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Biocapitalismo e trabalho.

Novas formas de exploração e


novas possibilidades de emancipação

Andrea Fumagalli
As finanças no comando bioeconômico do trabalho vivo
E mais:
Christian Marazzi
A sociedade: uma grande fábrica de Wilson Vieira:
>>

produção de valor Um projeto de nação nos


moldes de Celso Furtado
327
Ano X Stefano Lucarelli >> Pedro de Alcântara Figueira:
A financeirização como forma de biopoder Marx: os homens são
03.05.2010
ISSN 1981-8469 o que fazem
Biocapitalismo e trabalho.
A presente edição, por ocasião do 1º de maio, foi inspirada pelo livro Crisi dell’ economia glo-
bale. Mercati finanziari, lotte sociali e nuovi scenari politici (Crise da economia global. Mercados
financeiros, lutas sociais e novos cenários políticos (em tradução livre) (Verona, Ombre Corte/Uni-
nomade, 2009), organizada por Andrea Fumagalli e Sandro Mezzadra, e que será publicado, proxi-
mamente, no Brasil.

Os autores do livro, já entrevistados em outras edições da revista IHU On-Line, contribuem,


mais uma vez, analisando as características peculiares da atual crise financeira, que é uma crise
da globalização tal como a conhecemos até hoje, a partir e sob a perspectiva das mudanças do
mundo do trabalho.

A presente edição também pode ser um importante subsídio que prepara o XI Simpósio Inter-
nacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana a ser realizado nos dias 13 a 16 de
setembro de 2010.

Colaboram na discussão do tema de capa desta edição Andrea Fumagalli, economista, professor
na Università di Pavia, Itália; o mestre de conferências na Universidade de Paris I Pantheón-Sor-
bonne, Carlo Vercellone; o professor e diretor de investigação socioeconômica na Universidade
della Svizzera Italiana, Christian Marazzi; o professor da Universidade de Bologna, Itália, Federico
Chicchi; e Stefano Lucarelli, professor da Università degli Studi di Bergamo, Itália.

Completam esta edição duas entrevistas e um artigo. Uma com o economista e professor do Cen-
tro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal) e na Faculdade de Americana (FAM), Wilson Vieira,
sobre o pensamento de Celso Furtado como inspiração para um projeto de nação para o Brasil. E a
outra, com o historiador e filósofo Pedro de Alcântara Figueira, que analisa a obra de Karl Marx,
autor que será objeto de estudo no próximo módulo do Ciclo de Estudos em EAD – Repensando
os Clássicos da Economia – Edição 2010, com o título A (anti)filosofia de Karl Marx – Karl Marx,
1818-1883, que inicia dia 17 de maio.

Enfim, “A televisão brasileira: pública ou privada?” é o tema do artigo de Aléxon Gabriel João,
pesquisador do Grupo de Pesquisa Comunicação, Economia Política e Sociedade (CEPOS), do Pro-
grama de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPG-CC) da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos - Unisinos.

A todas e todos uma ótima leitura e uma excelente semana!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do
Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769. Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@
Expediente

unisinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisinos.br). Redação: Márcia
Junges MTB 9447 (mjunges@unisinos.br) e Patricia Fachin MTB 13062 (prfachin@unisinos.br). Revisão:
Vanessa Alves (vanessaam@unisinos.br). Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do
Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico: Bistrô de Design
Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling, Greyce Vargas (greyceellen@unisi-
nos.br) e Juliana Spitaliere. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio www.ihu.uni-
sinos.br. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade
dos Jesuítas - Residência Conceição. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling.
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do IHU: humanitas@unisinos.br - ramal 4121.
Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 05 | Stefano Lucarelli: A financeirização como forma de biopoder
PÁGINA 11 | Andrea Fumagalli: As finanças no comando bioeconômico do trabalho vivo
PÁGINA 13 | Carlo Vercellone: Mais-valia: uma lei da exploração e do antagonismo
PÁGINA 19 | Christian Marazzi: A sociedade: uma grande fábrica de produção de valor
PÁGINA 21 | Federico Chicchi: Lado imaterial do trabalho não é suficientemente tematizado pelas teorias
da modernidade industrial

B. Destaques da semana
» Entrevista da Semana
PÁGINA 26 | Wilson Vieira: Estamos construindo um projeto de nação nos moldes de Furtado
» Coluna do Cepos
PÁGINA 30 | Aléxon Gabriel João: A televisão brasileira: pública ou privada?
» Destaques On-Line
PÁGINA 32 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista
» Agenda de Eventos
PÁGINA 37| Pedro de Alcântara Figueira: Marx: os homens não são o que pensam e desejam, mas o que fazem

» IHU Repórter
PÁGINA 41| Cecília Pires

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 


 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327
A financeirização como forma de biopoder
Stefano Lucarelli contribui no debate sobre a financeirização, perguntando com que re-
gras pode ser administrado o fenômeno “população” no contexto do neoliberalismo, isto
é, no novo regime de acumulação rebocado pelas finanças

Por Cesar Sanson e Graziela Wolfart | Tradução de Benno Dischinger

“C
onsidero a financeirização (o que, em primeira instância, aparece como o deslocamen-
to da poupança das economias domésticas para os títulos de ações), como a forma de
controle social necessária para que a população contribua à reprodução das formas ins-
titucionais do novo capitalismo. O biopoder não é simplesmente uma forma de controle
social, mas é um conjunto de técnicas de governo que representa um investimento na
vida da parte das relações de poder”. A definição é do professor Stefano Lucarelli, em entrevista exclusiva
concedida à IHU On-Line, por e-mail. E ele completa: “as técnicas, nas quais se concretiza o biopoder,
mantêm certa ambiguidade: talvez se poderia dizer que os traços da sujeição e da subjetivação tendem a
se sobrepor”. Lucarelli explica o que são os “efeitos riqueza”, e considera que os mesmos “não representam
uma característica inata de todo consumidor, mas dependem da liquidez crescente que os mercados finan-
ceiros trazem. Os efeitos riqueza seriam então interpretados como uma transformação das relações sociais,
uma característica da população que se torna objeto de biopoder. Num regime de acumulação puxado pelas
finanças, o conjunto de técnicas de submissão-subjetivação se torna sempre mais incisivo, enquanto a pou-
pança das economias domésticas é desviada para os títulos acionários. Aqui está o traço do biopoder”. Ao
contextualizar o mundo do trabalho com a crise do capitalismo financeiro, Lucarelli entende que “a crise
do fordismo é necessária, sobretudo ao capital, para restabelecer o seu controle sobre o trabalho e sobre a
sociedade”. E continua: “Num regime de acumulação em que as finanças ditam a lei, as forças produtivas
estão sujeitas a formas de controle que não se exaurem no comando direto. Para analisar estas modalidades
de comando que se entrelaçam com as lógicas da produção e do consumo, a dicotomia foucaultiana sujei-
ção/subjetivação é absolutamente decisiva”.
Stefano Lucarelli é professor no Departamento de Economia “Hyman P. Minsky” da Università degli Studi
di Bergamo, Itália. Doutor em Economia Política pela Università Politecnica delle Marche, sua tese intitula-se
Cicli politici elettorali e finanziamento della sanità pubblica in Italia. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a atualidade si mesmo, um pós-moderno. Seus primeiros cursos oferecidos pelo grande pensa-
da categoria biopoder proposta por trabalhos (História da Loucura, O Nascimento dor francês no Collège de France em
Foucault para se compreender as da Clínica, As Palavras e as Coisas, A Arqueo- duz efeitos de verdade e saber, constituindo
logia do Saber) seguem uma linha estrutura- verdades, práticas e subjetividades. Em duas
mudanças em curso no capitalismo lista, o que não impede que seja considerado edições a IHU On-Line dedicou matéria de
mundial? geralmente como um pós-estruturalista devido capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004,
Stefano Lucarelli - Preciso fazer uma a obras posteriores como Vigiar e Punir e A disponível para download em http://migre.
História da Sexualidade. Foucault trata princi- me/vMiS e a edição 203, de 06-11-2006, dis-
indispensável premissa. Não sou um palmente do tema do poder, rompendo com as ponível em http://migre.me/vMj7. Além dis-
especialista do pensamento de Fou- concepções clássicas deste termo. Para ele, o so, o IHU organizou, durante o ano de 2004, o
cault. Comecei a estudar com ele nos poder não pode ser localizado em uma institui- evento Ciclo de Estudos sobre Michel Foucault,
ção ou no Estado, o que tornaria impossível a que também foi tema da edição número 13 dos
 Michel Foucault (1926-1984): filósofo fran- “tomada de poder” proposta pelos marxistas. Cadernos IHU em Formação, disponível para
cês. Suas obras, desde a História da Loucura O poder não é considerado como algo que o download em http://migre.me/vMjd sob o tí-
até a História da sexualidade (a qual não pôde indivíduo cede a um soberano (concepção con- tulo Michel Foucault. Sua contribuição para a
completar devido a sua morte) situam-se dentro tratual jurídico-política), mas sim como uma educação, a política e a ética. Confira, tam-
de uma filosofia do conhecimento. Suas teorias relação de forças. Ao ser relação, o poder está bém, a entrevista com o filósofo José Ternes,
sobre o saber, o poder e o sujeito romperam em todas as partes, uma pessoa está atraves- concedida à IHU On-Line 325, sob o título Fou-
com as concepções modernas destes termos, sada por relações de poder, não pode ser con- cault, a sociedade panóptica e o sujeito his-
motivo pelo qual é considerado por certos au- siderada independente delas. Para Foucault, o tórico, disponível em http://migre.me/zASO.
tores, contrariando a sua própria opinião de poder não somente reprime, mas também pro- (Nota da IHU On-Line)

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1977-78 e 1978-79, já que me desper- a se sobrepor.
tou curiosidade e fui estimulado pelo
“O biopoder não é, pois,
trabalho conduzido pela rede Unino- IHU On-Line - O senhor afirma que a
made, que desde 2003 iniciou um per-
um conceito cristalizado financeirização da economia mani-
curso possível de recomposição das festa-se como biopoder. Como isso
inteligências críticas para construir
de uma vez por todas” ocorre?
um dispositivo de autoformação e de- Stefano Lucarelli - Para responder a
bate para pesquisadores, estudantes e to dos mecanismos graças aos quais os esta pergunta, é preciso recordar os
ativistas de movimentos. A finalidade traços biológicos que caracterizam a principais acontecimentos que carac-
é acentuar a necessidade de uma ci- espécie humana se tornam objeto de terizaram o capitalismo contemporâ-
ência da transformação do presente uma estratégia geral de poder”. Trata- neo. Deflagrado em 1971 pela decisão
estado de coisas. Neste projeto, as ca- se das modalidades de racionalização unilateral dos EUA de decretar o fim
tegorias propostas por Foucault pare- das técnicas de governo destinadas à dos acordos de Bretton Woods, geran-
cem decisivas: não só porque se pode, “segurança”, que caracterizam o iní- do a flexibilidade no mercado cambial,
de tal modo, continuar uma análise cio da idade moderna: a saúde, a hi- e acelerado pelas políticas monetárias
do poder capitalista que concebe o giene, a natalidade, a longevidade e de Volker , de 1979, em concomitân-
poder como campo de poderes, isto a raça em relação a uma população. cia com o acesso ao poder de Reagan
é, como um conjunto de correlações Com o curso de 1978-79, é dado um nos EUA e de Tatcher no Reino Unido
entre formas institucionais de saberes passo em frente: Foucault estuda o (a assim chamada contrarrevolução
e de práticas, mas também porque o modo pelo qual, a partir do século 18,  Conferência de Bretton Woods: nome com
próprio Foucault coloca o problema da a racionalização dos problemas levan- que ficou conhecida a Conferência Monetária
produção de subjetividade. Nesta nos- tados pela prática governamental dos Internacional, realizada em Bretton Woods, no
sa conversação sobre a financeiriza- estado de New Hampshire, nos EUA, em julho
fenômenos que caracterizam uma po- de 1944. Representantes de 44 países partici-
ção como forma de biopoder, veremos pulação é associada ao liberalismo. A param da conferência. Nela foi planejada a
que o principal problema a enfrentar pergunta que surge é: com que regras recuperação do comércio internacional depois
consiste precisamente na produção da Segunda Guerra Mundial e a expansão do
pode ser administrado o fenômeno comércio através da concessão de emprésti-
de subjetividade. Nos cursos no Collè- “população” no contexto do “libera- mos e utilização de fundos. Os representan-
ge de France, Foucault se esforça por lismo”, aqui entendido como sistema tes dos países participantes concordaram em
delinear as características do conceito simplificar a transferência de dinheiro entre
atento ao respeito dos sujeitos de di- as nações, de forma a reparar os prejuízos da
de biopoder, uma categoria que ele reito e da liberdade de iniciativa dos guerra e prevenir as depressões e o desempre-
havia introduzido no último capítulo indivíduos? O biopoder não é, pois, um go. Concordaram também em estabilizar as
de A vontade de saber, de 1976. Na- moedas nacionais, de forma que um país sem-
conceito cristalizado de uma vez por pre soubesse o preço dos bens importados. A
quele contexto, Foucault define bio- todas. Conferência de Bretton Woods traçou os planos
poder como uma “grande tecnologia O que procurei fazer na minha con- de dois organismos das Nações Unidas – o Fun-
de duas faces, anatômica e biológica, do Monetário Internacional e o Banco Mundial.
tribuição sobre a financeirização foi O fundo ajuda a manter constantes as taxas
que age sobre o indivíduo e sobre a perguntar com que regras pode ser ad- de câmbio, além de socorrer países com crises
espécie”. Nos anos subsequentes, ele ministrado o fenômeno “população” nas suas reservas cambiais, como no caso do
procura clarear o nexo existente entre Brasil e da Rússia, em 1998. O banco realiza
no contexto do neoliberalismo, isto é, empréstimos internacionais a longo prazo e dá
esta categoria e o paradigma neolibe- no novo regime de acumulação rebo- garantia aos empréstimos feitos através de ou-
ral. No curso de 1977-78, ele enfrenta cado pelas finanças. (Nota da IHU On-Line)
tros bancos. ���������
a gênese de um saber político que co- � Paul Adolph Volker (1927): economista ame-
Neste contexto, considero a finan- ricano. ��������������������������������������
Desde fevereiro de 2009, é presidente
loca no centro de suas preocupações a ceirização (o que, em primeira instân- do Conselho Consultivo de Recuperação Eco-
noção de população e os mecanismos cia, aparece como o deslocamento da nômica do presidente Barack Obama. (Nota da
capazes de assegurar sua regulação. IHU On-Line)
poupança das economias domésticas  Ronald Reagan (1911-2004): Ator norte-
A população não é simplesmente con- para os títulos de ações), como a for- americano formado em economia e sociologia.
cebida como o conjunto dos “súditos ma de controle social necessária para Foi eleito governador da Califórnia em 1966,
de direito”, nem como um conjunto e se reelegeu em 1970, com uma margem de
que a população contribua à reprodu- um milhão de votos. Conquistou a indicação
de braços destinados ao trabalho, mas ção das formas institucionais do novo à presidência pelo Partido Republicano em
como um conjunto de elementos que capitalismo. O biopoder não é simples- 1980, e os eleitores, incomodados com a infla-
se conectam ao regime geral dos se- ção e com os americanos mantidos há um ano
mente uma forma de controle social, como reféns no Irã, o conduziram à Casa Bran-
res vivos e que pode funcionar como mas é um conjunto de técnicas de go- ca. Antes de ocupar a presidência, passou 28
suporte de intervenções combinadas; verno que representa um investimento anos atuando como ator em 55 filmes que não
neste contexto, biopoder é “o conjun- entraram para a história, mas que lhe deram
na vida da parte das relações de poder. fama e popularidade. Sua carreira no cinema
 Sobre esse tema, confira o evento XI Sim- As técnicas, nas quais se concretiza o terminou em 1964, em The Killers, único filme
pósio Internacional IHU: O (des)governo bio- biopoder, mantêm certa ambiguidade: em que atuou como vilão. (Nota da IHU On-
político da vida humana, que acontece de Line)
13 a 16 de setembro de 2010. A programação talvez se poderia dizer que os traços  Margaret Hilda Thatcher (1925): política
completa pode ser conferida em http://migre. da sujeição e da subjetivação tendem britânica, primeira-ministra de 1979 a 1990.
me/BjNT. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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monetária), o regime de acumulação,
que foi se afirmando no decurso dos
“O consumismo se consumidores-poupadores. Também
as lógicas inerentes aos investimen-
anos 1980, tem seu motor nos mer-
cados financeiros: a modernização
tornou um fenômeno tos das empresas se modificaram. O
dinamismo da economia americana,
salarial favorece a rentabilidade da
empresa e aumenta o valor dos títulos
invasivo que toca os durante os anos 1990, nos setores das
tecnologias de informação e comu-
financeiros, dos quais também depen-
dem os fundos de pensão, os fundos de
mais jovens, mas nicação (TIC) e das biotecnologias e
seus efeitos invasivos sobre os setores
investimento, os seguros e parte das
retribuições dos trabalhadores. Estes
também os adultos” tradicionais da economia, procede pa-
ralelamente à difusão de novas tipolo-
últimos, sobretudo no decurso dos gias de mercados financeiros especia-
anos 1990 (os anos da new economy), o signo e a vontade da civilização do lizados na mercantilização dos direitos
foram sempre mais incentivados pe- consumo”. A taxa de substituição dos de propriedade intelectual (IPR): o
los Governos, pelos próprios sindica- “status symbol” é aumentada com o NASD (National Associaton of Securi-
tos e pela opinião pública, no sentido tempo, e o consumismo se tornou um ty Dealers) Regulation, de 1984, que
de confiar os próprios rendimentos às fenômeno invasivo que toca os mais introduz a possibilidade de valorizar
bolsas. Como nos deixou claro Robert jovens, mas também os adultos. os intangibles (compostos prevalen-
Boyer (já em 2001), no modelo de Esta última fase ainda se desen- temente de IPR) como vozes do ativo
crescimento que emerge, a economia volveu num contexto de crescimento no balanço das empresas; a consti-
real e a economia financeira estão econômico, porém, no interior de um tuição do Nasdaq National Market: a
profundamente entrelaçadas: os perfis regime de acumulação finance-led, no modificação da lei sobre os fundos de
das empresas, mas também o consumo qual o consumo não aumenta mais gra- pensão, de modo a permitir enormes
das famílias são redes do andamento ças ao aumento dos salários (a quota fluxos de liquidez diante de empresas
das bolsas. Sustentar os rendimentos dos salários sobre o produto total di- em déficit, mas de alta rentabilidade,
financeiros torna-se o imperativo do minui), mas graças aos efeitos riqueza levando em conta o potencial dos in-
manager e o horizonte de realização apoiados pelo boom das bolsas, num tangibile assets. A complementaridade
de muitos pequenos poupadores (endi- mundo em que parte das retribuições entre mercados financeiros e o IPR foi
vidados). A própria “cartolarização” – a em contracheque (as stock options), o coração pulsante da new economy
transformação dos créditos bancários os salários diferidos (os fundos de pen- e representa a origem do superinves-
em atividades negociáveis - é analisa- são) e as poupanças das famílias se timento, favorecido pela política das
da como a última etapa da profunda deslocam massiçamente para as ativi- baixas taxas de interesse do Fundo
transformação dos sistemas financei- dades financeiras. Quando o boom das Europeu de Desenvolvimento (FED). A
ros, iniciada no final dos anos 1970 e bolsas perdeu a força dos anos 1990, dinâmica dos investimentos privados
relacionada com a virada da política a estrutura psicológica dos consumi- como cota do PIB mostra que, entre
monetária estadunidense de outubro dores já estava comprometida. Em 1992 e 2001, os investimentos priva-
de 1979. O consumismo, que se desen- outros termos, os efeitos riqueza não dos aumentaram progressivamente,
volveu nas fases de crescimento que representam uma característica inata para depois despencar entre 2002 e
precederam a contrarrevolução mone- de todo consumidor, mas dependem 2003 (Flow of funds of the United Sta-
tarista, era incentivado pelos aumen- da liquidez crescente que os mercados tes, 6 de dezembro de 2007). As ra-
tos salariais e voltado principalmente financeiros trazem. Os efeitos riqueza ízes da crise desencadeada em 2007
aos bens de massa estandardizados; seriam então interpretados como uma devem ser buscadas nos anos da new
aquilo a que depois se assistiu é um transformação das relações sociais, economy. A crise brota do excesso de
consumismo que se manifestou acima uma característica da população que investimento nas novas tecnologias
de tudo na aquisição de estilos de vida, se torna objeto de biopoder. Num re- da informação e da comunicação e da
através do desenvolvimento da indús- gime de acumulação puxado pelas fi- exaustão das oportunidades de lucro
tria cultural e do divertimento. Esta nanças, o conjunto de técnicas de sub- oferecidas pelas novas tecnologias.
tendência é muito bem descrita nas missão-subjetivação se torna sempre Transferida e contida principalmente
Cartas Luteranas de Píer Paolo Pasoli- mais incisivo, enquanto a poupança pela política monetária, a bolha enfim
ni (1975), onde ele reconhece a morte das economias domésticas é desviada explodiu.
dos valores proletários na homologa- para os títulos acionários. Aqui está o
ção dos comportamentos juvenis “sob traço do biopoder. IHU On-Line - Que características as-
� Pier Paolo Pasolini (1922-1975): cineasta Devo acrescentar que a financei- sumem o trabalho na atual fase de
italiano. Seus
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filmes são muito conhecidos por rização não se exaure somente na expansão do capitalismo financeiro?
criticarem a estrutura do governo italiano (na mudança dos comportamentos dos
época fortemente ligado à Igreja Católica), Stefano Lucarelli - Em primeira ins-
que promovia a alienação e hábitos conser-  Stock options: Programas de incentivo de tância, pode-se dizer que o trabalho
vadores na sociedade. Além disso, seu cinema longo prazo que permitem aos funcionários vai sempre se fragmentando mais ao
foi marcado por uma constante ligação com o comprar ações da companhia onde trabalham
arcaísmo prevalecente no homem moderno. (Nota da IHU
por um preço abaixo do mercado. ���������  Da sigla em inglês: International Property Ri-
(Nota da IHU On-Line) On-Line) (Nota da IHU On-Line)
ghts (IPR). ���������

