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Trabalho e Cinema

O mundo do trabalho através do cinema

Volume 3
Projeto Editorial Praxis
http://editorapraxis.cjb.net

Trabalho e Mundialização do Capital – A Nova Perspectivas do Capitalismo Global


Degradação do Trabalho na Era da Globalização Organizadores: Francisco Luiz Corsi, José Marangoni
Giovanni Alves Camargo, Marcos C. Pires e Rosângela de Lima Vieira

Dimensões da Globalização – O Capital e Trabalho e Cinema – O Mundo do Trabalho


Suas Contradições Através do Cinema – Volume 2
Giovanni Alves Giovanni Alves

Dialética do Ciberespaço - Trabalho, Tecnologia e Política Teoria da Dependência e Desenvolvimento do


no Capitalismo Global Capitalismo na América Latina
Giovanni Alves (org.) e Vinício Martinez (org.) Adrian Sotelo Valencia

Limites do Sindicalismo - Marx, Engels e a A Condição de Proletariedade – A Precariedade do


Crítica da Economia Política Trabalho no Capitalismo Global
Giovanni Alves Giovanni Alves

Novos Desequilibrios Capitalistas Paradoxos do Capital e O Sindicalismo Brasileiro e a


Competição Global Qualificação do Trabalhador
Luciano Vasapollo José dos Santos Souza

Tecnécrates Trabalho, Ética e Sociedade – Reflexões sociais, éticas e


Antonino Infranca agrárias na contemporaneidade
Ubaldo Silveira (Org.)
Desafios do Trabalho – Capital e Luta de
Classes no Século XXI La precarización del trabajo en América Latina –
Roberto Batista (org.) e Renan Araújo (org.) Perspectivas dels Capitalismo global
Claudia Figari e Giovanni Alves (Orgs.)
Universidade e Neoliberalismo
O Banco Mundial e a Reforma Universitária na Série Risco Radical
Argentina (1989-1999)
Mario Luiz Neves de Azevedo e Afrânio Mendes Catani 1. O Outro Virtual - Ensaios sobre a Internet
Giovanni Alves, Vinicio Martinez, Marcos Alvarez,
Trabalho, Economia e Tecnologia - Novas Perspectivas Paula Carolei
para a Sociedade Global
Jorge Machado (org.) parceria com a Editora Tendenz 2. Democracia Virtual -
O Nascimento do Cidadão Fractal
Trabalho e Educação Vinicio Martinez
Contradições do Capitalismo Global
Giovanni Alves (Org.), Roberto Batista (Org.) e Jorge 3. Leviatã - Ensaios de Teoria Política
Gonzáles (Org.) Marcelo Fernandes de Oliveira

Trabalho e Cinema – O Mundo do Trabalho Através do 4. Trabalho e Globalização -


Cinema – Volume 1 A Crise do Sindicalismo Propositivo
Giovanni Alves Ariovaldo de Oliveira Santos

Dimensões da Reestruturação Produtiva 5. Concertação Social e Luta de Classes -


Ensaios de sociologia do trabalho O Sindicalismo Norte-Americano
Giovanni Alves Ariovaldo Santos
Economia, Sociedade e Relações Internacionais

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Pedidos pelo e-mail atendimento@editorapraxis.com
Giovanni Alves

Trabalho e Cinema
O mundo do trabalho através do cinema

Volume 3

Editora Praxis
2010
Copyright do Autor, 2010
ISBN 978-85-7917-096-6

Produção Gráfica:
Canal6 Projetos Editoriais
www.canal6.com.br

A474t Alves, Giovanni.


Trabalho e cinema: o mundo do trabalho através do cine-
ma - Volume 3 / Giovanni Alves – Londrina: Praxis; Bauru:
Canal 6, 2010.

418 p. : il.

ISBN 978-85-7917-096-6

1. Trabalho. 2.Cinema. 3.Fordismo. I. Giovanni Alves. II.


Título.

CDD 338

Projeto Editorial Praxis


Free Press is Underground Press
http://editorapraxis.cjb.net

Impresso no Brasil/Printed in Brazil


2010
Apresentação

O s ensaios apresentados no livro “Trabalho e Cinema – O mundo do


trabalho através do cinema”- Volume 3, são produtos do curso de
extensão universitária à distância “A precariedade do trabalho no capi-
talismo global – o mundo do trabalho através do cinema”, realizado de
dezembro de 2008 a fevereiro de 2010. O curso virtual teve abrangência
nacional e deu origem não apenas ao volume 3 de “Trabalho e Cinema”,
mas também a uma nova série de 08 (oito) cd-rom’s de análises críticas
de filmes.
Utilizando a metodologia do Projeto de extensão universitária
Tela Critica (www.telacritica.org) buscamos elaborar reflexões criticas
sobre o mundo do trabalho do século XX. Enfim, os filmes constituí-
ram “laboratórios virtuais” a partir dos quais elaboramos (e desenvol-
vemos) reflexões críticas sobre o mundo do trabalho sob o capitalismo
global, demonstrando que o filme pode ser utilizado não apenas para
ilustrar discussões temáticas da sociologia, mas serve também para
propiciar um complexo processo de produção do conhecimento crítico
sobre o mundo burguês. Enfim, o filme fornece indícios (ou pistas) a
partir dos quais podemos desenvolver reflexões critico-dialéticas, sus-
citar a imaginação sociológica e ativar nossa criatividade intelectual.
Como os volume 1 e 2, o livro “Trabalho e Cinema”- Volume 3 é um
verdadeiro curso de sociologia crítica do trabalho, buscando não apenas
comentar filmes clássicos do cinema mundial, mas construir um arca-
bouço categorial capaz de dar respostas aos desafios teórico-analiticos
postos pela transformação do trabalho no capitalismo global.
Trabalho e Cinema • Volume 3

Dando seqüência às reflexões contidas no volume 2, apresenta-


mos, nas entrelinhas deste livro, uma nova teoria das classes sociais na
perspectiva dialético-materialista. Expomos com mais clareza, por um
lado, o conceito de condição de proletariedade, a partir do qual busca-
mos resignificar o conceito de proletariado. O conceito de “condição de
proletariedade” é a categoria fundamental (e fundante) capaz de expli-
car, não apenas a formação de classe do proletariado, mas a nova con-
dição histórica de homens e mulheres despossuídos de propriedade (e
do controle) dos meios de produção da vida social sob a modernidade
do capital.
Por outro lado, abordamos as novas formas de estranhamento
social e degradação da subjetividade do homem que trabalha nas con-
dições do capitalismo global. Como fizemos no livro 2, prosseguimos
o esclarecimento de uma série de conceitos categoriais através da aná-
lise critica de filmes: classe do proletariado e “classe” do proletariado;
trabalho vivo e força de trabalho; trabalho estranhado e estranhamen-
to social; fetichismo da mercadoria e os múltiplos fetichismo sociais;
proletarização e precarização do trabalho; além do conceito de pre-
cariedade salarial e suas formas histórico-sociais. Buscamos também
apresentar uma fenomenologia complexa da consciência de classe do
proletariado, categoria-chave constitutiva fundamental (e fundante) do
movimento de formação da classe do proletariado. Neste volume 3 da-
mos prosseguimento à construção de elementos de um novo arcabouço
teórico-critico capaz de propiciar não apenas a interpretação crítica da
verdade fílmica, mas a crítica da modernidade do capital.
O volume 3 do livro “Trabalho e Cinema” é produto de um esforço
intelectual que busca refletir sobre o mundo do trabalho através de fil-
mes clássicos do cinema mundial. É produto de um labor coletivo que
envolve a análise crítica dos filmes no interior de um processo dialógi-
co intenso com as pessoas que participaram da dinâmica Tela Crítica.
Os três livros da série “Trabalho e Cinema” são provas irrefutáveis da
notável capacidade heurística da metodologia do Projeto Tela Critica,
não apenas em utilizar o filme como ilustração, mas como meio de pro-
dução do conhecimento científico. A dinâmica de análise dialética que

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O mundo do trabalho através do cinema

compõe o Projeto Tela Crítica exige um esforço difícil de resignificação


critico-conceitual da narrativa filmica.
Agradeço aos meus alunos do curso de extensão universitária
“A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global” – 2008-2010 –
a oportunidade que me deram de exercitar, no decorrer deste longo
curso à distância, uma reflexão crítica sobre os filmes que constam no
volume 3 do livro “Trabalho e Cinema”. Diante de cada filme a ser anali-
sado, colocava-se o fascinante desafio de resignificar narrativas filmicas
que provocavam a razão dialética. Tais desafios critico-dialéticos me
proporcionavam sempre, ao final, inusitadas surpresas. Na verdade,
ao divagar numa análise crítica de filme, sempre chegava a resultados
inesperados. Descobria novas categorias capazes de explicar as múl-
tiplas dimensões da precarização do trabalho no capitalismo global.
Na verdade, o Tela Crítica me proporcionava uma auto-aprendizagem
através da análise crítica do filme. Ora, Tela Critica significa “ir além da
tela”, e acredito que, na medida do possível, consegui ser bem-sucedido
(é o que demonstra o conteúdo deste livro).
Agradeço aos alunos e alunas do curso virtual, com destaque
para Claudio Pinto (São Paulo), Jeinni Puziol (Paraná), Albio Fabian
Melchioretto (Santa Catarina) e em especial, Thayse Palmela (Minas
Gerais). Destaco também as interessantes discussões suscitadas pelos
alunos sobre a teoria das classes sociais e natureza do proletariado:
Alessandro de Moura, Esdras Selegrim e Paulo Mazzini.

Marília, 15 de março de 2010


Giovanni Alves

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Sumário

11 Introdução

57 Capítulo 1
O Salário do Mêdo, de Henri-Georges Clouzot

89 Capítulo 2
A Classe Operária Vai Ao Paraíso, de Elio Petri

137 Capítulo 3
Morte de um Caixeiro-viajante, de Volker Schlöndorff

185 Capítulo 4
O Que Você Faria?, de Marcelo Piñeyro

231 Capítulo 5
A Agenda, de Laurent Cantet

285 Capítulo 6
O Invasor, de Beto Brandt

319 Capítulo 7
Eles Não Usam Black-tie, de Leon Hirszman

375 Capítulo 8
Pão e Rosas, de Ken Loach

413 Referências
Introdução

A Condição de Proletariedade na Modernidade Salarial1

N osso objetivo é apresentar o conceito de condição de proletarieda-


de, considerado por nós como a condição existencial fundamental
(e fundante) da modernidade do capital, que implica homens e mulhe-
res despossuidos dos meios de produção de sua vida social, na situação
de “classe social” do proletariado.
A “classe” (entre aspas) do proletariado é o conjunto social de ho-
mens e mulheres, alienados da propriedade/controle social dos meios
de produção da vida, que estão subsumidos a uma condição existencial
histórico-particular – a condição de proletariedade.
A condição de proletariedade abre um campo de possibilidades con-
cretas para a constituição da classe social do proletariado propriamente
dita, posta como sujeito histórico-coletivo da civilização do capital.
Deste modo, a analítica existencial do proletariado, que apresen-
taremos nesta aula e nas aulas seguintes através da análise crítica de fil-
mes do cinema mundial, é a base categorial-objetiva para construirmos
uma teoria da classe social do proletariado capaz de indicar as perspec-
tivas da práxis emancipatória no século XXI.
Num primeiro m0mento, iremos tratar da distinção crucial, no
legado marxiano, entre teoria do estranhamento e teoria da exploração.

1 Extraído do livro “A condição de proletariedade”, de GIOVANNI ALVES (2009,


Ed.Praxis)

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Trabalho e Cinema • Volume 3

Salientaremos que a teoria social da classe do proletariado que iremos


desenvolver, tem como base teórico-metodológica, a teoria do estranha-
mento apresentado – em seus princípios fundamentais – por Karl Marx.
Depois, discutiremos, mais uma vez, o significado de trabalho es-
tranhado, estranhamento e fetichismo social (o que tratamos de modo
introdutório, na Aula 1 e seu texto complementar). É a partir deste arca-
bouço categorial que iremos apresentar o que é a “classe” do proletaria-
do (com aspas) e a classe social do proletariado (uma discussão prévia
sobre o significado de “classe social” é importantíssimo na medida em
que o conceito de “classe social” é um dos mais crucial para a explicação
critico-ontológica da praxis humano-social na sociedade burguesa).
Nesse momento da aula, torna-se importante salientar a mor-
fologia social da condição humano-existencial de proletariedade e
comentar – a título meramente introdutório – uma série de situações
categoriais problemáticas que exigem uma resposta do arcabouço te-
órico-analitico vinculadas ao tema da situação de “classe social” (por
exemplo, como tratar da dita “classe média” e pequeno-burguesia ou
ainda, como explicar a situação dos trabalhadores públicos a partir da
ótica teórico-analitica proposta, etc).

Marx: teoria da exploração e teoria do estranhamento

Pode-se dividir, a título meramente heuristico, a teoria de Marx


e sua critica do capital, pelo menos em duas construções teórico-
analiticas`fundamentais: teoria da exploração e teoria do estranhamento.
A teoria da exploração é o complexo categorial que explica a di-
nâmica estrutural de produção e acumulação de valor, telos (ou fina-
lidade intrinseca) do sistema de controle sociometabólico do capital.
Para explicar a produção do capital, Marx explicitou em seus textos, as
categorias de mais-valia, trabalho abstrato/trabalho concreto, trabalho
produtivo/trabalho improdutivo, etc. A teoria da exploração é exposta
por Karl Marx no decorrer da critica da economia política, alcançando
na obra “O Capital”, seu ápice de desenvolvimento científico. Com a sua

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O mundo do trabalho através do cinema

teoria da exploração, Marx colocou um dos principais fundamentos da


critica radical da ordem burguesa.
A teoria do estranhamento é o complexo categorial que explica a
desefetivação do ser genérico do homem a partir das relações sociais/
praxis histórica constitutivas do trabalho estranhado e da vida social
estranhada subjacente à produção do capital (relações sociais entre su-
jeito/objeto mediadas pelas relações sociais sujeito/sujeito).
Os elementos primordiais da teoria do estranhamento estão ex-
postos nas obras de juventude de Marx, com destaque para os “Manus-
critos de Paris” (1844). Mesmo em “O Capital”, de 1867, a discussão do
fetiche da mercadoria e seu segredo remete à teoria do estranhamento,
na medida em que explica, a partir da forma-mercadoria, uma deter-
minada forma de consciência social (sugerindo, como desdobramento
teórico-categorial interno da teoria do estranhamento, o que seria a
teoria do fetichismo).
Portanto, enquanto a teoria da exploração trata do “em-si” e da
dimensão estrutural (e das leis tendenciais históricas) do modo de pro-
dução capitalista, a teoria do estranhamento trata do “para-si” e do con-
teúdo material da práxis histórica (as relações sociais).
É importante salientar que a divisão entre teoria da exploração e
teoria do estranhamento é meramente heurística, tendo em vista que a
exploração sempre pressupõe estranhamento (ou trabalho estranhado)
e o trabalho estranhado (e o estranhamento), sob o modo de produção
capitalista, pressupõem exploração.

Teoria do estranhamento

A teoria do estranhamento explica a inversão/perversão da rela-


ção sujeito/objeto (e de forma derivada, sujeito/sujeito) a partir da inter-
versão do objeto (O) em coisa (C). Em termos lógico-dialético, sujeito
pressupõe objeto. Na medida em que o objeto torna-se “coisa”, “nega-se”
– lógico e ontologicamente - o sujeito.

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Trabalho e Cinema • Volume 3

O objeto torna-se “coisal” (“O” torna-se “C”), como observa Marx,


quando os meios de produção tornam-se propriedade privada (isto é,
defrontam-se diante do sujeito como capital). Eis como Marx descreve
o processo de estranhamento social:
“Este fato, nada mais exprime senão: o objeto (Gegenstand) que o
trabalho produz, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder
independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fi-
xou num objeto, fez-se coisal (sachlich) [...] Esta efetivação do trabalho
aparece [...] como deseftivação [Entwirklichung] do trabalhador [...].”
(“Manuscritos econômico-filosófico”).
Ora, quando “O” torna-se “C”, ele se impõe (ou “nega”) S, que
torna-se “S” (é o processo de dessubjetivação ou “negação” do sujeito
humano, processo social intrínseco aos fenômenos dos fetichismos so-
ciais. A desefetivação humano-genérica do trabalhador, que é o próprio
processo de estranhamento social, é a sua dessubjetivação).
A interversão de S em “S” é a interversão do sujeito histórico-
pessoal em agente social da estrutura de classe. Na sociedade burguesa,
a sociedade do fetichismo social, o processo de reprodução sistêmica
ocorre por meio do processo de dessubjetivação do trabalho vivo, que
é a forma mais desenvolvida, nas sociedades mercantis complexas, da
desefetivação do trabalhador ou desefetivação humano-genérica.

Teoria do fetichismo

Ao tratarmos da sociedade burguesa, a teoria do estranhamento


torna-se uma teoria do fetichismo social, tendo em vista que o estranha-
mento – em geral – tende a assumir formas fetichizadas, por conta do
predomínio estruturante da forma-mercadoria nas relações humano-
sociais. É o que salientamos acima, pelo processo de dessubjetivação do
trabalho vivo, quando “O” (objeto) torna-se “C” (coisa), e “C” se impõe
(ou “nega”) S, que interverte-se em “S”.
Nesse caso, com a constituição do fetichismo social, a desefetiva-
ção humano-genérica do trabalho vivo assume uma dimensão intrin-

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O mundo do trabalho através do cinema

secamente subjetiva. O fetichismo social é um modo de aparição da


objetividade social. As relações sócio-humanas do homem que traba-
lha e o produto da atividade social (produtos, instituições e valores/
ideologias), assumem uma forma opaca, intransparente e coercitiva.
É o que se denomina “coisificação” do homem e suas relações sociais.
Na verdade, o sujeito humano-pessoal interverte-se em agente social
de estruturas de dominação e poder de classe na medida em que ele se
reconhece (e reconhece) as coisas como parte de si.
O problema do fetichismo social é o problema da consciência
social. Na sociedade do fetichismo, o que se coloca como nexo pro-
blemático da ação humano-social, é a consciência e autoconsciência
dos sujeitos/agentes de classe. O que significa que o tema candente é
o tema da consciência de classe – isto é, da própria formação da classe
social como sujeito histórico-coletivo da modernidade do capital. Por
isso, o problema do fetichismo – que é o problema da “cegueira social”
- remete irremediavelmente ao problema da práxis social, dimensão
humano-genérica convulsionada pelo complexo social de fetiches do
mundo do capital.
Ao tratar do fetiche da mercadoria e seu segredo, última seção do
Capítulo 1 do Livro I de “O Capital”, Marx coloca elementos categoriais
primordiais para a discussão candente das possibilidades de emanci-
pação humano-social na sociedade burguesa, um mundo social que é
uma imensa coleção de mercadorias, isto é, o mundo da “cegueira so-
cial” constituído pelas formas-fetiches. Este foi o verdadeiro problema
da teoria critica no século XX e inclusive Século XXI, um período his-
tórico marcado pela expansão avassaladora do mundo das mercadorias
e da fetichização social.

