prin-
cípios postos pelo Doutor Angélico (S. Th. II-II, q. 134)”.
A virtude da magnificência, como explica o Santo Doutor,
ordena o reto uso de grandes quantidades de dinheiro, assim
como a liberalidade ordena em geral o uso do dinheiro, ainda
que seja pouco. Observa-se que pecaria, portanto, de avareza
quem acumula o dinheiro supérfluo e o subtrai ao uso comum.
Donde resulta que o conceito econômico de capital está jus-
tificado pelo exercício da virtude cristã da magnificência.

62
A produção industrial

Que é, com efeito, o capital? É a riqueza acumulada que se


investe em uma empresa para a produção de outra riqueza, e
assim se beneficia a comunidade. De modo que o capital, como
tal, busca primeiro beneficiar à comunidade, aos pobres, por-
que é a inversão do supérfluo que por direito natural se deve ao sus-
tento dos pobres (Santo Tomás).
Creio que não é preciso demonstrar que não é este o con-
ceito do capital que se forjou no capitalismo. Reservando para
o próximo capítulo uma crítica mais profunda do conceito ca-
pitalista de capital, basta dizer agora que para o capitalismo,
o capital é dinheiro que produz mais dinheiro, que concentra
mais dinheiro. Exatamente o contrário do capital genuíno.
Pois, longe de fazer do capital um meio que difunda o benefí-
cio do dinheiro na comunidade, faz dele um ímã que o acumu-
la de forma rápida e absorvente nas mãos do indivíduo afor-
tunado que o possui. Por isso, enquanto o capitalista acumula,
enriquece-se de modo fantástico, a multidão é continuamente
despojada, até ficar na atual miséria e desocupação.
Esqueceu-se a destinação eminentemente social, comum,
da riqueza investida em capital. Esqueceu-se, ademais, da es-
terilidade ingênita do dinheiro enquanto não seja empregado
pelo trabalho da inteligência e dos braços. Quem faz as novas
riquezas materiais? O trabalho do homem. A iniciativa de um
empresário, que com sua inteligência e com sua vontade fir-
me resolverá o modo mais eficiente e rápido de uma melhor
produção de riqueza; o resultado dos trabalhadores, que apli-
cado sob a direção da inteligência do empresário produzirá
a riqueza. A produção de riquezas é um efeito próprio do tra-
balho. O capital investido em meios de produção (máquinas,

63
CAPÍTULO 3

imóveis) é um instrumento, necessário se se quer, mas um sim-


ples instrumento cujo resultado vem do trabalho. O trabalho
é, pois, superior ao capital como a causa principal é superior
ao instrumento. Na confecção de um livro os direitos do autor
são primeiros e superiores aos direitos da tinta e da pluma; O
capital tem direitos, é certo, mas seus direitos são posteriores
aos direitos do trabalho.
“Por isso – escreve Maritain3 – facilmente se concebe um
regime de associação entre o dinheiro e o trabalho produti-
vo, no qual o dinheiro investido em uma empresa represen-
ta uma parte da propriedade dos meios de produção e serve
de alimento à empresa, pelo qual é procurado o equipamento
material necessário, de sorte que a empresa sendo fecunda e
produzindo benefícios, uma parte destes benefícios chegaria
ao capital”. Quer dizer, o capital alimentaria o trabalho e não o
trabalho o capital. Exatamente o mesmo que ensina Santo To-
más, quando escreve (S. Th. II-II, q. 78, a. 2): “O que confia seu
dinheiro a um mercador ou artesão, formando com ele uma
espécie de sociedade, não transfere a propriedade de seu dinhei-
ro; guarda-o para si e a seus riscos e perigos, e participa, seja
no comércio, seja no trabalho de artesão. Neste caso pode le-
gitimamente reclamar como coisa que lhe pertence uma parte
do benefício que dali provém”.
Disso se segue, contra a doutrina de Marx, que o capital tem
direito a uma parte do benefício, e que o benefício, por si, não
é uma usurpação da obra do trabalhador como o pretendia a

3
Religion et Culture, p. 97.

64
A produção industrial

simplista teoria da mais-valia.


Segue-se igualmente contra a injustiça flagrante do capi-
talismo liberal, que os direitos do capital são posteriores aos
direitos do trabalho. O capitalismo inverteu os direitos do
trabalho e os do capital, sufocando àquele sob as garras deste.
“Em lugar de ser ter o dinheiro – escreve Maritain4 – por um
simples alimento que serve de sustento material ao organismo
vivo que é a empresa de produção, é ele tido como organismo
vivo, e a empresa com suas atividades humanas é considerada
como seu alimento; de sorte que os benefícios não são o fruto
normal da empresa alimentada pelo dinheiro senão o fruto
normal do dinheiro alimentado pela empresa. Inversão cuja
primeira consequência é fazer passar os direitos do dividendo
antes dos do salário”.
É necessário clamar contra esta injustiça que constitui as
entranhas mesmas do capitalismo, injustiça que passa inad-
vertida ainda para os mesmos trabalhadores, que a conside-
ram como a coisa mais natural e justa. O capital é um instru-
mento de trabalho. O trabalho deve servir-se do capital. Por
isso é injusto o afã primário e único que move o capitalista a
assegurar a ganância e a acrescentar o capital. Este é secun-
dário, e vem depois de haver-se assegurado suficientemente
o bem-estar humano, segundo a condição de cada um, de to-
dos os executores e operários que puseram sua atividade na
empresa. Ademais que, como dizia antes, e se desprende da
doutrina da Igreja ensinada por Santo Tomás, o capitalista

4
Ibid.

65
CAPÍTULO 3

que investe seu dinheiro não deve buscar antes de tudo sua ga-
nância, seu benefício, seu lucro, senão que primeiro há de tra-
tar de proporcionar trabalho e com ele o bem-estar humano
àqueles menos afortunados do que ele na possessão de rique-
zas, e só uma vez satisfeita esta exigência primária do capital,
pode beneficiar-se ele mesmo com os lucros que resultem.
Para muitos, este raciocínio carecerá de fundamento, pa-
rece fantasia... Bem sei que o capitalismo e o capitalista não
se movem senão por lucro, pela sede de ouro, pela ânsia de
juntar. Por isso estou afirmando desde o primeiro capítulo
que o capitalismo é injusto, nefasto, e está baseado no peca-
do da avareza... Por isso estou afirmando que o capitalismo
se levantou e se levanta com o roubo dos direitos inalienáveis
do trabalhador. Daí que a ninguém convenha com mais justiça
que ao capitalismo, o que São João Crisóstomo afirmava das
grandes fortunas: “Na origem de todas as grandes fortunas
existe a injustiça, a violência ou o roubo”.
Mas, apesar de saber que é uma ocorrência infantil ensi-
nar que os direitos do capital se exigem depois dos direitos
suficientes do trabalho, o reafirmo. Primeiro, porque há que
se expressar a verdade; segundo, porque então seu ensino é
mais necessário do que nunca; terceiro, porque desde a pri-
meira linha deste livro anunciamos que unicamente formula-
ria um juízo de valor, axiológico, sobre a realidade econômica
moderna. Isso há de defraudar aqueles que queriam uma re-
ceita prática que, sem abandonar o capitalismo, consertasse
a economia perturbada. Mas a verdade é que a única solução
verdadeiramente prática é abandonar o capitalismo essen-
cialmente injusto.

66
A produção industrial

A EMPRESA

O trabalho, dissemos, é primário, e o capital é secundário.


Os dois associam-se na empresa. Mas há trabalho do empre-
sário e trabalho do trabalhador. O primeiro é trabalho da inte-
ligência e da vontade: o empresário se arrisca.
Que contrapeso equilibra os riscos do empresário? O capi-
tal também se arrisca, que contrapeso o equilibrará?
Em contrapartida, o operário não arrisca nada. Como sua
condição de homem sem rendas não o permite aguardar o
benefício da empresa para viver destas utilidades, na melhor
das hipóteses, deve trabalhar por uma recompensa cotidiana
que assegure a subsistência dele e dos seus, como em segui-
da explicaremos ao falar do salário. Por isso que, no rigor da
justiça, ao trabalhador não lhe corresponde participação nas
utilidades.
O trabalhador assalariado forma, então, propriamente,
parte da empresa. Ainda que por razões de outra índole, como
ensina Pio XI na Quadragesimo anno, “seria mais oportuno que o
contrato de trabalho, algum tanto se suavizasse enquanto fosse possí-
vel por meio do contrato de sociedade, como já se começou a fazer em
diversas formas com proveito dos mesmos trabalhadores e ainda dos
patrões. Desta sorte os trabalhadores e empregados participam em cer-
ta maneira, seja no domínio, seja na direção do trabalho, seja nos lucros
obtidos.”
Isto posto, há agora várias questões que se fazer. 1ª) A em-
presa - associação de trabalho e capital - há de propor-se um
lucro? 2ª) Este lucro pode ser motor primeiro da empresa? 3ª)
Como repartir este lucro?

67
CAPÍTULO 3

Três pontos sumamente difíceis, que devem ser determina-


dos com prolixidade, desde o ponto de vista da lei moral.

O BENEFÍCIO DA EMPRESA

Em primeiro lugar, a empresa - associação de trabalho e ca-


pital - há de propor-se um lucro?
Respondo que sim, porque tanto o capital como o trabalho
arriscam recursos próprios, que devem ter uma justa recom-
pensa. Se não houvesse a perspectiva de lucro, quem exporia
seus recursos? Quem se aventuraria em empresas?
O risco justifica o lucro, como viram os escolásticos, os
quais consideram justo o benefício de um dinheiro investido
numa empresa, assim como supõem injusto o juros do dinhei-
ro emprestado (S. Th. II-II, q. 78, a. 2).
Para que se aprecie o valor desta razão e se entenda, vamos
transcrever íntegra a dificuldade que Santo Tomás se supõe
quando pergunta: é lícito exigir alguma utilidade pelo dinhei-
ro emprestado?
Propõe-se o Santo esta dificuldade (S. Th. II-II, q. 78, a. 2):

“Aliena mais o dinheiro o que o entrega a um mercador ou artesão.


Mas é lícito receber lucro do dinheiro investido no mercador ou
artesão. Logo, também é lícito recebê-lo do dinheiro emprestado”.

Contesta: Há que se dizer para isso que aquele que empresta seu di-
nheiro, transfere o domínio àquele a quem empresta; donde aquele
a quem se empresta dinheiro, o tem sob seu risco e se compromete
a restituí-lo integralmente; donde o que o emprestou não deve exi-
gir nada mais. Mas, aquele que confia seu dinheiro a um mercador
ou artesão formando com ele uma sociedade, não lhe transfere o

68
A produção industrial

domínio de seu dinheiro senão que o conserva; assim com risco por
conta de seu dono negocia o mercador e trabalha o artesão; e por
isso é lícito exigir a parte do dinheiro que daí provenha como de
coisa própria”.

O risco compensa então o lucro justo. Mas, este lucro pode


ser o primeiro motor da empresa?
Fazer esta pergunta é fazer a mesma para que deu solução
Santo Tomás na Suma (II-II, q. 77, a. 4), quando pergunta se
é lícito “fazendo comércio, vender algo mais caro do que se
comprou”. E contesta:

Comerciar por lucro: “implica em servir à concupiscência do lucro


que não conhece término, senão que tende ao infinito. E por isso a
negociação em si considerada tem certa fealdade enquanto de si
não envolve um fim honesto ou necessário. Contudo, o lucro, que
é o fim do comércio, ainda que em seu conceito não importe algo
honesto ou necessário, tampouco implica de si nada vicioso ou con-
trário à virtude, donde não há nada que impeça que o lucro se or-
dene a algum fim necessário ou ainda honesto, e assim o comércio
resulta lícito; assim como quando alguém ordena o lucro moderado
que busca comerciando ou ao sustento de sua casa, ou para socor-
rer os pobres; ainda quando alguém se ocupa no comércio pela
utilidade pública a fim de que não faltem as coisas necessárias à
vida da pátria e busca o lucro não como um fim senão como um
pagamento do trabalho”.

Desta doutrina admirável do Doutor Angélico colige-se


claramente que “a ganância não pode ser o motor de uma em-
presa capitalista”. Há de se esperar o lucro pois se arrisca um
capital. Mas não se há de buscar o lucro por puro lucro. Haverá
motivos honestos que justifiquem o investimento do dinheiro
numa empresa, como por exemplo beneficiar a coletividade

69
CAPÍTULO 3

com uma nova produção útil, ou dar trabalho aos indigentes,


ou ainda uma sustentação conveniente de si e dos seus.
Quantas aplicações práticas poderiam fazer-se desta dou-
trina, que é a doutrina católica da economia! Um patrão cató-
lico com recursos, se procedesse à luz destes princípios, que
obras úteis em favor de seus semelhantes realizaria, elevando
a situação econômica das classes indigentes, e com ela elevan-
do sua situação cultural e religiosa! Então o capital recobriria
sua função própria de difundir os bens na comunidade, e não, con-
trariamente, como agora sucede nesta economia de lucro, que
os absorve da comunidade para acumulá-los em mãos de uma minoria
que exclusivamente os desfruta!
Como repartir o lucro da empresa?
Falando em direito estrito de justiça comutativa, o lucro
que resulte da empresa, uma vez satisfeitas todas as obriga-
ções com operários e consumidores, pertence ao(s) empre-
sário(s) que geriu(ram) os capitais que fizeram possível esta
gestão. O Cardeal Caetano, comentando o célebre artigo de
Santo Tomás (S. Th. II-II q. 78, a. 2, ad 5), expõe os princípios
desta repartição para que fique a salvo a justiça. O benefício,
comenta, há de ser proporcional aos riscos a que se expõe cada
sócio segundo o montante de capital que uns investiram ou de
trabalho e iniciativa que os outros aportaram para fazer pro-
dutivo este capital.
Mas, ainda que segundo a justiça comutativa, não haja
obrigação de outra coisa, para o católico existem outras virtu-
des ademais da justiça comutativa, e de acordo com elas deve
ajustar sua conduta.
Dizíamos antes que o conceito econômico de capital se jus-

70
A produção industrial

tifica pelo exercício da virtude cristã da magnificência. O ca-


pital é riqueza acumulada que se investe numa empresa para
a produção de outra riqueza e assim se beneficia a comunida-
de. Logo, é mister que a empresa esteja de tal sorte regulada
que o benefício seja em verdade comum: é importante então
fixar um limite ao lucro dos acionistas e dos empresários, é
importante fazer participar os trabalhadores dos lucros; é im-
portante também que a empresa tenha em conta os interesses
dos consumidores para produzir artigos realmente úteis e por
último é indispensável que os lucros da empresa não se façam
nas costas de uma competência ruinosa com outros empresá-
rios. Logo a empresa deve organizar-se na colaboração real de
capital, trabalho e gestão, e uma vez assim organizada deve
estar harmonizada no quadro da profissão e de toda a vida
econômica.
Quer dizer que no regime corporativo, como o explicarei ao
falar da ordem econômico-social, conseguirá a empresa a regula-
ção que a faça de benefício coletivo.

O SALÁRIO

Assentados os princípios de uma empresa capitalista no


sentido católico, expliquemos o salário, e em primeiro lugar
afirmemos, contra as críticas dos socialistas, que o regime do
salário é necessário para os trabalhadores. Pois o trabalhador
vive de seu trabalho diário; necessita, então, de uma recom-
pensa diária. Não poderá trabalhar numa empresa esperan-
do um benefício incerto. Logo necessita que dia-a-dia se lhe
adiantem os recursos que o asseguram a subsistência própria

71
CAPÍTULO 3

e dos seus: o salário justifica-se pela mesma condição indigen-


te do trabalhador.
Mas justificar a existência do salário não impede condenar
energicamente a conduta do capitalismo na remuneração dos
salários.
Como tudo, o empenho dos capitalistas, ou melhor, dos ad-
ministradores dos capitais (que por sua vez costumam explo-
rar descaradamente os verdadeiros capitalistas), consiste em
buscar a todo custo seu próprio lucro, o benefício, procuram
remunerar o menos possível a mão de obra, pagando salários
de fome, como foi comum no século XIX, ou eliminar o traba-
lho do obreiro, substituindo-o pelo de mulheres, crianças ou
máquinas.

JUSTIFICAÇÃO DO SALÁRIO

Dois abusos que merecem detida consideração. Antes de


tudo, há que se recordar que o direito do trabalhador ao justo
salário é um dos direitos mais sagrados. Como dizia o Apóstolo
São Tiago (V, 1-6): “Vós ricos, chorai, gritai em vista das des-
graças que vos sobrevirão. Vossos bens estão podres, e vossas
roupas foram comidas pela traça. Vosso ouro e vossa prata se
enferrujaram; e o ferrugem destes metais dará testemunho
contra vós, e devorará vossa carne como um fogo. Os entesou-
rastes para o último dia. Sabeis que o salário que não pagastes
aos trabalhadores que ceifaram vossos campos está clamando
contra vós, e o clamor deles subiu aos ouvidos do Senhor dos
exércitos. Vós haveis vivido em delícias e em banquetes sobre
a terra, e vos haveis cevado a vós mesmos como as vítimas que

72
A produção industrial

se preparam para o dia do sacrifício. Vós haveis condenado ao


inocente, que morreu sem resistência alguma”.
Assim falavam os apóstolos condenando a exploração do
pobre; não se estranhe de ouvir palavras de dura condenação
para o monstro capitalista, que se embriagou e se embriaga
com o suor do salário do trabalhador.
Que se entende por justo salário devido ao trabalhador, ou
melhor, qual é o salário mínimo cujo limite não se pode em
nenhum caso rebaixar sem cometer flagrante injustiça?
Leão XIII e Pio XI determinaram a questão de forma tão
acabada, que não permite enunciar nada de novo a respeito.
O trabalho – sobretudo o do trabalhador e empregado - é
o exercício da própria atividade endereçado à aquisição daquelas
coisas necessárias para os vários usos da vida, e principalmente
para a própria conservação.
O homem que emprega seu trabalho, vive de seu trabalho:
tem direito a uma existência humana, digo mais, tem direito
a uma existência humana e cristã. Não se pode utilizar como
uma máquina ou como uma mercadoria, ou como um burro de
carga ou simplesmente como um animal elegante. Portanto,
se trabalha, isto é, se emprega suas forças em outra pessoa,
tem direito a que esta lhe proporcione os recursos necessários
para uma vida humana, digna do homem.
Uma vida humana: portanto, o necessário ao menos para o
sustento próprio de um trabalhador frugal e de bons costumes
(Leão XIII) e de sua família (Pio XI). Porque é humano, isto é,
próprio do homem, viver e viver em família, com mulher e fi-
lhos. O salário familiar absoluto se deve a todo trabalhador.
O chefe de família é uma só coisa, um só ser com sua esposa

73
CAPÍTULO 3

e seus filhos. A ele incumbe sustentá-los. Enquanto a mulher


e os filhos tenham fome, é o pai quem sofre e sente a fome.
Por isso diz S. S. Pio XI: “é um crime abusar da idade infantil
e da debilidade da mulher; é gravíssimo abuso que a mãe (ou
mesmo, diga-se da infância vagante nas ruas) se veja obrigada a
exercitar uma arte lucrativa, deixando abandonados em casa
seus peculiares cuidados e afazeres, e sobretudo com a educação
dos filhos pequenos”.
Observe-se que o salário familiar, como salário mínimo, se o
deve a todo trabalhador, ainda que seja solteiro, pois é o salário
humano, que se o deve por ser homem. Se não se casa, é assunto
que só a ele lhe interessa. O empresário deve-lhe o salário
humano, que é, ao menos, o salário familiar.
Uma vida humana: mas não é vida humana a que não tem
mais que o estritamente necessário para o sustento de cada
dia, a que não pode economizar para o amanhã. Logo, o justo
salário reclama algo mais do estritamente necessário para
o sustento diário da família. Por isso Pio XI disse que “ajuda
muito ao bem comum que os trabalhadores e empregados
cheguem a reunir pouco a pouco um modesto capital mediante
o acúmulo de alguma parte de seu salário, depois de cobertos
os gastos necessários”.
No salário mínimo justo inclui-se ademais um tratamento
humano e cristão.
Tratamento humano: “e por isso deve-se procurar que o trabalho
de cada dia não se estenda mais horas do que permitem as forças.
Quanto tempo há de durar este descanso, dever-se-á determinar
levando em conta as distintas espécies de trabalhos, as circuns-
tâncias de tempo e lugar, e a saúde dos trabalhadores mesmos”
(Leão XIII).

74
A produção industrial

Tratamento humano: por isso entendo que se há de reprovar a


divisão de trabalho imposta pela “taylorização”. Não é tolerável
que o homem se submeta a repetição maquinal, automática, de
um mesmo gesto, sem iniciativa própria. O homem não é, como
se imaginava e dizia Taylor, um homem boi. Tem direito à
nobreza humana.
Tratamento, ademais de humano, cristão: pois como o traba-
lhador foi resgatado por Cristo, e é amado por Cristo de modo
especial, já que Ele foi um trabalhador, tem direito a que se
lhe considere como cristão, e se lhe deem as facilidades para
que cumpra com seus deveres religiosos e santifique os dias
do Senhor.
O salário mínimo, como explicado, não se pode negar por
nenhum motivo e em nenhum caso, ainda que sua negação seja
autorizada pela legislação civil. “Se acontecesse que alguma
vez – disse Leão XIII – que o trabalhador obrigado pela neces-
sidade ou movido pelo medo de um mal maior, aceitasse uma
condição mais dura, que contra sua vontade tivera que aceitar
por impor-se a ela absolutamente o amo ou o contratante, seria
isso fazer-lhe violência, e contra a violência reclama a justiça”.
Não faltam agora, com o desemprego, quem explora a pouca
demanda de braços para remunerar injustamente o trabalhador.
Abuso pernicioso. Se uma empresa não tem recursos para pagar
o salário devido, tampouco pode exigir um trabalho ordinário.
Só pode exigir um trabalho que remunere. Se diminui o salário
abaixo do justo, diminua em igual proporção a quantidade
de trabalho.
Até aqui temos tratado de determinar rapidamente o salário
mínimo, cujo limite não se poderá rebaixar sem uma funesta
violação da estrita justiça.

75
CAPÍTULO 3

Contentar-se-á com isso um empresário? De modo algum.


Como o disse o Código da União Internacional de Estudos Sociais
de Malinas: “O salário mínimo não esgota as exigências da justiça.
Acima do minimum, diversas causas principais importam, seja
por justiça, seja por equidade, uma melhora. Assim, por exemplo,
uma produção mais abundante ou a prosperidade mais ou menos
grande da empresa, exigem um aumento no salário. Ademais,
deve haver uma hierarquia nos salários, segundo a função econô-
mica que se desempenhe. Não é justo que o trabalho do pedreiro
seja igualmente remunerado tal como o do eletrotécnico”.
Verdade de sentido comum, contra a qual conspira o capita-
lismo. Assim, por exemplo, se assegura que o porteiro do Hotel
Ritz em Paris, ganha 300.000 francos ao ano, enquanto um
professor do Colégio de França ganha 45.000. É mais lucrativo
servir aos prazeres ou aos vícios de uma plutocracia que fornecer
elementos intelectuais5.
Para terminar esta questão sobre o salário que tivemos de
expor brevemente, sem dizer nada sobre as Allocations familiers
para ajuda das famílias numerosas e sobre os seguros contra
acidentes de trabalho, etc., digamos que ainda que o regime do
assalariado seja em si justo, é urgente hoje temperá-lo pelo
regime de sociedade. Seja em parte pela exploração capitalista,
seja pelas vociferações dos exploradores do trabalhador, o
certo é que o trabalhador e o empregado têm uma instintiva
aversão ao trabalho assalariado. Por isso que digamos com Pio XI
que, “atendidas as condições modernas da associação humana,
seria mais oportuno que o contrato de trabalho algum tanto se

5
Marcel Malcor, "L’Economie contemporaine", em Nova et Vera, Abril-Junho, 1931.

76
A produção industrial

suavizasse enquanto fosse possível por meio do contrato de


sociedade, como já se começou a fazer em diversas formas
com não pouco proveito dos mesmos trabalhadores e patrões.
De tal sorte os trabalhadores e empregados participam em
certa maneira, seja no domínio, seja na direção do trabalho,
seja nos lucros obtidos”.

A MÁQUINA

Mas toda a doutrina do justo salário é hoje perfeitamente


inútil, porque o capitalismo arbitra recursos os mais expeditivos
para burlá-la.
O trabalho do operário é substituído pelo de mulheres e
crianças, a quem se remuneram menos, e sobretudo pelo tra-
balho da máquina.
É algo monstruoso que seja mais fácil colocar uma criança
que a um trabalhador, pai de família. Até aqui chegou o cume
da exploração capitalista. Mas o que não tem nome é que todo o
empenho do capitalista seja arbitrar a forma de um movimento
automático de sua fábrica que elimine a mão de obra para
aumentar seu lucro individual.
É sabido, com efeito, que seu afã para multiplicar o lucro é
entregar ao mercado um produto de menor custo que o corrente
na praça. Para isso aplicará um novo procedimento técnico de
aumente a potencialidade da máquina e reduza a mão de
obra. Quer dizer, todo seu empenho é desalojar o trabalhador
pela máquina. Um exemplo entre mil. O fabricante Harrison dos
Estados Unidos produzia em outro tempo 50 radiadores diários
que o custavam 10 horas de mão de obra. Em 1929, graças a um
instrumento mais perfeito, logrou produzir 10.000 radiadores

77
CAPÍTULO 3

com 40 minutos de trabalho. Economizou 93% em mão de obra.


Não se trata de condenar o industrial Harrison. Se este senhor
não houvesse aplicado este procedimento, haveria perecido na
concorrência industrial. Trata-se de mostrar em um exemplo a
crueldade de um sistema econômico febril pela aceleração do
lucro, em detrimento da parte mais numerosa da humanidade.
O capitalismo faz um duplo abuso da máquina. Primeiro,
pois monopoliza sua inegável força benéfica, em detrimento da
comunidade. A máquina como todo bem tem uma finalidade
comum, social: é justo, pois, que beneficie ao trabalhador o
mesmo que ao capital, e ao trabalhador antes que ao capital,
porque, como dissemos antes, os direitos do trabalho são supe-
riores aos direitos do capital, que sem o trabalho é um bem estéril.
É este o primeiro abuso que da máquina faz o capital.
O segundo, conectado com este primeiro, é que não só não
participa o benefício da máquina ao trabalhador, senão que se
serve dela como meio para desalojar o trabalhador, para matá-lo.
Alguém dirá que estas são as exigências da técnica, do Progresso.
Mas, pergunto: será lícito alimentar as máquinas com carne
humana, sob pretexto de que é melhor combustível do que o
carvão? É lícito, então, submergir na miséria absoluta mais de
vinte milhões de homens, sem contar suas famílias, colocar
outros em verdadeira miséria pelos salários famélicos que se lhes
paga, e criar com isso uma imensa desesperação mundial e tudo
porque é necessário respeitar a infinita aceleração da máquina?
Mas, a máquina foi feita para o homem, ou o homem para
a máquina?
Creio que ninguém põe em dúvida de que a super potenciali-
dade da máquina seja uma das causas, ainda que não a principal,
do atual mal-estar econômico.

78
A produção industrial

Recorda-se que hoje os Estados Unidos, graças à produção


em massa, imposta por Hoover e Ford, possui uma capacidade
de produção que sobrepassa em alguns artigos o consumo de
todo o mundo.
Assim, por exemplo, “a capacidade de produção da indústria
americana de automóvel é de 8.000.000 de carros, enquanto o
consumo mundial em 1929 passou apenas dos 600.000.
A indústria americana de sapatos pode produzir anualmente
900 milhões de pares, enquanto o consumo americano não passa
dos 300 milhões.
As minas de carvão estão equipadas para produzir
750.000.000 de toneladas de carvão, quando o mercado americano
não pode absorver 500.000.0006. Nas indústrias do petróleo, do
carvão, do aço, da lã, da seda, dipõe-se de um instrumental
técnico que representa uma capacidade de produção tripla do
volume de venda.
Ao mesmo tempo, todos os países estão desejosos em de-
senvolver suas indústrias. Até a Índia levantou sua indústria,
equipada como a europeia, e fecha seus mercados às velhas
indústrias inglesas. Rússia propõe-se fazer surgir em poucos
anos um instrumental produtor mais poderoso que o americano.
O delírio vertiginoso do lucro, que acelera caprichosamente
a potencialidade da máquina, ameaça engolir todo o gênero
humano depois de haver explorado, por espaço de 150 anos, a
massa proletária.
O homem sabia frear a tempo a velocidade descontrolada?
Já disse no início que, frente à máquina que aumentou sua

6
Pierre Lucius, La faillite du Capitalisme, p. 103.

79
CAPÍTULO 3

corpulência e coragem, o homem moderno é um simples grão


de pólvora, acionado por infinitas circunstâncias. Sua sorte
não é difícil de prever.

BURGUESIA E PROLETARIADO

Temos examinado a produção industrial, para chegar à


consequência que tudo está de tal forma armado na economia
capitalista que o burguês é onipotente e tirano frente ao pobre,
ao diarista em especial, e que usa desta onipotência para lhe
espremer a última gota de dignidade.
Não é isso literatura. O trato ordinário com os trabalhadores
mostrou-me ao vivo a vileza com que se lhes tratam. Se lhe
arrancaram sua dignidade de cristão: o trabalhador, amado com
predileção por Cristo que quis ser pobre e trabalhador, mantém
hoje um ódio concentrado, desesperado contra Cristo, contra
sua Igreja, com os ministros do Crucificado. Convivendo com
eles, é fácil comprovar. Quem depositou esse ódio? O burguês,
o capitalista, o burguês católico. Porque se os diários, os livros,
se o cinema e o teatro envenenam o trabalhador, a culpa é do
burguês, quem, com a mesma ânsia de fazer-se rico, deu-lhe o
veneno. Se as escolas laicas e as universidades ateias envenenam
com sua ignorância soberba, a culpa é do burguês.
Se lhe arrancou sua dignidade de homem: porque o burguês
que, ao fim e ao cabo, não é senão que um trabalhador com
mais sorte, considerou-o como mercadoria desprezada, da qual
só vale algo enquanto serve. É verdade que se lhe proporcionou
comodidades, coisas burguesas supérfluas (esporte, cinema,
leituras), mas a custa de sua dignidade humana, que foi violada
pela máquina.

80
A produção industrial

Mas hoje o trabalhador está desesperado e frente ao capi-


talismo hidrópico sente-se forte. Já não aceita “servir”. Quer
ser senhor.
E o ritmo dos acontecimentos faz suspeitar que chegou a
hora de seu império. Desde a Revolução Francesa até aqui,
dominou a burguesia, assim como antes havia dominado a
aristocracia, e antes desta o poder sacerdotal. Esgotada hoje a
burguesia, o cetro passará ao proletariado.
Por isso – escreve Berdiaeff7 – assim como antes era necessário
ensinar ao burguês que respeitasse a dignidade humana das classes
trabalhadoras, assim hoje se há de ensinar aos trabalhadores que
“o burguês e o nobre são também seres humanos, que há que tratar
como tais e cuja dignidade se deve respeitar. Este ao menos, é o
problema que se coloca na Rússia Soviética, e é provável que se
coloque algum dia no Ocidente”.
Então, como agora, será necessário predicar “oportune et
importune” que o homem de qualquer condição social leva em seu
ser a imagem de Deus, foi resgatado por Cristo e está chamado à
vida eterna. “Frente a essa dignidade divina, todas as diferenças
de classes, todas as paixões políticas, todas as superposições que
o trato social cotidiano acumulou sobre a alma humana, são
insignificantes e vãs”. A Igreja de Jesus Cristo, que é o mesmo
Cristo prolongado e feito visível entre nós, então, como agora,
recordará que “de nada serve ao homem ganhar todo o mundo se
perde a sua alma” (Mt. XVI, 26).
E que o supremo bem-estar do homem no céu e na terra
está no amor de todos, unidos n’Aquele que pôs sua riqueza
em dar sua vida por nós.

7
Le christianisme et la Lutte des classes, p. 195.

81
CAPÍTULO 4

As finanças

𝔸 o expor no primeiro capítulo a natureza do capitalismo,


descobrimos sua lei fundamental que se resume em sua
definição: “aceleração do lucro pela aceleração da produção e do
consumo”. O lucro, infinito, insaciável, rege toda a ordenação
econômica moderna, de sorte que se consome para produzir e se
produz para ganhar. A produção regula o consumo e as finanças
regem a produção. Demonstramos como uma economia regida
por este vício capital deveria resultar uma economia nefasta para
o homem e nefasta consigo mesma, porque haveria de chegar em
suas entranhas sua própria ruína sem poder jamais, nem se quer
por um instante, proporcionar o bem-estar econômico do homem.
Nos dois capítulos anteriores expusemos a ordenação da

82
As finanças

produção, agrícola e industrial, e justificamos os conceitos de pro-


priedade, trabalho e capital. Mas na exposição destes conceitos,
esforçamo-nos continuamente por advertir a inutilidade de todo
ordenamento enquanto as finanças que regem hoje, com sacudidas
violentas, a vida econômica, não voltem a sua função própria.
Eis aqui que neste quarto capítulo acometemos o estudo das
finanças. É este, pois, a chave destas páginas, ao menos como
explicação e crítica do capitalismo. O estudo das finanças nos
revelará o ponto fundamental que sostiene toda a economia
moderna, chamada capitalismo; irá nos descobrir a raiz da
presente crise econômica, crise definitiva, insolúvel. Poderá se
sentir algum alívio, mas será este como a melhoria que preludia
o desenlace fatal do agonizante.
No entanto, como não é nosso intento primordial criticar
o capitalismo, senão expor a concepção católica da economia,
procuraremos que no curso do presente capítulo apareça a nítida
noção católica sobre a moeda, o capital e o crédito.

AS VERDADEIRAS RIQUEZAS

Pois bem, as verdadeiras riquezas são as chamadas por Santo


Tomás (II-II, q. 118, a. 2) riquezas naturais, ou seja: os produtos da
terra e da indústria, porque só elas podem remediar a indigência
e proporcionar a suficiência de bens para viver virtuosamente.
Por isso, o chefe de casa e o político prudente adquirem e
atesouram estas riquezas tão úteis para a comunidade doméstica
e política, porque sem o necessário para a vida não é possível
o governo da casa ou da cidade1.