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longo da linha de produção, e isso “O trabalho vai sempre os custos, nem sobre os lucros. Ainda
põe em crise o próprio conceito de sois projetados sobre a tratativa, so-
representação dos trabalhadores. A se fragmentando mais bre as mediações segundo as infiltra-
dinâmica dos mercados financeiros ções político-sociais e também senti-
incide profundamente sobre as ca- ao longo da linha de mentais. Não sois sequer patrimoniais,
racterísticas que o trabalho assume: conversíveis, fracionáveis e não podeis
a partir da crise do paradigma indus- produção, e isso põe em adaptar-vos à velocidade do capitalis-
trial e fordista – que procede parale- mo hodierno, nem favorecer sua abs-
lamente ao abandono dos acordos de crise o próprio conceito tração. Ainda sois verdadeiros e até
Bretton Woods – os mercados financei- vivos”. O desafio dos fícus que, num
ros se tornam o lugar onde o processo de representação dos ímpeto de raiva gritam ao computador
de valorização, próprio de uma nova que ele é construído para a negação
divisão internacional do trabalho, en- trabalhadores” da indústria e de sua cultura e não tem
contra uma (des)medida; uma medida nenhuma função gerencial, é sancio-
sujeita às convenções financeiras. As os recursos naturais, mas o trabalho nada pelas seguintes afirmações: “O
convenções financeiras que se sucede- desenvolvido num ano é a base da qual que ainda conta um dirigente? Atu-
ram de 1993 até hoje e que puseram cada nação extrai todas as coisas ne- almente é só o seu substantivo que
sob xeque-mate as políticas monetá- cessárias e cômodas da vida que con- corre entre os meus fluxos, codificado
rias dos Bancos Centrais, afirmam-se some num ano”. com um relevo e um cargo não mui-
no interior de um mesmo paradigma Todavia, é difícil compreender re- to relevante. Ainda devo explicar-vos
tecnológico, no qual o trabalho se almente em que consistiria hoje a di- que não há mais partes? Que agora só
atomiza. A recomposição de classe da visão do trabalho. Esta de fato mudou, existem os programas e o sistema que
multiplicidade dos vetores produti- tanto em escala nacional como em es- eu posso estabelecer e desenvolver?
vos se complica. Como sustenta, por cala mundial, e a crise do fordismo é Só conta o que eu introduzo, codifico,
exemplo, Carlo Vercellone10, a figura o sinal desta mudança. A crise do for- coleto, calculo, transmito. Todo o res-
do trabalho cognitivo assume particu- dismo é necessária, sobretudo ao ca- to está fora, também os implantes da
lar relevância. No entanto, não creio pital, para restabelecer o seu controle energia às sociedades de todo tipo, as
que a definição de trabalho seja sim- sobre o trabalho e sobre a sociedade. pessoas físicas e jurídicas, que são so-
ples. É dificilmente contestável o que Num belo romance de 1989, que Pao- mente um material; figuras e volumes
escrevia Adam Smith11 em 1776: “não lo Volponi12 dedica a Adriano Olivetti, do passado que eu, a meu bel prazer,
10 Leia, nesta edição, uma entrevista exclusi-
As moscas do capital (Turim: Einaudi, posso introduzir no presente e desen-
(Nota da IHU On-Line)
va com Vercellone. ��������� volver no futuro”. As empresas, uma
11 Adam Smith (1723-1790): considerado o 1989), as plantas de fícus falam com
fundador da ciência econômica. A Riqueza das um terminal de computador. Fícus e vez reorganizado o trabalho pelo des-
Nações, sua obra principal, de 1776, lançou
computador são expressões daquele frute das descobertas da informática,
as bases para um novo entendimento do me- pretendem encurtar o tempo necessá-
canismo econômico da sociedade, quebrando poder industrial que decide sobre a di-
paradigmas com a proposição de um sistema visão do trabalho. A diferença é que os rio à obtenção dos lucros, sendo que
liberal, ao invés do mercantilismo até então
primeiros pertencem ao mundo fordis- toda mediação é abolida. Vale a pena
vigente. Outra faceta de destaque no pensa- relembrar precisamente a história de
mento de Smith é sua percepção das sofríveis ta em plena crise, enquanto o segundo
condições de trabalho e alienação às quais os representa o que há de vir. Dizem os Paolo Volponi, humanista, ex-dirigen-
trabalhadores encontravam-se submetidos com
fícus: “Somos a criativa cultura indus- te da Olivetti, assumido pela Fiat e li-
o advento da Revolução Industrial. O Instituto cenciado após menos de três meses, a
Humanitas Unisinos promoveu, em 2005, o I trial. Não temos mais ligações com a
Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da natureza e os climas ancestrais; nada poucas horas da aparição, na Unidade,
Economia. No segundo encontro deste evento,
nos inibe e nos condiciona. Temos o de sua declaração de voto comunista
a professora Ana Maria Bianchi, da USP, profe- para as eleições de 1975.
riu a conferência A atualidade do pensamen- espírito e o metabolismo da empre-
to de Adam Smith. Sobre o tema, concedeu sa. Os dirigentes olham para nós para Na Itália, após a reestruturação
uma entrevista à IHU On-Line número 133, de
pensar e decidir”. Mas, o terminal é tecnológica dos anos 1980 e após o
21-03-2005, disponível em http://migre.me/ abandono de boa parte da cultura in-
xQmm. Ainda sobre Smith, confira a edição 35 cínico e impiedoso na consciência das
do Cadernos IHU ideias, de 21-07-2005, in- novas regras que vão se afirmando: dustrial italiana, os trabalhadores se
titulado Adam Smith: filósofo e economista,
escrito por Ana Maria Bianchi e Antônio Tiago
“Sois o sinal de uma estação da indús- definitiva ou não, com fins lucrativos, para
Loureiro Araújo dos Santos, disponível para tria: plantas nanicas de relações hu- explorar determinado(s) negócio(s), sem que
download em http://migre.me/xQnc. Smith manas. Mas, hoje não é mais a época nenhuma delas perca sua personalidade jurí-
foi o tópico número I do Ciclo de Estudos em dica. Difere da sociedade comercial (partner-
EAD – Repensando os Clássicos da Economia –
das “human relations”. Vocês não ser- ship) porque se relaciona a um único projeto
Edição 2009, estudado de 13-04-2009 a 02-05- vem às automações, às “joint ventu- cuja associação é dissolvida automaticamente
2009. O Ciclo de Estudos em EAD – Repensan- res13”, aos contratos; não influís sobre após o seu término. Um modelo típico de joint
do os Clássicos da Economia - Edição 2010, venture seria a transação entre o proprietário
em seu primeiro módulo, falou sobre Adam 12 Paolo Volponi (1924-1994): escritor, poeta de um terreno de excelente localização e uma
Smith: filósofo e economista. Para conferir a e narrador italiano. (Nota da IHU On-Line) empresa de construção civil, interessada em
programação do evento, visite http://migre. 13 Joint venture ou empreendimento con- levantar um prédio sobre o local. (Nota da IHU
me/xQsg. (Nota da IHU On-Line) junto: associação de empresas, que pode ser On-Line)

 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327


apresentam fragmentados, apavorados “Subjetivação e sociedade do trabalho (para usar a ter-
e incapazes de promover um conflito minologia que me propus). Isso pode
nas formas clássicas. No entanto, ain- submissão procedem ajudar a compreender o ponto de um
da há os mortos no lugar de trabalho, romance nascido na Itália, Vogliamo
há as nocividades (físicas e mentais) pari passo, e por isso tutto [Queremos tudo] de Nanni Bales-
que caracterizam a produção e que trino16 (1971). Neste romance, emerge
atingem os trabalhadores e o contexto a construção de uma o fato de que os direitos dos traba-
social no qual a produção ocorre. E se lhadores não se conquistam somente
multiplicam profissões que comportam biopolítica pode ser graças a uma carta constitucional:
um prolongamento não certificado da as lutas operárias de 1969, na Itália,
jornada laboral. Emergem até novas determinante para o são necessárias a fim de que se che-
modalidades de conflito, mas estas in- gue a um Estatuto dos trabalhadores
vestem sempre mais nas relações ex- conjunto de técnicas que (1970). Porém, há mais: a composição
ternas à fábrica, aqui entendida como de uma classe que possa ser reconhe-
o lugar tradicional da produção. Num definem o biopoder” cida nessas lutas é animada pelo ódio
regime de acumulação em que as fi- nos confrontos do trabalho de fábrica:
nanças ditam a lei, as forças produti- “E nós éramos verdadeiramente todos
gestão presente nos escritos de Toni
vas estão sujeitas a formas de controle a mesma coisa... a coisa que não ti-
Negri14 e de Judith Revel15, se pode
que não se exaurem no comando di- nha diferença era a nossa vontade, a
definir a biopolítica como um poder
reto. Para analisar estas modalidades nossa lógica, a nossa descoberta que
constituinte. A construção de instân-
de comando que se entrelaçam com as o trabalho é o único inimigo e a única
cias constituintes, em condições de
lógicas da produção e do consumo, a doença. Era o ódio que todos tínhamos
não serem logo reabsorvidas nas rela-
dicotomia foucaultiana sujeição/sub- por este trabalho e pelos patrões que
ções capitalistas, é questão complexa.
jetivação é absolutamente decisiva. nos obrigavam a fazê-lo. Era por isso
Numa discussão sobre as formas de
que todos estávamos enfurecidos, e
resistência ao biopoder, é importante
IHU On-Line - O senhor afirma que era por isso que, quando não fazíamos
questionar-se por que o fordismo tenha
“a construção de uma biopolítica é greve, entrávamos em benefício. Tudo
entrado em crise. Com ele, entra em
determinante para o próprio funcio- isso para evitar aquela prisão onde nos
crise também uma forma particular da
namento da financeirização como tiravam a nossa liberdade e a nossa
forma de biopoder”. Como isso se 14 Antonio Negri (1933): filósofo e político força todos os dias. Estes pensamen-
italiano. Durante a adolescência, foi militante
manifesta na sociedade do trabalho? da Juventude Italiana de Ação Católica, como tos, que eu tinha há muito tempo por
Stefano Lucarelli - O capitalismo con- Umberto Eco e outros intelectuais italianos. minha conta, eu finalmente via que
temporâneo funciona através de dis- Em 2000, publica o livro-manifesto Império eram o que todos pensavam e diziam.
(5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003), com Mi-
positivos de sujeição-subjetivação. A chael Hardt. Atualmente, após a suspensão de E as lutas, que até então eu fazia por
produção de subjetividades resisten- todas as acusações contra ele, definitivamente iniciativa própria contra o trabalho,
tes pode ser paradoxalmente funcio- liberado, ele vive entre Paris e Veneza, escre- acabei vendo que eram as lutas que
ve para revistas e jornais do mundo inteiro e
nal a este regime de acumulação. Para publicou, recentemente, Multidão. Guerra e todos nós podíamos fazer juntos e as-
se reproduzir, o capitalismo deve re- democracia na era do império (Rio de Janei- sim vencê-las.”
novar-se e o faz sugando a linfa vital à ro/São Paulo: Record, 2005), também com
Michael Hardt. Sobre essa obra, publicamos
população, que ele deixa viver. Basta um artigo de Marco Bascetta na 125ª edição da Um novo modo de regulação
pensar no debate atual sobre a green IHU On-Line, de 29-11-2004. O livro é uma es-
economy: o pensamento ecológico e pécie de continuidade da obra anterior da du- Este nível de conflito produz direi-
pla, Império. Ele foi apresentado na primeira
a pesquisa política e de engenharia, edição do evento Abrindo o Livro, promovido tos efetivos porque compele as insti-
que são dele derivadas, representam pelo IHU, em abril de 2003. Em 2003, esteve tuições democráticas a definirem um
exatamente a base sobre a qual os na América do Sul (Brasil e Argentina) em sua modo de regulação à altura das reivin-
primeira viagem internacional, após décadas
mercados financeiros podem voltar a entre o cárcere e o exílio. (Nota da IHU On- dicações dos operários e da sociedade.
crescer. Subjetivação e submissão pro- Line) Hoje, a composição de classe narrada
cedem pari passo, e por isso a constru- 15 Marie Judith Revel (1966): filósofa france- por Balestrino não existe: quando se
sa, é professora da Universidade de Roma - La
ção de uma biopolítica pode ser deter- Sapienza e colaboradora no Departamento de olha somente ao mundo do trabalho,
minante para o conjunto de técnicas Sociologia e Ciência Política da Universiade de emergem, em todo o caso, significati-
que definem o biopoder. Consenza e do Centro Michel Foucault (Paris). vos episódios de luta (penso nas novas
Suas pesquisas abordam o pensamento francês
contemporâneo, particularmente a obra de formas de luta que fizeram notícia em
IHU On-Line - A “biopolítica” apre- Michel Foucault. Foi diretora da edição italia- setembro passado na Itália) que falam
senta-se como resistência ao “bio- na dos Ditos e Escritos de Foucault (Feltrinelli, tanto da debilidade quanto da força
1996-1998). Confira a entrevista concedida por
poder”. Como isso é perceptível nas Revel às Notícias do Dia do site do IHU, em 10- dos trabalhadores: os trabalhadores
novas resistências de exploração ao 02-2009, A passagem do capitalismo material são débeis porque sofrem a fragmen-
capital? ao imaterial cognitivo e a crise da represen-
tação política, disponível em http://migre. �� Nanni Balestrini (1935): poeta e escritor
Stefano Lucarelli - Seguindo uma su- (Nota da IHU On-Line)
me/BjnQ. �������� italiano. (Nota da IHU On-Line)

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tação da produção e são desambien- gers & Acquisitions que caracterizam
tados ante a mobilidade dos capitais, este capitalismo. Ante estas novas
sob os quais o regime de acumulação lógicas (financeiras) de maximização
contemporâneo se estrutura. Os tra- dos úteis de empresa, facilitadas pe-
balhadores tentam reconhecer-se en- las irresponsabilidades dos governos e
tre si, tentam conceber-se como um dos sindicatos que aceitaram o enfra-
grupo de interesses coeso. Os traba- quecimento dos direitos dos trabalha-
lhadores são indivíduos explorados, dores, é preciso repensar as formas do
e o são quando trabalham ou quando conflito. Foi sempre Gallino que teve a
não trabalham. Por exemplo, o caso honestidade de relatar as palavras de
INNSE17 nos mostra a força que há na um operário do INNSE que, nos micro-
subjetividade no momento em que or- fones da Rádio Popular, dialogava com
ganizam a luta, no momento em que outro operário da CIM de Marcellina19:
põem em ação a própria inteligência, “O velho tipo de luta, a paralisação,
indo combater aqueles aspectos da não funciona mais. É preciso utilizar
produção capitalista que prejudicam outras formas de luta”. Palavras que,
os interesses do capital. Um impor- em alguns âmbitos de movimentos
tante sociólogo do trabalho italiano, (penso nos precários que organizam a
Luciano Gallino18,escreveu que extrair Euro May Day Parade20) são difundidas
indicações de caráter geral do caso há tempo.

Orações Ilustradas.
INNSE parece uma temeridade. Toda- O conflito pode retornar, se se de-
via, o entrincheiramento de poucos senvolve uma coesão entre aqueles
operários sob altas estruturas, com o que sofrem a crise e se reassume a

Acesse em www.ihu.unisinos.br
apoio de outros trabalhadores, e a so- consciência que a luta paga. Permi-
lidariedade de quem se sente partícipe tam-me, uma vez mais, recorrer à li-
do sentido de desespero e de coragem teratura. Vasco Pratolini21 contou em
daqueles operários, atinge um dos pon- Metello a longa greve que, no início
tos nevrálgicos do novo capitalismo: a do século 20, paralisou os canteiros de
mídia, os processos informativos que obras de Florença: “O grevista é um
assumiram um papel sempre mais in- trabalhador que tomou consciência de
cisivo na valorização de uma atividade sua condição de explorado e delibera-
produtiva qualquer. Com seu gesto, di- damente enfrenta a luta e sacrifícios
tado por um lúcido desespero, os ope- cada vez maiores, onde reivindicar os
rários revelaram que uma fábrica em seus direitos. Todas estas palavras são
condições de saúde teria sido fecha- verdadeiras no momento da ação, mas
da para extrair algo útil do encerra- depois? Quando uma paralisação se ar-
mento. São os interesses imobiliários, rasta, como crescem as dificuldades,
a cessão dos setores empresariais, as crescem as tentações. Durante uma
reestruturações, as operações de Mer- greve, trata-se de resistir, isto é, de
17 A INNSE é uma fábrica metalúrgica de trans- esperar”. As mesmas palavras valem
formação de metais e está situada na Lombar- também quando a luta assume uma
dia, Itália. Os 49 operários estavam em luta e
protestavam há cerca 14 meses com bloqueios forma diversa da paralisação. Hoje, no
de estradas, ocupação de instalações e até a meu ponto de vista, as reivindicações
“ocupação” de uma grua de 12 metros de altu- do mundo do trabalho e as reivindica-
ra, tudo para evitar o fecho da INNSE. O risco
de fechamento era enorme, e seriam mais 50 ções no terreno das políticas sociais
famílias destroçadas pelo desemprego. Os 14 deveriam proceder conjuntamente.
meses de esperança e raiva fez com que 49 19 C.I.M.: Calci Idrate Marcellina S.P.A. Em-
operários se mantivessem firmes no seu local presa com sede em Marcellina (Roma, Itália),
de trabalho, estando desde maio de 2008 no fornecedora de matérias-primas para constru-
regime de “mobilidade”. O intenso clima que ção civil e obras públicas, como cal hidratada
se gerou e a incansável perseverança e energia em pó. (Nota da IHU On-Line)
dos trabalhadores fizeram com que a fábrica 20 Euro May Day Parade: evento de ação po-
fosse adquirida por um grupo italiano, e a ma- lítica contra a precariedade, promovido por
nutenção dos postos de trabalho, garantidos. trabalhadores de grupos feministas, anti-capi-
(Nota da IHU On-Line) talistas e migrantes sobretudo no Leste Euro-
18 Luciano Gallino: sociólogo do trabalho peu, na data de 1º de Maio de cada ano. (Nota
italiano.Confira nas Notícias do Dia do site da IHU On-Line)
do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 21- 21 Vasco Pratolini (1913-1991): escritor italia-
11-2009, o artigo que dele reproduzimos: A no. Sua principal inspiração era o cotidiano na
economia, os governos e a fome no mundo. região da Toscana na primeira metade do sé-
O material está disponível em http://migre. culo XX. A obra de Pratolini é identificada com
me/BjfQ. (Nota da IHU On-Line) o neo-realismo. (Nota da IHU On-Line)

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As finanças no comando bioeconômico do trabalho vivo
Com as transformações dos últimos 30 anos, os mercados financeiros passaram a repre-
sentar a privatização da reprodução da vida, uma vez ultrapassada a sociedade salarial.
São, portanto, um biopoder, defende Andrea Fumagalli