Trabalho estranhado e estranhamento social

Salientamos a importância da distinção entre trabalho estranhado


e estranhamento social. O primeiro diz respeito à instância da produção
material ou do trabalho propriamente dito (isto é, a luta pela sobre-
vivência), base fundamental (e fundante) da vida social. O segundo,

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Trabalho e Cinema • Volume 3

diz respeito aos obstáculos sociais (objetivações sociais em geral, desde


instituições até elementos valorativo-linguisticos, etc) que impedem o
desenvolvimento do ser genérico do homem na sociedade do trabalho
estranhado. O estranhamento diz respeito, portanto, à instância da re-
produção social e da existência humana.
O trabalho estranhado é a base da vida social estranhada (vide
figura 2), mas vida social estranhada não se reduz à trabalho estranha-
do. O trabalho é a instância fundante (e fundamental) da reprodução
social e da sociabilidade (enfim, da vida social). Trabalho estranhado
implica vida social estranhada. Entretanto, não podemos reduzir vida
social à trabalho. Esta distinção é onto-metodológicamente importante
na medida em que contribui para salientar que os fenômenos do estra-
nhamento social possuem forma/conteúdo de explicitação diferencia-
dos com respeito aos fenômenos do trabalho estranhado.
O capital é um sistema sociometabólico do estranhamento ba-
seado no trabalho estranhado. A teoria do estranhamento pressupõe
a teoria do trabalho estranhado, embora ela – a teoria do estranha-
mento - possa ser mais ampla do que este, pois ela trata de processos
estranhados ligados à reprodução social, implicando assim o espaço (e
território) da sociabilidade.
Como sugere a figura 3, o fetichismo da mercadoria é a base fun-
dante (e fundamental) dos fetichismos sociais, derivados do fetiche da
forma=mercadoria. Entretanto, os fetichismos sociais, embora sejam de-
rivados do fetichismo da mercadoria não podem se reduzir àquele.

O trabalho estranhado

O trabalho estranhado enquanto trabalho capitalista (ou traba-


lho assalariado) emerge historicamente com a constituição da condição
de proletariedade, que é a condição existencial de homens e mulheres
alienados – em maior ou menor medida - da propriedade/controle dos
meios de produção da vida social. Deste modo, a condição de proleta-
riedade é o pressuposto histórico-material do trabalho estranhado (ou
trabalho assalariado).

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O mundo do trabalho através do cinema

A propriedade privada funda o trabalho estranhado (e vice-ver-


sa). Por outro lado, a determinação reflexiva de propriedade privada
é a divisão hierárquica do trabalho. Diz Marx e Engels: “Assim, divisão
do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas: a primeira
enuncia em relação à atividade, aquilo que se enuncia na segunda em
relação ao produto da atividade.” (“A Ideologia Alemã”).
Propriedade privada, divisão hierárquica do trabalho e trabalho
estranhado compõem o universo categorial da teoria do estranhamen-
to, base da teoria crítica do capital como sistema de controle do me-
tabolismo social (vide figura 4). Na verdade, o conteúdo material das
categorias de propriedade privada, divisão hierárquica do trabalho e
trabalho estranhado é constituído pelas relações sociais alienadas en-
tre sujeito/objeto e sujeito/sujeito, elementos compositivos do trabalho
como processo de trabalho, fundamento ontológico-estrutural da ho-
minidade.
Deste modo, em última instância, o capital é uma forma de relação
social – relação sujeito/objeto mediada pela relação sujeito/sujeito – que
assume uma dimensão fetichizada. O capital é o fetiche-mor ou forma so-
cial estranhada que oculta – pela sua constituição em sistema de controle
sociometabólico – sua intrínseca natureza de poder social estranhado.
A condição de proletariedade – tema desta Aula 2 - é a condição
sócio-ontológica do homem que trabalha no modo de produção capi-
talista. Ela implica, por um lado, uma separação histórica ou aliena-
ção primordial que dá origem à “classe” do proletariado e que marca o
destino de homens e mulheres proletários. A idéia da assim chamada
“acumulação primitiva” caracteriza a alienação primordial. Ocorreu “a
separação do caracol e sua concha” – como observou Marx. Em algum
momento do passado histórico, nossos ancestrais mais ou menos dis-
tantes sofreram alguma despossessão originária que marcou a aliena-
ção dos meios de produção de vida material daquele homem ou mulher
ou de algum grupo social. Muitas vezes, a despossessão da proprieda-
de pessoal ocorre por meios extra-econômicos (fraude ou roubo). As
mãos do capital estão sujas de sangue. A origem da riqueza capitalista

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Trabalho e Cinema • Volume 3

é marcada pela fraude ou pela violência extra-econômica. Como disse


Proudhom, a propriedade privada é um roubo.
Por exemplo, o mundo do trabalho é constituído hoje por um
imenso contingente de trabalhadores proletários que vivem nas aglo-
merações urbanas, distante, no espaço-tempo histórico, de seus pais
ou avós, muitos deles trabalhadores rurais, ligados à terra, posseiros
ou proprietários dos meios de produção vital. Em algum momento
da trajetória da linhagem familiar ocorreu um ato de despossessão
primordial que tornou uma parte daquela geração familiar despos-
suida dos meios de produção da vida social. Eles foram obrigados a
vender – no mercado de trabalho - a única mercadoria que possuem
para sobreviver – a força de trabalho. Ocorreu, assim, o que iremos
tratar mais adiante, como um processo de proletarização social, pro-
cesso histórico-social que marca o desenvolvimento histórico da mo-
dernidade do capital.
Mas, se por um lado, a condição de proletariedade surge histo-
ricamente com a assim chamada “acumulação primitiva”, num tempo
histórico passado que muitas vezes está sedimentada pelo esquecimen-
to (como disse Adorno, “ a luta contra o fetichismo é a luta contra o
esquecimento”), por outro lado, a condição de proletariedade tende a
ser reiterada, de forma sistêmica, no tempo histórico presente.
Por isso, o movimento do capital é constituído pela (1) expropriação
como alienação primordial e (2) expropriação como alienação sistêmica,
que ocorre por meio do metabolismo sistêmico do trabalho estranhado e
sua dinâmica de exploração, cujas condições sistêmicas são reiteradas a
partir das situações históricas de precariedade salarial.
Ora, o modo de acumulação do capital cria seu próprio modo de
vida, posto (e reposto) como condição alienada do trabalho vivo ou
condição histórico-existencial de proletariedade. Deste modo, a con-
dição de proletariedade tende a ser reforçada no dia-a-dia pelo socio-
metabolismo do capital na medida em que a ordem burguesa baseia-se
nos pilares da alienação material dos meios de produção (e de controle)
da vida social e na subalternidade estrutural que caracteriza a divisão
hierárquica do trabalho.

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O mundo do trabalho através do cinema

- Dimensões do trabalho estranhado

Temos salientado que a condição de proletariedade é o elemento


fundante (e fundamental) do trabalho estranhado – só há trabalho es-
tranhado porque há proletários ou homens e mulheres imersas numa
condição histórico-existencial de proletariedade, obrigados, pela ne-
cessidade de sobrevivência, a se submeterem às condições da explora-
ção capitalista.
Mas pode-se dizer também que só há proletários porque há tra-
balho estranhado como modo de produção de mercadorias. A condição
de proletariedade é produzida (e reproduzida) pelo modo de trabalho
(e vida) capitalista. Nesse caso, o trabalho estranhado aparece como
o modo de ser da expropriação como alienação sistêmica ou alienação
reiterativa do sistema sóciometabólico do capital.
Portanto, a condição de proletariedade é produzida pelo ato his-
tórico de alienação primordial – a assim dita “acumulação primitiva”,
que inclusive se repõe historicamente com o desenvolvimento capita-
lista; e é reproduzida pela alienação sistêmica, que aparece sob a forma
do trabalho estranhado. Por isso, é interessante dissecar as dimensões
do trabalho estranhado (e da vida social estranhada) para apreender-
mos o metabolismo social da condição histórico-existencial de prole-
tariedade.
No Terceiro Manuscrito intitulado “Trabalho Estranhado” (En-
tfremdung Arbeit) dos “Manuscritos econômico-filosóficos”, de 1844,
Karl Marx desvela elementos que constituem, em si e para si, o que
chamamos de condição de proletariedade. Na verdade, ele expôs a na-
tureza do trabalho estranhado e suas derivações sócio-reprodutivas (o
estranhamento social). Na verdade, nesse texto, Marx não trata tão-
somente da produção social, mas também de elementos da reprodução
social, expondo assim, o metabolismo social da própria condição de
proletariedade.
Primeiro, Marx se posiciona na perspectiva na totalidade social –
ele não desvincula trabalho e vida; para homens e mulheres imersos na
condição de proletariedade, trabalho é vida e vida é trabalho. Inclusive,

19
Trabalho e Cinema • Volume 3

o trabalho estranhado - no tocante as suas derivações sistêmicas – en-


volve também aqueles que não estão vinculados direta ou indiretamen-
te à produção do capital propriamente dito (na mesma medida em que
a forma-mercadoria é incorporada – na sociedade do fetichismo – aos
produto-objetos que não são mercadorias propriamente ditas).
Karl Marx trata de um sistema social baseado no trabalho estra-
nhado cuja vida social é estranhada em suas múltiplas manifestações
vitais. O que significa que a condição de proletariedade é uma condição
universal que tende a se universalizar pois ela se baseia no trabalho estra-
nhado, base orgânica do processo de modernização do capital.
É a partir da crítica do trabalho estranhado como trabalho capi-
talista que o jovem Marx irá colocar os primeiros rudimentos da sua
critica da sociedade burguesa. Naquela época, Marx ainda não tinha
desenvolvido sua teoria critica do capital, faltando-lhe maior clareza
sobre os nexos categoriais constitutivos do modo de produção capita-
lista e da dinâmica da acumulação de capital. Entretanto, consideramos
que o jovem Marx possuía diante de si, o eixo estruturante de sua inter-
venção critico-intelectual que ele iria aprimorar no decorrer dos anos
por meio de sua crítica da economia política.
Num primeiro momento, Marx ensaia, ainda que numa lingua-
gem especulativo-hegeliana, uma crítica do método da Economia Po-
lítica. Tal como fizera quase quinze anos depois, ele abre seu Terceiro
Manuscrito, tratando de questões de método (Na seção “O Método da
Economia Política”, escrita em 1857, Marx distingue seu “método”, tanto
do método da economia política, quanto do método hegeliano). Assim,
Marx procura demonstrar porque a economia política não consegue
apreender a essência do real. Primeiro, ela não busca os fundamen-
tos histórico-genéticos das categorias que utiliza, que aparecem como
meras abstrações; e depois, os economistas burgueses não concebem a
interconexão essencial entre essas categoriais.
Ora, neste rascunho da juventude de Marx, temos, in germe, dois
princípios fundamentais do método dialético-materialista: as categorias
são determinações da existência histórica, sendo imprescindível apre-
ender sua gênese e desenvolvimento histórico; ou seja, a verdade concre-

20
O mundo do trabalho através do cinema

ta é a síntese de múltiplas determinações, a unidade na diversidade, ou


seja, ela é uma totalidade concreta. Enfim, movimento histórico-mate-
rial e totalidade social – eis os princípios heurísticos fundamentais da
nova ciência social que o jovem Marx inaugura em 1844.
Depois, o que Marx irá salientar é que existe uma interconexão
essencial entre aspectos decisivos da vida burguesa que a economia po-
lítica oculta.
Primeiro, a interconexão entre pobreza e riqueza. Isto é, “o traba-
lhador se torna tão mais pobre quanto mais riqueza produz”. A pobreza
de uns é a riqueza de outros. Valorização do mundo das coisas e des-
valorização do mundo dos homens. Enfim, Marx expõe as “antípodas”
do mundo do capital. O nexo mediativo entre pobreza e riqueza é o
trabalho em sua forma capitalista; isto é, o que explica a pobreza do
trabalhador, para ele, é o trabalho estranhado.
Depois, ele expõe a segunda interconexão essencial que a econo-
mia política tende a desprezar: a interconexão entre trabalho e vida
social; isto é, sob o mundo burguês, não é apenas o trabalho que é estra-
nhado, mas sim a própria vida social. A partir daí, Marx discorre sobre
a multidimensionalidade do trabalho estranhado.
Portanto, neste momento, fecha-se o círculo da argumentação de
Marx: o trabalhador é pobre porque seu trabalho é alienado e, ao estar
imerso no trabalho estranhado, a vida social do trabalhador também
lhe é estranha. Trabalho enquanto atividade produtiva livre e conscien-
te é vida; na medida em que a atividade, a produção, não lhe pertence,
ou se lhe defronta como um ser alheio, ela deixa de significar vida e
passa a significar morte, isto é, desefetivação.
O conceito de trabalho estranhado, base estruturante da vida es-
tranhada, se delineia no decorrer da apresentação que o jovem Marx
faz desta totalidade concreta do mundo burguês. São perceptíveis os
nexos essenciais entre produção e reprodução social, trabalho e vida
cotidiana, objetividade e subjetividade do homem que trabalha. Eles
compõem uma totalidade concreta na qual está imerso o individuo so-
cial de classe. Estamos diante de uma arquitetura categorial complexa
daquilo que denominamos de “condição de proletariedade”, construto

21
Trabalho e Cinema • Volume 3

teórico-analitico que busca apreender, através de uma magistral espe-


culação dialética, as implicações objetivas e subjetivas da perda (ou da
negação) do homem no sistema do capital.
Para Marx, o trabalho estranhado possui múltiplas dimensões
que, aos poucos, Marx nos apresenta, na medida em que discorre o
Terceiro Manuscrito, perpassando as interconexões causais salientadas
acima (os pólos aparentemente antípodas - pobreza e riqueza e trabalho
e vida social).
Trabalho estranhado é alienação do trabalhador do produto da sua
atividade. É esta alienação do produto que está na base material da in-
terconexão essencial entre pobreza e riqueza. O trabalhador assalariado
– e Marx trata do trabalhador coletivo - produz, mas não se apropria do
produto da sua atividade social. Quanto mais produz, mais pobre fica
enquanto classe social. Marx descreve assim, o núcleo primordial ou a
manifestação mais imediata do complexo do trabalho estranhado que
constitui a sociedade burguesa, expondo a situação da classe trabalha-
dora na sociedade industrial-capitalista. Nesse caso, o trabalhador cole-
tivo não é proprietário dos meios de produção das condições materiais
de sua vida social. Diz Marx: “...o trabalhador se relaciona [sich verhal-
ten zu] com o produto do seu trabalho como com um objeto alheio.” O
objeto não é do produtor, o trabalhador, mas sim, do proprietário priva-
do, o capitalista. Um detalhe curioso: na citação de Marx, logo acima,
pode-se traduzir a expressão [sich verhalten zu] - “se relaciona”, por “ter
atitude diante de”, pois o que Marx sugere é que a alienação do produto
implica tanto uma relação [em alemão, Verhaltnis] quanto um compor-
tamento [em alemão, Verhalten]. Tal detalhe é importantíssimo, pois
significa que o estranhamento é tanto uma determinação objetiva, na
medida em que homens e mulheres estão imersos numa relação social
de produção baseada na propriedade privada e na divisão hierárquica
do trabalho; quanto uma determinação subjetiva, isto é, um metabolis-
mo social que pressupõe dos agentes sociais, atitudes e comportamen-
tos determinados. O que significa que o trabalhador assalariado pode
perder o controle dos resultados da própria atividade social, não apenas
por conta de uma incapacidade material (objetivamente, ele não possui,

22
O mundo do trabalho através do cinema

ou não tem, o controle das condições de produção da sua própria vida


social); mas, por conta de uma incapacidade subjetiva (subjetivamente,
ele não desenvolveu habilidades cognitivo-comportamentais adequadas
para lidar com a materialidade social complexa constituída no decorrer
do processo civilizatório do capital).
Trabalho estranhado é alienação da atividade produtiva ou do ato
de produção. O trabalhador assalariado não se identifica com o proces-
so de trabalho no qual está inserido. Nesse caso, trabalho é tripalium,
isto é, sofrimento. É esta alienação que está na base material da in-
terconexão essencial entre trabalho e vida social como vida humano-
genérica. Na medida em que o trabalhador está alienado da atividade
produtiva, ele está alienado da vida do gênero, que possui na atividade
produtiva racional e consciente, seu lastro ontológico (Marx supõe, em
1844, um dos princípios ontológicos fundamentais salientados mais
tarde por Lukács: o homem é um animal que se fez homem através
do trabalho enquanto atividade produtiva, livre e consciente – isto é,
um homem alienado do trabalho é um homem alienado daquilo que
significou o desenvolvimento do próprio gênero humano). Nesse caso,
o trabalho estranhado é auto-estranhamento, o estranhamento-de-si
[em alemão, Selbstentfremdung]. É a alienação da atividade produtiva
mesma ou ainda, a alienação se mostra no ato de produção. Nesse caso,
o trabalho é tripalium, isto é, sofrimento. Como observou Marx, é “ati-
vidade como sofrimento, a força como impotência, a procriação como
emasculação, a energia mental e física própria do trabalhador, a sua
vida pessoal [...] como uma atividade voltada contra ele mesmo, inde-
pendentemente dele, não pertencente a ele.” Esta parece ser a dimensão
crucial do complexo de trabalho estranhado como trabalho assalaria-
do, pois é ela que “abre as portas” para as demais dimensões existen-
ciais de perda do homem no mundo burguês, tendo em vista que, se o
trabalhador está alienado da atividade produtiva e do ato da produção,
isto é, daquilo que, para o gênero humano significa vida social, o tra-
balhador está imerso num processo de desefetivação humano-genérica,
isto é, o trabalhador é desefetivado. Ele está alienado do ser genérico. É
Marx que observa: “Na medida em que o trabalho estranhado aliena do