1
Com. de Santo Tomás a Politicorum de Aristóteles, liber I, lectio II.

83
CAPÍTULO 4

Porém sua aquisição pressupõe sua produção. Uma vez


produzidas, é necessário que circulem para que as produzidas
pelos nossos cheguem aos demais e lhes aproveitem, e em
contrapartida as produzidas por eles aproveitem-se a nós. É
necessário, pois, permutar as riquezas naturais.
Evidentemente que na primeira comunidade doméstica não
foi necessário este intercâmbio, porque como tudo se produzia
em casa e tudo pertencia ao chefe de família, este distribuía o
trabalho e repartia seus produtos. Mas à medida que se formaram
os povos e cidades, apareceu uma divisão elementar do trabalho,
e se fez imperiosa a permuta das riquezas naturais, conhecida
com o nome de troca2.
Deste primeiro câmbio natural (tipo de todo câmbio equi-
tativo, porque eu dou tanto deste que vale tanto por este outro
que vale igual), nasceu o câmbio artificial ou a permuta por
intermédio do dinheiro. Porque como as relações entre os
homens se estavam ampliando e estendendo ainda a terras
distantes, não era fácil comerciar as riquezas naturais como
o vinho, o trigo etc. E por isso, para efetuar estes câmbios nos
lugares distantes se estabeleceu que se entregasse ou recebesse
algo que, ademais de seu valor, fosse fácil de levar, por exemplo
os metais como o cobre, o ferro e a prata. No princípio deter-
minuo-se o metal pelo seu peso ou quantidade apenas; mas
depois, para evitar o trabalho de medir e pesar, imprimiu-se
um selo no metal em garantia de uma determinada quantidade3.

2
Santo Tomás, ib., lectio VII.
3
Santo Tomás, ib.

84
As finanças

O DINHEIRO

O dinheiro não é mais que aquilo que se adota como instru-


mento de câmbio. Não tem em si, enquanto dinheiro, nenhuma
corrente misteriosa, nem força magnética. Seu valor é de puro
câmbio; será, portanto, maior ou menor quanto maior ou menor
seja a quantidade que com sua unidade possa se adquirir. Daqui
que este fato para circular, porque só assim preenche sua função
essencial de instrumento para permutar as riquezas naturais, ou
seja, os produtos da terra e da indústria.
Aprofundando mais este conceito, percebamos que não
é mister que o dinheiro enquanto dinheiro seja uma merca-
doria, ou algo que tenha um valor intrínseco. Em seu sentido
primitivo, foi o dinheiro um vale sobre coisas de valor equi-
valente à valia destas. Com efeito, temos diferentes formas de
dinheiro: o dinheiro-lingote, o dinheiro-coro, o dinheiro-feijão,
o dinheiro-gado, o dinheiro-sal, o dinheiro-concha; só que
deveria reunir três condições: desde logo ser reconhecido por
toda parte como hipoteca para dar e receber; logo, conservar
por modo durável e imutável o valor reconhecido; e finalmente,
não deveria definir o valor de todos os outros bens, senão fazer
que a relação de seu valor recíproco não fosse transtornada, e que
ele, o dinheiro, fosse unicamente concebido como representante
da expressão destas relações de valor.
Com esta introdução se produziram duas grandes mudanças
nas relações comerciais. Em primeiro lugar, a troca converteu-se
em compra; em outras palavras, a pura relação real converteu-se
em relação pessoal, o contrato real em contrato consensual. Em
segundo lugar, o preço substituiu a mercadoria. Esta é o mesmo

85
CAPÍTULO 4

bem móvel, objeto de compra ou de câmbio. O preço é a estima-


ção ou comparação da mercadoria com o que não é diretamente
mercadoria, senão apenas um equivalente ou representação da
mercadoria e intermediário entre mercadorias.
Com a introdução do dinheiro, as mercadorias, as transações
correspectivas, as necessidades, não foram logo diretamente
comparadas entre si, senão unicamente consideradas uma em
relação às outras, referindo seu valor ao dinheiro, medida de
preço geralmente adotado.
O dinheiro como tal, ou seja, em sua qualidade de dinheiro,
não pode, pois, ser nunca mercadoria. Se alguém o toma como
mercadoria, como seja como simples coisa de valor, por causa
da matéria de que se compõe, seja por causa de outras como-
didades ou vantagens que se lhe agregam, e cujo uso pode ser
separado dele ou pelo menos ser estimado à parte, porque
não está essencialmente ligado a ele, como meios de relações
comerciais, então já não é moeda (S. Th., II-II, q. 78, a. 1, ad. 6).
O dinheiro poderia ter um valor não enquanto dinheiro senão
em atenção à matéria de que consta. Neste caso é necessário
procurar que seu valor nominal coincida com este valor de coisa,
a fim de evitar que se comercie com ele como uma mercadoria4.
Apesar disso, se o dinheiro não é um bem real, independente,
tampouco tem valor real, próprio, independente; não é mais que
um signo de valor que se pode empregar para reembolsar outros
valores reais, porém apenas na medida em que existam outros
valores que possam ser trocados mutuamente.

4
Ver Weiss, ', Cuestión social.

86
As finanças

O COMÉRCIO DO DINHEIRO

O dinheiro, em resumo, não tem senão um puro valor no-


minal, representativo de riquezas naturais. Não está feito
para comercializá-lo.
Porém tão logo se introduziu o dinheiro, observa Aristóteles,
houve quem comerciasse com o dinheiro mesmo buscando o
lucro. Foram estes os cambistas ou banqueiros, com sua arte
chamada “nummularia". Aristóteles, e depois dele Santo Tomás
e os escolásticos, chamam pecuniativa artificial a esta arte, cuja
função própria e a produção artificial do lucro pelo comércio
de dinheiro. E manifesta que esta pecuniativa fundada no
enriquecimento pelo câmbio de dinheiro é vituperável, como
é vituperável e néscio o conceito de muitos que imaginam que
só o dinheiro é riqueza.
Crer que só o dinheiro é riqueza – prossegue Aristóteles – é
uma presunção, porque não pode ser verdadeira riqueza aquela
cujo valor depende da vontade dos homens; é assim que a digni-
dade e utilidade do dinheiro depende da vontade da mesma
comunidade social, que pode quando lhe apraz anular seu valor e
substitui-lo por outro; logo, não é o dinheiro a verdadeira riqueza.
Ademais, que pode alguém abundar em dinheiro e perecer de
fome, como conta a fábula como se sucedeu com Midas, quem,
tendo um desejo insaciável de dinheiro, pediu aos deuses, e
obteve, que tudo quanto lhe apresentassem se convertesse em
ouro. E assim morria de fome, porque todos os alimentos que
lhe apresentavam se convertiam em ouro.
Tudo o qual demonstra – e é conveniente recordar à economia

87
CAPÍTULO 4

moderna que tem perdido o sentido elementar do dinheiro – que


as finanças ou pecuniativa não têm um fim em si, como se fosse
a suprema coisa à qual se há de aspirar. A verdadeira riqueza de
um país não se computa pelo ouro que tem armazenado em seus
baús. Os Estados Unidos, apesar de suas grandes reservas de ouro,
é um país de economia miserável, porque não atina a prover
bem-estar humano a seus milhões de desempregados.
No entanto, como demonstram certeiramente Aristóteles e
Santo Tomás, existe no homem um instinto perverso, a ganância,
que arrasta a fazer da pecuniativa ou finança um fim em si. Porque,
como geralmente o homem não busca dispor do necessário para
levar uma vida virtuosa, senão dispor de um meio infinito que
satisfaça a insaciabilidade infinita de seu capricho, trata então
de amontoar a riqueza artificial, o dinheiro, o ouro, com o qual
possa adquirir por capricho o que seu capricho exija.
Por isso amontoa-se em forma ilimitada, infinita, o dinheiro. E
se busca aumentá-lo, não mediante produção de riqueza natural,
senão por si mesmo. O dinheiro engendra mais dinheiro, seja
pelo câmbio de um metal por outro, ou senão – o que é muito
mais vituperável com o foenus ou empréstimo a juros, ou usura
(agiotagem). “De onde – diz Aristóteles – resulta um parto quando
o dinheiro se aumenta com dinheiro”. É como se o dinheiro
tivesse cria. Tenho $ 100, e ao fim do ano, automaticamente, sem
meu trabalho, em virtude da fecundidade ingênita do dinheiro,
tenho em minhas mãos $ 105. Houve, pois, um lucro, um ágio,
uma geração de $5. Já não fará falta trabalhar para ser rico.
Trabalharão os outros, claro, mas em meu benefício, para que
meu dinheiro tenha cria.

88
As finanças

O EMPRÉSTIMO A JUROS

Antes de expor a concepção que do dinheiro o Capitalismo


forjou, e os recursos de que lançou mão para assegurar de modo
infalível a produtividade do mesmo, vejamos por que tanto
a lei mosaica como a legislação cristã tem proibido a usura
(agiotagem) ou juros que se cobra pelo dinheiro emprestado.
Não falo do juros exagerado, uns 30 por cento, por exemplo, a
que se chama hoje agiotagem, e que viria a ser o abuso da usura,
senão de qualquer juros ainda que seja de meio por cento, e que
é o que se conheceu sempre com o nome de usura.
A Igreja condenou sempre a usura como injusta e nefasta.
Não citemos mais que alguns documentos.
No ano 1139, o Concílio Lateranense I, no cânon 13, diz:
“Condenamos a rapacidade insaciável dos prestamistas, a detestável
e ignominiosa usura condenadas nas Escrituras do Antigo e Novo
Testamentos como contrária às leis divinas e humanas” (ver nota 3
ao final do livro).
Clemente V (século XIV), na Constituição Ex gravi ad nos,
ensina: “Se alguém cair no erro de atrever-se a afirmar com pertinácia
que não é pecado exigir usura, declaramos que deve ser castigado como
herege”. Mas o documento ápice na matéria é a encíclica, Vix
pervenit, de Bento XIV, precisamente no ano 1745, quando ia
levantar um rápido voo o Capitalismo; encíclica que se dirigia
contra os erros calvinistas que autorizavam a usura.
O Santo Padre declara:
“O gênero de pecado que se chama usura e que tem seu lugar e seu
assento próprio no contrato de empréstimo, consiste em que quem
empresta exige em virtude do empréstimo, de cuja natureza é
devolver somente o que se tem recebido, devolva-se a ele mais do que

89
CAPÍTULO 4

se deu, e pretende em consequência, que em razão do empréstimo,


é-lhe devido certo lucro sobre o capital. Portanto, é ilícito e usurário
todo benefício excedente do capital emprestado.

E não se pretenda – prossegue – que para lavar esta mancha de


pecado pode-se pretextar que a ganancia não é excessiva nem gravosa,
senão moderada, que não é grande senão exígua, nem que a pessoa
a quem se pede esse proveito por causa unicamente do empréstimo
não seja pobre senão rica, nem que se proponha empregar a soma
emprestada de maneira mais útil para aumentar sua fortuna, seja
adquirindo novas propriedades, seja dedicando-se a um negócio
lucrativo, na intenção sempre de não deixá-la repousar. Com efeito, é
convicto de obrar contra a lei do empréstimo, que consiste necessa-
riamente na igualdade da soma entregue e da soma devolvida, aquele
que, estabelecido esse equilíbrio, atreve-se a exigir algo mais em
virtude do empréstimo à pessoa de quem já recebeu satisfação com
a igualdade de seu reembolso. É por isso que está obrigado a restituir
em tudo o que por cima do capital haja percebido, segundo essa
obrigação da justiça chamada comutativa, que consiste em conservar
exatamente nos contratos humanos a igualdade própria a cada um
deles, e em repará-la quando não foi respeitada.

Com isso não se entende negar de nenhum modo que o contrato de


empréstimo possa se achar às vezes outros títulos, como lhes chamam,
que não sejam em nada intrínsecos à natureza do empréstimo, nem
congêneres, em virtude dos quais surge uma causa inteiramente justa e
legítima para exigir algo sobre o capital devido em razão do empréstimo.

Tampouco se nega que, mediante contratos de valor muito diferentes


do empréstimo, qualquer tenha frequentes ocasiões de colocar e
de empregar seu dinheiro retamente, seja dedicando-se a um co-
mércio lucrativo e a operações de negócio, com o fim de alcançar
benefícios irrepreensíveis.

Porém, assim como nessas numerosas espécies de contratos se a


igualdade própria a cada um deles não é observada, todo o recebido
além do justo, ainda que não por usura, suposto que aqui não se trata

90
As finanças

de empréstimo usurário patente ou encoberto, senão por uma verda-


deira injustiça de outra natureza, deve ser, evidentemente, restituído;
assim também é certo que se tudo se leva a cabo como convém e
como a balança da justiça o exige, não há dúvida que nesses con-
tratos se contém um modo multiforme e um motivo mui lícito de
continuar e de estender o comércio e todos os negócios lucrativos,
tal como se praticam entre os homens, para maior bem público. Não
permita Deus que haja almas cristãs convencidas de que o comércio
possa florescer e prosperar por meio da usura de outras iniquidades
semelhantes. Pelo contrário, ensina-nos um oráculo divino que ‘a
justiça eleva as nações, e que o pecado faz os povos miseráveis’.

Mas é preciso advertir que seria coisa vã e deplorável temeridade


persuadir-se de que qualquer que tem a seu favor alguns títulos
legítimos junto ao mesmo contrato de empréstimo, ou ainda, sem
esse contrato, outras espécies de contratos perfeitamente justos,
pode, valendo-se desses títulos ou desses contratos, quando entregou
a outro seu dinheiro, seus cereais ou outra mercadoria semelhante tirar
um juros moderado sobre o capital que volta a ele são e inteiro. Se
alguém pensasse desse modo, não só estaria em desacordo com
os ensinamentos divinos e com as prescrições da Igreja Católica
em relação à usura, mas iria também contra o senso comum dos
homens e contra a razão natural”. Até aqui a encíclica de Bento XIV.

Este documento expressa claramente a doutrina da Igreja


no preciso momento em que esta ia deixando de influir nas
relações econômicas dos homens.
O regime econômico moderno, inspirando-se no espírito
anticatólico da Reforma Protestante, sobretudo de Calvino, e dos
puritanos, não só autoriza senão que glorifica a usura fazendo
dela, do empréstimo a juros, o sistema vascular da vida econômica.
O Capitalismo surge grandioso. O progresso industrial
mais formidável se realiza sobre a face da terra como efeito
do empréstimo a juros feito instituição permanente. E nesta
economia, o dinheiro resulta fértil, produtivo, com cria.

91
CAPÍTULO 4

Ante esta nova realidade que os fatos expõem, a Igreja guarda


(não nega) sua doutrina sempiterna e permite que seus filhos
(Cânon 1543 do Direito Canônico5) recebam o juros legal nos
empréstimos do dinheiro ou coisas fungíveis. Não porque tenha
esquecido ou alterado sua doutrina, senão que, atendendo a novos
feitos, cuja modificação não está em suas mãos no momento,
permitiu a seus filhos que tirem vantagem da produtividade do
dinheiro, de fato universal. (Ver ao final o Apêndice III sobre “O
Empréstimo a juros e a Conduta da Igreja”.)
Ao suscitar esta questão, prescinde-se aqui a licitude em
consciência para os que atualmente vivem no regime econômico
moderno, e se pergunta: é em si justo e benéfico um sistema de
economia fundado no empréstimo a juros? Um sistema tal, ainda
que adquirisse um desenvolvimento grandioso, não resultará
nefasto, já que não pode servir ao bem-estar humano da coletivi-
dade? A grandiosidade de tal sistema não será necessariamente
em benefício de uns a expensas do corpo social?

ILICITUDE DO EMPRÉSTIMO A JUROS

Por que a lei mosaica e a legislação cristã proibiram sempre


severamente a usura? Responde Santo Tomás (II-II, q. 11.
78.a.1; e De malo, q. 13.4): “A usura não é pecado porque está proibida,
senão que está proibida porque é pecado: viola a justiça natural. Porque se
vende algo que não existe; logo, há uma desigualdade que é contrária à
justiça”. É como se eu, sem vender nada, cobrasse $ 5. Dou zero
e recebo 5. Seria evidentemente injusto. Pois precisamente

5
N.d.T.: Código de 1917.

92
As finanças

isso acontece com a usura, o rendimento, o juros que se recebe


pelo empréstimo de dinheiro ou de uma coisa consumível.
“Com efeito – prossegue Santo Tomás –, há coisas cujo uso é seu
mesmo consumo; assim consumimos o vinho quando o usamos,
isto é, quando o bebemos; e consumimos o trigo quando o usamos,
isto é, quando o comemos. De onde, nestas coisas consumíveis não
se pode computar à parte o uso da coisa e a mesma coisa; senão
que aquele a quem se lhe dá o uso, por isso mesmo se lhe dá a coisa.
E por isso, nestas coisas, pelo empréstimo se transfere o domínio.
Se alguém, pois, quisesses vender à parte o vinho e por outra o
uso do vinho venderia uma mesma coisa duas vezes ou venderia
o que não existe, o qual é manifestamente contra a justiça. E pela
mesma razão, comete injustiça quem empresta o vinho ou o trigo
pedindo que se lhe deem duas recompensas: uma, a restituição de
uma coisa igual; a outra, o preço ou recompensa pelo uso, que se
chama usura ou juros.

“Há outras coisas – prossegue o Santo Doutor – cujo uso não é o


consumo da coisa; assim, por exemplo, o uso de uma casa é habitar
nela e não precisamente destrui-la ou consumi-la. Nestas, o uso da
coisa se pode separar da coisa mesma e entregar uma sem entregar
a outra; assim, por exemplo, quando alguém entrega a outro o uso
da casa, reservando-se o domínio. Pode-se, então, cobrar um censo
pelo domínio da casa, cujo uso cedeu. (Evidentemente que este censo
nunca equivaleria a aluguel, pois neste, o aluguel que se cobra leva
implicado a usura ou juros de capital investido. O conceito moderno
de “aluguel” é um conceito capitalista e por isso usurário; o mesmo,
diga-se do arrendamento, de campos.)

“Apesar disso – prossegue Santo Tomás –, o dinheiro, como ensina


Aristóteles, introduziu-se principalmente para efetuar os câmbios;
assim o uso principal e próprio do dinheiro é seu consumo, sua
distração. Por isso, é em si ilícito receber preço ou usura pelo uso
do dinheiro emprestado.

“De modo que, segundo a doutrina, o dinheiro é por natureza estéril,

93
CAPÍTULO 4

infecundo. Não é justo, portanto, cobrar por seu empréstimo como se


fosse fecundo, como se produzisse, como se tivesse cria.

Daqui que na lei mosaica (Dt 23, 20-21), o Senhor ordena


aos judeus:
“Não emprestarás à usura a teu irmão, nem dinheiro, nem grãos,
nem qualquer outra coisa, senão somente aos estrangeiros. Mas a
teu irmão, há de lhe emprestar sem usura o que necessita para que
te bendiga o Senhor teu Deus em tudo quanto puseres mão na terra
que irás possuir”.

Dirá alguém: se lhe permitiu ao judeu emprestar à usura


ao estrangeiro, logo isso não é em si mau. Responde o Santo
Doutor (II-II, q. 78, a. 1, ad. 2):
“Aos judeus se lhes proibiu receber usura de seus irmãos, isto é, dos
judeus; pelo qual se dá a entender que receber usura de qualquer
homem é simplesmente mau; porque devemos ter a todo homem
como próximo e irmão, sobretudo no estado do Evangelho, ao qual
são todos chamados. Mas que recebessem usura dos estrangeiros
não se lhes concedeu como lícito, senão que tão somente se lhes
permitiu para evitar um mal maior, ou seja, para que não recebessem
usura dos judeus que glorificavam a Deus, pois era muito grande a
ganância à que estavam entregues, como consta Isaías, cap. LVI”.

Daqui que a Igreja proibiu sempre a usura ou empréstimo


a juros. Tão só a autorizou em casos excepcionais, não pela
fecundidade que atribuísse ao dinheiro senão por certas causas
extrínsecas ao dinheiro mesmo, como pelos prejuízos que em
certos e determinados casos pudesse implicar o empréstimo de
dinheiro. A usura legalizada se introduz oficialmente com a
Reforma, o Calvinismo sobretudo. De onde, à medida que
diminui o sentido ou influência católica, cresce a usura, e com
a usura, a dominação judia sobre o mundo cristão. Mas não
nos adiantemos.

94
As finanças

Resumindo todo o exposto, resulta que a doutrina de Aristóteles


e Santo Tomás, a eminentemente católica sobre as Finanças,
pode-se compendiar nos seguintes pontos:
1. Só são verdadeira riqueza os produtos da terra e da
indústria;
2. O dinheiro é um instrumento de câmbio, cujo valor está
em função das riquezas naturais que com ele se possam
adquirir;
3. O dinheiro é absolutamente infecundo por natureza
própria; não tem direito à cria;
4. Portanto, a usura ou juros, qualquer que seja, recebida
por um empréstimo é injusta.

O DINHEIRO NO CAPITALISMO

O Capitalismo porá às avessas toda esta doutrina. Porque


fará do dinheiro uma mercadoria; a única mercadoria ou riqueza;
riqueza que prolifera matematicamente à medida que passa
o tempo.
Para isso, o empenho do capitalismo – inconsciente mas real
e profundo – limitar-se-á em prover um instrumento monetá-
rio que se lhe permita desligar o mais possível da riqueza natural
e produzir dinheiro com dinheiro, proliferar dinheiro: este
instrumento será o ouro com seus inumeráveis sucedâneos.
O ouro como dinheiro não terá valor enquanto é representativo
de todas as riquezas naturais de uma nação, senão um valor
intrínseco, o único apetecível. E assim, o ouro será a única riqueza
apetecível, porque todas as outras riquezas serão ambicionadas
enquanto podem se reduzir a ouro.

95
CAPÍTULO 4

Ou seja, que não se buscará o dinheiro como meio que nos


procura as riquezas naturais, senão que se explorarão as ri-
quezas naturais como meio que nos abastece de ouro. O ouro
será não uma simples mercadoria, senão a grande mercadoria, o
centro imutável na corrida dos fenômenos, a medida absoluta dos valores6.
Assim, o ouro é uma moeda com caracteres opostos aos que
deve ter uma moeda segundo a sabedoria dos antigos. Os antigos
toleravam que a moeda fosse uma mercadoria, contanto que esta
mercadoria tivesse um valor real que coincidisse plenamente
com seu valor de representação ou equivalência. Supunham
neste caso que esta moeda era uma mercadoria circulante,
invariável em si, cuja variabilidade só poderia se originar da
variabilidade dos produtos naturais. Ou seja, que se os produtos
escasseavam deviam subir de preço e que se abundavam deviam
baixar de preço.
Porém o capitalismo, que faz do ouro a única mercadoria,
começa por retirá-lo de circulação e sepultá-lo nos porões dos
grandes bancos.
O ouro será, no entanto, a mais variável de todas as coisas7.
O ouro variável tende a ser expulso de circulação; será
substituído por outros meios de pagamento que conservarão
uma relação de equivalência com o ouro: o papel moeda e os
cheques8. O papel moeda e os cheques que asseguram uma
maior circulação de meios de pagamentos não têm um valor

6
Medida absoluta dos valores, não porque não admita variabilidade, senão porque é o que em últi-
mo termo se apetece. Ferdinand Fried, La Fin du Capitalisme, pág. 48.
7
Irving Fisher, L’illusion de la monnaie stable.
8
Ver nota 4 ao final do livro.

96
As finanças

de representação das riquezas naturais, senão um valor de


representação a respeito do ouro. Este valor de representação
variará segundo as variações de seu volume.
Nesta forma, os preços de todas as coisas estão em função
de três variáveis: o ouro, o papel moeda (e os cheques) e as
mesmas riquezas naturais; o ouro, outrossim, está em função
de três variáveis9.

O COMÉRCIO DA MOEDA

O comércio da moeda, tão energicamente reprovado pela


sabedoria dos antigos, será a ocupação preferida dos financistas
que terão encontrado um meio fácil de enriquecer especulando
sobre a infinita variabilidade do ouro, do papel que substitui o
ouro e de todas as outras riquezas que estarão representadas
em papel.
As finanças serão a comercialização de todos os valores.
Não me atreveria a acrescentar aqui que esta comercialização
da vida econômica é uma criação genuinamente judia, se
um economista de autoridade de Werner Sombart10 não o
demonstrasse com uma documentação esmagadora.
“O Capitalismo – diz Sombart – é a bolsificação de todos os
valores econômicos”. “Apesar disso – prossegue11 –, neste processo
‘os judeus desempenharam o papel de criadores, e ainda o
aspecto particular que a vida econômica moderna assumiu

9
Ver nota 5 ao final do livro.
10
Les juifs et l avie économique, pág. 81.
11
Ib., pág. 81.

97
CAPÍTULO 4

como consequência deste desenvolvimento deve ser considerado


como o efeito de uma influência especial e essencialmente judia’”.
E segue demonstrando como a letra de câmbio, o bilhete de banco,
a debênture, as ações, a bolsa etc. são criações genuinamente judias.
As pessoas se acostumaram de tal forma a esta comerciali-
zação do dinheiro e de todos os outros valores econômicos, que
lhes parecem isso o mais lógico e o mais inofensivo. No entanto,
não é bem assim. Porque toda esta comercialização pressupõe a
formação de fortunas fantásticas, que se criam de maneira
artificial, sem a produção real de riquezas, às expensas, portanto,
da verdadeira produção. Ademais, isso cria uma instabilidade
sumamente grande para as forças produtoras, a qual há de
redundar em prejuízo dos consumidores e dos produtores para
beneficiar, em contrapartida, às especulações dos financeiros.

O DINHEIRO PROLÍFERO

Porém não é isso o pior. O grave, o gravíssimo da finança


capitalista é que nela o dinheiro, o ouro e todos os outros valores,
enquanto redutíveis em moedas, devem ser necessariamente pro-
líferos. Toda riqueza deve produzir juros. Não é possível conceber
uma riqueza improdutiva. O dinheiro tem direito a juros, a cria.
Cem pesos, ao fim do ano, devem necessariamente converter-se
em cento e cinco, por exemplo.
Refiro-me, portanto, ao juros, à usura (usura-sistema, legali-
zada, a cinco por cento, ou a um ou a meio por cento, que seja),
que forma em realidade o núcleo mais essencial do capitalismo,
porque é a expressão concreta da ganância.
Comecemos por advertir que a noção de empréstimo a juros,

98
As finanças

ou venda a juros, a crédito, está na raiz de tudo; a noção de juros


devido é generalizada: a casa de nossa mãe, este dinheiro, este
jardim, esta máquina imóvel, tudo o que tem um valor, tudo o que
poderia produzir dinheiro de novo e não produz, tudo é um
capital que pode e deve produzir, que deve ter cria; constantemente,
à medida que passa o tempo, vai aumentando com quatro, cinco,
seis, sete, oito por cento, segundo seja a taxa legal12.
Este é na realidade o conceito capitalista de capital, de dinhei-
ro. Para o capitalista, não há riqueza morta: qualquer dinheiro,
coisa ou bem, tem que proliferar em favor de seu dono, tenha
ou não de fato produzido essa riqueza, tenha ou não mediado o
trabalho de seu dono em sua produção.
Alguém tem cem pesos, mas ao fim do ano está muito certo de
que são 105, por exemplo. Houve uma cria infalível, matemática
de $ 5. Um industrial agrícola que teve um ano esplêndido e
acumulou um ganho de $ 100 mil, já pode descansar para toda a
vida. Porque a colheita deste ano – sem se consumir –, somente
com sua cria anual, isto é, com o rendimento, irá lhe sustentar por
toda a vida.

O DINHEIRO E O CAPITAL

Antes de mostrar a perversidade desta concepção do dinheiro


(e demais riquezas enquanto traduzíveis em dinheiro), estabele-
cerei que é necessário distinguir entre dinheiro e capital.
O dinheiro é um instrumento de câmbio; feito para ser usado,
para assegurar os câmbios. Não é riqueza, senão um valor
nominal de riqueza.

12
Marcel Malcor, Nova et Vetera, 1931.

99
CAPÍTULO 4

Em contrapartida, o capital é o meio de produção de nova


riqueza. Como se explicou no capítulo anterior, o capital é o
investimento de riqueza em uma empresa para que, associada
ao trabalho como instrumento de produção, participe dos riscos
e benefícios da empresa. O proprietário deste capital, que
arrisca esta riqueza em produção de nova riqueza, tem direito a
seus ganhos. Por isso, os antigos e Santo Tomás expressamente
(II-II, q. 78, a. 2, ad. 5) afirmam que “aquele que confia seu dinheiro
a um mercante ou a um artesão, formando com ela uma sociedade, não
transfere a ele seu domínio, senão que fica proprietário, e assim pode
licitamente exigir uma parte do lucro que dele provenha, como de coisa
própria. Não, pelo contrário, aquele que empresta seu dinheiro, porque
este ao emprestá-lo transfere o domínio àquele a quem o empresta, e assim
não pode exigir mais que o que emprestou”.
Evidentemente que este conceito autêntico de capital, ad-
mitido em todos os tempos pela Igreja, não coincide com o
conceito do Capitalismo. Porque o Capitalismo inocula no
conceito de capital o mesmo juros. É isso tão certo que nas
empresas industriais o juros do capital não se tira do ganho
líquido da empresa, senão que se considera um gasto geral que
há de se descontar do ganho bruto. É que o juros, a cria, é algo
inseparável do capital. Se uma vez assegurada a amortização
do capital e de seu juros, ainda fica o ganho líquido: bem-vindo!
Dele beneficiar-se-á o capital em forma de dividendo.
Conceito de capital claramente injusto e usurário, como
imediatamente demonstrarei. Recordemos por hora o conceito
católico de capital, de capital genuíno, segundo expliquei no
terceiro capítulo. É o investimento de riqueza não consumida
numa empresa, para que, associada ao trabalho como instrumento
de produção, participe nos riscos e ganhos da empresa.

100
As finanças

De onde, (I) o capital é somente causa instrumental na produ-


ção; (II) não tem direito a ganho, senão quando está associado ao
trabalho; (III) seu direito ao ganho é secundário, vem depois do
trabalho, assim como sua influência na produção é secundária e
posterior ao trabalho; (IV) assim como se associa com o trabalho
na participação do ganho, assim também se associa nos riscos
e perdas.
Logo, o capital não tem direito a nenhum juros; não tem di-
reito tampouco a descontar a amortização do capital do ganho
bruto, no conceito de gasto geral. O capital tem tão só direito
ao dividendo em caso de que haja ganhos líquidos. O ganho
líquido se há de computar depois de satisfeitos plenamente os
direitos do trabalho do executor e do operário.
Apenas desta forma haverá verdadeira associação do capital
na empresa, como alimento do trabalho, segundo se depreende
dos princípios de Santo Tomás, explicados no terceiro capítulo.
Agora, em caso de que o capital não se associasse, senão que se
emprestasse, então tem direito tão só a reclamar a devolução
íntegra do capital, qualquer fosse a sorte da empresa; assim
como não se associa na participação do risco da empresa,
tampouco pode reclamar nenhuma participação nos ganhos.
O capital capitalista implica as seguintes injustiças: (I) con-
sidera-se como emprestado e por isso reivindica sua amortização,
com o rendimento industrial; (II) considera-se associado e reivin-
dica participação no ganho líquido; (III) considera-se superior ao
trabalho e reivindica sua amortização, rendimento e dividendo,
antes dos direitos do trabalho.
Por isso é necessário escolher: capital associado ou dinheiro
emprestado. Uma coisa ou outra: as duas como acontece no tipo
corrente de empresa capitalista, é injusto, é um roubo.

101
CAPÍTULO 4

O EMPRÉSTIMO A JUROS NO CAPITALISMO

Não obstante, se o dinheiro é emprestado, o juros que o capital


reivindica como devido é um roubo. Em virtude de que, se se
entregou cem, reivindica-se ao cabo do ano 105? Estes cinco
que exigem, em virtude de que o exigem? De ano transcorrido?
Mas tem-se o direito de comerciar com o tempo, com o ano, e
cobrar $ 5 porque se passou um ano?
Dirá alguém: mas é que o outro se beneficiou com o dinheiro
que eu lhe emprestei. Se emprestou, logo lhe entregou o dinheiro
para que o usasse; entregou-lhe o dinheiro e seu uso que vão
inseparáveis. Não obstante, ao devolver o mutuário o dinheiro
emprestado, devolve-lhe também seu uso, ou seja, devolve tudo
o que lhe entregara. Não tem direito ao ganho como não tem que
responder por suas perdas, porque ao emprestar-lhe o dinheiro,
despojou-se do dinheiro. Se não se tivesse despojado do dinheiro,
se não o tivesse emprestado, senão que o tivesse associado à
empresa com o trabalho do outro, poderia reivindicar com justiça
uma participação nos ganhos do outro, assim como se exporia
a seus riscos. Mas então não seria dinheiro emprestado, senão
associado: não teria direito tampouco a sua infalível amortização.
Doutrina claríssima e límpida que nos custa entender, porque
temos a mentalidade capitalista do dinheiro e do capital.
O juros que cobra o credor é riqueza apropriada sem trabalho.
Mas como é riqueza é produto do trabalho – do trabalho do
produtor, do não rentista, que produz para si e para o rentista.
O rentista rouba do produtor uma parte de seu trabalho. Isso que
aparece claramente no rendimento industrial e na moderna
renda fundiária (digo “moderna”, porque hoje o aluguel de casas

102
As finanças

e dos campos implica o conceito de dinheiro e de capital com


direito à cria) aparece mais evidentemente nos empréstimos do
Estado. Porque o Estado que contrai um empréstimo geralmente
não investe esse dinheiro nas obras produtivas, senão em obras
consumíveis, ou melhor, destrutíveis. De maneira que logo há
que amortizar capital e juros.
Empresta-se dinheiro quem o tem, ou seja, o financista.
De modo que este se enriquece com o juros do emprestado. E
como o Estado não produz, logo há que tirar do produtor uma
parte do que produz para passá-lo e entregá-lo ao financista.
Deste modo, o que faz na verdade o empréstimo é o produtor
ou trabalhador, da inteligência ou das mãos, mas trabalhador.
Aquele que se beneficia – infalivelmente – é o não-trabalhador,
o mandrião, o financista.
Com os empréstimos de Estado, o Estado oficialmente se
encarga de passar a riqueza das mãos do produtor às mãos do
não-produtor.
E com os empréstimos contraídos no estrangeiro, das mãos dos
produtores do país às mãos dos não-produtores do estrangeiro.
Por isso dizem com grande sabedoria os Protocolos dos Sábios
de Sião, Ata 2013:
“Enquanto os empréstimos foram interiores, os cristãos não faziam
mais que trocar o dinheiro do bolso do pobre ao bolso do rico. Mas
quando compramos as pessoas que eram necessárias para conseguir-se
transportar os empréstimos sobre terreno estrangeiro, todas as riquezas
dos Estados passaram a nossas caixas, e todos os cristãos se viram
obrigados a nos pagar um tributo de servidão.