Por Cesar Sanson e Graziela Wolfart | Tradução de Benno Dischinger

N
a visão do economista Andrea Fumagalli, a passagem do capitalismo fordista ao cognitivo, ou
biocapitalismo, é caracterizada por dois elementos principais. O primeiro é a centralidade dos
mercados financeiros, e o segundo é “que o processo de acumulação e valorização tende a fun-
dar-se sempre mais sobre o envolvimento da vida no trabalho”. Na entrevista a seguir, concedida
à IHU On-Line, por e-mail, Fumagalli afirma que “a crise das finanças é (...) crise da governança
financeira do biopoder atual. Ficou enfraquecido o mecanismo de governança sócio-econômica, baseado no
individualismo proprietário e na ideologia neoliberal, que caracterizara a passagem do capitalismo fordista
industrial ao cognitivo bioeconômico”. Ele continua, argumentando que “as formas de comando do capital
sobre o trabalho são formas de controle e de comando sobre as faculdades cognitivas dos seres humanos, e
não apenas disciplinamento do corpo”. Para Fumagalli, “o processo laboral se individualizou. Isso significa
que não existe mais uma classe homogênea de trabalhadores, tornada coesa por uma prestação laboral co-
mum”. E dispara: “o mundo do trabalho é fragmentado e dividido”.
Doutor em Economia Política, Andrea Fumagalli é professor no Departamento de Economia Política e
Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Seus temas de
interesse são teoria macroeconômica, teoria do circuito monetário; economia da inovação e da indústria,
flexibilidade do mercado de trabalho e mutação do capitalismo contemporâneo: o paradigma do capita-
lismo cognitivo, entre outros. Dentre seus vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Nuovo e vecchio
sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006), Bioeconomia e capitalismo cognitivo, Verso un nuovo paradigma
di accumulazione (Roma: Carocci Editore, 2007), e La crisi economica globale (Verona: Ombre corte, 2009).
Andrea Fumagalli estará na Unisinos no próximo mês de setembro, participando do XI Simpósio Interna-
cional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13 a 16 de setembro, quando falará sobre
“A financeirização como forma de biopoder”. Veja a programação completa do evento em http://migre.
me/Bj4f. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que marca a passa- um multiplicador financeiro que induz fusão das finanças não se exaure aqui.
gem do “capitalismo fordista” para o uma distorção da renda diversamente Nos últimos 30 anos, ela substituiu o
“capitalismo cognitivo”? daquele real keynesiano baseado no Estado como assegurador social (ca-
Andrea Fumagalli - A passagem do “deficit spending”. A polarização dos nalização forçada de parte crescente
capitalismo fordista ao cognitivo, ou rendimentos que ele obtém aumenta dos rendimentos do trabalho – previ-
biocapitalismo, é caracterizada por os riscos de insolvência dos débitos dência, instrução, saúde). Deste ponto
dois elementos principais. O primeiro que estão na base do crescimento da de vista, os mercados financeiros re-
é a centralidade dos mercados finan- mesma base financeira e abaixa o nível presentam a privatização da reprodu-
ceiros. Eles, de fato, proveem o finan- médio dos salários. O endividamento ção da vida, uma vez ultrapassada a
ciamento da atividade de acumulação, crescente das famílias americanas e a sociedade salarial. São, portanto, um
sobretudo no caso das produções cog- insolvência referente aos mútuos imo- biopoder. Ou melhor, enquanto biopo-
nitivas imateriais (conhecimento e es- biliários – que marcaram o elemento der, as finanças são um dos elementos
paço). Em segundo lugar, na presença desencadeador da crise – não são se- do comando bioeconômico sobre as
de mais-valias, desenvolvem o papel não o efeito de um processo de dis- forças do trabalho vivo. A crise das
de multiplicador da economia e de tribuição regulado e comandado pelos finanças é, portanto, crise da gover-
redistribuição da renda. Trata-se de próprios mercados financeiros. Mas, a nança financeira do biopoder atual.
SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 11
Ficou enfraquecido o mecanismo de “O endividamento mica: economias de aprendizagem e
governança sócio-econômica, basea- de rede), a mais-valia é hoje definível
do no individualismo proprietário e na crescente das famílias como expropriação (desfrutamento,
ideologia neoliberal, que caracteriza- exploração) da cooperação social.
ra a passagem do capitalismo fordista americanas e a
industrial ao cognitivo bioeconômico. IHU On-Line – A categoria general in-
insolvência referente aos tellect sugerida por Marx tem sido
O envolvimento da vida no trabalho revisitada. Qual é a sua novidade no
mútuos imobiliários – que denominado capitalismo cognitivo?
O segundo elemento é que o pro- Andrea Fumagalli - Nos Grundrisse
cesso de acumulação e valorização marcaram o elemento (fragmento sobre as máquinas), o con-
tende a fundar-se sempre mais sobre ceito de “general intellect” tinha sido
o envolvimento da vida no trabalho, e desencadeador da crise pensado por Marx como o resultado do
isso ocorre, em primeiro lugar, com a progresso científico encarnado na má-
utilização prevalente da linguagem e – não são senão o efeito quina. Hoje, o general intellect tem a
da atividade relacional. A linguagem ver com o “bios” do gênero humano.
está na base dos processos de apren- de um processo de Assistimos a um modelo antropogené-
dizagem, enquanto a capacidade rela- tico da produção, onde o corpo huma-
cional determina os processos de rede distribuição de fato no (Mente, sentidos, coração, nervos)
(network). Linguagem e rede são os se tornou o capital “maquinino” [ma-
fatores que constituem a geração e a regulado e comandado quinal] da produção.
difusão do conhecimento como motor
nevrálgico da produção de mais-valia. pelos próprios mercados IHU On-Line – Por que o modo de pro-
Um primeiro efeito é que se reduz o dução hoje assume características
processo de distribuição da renda, financeiros” “biopolíticas”?
fundado na possibilidade de um pacto Andrea Fumagalli - As formas de co-
social que ligue a estrutura salarial às mando do capital sobre o trabalho são
chegado a um ponto de extrema criti-
modalidades de acumulação material. formas de controle e de comando sobre
cidade. E não é por acaso que, sobre a
O segundo é interiorizado no centro as faculdades cognitivas dos seres hu-
regulamentação da Internet, se jogue
do corpo humano, e isso produz novas manos, e não apenas disciplinamento
uma partida decisiva, tanto no que se
formas de alienação e novas doenças do corpo. A disciplina da fábrica, atu-
refere aos direitos de propriedade in-
de estresse psicofísico. ada através dos tempos pela máquina
telectual como no referente às formas
física, tende hoje a ser substituída por
de controle social.
IHU On-Line - O senhor afirma que processos de controle social e cerebral,
diferentemente do paradigma fordis- que impelem para formas de autocon-
IHU On-Line - O conceito de mais-
ta anterior, na nova dinâmica do ca- trole e autorrepressão. Hoje, o biopo-
valia proposto por Marx precisa ser
pitalismo, alteram-se as coordenadas der é controle dos processos formativos
revisto com o advento do capitalismo
espaço-tempo. Como isso ocorre? e construções de imaginários que ten-
cognitivo? Como se dá hoje a mais-
Andrea Fumagalli - A imaterialidade, dem a subsumir a vida dos indivíduos.
valia?
hoje presente em boa parte da ativi- Andrea Fumagalli - No capitalismo
dade de produção, torna impossível IHU On-Line – Onde se situa e como
cognitivo (biocapitalismo) é preciso
uma mensuração adequada da produ- redefinir o conceito de trabalho pro-  Grundrisse der Kritik der politischen Öko-
nomie (Elementos fundamentais para a crí-
tividade individual e, por conseguinte, dutivo. Hoje assistimos a uma exten- tica da economia política): é um manuscrito
social. A cooperação produtiva produz são do trabalho produtivo que amplia de Karl Marx, completado em 1858. Sobre o
“des-medida”. Tal desmedida redefine a base da acumulação. O que, no for- tema, a IHU On-Line entrevistou Jorge Paiva.
A entrevista “Grundrisse” de Marx. Um outro
de modo novo o tempo e o espaço. O dismo, era considerado “capitalisti- paradigma teórico para os desafios contempo-
que hoje aparece como não mensurá- camente” improdutivo, hoje se torna râneos está disponível em http://migre.me/
vel (des-medida) é a gestão do tempo produtivo. Um exemplo é fornecido no BiPa. (Nota da IHU On-Line)
 Sobre esse tema, confira na edição 161 da
e do espaço. Não é por nada que, após trabalho de reprodução (processo de revista IHU On-Line, de 24-10-2005, a entre-
uma secular redução, o tempo efeti- feminilização do trabalho) e na ativi- vista concedida por Paolo Virno, intitulada
vo de trabalho tenha constantemente dade de consumo (processo de bran- “O cérebro social como interação direta en-
tre sujeitos de carne e osso”, disponível para
aumentado nos últimos trinta anos. O dização, mercificação dos símbolos e download em http://migre.me/BiXV. Leia,
espaço físico-territorial e o espaço vir- da linguagem, bem como do espaço, também, a entrevista concedida por Giuseppe
tual da Internet agitam os novos con- “commodification e gentrification”). Cocco às Notícias do Dia 22-04-2007 do site
do IHU: “Já saímos da sociedade salarial. Mas
flitos. Não é por acaso que a questão Já que tais processos são resultados isso não tem nada a ver com o fim do trabalho,
ecológica, ou seja, a sustentabilidade de uma atividade social que se de- nem com o fim do emprego”, disponivel para
do território e do ambiente, tenha senvolve no tempo (ou seja, é dinâ- download em http://migre.me/Bj2t. (Nota da
IHU On-Line)

12 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327


“O que hoje aparece
como não mensurável
(des-medida) é a gestão
do tempo e do espaço”
se manifesta a resistência operária
nos dias de hoje?
Andrea Fumagalli - A mais-valia é hoje Mais-valia: uma lei da exploração
gerada, atribuindo valor às “diferen-
ças”. O processo de acumulação não é e do antagonismo
caracterizado por rigidezes dicotômi-
cas (tempo de trabalho – tempo livre, Para Carlo Vercellone, a lei da mais-valia exprime a racionali-
produção – reprodução, produção – con-
dade econômica do capitalismo no que ela tem de mais essen-
sumo, trabalho manual – trabalho inte-
lectual etc.), mas se fundamenta sobre cial, sob todas as suas formas: o de ser um sistema orientado
a exploração flexível das individualida- para a acumulação ilimitada do capital
des através dos imaginários e o resgate
da necessidade (precariedade). O pro-
cesso laboral se individualizou. Isso sig- Por Cesar Sanson e Graziela Wolfart | Tradução Benno Dischinger
nifica que não existe mais uma classe

N
homogênea de trabalhadores, tornada
coesa por uma prestação laboral co- a entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, Carlo Ver-
mum (exemplo: o operário-massa). O cellone se concentrou na questão referente à lei do valor e sua
mundo do trabalho é fragmentado e crise na passagem do capitalismo industrial ao capitalismo cog-
dividido. Cada segmento do mercado nitivo. “A origem e o sentido histórico da lei do valor tempo de
do trabalho pode desenvolver resistên- trabalho estão estreitamente ligados à configuração da relação
cias e conflitos, mas sozinho não está capital-trabalho que se desenvolve após a revolução industrial. É nesta con-
em condições de atingir uma massa de juntura histórica que a racionalidade econômica do capital, isto é, de lei da
impacto suficiente para incidir em ní- mais-valia, toma, com efeito, diretamente, o controle, e afirma seu empre-
vel social. A resistência operária é uma
endimento tanto sobre a esfera da produção como sobre a das necessidades,
delas, mas isolada não basta. É preciso
impulsionando progressivamente a lógica da produção/consumo de massa de
acrescentar à luta e à resistência em
cada condição laboral a capacidade de mercadorias”. Na visão de Vercellone, “a lei do valor tempo de trabalho se
desenvolver processos de recomposi- afirma (...) como a expressão concreta de uma prática gerencial de ‘racio-
ção social. E tais processos só podem nalização’ da produção e de abstração do próprio conteúdo do trabalho, a
intervir no território (porque o territó- qual fez do tempo do relógio e depois do cronômetro os meios por excelência
rio é hoje o lugar da produção) e no para quantificar o valor econômico saído do trabalho, a fim de prescrever os
terreno do Welfare como instrumento modos operatórios e aumentar a produtividade”. E Vercellone define capi-
de remuneração (não de assistência) e talismo cognitivo como “a passagem do capitalismo industrial a uma nova
a vida posta a trabalhar. Por isso, sou forma de capitalismo no qual a dimensão cognitiva e imaterial do trabalho se
favorável à proposta de uma renda bá- torna dominante do ponto de vista da criação de valor e da competitividade
sica incondicionada como instrumento das empresas. Neste quadro, a questão central da valorização do capital e
de recomposição social.
das formas de propriedade conduz diretamente à apropriação capitalista do
comum e à transformação do conhecimento numa mercadoria fictícia”. Ao
final da entrevista, Vercellone adiciona uma breve bibliografia, considerando
a importância teórica do debate sobre a crise da lei do valor.
Leia Mais... Mestre de conferências na Universidade de Paris I Pantheón-Sorbonne, Car-
>> Andrea Fumagalli já concedeu outra lo Vercellone é membro da Unidade de Pesquisas Matisse-Isys (http://matisse.
entrevista à IHU On-Line. univ-paris1.fr). Especialista da história econômica da Itália, é o organizador da
* “Os mercados financeiros são o coração pul- obra coletiva Sommes-nous sortis du capitalisme industriel? (Paris: La Dispute,
sante do capitalismo cognitivo”. Publicada na 2003). Vercellone é autor de Accumulation primitive du capital (1861-1980),
revista IHU On-Line número 302, de 03-08-2009,
disponível em http://bit.ly/boM7zF Industrialisation et rapport salarial: une application au cas italien (Paris:
L’Harmattan, 1999). Confira a entrevista.
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IHU On-Line - No centro da crise do “A lei da mais-valia (...) É, ao contrário, a lei da mais-va-
capitalismo, encontra-se a crise da lia, enquanto lei da exploração e do
lei do valor-tempo de trabalho. Em engendrou a lei do valor antagonismo, que engendrou a lei
que sentido, a lei do valor/ mais- do valor tempo de trabalho como um
valia, constitutiva da racionalidade tempo de trabalho como subproduto e uma variável depen-
econômica do capitalismo industrial dente. A origem e o sentido históri-
e de sua força progressiva encontra um subproduto e uma co da lei do valor tempo de trabalho
hoje limites estruturais? estão estreitamente ligados à confi-
Carlo Vercellone – Esta questão me variável dependente” guração da relação capital-trabalho
parece essencial. Para responder, con- que se desenvolve após a revolução
sidero importante precisar previamen- industrial. É nesta conjuntura histó-
te o que se entende pela lei do valor ra indissociável como uma lei da ex- rica que a racionalidade econômica
tempo de trabalho e em que consiste ploração e do antagonismo. Ela prece- do capital, isto é, de lei da mais-va-
sua articulação com a lei da mais-va- de, tanto de um ponto de vista lógico lia, toma, com efeito, diretamente
lia. Num segundo passo, analisarei as como histórico, a lei do valor, fazendo o controle e afirma seu empreendi-
causas que explicam o funcionamento do tempo de trabalho a substância e mento tanto sobre a esfera da produ-
e a força progressiva da lei do valor/ a medida do valor das mercadorias. ção como sobre a das necessidades,
mais-valia no capitalismo industrial, e Também é por isso que eu rejeito a impulsionando progressivamente
depois, sua crise no capitalismo cog- visão de certo marxismo que eu quali- a lógica da produção/consumo de
nitivo. Comecemos, pois, por definir ficaria de ricardiano e segundo o qual massa de mercadorias. Neste qua-
a lei da mais-valia. Ela exprime, com a lei do valor tempo de trabalho teria dro, a lei do valor tempo de trabalho
efeito, a racionalidade econômica do encontrado sua origem num modo mí- se afirma (antes mesmo que a eco-
capitalismo no que ela tem de mais tico de produção mercadológica sim- nomia política dos clássicos elabore
essencial, sob todas as suas formas: ples, constituída por trabalhadores a teoria do valor-trabalho) como a
o de ser um sistema orientado para a independentes para se estender, num expressão concreta de uma prática
acumulação ilimitada do capital. En- segundo tempo, ao capitalismo. gerencial de “racionalização” da
 Na tradição marxista coabitam, - como Negri
contraremos esta ideia na célebre fór- (1992) o sublinha com justo título, - duas con-
produção e de abstração do próprio
mula geral de O capital de Marx (A- cepções da teoria do valor. A primeira insiste conteúdo do trabalho, a qual fez do
M-A), onde a valorização do capital é na dimensão qualitativa da relação de explora- tempo do relógio e depois do cronô-
ção sobre a qual repousa a relação capital-tra-
um processo que não conhece limites balho, relação que pressupõe a transformação
metro os meios por excelência para
na própria medida em que seu objeti- da força-trabalho em mercadoria fictícia. É quantificar o valor econômico saí-
vo não é nem o consumo, nem o valor o que nós chamamos a teoria do valor-mais- do do trabalho, a fim de prescrever
valia. Ela apreende o trabalho abstrato como
de uso, mas a acumulação da riqueza a substância da fonte comum do valor numa
os modos operatórios e aumentar a
abstrata representada pelo dinheiro. sociedade capitalista regida pelo desenvol- produtividade. Ao mesmo tempo, ela
A mercadoria e a produção são, para vimento das relações mercantis e da relação vai assegurar, em função do tempo
salarial. Ao lado desta forma quantitativa,
o capital, simples meios para atingir existe uma segunda concepção sobre o proble-
de trabalho socialmente necessário,
este fim, isto é, a acumulação da mo- ma quantitativo da determinação do tamanho a regulação a posteriori, pela troca
eda por ela mesma, e isso a fim de do valor. Ela considera o tempo de trabalho mercadológica, das relações de con-
como o critério mensurador do valor das mer-
aumentar sem cessar o poder de co- cadorias. É o que nós chamamos a teoria do
corrência ligadas à atividade des-
mando que a moeda lhe confere sobre valor tempo de trabalho. Temos aí, a nosso centralizada de unidades produtivas
a sociedade e o trabalho, permitindo ver, uma concepção mais ricardiana que mar- independentes umas das outras.
xiana da teoria do valor-trabalho à qual, como
justamente apropriar-se (de maneira em Ricardo, se faz remontar a genealogia a
direta ou indireta) de um mais-valor. um modo hipotético de produção mercantil Racionalidade econômica do capital
Neste sentido, na linha de A. Negri, simples, para se estender imediatamente ao e lei do valor - mais/valia no capita-
capitalismo. Com efeito, em Marx, inclusive
pode-se afirmar que a lei da mais-valia no primeiro livro de O Capital, a lei do valor-
lismo industrial
se apresenta globalmente e de manei- trabalho é concebida diretamente em função
 Confira, nesta edição, a entrevista Marx: os da lei da mais-valia, e ela não tem nenhuma Sobre esta base, estamos, pois, em
homens não são o que pensam e desejam, mas autonomia relativamente a esta última, isto é,
o que fazem, com o historiador e filósofo Pedro à lei da exploração. A este propósito, é preci-
condições de caracterizar com certa
de Alcântara Figueira. (Nota da IHU On-Line) so reter na mente como estando aí, incluída precisão o que se pode chamar a ra-
 Em português: M (mercadoria) — D (dinheiro) no primeiro capítulo do livre I de O Capital, a cionalidade econômica da lei do va-
— M (mercadoria). Através desta fórmula, já escolha muito controvertida de Marx de partir
se constata o lugar típico do dinheiro entre as da análise da mercadoria, que nada tem a ver
lor/mais-valia que marcou o desenvol-
duas mercadorias, submetido, assim, à avalia- com a hipótese de uma sociedade mercantil vimento do capitalismo industrial.
ção das pessoas participantes da troca quanto simples, que teria precedido o capitalismo. Num plano mais geral, esta racio-
à equivalência qualitativa das mercadorias. Resulta, em troca, a necessidade de mostrar
Não é o dinheiro, neste caso, que domina a como é a transformação da força de trabalho
nalidade econômica repousa sobre
troca, senão a consciência da qualidade dos numa mercadoria fictícia e, portanto, a articu- uma concepção produtivista e pura-
objetos a serem trocados, tendo o processo lação entre seu valor de troca e seu valor de lor tempo de trabalho, enquanto lei da troca
M — D — M como pressuposto e, igualmente uso (o próprio trabalho) que explica o mistério de equivalentes, que fariam uma espécie de
como resultado, a mercadoria concreta. (Nota da origem do lucro. Em suma, em Marx não invariante estrutural do funcionamento do ca-
da IHU On-Line) há nenhum fetichismo referente à lei do va- pitalismo. (Nota do entrevistado)