23
Trabalho e Cinema • Volume 3

homem 1. a natureza e 2. a si próprio, a sua função ativa própria, a sua


atividade vital, aliena do homem, o gênero; lhe faz da vida do gênero
um meio de vida individual.” Ora, no capitalismo, a atividade produtiva
como atividade vital aparece só como meio de vida ou mera satisfa-
ção da necessidade de manutenção da existência física. É através da
atividade produtiva, a auto-atividade, a atividade livre, que o homem
como ser social se confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser
genérico. O trabalho estranhado tende a arrancar-lhe sua vida genérica.
E diz Marx: “ [o trabalho estranhado] transforma a sua vantagem com
relação ao animal na desvantagem de lhe ser tirado o seu corpo inor-
gânico, a natureza.” Isto é, se foi através do trabalho como atividade
produtiva livre e racional que o homem se distinguiu dos demais ani-
mais, na medida em que ele se aliena deste ato de produção, ele perde a
vantagem com relação ao animal: “O que é animal se torna humano e o
que é humano se torna animal”. O que ele produziu, a natureza inorgâ-
nica – o mundo de objetos técnicos complexos - que é seu “corpo inor-
gânico”, lhe é tirado, está alienado dele, e, portanto, se volta contra ele.
Ora, Marx considera o mundo de objetos criados pelo homem como sua
“segunda natureza”, a natureza inorgânica, que é uma extensão de si. “A
natureza é o seu corpo...”, dirá ele. Isto é: “O homem vive da natureza,
significa a natureza é o seu corpo, com o qual tem que permanecer
em constante processo para não morrer.” Ao ser alienado do mundo de
objetivações, meios sócio-técnicos indispensáveis à vida social e vida
humano-genérica (pois o homem é animal que se fez homem através
da produção de objetos sócio-técnicos); ao perder o controle dos objetos
que se tornaram coisas, isto é, objetos alheios a ele, o homem se condena
a morte (nesse momento, Marx elabora, pela primeira vez, o que seria a
natureza do fetiche como exteriorização estranhada).
Ao estar alienado da vida do ser genérico do homem, o trabalha-
dor assalariado está, por conseguinte, alienado da vida social propria-
mente dita, isto é, alienado de si e dos outros. Portanto, a alienação da
atividade produtiva se desdobra em outras duas dimensões da aliena-
ção: alienação do ser genérico e alienação dos outros homens diferentes
dele. Marx observa: “uma conseqüência imediata do fato de o homem

24
O mundo do trabalho através do cinema

estar alienado do produto de seu trabalho, da sua atividade vital, do seu


ser genérico, é o homem estar alienado do homem [die Entfremdung
des Menschen von dem Menschen, literalmente, ‘a alienação do homem
do homem’]”. Nesse caso, trata-se da dessocialização do homem, pro-
duto irremediável do complexo social do trabalho estranhado. Deste
modo, fecha-se o círculo sinistro do mundo social do trabalho estra-
nhado – ao alienar-se de si, por conta da alienação do produto e da
auto-alienação (que é alienação da vida gene;rica do homem), o ho-
mem se aliena de outros homens. É a própria negação da sociabilidade
humana, o lugar da barbárie social.

- A condição de proletariedade

O trabalho estranhado é uma forma histórica do trabalho hu-


mano-scial. Existem múltiplas significações da categoria de trabalho:
trabalho como categoria ontológica do ser social; trabalho estranhado
como trabalho histórico das sociedades da propriedade privada/divisão
hierárquica do trabalho; trabalho capitalista como trabalho estranha-
do que aparece como trabalho abstrato, distinguindo-se, deste modo,
no plano da dinâmica de acumulação de capital, trabalho produtivo-
trabalho improdutivo; neste contexto analítico da produção do capital
distingue-se também, além do trabalho abstrato, o trabalho concreto.
Outras acepções de trabalho são trabalho socialmente necessário, tra-
balho útil, etc .
A base fundante (e fundamental) de toda forma histórica de traba-
lho é o trabalho como categoria ontológica do ser social. Ele é o pressu-
posto negado (mas efetivo) do trabalho estranhado e do trabalho capita-
lista como forma histórica particular-concreta de trabalho estranhado.
Nesse caso, o “trabalho estranhado” existiu em formas sociais pré-
capitalistas (como o trabalho escravo ou o trabalho servil). Mas o tra-
balho capitalista (ou trabalho assalariado) é uma forma forma histórica
mais desenvolvida de trabalho estranhado, capaz de explicar as formas
pretéritas de trabalho estranhado e estranhamento social.

25
Trabalho e Cinema • Volume 3

Portanto, a condição de proletariedade propriamente dita surge


com o trabalho estranhado capitalista. Ela emerge com a modernidade
do capital, tornando-se condição universal das individualidades de clas-
se despossuidas da propriedade dos meios de produção da vida social.
A condição de proletariedade se caracteriza, portanto, pelos elementos
compositivos da relação-capital no plano das individualidades aliena-
das ou “trabalhadores livres”. Homens e mulheres imersos na condição
de proletariedade são individualidades sociais que não possuem a pro-
priedade e – em geral, a posse (e, portanto, o controle) - das condições de
produção da vida social. É a partir desta condição sócio-estrutural que
podemos derivar as múltiplas atribuições existenciais da proletarieda-
de moderna ou condição de proletariedade.
A idéia de “condição” é dada quase como um “destino”. O que sig-
nifica que nascemos numa determinada condição histórico-existencial,
que é, em geral, a “condição de proletariedade”. A primeira caracterís-
tica da condição de proletariedade é a despossessão (em múltiplos graus
de efetivação). As individualidades proletárias são individualidades
pessoais de classe, alienadas, sujeitos humanos sem objeto (e, portanto
sujeitos negados), “sujeitos assujeitados” e “sujeitos em desefetivação”,
enfim, homens jogados no mundo, (como diriam os existencialistas).
A condição de proletariedade nasce - e se universaliza - com a moder-
nidade do capital. Ela institui um novo tipo de humanidade – a huma-
nidade proletária.
A modernização do capital se caracteriza pela despossesão irre-
mediável. É o que tem marcado a história do Ocidente desde o século
XVI, com destaque para a despossessão de camponeses, pequenos arte-
sãos e comerciantes atingidos pelo processo de proletarização.
O conceito de proletarização significa a despossessão objetiva (e
subjetiva) dos meios de produção da vida social. A perda da propriedade
pessoal e a imersão na condição de proletariedade, que os constitui como
individualidades de classe, é o processo de proletarização. A proletarização
joga homens e mulheres despossuidos no mundo social da “classe” do
proletariado (ainda não são classe social em si ou para si).

26
O mundo do trabalho através do cinema

Nesse caso, ocorre a passagem da individualidade pessoal, marca-


do pelo domínio imediato de meios (e instrumentos) de produção da
vida social e comunitária), para a individualidade de classe, marcada
pela despossesão destes meios (e instrumentos) de produção da vida e
subalternização diante das condições objetivas (e subjetivas) da produ-
ção do capital (o que não significa que a dimensão pessoal da individu-
alidade humana seja abolida, mas é apenas sobredeterminada, consti-
tuindo-se o que denominamos individualidade pessoal de classe).
Deste modo, o homem proletário é um homem imerso na rela-
ção-capital que implica, por um lado despossessão (a alienação do ob-
jeto constituindo diante de si, o poder da propriedade privada); e por
outro lado, subalternidade (a alienação da atividade ou do processo de
trabalho, sendo deste modo, no plano da reprodução social o homem
proletário, um ser subalterno às objetivações sociais - classe social, ide-
ologia, Estado político, salário. Assim, o proletário como individuo de
classe está imerso na subalternidade dada pela divisão hierárquica do
trabalho, e na contingência e acaso, dada pelas relações de mercado.
A passagem categórica da individualidade pessoal para a indi-
vidualidade de classe significa a submersão na vida contingente e a
imersão no acaso. Na verdade, o processo de proletarização que marca a
ocidentalização do mundo, constituiu um novo tipo humano, o homem
submetido às coisas ou ao poder das coisas, como diria Marx. Enfim, o
homem alienado ou homem desefetivado como sujeito. É o homem mo-
derno, homem burguês, dividido em si e clivado de contradições diante
do mundo social reificado.
Como derivação objetiva (e subjetiva) da condição de proletarieda-
de, condição social e histórica, que algumas correntes filosóficas elevam
à condição ontológica do homem (como, por exemplo, o existencialis-
mo ateu que expressa na sua metafísica da angústia o pleno sentimento
da alienação capitalista), temos a incomunicabilidade, a deriva pessoal
e a corrosão do caráter. Estamos diante de traços humanos que se ligam
a uma condição histórico-social, a condição de proletariedade.
Portanto, é do processo social de proletarização, processo originá-
rio e sistêmico do metabolismo social do capital, que emerge a condição

27
Trabalho e Cinema • Volume 3

de existência (des)humana da civilização do capital, a “condição de pro-


letariedade”, caracterizada por uma série de atributos histórico-existen-
ciais que se disseminam pela sociedade burguesa: subalternidade, acaso
e contingencia, insegurança e descontrole existencial, incomunicabilidade,
corrosão do caráter, deriva pessoal e sofrimento. Podemos destacar ainda
outros traços histórico-existenciais como risco e periculosidade, invisibili-
dade social, experimentação e manipulação, prosaísmo e desencantamento
(por exemplo: é o prosaismo da vida burguesa que impele as individuali-
dade pessoais de classe a se projetarem em “fantasias heróicas” que tende
a eleva-las, sob determinadas circunstâncias, acima da pseudo-concreti-
cidade da vida cotidiana).

Atributos histórico-existencias da proletariedade moderna


Subalternidade
Acaso e contingencia
Insegurança e descontrole existencial
Incomunicabilidade
Deriva pessoal e sofrimento
Risco e periculosidade
Invisibilidade social
Experimentação e manipulação
Prosaísmo e desencantamento
Corrosão do caráter

Tais atributos existenciais da “condição de proletariedade” per-


meiam as múltiplas relações sociais, direta ou indiretamente ligadas à
produção/reprodução social do sistema do capital. Elas se tornam atri-
butos existenciais da vida burguesa atingindo, por derivação e difusão,
a cotidianidade de proletários e não-proletários propriamente dito.
O ser “proletariado”, no sentido fraco da palavra, diz respeito a
uma condição objetiva de existência (ou “condição de proletariedade”)

28
O mundo do trabalho através do cinema

cujos atributos existenciais tendem a tornar-se, sob a sociedade bur-


guesa, atributos universais das individualidades pessoais de classe.
O ser proletariado pode dizer respeito também a uma “classe so-
cial”, no sentido pleno de sujeito histórico-coletivo, com maior ou menor
efetivação (o que exige outras mediações concretas como instituições
sociais, politicas ou culturais capazes de produzir um tipo específico de
consciência social: a consciência de classe).

- O conceito de “classe social”

É a condição de proletariedade, condição histórico-particular que


surge com a modernidade do capital - e que se amplia e expande-se nos
últimos séculos de ocidentalização do mundo - que emerge a possibilidade
objetiva da “classe social” como categoria sociológica, classe social como
sujeito histórico-coletivo. Este é o verdadeiro sentido do conceito de “classe
social” que não pode ser reduzido meramente a um dado estatístico-social,
como o fazem a sociologia positivista e o marxismo vulgar.
O conceito de classe social (com o “proletariado” constituindo a
classe social por excelência) é um dos conceitos sociológicos da maior
relevância epistemológica. Na verdade, é um conceito científico indis-
pensável para a episteme da emancipação social (o que explica o des-
preza que as ideologias liberais e pós-modernas, ideologias conserva-
doras da ordem do capital, têm com o conceito de classe social).
A condição de proletariedade institui apenas a possibilidade obje-
tiva da “classe social”, mas quem a constitui é o movimento social e as
instituições políticas e culturais capazes de propiciar, por meio de pro-
cessos de subjetivação e experiências de classe, desde as mais rudimen-
tares, criadoras da consciência de classe contingente, às mais avançadas,
instigadoras da consciência de classe necessária, inclusive capaz de ir além
da classe para si (o que significa constituir uma consciência humano-
genérica para além do interesse de classe propriamente dito).
Nesse texto buscamos elaborar, a partir de Marx (e não segundo
Marx), uma teoria das classes sociais (e para ser mais preciso, uma te-

29
Trabalho e Cinema • Volume 3

oria do proletariado como sujeito histórico coletivo), tomando como


ponto de partida, como salientamos acima, a teoria do estranhamento
e não a teoria da exploração, como tem sido comumente tratado pela
tradição marxista (o que pressupõe salientar a idéia de formação da
classe como sujeito histórico-coletivo).
A teoria do estranhamento é uma teoria da negação/afirmação
do sujeito humano-social. É por isso, uma teoria da práxis que se dis-
tingue, em seu estatuto epistemológico, da teoria da exploração, como
teoria das estruturas (ou mecanismos) do movimento do capital (uma
teoria da classe do proletariado a partir da teoria da exploração seria
meramente a teoria de uma “classe em inércia” – o que é uma contra-
dição em termos. A rigor, “classe em inércia” é a própria “negação” da
categoria de classe social como fato onto-epistemológico inovador da
modernidade do capital) (para uma teoria das classes - como “classe
em inércia” – vide o livro “Marx: Lógica&Política”, volume 2, de Ruy
Fausto, capítulo “Sobre as classes”).
Ao dizermos que elaboramos uma teoria do proletariado “a partir
de” Marx e não “segundo Marx” (como supõe uma leitura imanente de
“O Capital”, por exemplo) significa que algumas afirmações podem não
estar de acordo literalmente com Marx, tendo em vista que o objeto
categorial visado por Marx no século XIX não é o objeto categorial que
visamos no século XXI. Na medida em que o capitalismo (e o proleta-
riado) visado por Marx é (e não é) o capitalismo (e o proletariado) vi-
sado por nós, uma teoria do proletariado segundo Marx não seria uma
teoria científica. Na verdade, segundo o método dialético, todo conceito
(como o de “proletariado”) é uma categoria, ou seja, é uma forma de ser
e modo de existência historicamente determinada.
Tornou-se corriqueiro na tradição marxista, ao discutir-se o conceito
de proletariado, tratar-se, de imediato, da questão do “trabalho produtivo”
e “trabalho improdutivo”, como se o problema da classe do proletariado pu-
desse ser resolvido a partir desta distinção sócio-estrutural. Deste modo,
tende-se a reduzir proletariado aos “trabalhadores produtivos” (na verda-
de, esta é a visão marxiana historicamente determinada).