13
Ao citar os “Protocolos dos Sábios de Sião”, não temos em conta a autenticidade dos mesmos, nem
se respondem a um plano premeditado de uma suposta direção judia universal. Advertimos, sim, que é
de todo modo inegável que expressam acertadamente tudo quanto de fato se realiza e se cumpre nas
relações dos povos cristãos e dos judeus.

103
CAPÍTULO 4

“Quão evidente – prosseguem os Protocolos – é a falta de reflexão


nos cérebros, puramente animais, dos cristãos!”

“Não tomam dinheiro emprestado com juros, sem refletirem que lhes
será necessário tirar dos recursos do país, cedo ou tarde, o capital
emprestado mais os juros para nos pagar. Quanto mais simples seria
tomar o dinheiro de que precisam diretamente do contribuinte! Isto
demonstra a superioridade geral de nosso espírito. Temos sabido
apresentar o negócio dos empréstimos de forma tal que até eles têm
visto vantagens para si.

“Cada empréstimo demonstra a incapacidade ou ignorância do


respectivo governo quanto aos direitos do Estado. Os empréstimos
pendem como uma espada de Dâmocles sobre os soberanos, que
em vez de taxar as contribuições a propósito, estendem as mãos
pedindo esmola a nossos financistas. Sobretudo, os empréstimos
exteriores são como as sanguessugas, que já não se podem tirar
do corpo dos Estados, até que caiam por seu próprio peso, a não
ser que o Governo os arranque violentamente. Porém os governos
não-judeus, muito longe de arrancá-los, voltam a colocar cada vez
outros novos. Irremissivelmente há que ruir a consequência de tão
constante e voluntária sangria”.

O EMPRÉSTIMO A JUROS DIVIDE A HUMANIDADE EM


OLIGARQUIA E MULTIDÃO MISERÁVEL

O empréstimo a juros é nefasto porque divide a humanidade em


duas classes: uma oligarquia multimilionária que não produz e uma
multidão miserável que produz.

Todo o exposto até aqui sobre as finanças, a moeda, a injustiça


e inconveniência da usura, há de parecer desconexo por uma
parte, e por outra sumamente ineficaz. Porque ainda supondo
que a usura tivesse seus inconvenientes, não é verdade que estes

104
As finanças

se compensariam de sobra com o magnífico desenvolvimento


alcançado pela indústria e o comércio, desenvolvimento que
quase em sua totalidade se há de atribuir à poderosa alavanca das
finanças e do crédito? Pois bem, demonstrarei – reproduzindo
a demonstração de La Tour de Pin14, feita há 40 anos – que o
crédito e a usura são essencialmente nefastos, e que colocaram
a economia moderna no abismo de sua definitiva sepultura.
Com efeito, a usura, ainda que seja de meio por cento, é uma
injustiça nefasta, porque ela, só, prescindindo de qualquer outra
causa, tende automaticamente a dividir a humanidade em duas
grandes e únicas classes: uma, acumuladora do dinheiro, que cada
dia aumenta seu dinheiro sem trabalhar; a outra, sem dinheiro,
que trabalha cada dia mais para enriquecer a classe financeira.
Porque o juros que se recebe pelo dinheiro emprestado, seja
de rendimento industrial ou de rendimento fundiário, ou dos
empréstimos do Estado, ou dos simples empréstimos bancá-
rios, subtrai-se das mãos do produtor e se coloca nas mãos
do não-produtor. Desta forma, cada dia aumenta o capital do
financista, e sobretudo, do financista primário, que costuma
ser o financista mundial.
Ao aumentar o capital, aumenta seu juros; logo, cada dia é
maior a parte que o produtor deve entregar ao financista.
O produtor tem necessariamente que ir se empobrecendo, até
que chegue um momento em que o que produza diariamente nem
sequer consiga satisfazer à parte que deve aos juros do financista.
Então, estará se endividando e ficará economicamente sob as
garras do financista.
Não obstante, isto não é fantasia: é a atual realidade econômica

14
Vers un ordre social chrétien.

105
CAPÍTULO 4

do mundo. Por um lado, vemos uma exígua quantidade de finan-


cistas que tem concentrada em suas mãos uma enorme montanha
de dinheiro. Por outro lado, vê-se nações, indústrias, comércios,
particulares, carregados de dívidas, trabalhando (ou se propondo
a trabalhar) para cumprir com os enormes compromissos
contraídos. Para quem se trabalha?
Em benefício do financista, que nos há de absorver, quem sabe
até que geração, o suor de nosso trabalho. E que não trabalha, não
produz; todo seu trabalho é artificial, financeiro, especulativo.

É NEFASTO PORQUE ENGENDRA UMA


MONTANHA NEFASTA DE DINHEIRO

Com efeito, essa montanha de dinheiro em poder dos fi-


nancistas mundiais estará ociosa? Impossível, porque se não
o aplica, não se aumenta com o juros.
Porém aplicá-lo onde, se os atuais produtores não oferecem
garantias suficientes como para cumprir com as dívidas
contraídas e, ademais, se seus produtos manufaturados não
encontram mercados onde os aplicar?
Se não se pede crédito, o crédito se oferece. O dinheiro deve
aumentar infalivelmente. E assim vemos como no ano 1928 e
1929 os financistas acordam 8 bilhões e 500 milhões de dólares
aos brookers de Nova York para suas especulações da bolsa15. Os
créditos subiram todos os valores da bolsa. A prosperidade voltava.
Porém era esta uma alta especulativa. A alta não se fundava
no maior rendimento da produção, senão numa falsa especulação,

15
Emile Mireaux, Les Miracles du Crédit; Pierre Lucius, La faillite du Capitalisme; Ferdinand Fried, La
fin du Capitalisme.

106
As finanças

que alçava os valores, porque dispunha de dinheiro para especular.


E assim, quando veio a realidade, foi uma brutal bancarrota.
Pierre Lucius16 mostra estatisticamente o curso de cotizações
de 1923 a 1931:

Índice dos valores de juros variável.


Índice da Estatística geral da França (base 1913:100).
*Ler. período de alta

PARIS NOVA YORK


Mínimo 1923 173 119
Máximo 1929 507 403
Alta calculada em 100 195 239
*2º período de baixa

PARIS NOVA YORK


Máximo 1929 507 403
Mínimo 1931 249 154
Baixa calculada em 100 150 209

Este boom provocado artificialmente trouxe a bancarrota de


grandes especuladores e produziu a perda da pequena poupança
do público. E assim faliram a Hatry e Horn em Londres, Oustric,
Devilder, Homberg, Bauer Marchal e a Aero-Postal em Paris,
Gualino, Pánzarasa, Brudarelli em Turim e Milão.
Por que essa quantidade enorme de dinheiro se lançou
às principais bolsas do mundo, senão para fazê-lo prolífero

107
CAPÍTULO 4

desde o momento que é inconcebível que permaneça ocioso


sem se aumentar?
Diga-se o mesmo da superprodução de matérias-primas
em todos os países além-mar e da superprodução industrial
nos países industriais. O dinheiro, com seu anseio louco de
aumentar racionalizou os Estados Unidos, Alemanha, Rússia;
provocou um progresso extraordinário da indústria em todos os
países, e ainda nos países antes exclusivamente consumidores
como a Índia, os Balcãs, a China etc.
Calcule o transtorno nefasto dessa superprodução desen-
freada, se se tem em conta que cada um desses países pode
praticamente abastecer o consumo mundial.
Qual foi o resultado ulterior da expansão agrícola-industrial
provocada pela enorme montanha de dinheiro que se precipitou
sobre o mundo em anseios loucos de aumentar a riqueza?
Muito simples: as matérias-primas superproduzidas tiveram
de ser armazenadas; produziu-se sua desvalorização abaixo de
seu preço de custo, e desta forma a população campesina acabou
por submergir-se na miséria e falência.
A superprodução industrial produziu a greve das usinas
com o desemprego operário e a bancarrota industrial.
“Assim na economia mundial vemos, por um lado, os civis
empobrecidos, incapazes de comprar os itens manufaturados,
máquinas e ferramentas; e pelo outro, as massas operárias
empobrecidas que não podem satisfazer suas necessidades de
matérias-primas17”.

17
Ferdinand Fried, pág. 22.

108
As finanças

UM CASO TÍPICO ENTRE NÓS

Para considerar os transtornos nefastos que necessariamente


deve produzir um mercado saturado (ou seja, um mercado que
não permite aumentar o rendimento da produção), uma massa
enorme de dinheiro, que não pode ficar inativa nas mãos dos
financistas, suponhamos que existe um consórcio financeiro
com um bilhão de pesos. O comércio financeiro X tem um bilhão
de pesos, e não sabe a que comércio ou indústria oferecê-los,
porque ninguém os solicita.
Manterá inerte esta ingente soma? De nenhuma maneira.
Provocará negócios prolíferos a curto prazo, que lhe reembolsa-
rão com profícua recompensa tal soma. Mas como estes negócios
não obedecerão a uma necessidade real dos consumidores,
esta recompensa realizar-se-á a expensas de proprietários e
produtores, que terão que sucumbir na luta comercial, vítimas
do Consórcio Financeiro X que aumentará vertiginosamente.
Suponhamos que o Consórcio Financeiro X vê um negócio
produtivo a curto prazo na edificação de arranha-céus. Então
dirigirá nessa direção o investimento do dinheiro, não porque em
Buenos Aires haja necessidade dessas moradias, já que a popula-
ção não aumentou para uma densidade tal, senão porque graças
ao esnobismo da gente que gosta do último andar, suas residências
serão preferidas às custas de outros que serão sacrificados.
Desta forma, o Consórcio Financeiro X, valido do poder
onipotente de seu bilhão, arruinará os demais proprietários e
provocará uma baixa pressionada de alugueis.
Não se esgotará com isso a capacidade financeira do Con-
sórcio Financeiro X. Aproveitando o estado ruinoso de muitos
armazéns, padarias, peleterias, farmácias, camisarias, lojas

109
CAPÍTULO 4

da cidade, irá comprá-las a um preço insignificante, irá


transformá-las, dando a elas um aspecto atraente e moderno,
e com esta rede de negócios modelos disseminados em pontos
estratégicos da cidade, fará fartos negócios, enquanto todos os
outros comerciantes quebram. E assim, matematicamente, o
Consórcio Financeiro X ficará com tudo nesta “república”. Os
cereais, o gado, o leite, o pão, os fármacos, as estâncias, os grandes
edifícios de aluguel; tudo passará ao Consórcio Financeiro X,
que obterá enorme recompensa às expensas do estado ruinoso
dos produtores e comerciantes, seus devedores.
Porém, é que são iníquos os participantes do Consórcio Finan-
ceiro X? De nenhuma maneira. É gente que trabalha hones-
tamente dentro da economia capitalista. Têm dinheiro e o
emprestam. Ao emprestá-lo, aumentam-no com os juros. E
assim, como empréstimo a juros, recebem frutos do trabalho de
todos os que não conhecem outro modo de enriquecerem que
com o suor de seu rosto. Quando esses, por uma causa ou por
outra, não podem cumprir com as dívidas contraídas, veem-se
na necessidade de fazer um trato com o Consórcio Financeiro
X, o qual costuma prestar-se muito amavelmente para uma
negociação com o pouco afortunado devedor.
E que injustiça há nisto tudo? Não é a lógica de uma eco-
nomia fundada no empréstimo a juros? Assim pela lógica, o
Capitalismo chegou à bagunça total. E a gente ingênua se per-
gunta onde estaria o dinheiro.
Onde haveria de estar? Nas mãos de seus donos, os financistas
internacionais. São culpáveis, então? De nenhuma maneira. Não
diz o mundo moderno, o regime econômico capitalista, que tudo
marcha para o progresso, graças às maravilhas do crédito?
Como espantar-se, pois, de que os credores tenham em

110
As finanças

suas mãos todo o dinheiro do mundo? Sim, arrecadaram-no


licitamente, porque os produtores consentiram em entregá-lo!

“FAZ FALTA O DINHEIRO”

Porém se têm o dinheiro, por que não o entregam à circulação?


E com qual objetivo? Para aumentarem a produção? Se a pro-
dução atual é excessiva. Para aumentar o consumo?
Mas neste caso, sobre quais garantias oferecê-lo, se os consu-
midores não poderiam reembolsá-lo. Quem entregará agora o
dinheiro à circulação, se não oferece garantias de produtividade?
Ademais, que se se entregasse, repetir-se-ia o fenômeno de
desastre de 1929...
Ademais, que se se entregasse, sentir-se-ia um alívio mo-
mentâneo, artificial, que logo haveria de trazer uma situação
mais desesperada. Porque ao se recorrer ao dinheiro com sua
correspondente cria, que produziria o produtor em benefício
do financista, este ficaria mais rico e o mundo mais pobre,
agravando-se constantemente o mal.

DINHEIRO, PURO INSTRUMENTO DE CÂMBIO

Porém o certo é que faz falta o dinheiro, instrumento de câmbio,


puro instrumento de câmbio que ponha em circulação as
mercadorias. Mas não faz falta (seria muito danoso) o dinheiro
ou o capital com direito a cria, à usura.
Logo, o dinheiro que faz falta é um dinheiro não prolífero, um
dinheiro exorcizado da usura, ainda da usura legal de porcenta-
gens. Um dinheiro como o queriam Aristóteles e Santo Tomás.

111
CAPÍTULO 4

Esta é a única solução ao problema econômico do mundo; a


demonstração formulada é de um rigor matemático fatal. Solução
que não se quer e que nem sequer se tem vislumbrado. Solução que
ainda que se vislumbre, não se aplicaria, porque como o mundo
está regido pelos financistas mundiais, jamais permitiriam estes
uma solução que destrua seus exclusivos interesses.
A filosofia tradicional fornece a única solução possível à
crise econômica do mundo. Enquanto isso, as celebridades da
Economia e da Política agitam-se empenhadas em curar o estado
comatoso do organismo econômico com os tratamentos que o tem
levado a este estado.

USURA-VÍCIO, USURA-SISTEMA

A usura é, portanto, injusta e nefasta. A atual crise, definitiva


para o capitalismo, é efeito primeiro da usura.
Da usura-vício, dirá alguém, que seja da usura de um juros
exagerado, mas não da usura legal, da usura módica que recebem
os bancos honestos.
Porém pergunto: uma vez que se justifica e legaliza a usura,
quem a manterá em seus justos termos, se ela é por natureza
acelerada? Ademais, onde termina a usura legal e começa a vicio-
sa? Acaso os financistas não impõem a taxa de seus empréstimos
e o Estado a legaliza com sua aceitação?
Porém prescindindo de tudo isso, ainda que fosse certo que
a atual paralisia econômica não se devesse simplesmente ao
crédito e, sim, ao abuso do crédito; não é de todo modo certo que
este só terá apressado, acelerado os efeitos desastrosos da usura?
E que ainda que sem o abuso, ainda que mais lentamente, mas

112
As finanças

com igual infalibilidade matemática, ter-se-ia chegado a este


estado nefasto?
A nossa demonstração não se pode eludir. É de um rigor
matemático fatal, repito. Rigor matemático que ainda explica o
aparente uso ordenado do crédito no crescimento do capitalismo
e o uso desordenado nestes últimos anos de apogeu. Porque um
corpo em movimento, à medida que se aproxima de seu centro
de gravidade, aumenta sua velocidade; logo, a usura e seus efeitos
mortais deveriam aumentar à medida que o capitalismo chegava
a seu apogeu. A usura, pois, tem derrotado o capitalismo.
Outra objeção: Porém se sempre se praticou a usura, por que
precisamente agora resulta tão mortífera: Não será esta uma
solução simplista da crise econômica?
Nunca como agora se praticou a usura como uma necessidade
de vida econômica. Sempre a tradição, judaico-cristã, a filosofia
greco-romana e todas as civilizações tradicionais condenaram
a usura.
Praticou-se, é certo, pelas costas da lei, mas foi esta usura a que
levou Roma à destruição. Portanto, agora que se fez da usura uma
necessidade como jamais se viu pelos séculos, havemos também
de chegar a uma catástrofe única na história.
Evidentemente que quando a capacidade industrial do
mundo não havia conseguido equilibrar a capacidade real
de consumo, não eram visíveis os efeitos negativos da usura.
Porque como então a produção era de rendimento positivo,
era possível que se enriquecessem o financista e o produtor.
Mas agora, que o capitalismo chegou a seu apogeu, agora que
a capacidade produtora supera a quantidade consumidora, o
rendimento se tem feito problemático – senão impossível – e
aparece a usura em toda a sua perversidade catastrófica.

113
CAPÍTULO 4

A USURA, AS FINANÇAS E OS JUDEUS

Que admirável sabedoria a da Igreja que condenou sempre o


empréstimo a juros! Que admirável Santo Tomás que expressou
esta sabedoria da Igreja! O fato é que enquanto os povos cristãos
se conservaram fiéis à doutrina da Igreja, viveram em um rela-
tivo bem-estar humano e alcançaram uma grandeza espiritual das
que dão testemunho as obras que perduram da Idade Média. De
qualquer forma, os povos não eram escravos da dominação judia.
Mas com a cobiça, entrou a usura, e na usura, as finanças. E com
as finanças e a usura deveria se introduzir a dominação judia18.
Não há que esquecer que o mundo não marcha sem consciên-
cia, regido por forças cegas. Os povos têm o destino que lhes impôs
Deus em seus desígnios inescrutáveis.
O povo judeu tem uma vocação manifestadamente revelada.
Somente ao povo judeu foi dito, na pessoa de Abraão (Gen 12, 1-3):

"Deixa tua terra, tua família e a casa de teu pai e vai para a terra
que eu te mostrar. Farei de ti uma grande nação; eu te abençoarei e
exaltarei o teu nome, e tu serás uma fonte de bênçãos. Abençoarei
aqueles que te abençoarem, e amaldiçoarei aqueles que te amaldi-
çoarem; todas as famílias da terra serão benditas em ti”.

Todas as nações, pois, os povos gentis, têm sido benditas


e no povo judeu, porque a Salvação vem dos judeus (Jo 4, 22); e,
assim, o Apóstolo São Paulo na carta ao Romanos (cap. X e XI)
ensina que os povos gentis foram enxertados no tronco judeu.
Cristo e os Apóstolos, verdadeiros israelitas, foram esse tronco

18
Ver nota 6 ao final do livro

114
As finanças

do qual uma parte do povo judeu foi arrancada por incredulidade


e no qual foram enxertados os povos gentis.
A primazia espiritual corresponde, então, ao judeu. Os gentis
participam desta primazia, aderindo-se ao judeu fiel, ao israelita
legítimo que é herdeiro em Isaac das promessas feitas a Abraão.
Uma primazia carnal, uma primazia no reino de Mamon, na
adoração do bezerro de ouro, corresponde também ao judeu
infiel, simbolizado em Ismael, o filho da escrava. E assim Deus,
respondendo aos desejos de Abraão (Gen 17, 20), outorga-lhe
uma benção sobre Ismael: “Eu o abençoarei, o tornarei fecundo e
multiplicarei extraordinariamente sua descendência: ele será o pai de doze
príncipes, e farei sair dele uma grande nação”.
Os Judeus fiéis têm a primazia espiritual; os judeus carnais,
simbolizados em Ismael e em Esaú, têm uma primazia carnal,
no domínio das riquezas. Por isso, Esaú recebe a benção de seu
Pai Isaac: “da gordura da terra e do orvalho que desce do céu”
(Gen 27, 39). Por isso, os judeus carnais fabricaram para si um
deus de ouro (Ex 32), e Moisés em castigo “tomando o bezerro que
tinham feito, queimou-o e esmagou-o até reduzi-lo a pó, que lançou na
água e a deu de beber aos israelitas” (Ex 32, 20). Mas o certo é que o povo
judeu recebe, nas duas correntes que lhe atravessam durante sua
sempiterna história, ambas primazias, a espiritual e a carnal.
Os gentis herdaram sua primazia espiritual sendo enxertados
no tronco judeu. Enquanto os gentis permanecem fiéis a Cristo,
nada têm que temer da primazia carnal judia. Mas se eles também
querem tornar-se independentes de Deus, para se entregarem ao
serviço de Mamon, do bezerro de ouro, poderão desfrutar desses
gozos carnais, mas como escravos dos judeus. O ouro sempre será
propriedade dos judeus, porque eles beberam-no nas águas.

115
CAPÍTULO 4

Eis aqui o destino teológico da Economia Moderna regida


pelos judeus. A Economia moderna é a imersão total do homem
na preocupação do econômico, contradizendo abertamente ao
ensinamento evangélico: Ninguém pode servir a dois senhores, a Deus
e a Mamon; “Não vos inquieteis com o que haveis de comer ou beber”; Não
amontoei riquezas; “Buscai antes o Reino de Deus e a sua justiça e todas
essas coisas vos serão dadas por acréscimo.” (Lc 12, 22-31).
Quando os povos cristãos se esqueceram do primado do
Reino de Deus, caíram sob a dominação judia. E assim, à medida
que os povos cristãos renegam à amorosa dominação da Igreja (o
Reino de Deus), caem sob a dominação do judeu carnal. E como
este judeu é igual a finanças, à usura, o cristão que renegou a
Cristo fica sob a dominação usurária do judeu.
Os povos cristãos herdaram sua verdadeira grandeza per-
manecendo fieis a Jesus Cristo, que é Aquele em quem serão
benditas todas as nações. Enquanto permaneçam aderidos a Ele,
têm que temer as potestades da carne, dos servidores de Mamon.
Porque tudo lhe é dado àquele que busca primeiramente o Reino
de Deus.
Porém quando os povos cristãos quiseram tornar-se indepen-
dentes da Igreja, Reino de Deus, aventurando-se nos domínios do
pecado, associaram a grandeza carnal dos Servidores de Mamon,
mas se converteram em escravos. Em escravos de Mamon e em
escravos dos judeus. Em Escravos dos judeus que obtiveram a pri-
mazia no reino de Mamon, e cujo segredos estavam interiorizados.
Aos judeus foi dito por Deus (Dt 28, 12): “O Senhor abrirá para ti as
suas preciosas reservas, o céu, para dar a seu tempo a chuva necessária à tua
terra e para abençoar todo o trabalho de tuas mãos. Assim, emprestarás a
muitas nações e de nenhuma receberás emprestado.” Comenta Santo

116
As finanças

Tomás (II-II, q 78, a. 1, ad. 2): Promete-se, pois, aos judeus em recompensa
a abundância das riquezas, por qual sucede que podem emprestar a outros.
Portanto, se os povos gentis, abandonando a Deus, preferirem
conhecer as maravilhas da riqueza, terão que aprendê-las na
escola dos judeus, que, por vontade divina, são depositários
desta riqueza.
Daqui que haja uma necessidade teológica de que os judeus
tenham a primazia num Regime Econômico que é a imersão
total do homem nas preocupações inferiores do material.
Não há capitalismo sem os judeus, diz Werner Sombart
(Les Juifs dans la vie économique), confirmando sem querê-lo
a exigência teológica de que, na atual providência das coisas,
não é possível uma ordem da vida regida pela preocupação
econômica, em que os judeus não sejam os reis.
Demonstração nova de que “não há outro nome no qual
possamos nos salvar, no qual possamos lograr ainda que um
discreto bem-estar humano, senão no nome de Jesus, que
morreu pelo judeu e pelo gentio, para fazê-los participar a
ambos na Caridade de Deus”.

117
CAPÍTULO 5

O consumo

𝕍 imos no capítulo precedente a sorte de uma economia


entregue ao dinheiro como seu último fim. Sendo este,
em si, infinito, ilimitado, como observaram Aristóteles e Santo
Tomás, deveria imprimir um movimento de aceleração infinita
a toda vida econômica. Assim aconteceu, com efeito. A ânsia
insaciável de lucrar, não só desenfreada, senão glorificada no
regime econômico moderno, estimulou o comércio do dinheiro
com dinheiro para produzir mais dinheiro. As Finanças com seu
motor, o empréstimo a juros, coroaram toda a vida econômica.
Numa economia colocada sob o signo do lucro, atrás das
Finanças deveria seguir, correndo celeremente, o comércio
de mercadorias, porque nele, sem uma atividade diretamente

118
O consumo

produtora, aumenta-se rapidamente o dinheiro. E assim, a


vida comercial e mercantil, com a fúria infrene do transporte
marítimo, fluvial e carreteiro, agitou a humanidade até então
relativamente pacífica, fazendo dela um imenso mercado.
Atrás do comércio deveria vir, também em corrida célere,
para responder à incessante demanda do mercado, a produção.
Primeiro a produção industrial, porque se exerce no domínio
do artificial e, assim sendo, do ilimitado; e em segundo lugar, a
natural que, por esta razão, está atada às exigências limitadas
das forças naturais.
Por fim, se há que produzir para comerciar e comerciar para
lucrar, é necessário também consumir, porque se não há consu-
mo, não é possível a produção. Mas o consumo sempre é neces-
sariamente limitado, ainda que de propósito se lhe perverta. E é
mais limitado que a produção da terra. Logo, deve vir atrás dela.
E assim, na economia lucrativa do mundo moderno, o consu-
mo vem no último lugar de todo o processo econômico, arrastado
pela produção, assim como a esta lhe arrasta o comércio, e a este,
por sua vez, o Setor Bancário.
Seria errôneo tirar daqui a consequência de que no mundo
moderno não se busca comer. Ao contrário, busca-se que se
coma, que se consuma em modo infinito, ilimitado, acelerado,
para poder produzir infinitamente e comerciar infinitamente
e lucrar infinitamente. Neste mundo sem Deus, o infinito da
matéria infiltra-se por todos os domínios da atividade.
O erro da economia moderna não está, pois, em suprimir o
consumo. Ao contrário, está em elevá-lo ao infinito para poder
continuar até o infinito os outros processos econômicos.
Ou seja, é uma economia “investida”, segundo expus no capítulo

119
CAPÍTULO 5

primeiro. Uma economia infinita junto ao homem finito. Uma


economia puramente dinâmica junto ao homem primordial-
mente estático. Uma economia de lucro junto ao homem que
é um ser de consumo. Suprimiria o consumo se conviesse ao
lucro; aumentá-lo-ia até o infinito se o lucro o exigisse.
Isto, que pode parecer paradoxo literário, é história, como
demonstrou Marcel Malcor em seus maravilhosos estudos sobre
a Economia Contemporânea1.
Com efeito, quando a Inglaterra, em um século e meio de
imperialismo econômico, tem frente à sua poderosa indústria um
milhão e meio de clientes, de consumidores dispersos por todo
o mundo, esquiva-se de pregar as teorias sobre os aumentos de
salários e de consumo, popularizadas hoje pela teoria estaduni-
dense. Que necessidade pode haver em aumentar a capacidade
de consumo de seus vinte, trinta ou quarenta milhões de ingleses
comedidos e puritanos, se não pode abastecer sua enorme
clientela mundial?
Porém hoje, quando o instrumento produtor pode abaste-
cer várias vezes o mundo, é necessário pregar a necessidade do
consumo infinito – digo, pode abastecer, se de fato não abas-
tece, é por razões de outra índole. Daqui que a teoria de Henry
Ford, quando ensina que “a máquina vive da quantidade, e como
quantidade é o próprio operário, ele é o consumidor mais inte-
ressante, o único interessante. É necessário, portanto, que seu
salário lhe permita comprar o que produz”. “Uma indústria não
pode se dizer solidamente estabelecida – prossegue –, senão

1
Nova et Vetera, 1929 e 1931.

120
O consumo

quando a grande massa dos consumidores coincide com a grande


massa de seus operários”.
E como hoje o instrumento produtor é mais poderoso que a
capacidade de consumo do mundo, todo o esforço da economia
concentra-se em divinizar o consumo. Para isso, os elogios
laudatórios ao aumento do consumo; a propaganda que provoca
o consumo; a moda rapidíssima que apressa o consumo; e o
crédito ao consumo, que o acelera.

PUBLICIDADE... MODA... CRÉDITO AO CONSUMO

Expusemos brevemente estes quatro capítulos da economia


contemporânea, empenhada agora em glorificar o consumo, e
só assim explicaremos um dos aspectos mais interessantes desta
economia investida, que depois de ter produzido até a saciedade,
dá-se pressa em destruir o produzido, porque percebe que um
estancamento traz consigo a morte.
A economia contemporânea formula grandes elogios laudató-
rios ao consumo. Citamos Henry Ford. Impossível esquecer-se de
certo grande estadunidense que é o ex-presidente Hoover: “O ho-
mem que tem um automóvel standard, um rádio standard e uma
hora e meia de trabalho diário a menos é mais homem, tem uma
vida mais completa e mais pessoal da que, sem isso, tinha antes”.
E o senhor Mellon, ex-ministro da Fazenda dos Estados
Unidos, mostra-se orgulhoso da capacidade consumidora de
seu país. “Ainda que nossa população – diz – representa menos
de 7% do total da terra, consumimos no último ano 48% da
produção mundial de café, 53% da de estanho; 65% da de borracha;
21% da de açúcar; 72% da de seda; 36% da de carvão; 41% da

121
CAPÍTULO 5

de ferro; 47% da de cobre; 69% da de petróleo. Desde agora,


podemos aguardar um crescimento natural e inevitável tanto
da população como da riqueza natural”2.
Causa riso a satisfação desses bárbaros civilizados, que
imaginam que o aumento da população e da riqueza natural
depende da glutonaria. Para eles, o consumo é a medida da ci-
vilização. Por isso, os Estados Unidos, onde se bebe a metade
do café produzido no mundo, é mais civilizado que a Europa,
assim como a Europa o é muito mais que o Oriente...
Se o homem é um animal eminentemente consumidor, é
necessário incitá-lo ao consumo dos produtos cujo consumo tanto
lhe dignifica. Mas antes há que lhe fazer entender a conveniência
de adaptar-se a esta incitação permanente, de interessar-se pela
publicidade. Por isso, as múltiplas empresas anunciantes educam
o homem moderno demonstrando-lhe com urgência o grave
interesse que implica a leitura dos avisos. “Leia anúncios”.
“Acostume-se a ler anúncios”, dizem-lhe. A recomendação é, por
outro lado, ociosa. Porque a ofensiva da propaganda estaduni-
dense, com os mil inimagináveis recursos, acomete contra todos
os sentidos, serve-se de todos os sentidos, chega ao coração e
adormece o espírito.
A propaganda está sempre em proporção direta com a inu-
tilidade do artigo. Assim, a firma Rigley gasta 4 milhões de
dólares para a propaganda dos 16 milhões que vende em goma
de mascar. E é fácil constatar que quanto mais artificial é um
produto, maior sua propaganda e até mais eficaz: “porque no

2
Entrevista com o Sr. Mellon, Evening Standard, 27/11/1928. Citado por Sr. Malcor, em Nova et Vetera,
abril/junho de 1931.

122
O consumo

homem moderno, o desejo está submetido às leis da mecânica; a


repetição, uma certa intensidade largam automaticamente sua
corda do preço de um gasto facilmente calculável e que pode
figurar comodamente, de antemão, no cálculo do preço de
custo”3. Por isso é fácil descobrir o sentido filosófico do enorme
dispêndio propagandístico: na atual concepção de vida, o homem
é um animal consumidor perdido na massa impessoal; é
necessário, portanto, atuar sobre seus cincos sentidos para
incitá-lo ao consumo.
Se o homem é um animal consumidor porque na concepção
moderna é um concreto de pura matéria sujeito às leis da
mecânica, deve estar dotado, como a matéria, de uma mobilidade
contínua; porque o movimento local, transeunte como dizem
os escolásticos em contraposição ao imanente, e que o homem
moderno chama de atividade, energia, dinamismo, é consequência
inevitável da matéria. Por isso, é necessário progredir, renovar a
si, renovar rapidamente o consumo, divinizar a moda. Há que
comer, beber, vestir, jogar, habitar e desenvolver-se à moda.
A moda, reservada antes à aristocracia como expressão de
beleza, invadiu hoje todos os domínios e todas as classes sociais. É
uma conquista efetiva da democracia.
“É notável – diz Marcel Malcor4 – que a preocupação da
moda (que não se excediam em outro tempo de um meio muito
restrito) esteja hoje totalmente generalizada e popularizada.
Todos os esforços da publicidade, que é rainha sobretudo aqui,
dirigem-se à multidão. Duas coisas importam-lhe: que a mudança

3
Ver Marcel Malcor, Nova et Vetera, janeiro/março de 1929.
4
“L’économie contemporaine”, em Nova et Vetera, janeiro/março de 1929.