14 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327


mente quantitativa do crescimento
da produção e da produtividade. Ela
“A norma industrial do zação da produção.
Estamos na origem da norma que,
pode ser definida como uma lógica
que consiste em fabricar e em vender
tempo de trabalho no sentido de Marx, faz do tempo de
trabalho abstrato, mensurado em uni-
mercadorias em vista de maximizar o
lucro, produzindo sempre mais com
abstrato se apresentava, dades de trabalho simples, não-quali-
ficado, a substância do valor das mer-
menos horas de trabalho e com menos
capital. É por isso que, como já ob-
assim, como a negação cadorias e o instrumento conjunto da
avaliação, do controle e da prescrição
servava Marx nos Grundrisse, “O ca-
pital é ele próprio a contradição em
de toda autonomia e de do trabalho. Para compreender a ins-
tauração e o aprofundamento progres-
processo: de um lado, ele se esforça
em reduzir o tempo de trabalho (ne-
toda dimensão cognitiva sivo desta norma, é preciso partir da
incerteza estrutural que caracteriza a
cessário à produção das mercadorias)
a um mínimo, e, de outra parte, ele
do trabalho” permuta capital-trabalho. A compra e
a venda da força de trabalho levam,
propõe o tempo de trabalho como a com efeito, a colocar à disposição uma
única fonte e a única medida da ri- mitindo-lhe obter também a adesão quantidade de tempo, e não o traba-
queza”. Em suma, é o próprio desen- da parte de setores consistentes do lho efetivo dos assalariados, o que Pa-
volvimento da racionalidade da lei do movimento obreiro e socialista (e isso olo Virno expressa muito bem através
valor/mais-valia que conduz ineluta- ao preço do abandono de toda crítica da distinção entre o conceito de poder
velmente ao seu esgotamento e à sua da divisão capitalista do trabalho e da e de ato. Compreende-se, então, por
crise. Ainda mais precisamente, pelo alienação na esfera do trabalho e das que as relações de saber e de poder
conceito de racionalidade econômi- necessidades). que se conectam em torno da organi-
ca da lei do valor/mais-valia é pre- zação da produção constituem um ele-
ciso entender duas dimensões com- IHU On-Line - Em que consiste esta mento essencial do antagonismo ca-
plementares (duas dimensões cujo ambivalência? pital-trabalho. E isso por duas razões
esgotamento está no cerne da crise Carlo Vercellone - Ela consiste em que essenciais. A primeira é que aqueles
atual). o decrescimento contínuo do tempo que controlam e ditam as normas
A primeira dimensão designa a lei de trabalho necessário à produção em operatórias podem também tornar-se
do valor pensada como a relação so- massa de mercadorias materiais e, mestres da intensidade e da qualida-
cial que faz da lógica da mercadoria e portanto, a redução de seu valor uni- de do trabalho. A segunda razão é que
do lucro o critério-chave e progressivo tário, pôde, com efeito, apresentar- aqueles que detêm os saberes produti-
do desenvolvimento da riqueza social se como o instrumento que permitia vos podem aspirar a gerir a produção,
e da satisfação das necessidades. No- “libertar a humanidade da escassez”, ou seja, definir a organização do tra-
temos que esta lógica apresenta, em satisfazendo de certa maneira uma balho, bem como as finalidades sociais
diversos planos, uma ambivalência massa crescente de necessidades, da produção.
econômica, social e política essencial, pouco importa se verdadeiras ou su-
uma ambivalência que, como o notava pérfluas. Este aspecto “progressivo” Uma organização científica
Andre Gorz, nutriu a ideologia do pro- da racionalidade do capital apresen- do trabalho
gresso do capitalismo industrial, per- tava-se também, pelo menos poten-
cialmente, isto é, sob a condição de Estamos na presença de uma ques-
 André Gorz (1923-2007): filósofo austríaco. lutas sociais, permitindo traduzir os
Escreveu inúmeros livros, vários deles tradu- tão central que já se encontra no cer-
zidos para o português, entre eles Adeus ao ganhos de produtividade numa redu-  Paolo Virno (1952): Filósofo e semiólogo
proletariado (Rio de Janeiro: Forense Uni- ção do tempo de trabalho, como o italiano de orientação marxista. Atualmente,
versitária, 1982), Metamorfoses do trabalho. meio de reduzir a termo a constrição leciona na Universidad de Cosenza. Em 1977
Crítica da razão econômica (São Paulo: Anna- apresentou sua tese de doutorado sobre o con-
blume, 2003) e Misérias do Presente, Rique- ao trabalho assalariado a um míni- ceito de trabalho e a teoria da consciência de
za do Possível (São Paulo: Annablume, 2004). mo. Temos, então, aí, uma dimensão Theodor Adorno. Entre seus livros estão: Gra-
Realizamos uma entrevista com André Gorz, utópica – o desenvolvimento das for- mática de la multitud. Para un análisis de las
publicada parcialmente na 129ª edição da re- formas de vida contemporáneas (Madrid: Tra-
vista IHU On-Line, de 02-01-2005, e na íntegra ças produtivas como instrumento de ficantes de Sueños, 2003); A Grammar of the
no número 31 dos Cadernos IHU ideias, com luta contra a escassez – sobre a qual Multitude: For an Analysis of Contemporary
o título A crise e o êxodo da sociedade sala- o capitalismo industrial pôde assen- Forms of Life (Nueva York: Semiotext, 2004)
rial, disponível para download em http://bit. e Cuando el verbo se hace carne. Lenguaje y
ly/aKdfWi. Sobre André Gorz, também pode tar uma espécie de legitimidade his- naturaleza humanas (Madrid: Traficantes de
ser lido o texto Pelo êxodo da sociedade sa- tórica, mas cujos fundamentos serão Sueños, 2005). Confira a entrevista A multi-
larial. A evolução do conceito de trabalho profundamente desestabilizados no dão, o mal e as instituições do futuro, repro-
em André Gorz, de autoria de André Langer, duzida pelas Notícias do Dia 08-11-2006, dis-
pesquisador do Cepat. O texto está publicado capitalismo cognitivo ponível em http://migre.me/BiO5. Na edição
nos Cadernos IHU n.º 5, de 2004. O site do A segunda dimensão da racionalida- 161 da revista IHU On-Line, de 24-10-2005,
Instituto Humanitas Unisinos – IHU deu ampla de econômica da lei do valor/mais-va- Virno concedeu a entrevista “O cérebro social
repercussão à morte de Gorz. Para acessar o como interação direta entre sujeitos de carne
material, acesse as Notícias do Dia. (Nota da lia se refere à sua aplicação à organi- e osso”, disponível para download em http://
IHU On-Line) migre.me/BiXV. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 15


ne da reflexão dos primeiros grandes o instrumento conjunto da avaliação e
teóricos da revolução industrial, como “A instalação de uma da submissão real do trabalho ao capi-
Ure e Babbage. Esta reflexão será tal. O crescimento de poder da dimen-
retomada e sistematizada por Taylor, economia fundada no são cognitiva do trabalho determina,
confrontada ao poder da composição neste sentido, uma dupla crise da lei
de classe do obreiro profissional nas conhecimento precede do valor. Uma crise da medida, de um
indústrias motrizes da segunda revo- lado, pois o trabalho cognitivo é uma
lução industrial. Taylor, reconhecendo e se opõe, tanto de um atividade que se desenvolve sobre o
que o “saber é o bem mais precioso” conjunto do tempo de vida. O tem-
de que dispõem os trabalhadores em ponto de vista lógico po passado e certificado na empresa
face do capital, fará dele o alvo de é, em geral, apenas uma fração do
sua análise das causas da “ociosidade como histórico, à tempo social efetivo de trabalho. No
obreira”. Ele deduzirá daí a necessida- novo capitalismo, a fonte principal da
de de fazer emergir e de expropriar os formação do criação do valor se situa, com efeito,
trabalhadores de seus “conhecimentos cada vez mais, em apoio ou em aval da
tácitos” para convertê-los, através do capitalismo cognitivo” esfera de produção direta e do univer-
estudo dos tempos e dos movimentos, so das empresas. Neste quadro, não
num saber codificado detido pelo ad- exploração (no sentido de Marx). só as modalidades de organização do
ministrador e remetido aos assalaria- Pelo conceito de capitalismo cogni- trabalho são cada vez menos prescrití-
dos sob a forma de estrita prescrição tivo se designa, então, a passagem do veis, mas as fontes da competitividade
do tempo de trabalho e dos procedi- capitalismo industrial a uma nova for- dependem cada vez mais de uma co-
mentos laborais. Taylor pensará ter, ma de capitalismo no qual a dimensão operação social produtiva que se de-
assim, estabelecido as bases irreversí- cognitiva e imaterial do trabalho se senvolve no exterior das fronteiras das
veis de uma organização científica do torna dominante do ponto de vista da empresas. Resulta disso também que
trabalho que suprime toda incerteza criação de valor e da competitividade o lucro, como a renda, repousa sem-
sobre a execução do trabalho, asse- das empresas. Neste quadro, a ques- pre preferencialmente sobre meca-
gurando ao capital a planificação “ex- tão central da valorização do capital nismos de apropriação da mais-valia,
ante” da lei do valor/mais-valia. Desta e das formas de propriedade conduz efetuados a partir de uma relação de
maneira, na usina tayloriana, a medida diretamente à apropriação capitalista exterioridade do capital em relação à
do trabalho e da produtividade, bem do comum e à transformação do co- organização da produção.
como o volume e o valor da produção nhecimento numa mercadoria fictícia
eram em princípio programados e co- (NEGRI e VERCELLONE, 2008). Prescrição da subjetividade
nhecidos previamente pelos engenhei- e não das tarefas
ros dos escritórios de planejamento e IHU On-Line - O que podemos enten-
podiam ser reduzidos a uma unidade der por crise da lei do valor? Uma crise do controle, pois o en-
comum de cálculo em termos de tem- Carlo Vercellone - Esta crise se apre- contro entre a intelectualidade difu-
po, o que também fornecia um indi- senta desde logo como uma perda de sa e as tecnologias da informação e
cador bastante preciso das taxas de pertinência das categorias fundamen- da comunicação faz da reapropriação
 Andrew Ure (1778–1857): químico escocês. tais da economia política do capita- coletiva do trabalho e dos meios de
(Nota da IHU On-Line) lismo industrial: o capital, o trabalho trabalho uma perspectiva novamente
 Charles Babbage (1791–1871): cientista, e, bem evidentemente, o valor. Mais
matemático e inventor inglês. É mais conhe- plausível, o que poderia novamente
cido e, de certa forma, reverenciado como o fundamentalmente ainda, ela corres- gerar conflitos recaindo sobre a pró-
inventor que projetou o primeiro computador ponde ao esgotamento destas duas di- pria autodeterminação da organização
de uso geral, utilizando apenas partes mecâni- mensões da racionalidade econômica
cas, a máquina analítica. Ele é considerado o do trabalho e das finalidades sociais da
pioneiro da computação. Seu invento, porém, da lei do valor/mais-valia, sobre as produção. É por isso que, em muitas
exigia técnicas bastante avançadas e caras na quais, como vimos, o capitalismo in- atividades produtivas, o modelo taylo-
época, e nunca foi construído. Sua invenção dustrial pudera afirmar sua dominação
também não era conhecida dos criadores do rista da prescrição das tarefas cede lu-
computador moderno. (Nota da IHU On-Line) sobre o trabalho e encontra uma espé- gar ao da prescrição da subjetividade,
 Frederick Winslow Taylor (1856-1915): en- cie de legitimidade histórica como ins- na qual a questão central se torna “o
genheiro norte-americano, considerado o pai trumento de luta contra a escassez.
da administração científica por propor a uti- controle total do tempo e do espírito
lização de métodos científicos cartesianos na A primeira dimensão corresponde, dos trabalhadores” (GORZ).
administração de empresas. Seu foco era a efi- pois, ao esgotamento da lei do valor A segunda dimensão remete ao es-
ciência e eficácia operacional na administração tempo de trabalho pensado como cri-
industrial. Sua orientação cartesiana extrema gotamento e à crise da lei do valor
é ao mesmo tempo sua força e fraqueza. Seu tério de “racionalização” capitalista pensada como a relação social que
controle inflexível, mecanicista, elevou enor- da produção que faz da norma do tra- faz da lógica da mercadoria e do lu-
memente o desempenho das indústrias em que balho abstrato, mensurado em unidade
atuou, todavia, igualmente gerou demissões, cro o critério-chave e progressivo do
insatisfação e estresse para seus subordinados de trabalho simples, não qualificado, desenvolvimento da riqueza social e
(Nota da IHU On-Line)
e sindicalistas. ���������

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da satisfação das necessidades. Esta
crise se expressa através de um di-
“Diversamente dos como, por exemplo, os lógicos, os
bens culturais numerados, mas tam-
vórcio crescente entre a lógica do
valor e a da riqueza. Para melhor
bens materiais, o bém os medicamentos (etc.), os perío-
dos de trabalho e, portanto, os custos
compreender o sentido desta afir-
mação, é preciso lembrar como para
conhecimento não se de reprodução, são muito baixos e,
em certos casos, tendem a zero. Esses
Marx (mas também para Ricardo) o
valor das mercadorias depende das
destrói pelo consumo. bens deveriam, então, ser vendidos a
preços muito baixos, ou até cedidos
dificuldades da produção e do tem-
po de trabalho. O conceito de valor
Melhor ainda, ele se gratuitamente, o que encerraria o ris-
co de conduzir à diminuição drástica
é, pois, completamente diferente do
conceito de riqueza, que depende da
enriquece quando do valor monetário de produção e, por
conseguinte, dos lucros que lhe são
abundância, do valor de uso (não do
valor de troca) e, portanto, da gra-
circula livremente associados. Neste quadro, a questão-
chave para o capital torna-se, então,
tuidade. Ora, a lógica capitalista da
produção mercantil encontrara, como
entre os indivíduos” uma estratégia de reforço dos direitos
de propriedade intelectual, permitindo
se viu, no capitalismo industrial, uma construir artificialmente uma raridade
espécie de legitimidade histórica na mercadorias clássicas, as particulari- dos recursos. É assim que o capital é
capacidade de desenvolver a riqueza, dades do bem comum conhecimento conduzido a desenvolver sempre mais
produzindo sempre mais mercadorias consistem, com efeito, em seu cará- mecanismos rendosos de rarefação da
com menos trabalho e, portanto, com ter não rival, não controlável e cumu- oferta, na tentativa de manter de ma-
preços unitários cada vez mais bai- lativo. Diversamente dos bens mate- neira forçada a primazia do valor de
xos, permitindo satisfazer uma massa riais, o conhecimento não se destrói troca e salvaguardar os lucros. Temos
crescente de necessidades. No entan- pelo consumo. Melhor ainda, ele se aí uma situação que contradiz, a meu
to, no capitalismo cognitivo, esta li- enriquece quando circula livremente ver, os próprios princípios sobre os
gação positiva entre valor e riqueza, entre os indivíduos. Cada novo co- quais os pais fundadores da economia
entre produção mercantil e satisfação nhecimento gera outro conhecimento política justificavam a propriedade
das necessidades é rompida. Mais ain- num processo cumulativo. Por isso a como um instrumento de luta contra
da, ela se inverte. Isso significa que apropriação privativa do conhecimen- a escassez.
a lei do valor sobrevive agora como to só é realizável por meio do estabe- Num certo sentido, pode-se, pois,
uma espécie de invólucro esvaziado lecimento de barreiras artificiais ao afirmar que existe mesmo a tentativa
do que Marx considerava como sendo acesso. Esta tentativa colide, portan- de manter em vigor, de maneira força-
a função progressiva do capital. Isso to, com obstáculos maiores. Eles se da, a primazia da lógica da mercadoria
significa o desenvolvimento das for- referem tanto à exigência ética dos e do valor de troca que conduz o ca-
ças produtivas como instrumento de indivíduos como à maneira pelo qual pital a tentar emancipar-se da lei do
luta contra a escassez, permitindo, a o uso das tecnologias da informação e valor tempo de trabalho. Disso resulta
termo, favorecer a passagem do reino da comunicação torna cada vez mais uma contradição sempre mais aguda
da necessidade ao reino da liberda- difícil a execução dos direitos de pro- entre o caráter social da produção e
de. Diversas evoluções do capitalismo priedade intelectual. Além disso, a o caráter privado da apropriação que
cognitivo ilustram esta desconexão tentativa de transformar o conheci- constitui uma das maiores manifesta-
entre valor e riqueza que, segundo mento numa mercadoria fictícia gera ções da crise da lei do valor na era do
Gorz (2004), é a manifestação da uma situação paradoxal, isto é, uma capitalismo cognitivo.
“crise do capitalismo em seus funda- situação na qual, quanto mais o valor O esgotamento da racionalidade
mentos epistêmicos”. de troca do conhecimento aumenta da lei do valor/mais-valia tem, além
artificialmente, mais o seu valor de disso, outras manifestações cruciais
O bem comum conhecimento uso, isto é, sua utilidade, baixa, pelo que atestam a profundeza da crise do
fato mesmo de sua privatização e de capitalismo e de seu divórcio com as
Elas remetem à contradição funda- sua rarefação. Em suma, o capitalis- necessidades sociais.
mental entre a lógica de valorização mo cognitivo não pode se reproduzir A primeira se refere ao lugar cres-
do capitalismo cognitivo e a lógica in- senão entravando as condições obje- cente do capital dito imaterial que
trinsecamente não mercantil da eco- tivas e as faculdades criadoras dos constitui, agora, a parte mais consi-
nomia do conhecimento. Notemos que agentes na base do desenvolvimento derável da capitalização das bolsas.
esta contradição lança suas raízes nas de uma economia fundada no saber e Ora, o capital chamado imaterial
propriedades particulares do bem co- em sua difusão. também escapa a toda medida obje-
mum conhecimento e em seu caráter Notemos, de maneira mais geral tiva em termos de “custos históricos”
irredutível ao estatuto de mercadoria que, para um grande número de pro- (e, portanto, em termos de tempo de
e de capital. Em comparação com as duções intensivas em conhecimentos, trabalho necessário à sua produção).

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Seu valor só pode ser a expressão da rados tradicionalmente na Europa, renováveis. De fato, o capitalismo
avaliação subjetiva dos lucros ante- pelos serviços coletivos do Welfare- cognitivo não suprime a lógica produ-
cipados, efetuado pelos mercados State. Este elemento contribui para tivista do capitalismo industrial. Ele a
financeiros, apossando-se por este explicar a extraordinária pressão rearticula e a reforça através de uma
meio de uma renda. Isso contribui exercida pelo capital para privatizar aliança entre o capital e a ciência que
para explicar por que o valor bolsis- e submeter à lógica mercadológica põe as novas tecnologias ao serviço
ta deste capital é, em sua essência, estes serviços coletivos. No entanto, de uma busca de padronização e de
fictício e submetido a flutuações de este tipo de atividades, por razões transformação mercadológica do vi-
grande amplitude. Ele se baseia numa que já evocamos numa entrevista vente, que acentua os riscos de des-
lógica autorreferencial própria das fi- anterior, não podem ser submetidos truição da biodiversidade e de deses-
nanças, que alimenta as bolhas espe- à racionalidade econômica da lei do tabilização ecológica do planeta.
culativas destinadas inelutavelmente valor/mais-valia senão ao preço de Para concluir, o conjunto das
a explodir, envolvendo o conjunto um desperdício de recursos e de de- contradições subjetivas e objetivas
do sistema de crédito e da economia sigualdades sociais profundas que, que atravessam o capitalismo cog-
numa recessão profunda. por acréscimo, correriam o risco de nitivo, caracterizando a crise da lei
A segunda manifestação se refe- desestruturar as forças criadoras bá- do valor/mais-valia, são de tal acui-
re à maneira pela qual – face a ten- sicas de uma economia fundada no dade que elas recordam a situação
dências estagnacionistas cada vez conhecimento. descrita por Marx no último capítu-
mais profundas – os únicos setores Enfim, o potencial de negatividade lo do livro III de O Capital, quando
onde as necessidades e a demanda do novo capitalismo só consiste em ele afirmava: “a crise explode no
social estão em contínua expansão tornar artificialmente raros certos re- momento em que a contradição e o
correspondem ao que se chama as cursos abundantes e gratuitos. antagonismo entre, de um lado, as
produções do homem pelo homem Ele também se exprime na acele- relações de distribuição – portanto
(saúde, educação, pesquisa, cuida- ração de uma lógica predadora e de a forma histórica especificada de
dos prestados às pessoas), assegu- rarefação dos recursos naturais não suas relações de produção – e, de

Bibliografia sugerida pelo entrevistado

GORZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005.


GORZ, A. (2004) “Économie de la connaissance et exjploitataion des savoirs”, entretien avec Moulier-Boutang
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GORZ, A. (2008), Ecologica, éd. Galilée, Paris.
MARX, K. (1968), Le Capital Livre III, in Oevres, Economie, Tome II, Pléiade, Paris.
MARX, K. (1980), Grundrisse, Tome II, Éditions sociales.
NEGRI, A. (1966), Marx au-delà d Marx, L’Harmattan, Paris.
NEGRI, A. (1992), « Valeur-travail : crise et problèmes de reconstruction dans le postmoderne », Futur Anté-
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NEGRI, A. (1997), « Vsing Th`ses sur Marx », in Vakaloloulis M. et Vicent JM. (ed), Marx après les marxismes,
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NEGRI, A. et Vercellone, C. (2008), “Le rapport capital-travail dans le capitalisme cognitif », Multitudes, nº 32.
VERCELLONE, C. (ed.) (2006), Capitalismo Cognitivo, Manifestolibri, Roma.
VERCELLONE, C. (2007), “From Formal Subsumption to General Intellect: Elements for a Marxist Reading of the
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VERCELLONE (2007a), “La nouvelle articulation rente, salaire et profit dans le capitalisme cognitive”, In Euro-
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VERCELLONE,C. (2008), « La thèse du capitalisme cognitf. Une mise en perspective historique et théorique »,
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VERCELLONE, C. (2009), “L’analyse “gorzienne” de l’évoslution du capitalisme », in Christophe Fjourel (dir.), «
André Gorz, un penseur pour le XXIème síècle », la Découverte, Paris, pp. 77-98.
VERCELLONE, C. (2009), « Lavoro, distribuzione del reddito e valore nel capitalismo cognitivo », in Sociologia
del Lavsoro, N] 115, pp. 31-54.
VERCELLONE, C. (2009), Crisis de la ley del valor y devenir renta de la ganancia. Apuntes sobre la crisis sisté-
mica del capitalismo cognitivo, in “La gran crisis de la economía global”, Edición Traficantes de Sueños, Madrid,
pp. 63-98.