30
O mundo do trabalho através do cinema

Mas o pior é que presume-se também, sem questionamentos, que


o proletariado como sujeito histórico-coletivo, ou seja, como “classe so-
cial” no sentido legítimo da expressão categorial, é um dado sociológi-
co-estrutural ligada a uma posição objetiva na divisão social do traba-
lho. Por isso, imagina-se que é suficiente identificar, segundo a ótica da
teoria da exploração, os atributos estruturais da classe do proletariado.
Consideramos que esta mudança de enfoque analítico (tratar da
classe do proletariado a partir da teoria do estranhamento) contribui
para expor em nossos dias, aspectos novos do significado de “proletaria-
do” segundo as condições do capitalismo desenvolvido no século XX.
Por exemplo, segundo a ótica dialético-matarialista (e históri-
ca) que apresentamos, a título de hipótese, proletariado aparece como
“classe” (com aspas), no sentido de condição de proletariedade; e como
classe, no sentido de “classe em si/classe para si” (enfim, proletariado
como classe pressupõe algum grau de consciência de classe).
A categoria de proletariado como classe, ou seja, como sujeito his-
tórico-coletivo, é radicalmente uma construção histórica da mais alta
relevância e não um mero dado sociológico-estrutural. O proletariado
(como classe) não nasce feito, mas se faz no devir histórico. Enquanto
classe, pode-se fazer e desfazer-se; tornar-se visível e invisível, depen-
dendo de condições historicas específicas.
A contradição objetiva (e subjetiva) entre trabalho e capital é a
contradição histórico-estrutural fundamental do modo de produção
capitalista.
A materialidade intensamente social e agudamente contraditória
do modo de produção capitalista constitui ontologicamente a categoria
em si de classe social. O conceito de classe social tem uma importância
fundamental no materialismo histórico, sendo o ponto de partida da
própria critica da economia política. Entretanto, nem Marx nem Engels
formularam de maneira sistemática o conceito de classe social.
A descoberta do “proletariado” por Marx na década de 1840 sig-
nificou para Marx e Engels a descoberta do “movimento real que supe-
ra o estado de coisas atual” – como afirmam na “Ideologia Alemã”. A

31
Trabalho e Cinema • Volume 3

rigor, poderíamos dizer que o proletariado é a classe verdadeiramente


social, isto é, a “classe social”.
Na “Ideologia Alemã”, Marx e Engels observam que a “própria
classe é um produto da burguesia”. Deste modo, “classe” é uma catego-
ria distintiva da sociedade burguesa. Podemos dizer que nas sociedades
pré-capitalistas não havia propriamente “classes sociais”, mas grupos de
status, ordens, e múltiplas gradações de categoriais sociais. Apenas na
época burguesa é que, como observa Kautsky, a “sociedade como um
todo está cada vez mais dividida em dois grandes campos hostis, em
duas grandes classes que se enfrentam diretamente – a burguesia e o
proletariado” (citado no verbete “classe”, do Dicionário do Pensamento
Marxista, editado por Tom Bottomore).
Embora Marx afirme a existência de uma divisão fundamental
de classes em todas as formas de sociedade que sucederam as antigas
comunidades tribais, divisão fundamental de classe baseada na relação
direta entre proprietários das condições de produção e os produtores
diretos, que segundo ele (n’O Capital), “revela o segredo mais íntimo, o
fundamento oculto de todo edifício social”, consideramos que o signi-
ficado pleno de “classe” só aparece na sociedade burguesa, a sociedade
mais social, e que tem no proletariado não apenas uma das classes fun-
damentais, mas a classe social propriamente dita que expressa como
potentia o sentido ontológico da “classe” como sujeito histórico.
Deste modo, podemos distinguir duas acepções de “classe”:
Primeiro, existe uma acepção sociológica de “classe” que distin-
gue na sociedade capitalista duas classes fundamentais em função da
divisão social do trabalho: a classe dos trabalhadores assalariados e a
classe da burguesia. Classe, nesse sentido, possui um significado fun-
cional (funcional para o capital), como aparece nesta passagem do livro
“Miséria da Filosofia” (de Karl Marx, de 1847). Diz ele:
“As condições econômicas transformaram, em primeiro lugar, a
massa do povo em trabalhadores. A dominação do capital sobre os tra-
balhadores criou a situação comum e os interesses comuns desta classe.
Assim, essa massa já é uma classe em relação ao capital, mas não ainda
uma classe para si mesma. Na luta, da qual indicamos apenas algumas

32
O mundo do trabalho através do cinema

fases, essa massa se une e forma uma classe para si. Os interesses que ela
defende tornam-se interesses de classe.” [o grifo é nosso]
Em síntese: por um lado, a burguesia ou os proprietários das con-
dições de produção e por outro lado, os trabalhadores assalariados ou os
produtores diretos (ou indiretos, no caso de sociedades de classe mais
complexas), constituem as classes fundamentais da sociedade burgue-
sa. Nesse caso, “classe” possui um sentido sociológico propriamente
dito. Ainda nesta acepção, temos a categoria intermediaria de “classe
média” que no decorrer do capitalismo tende não apenas a crescer nu-
mericamente, mas a adquirir feições próprias no decorrer de cada está-
gio de desenvolvimento histórico do sistema do capital. A utilização do
termo “classe média” possui outro estatuto teórico-analitico – é mais
uma categoria da estratificação social do que propriamente da estru-
tura de classes, embora, como iremos verificar adiante, a estratificação
social exerce sua efetividade categorial no processo de constituição da
classe “para si”.
Segundo, por outro lado, na acepção dialético-materialista, a
classe não é apenas um mero conjunto sócio-estatistico inserido numa
determinada posição objetiva da divisão social do trabalho, ou seja,
“classe para o capital”, mas sim uma coletividade organizada de produ-
tores ou trabalhadores alienados das condições de produção que possui
uma determinada forma de consciência social: a consciência de classe
(“classe para si”, isto é, classe com interesses de classe). Enfim, a forma
de ser da classe social, na ótica dialético-metarialista, pressupõe não
apenas uma posição objetiva na divisão social do trabalho, mas uma
determinada forma de consciência social, a consciência de classe capaz
de transformar em si e para si aquela coletividade particular-concreta
de trabalhadores proletários em sujeito histórico real – a classe do pro-
letariado – cujo movimento social e político tende a “negar” o estado de
coisas atual. Esta é a acepção efetiva (e original) da categoria de “classe
social” na ótica marxiana.
Dizer “proletário” ou mesmo “proletariado” não significa efetiva-
mente dizer “classe do proletariado”. O homem proletário ou o proleta-
riado em si está apenas subsumido à condição de proletariedade, matéria

33
Trabalho e Cinema • Volume 3

social da potentia de classe social como categoria histórica. Nesse caso,


o que iremos denominar de “condição de proletariedade” possui apenas
a potentia e não o acto da categoria de classe social (o que não é pouca
coisa). Nesta aula iremos expor a tese de que, na perspectiva dialética-
materialista, a rigor, só há classe se houver consciência de classe.
A categoria de “classe social” é uma das categorias fundamentais
da sociologia critica. Mais uma vez, salientamos que ela não se reduz a
mera estatística social e sua efetivação categorial pressupõe não apenas
uma materialidade objetiva ou posição na divisão social de trabalho e
antagonismo estrutural de interesses de classe, mas sim, materialidade
subjetiva ou experiência de classe e consciência de classe.
Deste modo, apenas a classe para si constitui efetivamente a classe
social como categoria histórica. Ao dizermos classe para si dizemos a
constituição de um sujeito histórico com determinado grau de consci-
ência de classe contingente ou necessária.
A constituição do sujeito de classe é processual, percorrendo uma
gradação progressiva (ou regressiva) que vai da consciência de clas-
se contingente, a classe em si, momento estrutural da percepção e do
entendimento das individualidades de classe, à consciência de classe
necessária, classe para-si, momento histórico-político da experiência
de classe que tende a se generalizar. Pode-se inclusive conceber, deste
modo, neste processo histórico, outro momento da consciência social,
a consciência de classe para além de si, que diz respeito a dimensão da
genericidade humano-genérica para além da divisão da sociedade hu-
mana em classe.
Na verdade, a consciência de classe propriamente dita ou cons-
ciência de classe necessária, se traduz na superação do momento eco-
nômico-corporativo pelo momento ético-político (embora, é claro, o
momento da percepção de classe, nos seus mais diversos graus de per-
cepção, ou a consciência de classe contingente, seja efetivamente cons-
ciência de classe in fieri).
O movimento da consciência social para a consciência de classe
(que no plano epistemológico implica a passagem da consciência in-
gênua para a consciência critica) é um momento de catarse das indivi-

34
O mundo do trabalho através do cinema

dualidades pessoais de classe em si para si que ocorre a partir das suas


experiências vividas e experiências percebidas de classe (como condi-
ção objetiva dada), experiências cotidianas mediadas por instituições
(ou movimentos) culturais ou políticas capazes de ir além da pseudo-
concreticidade (na acepção de Karel Kosik).
A consciência de classe capaz de constituir a nova forma de ser da
coletividade de produtores sociais - a classe para si, que é a classe social
propriamente dita, sujeito histórico capaz de lutar pelos interesses de
classe na cena política e social, emerge de uma condição material (e
situação objetiva) historicamente dada e socialmente constituída pelo
modo de produção capitalista.
No caso da classe do proletariado, a condição material (e situação
objetiva) historicamente dada que constitui ontologicamente a classe
social – no sentido da forma de ser da classe – é o que temos denomi-
nado de condição de proletariedade. Esta condição objetiva dada é a
matriz sócio-estrutural da formação da classe social como sujeito his-
tórico da modernidade do capital.

- “Classe” e classe do proletariado

Iremos tecer considerações sobre a natureza da despossesão e da


subalternidade, elementos compositivos essenciais da “condição de
proletariedade” ligados à relação-capital (propriedade privada/divisão
hierárquica do trabalho).
Primeiro, temos salientado que utilizamos “classe” (com aspas),
para salientar o caráter meramente potencial do conceito ou categoria
como forma de ser. A “classe” do proletariado, constituída por aqueles
e aquelas que estão imersos na condição de proletariedade, não é, a
rigor, a classe do proletariado que pressupõe, como elemento consti-
tutivo, fundante e fundamental, a consciência de classe. Na verdade, a
categoria de “classe social” é uma categoria-espectral que não é dada,
de imediato, e que se constitui em processo. Não apenas se constitui
historicamente (e cotidianamente, vale ressaltar), como pode se des-

35
Trabalho e Cinema • Volume 3

constituir, desaparecendo enquanto classe, tornando-se meramente


“classe” do proletariado.
Portanto, a rigor, podemos dizer que existem individualidades
pessoais de “classe”, homens e mulheres jogados no mundo social do
capital, despossuidos, subalternos e imersos na contingência de vida
e no acaso do mercado; e individualidade pessoais de classe, homens e
mulheres em processo de subjetivação de classe, sujeitos humano-cole-
tivos em constituição por meio de processos histórico-sociais, subjeti-
vidades humans que buscam dar respostas organizativas, associativas e
políticas aos constrangimentos da ordem sócio-metabólica do capital a
partir de seus interesses objetivos de classe.
Segundo, o elemento de despossessão, que constitui (e marca) a
condição de proletariedade, precisa ser mais bem qualificada. A princí-
pio, ao dizermos “despossessão”, queremos salientar a perda/alienação
dos meios objetivos e subjetivos de produção da vida social. É o proces-
so de proletarização que constitui a condição de proletariedade e, por
conseguinte, a “classe” do proletariado.
Entretanto, é importante salientar situações de “classe” que estão
numa situação intermediária. O que significa que a despossesão é me-
diada por situações de posse às mais diversas. Isto é importante para
o entendimento das situações de “classe intermediária” (ou de “classe
média”), onde a proletarização não está posta efetivamente, mas tão-
somente pressuposta em diversos graus. Uma teoria das posses torna-se
essencial para o entendimento dos obstáculos efetivos à consciência de
classe e a constituição da classe do proletariado.
Por exemplo, há situações de grupos sociais ou estratos de tra-
balhadores que embora não sejam proprietários dos meios de produ-
ção, têm a posse destes meios ou instrumentos de produção da vida
social. Este dado objetivo provoca uma “deslocamento” no processo
de subjetivacão de classe, colocando obstáculos efetivos (ou virtuais)
à constituição da consciência de classe proletária e, portanto, da sua
identificação com a classe do proletariado. Isto vale não apenas para a
chamada “pequeno-burguesia” clássica (por exemplo, pequenos cam-
poneses, comerciantes e artesãos, que na medida em que o sistema

36
O mundo do trabalho através do cinema

mundial do capital se desenvolve não têm o controle da produção da


vida, embora tenham a posse dos meios de produção), mas uma “nova
pequeno-burguesia”, que surge com o desenvolvimento do capitalismo
industrial. Embora eles não tenham a propriedade (ou o controle) efe-
tiva da produção da vida social, têm a posse simbólica dos meios (ou
instrumentos) de produção. Isto é, embora sejam, em tese, trabalha-
dores assalariados, têm a posse de prerrogativas de mando/gerencia ou
chefia e/ou ainda habilidades técnico-instrumentais, posses que garan-
tem determinados status ou prestigio na ordem social do capital (com
contrapartida na capacidade aquisitiva ou renda monetária). No caso
dos estratos técnico-especializados ou trabalhadores de “classe média”,
por terem maior qualificação/competência tendem a incorporar como
suposto “capital humano” tais atributos profissionais.
Nesse caso, a posse como obstáculo à constituição da consciência de
classe e, portanto, obstáculo à constituição da própria classe do proleta-
riado, pode assumir um caráter simbólico-instrumental, atingindo par-
celas amplas da “classe” do proletariado das indústrias e dos serviços.
A dimensão simbólica da posse é dada não apenas pelas habilida-
des técnico/cognitivas, mas, no limite, a posse de mercadorias de luxo
que conferem status e prestigio a quem o possui. Na medida em que
o mundo social do capital é uma “imensa coleção de mercadorias” e
que o desenvolvimento da produção de mais-valia relativa permite que
uma parcela ampla do proletariado, em virtude da pressão organizada
sindical e política, conquiste maior participação na riqueza social pro-
duzida como mercadorias e serviços, amplia-se o contingente do prole-
tariado implicado na ordem simbólica da ideologia pequeno-burguesa,
onde a posse das coisas tende a ocultar a condição de proletariedade e
por conseguinte, tende a obstaculizar, sob determinadas condições, a
constituição da classe do proletariado (ocorre um aburguesamento do
proletariado).
A disseminação do fetichismo da mercadoria no bojo do capita-
lismo industrial, marcado pela produção ampliada de riqueza social, é
uma intensa “força gravitacional” que desloca o desenvolvimento da
consciência de classe do proletariado, colocando amplos contingentes

37
Trabalho e Cinema • Volume 3

do mundo do trabalho despossuido no horizonte simbólico da ordem


burguesa.
Na verdade, o desenvolvimento do capitalismo industrial cria uma
aguda contradição entre condição de proletariedade, condição universal
de homens despossuidos da propriedade e do controle dos meios de
produção da vida social, e situações de consciência social impregnadas
da ideologia pequeno-burguesa sob o estigma da posse como obstáculo
decisivo à constituição efetiva da classe do proletariado (posse de poder
e posse de dinheiro).
Ora, a luta suprema do capital é impedir o surgimento da classe do
proletariado, a classe capaz de negar o estado de coisas existentes, caracte-
rizado pela alienação do controle social (o problema do fetichismo). Negar
a condição de proletariedade significa assumir as rédeas do controle social
impregnado pela lógica da valorização do valor e do mercado.
Mesmo os trabalhadores “por conta própria” e os trabalhadores
“autônomos”, que aparentemente são proprietários dos meios de pro-
dução, não sendo considerados “proletários” no sentido estrito da pa-
lavra, são homens e mulheres subalternos à ordem sócio-metabólica
do capital, tendo em vista que não têm o controle da produção social
nas condições de uma sociedade cada vez mais socializada. Em alguma
medida, estão imersos na condição de proletariedade, embora a situa-
ção de propriedade lhe seja atribuída (a rigor, a propriedade se inter-
verte em “posse”, tendo em vista que, mesmo como “proprietários”, pos-
suem uma relação de subalternidade com o grande capital oligopólico,
não tendo, portanto, o controle do mercado que os submete). Por outro
lado, diante do “corpo social” de despossuidos do controle social apare-
ce o capital em geral, constituído pela oligopolização capitalista e seus
agentes executivos (as personas do capital).
Portanto, pode-se distinguir gradações ontológicas (ou modos de
efetivação) do proletariado como “classe” e proletariado como classe
(sem aspas).
Ao dizermos “classe” do proletariado dizemos individualidades
pessoais de classe imersas na “condição de proletariedade”. O proleta-
riado como classe social propriamente dita pressupõe o movimento de

38
O mundo do trabalho através do cinema

classe em si/classe para si (ou para além-de-si na perspectiva da generici-


dade humano-genérica), e por conseguinte, o movimento da consciên-
cia de classe (antes, pressupomos como formas de consciência social, a
consciência ingênua e a consciência critica). Por outro lado, a consciên-
cia de classe é uma forma de consciência crítica, que assume uma forma
contingente e forma necessária.

Fenomenologia da classe e consciência de classe

“classe”
 classe


 
“em si” para-si para-além-de-si

consciência ingênua
 consciência de classe (contingente/necessária)

consciência social

Em síntese, podemos dizer que:


A “classe” do proletariado e a “classe” da burguesia são os pólos
de classe fundamental do modo de produção capitalista. O primeiro
pólo social é a classe expropriada/alienada dos meios de produção da
vida. O segundo pólo social são os grandes proprietários dos meios de
produção que acumulam riqueza através da mobilização (e exploração)
da classe do proletariado.
Mas encontramos na sociedade burguesa um conjunto de “situa-
ção intermediárias/excêntricas”:
Primeiro, a “classe” de pequenos e médios proprietários que ob-
tém recursos por meio da exploração (de trabalhadores assalariados) e

39
Trabalho e Cinema • Volume 3

que compõem uma pequeno-burguesia proprietária. É uma “classe mé-


dia” proprietária de estirpe tradicional.
Segundo, é importante discriminar a categoria de “nova classe
média”, trabalhadores assalariados de “colarinho branco”/personas do
capital, construção categorial sociologicamente exótica tendo em vista
que implica o cruzamento de referentes da estrutura de classes/divisão
social do trabalho e elementos da estratificação social (status, presti-
gio e renda) com derivações específicas no plano da consciência social
(quase-impossibilidade de consciência de classe).
Terceiro, é importante salientar a categoria de lumpen-proletaria-
do, estrato/sedimento da “classe” do proletariado “desligado” das pos-
sibilidades de mobilidade social e consciência de classe por conta da
imersão extrema na “condição de proletariedade”.

Trabalhadores por conta própria

No interior da “condição de proletariedade”, emergem ainda outras


formas de inserção de classe que não se confundem – e pelo contrário - se
distinguem da inserção operária ou empregatícia propriamente dita (em-
pregados industriais, de serviços ou administração pública). Por exem-
plo, são “trabalhadores por conta própria”, “trabalhadores autônomos” ou
ainda “trabalhadores empregados assalariados gestores do capital” que
embora estejam imersos na “condição de proletariedade” têm o pertenci-
mento de “classe” (ou a consciência de classe) deslocada/obnubilada pela
posse de habilidades técnico-profissionais ou prerrogativas de poder na
gestão de coletivos de trabalho. Esse “deslocamento” não invalida o “per-
tencimento de classe”embora o problematize. Eles pertencem à “classe”
do proletariado, no sentido fraco do termo (usa-se aspas em “classe”).

Condição de proletariedade e classe do proletariado

É importante reiterar que estar imerso na condição de proletarie-


dade não significa que pertencimento, de imediato, à classe do prole-

40
O mundo do trabalho através do cinema

tariado como sujeito histórico antagônico ao capital (embora, o per-


tencimento objetivo crie possibilidades para o desenvolvimento efetiva
da consciência de classe através da mediação de instituições político-
culturais: sindicato socialistas e partidos de classe, etc).
Outro detalhe: a condição de proletariedade diz respeito a uma
determinada relação social de produção alienada independente da for-
ma material do processo de produção do capital. Ela diz respeito a ope-
rários de fábrica ou empregados públicos ou privados (trabalhadores de
colarinho-branco ou professores ou funcionários públicos).