123
CAPÍTULO 5

seja suficientemente frequente, o mais frequente possível, e que


se possa adotar uniformemente, quase instantaneamente, de
cima a baixo, na escada das fortunas... sob a forma original ou a
de um sucedâneo”.
Porém de nada serviriam as louvações ao consumo e sua
permanente incitação, se não se lhe facilitasse ao homem a
possibilidade de consumir. Para isso, foi organizado como a coisa
mais natural do mundo o crédito ao consumo. “O modo normal de
venda – sobretudo nos Estados Unidos – de um automóvel, de um
fonógrafo, de uma cadeira, de uma colher, é a mensalidade. Não
existe setor algum ativo da Economia que não tenha organizado
de modo crônico, regular e em vista de um progresso rápido, a
venda a crédito. Segundo um observador simpatizante dos
Estados Unidos, o crédito flutuante do comércio sobre a clientela
no varejo é de 7 bilhões de dólares (1926); o público está sempre
atrasado em um ano com relação a suas entradas”.5

CONSUMO INVESTIDO

É impossível estabelecer com mais evidência que a preocu-


pação econômica se concentra agora na aceleração do consumo.
Aceleração perniciosa, porque com ela se busca que o ho-
mem gaste por gastar; gaste sobretudo no inútil, em diversões,
caprichos, num luxo que não condiz com sua condição social.
Recorde-se, por exemplo, a popularização das meias de seda,
dos gastos de penteadeira entre as mulheres, etc.
Na realidade, o consumo da economia contemporânea é

5
Marcel Marcor, Nova et Vetera, julho/setembro de 1931.

124
O consumo

totalmente oposto ao consumo de uma economia ordenada


segundo as exigências naturais. Nesta, o consumo é a finalidade
da vida econômica. O que se produz é para proporcionar ao
homem o que necessita para uma vida humana, dentro de sua
condição, como dizia Santo Tomás (II-II, q. 118, a. 1). O consumo
está ordenado segundo as exigências humanas da vida de cada
um. Há um profundo sentido da hierarquia. E por sua vez, o
consumo regula, como fim, o comércio, a moeda, a produção. A
economia está colocada sob o signo do humano; serve ao homem
assim como o homem por sua vez serve a Deus.
Porém dirá alguém: mencionar isso não implica um evidente
retrocesso na marcha retilínea da humanidade que corre ao
progresso? Corre tanto que está a ponto de chocar-se.
Como há um investimento, segundo dizíamos, no processo
econômico, o consumo está pervertido em si mesmo. Conso-
me-se mal, e se consome mal para que o comerciante possa
liquidar com lucro seus estoques, e os produtores possam im-
primir velocidade a suas máquinas, e os banqueiros possam
multiplicar seus produtivos créditos.
Tão certo é que o consumo é arrastado à força por todo o
processo econômico que se prefere antes destruir enormes
toneladas de café, milho, trigo etc., contanto que assegure o
lucro, que alimentar os milhões de famélicos.
Lógica de uma economia, repito, que se esqueceu da lei elemen-
tar da vida econômica, exposta por Santo Tomás (II-II, q. 118, a. 1),
quando diz: os bens exteriores têm razão de coisas úteis ao fim. De
onde é necessário que o bem do homem em relação a eles esteja
devidamente regulado. Ou seja, que o homem busque a posse dos
bens exteriores enquanto são necessários à sua vida segundo sua
própria condição. E comenta o Cardeal Cayetano: “com o nome de

125
CAPÍTULO 5

vida, entende-se não só o alimento e a bebida, senão tudo o que é


conveniente e deleitável, dentro da honestidade”.
Portanto, a lei próxima da vida econômica deve ser o consumo
do homem segundo sua própria condição.
Produz-se para consumir; comercia-se para consumir; em-
prega-se o dinheiro como meio de circulação das riquezas que
assegure um consumo mais abundante e variado...
O lucro como tal – única lei da economia moderna – é sempre
severamente condenado numa economia cristã. Tanto que na
época dos Padres da Igreja (séculos III ao VII) – para reagir contra
o espírito puramente lucrativo da economia pagã –, chegou-se a
reprovar o mercantilismo, onde se busca preferencialmente o lucro.
São Paulo, em sua carta a Timóteo (6, 6-10), diz: “Sem dúvida,
grande fonte de lucro é a piedade, porém quando acompanhada
de espírito de des¬prendimento. Porque nada trouxe¬mos ao
mundo, como tampouco nada poderemos levar. Tendo alimento
e vestuário, contentemo-nos com isso. Aqueles que ambicionam
tornar-se ricos caem nas armadilhas do demônio e em muitos
desejos insensatos e nocivos, que precipitam os homens no
abismo da ruína e da perdição. Porque a raiz de todos os males é
o amor ao dinheiro. Acossados pela cobiça, alguns desviaram-se
da fé e se enredaram em muitas aflições.”
Para muitos, este texto parecer-lhes-á de valor ascético,
mas não econômico; ao contrário, parecer-lhes-á destruidor
da economia. Não é assim, no entanto. É um texto eminen-
temente econômico. Porque precisamente o último versículo
lido nos explica o caráter antieconômico de uma pretendida
economia regulada pela ganância: aparta o homem da fé, ou seja,
da vida cristã, e lhe submerge no corpo e na alma as preocupações
puramente econômicas – primeiro erro. E lhe sujeita a muitas

126
O consumo

penas, porque não lhe fornece o bem-estar econômico; ao


contrário, escraviza-lhe, como demonstra a economia contem-
porânea – segundo erro.
O mesmo bem-estar da economia exige, na medida do pos-
sível, a expulsão do lucro, e um movimento que frene todas
aquelas atividades que por sua própria inclinação tendem ao
lucro, como o comércio e as finanças.
Por isso, ao contrário dos escritos pagãos, que justificavam
o grande comércio e julgavam a pequena indústria e o pequeno
comércio como indignos de um homem livre, os Padres da Igreja
começaram desde São Paulo a restaurar o trabalho manual.
O próprio Santo Agostinho escreve que, se os trabalhos espirituais
não lhe tomassem tanto tempo, ele quereria imitar São Paulo – que
trabalhava em construir tendas de acampamentos –, exercendo
“um trabalho tão inocente como honesto, relativo aos objetos
de uso cotidiano, como os que saem de mãos dos ferreiros e
sapateiros, ou como os trabalhos do campo6.”
O trabalho, na realidade, sobretudo quanto mais em contato
com a natureza e de caráter mais criador, dignifica o homem,
enquanto que o lucro das atividades mercantis lhe embota,
impossibilitando a ele a dignificação sobrenatural.

O COMÉRCIO

Seria errôneo, no entanto, condenar o comércio como coisa


em si má. Santo Tomás soube equilibrar a justa doutrina, quando
ensina: “Há um câmbio ou negócio de dinheiro por dinheiro, ou

6
Alceu Amoroso Lima – Tristão de Ataíde, Esbozo de una Introducción a la Economía Moderna, pág. 168.

127
CAPÍTULO 5

de mercadorias por dinheiro, não para conseguir o necessário


para a vida, senão para buscar o lucro. E este negócio é o próprio
dos comerciantes. Este comércio, considerando em si mesmo, é
vituperável, porque está ao serviço da concupiscência do lucro, à
qual não tem termo, senão que tende ao infinito. E por isso, o
comércio, considerado em si mesmo, tem certa perversidade,
enquanto de si não tem um fim honesto ou necessário. Contudo,
o lucro que é o que se busca no comércio, ainda que em sua razão
não tenha nada honesto ou necessário, contudo não tem em si
nada vicioso ou contrário à virtude; de onde nada impede que
o lucro se ordene a um fim honesto ou necessário; e assim, seja
lícito o comércio. Como, por exemplo, quando alguém ordena o
rendimento moderado que busca no comércio para sustentação
de sua casa, ou para socorrer os indigentes; ou também, quando
alguém se dedica ao comércio para prover a necessidade pública
a fim de que não faltem em sua pátria o necessário para a vida,
e pede lucro, não como um fim, senão como estipêndio de
seu trabalho.”
De toda esta doutrina se depreende que, para justificar o lucro
dos comerciantes e o próprio comércio, é necessário ordená-lo
a um fim honesto e necessário, como o consumo. Sem esta
ordenação, o comércio revela-se mau e prejudicial, como
acontece no capitalismo.
Por isso, na economia moderna “industrialista”, “lucrativa”,
“impessoal ou anônima”, “quantitativa” – em oposição a manual,
consumidora, pessoal e qualitativa –, “provocadora com base em
reclames”; o comércio é rei e o Setor Bancário é imperial.
A mesma estatística ajuda a demonstrar o incremento des-
proporcionado do comércio com relação à própria indústria.

128
O consumo

“Assim, por exemplo, na França as profissões comerciais


compreendiam 900 mil indivíduos sob o segundo império, e hoje
2 milhões e 700 (1921); multiplicado por três. Em igual tempo,
a população industrial não se tinha multiplicado, senão por
1,6. Na Inglaterra, há dois comerciantes para cada agricultor.
Na América, um para dois, aproximadamente. É que é uma
atividade lucrativa.”7
Ferdinand Fried observa como os primeiros “novos ricos” da
Alemanha; os sócios Otto Wolff e Ottmar Strauss, de Colônia,
que estão à frente da indústria mineira com uma fortuna de 50
milhões de marcos do ouro alemães cada um; e Peevckek, cujas
minas de linhito são avaliadas em 150 milhões; esses encontraram
o alicerce de sua fortuna no comércio. Porque o comércio fa-
vorece imensamente os grandes lucros.8
E a própria indústria formou grandes fortunas, porque é
primordialmente comercial, mercantil, com todos os lucros
fáceis e rápidos que esta importa.
Para alguém parecerá coisa exorbitante esta corrida do
consumo arrastado à força pela produção infinita, do comércio
infinito, das finanças infinitas. Que importa – dirá que vá antes ou
depois –, se está suficientemente assegurada? Que importa, so-
bretudo, se nunca como agora temos disposto de uma abundância
tão imensa? Poderá ser, dirá, que isso implique uma inversão mo-
ral; mas economicamente é um esforço que jamais a humanidade
logrou. A economia moderna é simplesmente grandiosa.
É sabido que a doutrina da Igreja não admite este divórcio

7
Marcel Malcor.
8
La Fin du Capitalisme, pág. 80.

129
CAPÍTULO 5

de valores. Não pode haver uma economia, verdadeiramente


econômica, que viole a hierarquia dos valores humanos. Poderá
parecer grandiosa, mas é imoral, traz em sua raiz uma força
destrutiva espantosa que acabará com o homem e acabará
com ela. Se é imoral é antieconômica.
Não obstante, a realidade econômica atual revelar-nos-á
em um fato característico o cumprimento desta doutrina.

A FALÊNCIA DE UMA ECONOMIA-LUCRO

Dissemos antes que o esforço supremo da economia contem-


porânea é alargar ao infinito o consumo do homem. Exige isso
a sua própria vida. Se logra ampliar o consumo de sorte que
se ponha este a par de sua capacidade produtora, o capitalismo
liberal está salvo e seguirá reinando no universo. Porque, qual é
hoje a situação econômica do mundo? Há evidentemente uma
supercapacidade financeira, como fica demonstrado no quarto
capítulo. Há dinheiro de sobra, já que se encontra acumulado
sem poder ser aplicado, investido... As finanças estão saturadas.
A supercapacidade financeira provocou uma supercapacidade
mercantil, saturando os mercados mundiais. Todos os países
estão hoje mais ou menos em condições de se bastarem a si
mesmos, pelo menos para o tipo comum de produtos agrícolas
e industriais. No estado de crescimento do liberalismo, quando
a Inglaterra exportava seus produtos manufaturados em troca
das matérias-primas do mundo, era fácil conceber o intercâmbio
comercial; mas hoje, que todos dispõem de maquinarias pro-
dutoras e em grande parte das matérias-primas, alcançou-se
quase uma saturação. Isso explica que o mundo se divida em

130
O consumo

campos econômicos fechados. Cada um deles está em condições


de produzir para o mundo: os Estados Unidos por um lado, a
Inglaterra no outro, a Alemanha em terceiro lugar, a Rússia em
seguida e o Japão no Extremo Oriente. O ritmo protecionista do
mundo é consequência da saturação mercantil.
A supercapacidade financeira e mercantil provocou a su-
percapacidade industrial e agrícola de que se fala no segundo
e terceiro capítulos.
Não obstante, há saturação, estancamento nas Finanças,
mercado, indústria. Para que isso caminhe, é necessário que
marche o consumo, que vem na roda detrás; que caminhe ligeiro,
porque o outro anda em corrida infrene.
Pois bem, o consumo não pode, não digo correr, mas cami-
nhar. Porque para que o consumo caminhe e corra é necessário
que o custo de vida seja barato, e os recursos da gente escassos.
Precisamente, o custo de vida é altíssimo; e os recursos, muito
escassos, porque toda a economia está invertida. Espero que
a demonstração seja concludente; desta forma, ficará igualmente
demonstrada a atualidade perene do pensamento tomista.
Só ele pode diagnosticar sobre o mal econômico do mundo e
prognosticar acertadamente.
O custo da vida tem que ser altíssimo. Porque entre o produtor e
o consumidor se encontram o financista, o comerciante e o Estado;
três entes que de si não produzem e que consomem imensamente.
Logo, sua manutenção tem que tributar sobre o custo de vida.
Ademais, há outro fator que intervém para aumentar o
custo, e é a desmedida divisão do trabalho. Porque, ainda que
pudesse ser certo que a divisão do trabalho, como tal, diminui
o custo do produto, é de notar que as cargas correspondentes

131
CAPÍTULO 5

ao financista e ao Estado em cada etapa do trabalho se vão


adicionando em cascata, de sorte que fazem multiplicar por
dois, por três e ainda por mais o preço do custo bruto de uma
fabricação um pouco complexa.9 Mas, esqueçamo-nos desta
circunstância e nos atenhamo ao fato de que entre o produtor e o
consumidor estão situados o financista, o comerciante e o Estado.
Não obstante, os direitos do financista têm aumentado em
forma desmedida tanto em qualidade de empréstimos públicos
(somente as dívidas da guerra mundial fazem pesar nos livros do
mundo, segundo os cálculos de Herr Renatus, 2 trilhões de marcos
do ouro alemães)10 como em qualidade de renda industrial e
fundiária e em qualidade de créditos bancários, ao mesmo tempo
em que o dinheiro mesmo foi passando da mão do produtor às
mãos do financista. Isso no que concerne ao capital, que se
considera produtivo.
Porque se se tem em conta que há enorme capitais que
agora, pela paralização industrial, não produzem e que, no
entanto, cobram seu rendimento fixo como se produzissem,
a proporção aumenta de modo fantástico; Ferdinand Fried,
seguindo Schmalenbach, sublinha isso com relação à Alemanha.11
“Trabalhamos – diz – não só para pagar os socorros aos 4 milhões
de desempregados, senão para pagar os juros e amortizar as
máquinas imobilizadas, ou seja, para garantir sua renda do capital”.
Os direitos do comerciante – e inclua-se como comerciante
o pequeno, médio e grande comércio, e ainda neste se distinga

9
Marcel Malcor, Nova et Vetera, jul./set. de 1931.
10
Artigo de Ramiro de Maeztu, La Prensa, 20 de out. de 1932.
11
La Fin du Capitalisme, pág. 547, 78.

132
O consumo

um visível progresso desde o simples importador até o poderoso


monopólio mundial – têm-se multiplicado, e será fácil consi-
derar a enorme rede de intermediários que se enriquecem sem
produzir. Sem produzir, digo, não a modo de crítica, senão para
destacar a enorme carga que há de pesar sobre o custo de vida.
Isso, situando a nós no melhor dos casos (puramente teórico),
de que os comerciantes se contentem em lucrar; porque na
realidade hoje roubam de forma descarada, se não o pequeno
comerciante que não pode, nem o mediano que está falido,
certamente o comerciante tipo monopolizador mundial.
Para isso, dispõem de uma organização perfeita, sólida, que
denominam consórcio, cartel, concern, trust, e que não é outra coisa
que o que Aristóteles denomina “monopólio” (Politicorum, liber
I, c. IX). Monopólios que definem à vontade o preço mais barato
possível ao produtor, e o mais caro ao consumidor.
Ademais do financista e do comerciante, há um parasita
perigoso que se interpõe entre o produtor e consumidor para
encarecer excessivamente a vida. É o Estado burocrático mo-
derno, que pesa como gravosa carga no simples município, na
ordem provincial e na nacional.
O Estado moderno revela-se hoje uma vulgar sociedade de
socorro mútuo ou uma agência de aplicações. Seus orçamentos
são enormes; os impostos crescem a cada dia, de sorte que
equivalem à simples expropriação.
Pierre Lucius (La faillite du Capitalisme), estudando a influência
deste fenômeno na atual crise, observa como na produção de
certos produtos as cargas fiscais aumentaram, do ano 1913 a
1929, em uns 100%; e reproduz o testemunho de Gastón Jéze,
professor na Faculdade de Direito de Paris, que diz: “O déficit é a
regra na Inglaterra, na França, na Itália, na Alemanha, para citar

133
CAPÍTULO 5

apenas os grandes Estados. A causa que o produz é permanente;


sua influência não faz nada além de aumentar. É o espírito
demagógico”. E entre nós, é causa fácil de comprovar.
Não obstante, com estes três agentes que devoram o dinheiro
sem produzir, a vida tem que ser exageradamente cara. “Thorald
Rogers, em um estudo cujo valor objetivo jamais se discutiu,
escrevia em 1880, depois de uma longa enumeração do preço
dos alimentos, dos materiais, dos salários e especialmente dos
salários de edificação, em 1450: “Se o leitor tem a paciência
de fazer os cálculos necessários, constatará que, excetuando
os aluguéis, meu multiplicador 12 (entre o preço de vida para
1450 e o preço par a 1880) é bastante exato”. Com relação à Torre
de Merton levantada em Oxford, diz que seu custo, avaliando
em moeda moderna foi então de 1.630 libras. Construído em
nossos dias, custaria de 4 a 5 mil libras. Dizia isso em 1880;
hoje teria que elevar seus custo em uns 25%”.12
Não obstante, enquanto a vida tem encarecido, os recursos
dos particulares – em especial do operário e do empregado – tem
se escasseado.
Primeiro porque se lhes retirou o dinheiro com o empréstimo
a juros, segundo dizemos no quarto capítulo. Segundo, pelo
fenômeno do progresso técnico, que provoca o desemprego e
a baixa dos salários.
Logo, se a vida é cara e os recurso escassos, o consumo não
pode correr, e nem sequer caminhar.
A economia moderna, que vive do movimento, tem que se
paralisar e morrer: resultado lógico de uma economia “invertida”.

12
Marcel Malcor, em Nova et Vetera.

134
O consumo

Por quê? Porque ao impulsionar as finanças, foi-se pas-


sando o dinheiro nas mãos do pobre às mãos do rentista; das
mãos do produtor às do financista internacional. Criou-se um
enorme capital, mas mortífero. Ao impulsionar o comércio e
a indústria, como se realizou às custas do jornaleiro que foi
desprezado pela máquina, este foi caindo na miséria.
Logo, no momento preciso em que a economia necessita
acelerar o consumo para seguir vivendo, este se nega a caminhar.
A razão é clara: tem-se feito do consumo o último no processo
econômico, quando lhe corresponde o primeiro lugar.

O PREÇO JUSTO

A economia moderna está parada. A economia moderna tem


que estar parada pela mesma lógica de sua essência “invertida”.
O que se poderia fazer para que esta economia funcione?
Muito simples. Voltar a impor a todas as coisas o preço justo, de
que falam Aristóteles e Santo Tomás. Justo preço, que num regime
econômico ordenado, onde existe uma justa concorrência se
estabelece pela lei da oferta e da procura. Lei esta muito di-
ferente da que conheceu e aplicou o liberalismo. Porque, na
verdade, o liberalismo eminentemente burguês, ao destruir o
regime corporativo, aplicou injustamente a lei da oferta e da
procura no preço dos salários, em prejuízo do trabalhador,
que recebeu salários de fome, e no preço das mercadorias, em
prejuízo ao consumidor, que pagou por artigo mau e caro.
Não obstante, “O preço justo ou valor de câmbio de uma coisa
computado em moeda depende do conjunto de objetos disponí-
veis, do conjunto dos recursos e do conjunto das vontades de
comprar e vender que se encontram num dado mercado. Ou

135
CAPÍTULO 5

se se prefere dizer, a lei da oferta e da procura: num mercado,


quanto mais considerável são as quantidades oferecidas pelos
vendedores, sendo iguais às demais coisas, os preços serão
menores; quanto menores são as quantidades oferecidas,
maiores são os preços. Quanto mais consideráveis são as
quantidades pedidas pelos compradores, maiores serão os
preços; quanto menores sejam as quantidades pedidas, menores
serão os preços.”13
E como atualmente a oferta, graças ao fenômeno da su-
perprodução, tende ao infinito, e a demanda, em função do
desemprego, tende a zero, o justo preço deve tender a zero. O
justo preço das matérias-primas e das manufaturadas de uso
corrente deve ser quase zero.
E esta solução coincide exatamente com a que propusemos
no segundo capítulo ao afirmar a necessidade de uma mais justa
distribuição de bens, como o revelam os enormes estoques
armazenados, por uma parte, e por outra, essa massa enorme
de gente na miséria, porque seu único capital disponível, o
trabalho, não é requerido.
Portanto, se as riquezas se armazenam e se desperdiçam
porque há superabundância, seu valor é igual a zero. Se o trabalho
não é requerido e enorme massa de gente vaga no desemprego, é
porque vale zero.
Logo, a justiça exige uma pura e simples troca: zero por
zero. As coisas devem quase que serem presenteadas.
Não se invoque contra esta doutrina o direito de propriedade.
Porque a propriedade, como explicamos no segundo capítulo,

13
Valére Fallon, Économie Sociale.

136
O consumo

está condicionada pelo destino das riquezas a todo o gênero


humano, ao comum dos homens. É um meio necessário, ainda
assim um meio, para assegurar esse fim; ou seja, que ninguém se
veja privado do que necessita para viver. Se se fere este direito
primordial, sua justiça é duvidosa, seu fundamento desaparece.
E então o Estado pode intervir para uma nova repartição de
bens, ou ao menos, para pôr em vigor o justo preço.
Solução simples e justa, mas fantástica, porque traria a fa-
lência declarada de todas as empresas financeiras, comerciais
e industriais. O preço de venda deveria ser muito inferior ao
preço de produção. Imagine-se que catástrofe econômica.
No entanto, é esta uma medida inevitável. Medida que o
homem deveria impor a si mesmo, por espírito de penitência.
Recorde-se a palavra do Papa, em sua Caritate Christi Compulsi14,
quando afirma que só a oração e a penitência podem devolver
ao mundo a paz perdida. “Nem os tratados de paz – diz –, nem
os mais solenes pactos, nem os convênios ou conferências
internacionais, nem os mais nobres e desinteressados esforços
de qualquer homem de Estado, forjarão esta paz, se antes não
se reconheçam os sagrados direitos da lei natural e divina.
Ninguém, dirigente da economia pública, nenhuma força
organizadora, poderá levar jamais as condições sociais a uma
pacífica solução, se ante no mesmo campo da economia, não
triunfa a lei moral de Deus.”
Lei moral que só a oração e a penitência irão impor no mundo
atual. Porque a oração e a penitência dissiparão e repararão a
primeira e principal causa de toda rebelião e de toda revolução, ou

14
Pio XI, Encíclica Caritate Christi Compulsi, 1932. (Nota do editor)

137
CAPÍTULO 5

seja, a rebelião contra Deus. Medida esta que se o homem resiste


a se impor, irá impô-la a lógica terrível, inflexível, da mesma
realidade econômica.
Há que não se enganar acerca da situação econômica. É terri-
velmente desesperante. O Papa diz que desde a partir do dilúvio,
dificilmente se tem visto um mal-estar espiritual e material tão
profundo e tão universal como este.
Se o mal é grave, necessita-se de remédios pesados e do-
lorosos. Equilibremos, portanto, o consumo com a produção,
recorrendo à única solução, que é dolorosa, mas é a única.
O momento é único no mundo. Os mesmos povos, diz o Papa,
estão chamados a se decidirem por uma escolha definitiva: ou
eles se entregam a estas benevolentes e benéficas forças espiri-
tuais – a oração e a penitência – e se voltam humildes e contritos
ao Senhor, Pai de misericórdia; ou se abandonam, com o pouco
que ainda fica de felicidade sobre a terra, em poder do inimigo
de Deus, a saber, ao espírito da vingança e da destruição.
Daqui que a solução última para remediar este resultado
catastrófico da economia “invertida” seja uma solução espiritual.
Isso não é de estranhar, porque a enfermidade que a rói é também
espiritual; é o pecado da ganância, que lhe inocula como sua
própria lei o individualismo do mundo moderno saído da Reforma.
Por fim, a produção econômica está ordenada ao consumo;
o consumo está ordenado à vida material do homem; sua vida
material à sua vida espiritual; e esta, a Deus. Todas as coisas
devem ser à medida do homem, e o homem à medida de Deus.
O homem é o centro da terra, e Deus é o centro de todo o
universo. Os anjos glorificam-lhe no céu, os homens devem
servir-lhe na terra e os demônios temam ante Ele de espanto
no inferno.

138
CAPÍTULO 6

Ordem econômico-social

𝔸 té aqui estudamos a estrutura interna dos diversos valores


econômicos (a produção da terra, a produção industrial
com seus elementos de trabalho e capital, as finanças, o consumo),
e esboçamos o ordenamento hierárquico de todos esses valores no
conjunto da economia.
O consumo, dizíamos, deve ser a medida próxima da eco-
nomia, ou seja, todos os valores econômicos devem tender e
se ordenar ao consumo. Há de produzir para o consumo; há
de comerciar para assegurar um consumo mais abundante e
equitativo; há de empregar a moeda e seu investimento no capital
para o consumo. O consumo, por sua vez, será medido pelas
exigências materiais do homem, segundo a condição de cada

139
CAPÍTULO 6

um; empregando as palavras do Doutor Angélico, diremos que


o homem deve buscar com medida a possessão das riquezas exteriores
enquanto são necessárias à sua vida segundo sua condição social.
Em resumo, que a medida de tudo é o homem, assim como
o homem está medido por Deus. Deus está na cúspide de toda a
ordem humana: porque o homem há de alcançar-lhe na caridade
que culmina na contemplação dos Santos. Mas para isso, há de
ordenar toda a vida de suas operações internas pela prática
das virtudes morais. Na ordem de seu espírito, a medida do
homem é o Bem sem medida. Há de tender a Deus com todo o seu
coração, de toda a sua alma, de todo o seu espírito e de todas as suas forças
(cf. Mc. 12, 30). Nesta ordem, as perspectivas do progresso são
infinitas, porque seu espírito tende a Deus, que é o Bem Infinito.
Mas Deus que, por um desígnio de sua misericórdia, cons-
tituiu-se na medida sem medida do homem, não destrói a
ordem humana; ao contrário, exige-a como um sustento que
possa suportar as infinitas projeções do Bem Divino. A Economia,
pois, destinada a servir o homem, guarda toda sua realidade como
um humilde instrumento que provê ao homem de seu pão mate-
rial para que esteja assim em condições de comer o pão espiritual.
Hierarquia admirável de valores que, ao restituir cada rea-
lidade a sua própria função, protege as inferiores com o apoio
das superiores.
Em contrapartida, a economia moderna que investe todos os
valores econômicos e humanos, fazendo do lucro infinito o objeto
próprio da economia e de toda a vida humana, destrói o homem e
a economia, depois de ter lesionado os sagrados direitos de Deus.
Creio tê-lo demonstrado nos capítulos que precedem.
Por isso, é necessário arrancar o lucro da Economia. Mas

140
Ordem econômico-social

como o lucro é um instinto perverso que sempre existirá em


comum dos homens, é necessário ao menos não lhe glorificar,
não lhe erigir como norma da vida, não fazer dele o próprio
motor do regime econômico. Se existe lucro, que seja como
uma tendência viciosa do indivíduo e não como uma tendência
normal exigida pelo mesmo conceito de economia.
Pelo contrário, um regime econômico verdadeiramente
humano deve estar de tal forma estruturado, que tendo em conta
os instintos perversos que aninham no coração do homem,
impeça-os e, se possível, frene-os. Os valores de uma construção
econômica devem ser exercícios de virtudes e não prática de
vícios. Daqui que todo o empenho em demonstrar no presente
livro, as condições sob as quais podem e devem integrar-se numa
economia católica – a única verdadeiramente econômica – a pro-
priedade, o capital, o salário, o uso da máquina etc. Daqui igual-
mente que ao demonstrar a perversidade essencial do regime
econômico, chamado comumente de capitalismo, não insistiria
tanto em críticas que podem parecer próprias dos homens do
capitalismo, senão naquelas que revelam uma conformação
essencialmente viciosa do mesmo regime.
Em resumo, que tanto o capitalismo como o socialismo impli-
cam um conceito perverso da economia. Porque tanto um quanto
o outro é a instituição em sistema do vício nefasto da ganância.
Este vício aninhado em ambos sistemas revelar-nos-á, neste
capítulo, o individualismo ou liberalismo do capitalismo; a luta
de classes com a glorificação proletária do socialismo; de onde
resultará, como conclusão, que só o regime corporativo proposto
pela Igreja pode assegurar uma economia exorcizada do lucro
e, portanto, verdadeiramente humana.

141
CAPÍTULO 6

O LIBERALISMO

A ganância, como todo instinto vicioso, é ególatra. Glorifica


uma tendência do indivíduo; do indivíduo, digo, e não do homem,
para sublinhar o aspecto material, isto é, exigido pela matéria
quantitativa, de todo instinto vicioso. Se é uma tendência do indi-
víduo, é material; se material, tende à dispersão, à desintegração,
ao desatamento de vínculos que unem e protegem.
Daqui que o capitalismo seja um regime de desatamento,
de dispersão, de indivíduos que se desintegram como átomos
e que se entregam à concorrência desenfreada.
Por isso a Revolução Francesa, que dá como nascimento oficial
ao Capitalismo, depois de decretar a 3 de outubro de 1789, na As-
sembleia Nacional que se porá “no sucessivo emprestar dinheiro
a prazo fixo com estipulação de juros”, promulga a 17 de junho de
1791 a famosa lei “Le Chapelier”, pela qual se suprimem todas as
corporações e se proíbe a todos os cidadãos de restabelecê-las no
futuro em defesa de seus pretensos interesses em comum.

“Se violando os princípios da liberdade e da constituição – diz o Art.


3 da dita lei – os cidadãos de uma mesma profissão, arte ou ofício,
tomassem deliberações ou fizessem entre eles convênios, com o
objetivo de recusar de comum acordo, ou não acordar, senão a um
preço determinado, o concurso de sua indústria ou de seus trabalhos;
ditas deliberações ou convênios são declarados inconstitucionais,
como atentatórias à liberdade e à Declaração dos Direitos do Homem,
e de efeito nulo [...].”

Eis aqui, pois, interditada em nome dos Direitos do Homem,


a liberdade de associar-se. Eis aqui o homem condenado a ser
um mero indivíduo na dispersão infinita de outros milhões de

142
Ordem econômico-social

indivíduos. Todos os indivíduos, desatados dos vínculos que


protegem, encontram-se entregues à livre concorrência.
A pura liberdade (ou desatamento de vínculos), erigida em
sistema: liberdade de comércio e de câmbio; liberdade de trabalho
para homens, mulheres e crianças; liberdade absoluta para
contratar as condições de trabalho; liberdade para possuir em
forma ilimitada. Proscrição de toda regulamentação de trabalho
no que se refere ao salário mínimo, à duração da jornada, às
condições higiênicas da oficina.
Os indivíduos ficam desarmados entre si, sob a vigilância
do Estado, cuja missão se reduz, como a do agente de trânsito,
em garantir a liberdade individual. Qual é a sorte imediata deste
regime econômico? Exatamente a mesma de um jardim de
animais mansos e ferozes, em que de repente se derrubassem
os muros que separam uma espécie das outras. Que haveria de
acontecer? Que os fracos, presa das garras dos fortes, seriam
eliminados ou reduzidos a ominosa servidão, e em contrapartida,
os fortes exerceriam uma franca dominação. Porque validos os
fortes de sua prepotência, iriam despojando paulatinamente os
fracos de seus recursos e aumentando seu poder em proporção
do enfraquecimento destes, até impor, nas palavras de Leão
XIII (Rerum Novarum), sobre a multidão inumerável de proletários
um jugo que difere pouco do dos escravos.
História do capitalismo em sua dupla etapa da livre concor-
rência e da ditadura econômica, tão maravilhosamente traçada
por S. S. Pio XI, na Restauração da ordem social, quando escreve:

“Primeiramente, salta aos olhos que em nossos tempos não se acu-


mulem somente riquezas, senão que se criam enormes poderes e
uma prepotência econômica despótica nas mãos de uns poucos...

143
CAPÍTULO 6

Esta acumulação de poder e de recursos, marca quase originária


da economia moderníssima, é o fruto que naturalmente produziu
a liberdade infinita dos competidores que só deixou sobreviventes
os mais poderosos, que é amiúde o mesmo que dizer, os que lutam
mais violentamente, os que menos cuidam de sua consciência... a
livre concorrência destroçou-se a si mesma; a prepotência econômica
suplantou o mercado livre; o desejo do lucro, sucedeu a ambição
desenfreada do poder; toda a economia tem-se feito extremamente
dura, cruel, implacável.”1

O liberalismo econômico é essencialmente um despotismo


burguês do mesmo modo que a franca liberdade em um jardim
de animais é dominação do tigre. A Revolução Francesa, com o
pretexto dos direitos do homem, promulgou a dominação do
indivíduo-burguês, do homem-estômago, que desde esse dia
tem escravizado os valores espirituais com a sujeição da Igreja
ao Estado, os valores intelectuais com a servidão da inteligência
à técnica, os valores morais com a laicização da vida, os valores
políticos com o mito estúpido da soberania popular e os valores
econômicos com a dura escravatura operária.

O SOCIALISMO

A ditatura burguesa que estamos suportando, até quando se


prolongará? Não é fácil precisá-lo. Mas parece estar próxima a
hora em que dá lugar a seu meio-irmão despótico, o socialismo,
que arde em invejosas ânsias de suplantá-la.
O socialismo, com efeito, não é mais que o mesmo vício da

1
Pio XI, Encíclica Quadragesimo anno, sobre a restauração da Ordem Social em perfeita conformidade
com a Lei Evangélica ao celebrar-se o 40º aniversário da Encíclica “Rerum Novarum” de Leão XIII, nn. 105-109.
(Nota do editor)

144
Ordem econômico-social

ganância projetado no coração do que não tem nada, assim


como o liberalismo é a ganância no coração do que tem. É a glorifi-
cação ou sistematização da inveja da riqueza. É uma tristeza, como
diz Santo Tomás (II-II, q. 36, a. 2), a causa dos bens em que abunda o
burguês. Por isso, a sociedade econômica atual decompõe-se em
liberais e socialistas, ou seja, na ganância dos que possuem e na
ganância dos que não possuem.
Daqui que o socialismo tenha de ser contemplado em um
duplo estágio: no estágio de ascensão (preferencialmente, de-
mocracia social ou socialismo parlamentário), em sua luta por
apoderar-se das trincheiras burguesas com seu inclinado pro-
grama das reivindicações operárias e no estado de chegada,
com a realização do paraíso proletário (comunismo soviético).
No primeiro estágio mostra-se loquaz, lisonjeiro, oportunista.
É um terrível inimigo da concepção burguesa da vida. É um
corifeu indomável dos direitos desprezados do operário.
Isto em linhas gerais. Porque se um socialista, ainda neste
estágio, é brindado com uma decorosa ascensão à sociedade
burguesa... todas suas fobias desaparecem como por encanto.
No segundo estágio, quando se logrou uma definitiva domi-
nação socialista com o esmagamento da burguesia, o socialismo
é um supercapitalismo que mudou de amo. Porque, extinguida
a burguesia, substitui-se a ela por uma oligarquia composta em
parte de profissionais e em parte de proletários, e a sociedade
econômica no essencial com a mesma configuração que possuía
no liberalismo econômico.
Os antigos traços do capitalismo, fracamente delineados
pela lógica do liberalismo econômico, são agora sublinhados e
erigidos em lei pelo socialismo.

145
CAPÍTULO 6

Se no capitalismo aparece a sociedade humana dividida em


duas grandes classes, das quais uma na miséria trabalha em
benefício da outra que tem as riquezas acumuladas, no socialismo
ou comunismo aparece idêntica divisão: por um lado, o Estado nas
mãos de uns poucos, único capitalista que usurpa 70% do salário
operário, segundo acontece atualmente na Rússia; e por outro
lado, uma imensa multidão famélica, condenada à servidão por
decreto de lei.
A luta de classes pertence à essência do liberalismo econômico
e do socialismo. Porque como um e outro estão sovados na
ganância, a ganância acumula para si em detrimento dos demais
ou inveja o que outros possuem com desejos de lhes despojar, uma
e outro implicam uma luta eterna entre os possuidores. Luta de
classes, existente no liberalismo pela lógica da livre concorrência;
no socialismo, como imposição do programa proletário.