18 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327


A sociedade: uma grande fábrica
de produção de valor
“O conjunto das
Na percepção de Christian Marazzi, a distinção entre a eco-
contradições subjetivas e nomia real e a economia financeira cai quando se analisa o
processo de acumulação capitalista desde os anos 1980
objetivas que atravessam
o capitalismo cognitivo, Por Cesar Sanson e Graziela Wolfart

caracterizando a crise da

“A
financeirização da economia capitalista nas últimas dé-
lei do valor/mais-valia, cadas é um processo que poderíamos definir como ‘key-
nesianismo financeiro’, no sentido de que os mercados
são de tal acuidade que financeiros têm tomado o lugar do Estado no que se
refere à criação de uma busca adicional necessária ao
elas recordam a situação crescimento econômico, necessária em particular à realização da mais-va-
lia, criada no âmbito do circuito econômico”. A definição é do economista
descrita por Marx no Christian Marazzi, em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Ele
último capítulo do livro identifica que estamos assistindo à “privatização do déficit, ou seja, a gera-
ção de renda e de consumo, que, no fordismo, era confiada ao Estado. Esta
III de O Capital” transformação das finanças em ‘ferramenta’ ativa, porém perversa, para
suportar a demanda, anda de mãos dadas com o desmantelamento do Estado
social e com a crescente privatização dos bens públicos”. Marazzi considera
muito errada a separação entre a economia real e a economia financeira,
outro lado, as forças produtivas e as especialmente, explica ele, “se considerarmos que a financeirização tem
faculdades criadoras de seus agen- sido promovida, em primeira instância, pelas mesmas corporações multi-
tes (sublinhado por nós) ganham em nacionais e fundos de pensão que investiram pesadamente no mercado de
amplitude e em profundidade. Surge ações”. Para ele, nos dias atuais, “é a cooperação, a troca de saberes e
então um conflito entre o desenvol- conhecimentos, as competências adquiridas no âmbito do não-trabalho que
vimento material da produção e sua
são recursos estratégicos para o desenvolvimento do capital”.
forma social” (K.MARX, 1968, pp.
Christian Marazzi é professor e diretor de investigação socioeconômica na
1482-1483).
Universidade della Svizzera Italiana. Também foi professor na Universidade
Estadual de Nova York, na Universidade de Pádua, em Lausanne e Genebra.
Entre suas obras, citamos Autonomia (Cambrigde: Mit Press, 2007), Capital
Leia Mais... and language (Cambrigde: Mit Press, 2008), em parceria com Michael Hardt
>> Carlo Vercellone já concedeu outras e Gregory Conti, e O lugar das meias. A virada linguística da economia e
entrevistas à IHU On-Line. seus efeitos na política (São Paulo: Civilização Brasileira, 2009). Confira a
* Um panorama sobre a nova divisão cognitiva entrevista.
do trabalho. Publicada na IHU On-Line número
161, de 24-10-2005, disponível em http://bit.
ly/cPi0xB
IHU On-Line - O senhor tem afirma- Christian Marazzi - A financeirização
* É na reversão das relações de saber e poder
que se encontra o principal fator da passagem do do que o processo de financeiriza- da economia capitalista nas últimas
capitalismo industrial ao capitalismo cognitivo. ção que levou à crise que estamos décadas é um processo que podería-
Publicada na IHU On-Line número 216, de 23-04-
vivendo se distingue de todas as mos definir como “keynesianismo fi-
2007, disponível em http://bit.ly/9m73HO
* A crise e os contornos de um ‘’socialismo totali- outras fases de financeirização que nanceiro”, no sentido de que os mer-
tário do capital’’. Publicada na IHU On-Line nú- ocorreram historicamente no sécu- cados financeiros têm tomado o lugar
mero 301, de 20-07-2009, disponível em http://
lo XX. Poderia explicar o que há de do Estado no que se refere à criação
bit.ly/at8uWx
novo na atual expansão financeira? de uma busca adicional necessária ao

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 19


crescimento econômico, necessária em “As empresas não Christian Marazzi – A mais-valia, hoje,
particular à realização da mais-valia é fruto de um processo produtivo que
criada no âmbito do circuito econômi- viveriam um dia sem a se estende da fábrica à sociedade, o
co. Assistimos à privatização do déficit, que torna a sociedade uma grande fá-
ou seja, a geração de renda e de con- existência de uma brica de produção de valor. É um pouco
sumo, que no fordismo era confiada ao como o processo de extração de valor
Estado. Esta transformação das finan- demanda criada através feita ao longo dos séculos pelo trabalho
ças em “ferramenta” ativa, porém per- doméstico-reprodutivo das mulheres.
versa, para suportar a demanda, anda do mecanismo da dívida Hoje é a cooperação, a troca de sabe-
de mãos dadas com o desmantelamento res e conhecimentos, as competências
do Estado social e com a crescente pri- e sem o custo de retorno adquiridas no âmbito do não-trabalho
vatização dos bens públicos. Conside- que são recursos estratégicos para o
ro, portanto, muito errada a separação financeiro” desenvolvimento do capital. Falamos
entre a economia real e a economia em imaterialização, ou de “cognitivi-
financeira, especialmente se conside- zação” do trabalho, e isso pressupõe
direta de bens de consumo. Fala-se em
rarmos que a financeirização tem sido uma organização do processo de pro-
“crowdsourcing”, ou seja, captação de
promovida, em primeira instância, pe- dução que extraia mais-valia “a partir”
valor, de conhecimento, de cooperação
las mesmas corporações multinacionais da sociedade. A estratégia empresarial
e força inventiva através da “linguagem
e fundos de pensão que investiram pe- consiste, de fato, na externalização de
de máquina” (por exemplo, a Internet)
sadamente no mercado de ações. segmentos inteiros da produção.
que não requer investimento em capital
fixo, mas em estratégias de “vampiriza-
IHU On-Line - A distinção entre “eco- IHU On-Line - O senhor afirma que
ção” do valor disperso na sociedade. Os
nomia real” e “economia financeira”, estamos diante do biocapitalismo.
ganhos monetários, em relação a isso,
ou, ainda, entre “capital produtivo” Como se dá a exploração do trabalho
podem ser alcançados de duas manei-
e “capital financeiro” não se sustenta nesse novo capitalismo, e quais são as
ras: através do desempenho financeiro
mais? Por quê? possibilidades emancipatórias que ele
das elites ou por meio de dívida privada
Christian Marazzi – Hoje encontramos carrega consigo?
das famílias.
financiamento quando vamos fazer com- Christian Marazzi – O biocapitalismo vê
pras no supermercado e pagamos com a transposição das típicas funções das
IHU On-Line - Por que o modo de pro-
cartão de crédito, ou quando compramos máquinas do capital fixo para o corpo
dução fordista tornou-se insuficiente
um carro ou uma casa, e temos a oportu- dos trabalhadores. O corpo vivo se tor-
para a acumulação do capital? Quais
nidade de “criar renda”, contratando um na abrigo de instrumentos estratégicos
são os elementos que caracterizam
novo empréstimo hipotecário. As empre- para a produção de valor. O organismo
a crise do fordismo como sistema de
sas não viveriam um dia sem a existên- torna-se uma máquina, mas é um corpo
acumulação de lucros?
cia de uma demanda criada através do que vive e, portanto, cria valor através
Christian Marazzi – Durante os anos
mecanismo da dívida e sem o custo de da dor, do cansaço e da solidão. Mas o
1970, o modelo fordista se revelou in-
retorno financeiro. Há, portanto, a for- mesmo corpo vivo que produz valor na
suficiente, porque não tinha mais con-
mação de uma espécie de renda salarial, sociedade, na relação intersubjetiva e
dições para sugar excedentes, o que
especialmente devido à estagnação dos na comunicação, é um corpo que pensa
gerou um crescimento do tipo inflacio-
salários ocorrida durante as últimas duas consigo mesmo, e que precisa do ou-
nário sempre em atraso ao aumento dos
décadas. A distinção entre a economia tro para se autodefinir. Relativamente
salários. Mas o modelo fordista também
real e a economia financeira cai quando a este plano “intra-subjetivo”, inscrito
entrou em crise do ponto de vista polí-
se analisa o processo de acumulação ca- no tecido das relações sociais, desem-
tico e cultural: a luta interior e contra
pitalista desde os anos 1980. Assistimos penha-se a construção das lutas dentro
o fordismo deslegitimou o trabalho de
por anos a um processo para aumentar a e contra o biocapitalismo.
massa, a grande fábrica fordista, a se-
diferença entre o lucro (excedente) e a
paração entre trabalho e conhecimen-
estagnação do investimento em capital
to. Naqueles anos, o Financial Times Leia Mais...
fixo e capital variável, ou seja, máquinas
falou da necessidade de “aproveitar a
e mão-de-obra. Esta bifurcação entre os >> Christian Marazzi já concedeu outras
revolução”, ou seja, sair da crise do entrevistas à IHU On-Line.
lucros e o investimento é explicada do
fordismo produzido pelas lutas dos tra-
ponto de vista das novas modalidades * Política do comum: uma fonte direta de valor
balhadores e estudantes para redefinir
de produção de valor, uma produção econômico. Publicada nas Notícias do Dia do sítio
a trajetória econômico-organizacional do IHU, em 23-03-2009, disponível em http://bit.
que está cada vez mais fora dos portões
do novo capitalismo pós-fordista. ly/d4AqGP
da fábrica, que está cada vez mais na * A vida no centro do crescimento econômico.
esfera da distribuição e do consumo. A Publicada na revista IHU On-Line número 301,
IHU On-Line - Que características as- de 20-07-2009 e disponível em http://bit.ly/
tendência é transformar o consumidor
sumem a mais-valia no processo pro- cmubdm
em produtor, para envolver a produção
dutivo na nova fase do capitalismo?

20 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327


Lado imaterial do trabalho não é suficientemente tematizado
pelas teorias da modernidade industrial
Federico Chicchi explica que hoje a inteira produtividade do homem, sua fantasia, sua
imaginação, sua sociabilidade, seu papel inovador e maleável às circunstâncias são ne-
cessários no mundo do trabalho

Por Cesar Sanson e Graziela Wolfart | Tradução de Benno Dischinger

F
ederico Chicchi reflete sobre a crise da economia global e suas implicações no mundo do trabalho.
É um dos autores da obra Crise da economia global, lançada no ano passado. Na entrevista que
concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, Chicchi se debruça sobre o conceito de bioeconomia, o que,
para ele, refere-se “ao processo de captura da vida e à produção da própria vida no interior das
regras do ‘discurso’ econômico. Em outras palavras: o econômico pretenderia, no capitalismo bio-
político, colocar-se como única textura possível do Sentido e, paradoxalmente, como uma espécie de fundo
antropológico originário”. O professor continua sua explicação, afirmando que “a bioeconomia (desta vez
entendida como paradigma da economia contemporânea) introduz um verdadeiro e próprio efeito pertur-
bador, porque nos mostra e desvela, sobretudo em suas mais recentes aplicações técnicas, a própria vida,
o bios, o que é comum por definição, como uma mercadoria de todo contingente e agora, sob o impulso
(ir)racional das paixões aquisitivas, exposta sem mais mediações ao risco das mais impensáveis coisificações
/ alterações / utilizações”.
E, ao refletir sobre o mundo do trabalho neste novo cenário, Federico Chicchi percebe que “nas teorias
da modernidade industrial não é suficientemente tematizado nem compreendido o papel crescente do lado
imaterial do trabalho (o cognitivo, intelectual, afetivo, emotivo, simbólico, relacional etc.) que, ao invés,
torna-se hegemônico e central nas fileiras contemporâneas de produção do valor”. Na sua visão, “tornam-se
cada vez mais relevantes, também graças às revoluções digitais, as produções sociais “de baixo”, as redes
cooperativas, as fileiras sem centro hierarquicamente definido, os territórios, os saberes locais, e as ecolo-
gias que estão em condições de se auto-organizar para a produção de riqueza e de semânticas sociais”.
Federico Chicchi é professor de Sociologia do processo econômico e do trabalho na Faculdade de Ciência
Política da Universidade de Bologna, Itália. É graduado em Ciência Política e doutor em Sociologia e Política
Social pela Universidade de Bologna. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O senhor afirma que e social contemporâneo se reproduz que hoje não mais se apresenta como
uma análise eficaz do capitalismo através de processos no interior dos prevalente e hegemônica (nem em
contemporâneo deve ser colocada quais os principais construtos teóri- termos objetivos, nem em termos sub-
para além do paradigma da economia cos clássicos (lucro/renda, trabalho jetivos). Além disso, de um ponto de
política sugerida pelos autores clás- produtivo/improdutivo, capital cons- vista metodológico, parece-me impor-
sicos. Pode explicar por quê? tante/capital variável, salário/ren- tante sublinhar – como nos convidava a
Federico Chicchi - No que se refere ao dimento etc.) são caracterizados por fazer Claudio Napoleoni, um dos mais
papel que a disciplina econômica clás- inéditas porosidades e coalescências importantes economistas marxistas
sica pode desempenhar na compre- recíprocas, que tornam sua utilização italianos do século passado – o modo
ensão dos processos contemporâneos analítica pelo menos complicada. Os como os paradigmas econômicos (clás-
de produção, minha opinião é clara: esquemas conceituais da economia � Claudio Napoleoni (1924–1988) economista
os seus paradigmas se tornaram heu- clássica são, de fato, o resultado te- marxista e político italiano. �����������������
Foi professor de
risticamente (e politicamente) insufi- órico da análise de uma modalidade Política econômica na Faculdade de Ciência
Política da Università di Torino. (Nota da IHU
cientes, porque o cenário econômico de organizar a acumulação de capital On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 21


sicos e neoclássicos) tendem a repre- “A teoria marxiana porânea em recusar todo espaço de
sentar os fenômenos escolhidos segun- mediação de seu código operativo, ou
do sua competência direta, dentro de do mais-valor continua seja, a inscrever-se sem exclusões sig-
modelos demasiado rígidos, estáticos e nificativas no próprio ponto no qual a
simplificados, perdendo, deste modo, como ponto de partida vida mostra sua insurgência subjetiva
quase de todo, sua intrínseca (e hoje e valorizadora, a tornar-se, portanto,
sempre mais intensa) dinamicidade, e ponto de articulação consubstancial à potência intrínseca
interna às relações entre processos de do vivente, imanente à própria vida.
produção e relações sociais de produ- filosoficamente A bioeconomia refere-se, portanto, ao
ção. Creio, portanto, que, na análise processo de captura da vida e à pro-
do presente, é preciso absolutamente irrenunciável” dução da própria vida no interior das
dotar-nos de paradigmas novos – que regras do “discurso” econômico. Em
devem, em primeiro lugar, aceitar o eram os mais confinados e realizados outras palavras: o econômico preten-
ônus do desbalanceamento transdisci- no interior dos muros da fábrica (a deria, no capitalismo biopolítico, colo-
plinar – para tematizar de modo efi- grande empresa industrial). E agora car-se como única textura possível do
caz as modalidades através das quais se tornam cada vez mais relevantes, Sentido e, paradoxalmente, como uma
o valor se produz hoje em relação aos também graças às revoluções digi- espécie de fundo antropológico origi-
novos dispositivos de poder/saber de tais, as produções sociais “de baixo”, nário. A bioeconomia (desta vez en-
cunho governamental (em sentido fou- as redes cooperativas, as fileiras sem tendida como paradigma da economia
caultiano, naturalmente). Além disso, centro hierarquicamente definido, os contemporânea) introduz, portanto,
não é possível evitar que hoje se con- territórios, os saberes locais, e as eco- um verdadeiro e próprio efeito pertur-
sidere ser preciso sempre empenhar- logias que estão em condições de se bador, porque nos mostra e desvela,
se mais na fundação teórica de uma auto-organizar para a produção de ri- sobretudo em suas mais recentes apli-
nova teoria do desfrute, para que ela queza e de semânticas sociais. cações técnicas, a própria vida, o bios,
seja adequada às profundas mudan- o que é comum por definição, como
ças sociais, econômicas e culturais em IHU On-Line – O que podemos enten- uma mercadoria de todo contingente
curso. E, para andar nesta direção, a der por bioeconomia? e agora, sob o impulso (ir)racional das
teoria marxiana do mais-valor conti- Federico Chicchi - A bioeconomia é, paixões aquisitivas, exposta sem mais
nua como ponto de partida e ponto de a meu ver, um grande e irrenunciá- mediações ao risco das mais impensá-
articulação filosoficamente irrenunci- vel desafio teórico. Na Itália, muitos veis coisificações / alterações / utili-
ável; insuficiente, portanto, mas não autores (como o próprio Andrea Fu- zações.
contornável. magalli, que organizou o volume so- Além disso, o modo pelo qual se re-
bre a Crise Global) estão trabalhando aliza o circuito do valor bioeconômico
IHU On-Line - Por que as categorias sobre a possibilidade de ler o capita- (a vida expressa em valor), implica no-
interpretativas da sociedade indus- lismo cognitivo dentro do “registro” vas coordenadas e novas modalidades
trial são insuficientes para se com- bioeconômico. Em primeiro lugar, é de configuração das relações sociais
preender a mutação do capital em preciso especificar que a bioecono- de produção e de sua programática de
curso? mia (entendida neste sentido como poder. Desta maneira, se põe radical-
Federico Chicchi - Creio ser necessá- um paradigma interpretativo) de fato mente em discussão (até quase inver-
rio sublinhar o modo pelo qual hoje não circunscreve um campo de for- tê-la) a função de ordem da política,
está em andamento uma passagem a mações discursivas internas à esfera assim como tinha sido argumentada
uma nova época que, por comodidade, econômica. A bioeconomia constrói pelos clássicos da filosofia moderna
chamaremos de pós-moderna, na qual realmente o seu sujeito, e não pode (Hobbes, mais do que todos). A bio-
as categorias conceituais de análise da deixar de fazê-lo, na jamais saturada economia de fato também é descrití-
sociedade industrial encontram pouca tensão entre economia e política. Em vel através de inéditos dispositivos de
e escassa legitimidade. Por exemplo, outras palavras: raciocinar em termos apropriação proprietária do valor (de
nas teorias da modernidade industrial bioeconômicos nos impele ao interior  Thomas Hobbes (1588 – 1679): filósofo in-
não é suficientemente tematizado daquele lugar onde a síntese entre o glês. Sua obra mais famosa, O Leviatã (1651),
nem compreendido o papel crescente econômico e o político se demonstra trata de teoria política. Neste livro, Hobbes
do lado imaterial do trabalho (o cog- nega que o homem seja um ser naturalmen-
sem solução de uma vez por todas; isto te social. Afirma, ao contrário, que os homens
nitivo, intelectual, afetivo, emotivo, é, que deve ser continuamente geren- são impulsionados apenas por considerações
simbólico, relacional etc.) que, ao ciada e organizada, ou, numa palavra: egoístas. Também escreveu sobre física e psi-
invés, torna-se hegemônico e central cologia. Hobbes estudou na Universidade de
governada. Neste sentido, e, a partir Oxford e foi secretário de Sir Francis Bacon. A
nas fileiras contemporâneas de produ- disso, a bioeconomia emerge da cres- respeito desse filósofo, confira a entrevista O
ção do valor. Além disso, os “objetos” cente vocação da economia contem- conflito é o motor da vida política, concedida
sobre os quais a análise econômica so- pela Profa. Dra. Maria Isabel Limongi à edição
 Confira, nesta edição, uma entrevista exclu- 276 da revista IHU On-Line, de 06-10-2008. O
bre a sociedade industrial se afirmava siva com Andrea Fumagalli. (Nota da IHU On- material está disponível no link http://bit.ly/
Line) bDUpAj (Nota da IHU On-Line)

22 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327


desfrutamento biopolítico, portanto)
que se complementam e interseccio-
“Mais-valor, mais-gozo e que não se promove somente atra-
vés da repressão e da passividade, mas
nam, representando um peso sempre
mais relevante, com as precedentes
(...) e mais-vida se através da estimulação do eu desejoso
e daqueles caracteres pessoais que, no
práticas disciplinares ou anátomo-po-
líticas, sem, no entanto, jamais torná-
interseccionam num esquema da relação salarial tradicio-
nal, não eram significativos. Hoje são
las de todo residuais. O resultado de
tal complexo, e, sob certos aspectos,
abraço tão invasivo a inteira produtividade do homem, sua
fantasia, sua imaginação, sua sociabi-
acéfalo aparelho de captura, é decli-
nável e melhor descritível, em primei-
quanto circulatório, lidade, seu papel inovador e maleável
às circunstâncias que são necessários.
ro lugar, fazendo referência, como já
dizíamos, aos delineamentos da fou-
dando vida a uma espiral Ultrapassam, portanto, os contratos
coletivos; e a relação com a empresa
caultiana prática governamental.
E, por último, mas não menos im-
inédita de valorização” se personaliza através de incentivos
especiais, de “benefício”, férias-prê-
portante, é preciso sublinhar o modo mio etc.
rações, mas sim com o tratamento de
como o bioeconômico gerenciamento A perda de centralidade do traba-
informações e conhecimentos, com o
das vidas que daí deriva se refere aos lho assalariado, o progressivo tornar-
investimento da própria subjetividade
dispositivos de captura e tradução da se autônomo (auto-organizado), des-
em relações de trabalho e/ou com o
“potência” do bios e de sua capacida- centralizado e reticular da cooperação
desenvolver inovações de produtos e
de de se auto-organizar no interior dos social, e o instaurar-se na relação en-
de processo. Em outras palavras, a im-
atuais processos de acumulação. Para tre capital e trabalho de uma norma
portância da atividade produtiva “ro-
dizê-lo com as palavras de Andrea sempre mais individualizada, traz con-
tineira” e do trabalho material, que
Fumagalli, “por bioeconomia, enten- sigo outra transformação econômica
consiste em transformar a matéria-
demos aquele processo que procura e social fundamental do trabalho que
prima através da ajuda de instrumen-
subsumir realmente (e não só formal- é central e imprescindível para re-
tos e de máquinas, também materiais,
mente) o inteiro agir humano para fins construir o sentido do nosso presente
diminui em favor de um novo paradig-
de acumulação” (FUMAGALLI, 2005, percurso interpretativo: o trabalho se
ma do trabalho contemporâneo mais
p. 41). Neste sentido, a bioeconomia apresenta hoje, ao mesmo tempo, no
intelectual, imaterial e relacional.
necessita, a nosso ver, também uma interior da empresa, mas contempora-
Para ser eficiente e apetecível, o tra-
nova sintaxe do desfrutamento, a ser neamente se organiza cada vez mais
balho deve hoje fazer-se de fato em-
entendida não mais unicamente como fora dela. Isto, no entanto, também
preendedor, capaz de contribuir à so-
atividade de arbitrário entretenimen- significa que os limites tradicionais
lução (segundo as competências e em
to de um adicional ou excedente, mas do trabalho (aqueles da competência
diferentes níveis de responsabilidade)
também como persuasivo e, em ge- profissional) tendem a tornar-se sem-
dos problemas que uma atividade de
ral, consensual atividade de produção pre mais porosos para acabar inva-
empresa encontra em seu acidentado
e disposição da vida na cifra do útil, dindo – com as lógicas instrumentais
caminho competitivo. Naturalmente,
através de sua estruturação em merca- que lhe são consubstanciais – aqueles
esta transformação está ligada a uma
doria e através da regulação mercanti- espaços de vida (antes ditos reprodu-
causa “estrutural” que é tida em alta
lista e proprietária de seu “valor” in- tivos) que eram, num certo sentido,
consideração, ou seja: ela tem a ver
trínseco. Eis que mais-valor, mais-gozo impermeáveis, porque eram conside-
com a transformação do saber-poder
(em sentido lacaniano) e mais-vida se rados improdutivos, e não diretamen-
capitalista, que tem como objetivo ir-
interseccionam num abraço tão inva- te desfrutáveis para fins econômicos.
renunciável e transversal em cada fase
sivo quanto circulatório, dando vida a Em outras palavras: o modo pelo qual
de sua evolução histórica, sob pena de
uma espiral inédita de valorização. o capital conseguiu aumentar a pro-
sua crise irreversível, a produção de
dutividade, a partir de um trabalho
um excedente, de um extra a incor-
IHU On-Line - Quais são as principais necessário (em sentido marxiano) e
porar no interior de sua “obsessiva”
características que o trabalho assu- reduzido ao mínimo de automação e
dinâmica econômica de valorização.
me na bioeconomia? de informatização, foi aquele de sair
De fato, somente a inovação e a cria-
Federico Chicchi - Em primeiro lugar, da relação salarial, apropriando-se de
tividade, não dedutíveis do existente,
é necessário destacar que o trabalho, toda uma série de atividades reprodu-
podem salvar o sistema da estagnação
na bioeconomia, está perdendo muitas tivas cujo contributo à valorização do
e da superprodução. Para garantir tal
das características que assumiu no in- capital permite liberar-se dos limites
efeito, é a própria estrutura do coman-
terior da assim dita sociedade salarial. que a relação salarial coloca aos au-
do do capital sobre o trabalho que vem
A prática laboral de uma parte cada mentos de produtividade.
modificar-se radicalmente, mudando
vez maior de pessoas de fato, hoje,
os seus princípios de funcionamento: o
já não tem mais a ver com a execu- IHU On-Line - O conceito de multidão
que hoje é requerido é uma espécie de
ção passiva e hétero-dirigida de ope- proposto por Negri como resistência
cooperação da parte de quem trabalha