Sentidos fraco e forte da categoria “classe social”

A categoria de classe social é fundamental para explicar/compren-


der a práxis social histórica de coletividades humanas na modernidade
do capital. Na ótica marxiana, “classe social” é uma categoria moderna,
elo fundante e fundamental da mudança histórica, “chave histórica” da
transformação social na era da modernidade do capital. É a classe social
do proletariado que Marx identificou como agente social da revolução
socialista que “nega” o estado de coisas existente do capital. No plano
epistemológico, desprezar a categoria de “classe social” seria renunciar
a uma episteme critico-transformadora.
A categoria de “classe social” em Marx possui um sentido fraco,
isto é, classe social como condição sociológica e existencial de vida,
dado estrutural da divisão social do trabalho na modernidade do capi-
tal. Nesse caso, ao falarmos “classe social”, tratamos de uma categoria
eminentemente sócio-estatistica.
O pertencimento de classe – no sentido estrutural - tem um sen-
tido fraco e um sentido forte. O pertencimento de “classe” no sentido
fraco é o pertencimento objetivo, meramente situacional na estrutura
de classe e na divisão social do trabalho. Isto é, como não têm a pro-
priedade dos meios de produção, pertencem à “classe” do proletariado.
Em geral, a acepção de “classe” (com aspas) é utilizada nesse sentido
economicista.

41
Trabalho e Cinema • Volume 3

Por outro lado, “classe social” possui um sentido forte, ou seja,


classe social implica consciência de classe e constituição do sujeito his-
tórico coletivo em movimento. Nesse sentido, “classe social” é, como se
qualifica, “social”.
O pertencimento de classe no sentido forte é o pertencimento sub-
jetivo (e, por conseguinte, que remete a certa objetividade social) e que
pressupõe algum grau de consciência de classe. Isto é, pode-se dizer,
nesse sentido, só há verdadeiramente classe se houver consciência
de classe (classe como sujeito histórico, sujeito de práxis). Existem gra-
dações para a consciência de classe, que é uma variável da contingência
político-concreta.
Ora, a sociedade burguesa é, a rigor, a única sociedade social pro-
priamente dita no sentido de maior divisão do trabalho social e intensi-
dade objetiva dos laços sociais (o que explica, deste modo, o surgimento
da teoria social ou teoria sociológica propriamente dita no século XIX,
com o “social” possuindo um estatuto ontológico específico). Assim,
só podemos falar de “classe social” no sentido forte nas sociedades do
capitalismo histórico.

Condição de vida e classe social

A adoção do conceito de condição proletária ou condição de pro-


letariedade não significa necessariamente um conceito ampliado de
“classe trabalhadora” ou de “classe do proletariado”.
A condição não implica necessariamente pertencimento de classe
(no sentido forte do termo, que é o sentido da práxis social). A “classe”
do proletariado pode ser hoje objetivamente maior do que em qualquer
época histórica do desenvolvimento da sociedade burguesa, mas pode-
se dizer também que, por conta do complexo de fetichismos sociais e da
crise do partidos, sindicatos socialistas e da ideologia de classes, ela
nunca esteve tão reduzida no sentido da efetividade política e social (o
que não deixa de ser uma forma de objetividade social).

42
O mundo do trabalho através do cinema

É está “invisibilidade” da classe do proletariado no interior da


condição proletária extendida e intensamente efetiva, que explica a he-
gemonia do capital e a obnubilação da consciência de classe.

Classe social e sujeito histórico

A teoria do estranhamento implica questões de cunho praxeoló-


gico ligadas à relação estrutura/agencia social. Na verdade, o problema
clássico do sujeito histórico é o problema da classe do proletariado, na
medida em que a teoria da classe social do proletariado (e a rigor, só o
proletariado é “classe social”) baseia-se no problema do sujeito histórico-
coletivo (o que pressupõe consciência de classe como um tipo particular
de consciência critico-social). Só há sujeito se houver consciência critica,
capaz de agir no mundo, transformando suas condições de vida.

Exploração, espoliação e opressão de classe

A teoria da exploração é uma teoria das condições estruturais no


interior da qual se constitui (ou não) o sujeito histórico de classe. Ela
diz respeito às determinações materiais essenciais da “condição de pro-
letariedade”. A teoria da exploração implica conceber, como elementos
compositivos da dominação/acumulação do capital (como metabolis-
mo social) a distinção exploração/espoliação/opressão.
A rigor, exploração significa expropriação sistêmica de excedente
produzido pelos “trabalhadores produtivos” (no capitalismo, o exce-
dente aparece como mais-valia). Só os “trabalhadores produtivos” são
explorados no sentido pleno da palavra, tendo em vista que só eles pro-
duzem mais-valia.
No caso de “trabalhadores improdutivos”, podemos qualificar o
modo de dominação como opressão de classe ou ainda espoliação, que
ocorre por meio de transferência/expropriação extra-econômica (ou
melhor, extra-sistêmica) de riqueza ou trabalho produzido pelos pro-
dutores.

43
Trabalho e Cinema • Volume 3

Ao dizermos opressão tratamos da relação social de dominação


entre homens (sujeito/sujeito) no interior do processo de produção/
reprodução social. Pode-se tratar, por exemplo, de opressão de classe
(ou dominação propriamente dita), opressão de raça ou ainda opressão
de gênero).
Na verdade, o capital como relação social de controle do meta-
bolismo homem/natureza e homem/homem, articula um complexo
de dominação social baseado nos momentos de exploração/espoliação/
opressão e dominação de classe.
Por exemplo: as mulheres trabalhadoras assalariadas ligadas à
produção de valor na indústria ou serviços podem, ao mesmo tempo,
estarem inseridas em relações sociais de exploração, que ocorre nos lo-
cais de trabalho; e, ao mesmo tempo, em relações sociais de espoliação,
ao efetuarem, por exemplo, serviços domésticos do lar para seus ma-
ridos, operários ou empregados assalariados (o trabalho não-pago das
mulheres do lar reduz o valor da força da força de trabalho do marido
operário ou empregado, permitindo que o capital se aproprie de maior
parcela de trabalho excedente – o que significa que, embora o trabalho
do lar seja diretamente improdutivo, é deveras funcional à acumulação
de valor); e finalmente, além de serem exploradas e espoliadas, as mu-
lheres podem estar inseridas também em relações sociais de opressão
de gênero no interior do lar, caso estejam envolvidas em relações de
gênero de cunho “machista”.
Enfim, o modo de ser do capital articula estas dimensões com-
positivas da dominação sociometabólica do capital. Na “condição de
proletariedade” articulam-se, portanto, exploração/espoliação e opres-
são, elementos objetivos que determinam a formação da classe e da
consciência de classe.

Proletariado como trabalhadores assalariados

A “classe” do proletariado é – noutra acepção categorial - a “classe”


dos trabalhadores assalariados que é uma conceituação clássica de am-

44
O mundo do trabalho através do cinema

plo significado, desde que possamos apreender o significado ontológi-


co de trabalho assalariado (na ótica da teoria do estranhamento).
Temos insistido em dizer que pode-se falar em “proletariado”,
mas isto não significa que se trata (ainda) de uma classe social. A ri-
gor, como salientamos, trata-se de uma “classe” e não de uma classe
social. Assim, o “proletariado”, no sentido de individualidades pessoais
de classe imersas na “condição de proletariedade”, são os trabalhadores
assalariados, “classe em inércia” que aparece na exposição de “O Capi-
tal” (de Karl Marx).
A classe dos trabalhadores assalariados ou a “classe” do proletaria-
do não remete à distinção “trabalhadores produtivos” ou “trabalhado-
res improdutivos”, que diz respeito a outra coisa, ou seja, à dinâmica de
acumulação de valor (um elemento da objetividade social da dinâmica
do modo de produção).
Enquanto os trabalhadores assalariados são uma categoria social
ampla, incluindo, por exemplo, dentro de si, os trabalhadores “autô-
nomos”, os trabalhadores produtivos são uma categoria social de classe
mais estrita. Como observa Marx (no “Capítulo VI Inédito de O Capi-
tal”), “todo trabalhador produtivo é assalariado, mas nem todo assala-
riado é trabalhador produtivo”.
Deste modo, a classe dos trabalhadores assalariados significa a
“classe” do proletariado propriamente dito, constituída por “trabalha-
dores produtivos” e “trabalhadores não-produtivos”.
Hoje, mais do que nunca, a “classe” do proletariado como clas-
se dos trabalhadores assalariados, aparece no processo de produção do
capital, como “trabalhador coletivo”, no interior do qual se articulam
trabalhadores manuais e trabalhadoes não-manuais, ou ainda trabalho
material e trabalho não-material, etc.
O “trabalhador coletivo” é o agente real do processo de trabalho
total, “máquina produtiva total” constituída por diversas capacidades
de trabalho que “participam de maneira muito diferente no processo
imediato da formação de mercadorias, ou melhor, de produtos”.
Diz Marx: “Este trabalha mais com as mãos, aquele trabalha mais
com a cabeça, um como diretor (manager), engenheiro (engineer) ou

45
Trabalho e Cinema • Volume 3

técnico, etc. outro como capataz (overloocker); um outro como operário


manual direto, ou inclusive como simples ajudante – temos que mais
e mais funções da capacidade de trabalho se incluem no conceito ime-
diato de trabalho produtivo, e seus agentes no conecito de trabalhado-
res produtivos, diretamente explorados pelo capital e subordinados em
geral a seu processo de valorização e de produção.”
E ressalta: “Se se considera o trabalhador coletivo [...] é absolu-
tamente indiferente que a função de tal ou qual trabalhador – simples
elo deste trabalhador coletivo – esteja mais próxima ou mais distante
do trabalho manual direto.”
Ao tratar do “trabalhador coletivo”, Marx trata da morfologia social
da produção do capital cujo trabalho produtivo tende a ser mais amplo
do que o trabalho manual direto. Na verdade, o trabalho produtivo no
capitalismo, a rigor, tende a se ampliar ao invés de se reduzir. A máquina
de produção de mercadorias, máquina produtiva total, articula hoje, o
espaço global, por meio de atividades combinadas para além da fábrica.

Trabalho por conta própria e subsunção ideal do trabalho


ao capital

Os trabalhadores assalariados, da qual fazem parte trabalhadores


produtivos e trabalhadores não-produtivos, ampliam-se, na medida em
que se desenvolvem as relações de subsunção real (e formal e mesmo,
ideal) do trabalho ao capital - existem relações que não se subsumem
realmente ao capital, como no caso do trabalhador por conta própria;
mas, segundo Marx, se subsumem idealmente (idealiter).
Diz Marx: “O trabalhador autônomo (selfemploying labourer),
como exemplo, é seu próprio assalariado; seus próprios meios de pro-
dução se lhe representam como capital. Na condição de capitalista de
si mesmo, auto-emprega-se como assalariado.” (“Capítulo VI Inédito
de O Capital”)).

46
O mundo do trabalho através do cinema

É claro que as relações de subsunção ideal do trabalho ao capital


são “anomalias” que compõem a totalidade concreta dos trabalhadores
assalariados na sociedade capitalista.
Deste modo, trabalho assalariado significa, em si, trabalho estra-
nhado sob a forma capitalista, que é, acima de tudo, trabalho subalter-
no (formal, real ou idealmente) à relação-capital, implicado, direta ou
indiretamente, em exploração, espoliação e opressão de classe.
A subalternidade/subalternização/assujeitamento do “homem
que trabalha” nas condições do salariato pode assumir então, um modo
real (objetivado no sistema de máquina), um modo formal (objetivado
no contrato de trabalho) ou um modo ideal (objetivado em relações de
subalternidade sistêmica às disposições do controle sociometabólico
do capital).

Trabalho produtivo como forma social

Deve-se ressaltar que o trabalho produtivo diz respeito à forma


social e não à forma material (é produtivo, como diz Marx, o trabalhador
assalariado que - no sistema de produção capitalista - produz mais-valia
para o empregador, podendo ser um escritor, cantor ou mestre-escola).
Nesse caso, os empregados produzem uma mercadoria – intangível, é
claro – mercadoria como unidade de valor de uso e valor de troca.
Para Marx, todo trabalho produtivo se objetiva em mercadoria, ob-
jetivação que, cabe ressaltar, pode ser tangível ou intangível (o que permi-
te que o capital cria espaços de valorização em setores de serviços) e que
aparece como meio para a produção de mais-valia (D-M-D’).
Dizer que um trabalhador é “produtivo” não se trata afirmar um
julgamento de valor moral – o termo “produtivo” em Marx é estrita-
mente um termo de objetividade social. Durante muito tempo, o viés do
marxismo economicista tendeu a vincular “trabalhadores produtivos”
com “classe operária revolucionária”, desprezando-se, deste modo, os
trabalhadores não-produtivos (ou improdutivos) como incapazes de
serem efetivamente sujeitos histórico coletivos da revolução social.

47
Trabalho e Cinema • Volume 3

Ora, a discussão de “produtivos” e “improdutivos” diz respeito


apenas à dinâmica da acumulação de valor, não se relacionando dire-
tamente com a praxis sócio-politica e histórica do proletariado como
suposta “classe revolucionária”.
Assim, a “classe” do proletariado não é constituído apenas pelos
trabalhadores produtivos. A revolução social é um ato histórico contra
o estranhamento e o trabalho estranhado (o que remete à dimensão do
salariato em geral e não apenas à dimensão da produção de valor onde
estão implicados os trabalhadores produtivos).
No plano da práxis histórica, o que conta é a inserção de trabalho
estranhado (e estranhamento) que caracteriza o trabalho assalariado.
Por isso, ao discutir trabalho produtivo/improdutivo, Marx não discute a
práxis social e portanto não pode discutir “classe social”, e por conseguin-
te, proletariado (que remete a rigor à práxis social emancipadora).

Formas de ser da “classe” do proletariado

Podemos discriminar na proletariedade moderna, a proletarie-


dade extrema (que inclui inclusive o lumpen-proletariado) e a prole-
tariedade regulada (que cresceu com a abrangência do estatuto salarial
regulado pelo Estado social), etc.
Além disso, a condição de proletariedade diz respeito às seguintes
posições de “classe”:
1. proletários operários e empregados privados ou públicos
imersos em relações de trabalho assalariado, produtores (ou
não) de valor. É o conjunto dos trabalhadores assalariados
propriamente ditos. A categoria de salário é uma categoria
efetivamente política, no sentido pleno da palavra, pois im-
plica subordinação do trabalho ao capital, seja ele produtivo
ou improdutivo. Expressa uma relação de poder no processo
de trabalho, poder estranhado do capital ou do Estado polí-
tico como sua determinação reflexiva (deste modo, operário,

48
O mundo do trabalho através do cinema

empergados e funcionários públicos são trabalhadores assa-


lariados).

Um detalhe: os proletários ligados a atividades de trabalho con-


tratual/emprego na esfera pública, configurando-se como “funcionários
públicos” ou operários/empregados de empresa estatal ou pública. Nes-
se caso, a consciência de classe pode ser (ou não) “deslocada/obnubili-
dada” pela vinculação salarial com instancia do anti-valor. Dependendo
de condições da contingência política, a proletariedade dos funcionários
públicos, conduzidos por uma direção política de classe, pode torná-los
aliados estratégicos do proletariado do setor privado. O fenômeno do
corporativismo, alimentado pelo fetiche do Estado, em geral, desloca
a alcance desta consciência de classe. A constituição das instâncias do
anti-valor ocorre nas atividade de produção (indústria ou serviço) de
riqueza ligadas ao controle estatal ou público e que diz respeito à gestão
do fundo público. Há uma produção de excedente que não assume a
forma social de mais-valia, tendo em vista que a apropriação não é pri-
vada ou mediada pela lei do valor (mercado). A condição proletária de
trabalhadores ligados às atividades gestadas a partir do fundo público
assume uma forma particular, tendo em vista que o operário ou empre-
gado (funcionário público) não se encontram diante de um capitalista
privado, mas sim de um gestor do capital social (apesar disso, enquanto
houver Estado político, isto é, um ente estranho, há capital, o que impli-
ca a efetividade da condição de proletariedade).

2. proletários “deslocados” em sua consciência de classe pela


posse de habilidades técnico-profissional/meios de trabalho/
prerrogativas de poder/controle/gestão (no caso de alguns
proletários operários e empregados privados ou públicos)
e deslocados/obnubilados por quaisquer formas de fetiche,
como o fetiche da mercadoria/fetiche do dinheiro, inclusive
bens patrimoniais e de consumo ostentatório.
3. proletários desempregados com auxilio (ou não) de progra-
mas sociais estatais. Em geral, têm consciência aguda da

49
Trabalho e Cinema • Volume 3

condição de proletariedade, embora ela não se traduza ne-


cessariamente,, em si e para si, como consciência de classe.

Trabalho, proletariado e proletarização

Por que não podemos fundar a teoria do proletariado na categoria


de trabalho como categoria ontológica (como faz, de forma equivoca,
Sergio Lessa em seu livro “Trabalho e proletariado”)?
Primeiro, porque a categoria de proletariado no sentido moder-
no - possui outro nível de abstração (em comparação com a categoria
trabalho – nos entido ontológico), exigindo, deste modo, um complexo
de mediações concretas.
A categoria de proletariado na modernidade do capital remete
à “condição de proletariedade”, dimensão histórico-existencial que se
constituiu com o processo de proletarização do trabalho do camponês,
servo ou artesão, que mantinham algum grau de controle das condi-
ções objetivas (e subjetivas) do processo de produção da vida social.
A proletarização moderna significa a perda de controle de tais
condições objetivas (e subjetivas) da produção da vida social sob mo-
dernidade do capital. Ela instaura a condição do salariato ou condição
de proletariedade.
O processo de proletarização, processo histórico irremediável da
modernidade do capital, que se desdobra há séculos, cria e amplia as
bases da proletariedade moderna, marcada pelo trabalho estranhado
sob a forma histórica do trabalho assalariado.

Processo de proletarização e precarização de classe

Tratamos do processo de proletarização como sendo o movimen-


to sócio-histórico estrutural que cria as bases materiais da “condição de
proletariedade”. Nascemos proletários - o que não significa que perten-
çamos à classe do proletariado no sentido pleno da palavra “classe”.