DOUTRINA CATÓLICA SOBRE A PESSOA HUMANA

Só o catolicismo, que possui uma doutrina recebida de


Deus, pode transcender este domínio dos instintos viciosos
que dividem um homem contra outro e compreender que, não
obstante a embalagem e aparências que diversificam os homens,
todos são igualmente pessoas humanas, regenerados pelo
sangue de Cristo e destinados a ver a Divina Substância. Já não
há distinção de judeu, nem grego; nem de servo, nem livre; nem tampouco
de homem e de mulher; porque todos sois uma coisa em Jesus Cristo, dizia
o Apóstolo São Paulo. Por outro lado, se a Substância Divina é
a riqueza reservada a todo homem, não é necessário andar
ansioso pensando o que comeremos nem o que beberemos,
nem como nos vestiremos (Mt. 6, 25-34).

146
Ordem econômico-social

A preocupação econômica ocupa um lugar muito secundário


entre as preocupações humanas. A riqueza deste mundo
não é mais valiosa que a pobreza; ao contrário, a pobreza foi
declarada bem-aventurada por Aquele que a santificou e exaltou
em sua desnudez do presépio e do Calvário, enquanto que a
riqueza foi chamada iníqua (Lc. 16, 9). O rico se não quer ouvir
a maldição de Jesus Cristo que disse: “Ai de vós, os ricos... mais
fácil é que um camelo passe pelo buraco de uma agulha que vós entreis
no reino dos céus...”, se não quer ouvir esta maldição, tem que
desapegar seu coração da posse da riqueza e empregar as que
Deus lhe concedeu no serviço humilde dos pobres.
A única riqueza do cristão é a Pobreza de Jesus Cristo. Por
isso, os primeiros convertidos à Fé, os fiéis, viviam unidos entre
si, e nada tinham que não fosse comum para todos eles; vendiam suas
posses e demais bens e os repartiam entre todos, segundo a necessidade
de cada um (Atos 2, 44).
É necessário deduzir daqui, não a estúpida e utópica implanta-
ção de um regime comunista, senão que, depois da manifestação
de Jesus Cristo ao mundo, há uma só coisa necessária (Lc. 10, 42),
diante da qual não há importância nem a pobreza nem a riqueza,
de sorte que tanto é perversa e néscia a ganância do rico que
acumula em detrimento do pobre, como a ganância do pobre
que arde em desejos de apoderar-se dos bens do rico. Estai
alerta – dizia Cristo (Lc. 12, 15) - e guardai-vos de toda ganância;
que não dependa a vida do homem da abundância de bens que ele possui.
É necessário compreender, sobretudo, que a diversidade
de condição natural social e de fortunas é coisa inteiramente
secundária diante da dignidade da pessoa humana chamada a
participar da Visão Divina.

147
CAPÍTULO 6

NECESSIDADE DE FUNÇÕES SOCIAIS

No entanto, esta diversidade de condição, natural, social e de


fortunas é necessária e conveniente; e portanto querida por Deus.

“Porque pôs nos homens – diz Leão XIII – a própria natureza gran-
díssimas e muitíssimas desigualdades. Não são iguais os talentos
de todos, nem igual o engenho, nem a saúde, nem as forças; e à
necessária desigualdade destas coisas segue-se espontaneamente a
desigualdade na fortuna. A qual é claramente conveniente à utilidade,
assim dos particulares como da comunidade; porque necessita para
seu governo a vida comum de faculdades diversas e ofícios diversos;
e o que em exercitar estes ofícios diversos principalissimamente
move aos homens é a diversidade da fortuna de cada um [...] Há na
questão que tratamos – prossegue Leão XIII – um mal capital e é o
supor e pensar que são certas classes da sociedade por sua natureza
inimigas de outras, como se ricos e operários tivesse-lhes feito a
natureza para estarem pelejando um contra os outros em perpétua
guerra. O que é tão oposto à razão e à verdade, que, pelo contrário,
é certíssimo que, assim como no corpo se unem membros entre si
diversos, e de sua união resulta essa disposição de todo o ser, que
bem poderíamos chamar simetria, assim na sociedade civil ordenou
a natureza que aquelas duas classes se juntem concordes entre si e
se adaptem uma à outra, de modo que se equilibrem.”2

Recordemos que a natureza exige diversidade de distintas


ordens hierárquicas segundo a dignidade das funções: ordem
sacerdotal, que cuida dos interesses espirituais; ordem política,
que se reserva ao destino terrestre das sociedades humanas;
ordem militar ou bélica, que se põe a serviço da coletividade
terrestre para defendê-la contra os possíveis transtornos

2
Leão XIII, Encíclica Rerum novarum, nn. 13s. (N. do e.)

148
Ordem econômico-social

exteriores; ordem intelectual e artística, que põe a serviço da


coletividade humana as imensas riquezas intelectuais; ordem
econômica, que procura, em benefício social, o necessário
para o bem-estar humano.
E nesta mesma ordem econômica há de haver diversidade de
funções segundo a diversidade de domínios, como a produção da
terra e da indústria, o comércio e as finanças; e dentro de cada
domínio, uma função distinta para o patrão e o operário, para
o amo e o servo, para o diretor e o empregado.
Para entender a concepção católica da vida social e econômica
é necessário admitir todas as diversas funções desde a mais
ínfima até a mais elevada e admitir a subordinação hierárquica
de uma a outra. A ordem sacerdotal é superior à ordem política, e
a política superior à econômica. Mas os três igualmente neces-
sários, assim como é necessário para a justa existência dos três
sua subordinação hierárquica. Se a ordem política suplanta a
sacerdotal, fica debilitada e exposta a ser suplantada pelo eco-
nômico. Assim, o poder real que se rebelou contra o sacerdócio,
quando Felipe, o Belo, levantou-se contra Bonifácio VIII, no
século XII, foi reduzido à servidão pelo poder econômico da
Revolução Francesa. E o poder econômico será agora destruído
pela revolução proletária.

O SINDICATO OPERÁRIO

Quanto direi é doutrina comum da Igreja, ensinada espe-


cialmente na Rerum novarum de Leão XIII e na Quadragesimo
anno de S. S. Pio XI.
Antes de tudo, recordemos contra o liberalismo e o socialismo
o sagrado direito e obrigação que compete a todo homem, ainda

149
CAPÍTULO 6

independentemente do Estado, de construir associações com as


quais defenda seus legítimos interesses. O direito de formar tais
sociedades privadas – diz Leão XIII – é direito natural para o homem,
e a sociedade civil foi instituída para defender, não para aniquilar o
direito natural.
Ademais, o homem não deve se encontrar desarmado frente
a outro homem como pretende o liberalismo, nem frente ao
Estado como quer o socialismo, porque num e noutro caso a
servidão é inevitável. É necessário, pois, restaurar, adotando-as
às necessidades do tempo presente (Leão XIII, na Rerum novarum),
aquela exuberante vida social, que noutros tempos se desenvolveu nas
corporações em grêmios de todas as classes (Pio XI).
Podemos reduzir a três os grupos econômico-sociais que
se devem instaurar numa economia para alcançar nas atuais
condições materiais (digo matéria em contraposição à forma,
segundo expus no primeiro capítulo) um ordenamento cristão da
vida econômica: os sindicatos propriamente ditos, a organização
das profissões, a organização interprofissional.
Os sindicatos formam-se livremente dentro da profissão
organizada que harmoniza os direitos do patrão e do operários.
Os sindicatos serão, pois, sindicatos dos operários e sindicatos
de patrões.
Evidentemente que os que sobretudo representam um inte-
resse especial são os sindicatos de operários, porque o operário
(o mesmo diga-se do empregado) se encontra em condições de
inferioridade frente ao patrão; necessita, portanto, valer-se da
união com seus companheiros de trabalho para fazer respeitar
seus direitos. No entanto, também é necessário o sindicato pa-
tronal, seja como condição prévia à organização das profissões,
seja sobretudo para uniformizar em todos os estabelecimentos

150
Ordem econômico-social

de uma mesma indústria o tratamento devido aos operários.


A Igreja urge muito atualmente aos sacerdotes e aos leigos
para que se apressem, sobretudo, na criação de sindicatos operá-
rios abertamente cristãos. Sindicatos que assegurem eficazmente
os direitos dos operários de uma mesma profissão ou indústria,
no que se refere ao salário, à duração e condições de trabalho, ao
desenvolvimento da instrução profissional, à regulamentação da
aprendizagem, aos seguros contra o desemprego e acidentes de
trabalho, à eficácia das greves legítimas etc.
Muito conhecida é hoje a sentença da Sagrada Congregação do
Concílio, pronunciada a 25 de junho de 1929 e dirigida ao bispo
de Lila, na qual resolve a dita Congregação um conflito surgido
entres industriais e operários daquela região, ao mesmo tempo
em que estabelece a doutrina da Igreja sobre o sindicato operário.
1. “A Igreja – diz a Sentença – reconhece e afirma o direito
dos patrões e dos operários a constituir associações
sindicais, sejam separadas, sejam mistas, e vê nelas um
meio eficaz para a solução da questão social.”
2. “A Igreja, nas atuais circunstâncias, estima moralmente
necessária a constituição de tais associações sindicais.”
3. “A Igreja exorta a constituição de tais associações
sindicais.”
4. “A Igreja quer que as associações sindicais se estabeleçam
e rejam-se segundo os princípios da Fé e da Moral cristã.”
5. “A Igreja quer que as associações sindicais sejam ins-
trumentos de concórdia e de paz, e a este fim sugere a
constituição de Comissões Mistas como meio de união
entre elas.”

151
CAPÍTULO 6

6. “A Igreja quer que as associações sindicais suscitadas por


católicos para católicos se constituam entre católicos, sem
desconhecer, contudo, que necessidades particulares
possam obrigar a proceder de outro modo.”
7. “A Igreja recomenda a união dos católicos para um
trabalho comum com os vínculos da caridade cristã.”
Não é possível expressar com mais energia a vontade da
Igreja, que quer, como coisa urgente, a sindicância católica.
Não nos deve admirar esta vontade imperiosa. A Igreja é Mãe,
e está seriamente preocupada com a sorte de milhões e mi-
lhões de seus filhos, operários que se inclinam ao socialismo,
comunismo e sindicalismo, com o perigo evidente de suas almas
batizadas, porque creem encontrar ali a defesa de seus legítimos
direitos trabalhistas.
É, portanto, necessário propulsar a sindicância trabalhista
católica para assegurar o bem-estar espiritual e material do
operário. A responsabilidade que incumbe aos sacerdotes e
leigos católicos é muito grave. Permanecerem indiferentes à
perdição de tantas almas prediletas do Senhor, que se perdem
pela incúria dos católicos, é um grave pecado de omissão. Se
nos tempos de fé cristã, os católicos movidos pela caridade
dedicavam-se ao resgate dos cativos, hoje é necessário fazer
exatamente o mesmo. A escravidão do operário, seja pela
opressão burguesa, seja pela opressão proletária, é evidente.
Há, pois, que os remir. Exige isso a caridade e a justiça social.
Nas nações cristãs da Europa, trabalha-se com bastante fruto
nesta cruzada de dignificação trabalhista. A Internacional Sindical
cristã conta com um contingente não insignificante de 3 milhões
de adeptos.

152
Ordem econômico-social

Entre nós não se tem feito quase nada. No entanto, é algo


gravemente exigido pela caridade e justiça social, como ensinam
os Sumos Pontífices. Ademais, o quanto se faça pela educação
cristã do operário é quase inteiramente inútil enquanto não se lhe
assegure um ambiente cristão de agrupação gremial.

REGIME CORPORATIVO

Por outro lado, a igreja recomenda vivamente a formação


de sindicatos como um passo à reorganização definitiva da so-
ciedade cristã, que terá de se efetuar com a organização legal
das profissões, ou para expressar-me na linguagem clássica
dos católicos sociais da França, com o regime corporativo.

“O regime corporativo – segundo a definição da União de Friburgo – é o


modo de organização social que tem por base a agrupação dos homens
segundo a comunidade de seus interesses naturais e de sua função
social, e por coroamento necessário a representação pública e distinta
destes diferentes organismos.”

Pio XI proclama a necessidade de que ressurja essa organi-


zação de vida profissional:

“o vício do já referido ‘individualismo’ levou as coisas a tal extremo,


que enfraquecida e quase extinta aquela vida social outrora rica e
harmonicamente manifestada em diversos gêneros de agremiações,
quase só restam os indivíduos e o Estado. Esta deformação do regime
social não deixa de prejudicar o próprio Estado, sobre o qual recaem
todos os serviços das agremiações suprimidas e que verga ao peso de
negócios e encargos quase infinitos.”3

3
Quadragesimo anno, art. 5: “Restauração da ordem social”, site oficial do Vaticano. (N. do e.)

153
CAPÍTULO 6

ORGANIZAÇÃO PROFISSIONAL

Imposta, pois, a formação de grupos sindicais distintos e inde-


pendentes entre si (sindicatos de operários e sindicatos de patrões
numa mesma indústria ou profissão), agrupam-se estes no corpo
profissional. Um comitê misto, composto em número igual de de-
legados dos dois grupos (patrões e trabalhadores), exercerá, com
reconhecimento legal, o governo da profissão. Determinará as
condições gerais de trabalho obrigatórias para todos os membros
da profissão, sejam empresários, empregados ou operários; con-
trolará seu cumprimento por meio de inspetores especialmente
designados; julgará em casos de infração; prevenirá os conflitos
entre patrões e operários; e administrará os bens corporativos.
A constituição destes corpos profissionais, como organismos
sociais, ainda que investidos de autoridade pelo reconhecimento
legal, está exigida pela doutrina social da Igreja que expõe Pio XI
na Quadragesimo anno.

Depois de expor “de fato hoje no mercado do trabalho a oferta e a pro-


cura dividem os contratadores em duas classes ou campos opostos, que
encarniçadamente se digladiam. Esta grave desordem – prossegue –
leva a sociedade à ruína, se não se lhe dá pronto e eficaz remédio.
Mas a cura só então será perfeita, quando a estas classes opostas,
se substituírem organismos bem constituídos, ordens ou profissões,
que agrupem os indivíduos, não segundo a sua categoria no mercado
do trabalho, mas segundo as funções sociais, que desempenham. Assim
como as relações de vizinhança dão origem aos municípios, assim os
que exercem a mesma profissão ou arte são pela própria natureza
impelidos a formar colégios ou corporações; tanto que muitos julgam
estes organismos autónomos, senão essenciais, ao menos naturais
à sociedade civil.”4

4
Quadragesimo anno, “Harmonia entre as diversas profissões” (no art. 5), site oficial do Vaticano. (N. do e.)

154
Ordem econômico-social

ORGANIZAÇÃO INTERPROFISSIONAL

Uma vez organizadas as distintas profissões será necessário


organizá-las todas, em conjunto, segundo a hierarquia de seus
respectivos fins dentro do caráter nacional da produção. É isto
a organização interprofissional de que fala igualmente Pio XI.
Para isso, constituir-se-á um órgão diretivo de toda a economia
nacional, integrado por delegados das diferentes profissões
organizadas (patrões, técnicos, empregados, operários), em todos
os domínios da produção agrícola, pecuária, industrial, comércio
e finanças, para que se estabeleça nesta forma um verdadeiro
organismo econômico-social a qual possam aplicar-se – diz
o Papa – as palavras do Apóstolo acerca do Corpo místico de
Cristo: todo corpo ligado e unido recebe, por todos os vasos e condutos
de comunicação segundo a medida correspondente a cada membro, o
aumento próprio do corpo para sua perfeição mediante a caridade.
A atividade econômica, cujo ordenamento essencial delinea-
mos nos capítulos precedentes, logrará assim um ordenamento
efetivo. O consumo será a grande lei da economia. A produção da
terra recobrará sua função primeira com uma fisionomia tipo
rural e doméstica; seguirá a produção industrial, onde ademais da
grande empresa terá um impulso poderoso o artesanato restau-
rado; virão logo as profissões comerciais e os organismos estáveis
de financiamento da produção; estes organismos não mais sobre
a base do empréstimo a juros, que será resolutamente desterrado,
senão sobre a base de capitais que se arriscarão na produção, com
as vantagens e desvantagens conseguintes.
Nesta forma, o regime econômico assim realizado não será o
capitalismo moldado nas corporações (utopia que muitos incons-
cientemente pretendem), senão um ordenamento econômico

155
CAPÍTULO 6

novo, do qual na verdade a ganância tenha sido desterrada; e que


se os homens procedem por ganância, não seja em virtude do re-
gime econômico, senão em certo modo como contrariados por ele.
Porém para a eficácia e estabilidade de um tal regime não
convém de nenhuma maneira que os indivíduos se sintam coar-
tados ou violentados. Uma alma deve vivificar este corpo. A ideia
de que todos formamos um corpo com um interesse comum deve
penetrar a consciência de todos como impulso da vida econômica.
A vida não é luta de uma classe contra a outra, como supõe
o liberalismo e o socialismo, senão colaboração. Colaboração
dentro de uma empresa, para um melhor e mais equitativo
rendimento; colaboração dentro de uma mesma profissão,
para evitar uma competição desleal ou funesta; colaboração
interprofissional, para realizar a grandeza de uma útil produ-
ção nacional. Colaboração também na ordem internacional,
porque se as nações dependem de grande maneira uma das outras, e
mutuamente se necessitam (Pio XI),5 hão de estreitarem-se para uma
feliz harmonização de interesses.

O ESTADO E O REGIME CORPORATIVO

Assegurados, assim, os direitos de todos os particulares pela


agremiação sindical, profissional e interprofissional, assegurados
igualmente os interesses econômicos do país ao mesmo tempo que
seus outros interesses culturais, intelectuais etc., na hierarquia de
seus respectivos fins, é possível determinar a função própria
do Estado. O Estado é gerente do bem comum. Tem, portanto, que

5
Cf. Quadragesimo anno, em “Princípio diretivo da economia”, art. 5. (N. do t.)

156
Ordem econômico-social

“dirigir, vigiar, urgir, reprimir, conforme os casos e a necessidade requeiram”


(Pio XI)6 a todo o organismo social. Mas não deve se substituir a
atividade do organismo. Não deve absorvê-la, senão protegê-la,
tendo bem entendido, como diz Pio XI, “que quanto mais per-
feita ordem hierárquica reinar entre as várias agremiações, segundo
este princípio da função ‘supletiva’ dos poderes públicos, tanto maior
influência e autoridade terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o
estado da nação.”7
A atividade econômica não se confunde com a atividade
política. A autoridade política dirige eficazmente as forças sociais
preexistentes, e entre elas as econômicas, orientando-as ao bem
comum. Pressupõe, então, a existência de atividades sociais
que têm uma constituição e movimento próprio. A atividade
econômica organizada no regime corporativo fica então fora
do estado, ainda sob a regulação política.
O caráter puramente social, em contraposição a estatal,
das corporações há que destacá-lo resolutamente. As cor-
porações devem possuir vida própria e não emprestada de
nenhum poder superior.
Neste sentido, há que reconhecer que as experiências de
Corporativismo realizadas pela Itália, Áustria, Portugal e Alemanha
não lograram ainda valor próprio. Enquanto não possam dar ga-
rantia de sobrevivência a uma crise sempre possível do Estado, não
podem se considerar arraigadas. Resultam ser criações artificiais.

6
Quadragesimo anno, art. 5: “Restauração da ordem social”. (N. do t.)
7
Ibid.

157
CAPÍTULO 6

INSTAURAÇÃO DO REGIME CORPORATIVO

Não implica isto de conhecer os esforços destas nações por


endireitar a economia na única senda legítima. Mas tampouco
nos iludamos facilmente pelo despontar destas experiências
assim como não deveríamos nos desanimarmos se fracassassem.
A dificuldade grande é resolver como seria factível a instau-
ração de um regime corporativo. Deve instaurá-lo desde cima o
Estado, como uma coisa feita, ou melhor, deve ser preparado de
baixo, como uma exigência da mesma vida econômica que por si
o reclame?
São indispensáveis a ação de cima, que estabelece, e a de baixo,
que prepara. Porque se tudo vem de cima, será uma criação artifi-
cial sem raízes, e se se espera que surja de baixo, em vão se aguar-
da que rompa o ambiente saturado de ganância, que por definição
é contrário à colaboração própria do Regime Corporativo.
O Estado deve impô-lo; mas antes deve sentir-se a exigência de
sua imposição na consciência das massas.
Quiçá esta exigência se fará sentir de um modo realmente
perceptível nas consciências das massas econômicas hoje embo-
tadas, quando seja mais culminante o ponto do caos, e se tenham
esgotado as pretendidas soluções não experimentadas: que surja
então um mentor de povos que a Providência envia nos momen-
tos mais desesperados, e o Regime Corporativo ficará arraigado
para saúde e bem-estar econômico dos povos.

A COLABORAÇÃO ECONÔMICA INTERNACIONAL

Só uma vez assegurada a economia e a vida nacional, por


um funcionamento vital autônomo sob a enérgica proteção

158
Ordem econômico-social

do Estado, será necessário pensar na ordenação da atividade eco-


nômica internacional. A organização internacional da economia
não só atenuará os perigos da concorrência, senão que dividirá o
trabalho e coordenará as atividades em atenção às possibilidades
econômicas de cada povo. Daqui que diga Pio XI:

“[…] é muito para desejar que as várias nações, pois que tanto
dependem umas das outras e se completam economicamente, se
deem com todo o empenho, em união de vistas e de esforços, a
promover com prudentes tratados e instituições uma vantajosa e
feliz cooperação económica internacional.”8

Precisei esboçar em grandes e rápidas linhas a configuração


do edifício econômico de acordo com a doutrina da Igreja. Depois
desta exposição, cabe perguntar: até onde é possível a realização
deste esboço? Qual é a sorte desta economia desenfreada que
estamos padecendo? Outras tantas interrogações que exigiriam
uma extensa e minuciosa resposta.
No entanto, do ponto de vista metafísico, teológico, desde
aquele que temos situado para julgar os fenômenos econômicos
e determinar sua justa e benéfica conformação, ser-nos-á
relativamente fácil precisar uma resposta.
De fato, se observarmos bem o ritmo atual da vida e em especial
o da economia, vemos que tudo se reduz à “inversão de valores”, à
“expansão fortuita de certas individualidades”, a um “anseio louco
de correr, de aceleramento”, a uma “dominação espantosa de luxo,
de ganância”.
Na verdade, são diversos aspectos de um mesmo fenômeno.
Porque a ganância, que é infinita, provoca o aceleramento, e

8
Quadragesimo anno, em “Princípio diretivo da economia”, art. 5. (N. do t.)

159
CAPÍTULO 6

este, a expansão de certas individualidades sobre outras; e tudo


isso, uma evidente inversão de valores, de sorte que o que deveria
dominar e manter o equilíbrio das realidades inferiores está
esmagado sob a anarquia destas mesmas.
A Igreja não tem nem pode ter por enquanto a mais ínfima
probabilidade, não digo de impor, mas de fazer entender (mesmo
à maioria de seus filhos católicos) quais são as exigências de
uma vida e de uma economia cristã e humana. Por quê? Porque
enquanto subsista o ritmo da vida que acabo de indicar, a Igreja
que é a mesma Realidade Espiritual, que importa, portanto,
o cume de todos os valores realizáveis aqui no plano terrestre,
a que mantém a todos em seu justo equilíbrio, deve estar esma-
gada, sufocada sob a anarquia de todas as outras realidades
levantadas em rebelião.
E esta anarquia, até quando se manterá? Até que alcance seu
ponto de culminação. Como o repeti muitas vezes e o repetirei
mais uma vez, o mundo está num processo de degradação faz
mais de 400 anos. Todo esse processo de deterioração, designado
por Lutero, Descartes e Rousseau, como por seus mais visíveis
marcos, reúne-se na Revolução Francesa, que é a revolução
por excelência: a Revolução contra Deus, contra seu Cristo e
contra a Igreja. Mas a Revolução Francesa não é a última, senão
que é o nascimento de um mundo novo, no qual se proclamam
os direitos do Homem em contraposição aos direitos de Deus.
Este mundo novo é essencialmente econômico, porque ou se
serve a Deus, ou se serve a Mamon, que é o ídolo da riqueza.
O mundo da Revolução Francesa não quis servir a Deus; tem,
pois, que adorar a Mamon.
Mas no mundo econômico estão o patrão e o operário, o burguês

160
Ordem econômico-social

e o proletário, o liberalismo e o socialismo. O patrão, o burguês e


o liberalismo já dominaram, agora – precisamente quando
acreditavam ter alcançado o zênite de sua carreira – sentem-se
debilitados, desorientados, enquanto que seu irreconciliável
meio-irmão, o socialismo, sente-se forte e ambicioso em dominar:
a Revolução proletária parece-me iminente em todo o mundo.
Estes dez ou vinte próximos anos estarão cheios de terríveis
surpresas. O homem, desesperado, fartar-se-á do sangue de
seu irmão. A humanidade, glorificada pela Revolução Francesa,
maximizará os últimos restos de barbárie; será algo muito mais
espantoso que a queda dos bárbaros sobre o Império Romano.
E a Igreja? A Igreja terá que devolver o sentido da vida a
esta humanidade desesperada, educando cristãmente a estes
novos bárbaros.

161
EPÍLOGO

𝕊 e fosse possível ordenar a economia sem ordenar a vida,


este livro teria já que se encerrar. Mas a economia é uma
preocupação na vida, não a única. Que lugar ocupa na vida? E uma
civilização colocada exclusivamente sob o signo do econômico,
que caracteres deve assumir, em que momento deve surgir, como
começa e em que há de terminar?
Eis aqui outras tantas perguntas que reclamam a resposta da
inteligência que lê. E esta resposta surge destas reflexões acerca do
momento atual, escritas com motivo da Encíclica Caritate Christi
compulsi,1 que S. S. Pio XI dirigiu ao mundo comentando esta crise
do Capitalismo.
Não é meu propósito fazer aqui um comentário desta Encíclica.
Só pretendo indicar esquematicamente algumas reflexões, sobre

1
1932. (N. do e.)

162
Concepção Católica da Economia

o que, a meu juízo, constitui o tema central da mesma, ou


seja, o grave momento por que atravessa hoje o mundo. “Em
tal estado das coisas – diz S. S. Pio XI, referindo-se ao mal-estar
atual – a mesma caridade de Cristo estimula-nos a dirigir-nos de
novo a vós, veneráveis irmãos, a nossos paroquianos, a todo
o mundo, para exortar a todos, a reunirem-se e se oporem, com
todas as suas forças, aos males que oprimem a toda a humanidade
e àqueles ainda piores que a ameaçam.”
Daqui que, no pensamento do Pontífice, o momento atual
tenha uma significação especialíssima. Não precisamente porque
seja atual, isto é, porque se fez presente a nós (tão grande é a
fatuidade do indivíduo moderno que se imagina centro do uni-
verso através do tempo e do espaço), senão porque na verdade
este instante há de decidir a mesma existência da humanidade. Se
a humanidade não quer se ver submergida no espantoso caos
(como diz o Pontífice: se quer se ver livre do perigo do terror ou
da anarquia), tem que assegurar o momento atual.
O momento atual é decisivo, crítico para as próprias raízes
da humanidade. Assim como a humanidade sucumbiu numa
catástrofe, no dilúvio, da mesma maneira parece estar a ponto
de sucumbir noutra.

“Se examinarmos com o pensamento – diz S. S. Pio XI – a extensa e


dolorosa série de males que – triste herança do passado – designaram
ao homem caído as etapas de sua peregrinação terrena, desde
o dilúvio em diante, dificilmente nos encontraremos com um
mal-estar espiritual e material tão profundo, tão universal como
o que sofremos atualmente.”

Esta gravíssima importância que lhe cabe ao momento atual


explica que ele seja objeto de singulares predições tanto nos livros

163
EPÍLOGO

tradicionais de todos os povos, como no espírito profético dos


santos. Este momento assume, pois, uma significação singular-
mente privilegiada, e isto não tanto porque designa o passo de
uma cultura a outra, senão da própria cultura à incultura, ao
caos. O que é o momento atual, culturalmente considerado?
Para ponderar a densidade da cultura de qualquer momento
histórico, é necessário considerá-lo em função do passado e do
porvir. Todo momento histórico é um elo de uma corrente es-
sencialmente móvel. Só o passado e o porvir nos podem revelar
se um ponto é de progresso ou de regresso, e em que medida isto.
Não obstante, o atual momento é de regressão cultural muito
profunda, de regressão imediata à morte. Limitar-me-ei à
consideração, quanto a isso, da cultura cristã, isto é, da cultura
localizada no continente europeu, que tem estado sob a influência
da ação cristã.
Se, em hipótese, o atual momento é de regressão, será neces-
sário indicar o ponto culminante do qual estamos nos afastando.
A plenitude da ascensão foi lograda de um modo visível – dentro
da inevitável imperfeição da humanidade caída – no século XIII,
quando a ação social do cristianismo se acha representada pelos
papa Inocêncio IV e São Gregório X e por São Luiz, rei da França;
quando sua atividade intelectual ilumina com a inteligência de
São Boaventura e de Santo Tomás de Aquino; quando a atividade
artística resplandece nos afrescos do Beato Angélico, na Divina
Comédia de Dante e na Catedral de Chartres; e quando, acima de
todas estas obras do espírito humano jamais superadas, este
se conserva tão vazio de si mesmo que não atina a exclamar,
senão com Santo Tomás de Aquino a seu irmão Reginaldo, que
lhe animava em continuar a Suma Teológica: “Raynalde, non
possum; omnia quæ scripsi videntur mihi paleæ.”

164
Concepção Católica da Economia

Por que é esse um ponto culminante da cultura humana?


Porque esse período da história designa, na particularidade de
uma cultura, o ponto culminante ao que no essencial – pode
chegar o espírito humano. Observe-se bem que digo que esse é um
ponto culminante e não o único possível. Observe-se sobretudo
que lhe chamo culminante, porque nele se logrou a “perfeição
essencial do homem”. E com isto indico o critério que nos deve
guiar na valoração das culturas. Uma cultura não é mais que o
“homem se manifestando”.
Uma cultura será tanto mais rica quanto mais ricas sejam
as manifestações do homem. O valor destas manifestações
deve-se ponderar de acordo com seu conteúdo de realidade.
A Realidade Subsistente é Deus, de quem deriva todo bem e
de quem todo bem finito não é senão participação. Daqui que
uma cultura será tanto mais rica quanto “mais divinas, mais
próximas de Deus” forem as manifestações do homem.
O homem, que é um conflito de potência pura e ato puro,
pode realizar culturas tão diversas como a divina da Idade
Média e a diabólica da Rússia comunista.
O homem é um conflito de “potência pura e ato puro”. É
“potência pura”, porque – como explicam Aristóteles e Santo
Tomás – o entendimento humano está em potência com relação
a todos os inteligíveis, e por isso, o homem a princípio é como
uma tábula rasa na qual não há nada escrito. É “ato puro”, porque
graças à atividade do entendimento agente, pode atualizar-se
todo inteligível. Pode elevar-se, pois, da realidade mais ínfima
até Deus por participação; ou pode contentar-se com ser só
homem, como aconteceu no racionalismo da idade clássica;
ou pode converter-se em animal, como sucede com o homem do

165
EPÍLOGO

século XIX; ou pode ser simplesmente “caos”, como se empenha


em forjar ao homem a ditadura proletária.
No homem, conflito de potência pura e de ato puro, coexistem,
desde a Redenção, quatro formalidades fundamentais que
explicam as quatro etapas possíveis de um céu cultural.
De fato, o homem é algo, é um ser. O homem é animal, é um
ser sensível, deleitável. O homem é homem, é um ser racional,
honesto. E acima dessas três formalidades na providência
atual, tal como o constituiu o Criador: O homem é deus, está
chamado à vida própria de Deus.
Existem, pois, no homem quatro formalidades essenciais:
a formalidade sobrenatural ou divina; a formalidade humana
ou racional; a formalidade anima ou sensitiva; a formalidade
de realidade, de coisa.
Em um homem normalmente constituído (digamos também
numa cultura normal, já que a cultura é o homem se manifestando),
estas quatro formalidades devem estar articuladas numa subor-
dinação hierárquica que assegure a unidade de funcionamento.
E assim o homem é algo para sentir como animal; sente
como animal para raciocinar e entender como homem; raciocina
e entende como homem para amar a Deus como Deus. Ou seja, a
formalidade de realidade que há nele deve estar subordinada a sua
função de animal; a de animal, a sua função de homem; a de ho-
mem, a de deus. O qual se constata ainda no campo experimental
pelo fato de que os processos físico-químicos do homem estão
a serviço das funções vegetativas; estas, ao serviço do fun-
cionamento normal dos sentidos; a vida sensitiva assegura a
aquisição das ideias e a vida psicológica superior; com toda, a
ordem econômica, política e moral não é mais que um meio

166
Concepção Católica da Economia

para que o homem se ponha em comunicação com seu Criador.


Por isso, pôde profundamente escrever Santo Tomás de Aquino
(Summa contra Gentiles, L. III, cap. 37) que todos os ofícios
humanos parecem servir aos que contemplam a verdade.
Noutras palavras, a mística, a contemplação infusa dos
Santos, que não é senão o exercício mais alto da santidade,
está acima de todo homem, e assim como não pode haver ho-
mem mais humano que o santo, não pode haver cultura mais
cultural (de maior densidade cultural) que aquela que esteja
sob o signo da santidade, como esteve – dentro da inevitável
imperfeição humana – a cultura medieval.
Se essas quatro formalidades que constituem o homem são
projetadas socialmente, tem-se quatro funções bem caracteriza-
das: a formalidade de coisa corresponde à função econômica
de execução, trabalho, operário; a formalidade de animal
corresponde à função econômica de direção, capital, burgue-
sia; a formalidade do homem corresponde à função política,
aristocracia, nobreza; a formalidade de deus corresponde à
função religiosa, sacerdócio.
Antes de indicar qual é o âmbito próprio da cada uma dessas
funções, observemos que as três primeiras são de direito humano,
isto é, podem assumir diversas formas de realização, contanto que
se respeite sua natureza essencial; não é assim com a quarta, o
sacerdócio, que por vontade de Cristo tem circunscrita sua forma
concreta de constituição no Episcopado unido com o Pontífice
Romano. De fato, Jesus Cristo, o Filho de Deus, a quem foi dado
todo o poder no céu e na terra, comunicou sua missão ao Epis-
copado em união como o Pontífice de Roma, quando na pessoa
de Pedro e dos apóstolos disse: “Ide, pois, e ensinai a todas as

167
EPÍLOGO

nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.


Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou
convosco todos os dias, até o fim do mundo.”
Quais são as atribuições, próprias de cada uma dessas funções?
O sacerdócio – por assim dizer, a Igreja – tem como função
assegurar a vida divina do homem, incorporando-a na sociedade
dos filhos de Deus e mantendo-a nela. Para isso, a Igreja exerce
funções de Mestra, e neste caráter é depositária e intérprete
autêntica de todas as verdades reveladas por Deus ao homem.
A Igreja exerce funções de Sacerdote, e neste caráter santifica com
a virtude que brota do Sacrifício Perene a todos seus membros
pecadores. A Igreja exerce funções de Pastor, e neste caráter
rege a conduta dos homens.
Seu domínio estende-se a todo o âmbito do espiritual, que
pode ser interno e externo, privado e público, individual, domés-
tico ou social. Nada que de um modo ou outro tenha conexão com
a ordem eterna está excluído de sua jurisdição.
Se o governo temporal de um príncipe prejudica a glória de
Deus e a salvação eterna de seus súditos, a Igreja pode e deve,
em virtude de sua universal jurisdição no espiritual, aplicar
medidas de coerção contra esse príncipe, que podem chegar
até mesmo a sua deposição.
A função política que é o que funda a existência da aris-
tocracia ou nobreza, tem como fim próprio fazer virtuosa a
convivência humana. O ser humano deve viver em sociedade
para lograr sua perfeição humana. Mas esta sociedade deve
ser humana, porquanto o vínculo de união deve ser próprio
do homem. Este vínculo de união é a virtude. E sua realização
é a função própria daquela classe social que de uma forma ou

168
Concepção Católica da Economia

de outra, tem em suas mãos a função política. A qual não pode ser
senão aristocrática, isto é, governo dos virtuosos na acepção eti-
mológica, já que só quem possui a virtude pode fazê-la imperar.
A aristocracia não define em que consiste a virtude; isso é
atribuição do poder sacerdotal. A aristocracia leva à realização
prática o estado de virtude, cujo conhecimento aprendeu dos
lábios sacerdotais.
Daqui que seja essencial à aristocracia sua subordinação ao
sacerdócio, como é essencial à política sua subordinação à Teologia.
Por sob a ordem aristocrática, encontram-se as classes in-
feriores, burguesia e artesãos, dedicadas à função econômica
de preparar as coisas necessárias para a subsistência material
do homem. A burguesia intervém nas operações financeiras
e mercantis e na direção das indústrias; o artesão, na execução
das diferentes necessidades da vida. Um dirige, o outro executa.
Um provê o capital, o outro provê seu trabalho. Mas um e outro
vivem associados em espírito de mútua colaboração dentro do
âmbito econômico.
As quatro funções essenciais que acabamos de expor, bem
como as quatro formalidades que constituem o homem, estão
articuladas em uma hierarquia de serviço mútuo.
O artesão serve à burguesia, e a burguesia serve ao artesão
enquanto o dirige e tutela; assim como a vida vegetativa prepara
os órgãos sensoriais, e por sua vez são servidos por ela, já que o
animal por meio de seus sentidos adquire sustento vegetativo.
O artesão e a burguesia unidos na conspiração econômica
servem à nobreza, já que lhe asseguram a sustentação econômica,
e por sua vez são servidos por ela, que lhes assegura o ordena-
mento virtuoso, do mesmo modo que os sentidos contribuem

169
EPÍLOGO

à aquisição das ideias e o homem com suas ideias retifica e


aperfeiçoa o conhecimento sensitivo.
O artesão, a burguesia e a nobreza servem ao sacerdócio,
pois os dois primeiros lhe asseguram a sustentação econômica;
e o terceiro, a convivência virtuosa; e por sua vez são servidos por
ele enquanto o sacerdócio consolida o ordenamento econômico
e político com a virtude santificadora que dispensa, de modo
análogo a como o homem com seu entendimento se convence da
necessidade de admitir a Revelação sobrenatural e a Revelação
sobrenatural consolida o conhecimento das verdades naturais.
Uma ordem normal de vida é uma ordem essencialmente
hierárquica, uma hierarquia de serviços. E a ordem hierárquica
integra na unidade o múltiplo. Assim, as famílias se integram na
unidade das corporações; as corporações, na unidade da nação
sob um mesmo regime político; as nações, na unidade da cris-
tandade pela adoração de um mesmo Deus, em um mesmo
batismo e num mesmo Espírito.
Se a ordem normal é hierárquica, a anormalidade é violação
da hierarquia, e ao mesmo tempo processo de atomização;
porque ao romper a hierarquia, rompe-se o princípio de unidade
e deixa-se livre expansão às causas de multiplicação que são
as indutoras da morte. A morte não é mais que a desagregação
de um no múltiplo.
Quais e quantos tipos de anormalidade são essencialmente
possíveis? Três e tão somente três, como três são as relações
fundamentais possíveis, a saber: que o natural se rebele contra
o sobrenatural, ou a nobreza contra o sacerdócio, ou a política
contra a teologia; eis aqui a primeira rebelião; que o animal se
rebele contra o natural, ou a burguesia contra a nobreza, ou a

170
Concepção Católica da Economia

economia dirigente contra a política; eis aqui a segunda rebelião;


que o “algo” se rebele contra o animal, ou o artesão contra a
burguesia ou a economia dirigente; eis aqui a terceira rebelião.
Na primeira revolução, se o político se rebela contra o teológi-
co, há de produzir uma cultura de expansão política, de expansão
natural ou racional, de expressão monárquica e ao mesmo tempo
de opressão religiosa. É precisamente a cultura que se inaugura
com o Renascimento e se conhece pelos nomes de: Humanismo,
Racionalismo, Naturalismo, Absolutismo, Cesaropapismo.
Na segunda revolução, se o econômico burguês se rebela contra
o político, há de produzir uma cultura de expansão econômica,
de expansão animal, de expansão burguesa e de opressão política.
É precisamente a cultura que se inaugura com a Revolução
Francesa e que se conhece pelos nomes de: Economicismo,
Capitalismo, Animalismo, Século estúpido, Democracia.
Na terceira revolução, se o econômico proletário se rebela
contra o econômico burguês, há de produzir uma cultura de
expansão proletária, de expansão niilista e de opressão burguesa.
É precisamente a cultura que se inaugura com a revolução comu-
nista e que se conhece pelos nomes de: Comunismo, Guerra ao
capitalismo, Guerra à burguesia. Revolução última e caótica,
porque o homem não afirma coisa alguma, senão que se volta
contra o existente e o destrói.
Mas não nos adiantemos. Vejamos agora, ainda que devamos
retomar sobre os conceitos sugeridos, como este processo de
rebeliões se vem efetuando desde a Idade Média até aqui.
A Idade Média é essencialmente teocêntrica ou teológica
ou sacerdotal, porque todas as atividades humanas, desen-
volvendo-se cada uma dentro de sua própria esfera com uma

171
EPÍLOGO

admirável economia, conspiram para a união do homem com


Deus. É sacerdotal, porque sendo o sacerdote o depositário
visível da palavra de Deus, deve ele ordenar, um mundo cujo
anseio é a realização visível desta palavra.
Antes de colocar a coroa sobre a cabeça do rei, o arcebispo
oficiante fazia a seis perguntas seguintes: “Quer Vossa Majestade
conservar a santa fé católica e apostólica e fortalecê-la com
obras justas? Quer Vossa Majestade proteger a Igreja e seus
servidores? Quer Vossa Majestade governar o império que
Deus lhe confia segundo a justiça de nossos Pais e promete
defendê-lo energicamente? Quer Vossa Majestade manter os
direitos do império, reconquistar os Estados que foram injus-
tamente separados e reinar sobre eles de modo que sirvam
aos interesses do Império? Quer Vossa Majestade mostrar-se
juiz equitativo e leal defensor dos pobres como dos ricos, das
viúvas e dos órfãos? Quer Vossa Majestade prestar ao Papa e
à Santa Igreja Romana a obediência, a fidelidade e o respeito
que são devidos?”
Depois de prestado o juramento, o arcebispo oficiante volta-
va-se aos membros de Estado reunidos, bem como ao resto da
assembleia, que no espírito cerimonial representavam o povo
inteiro, e interrogando-lhes dizia: “Quereis fortalecer seu im-
pério? Consentis em prestar-lhe fé e homenagem? Compro-
meteis-vos a submeter-vos a todos seus mandamentos, segundo a
palavra do Apóstolo: que cada qual esteja submetido à autoridade
que tem poder sobre ele e ao rei que é o chefe supremo –? Toda a
assembleia respondia então: “Assim seja. Amém.”
Esta augusta cerimônia, prossegue o historiador Janssen,
consagrava, por intermédio do representante da Igreja, os

172
Concepção Católica da Economia

deveres recíprocos do soberano e do povo; um contrato ficava


afirmado entre a Nação e o soberano. Em seguida, tinham lugar
a coroação e a consagração. A Igreja santificava a ordem temporal
na pessoa do rei, entranhando-lhe do espírito do cristianismo.
Desta forma, toda a vida cultural fielmente respeitada, era
santificada pela vida sobrenatural, e assim a vida em todas suas
manifestações era profundamente cristã. A vida era oração. E
como em toda criatura em oração, a vida era rica em todas as
manifestações possíveis de vida (sabedoria e arte) e ao mesmo
tempo profundamente humilde, esquecida de si mesma e tão só
suspirada por Aquele de quem vem todo bem.
Esse admirável equilíbrio virá a romper quando o poder
temporal deixe de servir e não busque senão mandar. Todo
desequilíbrio é produzido pelo pecado do espírito mau – non
serviam. A soberba é o começo de todo mal.
Isto acontece de modo típico ao fim da Idade Média, quando
Felipe, o Belo, volta-se contra a autoridade consagrada pela
Igreja. Pela mão sacrílega de Guilherme de Nogaret, Felipe, o
Belo, apodera-se do Papa, mantém-no preso e o ultraja em
Anagni. Sentado sobre seu trono e a tiara sobre a cabeça, tendo
as mãos as chaves e a cruz, o ancião pontífice em quem se havia
refugiado a Idade Média, é depreciado pelo absolutismo dos
monarcas que abre a Idade Moderna.
Esta rebelião inaugura no social a gestão de um novo espírito
que vai se elaborando à medida que o sacerdócio se debilita
em seu prestígio (Papas do Renascimento) e que fica como
oficialmente formulado e assegurado na rebelião de Lutero.
Lutero, respaldado pelos príncipes e em certo modo pre-
nunciado pelo Renascimento, concentra seus golpes sobre o
pontífice romano, depositário autêntico da graça.

173
EPÍLOGO

E assim inaugura-se uma cultura “absolutista”, em que os


príncipes não reconhecem mais direitos que sua vontade;
“naturalista”, porque o homem busca a expansão da natureza;
“racionalista”, porque o homem com suas medidas próprias é
buscado em todas as manifestações de arte; “classicista”, porque
se busca uma perfeição de equilíbrio e ordem racionalista.
Um caso concreto desta cultura achamos no século de Luiz
XIV na França, onde o absolutismo do monarca cobra uma
expansão paralela ao naturalismo de Buffon e Fontenelle, ao
moralismo da Bruyère e La Fontaine, ao racionalismo de Des-
cartes, ao humanismo de Molière, ao classicismo de Corneille
e Racine e ao galicanismo de Bossuet.
Ao mesmo tempo que é vívido o mundo antropocêntrico, este
caminha para sua dissolução e vai abrindo caminho para o mundo
“animal”, isto é, a um mundo no qual o homem não ajustará sua
vida às exigências humanas, senão às infra-humanas, às animais
que lhe instigam. E assim, por exemplo, a ação de Descartes
termina no suicídio da razão por Kant.
Por que isto? Porque sem a graça sobrenatural não pode o
homem realizar a perfeição de sua natureza e de sua razão,
como ensina a Igreja no Concílio Vaticano.2
E assim – inevitavelmente – o racionalismo não é mais que
um caminho ao suplício da razão; o absolutismo, ao suplício dos
monarcas; o naturalismo, um caminho ao suplício da natureza; o
humanismo, um caminho ao suplício do humano.
E assim também – inevitavelmente – o racionalismo termina
com o suicídio da razão de Kant-Nietzsche; o absolutismo,

2
Constituição dogmática Dei Filius, Pio IX, Concílio Vaticano I (1870), sobre a fé católica.

174
Concepção Católica da Economia

no patíbulo com Luiz XVI; o naturalismo, no materialismo


do século XIX; o humanismo, com a vida animal positivista;
classicismo, com o desenfreio da fantasia do romantismo.
Isto é, que a primeira revolução operada pelo homem
moderno ao suplantar o sobrenatural, terminará na segunda
revolução, que suplantará por sua vez o político para inaugurar
o primado do econômico.
A Revolução de Lutero precipita-se inevitavelmente na Re-
volução Francesa. A Revolução Francesa é, em substância, a
suplantação da nobreza pela burguesia, da política pela economia,
do humano pelo infra-humano, do racional pelo estúpido, do
clássico pelo romântico, do absolutismo pela democracia. E isto
pela lógica intrínseca das revoluções. Uma revolução no sentido
metafísico é uma rebelião do inferior contra o superior para fazer
primar o inferior.
Com a Revolução Francesa, começa um mundo burguês,
animal, estúpido e positivista: “animal”, porque esgotado o
“homo naturalis”, não pode funcionar o “homo animalis”. Daqui o
materialismo “estúpido e positivista”, porque esgotado o racio-
cínio – ou seja, a faculdade que interpreta e unifica os fatos, que
raciocina sobre os fatos – não resta ao homem mais que se limitar
a comprovar e ver os fatos e a compilá-los – o positivismo.
Disse que esta segunda revolução abre a “era da economia”.
De fato, o século XIX é um século essencialmente economista,
como demonstra a colossal expansão industrial, comercial e
financeira que nele se desenvolve.
O fato de que seja economista exige que se debilite a força
política e que dobre as exigências econômicas, assim como na
era anterior o primado do político significou a anulação cultural

175
EPÍLOGO

do sacerdócio. E assim, de fato, a política perde sua eficácia pela


concepção democrática da soberania promulgada por Rousseau.
Seria errôneo imaginar que numa cultura economista a
função econômica logra seu objetivo próprio. Pelo contrário,
pelo mesmo que o ato econômico prima, quando de sua essência
é que esteja subordinado ao político e ao religioso, a função
econômica daquela deve achar-se invertida.
E assim é, de fato, segundo o que demonstramos nos capítulos
do presente livro. A economia economista é inevitavelmente
invertida; nela se consome para produzir mais, produz-se para
vender mais, vende-se, mas para lucrar mais; quando a reta
ordenação econômica exige que a finança e o comércio estejam a
serviço da produção, e esta a serviço do consumo, e o consumo
a serviço do homem, e o homem a serviço de Deus.
Uma economia assim invertida é implacavelmente funesta
e deve terminar numa tremenda catástrofe econômica, na qual
parece nos encontrarmos.
Parece que o momento em que atualmente nos encontramos
é o final da era economista burguesa. Achamo-nos ao cabo de
uma época na qual se esgota a influência cultural do sacerdócio,
e reina o ateísmo prático; esgota-se a influência cultural da
política, e impera a demagogia; esgota-se a influência cultural
da economia burguesa, que virá a passar a primazia ao prole-
tariado, e achamo-nos na falência universal.
Achamo-nos no fim da segunda revolução e no começo da
terceira, que é a revolução comunista, a revolução proletária, na
qual o operário, colocado na ínfima condição social, quer suplan-
tar o burguês, o político, o sacerdote. Quer suplantar o burguês e
repudia a economia burguesa; quer suplantar o político e repudia

176
Concepção Católica da Economia

os governos de autoridade; quer suplantar o sacerdócio e erige em


sistema o ateísmo.
O comunismo imposto na Rússia e com anseios loucos de
estender-se a todo o perímetro da terra, designa a última das
revoluções possíveis no ciclo cultural. Depois dele, não é possível
senão caos.
Precisemos mais detidamente o caráter do comunismo. O
comunista é um homem de quem se retirou sua formalidade
sobrenatural, sua formalidade natural e sua formalidade animal.
Que resta de um homem de quem se retirou essas três for-
malidades? Fica uma coisa, algo que caminha ao nada. E se o
comunismo é na verdade a deificação da realidade que tende
ao nada, qual é a realidade que tende ao nada? O que segue
sendo algo e é nada por seu caráter de informe que é? É a
matéria-prima. De fato, Aristóteles define a matéria prima
dizendo: Dico autem materiam quæ secundum se, nec quid nec quantitas,
nec aliud aliquid eorum dicitur quibus est ens determinatum.
A matéria-prima pode ser tudo, desde terra a homem; mas
de si nada é daquilo, um nada exato; é uma pura capacidade
de recepção.
Não obstante, em linguagem tomista poder-se-ia definir o
comunismo como aquele sistema de vida e de cultura que tende
à resolução do homem em matéria-prima, a algo puramente
informe, caótico.
Daqui que em todas as manifestações de vida, tanto nas
instituições sociais como a família, a propriedade, a corporação, a
pátria, quanto nas atividades artísticas, como a própria ciência, o
comunismo seja puramente informe e caótico. Para contatar isso,
remeto o leitor aos expositores da realidade comunista.

177
EPÍLOGO

A definição do comunismo aqui exposta coincide com a


formulada pelo Santo Padre em sua carta encíclica, ainda que
esteja tomada de outro ponto de vista. De fato, o Santo Padre
define o comunismo pela atitude que adota ante o problema de
Deus, que é o problema capital que se lança a todo homem que
vem a este mundo. Essa atitude não pode ser senão de insolente
repúdio, o que se precipita ao caos da matéria-prima nada pode
odiar tanto como a Realidade Subsistente.
E essa atitude de repúdio é tão lógica como o era a atitude
de adoração que adotava o homem medieval esclarecido pela
graça sobrenatural; como podia sê-lo a neutralidade e laicismo,
afirmada pelo burguês do século XIX. Que mais cabe a um animal,
a um estúpido, privado da razão e da graça, que prescindir de
Deus, a quem sua imbecilidade lhe impede de conhecer?
Daqui que só numa cultura colocada sob o signo do proletário,
como é a comunista, seja possível encontrar um “ateísmo
organizado e militante”, empenhado numa “campanha de
ateísmo”, como diz S. S. Pio XI.
O comunismo atual é, por conseguinte, uma regressão
cultural muito profunda – é o momento crítico de regressão
imediato à morte.
Que forças culturais há no presente panorama humano?
Segundo a consideração anterior, vemos que, no que tem de
próprio, é um momento quase último no processo regressivo
que agita o mundo desde a Reforma até aqui. Pode-se indicar
os marcos deste processo: Renascimento, Reforma protestante,
Racionalismo cartesiano, Liberalismo rousseauniano, Capita-
lismo burguês, Socialismo, Comunismo.
São diversas etapas de um idêntico processo de degradação,

178
Concepção Católica da Economia

que podem encontrar um símbolo no processo de corrupção que


se opera no corpo do homem. As culturas humanas são como
o corpo humano. Enquanto o corpo está informado pela alma
imortal, o corpo vive. Mas no instante em que a alma imortal
abandona o corpo, o corpo fica sem vida e vai caminhando com
passo seguro à sua dissolução total. No momento da morte, o
corpo conserva as aparências de um corpo vivo: parece que dorme.
Os tecidos conservam sua integridade; mas pouco a pouco se vão
dissolvendo; a corrupção aloja-se em suas entranhas, a fetidez
cadavérica denuncia este processo de corrupção e ao cabo não
ficará desse corpo mais que um monte de pó.
A Igreja era esta alma imortal, subsistente por si mesma, que
dava vida à cultura. No Renascimento e na Reforma Protestante
opera-se o divórcio da Igreja com a cultura. A cultura fica sem o
princípio de vida, ainda que em virtude do impulso vital deste
princípio, conserva todas as aparências de vida. A Idade clássica,
que teve manifestações tão extraordinárias de cultura, pode
comparar-se aos cultivos “in vitro”, que ainda vivem depois de
operada a morte do indivíduo. Vivem de impulsos da vitalidade
que os abandonou; na verdade, caminham à morte.
Por isso, todo o mundo moderno é um mundo cadavérico,
com a particularidade de que agora, quando está a ponto de
dissolver-se em pó, conservam-se os tipos dos diversos estados
de decomposição pelos quais passaram. De fato, as seitas pro-
testantes perseveram; o racionalismo cartesiano persevera; o
liberalismo de Rousseau, o voltairianismo persevera; o capita-
lismo burguês persevera junto ao socialismo e ao comunismo,
que encarnam as etapas características que correspondem ao
processo de decomposição do atual momento.

179
EPÍLOGO

E o curioso é que estas etapas retardadas se travam em luta


com o socialismo e o comunismo como se fossem inimigos.
Na realidade, são irmãos de idades diferentes: todos os filhos
de uma mesma rebelião marcham ao caos idêntico, ainda que
com passo diferente.
São forças de desordem, forças revolucionárias no sentido
autêntico da palavra, porque se puseram em rebelião contra
Aquele que é o Primeiro e Principal e que sustenta a ordem
normal da cultura.
Desta sorte, todas as forças que se podem escalonar por
graus desde o protestantismo ao comunismo, formam talvez
sem saber e sem querer, uma frente única de revolução que
marcha ao caos.
Frente a estas forças revolucionárias, que gravitam todas a
Moscou, encontra-se a Igreja Católica. A Igreja, por sua essência,
está acima da esfera cultural. Sua missão é divina: quer unir os
homens em Cristo, para uni-los com Deus. Sua missão é eterna:
acima do tempo e do espaço une os homens com vínculos divinos.
No entanto, em virtude de sua essência supracultural, a Igreja
tem uma grande força de vivificação das culturas humanas.
Porque o temporal em contato com o eterno se vivifica como a
terra em contato como o sol; e, pelo contrário, subtraída a sua
influência, morre. Daqui que a Igreja tenha forjado dos elementos
materiais que puderam sobreviver do mundo greco-romano e das
raças bárbaras, a maior cultura que deixou sua pegada sobre a
terra: a cultura formada pela Igreja. A Igreja infundiu seu espírito
nos elementos greco-romanos apartados pelos romanos e nos
elementos germanos trazidos pelos bárbaros. O maravilhoso
da cultura medieval é o espírito da Igreja que nela sopra. É o

180
Concepção Católica da Economia

espírito de Deus. É o Espírito Eterno. Diríamos que a hierarquia


que descobrimos na Idade Média não é senão condição para a
vida do Espírito: recordemos a abundante efusão do Espírito
nos escritores místicos (São Bernardo, Hugo de São Vitor, São
Boaventura), nos arquitetos das catedrais góticas, nos afrescos
de Giotto e de Angélico, na divina prudência dos reis santos.
Nesta admirável efusão do Espírito reside o valor da Idade
Média e não como imaginam os especialistas da história, nas
instituições feudais e no Sacro Império Romano. O feudalismo
foi uma certa realização (uma das possíveis), formada pela
influência supracultural da Igreja. São possíveis outras muitas
culturas cristãs mais saudáveis que o feudalismo.
A Igreja, em virtude de sua essência que é santificar o que é
humano e incorporá-lo em Cristo, está impelida de um movimento
essencialmente hierárquico; quer ordem nas realizações humanas;
quer a realização da verdadeira cultura. Por isso seu movimento é
diametralmente oposto ao que o mundo moderno agita.
Assim como o mundo moderno se acha impelido pelo ímpeto
de rebelião, de rompimento das hierarquias e de lançamento ao
caos, assim a Igreja se acha movida pelo Espírito de subordinação,
de respeito às hierarquias essenciais, de integração na ordem.
A Igreja gravita em torno da Unidade; o mundo moderno, do
caos, que é carência de unidade. Igreja lança-se a Deus que une; o
mundo moderno, no Espírito do mal que confunde. A verdadeira
oposição entre a Igreja e o mundo moderno explica-se no problema
fundamental de todo homem: o problema de Deus. Assim como
a Igreja quer unir-se como todas as forças de sua alma a Deus,
assim o mundo moderno quer, com o mesmo ímpeto de suas
forças, apartar-se dele e apagar seu nome da face da terra.

181
EPÍLOGO

Por isso a Igreja Católica é a força mais típica de todas as que se


opõem às forças revolucionárias. Ela encarna o movimento de
reascensão, assim como o comunismo encarna o movimento
de regressão.
De reascensão não às instituições medievais, que estas passa-
ram para não voltar mais, como tudo que é mutável, senão de
reascensão àquele Espírito Eterno que animou a Idade Média
e que pela mesma razão que é eterno não é do passado nem do
futuro. Quer a volta da cultura a Deus, que é Primum Principium.
Quer estabelecer a ordem pela primazia da primeira hierarquia,
o sacerdócio.
É, no entanto, justo recordar que os membros visíveis da
Igreja não estão em condições por ora de realizar plenamente esse
movimento de reascensão. Porque se bem que a Igreja em si,
como esposa é “santa e imaculada, cheia de glória, sem mácula
nem ruga”, no entanto, na vida dos cristãos, encontra-se num
deplorável estado de feiura. Os católicos contagiaram-se da
peçonha de cinco séculos de apostasia. Os católicos pactuaram
aliança com o Renascimento, com o naturalismo clássico, com
o espírito de livre exame protestante, com o liberalismo, com
a repugnante burguesia etc. Os católicos mundanizaram-se, e
a Esposa Imaculada de Cristo se acha aprisionada e sufocada
sob a espessa crosta das peçonhas modernas.
A Igreja para recobrar sua primazia cultural necessita so-
frer no coração dos cristãos uma purificação profunda que
consuma essas peçonhas e deixe caminho livre às efusões do
Espírito. Esta purificação está se operando no movimento da
Ação Católica, que é e que deve ser um movimento de santi-
ficação em Cristo. Sua Santidade Pio XI reconhece esta ação

182
Concepção Católica da Economia

do Espírito Santo quando na Caritate Christi Compulsi escreve:


“E é verdadeiramente um sopro potente do Espírito Santo o
que passa agora sobre toda a terra atraindo especialmente as
almas jovens aos mais sublimes ideais cristãos, elevando-as
a qualquer sacrifício por heroico que seja; um sopro divino,
que sacode todas as almas ainda a seu pesar e lhes faz sentir
uma inquietude interna, uma verdadeira sede de Deus, ainda
àquelas que não se atrevem a confessá-lo.”
Em relação ao trabalho de reascensão à vida tradicional,
pode-se mencionar, em certo modo, o fascismo. O fascismo,
com efeito, propicia a reforma da economia e da política se-
gundo princípios num sentido tradicional. Falo de fascismo
interpretando a tendência mais profunda de sua realização,
a saber, determinada por seu impulso ao fim. Se havemos de
crer nas magistrais exposições do professor Gino Arias, essa
tendência está dentro do tradicional.
É justo declarar que a interpretação do fascismo exposta
pelo professor Gino Arias retifica a concepção estatolátrica do
Estado que muitos lhe atribuem como essencial. O fascismo
é, de fato, uma organização forte da vida econômica em or-
denamento corporativo sob o controle do Estado. A economia
desenvolve-se por movimento próprio sob a regulação política do
Estado. Coincidiria esta interpretação com a concepção católica.
Evidentemente que se pode aceitar essa tendência profunda
do fascismo, sem aceitar os meios violentos de que lança mão.
Mas isso implicaria uma divergência acidental. De fato, há que
reconhecer que o fascismo, tanto em seu fim, como em seus
meios, é por ora o único movimento de realização concreta que
restaura os princípios tradicionais de economia política.

183
EPÍLOGO

Sua própria violência de meios justifica-se quando se


abrem os olhos da realidade do momento, que é um momento
de violência. Neste sentido, a realidade está acima das teorias
e dos desejos. Se a violência não impõe a ordem, a violência
imporá a desordem.
Superado já o momento liberal que por seu sentimentalismo
estúpido de burguês não tem energias nem para o bem nem para
o mal – nem frio, nem quente –, entramos na violência proletária
que está impelida por uma temível realização do mal.
A Igreja não quer a violência material como recurso de governo.
Que num determinado momento tenha de se aceitar a violência,
porque é o único meio eficaz de contrariar males piores, como o
terror e a anarquia, não depende dos desejos da Igreja.
A Igreja, então, respeitosa da realidade, que ela não pode
modificar, há de limitar-se a recordar a seus filhos, ademais
das normas eternas da moral e da caridade, que a violência
material é inútil e contraproducente, se não é acompanhada
da violência espiritual. Por isso, a Igreja aconselha como meio
principalíssimo para a restauração da ordem social cristã, não
a violência fascista, senão a “violência penitencial”.
O que, sim, é preciso advertir ao fascismo é que se não quer
resultar ineficaz e funesto, há de ter presente que, para salvar a
humanidade, não basta remontar-se o homem político tradicio-
nal, senão que também é necessário remontar-se francamente o
homem hierárquico colocado sob o signo do tradicional. É tão
absurdo aceitar a primazia da política – leia-se “a autoridade
social” – como submeter-se à ditadura da burguesia ou do pro-
letário. A única primazia legítima e benfeitora é a primazia
mansa e humilde do sobrenatural, do sacerdócio.

184
Concepção Católica da Economia

Só com esta condição pode ser cristianizado o fascismo e


pode resultar um excelente colaborador da ordem que se elabora
em todo caos sob a ação do Primeiro Ordenador. Se havemos
de crer nas magistrais exposições do professor Gino Arias, o
fascismo não recusa aceitar esta condição. E, na verdade, que o
movimento concreto de ação fascista, como se vem desenvol-
vendo na Itália, vai se declinando dia a dia de sua concepção
panteísta do Estado para reconhecer a primazia universal do
servo dos servos, de Deus que se senta na Cátedra de Pedro.
A igual purificação seria indispensável se submetesse o
hitlerismo germânico, que deve compreender que a Alemanha
grande é a Alemanha do Império Romano-Germânico, tão
esplendidamente historiada por Janssen.
O movimento nacionalista que desperta entre nós há de
ter muito presente, outrossim, as considerações formuladas
sobre a organização hierárquica do homem, considerações
supraempíricas, que devem orientar a violência para que esta
não seja um instrumento vulgar de defesa das posições burguesas.
É necessário partir do princípio de que todas estas posições
estão tão pútridas e são tão perniciosas como as posições esquer-
distas. É necessário, então, atravessar todo o mofo, até encontrar
o homem mesmo. Homem que não será chamado enquanto não
se encontre Aquele que, sendo Deus, quis ser homem para que o
homem pudesse ser Deus.

185
APÊNDICE 1

Bula Detestabilis, de Sixto V

21 de outubro de 1586 – Condenação dos Contratos de Sociedade que


contêm o seguro do capital ou determina ganância ou outro vício usurário.
Sixto Bispo, Servo dos Servos de Deus, para perpétua recordação.

𝔸 detestável voracidade da avareza e da cobiça insaciável de


lucrar, raiz de todos os males, de tal sorte cega as mentes
dos homens que muitos, ávidos do lucro, caem miseravelmente
nos laços e ciladas do diabo. Porque aquele antigo inimigo do gê-
nero humano se desliza cautelosamente por diversos enganos e
falácias e oprime os homens fascinados pela doçura da ganância e
os arrasta até submergi-los na voragem das usuras, odiável a Deus
e aos homens, condenada pelos sagrados cânones, contrária
à caridade cristã e enquanto buscam as riquezas vãs e terrestre
perdem as verdadeiras e celestes, como há pouco ouvimos
com grande dor que acontece nalgumas províncias.
Porque muitos, tomando pretexto para suas usuras do con-
trato honesto de sociedade, entregam seu dinheiro e outra coisas
aos mercadores, artesãos, comerciantes ou outras pessoas com a
garantia de suas mercadorias, comércios, armazéns, padarias; ou
entregam em sociedade, gado ou certos animais aos agricultores
ou pastores ou quaisquer outras pessoas com a condição de
que o capital, como o chamam, de todo o dinheiro, animais ou

186
Bula Detestabilis, de Sixto V

coisas fique sempre salvo e íntegro em favor daquele que provê


à sociedade não a indústria ou o trabalho, senão o dinheiro, os
animais ou coisas semelhantes, de sorte que todo o risco e dano
recaia no outro sócio e assim pactuam em diversas formas contra
a equidade e a justiça do contrato de sociedade; e aos mesmos
sócios com os quais realizam o contrato, sócios geralmente
pobres e necessitados que vivem de seu trabalho e indústria,
obrigam-nos a restituir o capital qualquer fosse sua sorte e ao
mesmo tempo determinam e prescrevem que o sócio há de lhes
pagar, por mês ou por ano, enquanto dure a sociedade, uma certa
ganância, tantos por centos; e esta soma e quantidade a querem
fixa e precisada sem atender em nada a que este benefício se
desconte das entradas e saídas que se levam nos livros, nem
que é variável o ganho ou a perda; querem-na fixa e precisada,
desinteressando-se do trabalho e do cuidado de levar os cálculos
da sociedade.
Portanto, Nós que julgamos como função principal e própria
de nossa solicitude pastoral dirigir na via da Salvação, com ajuda
da divina graça, a grei do Senhor a Nós confiada segura de todo
perigo e risco da vida eterna, querendo quitar, enquanto com
a ajuda de Deus podemos, o contágio deste mal antes que se
estenda mais para ruína comum dos fiéis, usando da plenitude
de nosso poder apostólico pela presente constituição que há
de valer para sempre, condenamos e reprovamos todos os
contratos, convenções, pactos que se façam de efetuar nos que
se dê garantia às pessoas que entregam dinheiro, animais ou
quaisquer outras coisas em sociedade de que ainda que sofra
quebranto, dano ou perda, o capital sempre deve ser restituído
salvo e íntegro pelo sócio que o percebe, o que este há de

187
APÊNDICE 1

responder com certa soma ou quantidade todos os meses ou


anos enquanto dure a sociedade.
Estabelecemos que estes contratos, convenções e pactos
devem ser tidos como usurários e, portanto, devem ser con-
siderados como ilícitos; e que doravante não é lícito àqueles
que investem em sociedade seu dinheiro, animais ou outras
coisas, pactuar e acordar com respeito a um certo lucro; nem
tampouco obrigar com pacto ou promessa, hajam acordado com
respeito a certo ou indeterminado lucro, aos sócios mutuários
a restituir salvo e íntegro o capital quando fortuitamente haja
perecido ou desaparecido.
E proibimos categoricamente que daqui em diante se criem
sociedades com estes pactos e condições que envolvem o vício
da usura.