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 23


“Raciocinar em termos bioeconômicos nos impele
ao interior daquele lugar onde a síntese entre o
econômico e o político se demonstra sem solução

Leias as Notícias do Dia em


de uma vez por todas”

ao novo capitalismo lhe parece opor- prática social que se proponha como
tuno? Como o senhor interpreta esse seu primeiro objetivo o de produzir “a
conceito? partir de baixo” de suas novas cons-

www.ihu.unisinos.br
Federico Chicchi - O conceito de mul- telações institucionais e normativas,
tidão na organização das práticas de que podemos chamar de Instituições
resistência e subtração do trabalho- do comum, que tornem o território
vivo ao desfrutamento de parte do ca- habitado pelas singularidades menos
pitalismo bioeconômico é, a meu ver, escorregadio, menos instável e menos
um conceito tão necessário quanto exposto à captura do capital. Num cer-
insuficiente. Necessário, porque su- to sentido, e para concluir, a ativida-
blinha e capta atual impossibilidade de de produção de novas instituições
de recompor as lutas revolucionárias democráticas, a solicitar em torno da
dentro de uma lógica “sintética” que defesa dos bens comuns e da produ-
reduza sempre e, em geral, todas as ção de espaços sociais do comum, re-
suas expressões subjetivas ao Uno. A presenta o cenário no interior do qual
multiplicidade ou, se quisermos cha- as diferenças que animam a potência
má-la diversamente a diferença que multitudinária poderia encontrar uma
descreve a multidão como espaço composição própria afirmativa e bio-
de ação das diversas singularidades política.
é, certamente, uma instância por si
revolucionária, que permite exerci-
tar uma incessante liberação/experi- Baú da IHU On-Line
mentação social da criatividade autô- A revista IHU On-Line já publicou outras
noma e do desejar do trabalho-vivo. edições sobre o mundo do trabalho e o capita-
A multidão interpreta e certamente lismo cognitivo:
descreve do melhor modo tal neces- * O capitalismo cognitivo e a financeirização da
sidade histórica; a forma multitudiná- economia. Crise e horizontes, número 301, de
ria da luta é, de fato, hoje, a única 20-07-2009, disponível em http://bit.ly/9ZMEXs;
* O mundo do trabalho e a crise sistêmica do
que pode deslocar, em seu contínuo capitalismo globalizado, número 291, de 04-05-
exercício de produção de excedentes 2009, disponível em http://bit.ly/aJl0Bi;
éticos, o comando capitalista de tra- * O mundo do trabalho no Brasil de hoje. Mudan-
ças e novos desafios, número 256, de 28-04-2008,
dução parasitária do fazer social no disponível em http://bit.ly/bHjG51;
interior de uma forçosa medida pro- * O trabalho no capitalismo contemporâneo. A
prietária da riqueza autonomamente nova grande transformação e a mutação do tra-
balho, número 216, de 23-04-2007, disponível em
produzida. No entanto, é, ao mesmo http://bit.ly/b7yjJN;
tempo, insuficiente porque nela mes- * Mais inovação tecnológica e... piores condições
ma já não se encontram expressas e de trabalho. Um paradoxo!, número 188, de 10-
07-2006, disponível em http://bit.ly/9XI3hj;
definidas aquelas formas necessárias * Trabalho. As mudanças depois de 120 anos do 1º
de organização, capazes de “transfe- de maio, número 177, de 24-04-2006, disponível
rir” a um plano de “sustentabilidade” em http://bit.ly/9hpxec;
* As obras coletivas e seus impactos no mundo do
biopolítica e subjetiva as desmesura- trabalho, número 161, de 24-10-2005, disponível
das potencialidades produtivas que em http://bit.ly/cPi0xB;
a multidão exprime numa dimensão * A crise da sociedade do trabalho, número
98, de 26-04-2004, disponível em http://bit.
antropológica de tipo pós-proprietá- ly/9fGZ4W;
rio. Por isso, o conceito de multidão, * Economia Solidária e a crise do mundo do tra-
como, aliás, o próprio Negri sublinha balho, número 66, de 30-06-2003, disponível em
http://bit.ly/9BUpq7;
por diversas vezes, em seus últimos * 1º de maio: trabalho e memória, número 57, de
trabalhos, é entretecido para se tor- 28-04-2003, disponível em http://bit.ly/c1VjpB
nar politicamente eficaz, com uma
24 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327
SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 25
Entrevista da Semana
Estamos construindo um projeto de nação nos moldes de Furta-
Brasil tem um futuro econômico e social promissor como Furtado delineava há 60
anos, constata Wilson Vieira

Por Patricia Fachin e Márcia Junges

“V
islumbramos um futuro econômico e social promissor caso sejam mantidas essas
políticas econômicas e sociais. A partir dessa realidade, percebemos que estamos
construindo um projeto de nação que contempla o desenvolvimento econômico
e social num contexto democrático, tal como Furtado planejava e sonhava desde
a década de 1950”. A declaração é do economista Wilson Vieira, em entrevista
exclusiva, concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Segundo ele, “as crises que ocorreram a partir da
segunda metade da década de 1990 se constituem numa constatação da fragilidade do modelo neoli-
beral, que defende a abolição de todas as restrições para o comércio internacional”.
Economista, mestre em História Econômica pelo Instituto de Economia da UNICAMP, doutorando
em sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UNICAMP, Wilson Vieira é mem-
bro do Centro de Estudos Brasileiros do IFCH – UNICAMP. Leciona no Centro Universitário Salesiano de
São Paulo (UNISAL) e na Faculdade de Americana (FAM). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como se dá a ligação líticas de desenvolvimento econômico, cial por parte do Estado.
entre desenvolvimento econômico e elemento amalgamador da nação.
construção da nação no pensamento IHU On-Line - O Estado brasileiro tem
de Celso Furtado? IHU On-Line - Para Furtado, que ini- incentivado a consolidação de gigan-
Wilson Vieira - A ligação entre desen- ciativas eram fundamentais para tes nacionais com capacidade de atu-
volvimento econômico e construção da atingir o desenvolvimento econômi- ação internacional. A partir disso, o
nação no pensamento de Celso Furtado co brasileiro? Brasil se insere numa nova fase so-
pode ser encontrada quando ele vê essa Wilson Vieira - Para se atingir o desen- cial e econômica?
construção firmada na unificação do volvimento econômico brasileiro era Wilson Vieira - Sim, dentro de um pro-
mercado nacional e nos nexos de solida- fundamental a existência de um Esta- cesso no qual o governo atual busca
riedade entre as regiões brasileiras sob do planejador desse desenvolvimento fortalecer a economia nacional através
o comando do Estado, promotor das po- através da industrialização, sempre da dinamização do mercado interno em
num contexto democrático. conjunto com maior penetração interna-
 Celso Furtado (1920-2004): economista
brasileiro, membro do corpo permanente de
cional dos produtos brasileiros, além das
economistas da ONU. Foi diretor do Banco IHU On-Line - Ele defendia a atuação empresas, com diversificação e amplia-
Nacional de Desenvolvimento Econômico e do Estado enquanto promotor de po- ção dos intercâmbios econômicos (vide
da Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste e membro da Academia Brasileira
líticas de desenvolvimento econômi- G-20 e acordos comerciais com países da
de Letras. Algumas de suas obras são A econo- co. A atuação do Estado, defendida África e do Oriente Médio).
mia brasileira (1954) e Formação econômica por Celso Furtado, tem alguma se-
do Brasil (1959), apresentadas pelo Prof. Dr.
André Moreira Cunha (UFRGS) em 11-09-2003,
melhança com a atuação do Estado, IHU On-Line - Considerando a globa-
no evento Ciclo de Estudos sobre o Brasil. A hoje, na condução dos rumos da eco- lização, a internacionalização, com a
editoria Entrevista da Semana da revista IHU nomia? ajuda do Estado, de diversos grupos
On-Line edição 155ª, de 12-09-2005 reper-
cutiu a criação do Centro Internacional Celso
Wilson Vieira - Sim, dentro da ideia econômicos brasileiros e internacio-
Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, de planejar o desenvolvimento e com nais, e as sucessivas crises econô-
na Finlândia, com entrevistas a diversos espe- forte presença e indução de políticas micas dos últimos anos, como a de
cialistas. Confira em http://migre.me/BhSp.
(Nota da IHU On-Line)
de desenvolvimento econômico e so- 2008, que futuro econômico e social

26 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327


o senhor vislumbra para o Brasil? Que “Um modelo econômico controles).
projeto de nação estamos construin- Feitas as devidas adaptações tem-
do a partir disso? factível com um projeto porais, ou seja, levando em conta os
Wilson Vieira - Sobre as sucessivas cri- fenômenos da mundialização do capi-
ses econômicas, cabe aqui fazer a se- de construção de nação tal (ou globalização) e da reestrutura-
guinte observação: as crises que ocor- ção produtiva que vem ocorrendo des-
reram a partir da segunda metade da é aquele que concilia de meados da década de 1970, vimos
década de 1990 se constituem numa o nacional-desenvolvimentismo como
constatação da fragilidade do modelo desenvolvimento um fator fundamental para pensar a
neoliberal, que defende a abolição de construção da nação.
todas as restrições para o comércio in- econômico e social (com
ternacional (sem se preocupar com as IHU On-Line - Que modelo econômico
diferenças entre países desenvolvidos e planejamento estatal) é factível com um projeto de cons-
subdesenvolvidos e com a necessidade trução da nação? Que características
de políticas especiais de proteção para com fortalecimento da devem fazer parte desse modelo?
alguns produtos do Terceiro Mundo), a Wilson Vieira - Um modelo econômico
desregulamentação da economia, as democracia via factível com um projeto de construção
privatizações e a retirada do Estado de nação é aquele que concilia desen-
como planejador da economia. Tal mo- participação política volvimento econômico e social (com
delo não cumpriu suas promessas de de- planejamento estatal) com fortaleci-
senvolvimento econômico, pois trouxe cada vez mais intensa da mento da democracia via participação
crises econômicas sucessivas, aumento política cada vez mais intensa da po-
da pobreza em diversas partes do Ter- população, juntamente pulação, juntamente com a consolida-
ceiro Mundo e limitação da autonomia ção da cidadania e dos direitos.
dos Estados Nacionais na condução de com a consolidação da
suas economias domésticas. IHU On-Line - Há 50 anos, quando es-
O que podemos pontuar aqui foi a cidadania e dos direitos” creveu Formação Econômica do Bra-
reação brasileira às crises: durante os sil, Furtado descreveu a realidade
dois mandatos do Presidente Fernan- brasileira e mostrou uma preocupa-
do Henrique Cardoso, percebemos um um projeto de nação que contempla ção com as disparidades regionais, o
comportamento que seguiu os ditames o desenvolvimento econômico e social que dificultava a ideia de construção
da cartilha neoliberal, sem aumento num contexto democrático, tal como da nação. Hoje, que avaliação o se-
da presença do Estado e nem incentivo Furtado planejava e sonhava desde a nhor faz, de modo geral, das econo-
ao mercado doméstico, o que contri- década de 1950. mias regionais? Com que intensidade
buiu para uma situação de crescimento essas disparidades ainda permane-
praticamente nulo da economia brasi- IHU On-Line - O nacional desenvol- cem no cenário nacional e de que
leira. Em relação à crise de 2008, no vimentismo ainda é um fator funda- maneira elas dificultam o desenvol-
segundo mandato do Presidente Luiz mental quando se pensa a constru- vimento econômico e o processo de
Inácio Lula da Silva, a reação se deu ção da nação? Por quê? construção da nação?
com forte presença do Estado como Wilson Vieira - Sim, mas feitas as devi- Wilson Vieira - Sobre as economias re-
elemento de indução do crescimento das adaptações temporais e históricas, gionais, percebemos ainda um quadro
econômico, via redução de impostos porque o nacional-desenvolvimentismo que apresenta disparidades econômi-
indiretos (como o IPI), manutenção das deve ser entendido como uma ideolo- cas e sociais entre as regiões. Porém,
taxas de juros praticamente no mes- gia e uma prática político-econômica graças às políticas de desenvolvimen-
mo patamar, além da continuação de das décadas de 1950 e 1960, na qual to regional iniciadas com a SUDENE,
planos de fortalecimento da economia o desenvolvimento econômico deve- houve uma diminuição das disparida-
nacional como o PAC e de programas ria ser impulsionado pelo Estado com des mais gritantes entre as regiões,
de inclusão social e econômica como o forte participação do capital estatal,
seguido pelo capital privado nacional  Superintendência do Desenvolvimento
Bolsa Família. Tais medidas levaram a do Nordeste (Sudene): entidade de fomento
uma rápida recuperação da economia e pelo capital privado internacional. econômico desenvolvimentista brasileira, des-
brasileira. Dentro do nacional-desenvolvimentis- tinada a promover soluções sócio-econômicas
mo, havia diferenças internas quanto à Região Nordeste do Brasil, periodicamente
Respondendo mais especificamente afetada por estiagens e com populações com
à pergunta, com base nas colocações à participação do capital estrangeiro baixo poder aquisitivo e pouca instrução edu-
feitas acima, vislumbramos um futuro no processo de desenvolvimento eco- cacional. Sua sede está localizada na cidade
nômico, que ia desde nenhuma parti- do Recife, no estado de Pernambuco.Foi cria-
econômico e social promissor caso se- da pela Lei 3.692, de 1959, e idealizada no
jam mantidas essas políticas econômi- cipação, passando por uma pequena governo do presidente Juscelino Kubitscheck,
cas e sociais. A partir dessa realidade, presença (e com controles) até uma tendo à frente o economista Celso Furtado,
expressiva participação (com ou sem como parte do programa desenvolvimentista
percebemos que estamos construindo então adotado. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 27


mas que não foram solucionadas, pois
ainda permanece a predominância da
Região Sudeste sobre as outras regiões

Siga o
(em especial entre o sul do estado de
Minas Gerais e sul do estado do Rio de
Janeiro e todo o estado de São Paulo),
seguida da Região Sul.
Se essas disparidades não forem so-
lucionadas (acreditamos que serão), o

Twitter
risco que se corre é o da fragmentação
da economia nacional, na qual haveria
regiões com plena integração aos cir-
cuitos econômicos internacionais (com
atração de investimentos nacionais e
estrangeiros), e outras totalmente (ou

do IHU
parcialmente) marginalizadas desses
circuitos, situação que poderia levar a
uma demora ainda maior no processo
de construção da nação Brasil.

IHU On-Line - O Brasil carece de um


projeto de desenvolvimento econô-
mico que leva em conta a construção
de um projeto de nação?
Wilson Vieira - Acreditamos que não,
apesar de defendermos que esse pro-
jeto carece de uma participação mais
forte ainda do Estado.

IHU On-Line - É possível, na conjun-


tura atual, recuperar a construção
interrompida, da qual falava Fur-
tado? Ou, pelo contrário, a política
econômica atual enfatiza ainda mais
essa descontinuidade?
Wilson Vieira - Sim, como podemos
observar no aumento da participação
do Estado, nos projetos de desenvol-
vimento econômico e social, apesar
da política econômica (em alguns mo-
mentos) priorizar o combate à inflação
com medidas inibidoras do crescimen-
to, mesmo com o governo atual traba-
lhando com medidas compensatórias a
tal inibição.

IHU On-Line - Agora, farei um questio-


namento que o senhor aponta em sua
pesquisa: a interrupção do desenvolvi-
mento econômico proposto por Furta-
do implica necessariamente em inter-
rupção da construção da nação?
Wilson Vieira - Sim, porque o desen-
volvimento econômico é um dos ele-
mentos que unifica e constrói a nação,
http://twitter.com/_ihu
que cria laços de solidariedade entre
as regiões.

28 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327


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SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 29


A televisão brasileira:
pública ou privada?
Por Aléxon Gabriel João*

Seja no modelo público ou no modelo privado, em ambos


os casos o público é corresponsável pela qualidade da progra-
mação. Isso porque as TVs se utilizam de concessão de direito
público para a transmissão de seus programas. Sendo assim, é
preciso, acima de tudo, que a sociedade esteja mais envolvida
nos debates sobre concessão pública e renovação de contratos.

Quando a televisão surgiu dispo- gestão sob influência direta da socieda-


nibilizada como uma tecnologia, ela de civil organizada. Neste segundo caso,
estava restrita localmente ou apenas o modelo aponta para um conselho de
era privilégio de poucas pessoas com representantes como controlador desse
certo poder aquisitivo. Ao ser possí- tipo de TV, não devendo estar subordi-
vel tecnologicamente expandir o seu nada nem às regras do mercado nem ao
alcance, passou a atingir todo o ter- controle do poder político. Este concei-
ritório nacional, sendo assim utiliza- to, o de TV pública-estatal, deve ter um
da por muitos governos de países em cunho social, sendo gratuita, e atingir
desenvolvimento como ferramenta toda a população.
para criar, em seus vastos e distantes O paradoxo é que independente do
territórios, uma consciência de união modelo de exploração, sempre se trata
nacional. Em pouco tempo, conquistou de uma concessão do Estado; portan-
o fascínio de todos, ocupando o lugar to, de um serviço de tipo público. No
que antes era do rádio. A possibilidade primeiro caso, mesmo que focado em
de unir áudio, imagens em movimento objetivos comerciais, não deixa de ser
e transmissão em tempo real propor- um serviço prestado para a população,
cionou à TV um fascínio inimaginável. porque a licença do canal passa pelo
Na verdade, todos os benefícios tra- poder concedente (no caso brasileiro,
zidos pela televisão devem estar rela- o governo central) através de contratos
cionados diretamente ao tipo de difusão de concessão e com conteúdo suposta-
pretendida. Ou esta teria um modelo mente fiscalizado pelo poder público.
comercial, direcionada a conquistar pú- Pelo menos é o que se espera de países
blico, à venda de produtos, à promoção em via de desenvolvimento.
de sua programação; ou teria um mo- Analisar a TV, no Brasil, é uma tare-
delo público hipoteticamente com sua fa instigante, haja vista os contornos

* Jornalista, Mestre em Comunicação Social e Integrante e Pesquisador do Grupo de Pesquisa


Comunicação, Economia Política e Sociedade (CEPOS), do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Comunicação (PPG-CC) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Email:
alexon_gabriel@ig.com.br.