50
O mundo do trabalho através do cinema

Mas há aqueles que possuem algum controle sobre os meios de


produção da vida social. Nesse caso, eles pertencem objetivamente, em
maior ou menor grau de efetivação, a outra “classe” no sentido de con-
dição de existência (“pequeno-burguesia” ou efetivamente “burguesia”,
segundo múltiplas gradações).
Pode-se entender a perda (absoluta ou relativa) do controle dos
meios de produção da vida como sendo um processo gradativo e contí-
nuo. Esta é uma dimensão sistêmica do processo de proletarização.
Na verdade, o capitalismo como sistema cria constantemente as
condições materiais de sua própria reprodução social – as “condições
de proletariedade”, em maior ou menor espectro, é a principal delas.
O capitalismo possui dois processos histórico-estruturais de ca-
ráter sistêmico:
1. A proletarização, que cria (e recria) a “condição de proleta-
riedade”, base existencial da “classe”/classe do proletariado.
2. A precarização da classe, processo estrutural que, por um
lado, (A) atinge a “classe em si/para si” (configurando-se
como ofensiva do capital que “desestrutura” a dimensão de
classe propriamnete dita); e por outro lado, (B) aparece como
experiencia vivida e percebida de fraçoes particulares da
“classe”. O que significa que embora a precarização seja um
elemento estrutural da classe como um todo (seja objetiva-
mente ou subjetivamente, no sentido de sujeito histórico-co-
letivo), a experiência vivida e percebida da precarização é um
elemento específico-singular de determinadas frações de clas-
se ou categoriais geracionais ligadas a processos históricos
efetivos de perda de direitos e conquistas sociais e políticas
de categoriais de trabalhadores assalariados (o que permite,
por exemplo, maior visibilidade dos atributos da “condição
de proletariedade”, além de expor a matéria social possível de
formação da consciência de classe e da classe como sujeito
histórico coletivo).
Em seu movimento histórico, a precarização de classe tende a
constituir (e desconstituir) formas de precariedade salarial. Por exem-

51
Trabalho e Cinema • Volume 3

plo, nos últimos trinta anos, a precarização de classe sob o capitalismo


global tendeu a instaurar uma nova forma de precariedade salarial de
natureza toyotista-neoliberal.

Propriedade e controle da produção da vida social

Os “trabalhadores livres” ou trabalhadores assalariados, homens


(e mulheres) que trabalham sob condições objetivas (e subjetivas) de
subalternidade/assujeitamento à relação-capital, em maior ou menos
grau de efetivação, estão imersos na “condição de proletariedade”, con-
dição social-material (e universal) da existência humana sob a moder-
nidade do capital.
Deste modo, os proletários estão alienados da propriedade dos
meios de produção da vida social, alienação que funda a “condição de
proletariedade” a partir da qual pode-se (ou não) constituir a classe so-
cial do proletariado.
Mas vejamos o significado de ser (ou não) proprietário dos meios
de produção da vida social, ou ainda, possuir (ou não) a propriedade
dos meios de produção (nesse caso, a idéia de propriedade social impli-
ca controle do processo de acumulação e processos sociais sistêmicos):
Na medida em que, sob o capitalismo monopolista, ocorre ob-
jetivamente a socialização da produção social, ocorrem alterações no
significado da categoria de propriedade dos meios de produção da vida
material.
Muitas vezes, ter a propriedade – no caso de pequenos e médios
capitalistas - não significa ser efetivamente, proprietário dos meios de
produção da vida social, na medida em que a produção da vida social
tende a ser determinada, em maior ou menor medida, pelo capital oli-
gopólico, força hegemonico- dirigente da máquina produtiva total
O que significa que mesmo “proprietários individuais” de meios
de produção (pequenos e médios proprietários) podem ser considera-
dos, em alguma medida, efetivamente “alienados” da propriedade dos
meios de produção social, tendo em vista que estão “subalternos” à di-

52
O mundo do trabalho através do cinema

nâmica de acumulação de valor ditada pelos grandes blocos de capital


sob a propriedade de sociedades anônimas. A perda relativa de contro-
le por parte de alguns pequenos e médios proprietários acusa algum
grau de “alienação” e, portanto, uma inserção “exótica” (ou anômala)
na “condição de proletariedade”.
Como salientamos acima, a idéia de propriedade pressupõe a idéia
de controle, embora o contrário não seja verdadeiro. Isto é, pode-se ter
algum controle (ou posse) e não ser proprietário; o que significa que,
aquele que tem a posse paga uma renda ao proprietário que obtém, deste
modo, rendimentos do capital (isto é, o proprietário aluga um ativo, aufe-
rindo renda – ele é proprietário, embora não tenha a posse).
No caso de quem tem a posse - e não a propriedade - pode-se dizer
também que pode auferir renda do ativo que se possui (caso não haja
exploração da força de trabalho de outrem, considera-se, nesse caso,
“rendimentos do trabalho”; caso haja exploração da força de trabalho
de outrem, aparece como “rendimento do capital”).
Ora, ter a propriedade significa possuir a prerrogativa de apropriar-
se dos rendimentos de determinados ativos (títulos ou ações, por exem-
plo); e ter o poder de decisão sobre os investimentos do empreendimento
representado pelo titulo ou ação. Enfim, propriedade implica a prerroga-
tiva de auferir renda e ter o controle estratégica do ativo (caso se alugue o
ativo em troca de um rendimento, pode-se regulamentar o compartilha-
mento do controle com aquele que detém a posse).
Portanto, capitalista é aquele que, além de obter rendimento de
ativos adquiridos a título de investimento (o que significa implica-lo
direto ou indiretamente com a exploração/espoliação/opressão da for-
ça de trabalho) - no caso da empresa moderna, o possuidor de ações
com poder majoritário nas decisões de investimento da empresa), pos-
sui o poder de decisão sobre investimentos.
Pode-se ser pequeno, médio e grande capitalista. Embora o pe-
queno e médio capitalistas obtenham rendimentos de seus ativos, ten-
do, de certo modo, o controle estratégico de seus investimentos, nas
condições do capital concentrado, o controle estratégico está, cada vez
mais, subordinado aos interesses do grande capital concentrado. Eles

53
Trabalho e Cinema • Volume 3

tornam-se assim, “servos” do capital oligopólico, inclusive com parte


de seu rendimento de capital sendo expropriado (ou sugado) pelo ca-
pital concentrado (hoje, predominantemente, sob a forma de capital
financeiro). Nesse caso, eles são espoliados (e não explorados) pelo ca-
pital concentrado.
Entretanto, nas condições de hegemonia do capital monopólico, o
que ocorre é a associação dos pequenos e médios capitais com o grande
capital, não se verificando, em geral, conflitos de interesse de maior
monta. Na verdade, a pequena e média burguesia como personas do
capital tornam-se sócios menores de empreendimentos do grande ca-
pital financeiro.
Outro ponto de discussão: a natureza dos ativos tendem a diver-
sificar-se sob as condições do capitalismo global, abrindo um leque de
opções de formas de propriedade de ativos capazes de auferir rendimen-
tos de capital. Por exemplo, podemos discriminar entre ativos produti-
vos, lastreados nas prerrogativas de propriedade de meios de produção
que exploram diretamente a força de trabalho; e ainda, ativos de capital
financeiro, forma “exótica” que dizem respeito a ativos de capital espe-
culativo-parasitário (por exemplo, títulos públicos, ações e moedas),
que auferem rendimentos de natureza especulativa (embora, em últi-
ma instancia, estejam lastreados na produção propriamente dita, etc).
Mas, se sob certas condições de singularidade social, pequenos
e médios capitalistas tendem a se inserirem (como anomalia), em al-
guma medida, na “condição de proletariedade” (pelo menos, incor-
porando alguns atributos existenciais da condição de proletariedade,
como, por exemplo, a vida contigencial e deriva pessoal, etc), sem te-
rem se tornado, é claro, “proletários” propriamente dito; o trabalhado
assalariado, na medida em que se torna trabalhador “autônomo”, isto
é, “patrão de si mesmo”, possuindo “ativos técnico-profissionais”, vistos
como “propriedade de si” a partir do qual auferem um rendimento do
trabalho, tende a inserir-se, em alguma medida, na condição de “ca-
pitalista”, sem tornar-se, é claro, capitalista. Deste modo, obnubila-se,
de forma intensa, sua condição de proletariedade, na medida em que
o trabalhador assalariado “autônomo” (uma contradição em termos),

54
O mundo do trabalho através do cinema

o dito “patrão de si mesmo”, está objetivamente – muitas vezes sem o


saber - subalterno à dinâmica do capital oligopólico, tanto quanto o
pequeno e médio capitalista. Nesse caso, como temos salientado, trata-
se de “situações exóticas” à estrutura de classe propriamente dita, onde
adquire força heurística a dimensão da estratificação social (status,
prestigio ou renda).
O movimento de centralização e concentração do capital tende a
ampliar, em si, tanto a “condição de proletariedade”, quanto a névoa
ideológico-espectral da condição de trabalhadores “capitalistas” como
empreendedores “autônomo” que auferem rendimentos de ativos de
trabalho propriamente dito (vide ideologia do empreendedorismo),
mas que são, na verdade, agentes “autônomos” da subalternidade/sub-
sunção estrutural do trabalho ao capital (a ideologia oculta o traço es-
trutural da subalternidade que marca a “condição de proletariedade”).
Na medida em que o capital amplia e intensifica a “condição de
proletariedade”, as formas de fetichismos sociais impedem - e colocam
obstáculos significativos - à consciência de classe. A luta política de clas-
se é a luta para superar os fetiches como obstáculos sociais. O estudo
das múltiplas formas de fetichismo social torna-se importante na elabo-
ração de estratégias de formação de classe.

A forma-partido e a classe social

A função ontológica da forma-partido (e sindicato) socialista é


formar a classe (no sentido de sujeito histórico coletivo, único agente
social moderno capaz de transformação social na era da modernidade
do capital) no interior da condição proletária universal (o que exige
levar em consideração o complexo de situações concretas de proletarie-
dade). Trata-se de uma necessidade ontológica da formação da classe
conduzida por uma instância/processo político-teleológico “exterior” à
dinâmica da pseudo-concreticidade no qual estão imersos os proletá-
rios como “classe”.

55
O mundo do trabalho através do cinema

Capítulo 1

“O Salário do Mêdo”

Henri-Georges Clouzot
(1953)

A condição de proletariedade emerge com a modernidade do capital,


sendo caracterizada por uma série de traços existenciais que mar-
cam a vida cotidiana das individualidades pessoais de classe. O que é
comum a homens e mulheres submersos na condição de proletariedade
– a “classe” do proletariado - é o vínculo com determinadas situações
históricas de precariedade salarial, que podem assumir, por conta das
circunstancias histórico-politicas da luta de classes, forma extrema ou
forma regulada. Deste modo, um proletário pode estar inserido em for-
mas extremas ou formas reguladas de precariedade salarial (toda rela-
ção social de subalternidade estrutural do trabalho vivo e da força de
trabalho às determinações compositivas do capital – Estado ou merca-
do – na instância da organização do trabalho, é uma relação salarial).
Um largo contingente da “classe” do proletariado no decorrer
do século XX viveu em situações de precariedade salarial extrema. Por
exemplo, mesmo sob o período áureo do capitalismo mundial, nos
EUA pós-II guerra mundial, nas décadas de 1950 e 1960, trabalhado-
res proletários negros e imigrantes não-organizados em sindicatos, vi-
viam à margem do Welfare State. Eles eram trabalhadores assalariados
que pertenciam aos setores não-monopolistas da economia capitalis-
ta, onde era acirrada a concorrência entre proletários que disputavam
um lugar no mercado de trabalho. Nos paises capitalistas periféricos,
como o Brasil, o contingente de trabalhadores proletários imersos em
situações de precariedade salarial extrema – com destaque para os de-
nominados trabalhadores assalariados “informais”, os sem-carteira de

57
Trabalho e Cinema • Volume 3

trabalho - sempre foi maior do que aqueles vinculados às formas regu-


ladas de salariato. A larga “mancha” de pobreza e indigência social que
caracteriza as sociedades burguesas periféricas subsumidas ao impe-
rialismo, expõe, com vigor, formas extremas de precariedade salarial.
Os trabalhadores proletários submersos em situações de preca-
riedade salarial extrema, tendem a serem operários ou empregados
pobres, negros, índios, mestiços ou imigrantes, em geral, não-orga-
nizados em associações ou sindicatos, trabalhadores “autônomos” ou
por conta própria de baixa qualificação profissional, submetidos ao
desemprego crônico ou subemprego recorrente, sem proteção da legis-
lação trabalhista e, muitas vezes, da previdência e seguridade social. Os
proletários “precários” vivem, com intensidade inaudita, a condição de
proletariedade com todos os seus atributos existenciais: subalternidade
às leis do mercado (este ente abstrato que subsume homens e mulheres
ao “destino” das coisas); acaso e contingência; insegurança e descontrole
existencial; incomunicabilidade, deriva pessoal e sofrimento; risco e pe-
riculosidade; invisibilidade social; experimentação e manipulação; pro-
saísmo e desencantamento; e corrosão do caráter.
Portanto, a condição de proletariedade é uma condição histórico-
existencial, que é demarcada historicamente por situações de “regula-
ção salarial” – é o que denominamos de formas de precariedade sala-
rial, onde podemos distinguir a precariedade extrema e a precariedade
regulada. No decorrer da história do capitalismo industrial no século
XX, emergiram várias formas de precariedades salariais (ou modos de
regulação salarial) determinados pela dinâmica da acumulação e a luta
de classes.
Num determinado momento histórico, o conjunto da “classe” do
proletariado, pode estar implicado, de forma diferenciada, em diversas
situações de precariedades salariais, indo, por exemplo, da precarieda-
de extrema, com a condição de proletariedade se explicitando de forma
intensa e ampliada; à precariedade regulada, onde ela está coberta pela
regulação politico-social e os proletários estão organizados em sindi-
catos e associações, possuindo assim, poder de barganha diante dos
capitalistas e do Estado politico.

58
O mundo do trabalho através do cinema

Além disso, sob determinadas circunstâncias da conjuntura, prin-


cipalmente em períodos de crise da economia capitalista, trabalhadores
proletários podem ir de uma situação de precariedade salarial para ou-
tra – isto é, homens e mulheres proletários podem ser vítimas de um
processo de precarização do trabalho propriamente dito, que promove
um “empobrecimento relativo” de amplos contingentes da “classe” do
proletariado. Nesse caso, por exemplo, operários e empregados têm suas
condições de trabalho degradadas ou perdem benefícios salariais; ou
ainda tornam-se desempregados, obrigados a se inserirem em empregos
precários ou empreitadas de risco. Deste modo, os atributos existenciais
da proletariedade, antes meramente implícitos e sob controle relativo,
tornam-se, com vigor, intensamente explícitos e marcantes.

Precariedade Extrema Precariedade Regulada

Situações de Precariedade Salarial

Condições de Proletariedade

Na verdade, a insegurança é um dos traços sócio-ontológico da


condição de proletariedade, atingindo em maior ou menor proporção,
o conjunto da “classe” do proletariado. É por ser um traço sócio-on-
tológico da condição do homem que trabalho sob o modo de produ-
ção capitalista, que a insegurança estrutural tende a caracterizar toda
relação salarial. Ora, todo trabalho assalariado – inclusive no sentido
amplo da acepção – é, a rigor, trabalho precário, no sentido de estar
sob o signo da insegurança (e subalternidade) estrutural que marca a
relação capital-trabalho.
No filme “O Salário do Medo”, de Henri-Georges Clouzot, basea-
do no romance homônimo de Georges Arnaud, temos elementos para
refletir sobre a condição de proletariedade sob a forma da precariedade
salarial extrema.

59
Trabalho e Cinema • Volume 3

A forma extrema da precariedade salarial exposta no filme – pro-


letários desempregados obrigados a assumirem empreitadas de risco -
propicia a intensa visibilidade dos atributos existenciais da condição da
proletariedade. Ela contribui para uma reflexão crítica sobre elementos
sócio-ontológicos da proletariedade moderna que perpassam, em maior
ou menor proporção, o conjunto dos trabalhadores assalariados.
De certo modo, todos nós somos, em maior ou menos proporção,
os “estrangeiros” do filme de Henri-Georges Clouzot (Mario, Jo, Bimba
e Luigi). Há um lastro de identidade entre nós e eles, obrigados, pelas
circunstâncias da contingencia de proletariedade, a conduzirem cami-
nhões carregados de nitroglicerina pelas estradas precárias do interior
da Guatemala. Talvez o mundo capitalista hoje, mais do que nunca, seja
uma imensa Las Piedras. Deste modo, o filme de Clouzot (e o romance
de Arnaud) contém uma candente metáfora da condição de proletarie-
dade que iremos explorar neste texto.
Num país miserável da América Central (Guatemala), quatro ho-
mens – Mario, Jo, Bimba e Luigi - são selecionados para transportar,
por uma estrada de difícil acesso, uma imensa carga de explosivos (200
galões de nitroglicerina) destinada a extinguir um incêndio num poço
de petróleo da SOC (Southern Oil Company). O filme “Salário do Medo”
é um thriller de suspense de Henri-Georges Clouzout, produzido em
1953 e baseado no romance homônimo de Georges Arnaud (Clouzot
fez a adaptação e os diálogos do filme).
Num primeiro momento, Clouzot nos apresenta Las Piedras, pe-
quena cidade do interior da Guatemala, degradada pela miséria e com-
pleto abandono, cuja única atividade produtiva é estar próximo da ex-
ploração de petróleo da SOC, a companhia petrolífera norte-americana
(é em Las Piedras que se encontra a sede regional da SOC). Nas primei-
ras cenas do filme, vislumbramos ruas esburacadas, sem pavimenta-
ção, cheias de poças d’água estagnada, com vira-latas transitando com
indolência. É perceptível uma série de atividades de trabalho precário,
exercidos por conta própria, meras estratégias de sobrevivência de ho-
mens e mulheres miseráveis. O calor, desemprego, subemprego e misé-
ria, assolam a pequena cidade imaginária de Clouzot e Arnaud.