188
APÊNDICE 2

Bula Vix Pervenit, de Bento XIV

1 de novembro de 1745

ℍ á pouco chegou a nossos ouvidos que, ocasionadas por uma


recente controvérsia sobre se deveria ou não se admitir
a validez de certo contrato,1 difundiam-se na Itália diversas
opiniões que não estavam em conformidade com a sã doutrina,
estimamos que era próprio de nossas funções apostólicas acudir
com um remédio oportuno, antes que o mal acrescesse, favo-
recido pelo silêncio e duração. Resolvemos, pois, cerrar-lhe a
entrada, a fim de que não continue se propagando e contamine
as cidades italianas que ainda se acham isentas.
I. Por isso, adaptamos a resolução e o método que a Santa Sé
Apostólica sempre teve por costume empregar. Pusemos o as-
sunto em sua totalidade à vista de alguns de nossos veneráveis
irmãos, os cardeais da santa Igreja romana, particularmente
louváveis por seu conhecimento da sagrada teologia e por sua
ciência solícita do mantimento da disciplina canônica. Tam-
bém fizemos vir a vários regulares eminentes numa e noutra

1
O triplo contrato que consiste em um de associação e dois de seguros.

189
APÊNDICE 2

Faculdade, escolhidos por Nós dentre os monges, as ordens


mendicantes e os clérigos regulares. Também chamamos a um
prelado, doutor num e noutro direito e mui versado na prática
dos tribunais. E convocados que foram por Nós o quarto dia do
mês de julho último a uma assembleia geral a realizar-se em
nossa presença, submetidos a sua consideração a natureza de
todo este assunto, parecendo-nos que se formavam quanto a
isso um conhecimento claro e íntegro.
II. Depois do qual, expressamos-lhes nosso desejo, a saber:
que desasidos de toda paixão e de todo espírito de rivalidade,
examinassem a questão em todas as suas partes, com detimento,
e nos expusessem por escrito seu parecer. Mas não lhes encarre-
gamos que ditassem sobre o contrato que motivou a controvérsia,
porque faltavam vários documentos necessários a esse fim, senão
que estabelecessem a doutrina verdadeira em matéria de usura,
doutrina que parecia sofrer um menoscabo não pequeno nas
interpretações que ultimamente haviam começado a divulgar-se.
Todos executaram nossas ordens, pois expuseram de viva voz
seu parecer em ocasião de duas congregações, a primeira das
quais teve lugar em nossa presença no dia dezoito de julho, e a
segunda em primeiro de agosto próximos passados, e remeteram
seus ditames por escrito ao secretário da congregação.
III. Segundo isso, em acordo unânime concordaram o seguin-
te: o gênero de pecado que se chama usura e que tem seu lugar e
seu assento próprio no contrato de empréstimo, consiste em que
aquele que empresta exige, em virtude do empréstimo, de cuja
natureza é devolver somente o que se recebeu, que se lhe devolva
mais do que deu, e pretende, em consequência, que em razão do
empréstimo é-lhe devido certo lucro sobre o capital. Portanto, é
ilícito e usurário todo ganho excedente do capital emprestado.

190
Bula Vix Pervenit, de Bento XIV

E não se pretenda que para lavar esta mancha de pecado possa


pretextar-se que a ganância não é excessiva nem gravosa senão
moderada, que não é grande senão exígua; nem que a pessoa a
quem se pede esse proveito unicamente por causa do empréstimo
não seja pobre senão rica; nem que se proponha empregar a soma
emprestada da maneira mais útil para aumentar sua fortuna, seja
adquirindo novas propriedades, seja dedicando-se a um negócio
muito lucrativo, na intenção sempre de não a deixar repousar.
Com efeito, é convicto de obrar contra a lei do empréstimo,
que consiste necessariamente na igualdade da soma entregue
e da soma devolvida, aquele que, estabelecido esse equilíbrio,
atreva-se a exigir algo mais em virtude do empréstimo. O triplo
contrato que consiste em um de associação e dois de seguros,
à pessoa de quem já recebeu satisfação com a igualdade de seu
reembolso. É por isso que está obrigado à restituição de tudo o
que sobre o capital tenha percebido, segundo essa obrigação
da justiça chamada comutativa, que consiste em conservar
exatamente nos contratos humanos a igualdade própria a cada
um deles, e em repará-la quando não foi respeitada.
Com isso, não se entende negar de nenhum modo que no
contrato de empréstimo possam achar-se às vezes outros tí-
tulos, como lhes chamam, que não sejam em nada intrínsecos
à natureza do empréstimo, nem congêneres, em virtude dos
quais surge uma causa inteiramente justa e legítima para exigir
algo sobre o capital devido em razão do empréstimo. Tampouco
se nega que, mediante contratos de valor muito diferente do
empréstimo, qualquer um tenha frequentes ocasiões de colocar e
de empregar seu dinheiro retamente, seja em compras de renda,
seja dedicando-se a um comércio lucrativo e a operações de
negócio, com o fim de alcançar ganhos irrepreensíveis.

191
APÊNDICE 2

Porém assim como nessas numerosas espécies de contratos,


se a igualdade própria a cada um deles não é observada, todo o
recebido além do justo, ainda que não por usura, suposto que
aqui não se trata de empréstimo usurário patente ou encoberto,
senão por uma verdadeira injustiça de outra natureza, deve ser,
evidentemente, restituído; assim também é certo que se tudo se
leva a cabo como convém e como a balança da justiça o exige, não
há dúvida que nesses contratos se contém um modo multiforme
e um motivo mui lícito de continuar e de estender o comércio
e todos os negócios lucrativos, tal como se praticam entre os
homens, para maior bem público. Não permita Deus que haja
lamas cristãs convencidas de que o comércio possa florescer e
prosperar por meio da usura e de outras iniquidades semelhantes.
Ao contrário, ensina-nos um oráculo divino que “a justiça eleva as
nações, e que o pecado faz os povos miseráveis”.
Mas é preciso advertir que seria coisa vã e deplorável teme-
ridade persuadir-se de que qualquer um que tenha a seu favor
alguns títulos legítimos junto ao mesmo contrato de emprés-
timo, ou senão sem esse contrato, outras espécies de contratos
perfeitamente justos, pode, valendo-se desses títulos ou desses
contratos, quando emitiu a outro seu dinheiro, seus cereais ou
outra mercadoria semelhante, tirar um juros moderado sobre o
capital que volta a ele salvo e inteiro. Se alguém pensasse desse
modo, não só estaria em desacordo com os ensinamentos divinos
e as prescrições da Igreja católica a respeito da usura, mas iria
também contra o sentido comum dos homens e a razão natural.
Com efeito, a ninguém possa escapar que em numerosos casos o
homem está obrigado a socorrer seu próximo com um emprés-
timo puro e simples; pelo que diz o Senhor: “A quem te pede

192
Bula Vix Pervenit, de Bento XIV

emprestado, não lhe negues.” E por outro lado, há uma multidão


de circunstâncias nas quais não pode fazer-se outra coisa que
um empréstimo, e que não dão lugar a nenhum outro contrato
legítimo. Portanto, o que procura obrar a consciência, o primeiro
que deve averiguar com cuidado é se tem, com o empréstimo
que quer fazer, outro título ou outro contrato diferente do
empréstimo, por meio dos quais a ganância que deseja esteja
livre de toda falta.
IV. Assim é como expressaram suas opiniões os cardeais, os
teólogos, os canonistas a quem pedimos conselho neste assunto
gravíssimo. Nós também, por nossa parte, temos aplicado nosso
espírito a esta mesma causa, antes da sessão das congregações
supracitadas, e depois. Para este efeito, examinamos com mui-
ta atenção o voto dos homens eminentes de que falamos. Sendo
isto assim, aprovamos e confirmamos tudo o que se contém nas
decisões acima expostas, porque todos os autores de teologia,
todos os professores de direito canônico, várias passagens das
Sagradas Escrituras, os decretos dos papas predecessores nossos,
a autoridade dos concílios e dos Padres, conspiram a confirmar
esses mesmos pareceres. Ademais, conhecemos perfeitamente
os autores que sustentaram opiniões contrárias, e também
os que se fizeram seus partidários, ou que pareceram favorecê-las
ou facilitá-las uma ocasião. Tampouco ignoramos com que
prudência e quão gravemente defenderam a verdade os teólogos
que se achavam nos confins dos países donde tiveram nasci-
mento essas novas disputas.
V. Por isso, dirigimos esta carta encíclica a todos os arce-
bispos, bispos e ordinários da Itália, a fim de que todas estas
coisas vos sejam perfeitamente conhecidas, a vós veneráveis
Irmãos, e a todos nossos colegas. E toda vez que vos ocorrer

193
APÊNDICE 2

celebrar um sínodo, dirigir a palavra ao povo, instrui-lo na


doutrina sagrada, fazei de modo que não se diga nada que seja
contrário às proposições que Nós enunciamos acima. Também
vos exortamos a que vigieis solícitos, impedindo que em vossa
diocese alguém se atreva a obrar contra o que determinamos,
seja com seus escritos ou com suas palavras. Se alguém se recu-
sar a obedecer, declaramos-lhe sujeito e condenado às penas que
os Santos Cânones prescrevem para aqueles que menosprezam e
violam os mandamentos apostólicos.
VI. Quanto ao próprio contrato que provocou as recentes
controvérsias, nada estatuímos a seu respeito. Tampouco de-
cidimos nada acerca dos outros contratos que os teólogos e os
intérpretes dos cânones julgam com diversidade de pareceres.
Entretanto, Nós remitimos a vossa piedade e a vosso zelo para
pôr em execução o seguinte:
VII. Em primeiro lugar, mostrai a vosso povo com mui sérias
palavras, que o vício e a mancha da usura estão severamente con-
denados nas Sagradas Escrituras; que esse maldito vício toma
formas e aspectos diversos, para precipitar no abismo da desgraça
divina os fiéis que o sangue de Jesus Cristo resgatou e aqueles
que ele mesmo estabeleceu em graça e liberdade. Que, por isso,
quando desejem aplicar seu dinheiro, prestem muita atenção a
não se deixar arrastar pela cobiça, fonte de todos os males, e que
antes peçam conselho àqueles que sobressaem entre todos pelo
resplendor de suas virtudes e de seu entendimento.
VIII. Em segundo lugar, que aqueles que têm bastante con-
fiança em seu próprio saber e loquacidade tal para atrever-se
a dar um parecer sobre tais matérias, as quais exigem não pouca
ciência teológica e canônica, evitem os extremos, porque sempre
são maus.

194
Bula Vix Pervenit, de Bento XIV

Há, com efeito, alguns tão cheios de severidade, que todo


ganho proveniente do dinheiro lhes parece coisa ilícita e próxima
à usura; outros, pelo contrário, inclinados à indulgência, são tão
brandos que chegam a eximir da ignomínia da usura a qualquer
emolumento procurado com dinheiro. Que ninguém prefira
por próprio seu sentir particular. Antes de dar uma resposta,
examine-se o parecer dos autores que gozam de maior crédito. E
logo, adote-se o ditame que pareça melhor fundado, em autori-
dade e em razão. Que se ocorrer controvérsia a propósito de um
novo contrato submetido a exame, evite-se todo insulto contra
os partidários de uma opinião oposta, e ninguém se permita
censurar asperamente o novo caso, sobretudo quando não se
tem para a própria opinião o apoio de razões poderosas e de
homens superiores. Pois que querelas e injúrias alteram os
vínculos da caridade cristã, ofendem gravemente o povo fiel
e o escandalizam.
IX. Em terceiro lugar, aqueles que querem ver-se livres de toda
recriminação de usura, sem deixar por isso de dar seu dinheiro a
outros com a intenção de perceber um fruto legítimo, percebam
eles que lhes convém submeter à consulta o contrato que pen-
sam fazer, as condições que nele se estipulem e o juros que seu
dinheiro deva produzir. Com tal conduta, não só conseguem
evitar inquietudes e escrúpulos, senão que fazem também seu
contrato irreprovável ante os tribunais civis. Desse modo tam-
bém se impede a provocação de discussões, pois se faz ver com
claridade se o dinheiro aplicado ao que parece segundo as regras
convenientes, não comporta uma usura dissimulada.
X. Em quarto lugar, exortamos-vos a impor silêncio aos
que em discursos ineptos repetem por aí que a questão da usura é

195
APÊNDICE 2

por ora questão de palavras, porque quando alguém se desprende


de seu dinheiro, quase sempre tem algum motivo para tirar um
juros. Fácil é compreender que essas afirmações são absurdas, e
que estão longe da verdade; basta considerar que a natureza de
um contrato nada tem de comum com a natureza de outro, e que
as consequências desses diferentes contratos diferem entre elas
tanto como os contratos mesmos. Com efeito, não pode ser maior
a diferença que há entre um juros que se recebe equitativamente
de um dinheiro aplicado, e aplicado de tal modo que uma
e outra jurisdição o acham legítimo, e o juros que se recebe
ilicitamente do dinheiro, e que os tribunais, tanto civis como
eclesiásticos obrigarão a restituir. Isso basta para provar que
em nossa época a questão da usura não é uma questão vã, sob
pretexto de que quase sempre se lucra um juros do dinheiro
que se aplica.
XI. Eis aqui o que mais especialmente desejávamos dizer-vos,
confiando em que vos apressureis a pôr em obra o que se pres-
creve neste documento. Também esperamos que apliqueis os
remédios oportunos, se em ocasião dessas novas controvérsias
sobre a usura chegar a ter desordem em vossa diocese, ou se
fizer prevalecer opiniões depravadas, capazes de manchar a
brancura e a pureza da sã doutrina. Finalmente, concedemos a
vós, e ao rebanho que a vós está encomendado, a benção apostólica.

196
APÊNDICE 3

Sobre o empréstimo a juros

ℙ ara acabar de entender o caráter de um regime no que se


suprimisse, o empréstimo a juros, creio conveniente repro-
duzir algumas páginas do livro Du Prêt à Intérêt, ou Des Causes
Théologiques du Socialisme (de M. l’Abbé Jules Morel, Lecoffre Fils
e cia., Paris, 1873).
Diz na página 132: “Há que dizer, então, que o emprego do
dinheiro, segundo o sistema da Igreja, deveria suprimir o Setor
Bancário, os empréstimos de Estado, as sociedades financeiras e
em geral tudo o que permite a circulação de capitais necessários
para um comércio nacional e estrangeiro? Se quereis falar da
agiotagem, da bolsa, das especulações, de tudo o que troca o
comércio em jogo, de tudo o que acelera a concorrência ao extre-
mo de substituir a febre pela saúde: sim certamente o desejo e a
legislação da Igreja poriam um veto infranqueável. Mas se quereis
falar de um comércio regular, ponderado e medido, compatível
com os bens eternos aos quais devemos chegar depois de termos
passado pelos bens temporais: não, a Igreja, que é útil a tudo,
havia compreendido todas as utilidades, e apressou-se em
traçar-lhe o caminho.

197
APÊNDICE 3

Os primeiros banqueiros do mundo, cronologicamente


falando, foram os italianos – os banqueiros de Florença, Siena,
Pisa, Gênova, Veneza –, que respeitavam a fé cristã e que obser-
vavam sua moral. Mas quando o demônio do lucro quis fazer
degenerar os ganhos honestos dos cristãos no Mamon de ini-
quidade, então o papado vigilante interveio para suprimir toda
esta ciência maldita de operações, dos créditos, dos mandatos
fictícios e de todas estas ficções que tomam lugar em nossos
dias da sã realidade.
São Pio V tem uma bula admirável sobre os câmbios (In eam
pro nostro, 28 de janeiro de 1571), de cujos parágrafos alguns
transcrevemos aqui:

“E assim fazendo chegar a nossos ouvidos que o uso legítimo dos


câmbios, introduzido pela necessidade e utilidade pública, com fre-
quência era depravado pela cobiça de rendimento ilícito, de sorte
que com seu pretexto se exercia a usura, Nós julgamos que deveríamos
responder às perguntas que nos foram recentemente feitas, com este
decreto que há de valer para sempre. (...)

Em primeiro lugar, condenamos todos aqueles câmbios chamados


fictícios e que se efetuam de forma que os contratantes simulam rea-
lizar seus câmbios em certos mercados ou outros lugares, a cujos
lugares aqueles que recebem o dinheiro expedem suas letras de
câmbio, mas não as enviam ou as enviam de tal maneira que pas-
sado o tempo voltam vazias ao lugar de onde vieram; ou também
quando sem expedir nenhuma destas letras, exige-se o dinheiro,
com seu juros onde se celebrou o contrato, porque assim se havia
acordado desde o princípio entre os concessores e os recebedores,
ou pelo menos esta era a intenção e porque não há ninguém nos
supraditos mercados ou lugares que efetue o pagamento das letras
de câmbio apresentadas.

Um mal semelhante a este realiza-se quando o dinheiro é entregue,

198
Sobre o empréstimo a juros

como depósito ou com outro nome de câmbio simulado, a fim de


que seja reembolsado com juros, no mesmo lugar ou outro diferente.

Porém ainda nos câmbios chamados reais, sucede que os cambistas


diferem o prazo estabelecido de pagamento e exigem um juros em
virtude de um acordo expresso ou tácito ou em virtude de uma
simples promessa.

Todas estas coisas declaramos usurárias e proibimos expressamente


que se realizem.

Por isso, a fim de suprimir, enquanto Nós podemos, as ocasiões de


pecar que há nos câmbios e fraudes dos usureiros, Nós decretamos
que de agora em diante ninguém se atreva, seja desde o princípio,
seja de outro modo, a pactuar um juros certo e definido, mesmo
no caso de insolvência; e que não se possam fazer câmbios reais
senão para os primeiros mercados, onde se efetuam; e onde não
se efetuam para os primeiros prazos, seguindo o uso aprovado
do país; desterrando inteiramente o abuso de fazer câmbios para
mercados que vendam, em segundo lugar ou mais tarde ou para
prazos igualmente remotos.

Porém ainda será mister cuidar de que quando se faça um câmbio a


prazo próximo, tenha-se em conta a distância ou proximidade dos lu-
gares onde se efetue o pagamento, a fim de que não se dê motivo
de praticar a usura se o prazo de pagamento é maior do que exige a
posição geográfica das cidades onde os pagamentos devam se efetuar.”

Tudo isso é demasiado superficial e evasivo. Olhemos mais


a fundo. O Pontífice declara que o uso do câmbio é legítimo,
que este uso foi introduzido pela necessidade pública, mas
que com a ocasião do câmbio se introduziram rendimentos
ilícitos, e no curso da bula dá a explicação. O câmbio é con-
forme a sua natureza quando transporta dinheiro de um lugar
a outro e quando procura a moeda de outro país onde se faz o
comércio, pela moeda do país ao qual pertence o comerciante.

199
APÊNDICE 3

E seja para este transporte, seja para este câmbio de nume-


rário, o câmbio tem direito a um rendimento legítimo. Mas se
no lugar de um câmbio real ou ainda com um câmbio real se
introduzem dilações de pagamentos desnecessários ao câmbio,
mas voluntariamente consentidos, a fim de que o dinheiro
leve juros durante este lapso de tempo, põe-se usura no câmbio
e se faz do câmbio um pecado.
É, portanto, verdadeiramente o empréstimo de comércio,
com suas infinitas variedades de forma o que condena aqui São
Pio V. Mais adiante1 estuda Jules Morel em que forma poderia um
comerciante ou industrial, ou todo aquele que está em possessão
de bens produtivos, procurar para si um capital sem acudir ao
empréstimo a juros, que é essencialmente mau, e escreve:

A renda é legítima em si já que é o rédito de um fundo produtivo.


Renda de uma casa, renda de um campo. Portanto, se se vende esta
renda por um capital que seja sua justa representação, realiza-se
um contrato justo. O que, a propósito, prova quão falso é dizer que
a Igreja não reconhece nenhum valor ao uso do dinheiro já que
condena a usura. De modo algum. A Igreja admite perfeitamente
que um proprietário abandone o direito que tem ao rédito de seu
campo por um tempo indefinido. Contudo, a venda desta renda não
é o mesmo que a venda do campo. Com efeito, se o campo fosse
vendido, o dinheiro da venda passaria das mãos do vendedor que
perderia não só a renda, senão os fundos que produziam esta renda;
enquanto que no contrato do qual se trata, só a renda muda de dono,
enquanto os fundos ficam nas mãos do proprietário.

A venda da renda é simplesmente um empréstimo sobre um


imóvel que produz juros. Mas que fazer para que este empréstimo

1
Du Prêt à Intérêt, pág. 139.

200
Sobre o empréstimo a juros

lucrativo ao prestamista e oneroso ao mutuário não seja usu-


rário? Aqui brilha a perspicácia de São Pio V, ao mesmo tempo
que seu desejo de fazer frente a todas as necessidades.
De onde vem a injustiça do usureiro? De que ele pode fixar
o prazo em que lhe será reintegrado o dinheiro com todos os
frutos produzidos durante o intervalo. Aqui, ao contrário, o
capitalista abandonará seu capital consistente, na renda de
fazer o uso que queira sem que se lhe possa dizer: “o prazo
venceu, pagai!”
Disposição favorável ao mutuário que começa a restabelecer o
equilíbrio entre o mutuário e o prestamista. Mas há, todavia, mais.
Que coisa faz que o mutuário não se deixe fascinar pelo brilho e a
comodidade do capital, quando trocou a renda de seu campo pela
possessão deste capital sedutor? É que tinha em mãos esta renda
da que tem a dor de separar-se, enquanto que aquele que acode ao
usureiro não se separa de nada e toma tudo o que lhe fascina e por
outra parte esta renda hipotecada sobre o campo será suficiente
para o pagamento dos juros do capital emprestado: o que dá ao
mutuário toda sua seguridade e sua liberdade de ação, enquanto
seja detentor do capital.
Assim, uma perda, mas perda moderada de uma parte, o que
impede a fascinação e o abuso e por outra despreocupação do
prazo em que há que pagar o juros, o que mantém o homem em
possessão de sua liberdade: tais são as condições essenciais
da renda constituída; elas restabelecem o equilíbrio entre o
mutuário e o prestamista.
Que solicitude da Igreja pelos fracos. Mas ainda não é tudo.
Se os fundos que mantêm a renda perpétua perecem por qualquer
causa maior, o mutuário virá a ficar taxado com a renda que

201
APÊNDICE 3

deverá ser paga quando não tem o instrumento que a produzia?


Não. A partir deste momento não tem mais obrigação.
Não é isso tudo. Aquele que emprestou o capital não pode
retomá-lo, a menos que por um motivo ou outro não se lhe pague
a renda. Mas aquele que fez o empréstimo poderá nunca livrar
sua casa ou campo da hipoteca que sobre eles pesa? Sim, pode.
E assim a bula de São Pio V exige que a renda constituída seja
resgatável por parte do mutuário no momento que queira
reembolsar o capital prestado.
Assim os direitos do mutuário, daquele relativamente menor,
são defendidos pela Igreja contra a onipotência, a fascinação e
tirania do capitalista.
Porém por que a renda não é resgatável por parte do pres-
tamista como por parte do mutuário? Porque em tal contrato
se quebraria o equilíbrio. O mutuário obrigado a reembolsar a
prazo fixo ou, o que é pior, à vontade do prestamista, não teria
senão um uso opressor, fictício, improdutivo do capital em-
prestado e seria, em síntese, vítima do contrato que ele reali-
zara para remediar seu aperto momentâneo ou ao menos que
lhe parecia tal. Tais são as condições da renda, decretadas pela
célebre bula de São Pio V Cum onus apostolicos servitutis, de 1569.
Vê-se agora que freio põe ao desejo de contrair empréstimo
e ao desejo de emprestar, duplo desejo, que se não é frenado,
arruína o presente e o porvir. Quereis contrair empréstimo?
Sim, porém não podereis contrair sobre valores inconsisten-
tes e impalpáveis como vosso crédito, vosso mérito, as belas
operações que realizareis no provir, a mágica do crédito, o
jogo numa palavra no qual os prometeis ganhar. Não podeis
contrair empréstimo, senão sobre uma possessão que já tenhais,

202
Sobre o empréstimo a juros

que é o fruto de vossos suores ou do de vossos superiores, e nos


limites desta possessão. Vós as limitais e as lesais a pagamento do
capital que recebereis com juros.
Quereis emprestar? Mas não o podereis fazer sem vos desfa-
zer por um tempo indefinido de vosso capital que não podereis
reclamar. Quereis emprestar? Porém não o podereis fazer sem
perder o direito à renda, em caso de que o fundo hipotecado
pereça por força maior.
Qual seria a situação dos Estados, se houvessem seguido estas
regras de São Pio V? Acaso nas crises públicas, às quais estão
sujeitos tal como as famílias às crises privadas, não poderiam
contrair empréstimo para aliviar o imposto? Mas claro que sim.
Os Estados têm propriedades, bosques, castelos, minas etc.; que
hipotequem uma renda sobre estes imóveis e que contraiam o
empréstimo. Liquidar-se-ão logo quando venham dias melhores.
Porém poderão contrair empréstimos sem razão nem medida,
seguindo a fantasia de seu espírito de conquistas ou de ambição
desordenada? Poderão esmagar as gerações vindouras, devorá-las
pelo desconto, arruiná-las com antecipação, desafogar-se sobre
elas como pais esbanjadores sobre seus filhos? De nenhuma
maneira. Não se encontrará crédito são sobre o passado, ou seja,
sobre a poupança, sobre o gado, aquilo adquirido em tempos
anteriores. Não se realizará crédito sobre um mundo que ainda
não existe e a que se lhe tirará os meios pelos quais poderia
livrar-se quando ver a luz do dia.
A Igreja previu isso tudo. Passaram sobre o corpo desta
mãe prudente bem como se passou sobre seus mandamentos;
puseram a confiança numa nova economia política, forjada na
cabeça dos filósofos; deixaram-se fascinar pela mágica do cré-
dito num século em que a palavra mágica causa riso como se

203
APÊNDICE 3

fosse coisa exclusiva dos bobos; e como cada um está envolto


por esta mágica, todo o mundo quer emprestar, e o Estado não
busca senão empréstimos, e não seria nada assombroso que
a França aumentasse sua dívida cinquenta vezes e que todos
seus empréstimos fossem cobertos. Riram-se com razão de
Luiz XV, o mais miserável dos reis do antigo regime, e eis aqui
que a democracia imita seus descomedimentos dizendo como
ele: Depois de mim, o dilúvio!
Este livro de Jules Morel, publicado em 1873, é literalmente
uma profecia do que havia de acontecer em nosso século com o
empréstimo a juros. Eis aqui a tradução do capítulo XIV, intitu-
lado “A abolição do juros voltaria a nos trazer a idade do ouro”.

CAPÍTULO XIV DO LIVRO ...


A abolição do juros voltaria a nos trazer a idade do ouro

Digamos agora a relação que há entre os flagelos da Bolsa e


a doutrina da Igreja sobre o empréstimo a juros.
Antes de tudo, os valores que se negociam na bolsa levam,
em sua totalidade, juros. Devido a isso, o abandono do juros
constituiria por si só um grave impedimento às operações da
Bolsa. Contudo, ainda ficaria a negociação das ações que re-
presentassem uma indústria em exploração. Não se poderia
aplicar a alta e a baixa a esses valores, ainda que estivessem
privados da estipulação de juros que agora comportam?
A esse respeito faremos notar que o juros, como a alta e a
baixa das ações, apoia-se igualmente numa base única: a va-
loração antecipada dos rendimentos que poderia obter, seja

204
Sobre o empréstimo a juros

com o dinheiro que vos empresto enquanto o retendes, seja


com minha parte da propriedade em tal fábrica que está ou
que estará em atividade, porém que ainda não deu rendimento
por não haver terminado um primeiro exercício ou por não
ter ainda começado um exercício novo. Posto que não se põe
um valor em circulação se não é confiando na alta; e a baixa
não é mais que a primeira quebra dessa esperança. Todo valor
lançado é lançado em alta. De onde resulta que todo juros e toda
negociação de Bolsa tem por base o lucrum cessans aplicado a
uma probabilidade, a uma possibilidade de rendimento de que
alguém se priva para passá-la a outrem. E como essa ganância
pode existir, mas não existe todavia, denomina-se a ela com
muita propriedade não de compra, senão de especulação; e à
medida que a especulação se superpõe à especulação, até às
nuvens, essa ganância, cada vez mais aleatória, transforma-se
em ágio, em jogo de Bolsa desenfreado, por tudo ou nada, para
concluir nos milhões ou no suicídio.
Essa pirâmide invertida apoia-se, pois, como que em sua
ponta, na venda do lucrum cessans. Sobre ela oscila, buscando um
equilíbrio que não é possível conservar. Mas que é, uma vez mais,
esse lucrum cessans que produziu efeitos tão extraordinários e tão
inesperados para seus mesmos inventores? Não é mais nem
menos que esse título externo que o gênio – realmente incom-
preensível – de Santo Tomás de Aquino, do doutor mais Angélico
que humano, não admitiu a nenhum preço; porque o lucrum
cessans venderia o que ainda não se teria, e o que bem poderia,
por muitas razões, não chegar a ter, sendo precisamente essas
ansiedades os motivos da alta e da baixa: Recompensationem vero
damni quod consideratur in hoc quod de pecunia sua non lucratur, non

205
APÊNDICE 3

potest in pactum deducere, quia non debet vendere id quod non dum habet
et potest impediri multipliciter ab habendo.
Portanto, se está proibido, como o está efetivamente, explorar o
lucrum cessans, vender o que ainda não se possui, o que quiçá nunca
se chegue a possuir, não há mais que haver juros, nem especulação,
nem concorrência violenta, nem Bolsa; os negócios realizam-se
todos com dinheiro constante. Arrasado o pandemônio, os de-
mônios fogem. Em três linhas proféticas, Santo Tomás denuncia
a injustiça em que se apoia toda a economia do século XIX, e as
revoluções que daí provêm como uma consequência necessária.
Senhor Jesus, que homem deste à tua Igreja naquele belo
século XIII, o último do esplendor temporal de tua Esposa!
Que bem é a soma desse doutor junto a teus Evangelhos, no
seio dos concílios!
Voltemos às coisas da terra. O operário é explorado pelo
patrão, ainda que este seja humano, ainda que tenha às vezes
entranhas de irmão e de pais para com seu operário. Mas o
patrão está impedido de ser efetivamente paternal, fraternal,
humanitário, porque por sua vez padece a exploração da con-
corrência raivosa criada pelo empréstimo a juros, e agitada pela
Bolsa até o delírio. O patrão não pode ser bom com o operário: suas
ganâncias são disputadas por uma multidão de inimigos visíveis
e invisíveis; e perdeu sua religião. Abandonou a religião, porque
dispõe de menos tempo ainda que o operário. Se os braços deste
trabalham quase sete dias por semana, um caos de preocupações
e inquietudes obceca a cabeça daquele, durante o mesmo tempo.
O apaziguamento da sociedade, a diminuição necessária do
turbilhão comercial, dependem então do restabelecimento da
lei do descanso dominical e da lei contra a usura. Tudo o que

206
Sobre o empréstimo a juros

se queira fazer fora disso, valerá tanto quanto entrepor umas


folhas de palha à queda de um grande edifício.
Todo homem que trabalha, o que obriga a outro a trabalhar
em dia de domingo, mereceria ser lapidado, como no povo de
Deus; e todo homem que empresta a juros mereceria a mesma
pena. Dois são os mandamentos, e ambos formam um: o amor
a Deus e o amor ao próximo. A mais alta expressão do primeiro
é a santificação do domingo; e a mais alta expressão do segundo
é a renúncia à usura.
Já damos por seguro que choverão objeções, e estamos prepa-
rados. Seria muito desejar que todo o comércio se fizesse à vista;
mas isso é simplesmente impossível. As empresas colossais da
finança e da indústria, de que este século se envaidece, já não
poderiam se realizar, posto que suprimidos o juros e a bolsa,
já não haveria uma máquina que tivesse o poder de aspirar os
capitais – isso é certo; mas que mal haveria em que as empresas
colossais fossem substituídas por empresas sensatas?
Não haveria modo de alimentar cidades de um, dois e três
milhões de habitantes – Deus nos livre! Acaso é necessário que
os povos tenham essas cabeças monstruosas? O necessário é que
deixem de tê-las. As cidades de indústria em grande escala são
sempre as cidades de maior anarquia. Olhai vossa Exposição
universal de Paris, seguida de imediato pela Comuna; e como
todos os reis que haviam vindo visitar nossas maravilhas indus-
triais em seu palácio abarrotado, voltaram tão logo em visitar
seu palácio deserto. Também convém notar aqui que a cidade
de Lion, que foi a primeira que praticou a usura na França, é
hoje a cidade mais socialista. Enfim, como se fará quando já
não se puder achar dinheiro a juros? Há de economizar-se.

207
APÊNDICE 3

Haverá um fundo de rotação, que terá sua garantia num fundo de


reserva – está bem; mas alguém pode ter necessidade de um
empréstimo, e ninguém desejará emprestar sem juros, como
não seja um pobre, e a menor quantidade possível – é certo.
Então? Então, o que tenha necessidade de dinheiro, e não
seja pobre, venderá sua renda, pequena ou grande, sobre seus
bens. Esses bens pagarão o juros mediante o usufruto, enquan-
to existam, como todos os bens reais que são perecedouros; e
só aquele que vendeu a renda terá direito a resgatá-la quando
queira e quando possa. São Pio V, outro gênio universal, tes-
temunha dos engrandecimentos do comércio, havia oferecido
esse recurso católico às transações da marinha transatlântica
que necessitara disso. Mas o comprador da renda não poderá
exigir seu reembolso em capital; e isso é o que constitui sua
profunda diferença com que empresta a juros sobre contrato
pignoratício, e o que restabelece a justiça comutativa nesta espécie
de transações.
Ainda tereis uma facilidade mais para encontrar capitais se
sois probos e hábeis, as duas únicas qualidades que isso merece.
Não havendo ninguém que queira emprestar gratuitamente
aos ricos, todos desejarão, no entanto, fazer frutificar seu di-
nheiro. Tratar-se-á, pois, de aplicá-lo, e isso poderá se fazer
mediante o contrato de sociedade. Sociedade legítima, da qual
se ocuparão muito os interessados, porque nela se compartem
os ganhos e as perdas: Cum periculo ipsius mutuantis mercator de
ea percunia negociatur, vel artifex operatur, diz o admirável Santo
Tomás. Ninguém terá o privilégio de escapar às condições de
todos os bens terrenos, que estão sujeitos por natureza aos
acidentes humanos; e desse modo, os ganhos serão legítimos.