30 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327


que ela toma a partir de sua implan-
tação. Em 1950, quando Assis Chate-
“Tanto o modelo programas oferecem um conteúdo raso,
estimulando conscientemente a ado-
aubriand trouxe, para o Brasil, a TV,
ela chegou aqui privada (sendo os pri-
privado quanto o público ção de valores estéticos, éticos e mo-
rais cuja realização gera expectativas
meiro aparelhos contrabandeados) e
com intenções claramente comerciais,
são justificáveis em uma de consumo frustrado, causando sensa-
ções de fora (exteriores) das realidades
seguindo o modelo norte-americano.
A forma de exploração já nasce como
sociedade de democracia de grande parte da popularização.
Concluo, ressaltando a importância
modelo de negócio cujas receitas vêm
através de mensagens publicitárias.
representativa e modo de criar programas que se diferenciem
da grande maioria dos programas vei-
Desde então, o padrão continua. As
concessões estão nas mãos de grandes
de produção culados nas televisões privadas. Hoje,
existe certo comodismo quando o as-
grupos; Rede Globo, SBT, Record, Ban-
deirantes, CNT e Rede TV.
capitalista. O que é sunto é programação televisiva. Tornou-
se mais fácil e acessível assistir àquilo
A contrapartida do modelo, as for-
mas público-estatal, educativa e públi-
importante refletir diz que é mais conveniente pela banaliza-
ção do consumo embalado em gêneros
co não-estatal, ainda estão inacabadas
e por demais influenciadas pelo mode-
respeito à participação consagrados. Reconheço que as parce-
las organizadas são quem deveria exigir
lo comercial privado. A TV pública no
Brasil teve sua inauguração datada em
de cada um desses uma programação de melhor qualidade,
indo ao encontro de suas convicções e
1967 e 1969 com as TVs Universitária
de Recife e a TV Cultura de São Paulo.
modelos na construção anseios. Se os telespectadores são res-
ponsáveis por esse acômodo, a maior
É importante ressaltar que esse tipo
de emissora no país ainda não garantiu
de telespectadores- responsabilidade está com as direções
e proprietários de veículos. Por detrás
o espaço que merece. O principal obs-
táculo enfrentado para a implantação
cidadãos” da programação das emissoras está
uma concessão pública, utilizada para
de um modelo de TV pública no país assegurar audiência e assim garantir
delos na construção de telespectado-
é a garantia de independência finan- milhões de reais a custa de uma socie-
res-cidadãos. Se, por um lado, tem a
ceira. Somente assegurando a dotação dade despreparada. Isto não é “natu-
TV privada cuja atividade-fim é a ren-
orçamentária necessária para a sobre- ral” e é fruto de correlação de forças.
tabilidade comercial, por outro, temos
vivência de projetos é que esta pode- Pensar em outra televisão, dotada de
a TV pública que deveria se diferenciar
rá se guardar de possível (e provável) programas que respeitem e estimulem
trazendo, ao conhecimento do grande
interferência externa. a inteligência, tenham preceitos edu-
público, programas educativos volta-
Tanto o modelo privado quanto o cativos e não banalizem a sexualidade
dos para a construção de outro tipo de
público são justificáveis em uma so- alheia deve passar necessariamente
cidadão. Estes conteúdos seriam muito
ciedade de democracia representati- pelo constrangimento dos proprietários
mais críticos e com mergulho nos te-
va e modo de produção capitalista. O de meios, visando elevar a capacidade
mas abordados. Nesse quesito, por sua
que é importante refletir diz respeito crítica e cognitiva da maior parte da
“espetacularização” de baixo custo, a
à participação de cada um desses mo- população do país.
TV privada deixa a desejar já que seus

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 31


Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponíveis tos e viu os problemas no ensino superior se agravarem. O
nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br) de grupo firmou um acordo de cooperação entre os dois países,
27-4-2010 a 30-4-2010. visando à recuperação das atividades acadêmicas no país.

Novo código de ética médica: “a medicina bra- Brasil: 2010-2015. Desafios e possibilidades
sileira entra no século XXI” Entrevista com Márcio Pochmann
Entrevista com Léo Pessini Confira nas Notícias do Dia de 29-04-2010
Confira nas Notícias do Dia de 27-04-2010 Disponível no link http://migre.me/AOxx
Disponível no link http://migre.me/AOr8 Este ano eleitoral traz à tona os desafios que permearão a
Entrou em vigor, no dia 13 de abril, o novo Código de sociedade brasileira nos próximos anos. Para o economista
Ética Médica. Uma das resoluções desse novo documento e presidente do IPEA, Márcio Pochmann, a próxima eleição
é que os médicos não devem mais praticar tratamentos pode consagrar de vez a continuidade de uma política mais
desnecessários em doentes terminais, por exemplo, tra- organizada e articulada.
zendo à tona questões como a ortotanásia.
Conflitos no campo. “Estados que lideram o
Haiti. O ensino superior depois da tragédia ranking são os do agronegócio”
Entrevista com Sebastião Nascimento Entrevista com Carlos Walter Porto Gonçalves
Confira nas Notícias do Dia de 28-04-2010 Confira nas Notícias do Dia de 30-04-2010
Disponível no link http://migre.me/AOtb Disponível no link http://migre.me/AOyW
Antes dos terremotos, o Haiti tinha uma única Um dos dados que o 25º relatório dos conflitos no campo,
universidade pública, a Universidade de Estado do Haiti, divulgado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), destaca
que enfrentava problemas para oferecer vagas, não tinha é que o nível de violência nessa área voltou a aumen-
campus central ou biblioteca. Nascimento faz parte de um tar a partir de 2003. Gonçalves corrobora a conclusão da
grupo de pesquisa que estava no Haiti durante os terremo- pesquisa.

Leia as Notícias do Dia no sítio do IHU


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32 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327


SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 33
Confira as publicações do
Instituto Humanitas Unisinos - IHU

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34 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327


SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 35
Agenda da Semana
Confira os eventos dessa semana realizados pelo IHU.
A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Dia 04/5/2010
Ciclo de Estudos Filosofias da diferença - Pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O
(des)governo biopolítico da vida humana
Dr. Mario Fleig – Unisinos
Freud e o inconsciente
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU
Horário: 19h30min às 22h
Dia 06/5/2010
IHU ideias
Débora Bauermann
Deu um branco na psicologia? Relações étnicorraciais como desafio à psicologia
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU
Horário: 17h30min às 19h
Dia 10/5/2010
EAD - Espaço de Espiritualidade I – Abrir os olhos (5ª Edição)
Etapa 4: O olhar de Deus

Eventos dos parceiros do IHU


Dia 08/5/2010
Oficina de espiritualidade inaciana
Local: Centro Burnier Fé e Justiça, Rua Pe. Remeter, 92 - Bairro Baú, Cuiabá, MT
Horário: 7h30min às 12h30min

XII Simpósio Internacional IHU

A Experiência Missioneira:
território, cultura e identidade
Informações em
www.ihu.unisinos.br
36 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327
Eventos
Marx: os homens não são o que pensam
e desejam, mas o que fazem
Historiador e filósofo Pedro de Alcântara Figueira analisa a obra marxista e diz que,
para esse autor, o comunismo era consequência do próprio desenvolvimento social

Por Graziela Wolfart e Márcia Junges

“M
arx criticava duramente aqueles que pensavam que boas ideias poderiam levar
os homens a percorrer um caminho justo e, assim, chegar à igualdade. Para
ele, os homens não são o que pensam que são, mas sim aquilo que eles produ-
zem”, assinala o historiador Pedro de Alcântara Figueira na entrevista que con-
cedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Para Marx, o comunismo é consequência do
próprio desenvolvimento social. “São as forças produtivas, criadas no decorrer das diferentes formas
de organização social, que vão, aos poucos, tornando a exploração do trabalho alheio, a exploração
de uma classe sobre outra, obsoleta”. Sobre a importância desse autor para o pensamento econômico,
afirma que foi “demonstrar que a produção da riqueza, na sociedade de classes, não pode prescindir
da produção da miséria porque, ao contrário do que parecia à primeira vista, é a produção da miséria
que gera a riqueza”.
Pedro de Alcântara Figueira é historiador e filósofo, foi pesquisador do Instituto Superior de Estu-
dos Brasileiros - ISEB e um dos criadores da História Nova. Atualmente, é um dos editores da Editora
Segesta.
Em 17-05-2010, acontece o Ciclo de Estudos em EAD – Repensando os Clássicos da Economia – Edi-
ção 2010, com o título A (anti)filosofia de Karl Marx – Karl Marx, 1818-1883. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que é mais impor- ção para uma questão que, a seu ver, tágio de seu próprio desenvolvimento,
tante destacar na obra e no pensa- é essencial a seu pensamento. Para transformam-se no seu oposto, isto é,
mento de Karl Marx? Pedro de Al- Marx, o comunismo não é o resultado começam a atrapalhar este mesmo de-
cântara Pedro de Alcântara Figueira ou a consequência de uma boa ideia. senvolvimento. A sociedade não preci-
– Num de seus primeiros escritos, A Os homens não chegam a uma socieda- sa mais delas e passa a se organizar
Ideologia Alemã, Marx chama a aten- de comunista porque a creem melhor para viver sem elas, isto é, viver no
e mais justa do que as demais formas comunismo.
 Karl Heinrich Marx (1818-1883): filósofo,
cientista social, economista, historiador e re-
de organização social. O comunismo,
volucionário alemão, um dos pensadores que para Marx, é consequência do próprio IHU On-Line - Qual a principal contri-
exerceram maior influência sobre o pensamen- desenvolvimento social. São as forças buição de Marx para o pensamento
to social e sobre os destinos da humanidade
no século XX. Marx foi estudado no Ciclo de
produtivas, criadas no decorrer das econômico clássico, principalmente
Estudos Repensando os Clássicos da Economia. diferentes formas de organização so- da obra O Capital?
A edição número 41 dos Cadernos IHU ideias, cial, que vão, aos poucos, tornando a Pedro de Alcântara Figueira – Desde
de autoria de Leda Maria Paulani, tem como
título A (anti)filosofia de Karl Marx, disponí-
exploração do trabalho alheio, a ex- sempre, os homens procuraram ex-
vel em http://migre.me/s7lq. Também sobre ploração de uma classe sobre outra, plicar a si mesmos o que eram e por-
o autor, confira a edição número 278 da IHU obsoleta. As classes, que por muito que viviam de tal ou qual maneira. A
On-Line, de 20-10-2008, intitulada A financei-
rização do mundo e sua crise. Uma leitura a
tempo permitem o desenvolvimento Economia Política, ou economia clás-
partir de Marx, disponível para download em social, a partir de um determinado es- sica, constitui uma destas tentativas
http://migre.me/s7lF. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 37


de explicação da sociedade humana. ainda se desenvolvido plenamente, produzem, assim são eles. Portanto,
Por que produzir a vida de uma forma como restavam, em muitas partes do se os homens produzem as classes, a
e não de outra, por que assim e não mundo, muitos resquícios de formas sua sociedade é dividida em classes.
de outro modo? Por que produzir tan- sociais anteriores ao próprio capitalis- Só quando – e se vierem a fazê-lo
ta riqueza em meio a tanta pobreza? mo. Neste último século, no entanto, o – produzirem uma sociedade sem clas-
A pobreza seria, mesmo, inevitável? A capitalismo desenvolveu-se plenamen- ses, poderão viver uma igualdade so-
economia clássica chegou a formular a te e atingiu as mais remotas regiões. cial. Os homens não são o que pensam
ideia de que seria possível acabar com O mundo, hoje, é muito mais igual do e desejam, mas o que fazem.
a pobreza, produzindo muita riqueza. que à época de Marx e, por isso, mais
Quanto mais riquezas produzissem, do que então, seu pensamento de um IHU On-Line - Por que é impossível
mais haveria trabalho para todos e, mundo sem classes torna-se viável. conciliar marxismo e nacionalismo?
assim, não haveria pobres. No entan- Pedro de Alcântara Figueira – Por
to, os pensadores mais profundos e IHU On-Line - O que podemos en- tudo que dissemos até agora, o na-
mais importantes da economia políti- tender pela (anti) filosofia de Karl cionalismo é incompatível com o mar-
ca começaram a perceber que aquilo Marx? xismo porque o nacionalismo propõe
que eles afirmavam com tanta convic- Pedro de Alcântara Figueira – É difícil soluções para os problemas portas
ção não se confirmava na realidade, catalogar o pensamento de Marx, em- adentro de uma região ou um país.
pois, em meio à imensa riqueza que bora muitos o tenham tentado. Assim, Para Marx, os problemas sociais não
era produzida, a miséria tornava-se às vezes, o encontramos classificado podem ser enfrentados senão na sua
também descomunal. como filósofo, outras vezes, como his- universalidade. Sequer o capitalismo é
A grande importância de Marx para toriador, ou ainda mais frequentemen- compatível com o nacionalismo, pois o
o pensamento econômico consistiu em te como economista. Sua concepção da capitalismo exige o mundo como ter-
demonstrar que a produção da riqueza, vida humana, no entanto, entendida ritório de implantação. O capitalismo,
na sociedade de classes, não pode pres- como uma totalidade, uma forma de em seu processo de desenvolvimento,
cindir da produção da miséria porque, organização da vida, torna esta par- é expansionista, e, em seu processo de
ao contrário do que parecia à primeira ticularização equivocada. Para Marx, expansão, cria as condições para um
vista, é a produção da miséria que gera e esta é uma questão essencial a seu posterior desenvolvimento do marxis-
a riqueza. Uma parte, cada vez maior, pensamento, o comunismo não é uma mo que, por sua vez, só pode se de-
do trabalho realizado, parte que Marx ideia filosófica. Não é uma ideia a que senvolver lá onde existam condições
chamou de mais-valia, não é paga ao chegaram alguns grandes pensadores universais criadas para a produção da
trabalhador. Embora, aparentemente, revoltados com a injustiça social. Ao igualdade social. O marxismo desen-
o salário seja o pagamento do traba- contrário de pensadores como Rousse- volve-se na universalidade produzida
lho, Marx mostrou que o salário só paga au, por exemplo, que achavam que a pelo capitalismo.
uma parte, bem pequena, do trabalho sociedade tinha percorrido um cami-
realizado. Assim, quanto maior o pro- nho errado e que, por isso, achava-se IHU On-Line – Qual é a contribuição
duto do trabalho, menor, proporcional- num mau caminho, cheio de injusti- do marxismo para a esquerda políti-
mente, a parte que cabe àquele que o ças e maldades, Marx afirmava que a ca, principalmente pensando no ce-
realizou. Por isso, para Marx, o comu- sociedade humana havia percorrido nário político brasileiro atual?
nismo, que consiste em dividir o produ- um caminho real, e nenhuma ideia, Pedro de Alcântara Figueira – As ideias
to do trabalho entre toda a sociedade, boa ou má, poderia afastá-la de sua marxistas vêm desenvolvendo-se no
eliminando, portanto, a sua divisão em realidade. Marx criticava duramente Brasil, tal como em todo o mundo.
classes, é a única condição de uma so- aqueles que pensavam que boas ideias Mas, por mais que o nacionalismo seja
ciedade igualitária. poderiam levar os homens a percorrer incompatível com o marxismo, o de-
um caminho justo e, assim, chegar à senvolvimento do marxismo obedece
IHU On-Line - Em que sentido Marx igualdade. Para ele, os homens não às diferentes conformações da história
pode ser apontado ainda como um são o que pensam que são, mas sim de cada país. O marxismo desenvolve-
pensador atual para a economia? aquilo que eles produzem. Tal como se se num espaço e em condições criadas
Pedro de Alcântara Figueira – Embora pelo capitalismo e vê-se obrigado a le-
 Jean Jacques Rousseau (1712-1778): filó-
Marx tenha escrito O Capital na se- sofo franco-suíço, escritor, teórico político e var em conta estas especificidades sob
gunda metade do século XIX, ele é um compositor musical autodidata. Uma das figu- pena de desenvolver-se num mundo
pensador mais atual do que nunca. Sua ras marcantes do Iluminismo francês, Rousse- irreal. Assim, nos Estados Unidos, por
au é também um precursor do romantismo. As
atualidade advém de que, hoje, mais ideias iluministas de Rousseau, Montesquieu exemplo, o desenvolvimento de propo-
do que à sua época, as condições que e Diderot, que defendiam a igualdade de to- sições marxistas não pode se realizar
ele pressupunha necessárias à organi- dos perante a lei, a tolerância religiosa e a sem levar em consideração o papel que
livre expressão do pensamento, influenciaram
zação da sociedade em moldes comu- a Revolução Francesa. Contra a sociedade de a desigualdade racial desempenhou
nistas estão, elas também, mais ma- ordens e de privilégios do Antigo Regime, os na produção da desigualdade social. O
duras do que nunca. À época de Marx, iluministas sugeriam um governo monárquico mesmo raciocínio vale para situações
ou republicano, constitucional e parlamentar.
o capitalismo não apenas não havia (Nota da IHU On-Line). tão dramáticas quanto as vividas pe-
38 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327
los povos africanos, os palestinos etc. “As ideias marxistas vêm Ricardo a todos os economistas, Marx
A radicalização das lutas políticas tais não teve jamais qualquer preconceito
como as havidas na Indonésia, Argen- desenvolvendo-se no em ir buscar o conhecimento onde quer
tina, Chile e Bolívia, por exemplo, de- que ele estivesse melhor formulado. Ao
corre da radicalização do domínio de Brasil, tal como em todo contrário, surpreendia-se com aqueles
classes sob o capitalismo. Em países em que, embora militantes, propunham-
que deve-se considerar um imenso pro- o mundo. Mas, por mais se a esta grandiosa tarefa acreditando
gresso ser eleito presidente um negro, dispensável o mais profundo conheci-
como nos Estados Unidos, ou, como no que o nacionalismo mento de tudo o que de melhor produ-
caso brasileiro, um operário metalúrgi- ziu o pensamento humano em todas as
co, ou um índio, na Bolívia, nos dá a di- seja incompatível com diferentes épocas históricas. Marx era
mensão das dificuldades reais que uma implacável com os aventureiros bem
proposição de igualdade social tem que o marxismo, o intencionados. Exigia dos que se pro-
enfrentar. Para Marx, esta radicalida- punham a acompanhá-lo o mesmo rigor
de – conquanto dolorosa – é inevitável, desenvolvimento do científico que exigia de si.
pois, segundo ele, os que tudo detêm
nada entregarão senão mediante uma marxismo obedece às
luta árdua, tenaz e constante. As for-
mas destas lutas, que são várias, con- diferentes conformações
quanto inevitáveis, podem, no entan-
o advento da Revolução Industrial. O Instituto
to, ser conduzidas de modo a diminuir, da história de cada país” Humanitas Unisinos promoveu, em 2005, o I
nas palavras de Marx, as dores do parto Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da
de uma nova sociedade. Economia. No segundo encontro deste evento,
De Aristóteles a Thomas Morus, de a professora Ana Maria Bianchi, da USP, profe-
riu a conferência A atualidade do pensamen-
IHU On-Line - Quais são as princi- Balzac a Sismondi, de Adam Smith e to de Adam Smith. Sobre o tema, concedeu
pais influências filosóficas que Marx  Aristóteles de Estagira (384 a.C. – 322 a.C.): uma entrevista à IHU On-Line número 133, de
filósofo nascido na Calcídica, Estagira, um 21-03-2005, disponível em http://migre.me/
sofreu e como elas aparecem na sua dos maiores pensadores de todos os tempos. xQmm. Ainda sobre Smith, confira a edição 35
obra? Suas reflexões filosóficas — por um lado ori- do Cadernos IHU ideias, de 21-07-2005, in-
Pedro de Alcântara Figueira – Afirma- ginais e por outro reformuladoras da tradição titulado Adam Smith: filósofo e economista,
grega — acabaram por configurar um modo de escrito por Ana Maria Bianchi e Antônio Tiago
se que Marx costumava dizer que sua pensar que se estenderia por séculos. Prestou Loureiro Araújo dos Santos, disponível para
máxima preferida era aquela que afir- inigualáveis contribuições para o pensamento download em http://migre.me/xQnc. Smith
mava “que nada do que é humano me é humano, destacando-se nos campos da ética, foi o tópico número I do Ciclo de Estudos em
política, física, metafísica, lógica, psicologia, EAD – Repensando os Clássicos da Economia –
alheio”. O estudioso de Marx verá que poesia, retórica, zoologia, biologia, história Edição 2009, estudado de 13-04-2009 a 02-05-
esta é uma assertiva cheia de sentido natural e outras áreas de conhecimento. É 2009. O Ciclo de Estudos em EAD – Repensan-
para ele. Preocupado em entender o considerado, por muitos, o filósofo que mais do os Clássicos da Economia - Edição 2010,
influenciou o pensamento ocidental. (Nota da em seu primeiro módulo, falou sobre Adam
homem, sua produção e as possibilida- IHU On-Line) Smith: filósofo e economista. Para conferir a
des de superação da exploração e mi-  Thomas Morus (1478—1535): advogado, programação do evento, visite http://migre.
séria em que vivia e vive a maior par- escritor, político e humanista inglês. Foi exe- me/xQsg. (Nota da IHU On-Line)
cutado por ordem do rei Henrique VIII e pos-  David Ricardo (1772 - 1823): economis-
te do gênero humano, Marx não podia teriormente canonizado pela Igreja Católica ta inglês, considerado um dos principais re-
abrir mão de nenhum pensamento que com o nome de São Thomas Morus. Sua obra presentantes da economia política clássica.
lhe permitisse atingir o grau de conhe- mais famosa é Utopia, de 1516. (Nota da IHU Exerceu uma grande influência tanto sobre
On-Line) os economistas neoclássicos, como sobre os
cimento da sociedade que o marxismo  Honoré de Balzac (1799-1850): dramaturgo economistas marxistas, o que revela sua im-
representa. As referências que encon- francês, autor do conjunto de romances Co- portância para o desenvolvimento da ciência
tramos em suas obras, as anotações média Humana. Representante da transição na econômica. Os temas presentes em suas obras
passagem do romantismo para o realismo, ele incluem a teoria do valor-trabalho, a teoria
em seus cadernos, as cartas que escre- mistura aspectos das duas tendências. (Nota da distribuição (as relações entre o lucro e
veu, atestam que Marx não acreditava da IHU On-Line) os salários), o comércio internacional, temas
possível que se pudesse propor a trans-  Jean-Charles-Léonard Simonde de Sis- monetários. A sua teoria das vantagens compa-
mondi (1773-1842): economista e historia- rativas constitui a base essencial da teoria do
formação social sem o mais profundo dor suíço. Nos seus últimos anos de atividade comércio internacional. Demonstrou que duas
conhecimento de todos aqueles pensa- profissional, escreveu a Histoire des français nações podem beneficiar-se do comércio livre,
dores que refletiram sobre a questão. (1821-1844). (Nota da IHU On-Line) mesmo que uma nação seja menos eficiente
 Adam Smith (1723-1790): considerado o fun- na produção de todos os tipos de bens do que
dador da ciência econômica. A Riqueza das o seu parceiro comercial. Ao apresentar esta
Nações, sua obra principal, de 1776, lançou teoria, usou o comércio entre Portugal e In-
as bases para um novo entendimento do me- glaterra como exemplo demonstrativo. O Ciclo
canismo econômico da sociedade, quebrando de Estudos em EAD – Repensando os Clássicos
paradigmas com a proposição de um sistema da Economia - Edição 2010, em seu segundo
liberal, ao invés do mercantilismo até então módulo, fala sobre Malthus e Ricardo: duas
vigente. Outra faceta de destaque no pensa- visões de economia política e de capitalismo.
mento de Smith é sua percepção das sofríveis Para conferir a programação do evento, visi-
condições de trabalho e alienação às quais os te http://migre.me/xQsg. (Nota da IHU On-
trabalhadores encontravam-se submetidos com Line)