60
O mundo do trabalho através do cinema

Na abertura do filme, Clouzot expõe a síntese cruel daquele ce-


nário urbano degradado onde irá se desenrolar o thriller em seus pri-
meiros momentos: uma criança nativa brinca com insetos numa poça
de lama. Ao abrir o filme com a cena da criança brincando com insetos
numa poça de lama, Clouzot traduz, numa imagem, o drama existen-
cial de O Salário do Medo. Trata-se, nesse caso, da metáfora da barbá-
rie social que assume dimensões catastróficas nos países capitalistas
empobrecidos pelo imperialismo (o recurso metafórico da barbárie
humana, em sua forma primordial, foi utilizado também, por exem-
plo, nas primeiras cenas do filme “Meu ódio será sua herança”, de Sam
Peckinpah, de 1969, em que crianças assistem com satisfação um es-
corpião ser devorado por formigas do deserto).
O thriller do filme O Salário do Mêdo passa-se num cenário de
“subdesenvolvimento” perverso, típica “República das Bananas”, quin-
tal do imperialismo yankee. Em Las Piedras, ao lado de transeuntes mi-
seráveis, vê-se alguém pedindo esmolas. Uma mulher carrega uma lata
d’água na cabeça, acusando a falta de saneamento básico. Uma senhora
idosa vende algum petisco num carrinho. Aos seus pés, um vira-lata
atento ao que se passa. É o cenário pleno da exceção da modernização
capitalista nas condições do capitalismo perif ’érico. Na verdadem é sob
o cenário do “subdesenvolvimento” capitalista – onde se explicita com
candente intensidade a condição de proletariedade - que se desenrola o
drama existencial de homens estranhados imerso num thriller de medo
e de angústia.
As primeiras imagens do filme O Salário do Medo expõem a agu-
da precariedade das condições de vida social no lugarejo do interior da
Guatemala. Tal impressão de miséria humana está com vigor no ro-
mance de Georges Arnaud que, como epígrafe diz-nos: “”Não queiram
encontrar neste livro aquela exatidão geográfica que não passa de um
logro: a Guatemala, por exemplo, não existe. Eu sei-o, vivi lá.” Talvez
Clouzot, ao utilizar o best-seller de Arnoud, quisesse elaborar uma me-
táfora sobre a condição humana (existe certo clima existencialista no
thriller de Clouzot), ou ainda, apresentar para as sociedades européias

61
Trabalho e Cinema • Volume 3

do centro capitalista, o lado oculto da civilização do capital (estamos


em 1953 e o Terceiro Mundo ainda era um Outro Mundo).
Mas, a presença de uma multinacional do Petróleo (a SOC - Sou-
thern Oil Company) expõe o caráter moderno da miséria de Las Pedras
(Mario, um dos personagens do filme, irá dizer: “Onde tem petróleo,
tem americanos”). Na verdade, o Terceiro Mundo é parte compositiva
de um mundo só – o mundo do capital. A S.O.C extrai petróleo bruto,
que alimenta a máquina fordista do centro capitalista. De certo modo,
o filme trata do modelo energético que irá caracterizar o capitalismo
histórico do século XX. A exploração do petróleo moveu os interesses
imperialistas no século passado. Portanto, a verdade da precariedade
social de Las Piedras está na exploração imperialista do “ouro negro”.
As múltiplas dimensões da precariedade social de Las Piedras é expres-
são candente da lógica de exploração e espoliação exercida pelos países
capitalistas imperialistas sobre o Terceiro Mundo.
Assim, num primeiro momento, é importante salientar que a me-
diação concreta do estranhamento social extremo que marca a pobreza
dos países capitalistas periféricos do Terceiro Mundo – como é o caso
da Guatemala, exposta no fime “O Salário do Mêdo”, é o imperialismo
moderno. Em última instância, esta é a categoria social pressuposta na
trama narrativa do filme de Clouzot. É o imperialismo moderno que
aparece – nas entrelinhas do filme - como causalidade estrutural do
cenário miserável de Las Piedras e elemento de circunstância do “desti-
no trágico” dos anti-heróis do filme (Mario, Jo, Bimba e Luigi).
Iremos caracterizar o imperialismo moderno como sendo uma
forma histórica de expropriação sistêmica do modo de produção capi-
talista em sua dimensão sócio-territorial, opera no plano das relações
econômicas, culturais e politicas internacionais de dominação e poder
do capital entre países do mercado mundial. O imperialismo moderno
emerge nas condições históricas do capitalismo monopolista na virada
do século XIX para o século XX, marcando o largo desenvolvimento do
sistema do capital no século XX.
A expropriação (e espoliação) sistêmica instaurada pelo impe-
rialismo moderno no plano das relações internacionais, ocorre prin-

62
O mundo do trabalho através do cinema

cipalmente – embora não exclusivamente - no plano da extração de


riquezas, subutilizando a força de trabalho local, embora haja, ao mes-
mo tempo, superexploração da força de trabalho e espoliação de suas
condições de vida local (expropriação primordial como ocupação de
terras e expulsão de pequenos produtores).
O imperialismo moderno é um traço estrutural do sistema mun-
dial do capital no século XX, estruturando relações de expropriação
sistêmica e constituindo as formas de ser do mundo burguês. Por isso,
não deixa de ser sintomático que o filme “O Salário do Mêdo”, de Henri-
Georges Arnoud, tenha como elemento categorial de fundo, a categoria
de imperialismo moderno que – indiretamente – organiza o cenário da
proletariedade extrema (ao colocar a indústria petrolífera como peça
fundamental da logística narrativa, Clouzot e Arnaud expõem o traço
indelével dos interesses imperialistas: o domínio dos recursos energé-
ticos fundamentais para a alimentar a máquina capitalista).
O imperialismo moderno nos países capitalistas do Terceiro
Mundo dá origem a formas específicas da proletariedade moderna, mar-
cadas com vigor – no caso de países pobres do Terceiro Mundo - pela
precariedade social em sua dimensão extrema. A lógica social do impe-
rialismo moderno organiza uma nova forma de ser do proletariado no
Terceiro Mundo. O movimento do capital imperialista, cria o mundo
do trabalho à sua imagem e semelhança. Nesse caso, no filme, consti-
tui-se a condição de proletariedade de nativos e estrangeiros (em “Salá-
rio do Mêdo”, por exemplo, é perceptível a superexploração da força de
trabalho de parte de nativos locais – inclusive aborígenes, operários da
SOC; e a marginalização extrema do resto da população nativa (com os
aborígene alienados de suas terras e vivendo em condições extremas de
miséria); além de um pequeno núcleo de estrangeiros em Las Piedras,
excluídos de direitos políticos e sociais.
Na verdade, é sob as condições específicas do imperialismo mo-
derno que se manifestam, com vigor, a natureza intrínseca da ordem
sócio-metabólica do capital, expondo-se – no plano sócio-territorial –
seus traços essenciais de desefetivação humano-genérica (por exemplo,

63
Trabalho e Cinema • Volume 3

a fome, espectro que persegue a população miserável de Las Piedras, é


sua expressão máxima).
O filme “O Salário do Mêdo”explicita a territorialização da pre-
cariedade salarial (e social) constituída pelo capital imperialista nas
bordas periféricas do sistema mundial. Ora, no filme de Clouzot, a di-
mensão territorial assume uma dimensão essencial. “Salário do Medo”
é um filme geográfico. Os homens proletários do filme não são apenas
meras “carcaças do tempo” – pois para Marx, no sistema do capital, o
tempo é tudo; mas os proletários de Las Piedras são também carcaças
do “espaço cativo” do capital. De fato, Las Piedras é quase um “presi-
dio”, onde homens sem capacidade aquisitiva estão irremediavelmente
reclusos no espaço-tempo da miséria social. A frase “Não se parte sem
dinheiro”, dita por Mário, expressa a verdade lancinante de O Salário de
Medo. Aliás, a utopia pessoal dos personagens estrangeiros enterrados
em Las Piedras, “buraco sórdido e pestilento”, é voltar para o país de
origem É, por exemplo, o que sonha Mário, proletário francês (inter-
pretado por Yves Montand), que guarda em seus pertences, um bilhete
do Metro de Paris (Mario se interroga: “Por que teimamos em ficar?”).
Ele divide um quarto com Luigi, italiano de origem, pedreiro conde-
nado pelo medico por ter cimento nos pulmões e que, como os outros,
sonha sair de Las Piedras (um detalhe: os personagens centrais de “O
Salário do Medo” não aparecem com seus sobrenomes, o que sugere o
desenraizamento total).
A imagem candente de Las Piedras (na Guatemala), com suas
ruas sem pavimentação, esburacadas, insalubres e ainda, homens e
mulheres submetidos a trabalhos precários, crianças desnudadas pela
miséria crônica que abate as populações pobres do lugarejo é a síntese
concreta do mundo social periférico da ordem burguesa imperialista.
Mas as situações de miserabilidade e pobreza social ocultam seu con-
teúdo histórico candente: manifestações derivadas da ordem social do
capital, baseada no trabalho estranhado, sob o signo do imperialismo
moderno.

64
O mundo do trabalho através do cinema

Dimensões sócio-territoriais da Proletariedade Moderna


Imperialismo Moderno

Condição de proletariedade

Modernidade do capital

O filme de Clouzot expõe uma das determinações reflexivas da


modernidade do capital no século XX: pobreza e imperialismo moder-
no. A pobreza de Las Piedras, a sua extrema miséria social, se contrasta,
como traço antípoda, com sua riqueza bruta expressa na extração do
“ouro negro” do século XX, o Petróleo. É ele que move a máquina ca-
pitalista mundial baseada no modo de vida fordista. Portanto, ao lado
das condições miseráveis da população pobre de Las Piedras, com sua
extrema proletariedade, temos a grande empresa moderna – a S.O.C.,
que explora o Petróleo. Um dos traços candentes do capitalismo, a or-
dem social do trabalho estranhado, é a percepção dialética de que, sob
o capitalismo, riqueza é pobreza (como diria Marx).
Portanto, a primeira percepção critico-analítica do filme coloca o
imperialismo moderno – forma de ser do capitalismo mundial em sua
etapa monopolista - como sendo a mediação concreta que explica a mi-
séria social dos povos de Lãs Piedras. É o imperialismo moderno, como
produto do capital que se mundializa, transtornando o entorno social
de populações nativas, explorando recursos naturais e degradando as
condições de vida de homens e mulheres das localidades coloniais, que
explica – em última instância - a extrema proletariedade de homens e
mulheres em Las Piedras.
No filme de Clouzot, este elo mediativo-concreto – a situação de
dependência imperialista - aparece com vigor na construção da situa-
ção existencial dos “anti-heróis” de Las Piedras, os proletários estran-

65
Trabalho e Cinema • Volume 3

geiros contratados para transportar o carregamento de nitroglicerina. É


curioso que o filme “O Salário do Mêdo” é um filme histórico-mundial
– ele contém falas nos idiomas francês, espanhol e inglês. Naquele pe-
queno mundo de Las Pedras está contido o imenso mundo do capita-
lismo mundial em sua fase imperialista.
O que se coloca, num primeiro plano, em “O Salário do Medo”, é a
condição de proletariedade que emerge da ordem capitalista dependente
constituída pelo imperialismo na Guatemala. Talvez nestas condições só-
cio-históricas específicas da dependência imperialista no Terceiro Mun-
do, explicite-se, em cores vivas, a condição de proletariedade com seus
traços universais-concretos. É o que nos interessa salientar.
Clouzot (e Arnoud) nos expõe com vigor traços humanos sub-
sumidos à ordem estranhada do capital nas franjas do capitalismo im-
perialista. Trata-se da proletariedade neocolonial das Américas. É por
isso que o filme remete, num primeiro momento, em seus interstícios
narrativos, à questão indígena. Os aborígines estão presentes, embora
quase ocultos. Mas são perceptíveis cenas de indígenas miserabiliza-
dos pela nova ordem capitalista dependente. A presença de indígenas
nativos é marcante em algumas cenas de “O Salário do Medo”. A S.O.C
não apenas espoliou suas terras (a expropriação primordial que marca
a dita “acumulação primitiva”), mas explora sistematicamente a força
de trabalho dos indígenas.
É claro que há resistências sociais em Las Piedras à exploração da
força de trabalho nativa pela grande empresa capitalista estrangeira. É
importante lembrar que o romance (e filme) “O Salario do Medo”, surge
no contexto histórico-mundial da emergência no mundo capitalista pe-
riférico, dos movimentos nacionais de libertação nacional e lutas pela
descolonização do dito “Terceiro Mundo”. Com a explosão no campo 6
da empresa petrolífera, com 13 vítimas, há um clima de agitação popu-
lar na pequena localidade. O sindicato de operários da S.O.C combate
a superexploração do trabalho. Por isso a grande empresa é obrigada
a recorrer a força de trabalho precária, os “vagabundos”, proletários
desempregados estrangeiros, não-organizados em sindicato, para exe-
cutar a empreitada de risco. Diz um dos gerentes da S.O.C.: “...eles não

66
O mundo do trabalho através do cinema

têm sindicato. Nem família. Se voarem pelos ares, ninguém virá. Eles
aceitam dinheiro, qualquer dinheiro. Mas é arriscado. Temos que atrai-
lo com uma boa oferta. Vamos pagar por isso.”
A explosão nos poços de petróleo no campo 6 da S.O.C, ocasionou
a morte de 13 trabalhadores nativos, todos de Las Piedras. O sindica-
to local, liderado por uma mulher, faz uma manifestação na sede da
empresa. É o momento em que se explicita a revolta operária contra a
superexploração do trabalho conduzida pela S.O.C. O trágico acidente
desvelou as condições de periculosidade e risco de trabalho dos prole-
tários da grande empresa petrolífera. Diz ela: “Eles primeiro disseram
que era para nos enriquecer. Não! Para nos transformar em miseráveis.
Para mandar nossos rapazes para a morte”. Ora, as condições de misé-
ria social em Las Piedras favorece a manipulação capitalista. Prometem
enriquecimento. Produz-se miseráveis – de corpo e mente.
E a sindicalista prossegue dizendo: “E ontem a catástrofe aconteceu.
Não é justo ter que sofrermos. Estamos morrendo. Os gringos, estes não
morrem. Matam seus pais e irmãos. Dá-lhes dinheiro e pronto!”. Uma
voz na multidão concorda com a agitadora: “É verdade! Mataram meu ir-
mão. E meu marido também. Francisco perdeu a perna na máquina. Mas
lhe pagaram. Ele recebeu quase nada.” No romance de Georges Arnaud,
a idéia da máquina imperialista que explora o trabalho vivo dos nativos,
é deveras marcante. Diz-nos ele: “O suor, por vezes, o sangue desses ho-
mens, são necessários para o bom andamento da máquina. Toda a noite
a sofrer calor e sono para esperar um novo dia.”
Mas, além da proletariedade indígena, marcada pela pobreza e
indigência social, o filme remete também à questão do proletário imi-
grante – o trabalhador desempregado “estrangeiro” explorado ou deso-
cupado. É a proletariedade estrangeira, onde o proletário imigrante vive
não apenas a sina da exploração ou deriva salarial, mas um sentimen-
to de estranhamento peculiar: o sentimento de desterro. São homens
proletários com nostalgia de sua terra natal; proletários desenraizados
condenados à despossessão radical: estão alienados não apenas dos
meios de produção da sua vida social, mas das condições orgânicas de
sua identidade humano-pessoal (por exemplo, não têm família). No

67
Trabalho e Cinema • Volume 3

filme “O Salário do Medo”, ocorre uma inversão curiosa: os proletários


“estrangeiros” explorados de Las Piedras são homens oriundos dos pai-
ses capitalistas imperialistas.
Ora, no cenário social degradado de Las Piedras, vive um con-
tingente de homens de vários países, homens perdidos, submersos em
deriva existencial, reclusos da socialidade mercantil. São proletários
desterrados, cada um com sua história de vida marcada pela busca do
Eldorado. Talvez sejam proletários aventureiros que migram para as
fronteiras da civilização do capital. São personas do fracasso e fugitivos
do velho mundo destroçado pela Segunda Guerra Mundial. São prole-
tários ilustrados condenados à deriva existencial distante de sua terra
natal. O lugarejo de Las Piedras é que se fosse seu presídio, onde a falta
de dinheiro aparecem como suas grades. Por isso são “ sujeitos mone-
tários sem dinheiro”, presos na “gaiola de ferro” da desaquisitividade
monetária. Na ordem das mercadorias, a falta de dinheiro – ou renda
– é estar condenado à plena desefetivação humano-genérica. Não se
tem acesso à satisfação das necessidades necessárias, muito menos à
satisfação dos carecimentos radicais. Tornam-se meras sombras de si
mesmo. Os proletários estrangeiros desempregados se distinguem dos
supostos cidadãos do país (os nativos indígenas), por não terem ne-
nhum direito trabalhista. Mário, Jo, Bimba e Luigi são os proletários
estrangeiros que irão transportar a imensa carga de explosivos. Eles
serão personagens principais em O Salário do Mêdo.
O drama existencial do thriller de Clouzot não apenas quer expor o
lado oculto da civilização do capital, isto é, as mazelas sociais do Terceiro
Mundo, mas o inferno existencial de homens estranhados, verdadeiros
easy riders do Primeiro Mundo. Encontramos em Las Piedras, franceses,
italianos e holandeses perdidos na miséria degradante da pequena loca-
lidade guatemalteca. Mais uma vez, apelamos para o romance de Arnaud
que nos diz sobre os estrangeiros em Las Piedras: “...corridos de todos os
países vizinhos, inibidos pelo seu passado, enterrados num buraco sórdi-
do e pestilento, onde lhes era impossível viver e que não podiam deixar
senão para ir muito longe: o México, o Chile.” E Arnaud prossegue, des-
crevendo o que Clouzot expôs em imagens: “Dinheiro não havia. Pouco