208
Sobre o empréstimo a juros

Muito falais de associação dos capitais: eis aqui a única verdadeira


e boa associação.
Porém essa associação mediante o empréstimo a juros que
quer fazer dos bens da terra bens seguros para uma das partes,
bens permanentes como os bens eternos, bens dotados de um
crescimento necessário, que vão e voltam sem nenhuma an-
siedade, que saem magros e retornam gordos, de geração em
geração, bens inacessíveis às calamidades que compartem os
outros homens; não vedes aonde vades parar com esses bens
que monopolizam tudo, que absorvem tudo, que devoram a
substância do gênero humano? Criais reis que não somente
reinarão, que não governarão somente do alto desse domínio
único que possuem os potentados sobre o fazer dos súditos,
traduzido em impostos; tereis os novos reis da finança, que
chegando a ser os árbitros de vossa fortuna privada, os verda-
deiros possuidores de vossas propriedades particulares, darão
a sua dominação oculta uma amplitude espantosa. O mundo
da usura, com a centralização atual, parecerá, sem pensar
nisso, com aquele Egito do tempo de José, onde só existia um
proprietário, o Faraó, a quem havia que pedir permissão para
comer o pão e mexer a mão ou o pé.
A questão da usura é a questão da vida terrestre. Depois do
assunto da salvação, não há outro assunto maior na universa-
lidade dos interesses humanos.

209
APÊNDICE 4

Nota sobre a questão judaica

“La Vie Spirituelle”, de Jacques Maritain, reproduzida em Criterio


(9 de agosto de 1934).

𝔸 questão judaica oferece dois aspectos: político-social e


espiritual ou teológico.
1º aspecto: Do primeiro ponto de vista, a dispersão da nação
judaica em meio aos povos cristãos pesa um problema singular-
mente delicado. Muitos judeus por certo (e o provaram a preço
de sangue na Grande Guerra) assimilam-se deveras a suas
pátrias de eleição; a massa do povo israelita, no entanto, fica
separada; reservada, em virtude mesmo do decreto providencial
que faz dela, ao longo da história, a testemunha do Gólgota.
Na medida em que é assim, deve-se esperar dos judeus muitas
outras coisas que um apego real ao bem comum da civilização
ocidental e cristã.
Há que se acrescentar que um povo por essência messiânico
como o povo judeu, desde o momento em que recusa o verda-
deiro Messias, desempenhará fatalmente no mundo um papel
de subversão, não digo em razão de algum plano preconcebido,
mas em razão duma necessidade metafísica, que faz da Espe-
rança messiânica e da paixão da Justiça absoluta, transposta

210
Nota sobre a questão judaica

do plano sobrenatural ao plano natural e aplicadas em falso, o


fermento mais ativo de revolução. Por isso justamente, como
Darmesteter e Bernard Lazare o reconheciam francamente, é
dado achar judeus, intromissões de judeus, espírito judeu na
origem de quase todas as grandes revoluções modernas. Não
insisto sobre o papel enorme desempenhado pelos financistas
judeus e os sionistas na evolução política do mundo durante a
guerra e na elaboração do que se chamou de paz.
Daí a necessidade evidente duma luta de saúde pública
contra as sociedades secretas judaico-maçônicas e contra a fi-
nança cosmopolita; daí até a necessidade de certo número de
medidas gerais de preservação, que eram por certo mais fáceis
de excogitar no tempo em que a civilização foi oficialmente
cristã (veja este ponto no opúsculo de Mons. Deploige sobre
Santo Tomás e a questão judaica e um estudo de La Tour du Pin
“La question juive et la révolution sociale”), mas que não pare-
cem impossíveis de suprir, hoje sobretudo quando o sionismo,
criando um Estado judaico na Palestina, parece dever situar os
judeus na obrigação de optar, uns pela nacionalidade francesa,
inglesa, italiana, alemã etc. – e estes deverão recusar todo ligame
com o corpo político judaico; os outros pela nacionalidade
palestina, seja que irão lá residir, seja porque fiquem a título de
estrangeiros nos demais países.
Chamo apenas a atenção sobre os dois pontos seguintes:
Ջ As medidas que falo são por natureza medidas de autoridade
governamental, e se de fato para obtê-las fosse preciso
recorrer à opinião pública, é nosso dever de escritores
católicos iluminá-la e ajudá-la a razoar estas coisas sem
ódio, guardando a disciplina intelectual que é devida. As

211
APÊNDICE 4

paixões populares e os “pogroms” não resolveram jamais


nenhuma questão, muito pelo contrário.
Ջ Não deve a questão judaica servir de derivativo a descontos
e decepções do presente, de sorte que “O JUDEU” apareça
numa espécie de mitologia simplista como a única causa
dos males que sofremos. Trata-se de ideias, de homens, ou
de instituições, há outros culpáveis, e em especial nos seria
realmente muito cômodo golpear nosso mea culpa no lombo
dos judeus, quando as faltas e infidelidades dos cristãos têm
o primeiro posto entre as causas da desordem universal.
2º aspecto: Sublinharei o segundo aspecto da questão judaica
espiritual ou teológica, que concerne à vocação do povo judaico,
já que é muito descurado. Por antissemita que possa ser no outro
ponto de vista, um escritor católico – parece-me evidente – deve a
sua fé o guardar-se de todo ódio e todo desapreço para com a
raça judaica e à religião de Israel, em si mesmas consideradas.
A Igreja reza com os salmos de Davi; ela é a herdeira direta
do Antigo Testamento e de seus Santos. Por degenerados que
estejam os judeus carnais, a raça dos Profetas, da Virgem, dos
Apóstolos, a raça de Cristo é o tronco em que fomos enxertados.
Recordemos o capítulo XI da Epístola aos Romanos (vv. 15.17-
18a.24): “Porque, se de sua rejeição resultou a reconciliação do
mundo, qual será o efeito de sua reintegração, senão uma res-
surreição dentre os mortos? [...] Se alguns dos ramos foram
cortados, e se tu, oliveira selvagem, foste enxertada em seu lugar e
agora recebes seiva da raiz da oliveira, não te envaideças nem
menosprezes os ramos. [...] Se tu, cortada da oliveira de natureza
selvagem, contra a tua natureza foste enxertada em boa oliveira,

212
Nota sobre a questão judaica

quanto mais eles, que são naturais, poderão ser enxertados na


sua própria oliveira!”
Quanto mais a questão judaica se torna politicamente
aguda, mais necessário é que a maneira como nós a tratamos
se proporcione ao drama divino que ela evoca. É intolerável
que escritores católicos falem no mesmo tom que Voltaire quanto
à raça judaica, do Antigo Testamento, de Moisés e de Abraão.
Acima do que está dito, dois fatos importantes, que queria
salientar para concluir, impõem-se aqui para nossa atenção.
O primeiro é o número relativamente grande – e em todo caso
realmente impressionante – de judeus que, há algum tempo,
convertem-se à fé (falo de conversões sinceras e não de certas
conversões coletivas na Polônia ou Hungria). Jamais a consciência
religiosa dos judeus pareceu tão profundamente comovida.
O segundo fato é o extraordinário fervor de preces por Israel
que há hoje na Igreja e cujo fruto são justamente essas conversões.
É conhecida a história dos dois irmãos Ratisbonne, convertidos.
Teodoro em 1827; Alfonso milagrosamente em 1842, por uma
aparição da Virgem. Esta aparição e conversão estão relatadas na
segunda lição das matinas da festa da Medalha Milagrosa (27/11).
Teodoro Ratisbonne fundou em 1847 a Congregação de N. Sra. de
Sião, cujo objeto próprio é a conversão dos judeus, que ganhou
aumentos consideráveis. Em 1905, fundou em Paris uma asso-
ciação de preces pela conversão dos judeus que Pio X erigiu em
arquiconfraria em 1909 e que contava então com 36 mil adeptos.
Eis aqui agora um fato menos conhecido e muito significativo.
Até o fim de 1869, no Concílio Vaticano, os dois convertidos
israelitas presbíteros Leman, fizeram, como escrevia o Cardeal
Coullé, “uma tentativa audaz ao que parece, mas imensamente

213
APÊNDICE 4

comovedora: provocar um testemunho de simpatia da Santa


Igreja de Jesus Cristo em favor aos demais de Israel, e suplicar
por tudo preces por sua reintegração”. Ternamente animados por
Pio IX, redigiram um Postulatum pro Hebracis que apresentado
aos Padres do Concílio reuniu 510 firmas episcopais. “Todos
os Padres do Concílio – acrescenta Mons. Elie Blanc – teriam
firmado sem exceção se os dois irmãos, por um sentimento
delicado de deferência, não tivessem querido ceder a honra da
maioria de subscritores ao Postulatum pro Infallibilitate que reco-
lhera 533. Só a interrupção do Concílio pela guerra impediu a
discussão deste Postulatum.”
Enfim, a ideia lançada em Londres em 1918 de novenas de
Missas pela conversão de Israel prosperou singularmente. Na
França, somente 510 Missas foram rezadas em 1920, mais de
mil em 1921. Em 27 de fevereiro de 1920, esta iniciativa recebeu
a aprovação de Sua Santidade Bento XV, que prometeu oferecer
ele mesmo o santo sacrifício pela conversão de Israel na novena
preparatória à festa do Sagrado Coração.
Assim é como a Igreja, apesar dessa espécie de horror sacro
pela “perfídia” da Sinagoga que lhe impede de dobrar os joelhos
quando reza pelos judeus à Sexta-feira Santa, continua a repetir
entre nós o grande clamor “Pai, perdoai-lhes” do Crucificado. Pa-
rece-me que há ali uma indicação que os escritores católicos não
podem desprezar. Tanto como devem denunciar e combater aos
judeus depravados que levam, de comum acordo com os cristãos
apóstatas, a Revolução anticristã, tanto devem guardar-se de cer-
rar a porta do Reino ante a boa vontade, ante os “veros Israelitas – de
que fala Nosso Senhor – em quem não há fraude”. A caridade a alguns
não deve entorpecer a justiça devida a outros, e vice-versa. Eis

214
Nota sobre a questão judaica

aqui um caso eminente em que nos esforça a unir na integração


da vida cristã, o que não é fácil, duas virtudes opostas ao que
parece: a justa defesa dos interesses da república e o amor so-
brenatural por todo homem, ainda pelos inimigos da república,
amor sem o qual não merecemos sermos chamados de cristãos
e que é o domínio próprio, não digo do “internacionalismo
católico”, senão da “catolicidade supranacional”.

215
NOTAS

NOTA 1:
Ainda que Lutero pessoalmente se opôs ao espírito de aquisi-
ção da riqueza (Ver Werner Sombart, Le Bourgeois, cap. XX), com
todo o Protestantismo, pelo fato de subtrair-se da influência
sobrenatural da Igreja, levava em suas entranhas o espírito do
lucro, que é a essência do capitalismo. Por isso os discípulos de
Lutero, em especial Calvino e os Puritanos, atualizaram estes
gérmens depositados na essência da Reforma.
Max Weber e Troeltsch estudaram a influência da Reforma
Calvinista na formação do capitalismo. Basta citar Henri Sée, Les
Origines du Capitalisme moderne, Colin, 1930, p. 46 e 47.
“Por outra parte, a Reforma religiosa, a calvinista sobretudo,
vai contribuir singularmente ao triunfo da concepção moderna

216
Concepção Católica da Economia

do capitalismo, o qual foi posto em bastante evidência por


dois sábios alemães, Max Weber e, logo Troeltsch. A doutrina
de Calvino, no que concerne ao empréstimo com juros, con-
trapõe-se absolutamente à doutrina da Igreja católica, desde
que não estabelece hierarquia entre o “espiritual” e o “temporal”;
considera louvável o trabalho, o exercício sério da profissão, e
portanto como legítima a aquisição das riquezas. Desde este
ponto de vista, sua doutrina assemelha-se à concepção judaica,
da qual examinaremos mais tarde as consequências. O indi-
vidualismo, que caracteriza a Reforma calvinista, coaduna-se
bem com o individualismo dos centros capitalistas em formação
no século XVI, e é um fato notável que cidades como Lyon, e
sobretudo Amberes, foram vencidas fortemente para as novas
ideias religiosas. Ver-se-á mais adiante que são precisamente
os puritanos, como os Judeus, os que se contam entre os agentes
mais ativos do capitalismo moderno”.

NOTA 2:
Max Scheler, em seu ensaio El Resentimiento en la Moral
(Tradução do Alemão por José Gaos) (p. 208-212) expõe profun-
damente este caráter antieconômico da civilização moderna
que produz ao infinito coisas agradáveis que não produzem
o prazer de ninguém.
“O ascetismo moderno revela-se no fato de que o gozo do
agradável, a que se refere todo o útil, experimenta um progres-
sivo deslocamento até que, finalmente, o agradável subordina o
útil. Também aqui, o motivo que impulsiona o homem moderno,
partidário do trabalho e da utilidade, é o ressentimento contra
a superior capacidade de prazer, contra a arte superior para

217
NOTAS

o prazer; é o ódio e a inveja contra a vida mais rica, que en-


gendra sempre uma capacidade de prazer mais rica. Assim
inverte o valor do agradável e seu gozo com respeito ao útil
que não é senão a “relação” com algo agradável, convertendo
o agradável num “mal”. Estabelece um mecanismo complica-
díssimo para a produção de coisas agradáveis, colocando a seu
serviço um trabalho incessante sem atender para nada o gozo
final destas coisas agradáveis. E como esse trabalho a serviço
do útil, em forma de impulso ilimitado, nasceu psicologica-
mente de uma escassa capacidade de gozo, e como, ademais, a
capacidade de gozo existente é consumida cada vez mais, resulta
que aqueles que mais trabalho útil fazem e mais se apoderam dos
meios externos necessários para o gozo, são os que menos podem
gozar; e, pelo contrário, os grupos mais ricos da vida aqueles a
quem precisamente a vontade de gozo não os permite concorrer
com o trabalho dos demais, carecem cada vez mais dos meios
que hão de agregar-se a sua capacidade de gozo para engendrar
um gozo real. Com isso, a civilização moderna recebe a tendência
a não deixar que aproveite nada ao infinito cúmulo de coisas
agradáveis que produz. E perguntamos: A que vem essa infinita
produção de coisas agradáveis, se quem produz e as possui é o
que, por natureza, não pode gozá-las enquanto que o que poderia
gozá-las não as possui?
Com a mesma veemência com que se produzem sem cessar
coisas agradáveis gastando cada vez mais intensidade e energia
nesta atividade e até sacrifícios de força vital, com a mesma
veemência se rechaçam o gozo destas coisas tão penosamente
produzidas, considerando-o como “mal”. Isto dá à civilização
moderna um aspecto especificamente “cômico” e “grotesco”.

218
Concepção Católica da Economia

O antigo ascetismo forjou o ideal de conseguir o máximo


gozo do agradável com o menor número possível de coisas
agradáveis, e sobretudo, de coisas úteis. Queria elevar a capa-
cidade de extrair prazeres supremos, ainda das coisas mais
simples e acessíveis, em todas as partes, da Natureza, etc., e os
mandamentos da pobreza voluntária, da obediência, a castidade,
a contemplação do mundo e das coisas divinas tiveram por
consequência esta elevação; de maneira que, com poucas coi-
sas agradáveis e em particular úteis “mecanismos de agrado”
alcançavam-se os mesmos graus de prazer, em uma maior
quantidade de ditas coisas. Sendo a coisa útil somente um
meio de procurar-se o gozo é claro que quem com uma quan-
tidade mínima de coisas agradáveis pode gozar tanto como
outro com uma quantidade maior, é o que possui a máxima
capacidade de gozo. Querendo ou não, o antigo ascetismo elevava
a capacidade de gozo, e, por conseguinte, a vida.
O asceticismo moderno desenvolveu um ideal que é, em seu
sentido ético, a exata antítese do antigo: o ideal do mínimo gozo
com um máximo de coisas agradáveis e úteis. Por isso vemos
que onde o trabalho adquiriu as maiores proporções (como
por exemplo, em Berlim, e em geral, nas metrópoles alemãs
do norte), a capacidade e a arte de gozar desceu ao grau mais
baixo imaginável. A multidão dos estímulos agradáveis mata
justamente a função e o cultivo do gozo, e quanto mais malhado,
alegre, ruidoso e atrativo se faz o contorno, tanto mais triste é
pelo comum o interior do homem. Coisas muito alegres con-
templadas por homens muito tristes, que não sabem o que fazer
com elas; tal é o sentido de nossa cultura, desta cultura de prazer
e das grandes cidades.

219
NOTAS

NOTA 3:
A Sagrada Escritura, em inúmeras passagens, condena a
usura1. O salmista pergunta: “Ah Senhor, quem morará em teu
celestial tabernáculo, quem descansará em teu santo monte?
O que não dá seu dinheiro à usura.” (Sl. 14,5).
Ezequiel (22, 12) reprova Israel de praticar a usura e em outra
passagem (18, 8) diz: “O homem que não empresta a usura, nem
recebe mais do que o emprestado, nem recebe usura nem juros...
este tal viverá felizmente”.
Êxodo (22, 24): “Se emprestares dinheiro ao necessitado de
meu povo que mora contigo não lhe farás como um credor,
nem o oprima com usuras.”
Levítico (25, 35-37) “Se teu irmão empobrecesse, e não poden-
do valer-se, o recebesse como forasteiro e peregrino e vivesse
contigo, não cobres usura dele, nem mais do que o emprestado.
Não lhe darás dinheiro a lucro, e da comida não o exigirá aumento
sobre o que lhe foi dado”.
Deuteronômio (23, 19) “Não emprestará com usura a teu
irmão, nem dinheiro nem grãos nem qualquer outra coisa;
senão somente aos estrangeiros. Mas a teu irmão lhe emprestará
sem usura.”
A respeito de cobrar com usura pelo lucrum cessans ou priva-
ção de realizar um lucro contesta Santo Tomás (II-II q. 78, a. 2, ad 1)
que não é lícito estipular uma indenização para recompensar a perda que se
considera no lucrar com o dinheiro emprestado, posto que não pode vender o
que ainda não tem e cuja posse pode ser impedida por uma multidão de causas.
Santo Tomás não admite outro título legítimo que o damnum

1
Entendida ao longo dessa nota com dois significados: ganância e prática da agiotagem (juros excessivos).

220
Concepção Católica da Economia

emergens ou seja quando pelo fato de empréstimo um sofre perda


em seus bens, como aquele que por emprestar seu dinheiro
não pode reformar a tempo a casa e logo sofre o prejuízo de seu
desmoronamento. Neste caso pode justamente exigir uma inde-
nização. Mas não admite o título que se chama de lucrum cessans.

NOTA 4:
“Em uma obra recente, intitulada Les Miracles du Crédit, M. E.
Mireaux, diretor de “Temps” formulou a seguinte lei, aplicável
a todo nosso sistema bancário moderno:
“O volume dos depósitos bancários depende, a respeito de uma
emissão de moeda, da proporção entre os pagos com cheques e os
pagos com espécies”.
Quanto mais se estende o uso do cheque, mais abundantes
são também, por conseguinte, os créditos postos à disposição
dos banqueiros.
Depois de ter explicado as razões teóricas desta lei, M. E.
Mireaux dá sua demonstração extraída dos fatos observados.
“De 1924 a 1929, a circulação fiduciária americana caiu quase
invariavelmente; sem embargo, por causa do emprego do cheque,
e unicamente por ele, a massa dos meios de pagamento, posta
à disposição da economia americana, sob a forma de créditos,
aumentou em 13 milhões de dólares, ou seja, 29%.
Aumento dos créditos bancários nos Estados Unidos, por
causa da generalização do emprego do cheque.
Junho de 1924, 45,3 bilhões de dólares. Junho de 1929, 58,5
bilhões de dólares. Diferença de mais de 13,2 bilhões de dólares.
Assim, em cinco anos, a potência de crédito dos bancos
norte-americanos subiu em treze bilhões de dólares.

221
NOTAS

Os técnicos intentaram calcular a realidade substancial que


representava esta enorme acumulação de créditos. Os cálculos
referem-se ao segundo semestre do ano de 1928:
Nos Estados Unidos, as disponibilidades monetárias totais
(moeda ou créditos bancários) elevavam-se a mais de 57 bilhões
de dólares.
Com o encaixe em ouro dos Bancos de emissão era só de um
pouco mais de 3,5 bilhões de dólares, a cobertura em ouro dos
dólares papel e crédito resultava ser somente de um 6,5%. Seis
dólares e meio de ouro servem, pois, de garantia a 100 dólares
moeda ou créditos bancários. O sistema monetário americano
pode ser representado como uma pirâmide que descansa sobre
sua cúspide.
Na Inglaterra, a cobertura da circulação moeda papel ou
moeda crédito era um pouco maior: 7,53%.
Na França, donde o cheque é relativamente pouco empregado,
a cobertura em ouro era de 24%.
Ainda quando o emprego do cheque havia aumentado nas
proporções que mencionamos precedentemente às possibilidades
de expansão dos créditos, os banqueiros não se declararam
satisfeitos com isso.
A cidade de Londres logrou que se admita que os créditos
ou divisas dos países com padrão ouro, os quais em realidade,
como acabamos de ver, não representam frequentemente mais
que um 6 ou 7% de metal precioso, podiam servir de garantia,
com igual título que o ouro, à circulação monetária emitida por
Institutos de emissão do continente.
Assim, um título que representa um crédito por mais de

222
Concepção Católica da Economia

80% de seu valor devia servir de garantia a uma emissão de


moeda, que é por si mesma uma fonte de novos créditos. Esta
doutrina, conhecida com o nome de Gold Exchange standard,
e posta em vigor sobre a economia do mundo. (Pierre Lucius,
Faillite du Capitalisme?, Payot, Paris, 1932, pp. 69-72).”

NOTA 5:
O curioso é que a contradição do regime monetário áureo
semeia uma instabilidade tão espantosa que tende a exceder-se
a si mesma até acabar no suicídio. Quer-se exterminar o ouro
como signo monetário. Assim parecem pretendê-lo ao menos
as teorias monetárias de Irving Fisher (L’Ilusion de la monnaie),
Keynes J. M. (Monetary Reform), Cassel Gustav (Das Stabilizierug
un Problem oder der Weg zu einer festen Geldwesen), e em forma
mais explícita Sylvain Asch (Monnaie et Finance). O ouro exter-
minado seria substituído por uma moeda papel, que seria a
expressão puramente monetária, valor-signo da quantidade
de riquezas naturais.
É difícil prever se é este caminho um caminho para recon-
quistar o sentido do dinheiro, puro instrumento, como queriam
Aristóteles e Santo Tomás, ou é, pelo contrário, a suprema
tentativa do mundo moderno, mundo que definitivamente
não descansa senão sobre um pedaço de papel, para desvincu-
lar-se do ouro pelo qual atualmente se sente, todavia, unido à
realidade sensível.
De todo modo é interessante destacar que esta solução viria
praticamente a coincidir com o que ensinam “Los Protocolos de los
sabios de Sión”, Acta nº 20, quando relatam a política monetária
que seguiriam os judeus, uma vez donos do mundo.

223
NOTAS

NOTA 6:
Sobre a identificação do empréstimo a juros e os judeus é muito
interessante a documentação que aporta Werner Sombart:
“Mas há, por outro lado, uma circunstância relativa também
à riqueza dos Judeus que requer alguns esclarecimentos. É o
vasto emprego que faziam os Judeus de seu dinheiro com vistas
ao empréstimo. Este emprego particular, muito frequente e
muito estendido (as provas que possuímos disso nos permite
afirmá-lo com certeza), constitui evidentemente um dos fatores
que mais hão contribuído a preparar o advento do capitalismo. Se
os Judeus se revelam em todo sentido aptos para favorecer a evo-
lução capitalista da economia, isso se deve por certo, e até pode
dizer-se antes de tudo à função de emprestadores de dinheiro
(em grande e em pequeno valor) que haviam assumido; pois
do empréstimo de dinheiro nasceu o capitalismo.
É que o empréstimo de dinheiro contém já em gérmen a
ideia fundamental do capitalismo, o qual deve ao empréstimo
de dinheiro seus caracteres mais importantes.
No empréstimo de dinheiro, o feixe contratual do comércio
converteu-se em elemento essencial: a negociação que tem por
objeto o serviço e a reciprocidade, a promessa que compromete
o futuro, e a ideia da prestação constituem seu conteúdo.
Toda ideia de subsistência fica eliminada do alto do empréstimo.
O ato do empréstimo fica despojado de todo caráter concreto
(“técnico”), é um ato econômico de natureza puramente espiritual.
No empréstimo de dinheiro, a atividade econômica propria-
mente dita deixa de ter sentido algum: o que se limita a emprestar
dinheiro renuncia a toda atividade racional do corpo e do espírito.
De modo que o valor desta ocupação vê-se deslocado: ele está

224
Concepção Católica da Economia

inteiramente, não na ocupação mesma, senão em seu resultado.


Só o resultado segue tendo um sentido.
No empréstimo de dinheiro aparece por primeira vez a
possibilidade de ganhar dinheiro de outro modo que não seja
com o suor da testa, de fazer trabalhar aos outros, sem recorrer à
coação e à violência.
É visível que todos estes caracteres particulares do em-
préstimo de dinheiro não são, propriamente falando, senão
os caracteres particulares da organização econômica tal como
existe no sistema capitalista. (Werner Sombart, Les Juifs et la Vie
Economique, Payot, 1923, pp. 247-48).
É também interessante destacar a influência judia através
da Reforma protestante, seu vínculo imediato. Assim disse o
mesmo Werner Sombart:
“Várias vezes eu disse que são os estudos de Max Weber sobre
o papel do puritanismo no desenvolvimento do capitalismo os
que me animaram especialmente a empreender mais investiga-
ções sobre o Judaísmo, quanto mais lia seus estudos mais havia
adquirido a convicção de que as ideias fundamentais do purita-
nismo, aquelas que tiveram uma importância essencial para o
desenvolvimento do capitalismo, acham-se já expressadas com
muito mais força e alívio na religião judia, a qual, por suposto,
lhe corresponde a prioridade delas. É-me impossível demonstrar
aqui, com todas as provas do caso, a exatidão do meu modo de ver:
necessitaria para isso confrontar os resultados a que cheguei
em todo este longo capítulo com as ideias fundamentais do
puritanismo, tais como foram expostas por Weber. Parece-me, no
entanto, que uma confrontação semelhante faria transluzir
um completo acordo entre as concepções judias e as puritanas,

225
NOTAS

ao menos no que concerne os principais pontos examinados nes-


te capítulo: a preponderância dos interesses religiosos, a ideia da
recompensa, a racionalização da vida, a ascese “intramundana”,
a mistura íntima de representações religiosas e interesses ma-
teriais, a concepção calculista do problema do pecado e muitas
outras características se encontram igualmente em ambos casos”.
“O puritanismo não é mais que o judaísmo.
Creio que, depois das investigações de Weber e as minhas,
a afinidade, e ainda mais, a identidade espiritual que existe entre
uma e outra não será difícil de estabelecer.
Seria um pouco difícil responder à questão de saber se o pu-
ritanismo sofreu a influência exterior da religião judia e, em
caso afirmativo, qual pode ser essa influência. São conhecidos
os estreitos vínculos que, na época da Reforma, se haviam estabe-
lecido entre o Judaísmo e algumas seitas cristãs, e a febre que se
havia declarado então pela língua hebreia e os estudos judaicos;
mais particularmente se sabe que, na Inglaterra do século XVII,
os Puritanos rodeavam os Judeus de um culto quase fanático. Não
somente as concepções religiosas de personagens tão influentes
como Oliver Cronwell estavam inspiradas de uma ponta a outra
no Antigo Testamento, sem que o mesmo Cronwell sonhasse com
uma reconciliação ente o Antigo Testamento e o Novo, e com uma
união íntima entre os Judeus, povo escolhido de Deus, e a comu-
nidade religiosa anglo-puritana"... “Está igualmente estabelecido
que o clero e os leigos cristãos da época liam assiduamente não
somente o Antigo Testamento senão também a literatura rabínica.
É, pois, de todo ponto natural admitir que as doutrinas puritanas
provêm diretamente das doutrinas judias. Deixemos aos historia-
dores da Igreja a tarefa de estabelecer este fato com toda a claridade
desejável”. (Idem, idem, p. 320-22).

226
Concepção Católica da Economia

O empréstimo a juros e a conduta da Igreja


Vamos pontuar nesta nota o que, salvo melhor critério, há
que se pensar a respeito da conduta da Igreja no que se refere
ao empréstimo a juros.

1º ponto: Até o começo do século XIX a Igreja condenou


sempre toda percepção de lucro pelo dinheiro emprestado, a não
ser que títulos extrínsecos ao mesmo empréstimo, tais como um
dano conseguinte autorizasse o reclame de uma recompensa. O
último documento cume na matéria é a célebre bula Vix pervenit de
Bento XIV, que se reproduz aqui em apêndice, e na qual o Santo
Padre condena a percepção de qualquer juros, por exíguo que
seja, e ainda quando o dinheiro emprestado se empregará em
obras produtivas.

2º ponto: Pelas influências calvinistas e puritanas como o


demonstraram Max Weber e Werner Sombart (Les Juifs et la vie
économique) o empréstimo a juros se introduziu e generalizou
nas relações econômicas da Europa até que foi promulgado
na Assembleia Constituinte da Revolução Francesa, depois de
um longo debate.
Com isso a vida econômica alcançou um ritmo muito diferente
do alcançado em épocas anteriores, de tal sorte que autores como
Werner Sombart (obra citada) e Henry Sée (Les origines du Capita-
lisme) não duvidam e, com razão ao meu entender, de atribuir ao
empréstimo a juros, como a causa primeira, o desenvolvimento
maravilhoso da economia moderna.

3º ponto: Ao variar o ritmo da vida econômica, multiplica-


ram-se as ocasiões de fazer produtivo o dinheiro de sorte que

227
NOTAS

praticamente o dinheiro pode considerar-se como produtivo.


Logo, parecia lógico que todo aquele que empresta dinheiro,
exigisse também aquele benefício que era como conatural ao
dinheiro mesmo, e que estava representado pela taxa legal.
Existia então um título suficiente, é, a saber, a privação desse
benefício como conatural ao dinheiro, para que todo prestamista
exigisse um juros.
Por isso que a Igreja com grande sabedoria permite nesta
hipótese da Economia moderna, que os cristãos recebam o juros
corrente do dinheiro emprestado e assim ordena que não sejam
inquietados os que recebem juros (Pio VIII, 18 de agosto de 1830) e
o Código de Direito Canônico, Cânon 1543, prescreve: “Se uma coisa
fungível se dá a outro para que seja dele e depois se restitui na mesma
qualidade, nenhum lucro se pode receber em razão do mesmo contrato;
mas no empréstimo de uma coisa fungível não é de si ilícito, receber o
lucro autorizado pela lei, a não ser que conste que é imoderado, e ainda
de um lucro maior, se existe um justo e proporcionado título”.

4º ponto: A conduta da Igreja é completamente uniforme


e concorde na legislação sobre o empréstimo a lucro. Se apa-
rentemente parece que mudou é porque mudaram as condições
econômicas e então uma mesma doutrina recebe aplicação diversa.

5º ponto: O livro presente não é um código de moral no


qual se indica como hão de comportar-se os cristãos na vida
econômica atual para não pecar, senão que é uma análise fi-
losófico-teológico da mesma vida econômica atual, da hipóte-
se econômica presente, que tratou de estudar em si mesmo o
empréstimo a juros que forma o coração do Capitalismo, para
chegar à conclusão de que o mundo moderno ao introduzir a

228
Concepção Católica da Economia

teoria puritano-calvinista de empréstimo a juros na economia


cometeu um enorme erro porque sancionou uma injustiça que
a longo prazo deveria ser nefasta.
Com efeito o empréstimo a juros, ou seja, a recepção de um
lucro em virtude do empréstimo, é em si mesmo injusto como
o demonstrou Santo Tomás, e como ainda agora o mantém a
Igreja (ver Genicot, Institutiones Theologiae Moralis, edit. undecima,
tomo I, p. 530) e deve ser nefasto, porque ainda que desenvolva
enormemente a vida econômica, este desenvolvimento efetua-se
em benefício de uma minoria privilegiada e às custas do corpo
social; donde há de terminar em uma economia convulsionada
por uma terrível e universal luta social.

6º ponto: Donde creio que a hipótese econômica moderna,


em que está em vigor o empréstimo a juros, deve desaparecer,
se se quer uma economia sã. Há que voltar simplesmente à
Economia não capitalista. (Ver em apêndice os parágrafos de
Abate Jules Morel).
A Igreja abstém-se hoje de formular juízo sobre esta hipótese
de um regime econômico, com o empréstimo a juros por essência
ou motor. Suposta a existência da hipótese, autoriza a recepção do
juros porque existem títulos extrínsecos ao mesmo empréstimo,
que o justificam.
Ao meu entender a hipótese da economia moderna, com o
empréstimo a juros por essência ou motor, é evidentemente
contrária a doutrina da Igreja exposta por Santo Tomás em
seus artigos sobre a usura. Minha tese não é uma novidade
porque tem sido defendida pela escola sociológica de Viena,
com Vogelsan, e por La Tour du Pin.

229
NOTAS

7º ponto: Supostas estas observações, não se devem separar


do livro certas frases que na hipótese da Economia moderna
podem parecer falsas ou exageradas. As frases devem ser lidas
no contexto dentro da lógica com que se desenvolve o pensa-
mento. Assim, p. ex., quando digo “se o dinheiro é emprestado,
o juros que o capital reclama como devido é um roubo”, não
se deve entender nas condições econômicas atuais, em que o
dinheiro chegou a ser produtivo e em que, portanto, existe um
título extrínseco ao mesmo empréstimo para reclamar juros;
senão que há de se entender o conceito interno de empréstimo e
tendo em vista uma organização econômica em que a moeda não
tivesse outro destino a não ser um puro instrumento de câmbio.
Quando se lê “O capital não tem direito a nenhum juros” há
de se entender a palavra juros, não como benefício ou utilidade,
senão como um rendimento fixo, a prazo fixo, que fosse devido
ao capital, em virtude de uma criação infalível de toda moeda.
Descarta-se, portanto, a hipótese de que exista um título
extrínseco ao empréstimo para que seja cobrado.

8º ponto: Em resumo, que todo capítulo das Finanças deve


ser lido tendo em conta que o livro presente busca indicar os
apontamentos a que deveria ajustar-se um regime econômico social baseado
nos princípios sociais cristãos, e não pretende de forma alguma, ser
uma diretiva para os casos de consciência que pode oferecer aos
que atua na vida econômica moderna.

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LIVRO CONSAGRADO
À NOSSA SENHORA APARECIDA,
PADROEIRA DO BRASIL.

Este livro foi produzido pelas famílias tipográficas Vollkorn e PT Sans.


Impresso em Papel Supremo 300g e Polen Bold 90g.

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