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 39


Escola de Formação Fé e Política
publica coletânea sobre Caritas in Veritate
Em sua 7ª edição, a Escola de de, ligando-a ao mundo do trabalho, desafio de construir uma sociedade
Formação Fé, Política e Trabalho, da economia e do desenvolvimento. solidária e repensar mais radical-
parceria entre a Diocese de Caxias Assim, nas notícias e artigos republi- mente a doutrina social da Igre-
do Sul, através da Cáritas Diocesa- cados, busca-se refletir sobre temas ja, desenvolvendo a reflexão ética
na, e o Instituto Humanitas Unisinos como o mercado, orientado para o acerca das novas questões políti-
– IHU, publicou, em fevereiro deste bem comum, baseado na ética da cas e sociais. Por isso, a coletânea
ano, a sua nova coletânea Fé e Polí- responsabilidade, da justiça social colabora na intenção da Escola de
tica de notícias e artigos. e da solidariedade; a globalização “construir um espaço de reflexão e
olhada no seu aspecto positivo para debate, aprofundamento dos temas
Com quase 80 páginas, a publica- a humanidade; a denúncia da lógica que nos desafiam neste nosso tem-
ção está centrada nas repercussões especulativa e da maximização do po, iluminados pelo Ensino Social
divulgadas pela imprensa nacional lucro afirmado no mito da eficiência da Igreja”.
e internacional à encíclica do Papa e na exclusão de muitos; o desenvol-
Bento XVI Caritas in Veritate. Como vimento, a centralidade da pessoa e Na sua edição de 2010, a Escola
indica a introdução da publicação, a responsabilidade diante do meio está dividida em 10 etapas ao longo
“a maior parte da coletânea foi reti- ambiente; a economia solidária que do ano, com diversos temas relevan-
rada do sítio do Instituto Humanitas vai além da lógica da troca e do lu- tes para a formação e a articulação
Unisinos – IHU”. cro em si mesmo. de lideranças nos vários âmbitos de
atuação da realidade, a partir do
Nesta nova coletânea, o contexto Há sete anos, a Escola congre- Ensino Social da Igreja. Para saber
social analisado é o da crise financei- ga participantes de vários municí- mais informações acesse http://bit.
ra, no qual o Papa propõe a carida- pios do Estado para responder ao ly/99lbBg

XI Simpósio Internacional IHU:

O (des)governo biopolítico da
vida humana

Informações em
www.ihu.unisinos.br
40 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327
IHU Repórter

Cecília Pires
Por Patricia Fachin | Fotos Arquivo Pessoal

N
a fala da professora Cecília Pires, é possível perceber seus sentimentos de
criança e de filósofa. A preocupação com temas recorrentes como justiça,
igualdade e direitos humanos está presente na forma como ela analisa o
mundo e as relações entre as pessoas. Filha de um ex-fazendeiro português
e mãe operária, Cecília reúne, em sua vida, a luta de classes. “As questões
da justiça e das injustiças sempre me chamaram muito a atenção desde pequena. A
sociedade hierarquizada sempre me incomodou”. Na entrevista que segue, concedida
à IHU On-Line, ela resgata aspectos interessantes da vivencia no período da Ditadura
Militar, analisa as conquistas e seus sonhos para o futuro. Confira.

Origens – Nasci na região das Missões, veio de uma classe operária. Então, parte da Juventude Estudantil Católi-
na cidade de Santiago. Costumo dizer reúno em mim a luta de classes porque ca - JEC. Já em Santa Maria, na UFSM,
que fui um ente que entrou na vida e na meu pai era de origem portuguesa, de nos debates na sala de aula do curso
natureza, pedindo licença porque o meu uma burguesia ascendente e minha de Filosofia que, naquele período, era
pai tinha 76 anos quando eu nasci. Ele mãe, era indígena. A bisavó dela era muito operado pelos padres palotinos,
faleceu com 102 anos, me viu crescer, índia Guarani de tribo. Eu não sei uma tínhamos a sensação de medo, mas
me formar. Tenho mais uma irmã. palavra em Guarani, o que acho uma também a euforia da resistência. Tam-
lástima, mas essa vivência de duas re- bém atuei como professora nesse pe-
Pai – A rigor, meu pai parecia mais alidades, de certa forma antagônicas, ríodo. Era difícil pensar nos programas
um ícone no sentido de que era um é muito importante na minha vida. de Filosofia Contemporânea e Social.
velhinho, mas uma pessoa muito lúci- Quando trabalhávamos os temas can-
da. Ele gostava de ler e apesar de não Estudos – Fui educada num colégio dentes, éramos mal vistos, vigiados.
ter feito uma educação superior, tinha religioso de Santiago, da Congregação Mas, nunca desistimos da luta.
uma cultura própria e foi uma das pri- das Filhas do Sagrado Coração de Jesus.
meiras pessoas a me falar sobre Filoso- Cursei a graduação na Universidade Fe- Militância - Durante muitos anos,
fia, me contava a história de Sócrates deral de Santa Maria de 1966 a 1969, em em Santa Maria, coordenei a comis-
e dos filósofos. Minha mãe era costu- plena Ditadura Militar. Fiz parte do grupo são de Direitos Humanos. Participei da
reira, uma mulher muito trabalhado- de pessoas resistentes à Ditadura. fundação do Movimento de Justiça e
ra. Ela me iniciou nas questões da re- Direitos Humanos de Porto Alegre, com
ligiosidade. Tínhamos uma vida muito Filosofia – O interesse pela Filosofia Jair Kirschke. Participei, também, do
tranquila, morávamos numa casa gran- vem do incentivo de meu pai e de uma “cacerolaço”, quando batíamos em
de, com um pátio enorme e podíamos curiosidade própria minha de entender panelas para fazer protestos na rua.
colher as frutas das árvores. as pessoas e as relações entre os indi- Visitei o primeiro acampamento dos
víduos. As questões da justiça e das in- Sem Terra, fiz um comício, grávida de
Pensamento - As ideias que tenho justiças sempre me chamaram muita oito meses, chamando as mulheres
hoje estão diretamente relacionadas atenção desde pequena. Sempre vi mui- para a luta da resistência, em 1980. A
às minhas origens. Meu pai, antes de ta divisão entre as pessoas em função de minha vida sempre foi filosófica.
eu nascer, tinha sido um grande fazen- classes, raças, sexo, poder. A sociedade
deiro. Com a crise econômica de 29, hierarquizada sempre me incomodou. Lições da Ditadura - O movimen-
ele perdeu todos os bens. Costumo to pela anistia é importante porque
dizer que fiquei com a fotografia das Viver no período da Ditadura é uma conquista nossa, embora ainda
fazendas. Minha mãe, por outro lado, – Quando morava em Santiago, fazia seja uma conquista parcial. Essa foi

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327 41


uma luta que trouxe muito aprendiza- quatro filhos e meu marido faleceu mui- ninas e um menino; o quarto está a
do. Conseguimos que a democracia não to cedo: ele teve um enfarte agudo do caminho. A relação com eles é muito
morresse. Essa foi a nossa luta, a luta miocárdio e eu fiquei com quatro filhos gostosa porque é uma outra forma de
da resistência. Faço uma avaliação de para criar. No final de 1995, minha filha eu ser mãe. É uma dimensão que tem
que não estamos, ainda, no nível de- viu um anúncio no jornal Zero Hora de muito afeto, carinho, mas não exige o
mocrático que teria de produzir o res- que a Unisinos estava precisando de pro- disciplinamento que se tem de ter com
peito ao direito de todos e a inclusão fessores de Filosofia e ela me inscreveu. os filhos por uma questão de necessi-
social de todos, já que o mundo é de Comecei a trabalhar na universida- dade. Vejo neles o processo do ser hu-
todos. Não conseguimos a democracia de quando ela passava por um proces- mano em evolução e crescimento. Há
além do formal, do sufrágio universal so de construção. Em 1996, não havia sempre um renovar nessa relação.
e de uma certa irresponsabilidade. um curso de pós-graduação em Filo-
Na época em que os partidos políticos sofia. José Ivo Follmann, que sempre Estado - O Estado com o aparato de
(PMDB e Arena) voltaram a se organi- teve um olhar muito bom para a Fi- poder jurídico e político não está ao
zar, ouve a compreensão de que aquele losofia, constituiu naquela época uma encontro das questões da sociedade
era o momento para se organizarem. comissão para pensarmos o curso de como um todo. Enquanto as coisas que
Depois, as coisas tomaram outro rumo. mestrado. A comissão foi formada pelo Marx denunciou não estiverem supera-
Acho que existe, por parte das lideran- Prof. Marcelo Aquino, Antonio Sidekun das, o marxismo não estará superado.
ças político-partidários, um culto mui- e eu. Fiz o pós-doutorado em Paris, Evidentemente temos um Estado de
to grande a sua própria personalidade, incentivada pelo Pe. Marcelo Aquino. classe, que faz os cortes, que dissemi-
ao seu próprio desejo. Hoje, penso que Hoje sou professora da graduação e na, estratifica.
talvez devêssemos repensar a questão pós-graduação. Gosto desta experiên-
da organização social e civil e esta po- cia com a juventude. Sempre procurei Humanidade - Tivemos muito avan-
deria ocorrer por meio de conselhos. O incentivar grupos de pesquisa e estu- ço tecnológico, mas vejo que, apesar
sujeito não se sente acolhido na escuta dos com estudantes. Fiz isso na UFSM e disso, os humanos se distanciaram de
de suas necessidades na atual estrutura faço hoje na Unisinos com meus alunos si mesmos. Me parece que o homem
formada por Estados, prefeituras. e temos o NEFIPO - Núcleo de Estudos não sabe muito bem quem ele é. Tal-
em Filosofia Política, que nos auxilia vez tenhamos que entender melhor a
Capitalismo totalitário - Hoje, a muito no debate acadêmico dimensio- dimensão concreta do individuo que
juventude tem outras utopias, ela vai nado para a vida prática. está no nosso cotidiano.
ter de descobrir os seus processos, sair
das suas letargias. A ditadura produziu Mãe – A experiência de cuidar de Brasil - O Brasil começou invadido,
uma descrença que gerou um individu- quatro filhos foi metafísica no sentido ficou muito tempo dominado e tenta
alismo exacerbado. Antigamente, nas de quase infinitude porque naquele buscar a sua própria identidade, e ci-
universidades, tinham muitas parce- momento eu fui o pai e a mãe dos meus dadania com muita dificuldade. Mas
rias, não tínhamos grandes bibliote- filhos. Minha mãe me acompanhou hoje é possível ver um Brasil que co-
cas, mas as pessoas se ajudavam, es- sempre. Quando meu marido faleceu, meça a ser ouvido e respeitado. Isso
tudavam juntas, emprestavam livros, tive dificuldade de voltar a trabalhar não é resultado de apenas um grupo
se criavam condições materiais para na universidade porque nós trabalháva- político, é um esforço daqueles que vi-
que todos tivessem acesso. mos no mesmo local, embora ele fos- veram, sobreviveram e morreram. Na
O capitalismo tende a ser totalitário. se engenheiro da matemática e eu da minha fala ainda tem muito do meu
Quando falamos em totalitarismo, pen- área da filosofia. Exigia que meus filhos sentimento de criança, de ver a ideia
samos no que aconteceu na União Sovié- fossem para o colégio até que um dia da igualdade ser possível entre as pes-
tica e em outras tiranias. Mas não foi só um deles disse: “Mãe, por que tu tens soas. Lembro que, quando criança, via
lá. O capitalismo tomou conta do mundo de ficar em casa chorando e nós temos os pobres e os negros não sentarem nos
hoje. A situação fracassada da União So- de ir chorando para o colégio?”. Neste primeiros bancos da Igreja, por exem-
viética não foi socialismo, nem comunis- momento, me dei conta que eu preci- plo. Nos primeiros bancos sentavam os
mo, foi um capitalismo de Estado, pura sava reagir, que eu era a pergunta, mas brancos e os ricos. Eu achava estranho,
e simplesmente. Mas o capitalismo é a também era a resposta. perguntava por que, mas ninguém me
própria tirania que o homem escolheu respondia objetivamente.
para viver e se organizar. Filhos - Meu filho caçula tem 25
anos, mora em Los Angeles. Uma das Atividades - Já publiquei livros de
Ingresso na Unisinos - Tenho 40 anos minhas filhas faz doutorado em História poesias, também lecionei como pro-
de magistério. Em 1994, me aposentei. na Unisinos. A mais velha é formada em fessora visitante em Belém do Pará,
No ano seguinte, minha filha mais ve- Direito e é funcionária pública federal, onde conheci meu atual companheiro,
lha estava morando em Porto Alegre e trabalha no Tribunal. Meu outro filho é Humberto Cunha, que também é um
estudando Direito, então, minha famí- técnico e trabalha com eletrônica. sobrevivente da Ditadura e dos porões
lia também mudou para a cidade. Tive do Carandiru. Na época, ele foi cassa-
Netos - Tenho três netos: duas me-
42 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MAIO DE 2010 | EDIÇÃO 327
>> Professora Cecília com os filhos

do pelo 477 e AI 5. Eu o encontrei eu me aposentar de novo tenho tecem na Sala Ignacio Ellacuría
nessa luta pelos direitos huma- vontade de trabalhar com crianças – aliás achei uma excelente ho-
nos. A tentativa de fazer com que abandonadas. Acho que é preciso menagem a um mártir -, e através
a igualdade saísse da lei e fosse um olhar voltado para a infância, da revista e do site. Tenho uma
para a realidade, para mim, é uma para pensar as crianças como pre- observação: vejo que o IHU é par-
questão muito forte nessa luta pe- sente no sentido de construir o fu- cial. Dependendo do assunto que
los direitos humanos. Felizmente, turo. Tenho isso como perspectiva. discute, ouve apenas uma corrente
também encontrei em Humberto de pensamento. Poderia ter outra
essa parceria. Unisinos – Participei da direto- forma de enfocar os assuntos, de
ria da Adunisinos quando ingressei uma forma mais plural. Acho que
Lazer - Escrevo meus versos e na universidade. De 1996 para cá, as discussões são muito dirigidas.
isso é terapêutico para mim. Não a Unisinos cresceu muito. Naquela Um instituto que procura trabalhar
tenho muita pretensão com isso, época, deveria existir um ou dois culturalmente o debate – e acho
embora faça parte da Associação cursos de pós-graduação. Hou- extremamente importante os te-
de Letras. Gosto de pintar; fiz ve um trabalho muito sério para mas discutidos -, podia também
aulas de artes plásticas. Não sou qualificar o ensino e torná-la uma fazer uma arena de debates. Uma
uma pessoa das lidas domésticas. universidade de pesquisa. Com a sessão de polêmica, porque todos
Como canceriana, sou quieta e nova reestruturação da universida- os assuntos têm vários lados. Não
gosto de acolher as pessoas. Talvez de, perdemos um pouco o contato gosto quando um veículo aborda
busque menos e receba mais. Pelo com os colegas do cotidiano. Lem- apenas um ponto de vista. Sempre
meu processo de timidez, não gos- bro que, quando cheguei aqui, no existe o fato e as versões do fato. A
to de espetáculo, da cena públi- Centro 1, havia uma imensa sala oxigenação do pensamento é boa.
ca, de estar na vitrine. E também de professores, onde nos reunía- A ideia de dissenso não é ruim, ela
não gosto de pessoas que gostam mos, contávamos piadas, conver- aflora a discussão.
de dar espetáculo. Sou muito crí- sávamos. Isso se desfez porque as Sobre Belo Monte, por exem-
tica, atenta e observadora. Anali- pessoas passam muito tempo em plo, tenho discutido com Hum-
so também a mim mesma porque seus gabinetes, com seus grupos berto, que é agrônomo, educador
tenho imperfeições como todos os de estudos e necessariamente não popular e veio de Belém do Pará.
seres humanos. Gosto muito de precisam conversar. Claro que todo Nos anos da Ditadura se lutou mui-
viajar. A experiência cultural das o crescimento tem um ônus. Pode- to contra Belo Monte, por toda a
viagens é muito interessante. Isso mos dizer que viver e crescer dói. destruição que a obra causaria
me enriquecesse culturalmente. Então, acho que tem um pouco a à natureza. Mas ele me diz que
dor do crescimento nesse aspecto, hoje a obra tem outra dimensão
Religião – Sou uma pessoa reli- daquilo que era mais horizontal e e que a informação divulgada na
giosa. O meu ir e vir na Igreja gira mais fraterno. Sempre tenho pre- mídia não é a única verdadeira.
em torno da minha necessidade e ocupação com as metas do cres- Eu vi que o IHU entrevistou vários
liberdade pessoal. O Sagrado me cimento, qual é o limite para não pesquisadores contra Belo Monte,
toca muito, mas não faço proseli- deixar muitos à beira do caminho. mas não ouviu nenhum a favor ou
tismo disso nem da forma do que Mas também tenho uma dimensão algum neutro que pudesse discutir
eu penso filosoficamente e poli- de credibilidade na figura de lide- de outro ponto de vista. Achei que
ticamente. As pessoas, para me rança que Marcelo Aquino está co- ficou parcial. Não estou defenden-
contestarem, precisam me dar ar- locando hoje. Tenho esse voto de do Belo Monte, mas penso que o
gumentos. Tenho muito problema confiança no discernimento que debate é importante.
com disciplinamento e regramen- ele tem de saber para onde cami- O IHU cumpre um papel inte-
tos que não levam a nada. nha o crescimento. ressante na universidade, de pro-
porcionar eventos significativos em
Sonhos – Enquanto estamos vi- IHU – Acompanho o IHU de duas diversas áreas e é esclarecedor.
vos, estamos sonhando. Quando formas: pelos eventos que acon-
Destaques
Heidegger, Nietzsche e a biopolítica
Possibilitar a compreensão e a reflexão do tema central do XI Simpósio Inter-
nacional IHU O (des)governo biopolítico da vida humana, visando debater e
refletir sobre a vida humana como objeto do poder e recurso útil nas estratégias
biopolíticas das sociedades contemporâneas é o objetivo do Ciclo de Estudos
Filosofias da diferença. O próximo encontro do evento será dia 11 de maio, das
19h30min às 22h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU, quando o Prof.
Dr. Ernildo Stein, da PUCRS, falará a partir do tema A crítica de Heidegger ao
biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica. Mais informações sobre o
Ciclo podem ser obtidas em http://migre.me/Bi7K

Economia, sustentabilidade
e desenvolvimento
No próximo dia 13 de maio, o tema Economia e sustentabi-
lidade: novos indicadores de desenvolvimento será debatido
pela Profa. Dra. Clitia Helena Backx Martins, economista,
pesquisadora da FEE e professora da PUC. A atividade integra
a programação do evento IHU Ideias, promovido pelo IHU, que
acontece sempre das 17h30min às 19h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU. Acesse
http://migre.me/Biea e obtenha mais informações.

Missa Terra Sem Males


No dia 25 de outubro de 2010, durante a abertura do XII Simpó-
sio Internacional IHU – A Experiência Missioneira: território,
cultura e identidade será realizado na Unisinos um grande es-
petáculo, chamado Missa Terra Sem Males. Com texto de Dom
Pedro Casadáliga e Pedro Tierra e música de Martín Coplas, a
apresentação conta com a participação de mais de 100 figurantes
e com a presença de grupos indígenas guarani. O XII Simpósio
Internacional IHU busca refletir sobre a experiência missioneira
jesuítica nos 400 anos da fundação das primeiras reduções da
Província da Companhia de Jesus do Paraguai. Para saber mais
acesse http://migre.me/BigU

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