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O mundo do trabalho através do cinema

a pouco, a anemia perniciosa roia-os, comia-lhes os glóbulos vermelhos;


a desinteria, as tripas; as febres e a melancolia, com o seu cortejo de dro-
gas e cópulas, roia-lhes o cérebro. Sem trabalho, sem dinheiro, esperavam,
procurando uma improvável porta de saída. A escolha era para eles bem
simples: partir ou rebentar. Não podiam partir e recusavam-se terminan-
temente a rebentar.” (o grifo é nosso) E Arnaud prossegue, descrevendo
o drama existencial-limite de homens estranhados: “As mãos crispadas,
os dentes cerrados mediam com raiva o tamanho da ratoeira der homens
em que haviam caído: ‘Não se toma o avião sem dinheiro. Não há di-
nheiro sem trabalho. Não há trabalho. Não se toma avião sem dinheiro...
Apenas um homem se agüenta de pé, esgotado, sem coragem nem san-
gue. Não se assaltam os cofres de uma companhia americana, quando os
guardam uma patrulha de homens valentes, criados expressamente para
serem capazes de matar um homem com um soco...Não se parte sem
dinheiro.” (o grifo é nosso)
Há um preconceito local contra os proletários “estrangeiros”
miseráveis. Não é um preconceito étnico, mas sim um preconceito eco-
nômico. Como os proletários estrangeiros desempregados não têm
capacidade aquisitiva, e portanto, status e prestígio social; eles vivem
à margem e são marginalizados da vida local. Poucos têm acesso aos
empregos escassos (só os eleitores têm acesso aos empregos registrados
em Las Piedras, o que demonstra que há uma relação promiscua entre
“mercado de trabalho” e “clientelismo política”). Num certo momento,
um dos estrangeiros proletários chegou a observar: “Nunca pensei que
imploraria por emprego”.
Paquito Hernandez, cidadão local, dono do bar “Corsário Negro”,
onde se aglomeram os proletários “estrangeiros” do filme, explicita em
sua fala, a carga de preconceito contra os proletários estrangeiros de-
sempregados. Diz ele em certo momento: “Vocês são preguiçosos”. Ou
ainda: “Só servem para vagabundear”. Em certos momentos, ao expulsa
os estrangeiros desempregados do bar, chega a ameaçar com a chama-
da da policia local: “Desapareçam ou chamo a polícia”, ou ainda, “saia
daqui, seu maldito!”; “você é um vagabundo”; “a imigração vai verificar
você”; e “onde está aquele preguiçoso?”. Enfim, as alcunhas de “bando

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Trabalho e Cinema • Volume 3

de vagabundos” e “preguiçoso” explicitam a carga ideológica contra os


proletários marginalizados pela ordem social burguesa.
Ora, Paquito Hernandez é a representação do canalha colonizado,
comerciante nativo que venera os endinheirados, seja ele, cidadão local
ou estrangeiro. Por exemplo, ao chegar no bar “Corsário Negro”, de taxi,
o ex-mafioso M. (lê-se Mister) Jo, francês bem vestido, aparentemente
endinheirado, é bem-recepcionado por Hernandez (um dado curioso:
o nome do taxi que conduz M. Jo até o “Corsário Negro” denomina-se,
por ironia, “Napoleon Buenaventura”).
É Mário – interpretado por Yves Montand – que recepciona M. Jo
e apresenta para ele a realidade social de Las Piedras. Hernandez, dono
do Corsário Negro, os acusa de “bandos de vagabundos”. Mas, Mário
contesta a imputação de “vagabundos” a homens proletários que não
têm sequer a oportunidade de terem um emprego decente: ora, como
são vagabundos, se não nos oferecem sequer oportunidade de traba-
lho?. Diz Mário sobre Las Piedras e a sina dos proletários estrangeiros
desempregados: ““Não temos trabalho aqui. Só uma coisa ou outra. Só
o bastante para comer e beber.” M. Jo pergunta a seguir: “Por que não
vai embora?”. Mário responde: “Iria se pudesse. O problema é que isto
dá trabalho.” M.Jo assevera: “Algum trem?”. Mário: “Não”. M. Jo: “Es-
tradas?”. Mário: “Acabam na refinaria” (ora, a vida social da pequena
localidade de Las Piedras gira em torno da grande empresa petrolífera
– todas as estradas acabam sempre na refinaria de petróleo da S.O.C). E
Mário observa: “A passagem é cara. Caracas é perto. E depois é quente.
Ir longe custa 300 dólares. Aqui não temos trabalho. Começaram aque-
le prédio há uns dois anos. Mas desistiram. Tem sol.” E arremata: “Aqui
é como uma prisão. Fácil de entrar. Mas não de sair. Morre se entrar”.
Na verdade, o que se percebe é que a sina dos proletários de-
sempregados é serem prisioneiros de seu território precarizado. Como
homens proletários sem capacidade aquisitiva, têm “pés-de-chumbo”,
sendo reclusos de um espaço-tempo cativo do capital. Em “Salário do
Medo”, os proletários desempregados, miseráveis à beira da fome, estão
reclusos no espaço-tempo da proletariedade extrema. São individuali-
dade monetárias sem dinheiro, condenados à perpétua deriva existen-

70
O mundo do trabalho através do cinema

cial (Bernardo, um dos proletários desempregados, possui o visto para


entrar nos Estados Unidos, mas não tem dinheiro para a passagem. Diz
ele: ““Cem dólares salvariam minha vida”. Mais tarde, imerso na deriva
pessoal, sem saída, cometeria suicídio). Embora não tenham intenção
de ficar, ficam por mera inércia de sua existência alienada que os pren-
de ao território estranhado.
Ao passar um enterro, Mário observa para M. Jo: “Aqui está a pro-
va. Ele não pôde agüentar Tudo por causa da febre. Não são só os mos-
quitos. São aranhas, também. E tem os insetos. Você fica com manchas
nos pulsos. Mas tudo isso é nada. Há uma doença crônica A fome. É ela
quem mata a maioria de nós”.
Ao observar que os americanos têm cemitério próprio, Mário de-
monstra que a desigualdade social imprime sua marca na organização
da morte. Na verdade, os americanos ligados a S.O.C têm seu próprio
habitat urbano – casas, uma cantina, cemitério - “Tudo pré-fabricado”,
observa Mário. M. Jo, ex-mafioso francês, surpreende-se com a pre-
sença de americanos em Las Piedras. É nesse momento que Mário diz:
“Onde tem petróleo, tem americanos.”
Como salientamos, “Salário do Mêdo” é um filme de territórios cati-
vos, com homens proletários condenados ao não-lugar do território estra-
nhado. Para eles, Las Piedras pode ser uma cidade ou um presidio. Mário,
um dos estrangeiros, guarda, como um souvenir saudoso, o bilhete do Me-
tro de Paris, que, um dia, o conduziu ao porto. “Meu último bilhete. Levou-
me até o trem, ao navio e aqui estou. E aqui estou. Este custava um franco.
Agora custa mil dólares para voltar. Os preços subiram”.
A condição de proletariedade extrema é marcada por espaços
desterritorializados e territorializações estranhadas. O metabolismo
do capital reordena espaço-tempos que delimitam trajetos sociais das
individualidades de classe. Os dramas pessoais de proletários desem-
pregados, imersos em sua deriva pessoal, aproximam-se das narrativas
de reclusos perpétuos (como no filme “Pappilon”). É interessante que,
no filme “Segunda-feira ao sol”, de Fernando Leon de Aranoa (Espa-
nha, 2000), operários metalúrgicos desempregados, num momento de
descontração, cantam num barzinho com karaokê, a música “Volare”

71
Trabalho e Cinema • Volume 3

(voar). Eis o sonho das individualidades de classe desefetivadas em sua


capacidade humano-generica de deslocar-se no espaço-tempo social.
Um dos personagens centrais do filme “Salário do Medo” - M. Jo,
(interpretado por Charles Vanel, prêmio de melhor ator no Festival de
Cannes em 1953), é um ex-gangster francês, velho amigo do americano
O’Brien, diretor-geral da SOC em Las Piedras. Talvez esteja fugindo da
França (diz em certo momento: “Tive que ir às pressas ao Aeroporto.
Comprei um bilhete de 50 doláres”). M. Jo chega a Las Piedras no Ae-
roporto de San Miguel, obtendo visto de turista.
É curioso a relação entre o francês M. Jo e o norte-americano
O’Brien – um representa a face decadente do velho colonialismo francês; e
o outro, a face emergente do novo imperialismo norte-americano.
Enquanto o mafioso M. Jo se insere no sistema de dominação e
poder do capital, utilizando-se de meios escusos de coerção e violência,
ao velho estilo colonial, o gerente da S.O.C. O’Brien, empregado do alto
escalão da grande empresa moderna, adota sempre – com cuidado -
procedimentos burocráticos (O’Brien diz para M. Jo: “Não fique abor-
recido comigo. Agora sou o chefão. Somos amigos, mas na frente dos
outros seja educado. Chame-me de ‘Senhor’. Entendeu?”). Por exemplo,
ao ser chantageado por M. Jo, que, visando extorquir dinheiro do velho
amigo, ameaça explodir as tubulações de gás da S.O.C., O’Brien apenas
alerta que os guardas de segurança da empresa estão atentos e agem
com crueldade. Ao reclamar a O’Brien por não ter conseguido a vaga na
empreitada de transportar a nitroglicerina com caminhões, o gerente
da S.O.C observa que ele – Jo - não tem mais idade para isso, mas caso
alguém desista, pode ocupar a vaga.
M. Jo, o velho gangster, explicita um sentimento de racismo de
cariz colonialista. Ele busca se distinguir dos demais proletários estran-
geiros desempregados – ele se impõe com seu terno branco e postura
autoritária. Embora esteja sob a mesma condição de proletariedade dos
estrangeiros desempregados, M. Jo – que se torna amigo de Mário –
procura se impor sobre os demais, nutrindo preconceitos contra a sina
miserável de homens proletários que estão na mesma condição que ele
- “sujeitos monetários sem dinheiro”.

72
O mundo do trabalho através do cinema

Por exemplo, ao ser abordado pelo jovem Bernardo, que lhe pede
ajuda em dinheiro para comprar passagem para os EUA, M. Jo assevera:
“Suma daqui! Você é uma peste”. A personalidade autoritária – como o
fascista – constrói seus preconceitos íntimos com a matéria-prima de
seus medos interiores. M. Jo repugna em Bernardo o que ele sabe que
é, no seu próprio íntimo: um homem proletário fracassado, sem capa-
cidade aquisitiva, uma “peste” no mundo social do capital.
Como velho colonialista, M. Jo cultiva também preconceitos con-
tra os proletários nativos pobres. Em seu íntimo, sente repugnância
com a pobreza. É marcante a cena de recepção que crianças miseráveis
pedintes dão a M. Jo, logo que ele chega a Las Piedras. É nesse momen-
to que ele conhece Mário.
M. Jo observa, no bar “Corsário Negro”, com respeito aos pobres
nativos: “Multiplicam-se como coelhos”. M. Jo leva a supor que seja a
idiossincrasia reprodutiva que explicaria a condição de miséria dos na-
tivos. Na verdade, o velho mafioso decadente carrega em sua alma colo-
nialista, o medo da multidão de pobres miseráveis que rondam como um
espectro a ordem burguesa. Em Las Piedras, a presença dos excluídos é
candente, ocupando o cotidiano dos estrangeiros desempregados.
Aos poucos, compõe-se o perfil autocrático do velho gangster M.
Jo, que rejeita ouvir também as músicas nativas (observe-se, por exem-
plo, a cena em que M. Jo desliga o rádio do “Corsário Negro” que tocava
uma rumba guatemalteca). M. Jo possui também traços de misogenia,
dizendo a Mário (assediado por Linda, jovem empregada do Corsário
Negro): “Mulheres são perda de tempo” (é interessante que, logo a se-
guir, quase como um castigo, um jeep da S.O.C, ao passar por uma poça
d’água, espirra lama em M. Jo, manchando seu distinto terno branco).
Num primeiro momento, M. Jo aparece como o ex-gangster
autocrático, que se impõe sobre o grupo local de proletários estran-
geiros desempregados com gestos de preconceito e protagonismo.
No bar “Corsário Negro” – como salientamos - impede a audição de
músicas nativas e ameaça Luigi com arma de fogo. Diz: “Ter arma
de fogo não é o bastante. Tem que ter coragem” (Luigi retruca: “Não
sou assassino”). Ainda como homem de coragem, M. Jo – que irá di-

73
Trabalho e Cinema • Volume 3

vidir com Mário, a direção do caminhão carregado de nitroglicerina


– procura incentivar o amigo, tirando-lhe o medo. Diz ele: “Não se
preocupe. Estarei com você”.
Como no velho estilo colonialista, M. Jo, ex-gangster francês,
impõe-se pela força das armas de fogo, coagindo adversários através
do cultivo do medo em sua forma concreta, o medo pessoal inscrito na
pessoa do chefão. Ele é a pura representação da velha ordem colonialis-
ta que, após a Segunda Guerra Mundial, iria se decompor (a França em
1953 ainda possui colônias na Indochina). Esta velha ordem colonialis-
ta iria dar lugar à nova ordem imperialista – o imperialismo moderno
– sob a égide dos Estados Unidos da América. Na verdade, altera-se a
forma de coação sistêmica da nova ordem do capital que surge sob o
imperialismo moderno.
Logo adiante, iremos verificar que o homem de coragem, que se
impôs sobre os companheiros de proletariedade no “Corsário Negro”, é
um homem dominado pelo medo – um tipo de medo o apavora: o medo
difuso e abstrato, medo tão impessoal quanto a natureza do mercado.
Na verdade, a odisséia de risco transtorna M. Jo, transformando-o num
covarde. Mário irá exclamar: “Um Al Capone de tipo acovardado”; e
Luigi irá dizer, “Valentão de meia-tigela”.
O transporte de nitroglicerina pelas precárias estradas do interior
da Guatemala inscreve no imaginário de M. Jo, um outro tipo de medo.
Não é o medo concreto que ele conhece, medo da imposição pessoal
do chefe que se utiliza da arma de fogo e coragem para coagir adver-
sários. O medo que M. Jo irá experimentar na empreitada de risco do
carregamento de nitroglicerina é o medo abstrato da pura extinção que
pode chegar a qualquer momento, sem deixar rastro; medo da morte
insólita, sem face distinguível Este é o medo abstrato que permeia o
mundo social do imperialismo moderno e da sociedade burguesa de
riscos, onde o que se impõe como mecanismo coercitivo das individu-
alidades de classe é o mercado com sua lógica da contingencia, acaso e
risco. O velho M. Jo pertence a outra configuração sócio-metabólica do
poder do capital. Por isso ele estranha – e se transtorna – com as novas
condições de risco.

74
O mundo do trabalho através do cinema

Ora, o escritor Georges Arnaud – e Henri-Georges Clouzot, no


filme “O Salário do Mêdo” - irá sugerir uma verdadeira fenomenologia
do medo . É interessante esta passagem do romance de Arnaud. Diz ele:
“E que cor tem o medo? Com certeza nem sempre é azul? Branco? Cin-
zento? Mesclado de rosa e verde? O medo é um líquido incolor, inodoro
e insípido.” E mais adiante irá dizer: “O medo. O medo está presente,
maciço e estúpido e não se esconde. Fogo no rabo e não se pode correr.”
E Arnaud prossegue dizendo: “A coragem está em continuar, quando
se começa a ter consciência. Aí está a diferença entre os dois homens.”
Arnaud faz referência a Mário e Jo. Desde que o caminhão de explosi-
vos sai de Las Piedras, Jo, o tipo chefão mafioso, entra num clima de
pavor e medo.
Ora, como salientamos acima, há medos e medos. Há medos con-
cretos e medos abstratos. Cada ordem social destila seu próprio medo.
Há o medo antigo e o medo moderno. Há o medo destilado pela ordem
social do estranhamento e o medo social destilado pela ordem social do
fetichismo. O que Clouzot (e Arnaud) nos sugere é que existem diferen-
ças cruciais entre o medo de Jo e o medo de Mário.
A empreitada de risco no filme “O Salário do Medo” - dirigir ca-
minhões carregado com nitroglicerina em estradas esburacadas – des-
tila no espírito humano um tipo preciso de medo. É o que podemos
considerar como sendo o medo moderno, o medo que emerge com a
nova ordem de mercado, esta entidade abstrata, sem face distinguível
mas que conduz irrmediavelmente – como as estradas esburacadas no
interior da Guatemala - o “destino” das individualidades de classe.
Como nos disse Arnaud, nesse caso, “o medo é um líquido in-
color, inodoro e insípido.” Ou ainda: “O medo está presente, maciço e
estúpido e não se esconde. Fogo no rabo e não se pode correr.” É o medo
que Mário conseguiu enfrentar com coragem. O medo de Mário, nos
disse o escritor francês em seu romance, é “um medo em tudo nada
racionado, um medo preciso que deixa ao espírito todo o seu poder,
toda a sua vivacidade para fugir às ratoeiras.” Mário – ao contrário de
Jo – conseguiu digerir a natureza do medo moderno, o que lhe permi-
tiu correr os riscos colocados pela nova empreitada.

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Trabalho e Cinema • Volume 3

Como salientamos acima, M. Jo é um homem do poder de outra


configuração sócio-metabólica do capital. Diante do medo moderno,
ele se acovarda. Não conseguiu ter coragem diante do adversário abs-
trato, a Morte sem face. O medo que Mário, Jo, Luigi e Bimba sentem é
um mero liquido incolor, inodoro e insipido. Na verdade, a iminência
do risco oculta sua abstração. Nesse caso, o medo é simplesmente um
medo. Não apenas medo do desconhecido estranhado, mas um desco-
nhecido estranhado fetichizado, intransparente – “presente, maciço e
estúpido”.
M. Jo não possuía capacidade de resiliência – como diriam os
ideólogos da nova pedagogia do capital. Não conseguiu traduzir em
atitudes pro-ativas os desafios postos pela empreitada de risco. Diante
do medo moderno, M. Jo surtou e entrou em pânico. É “essa forma
de pânico que nunca mais se esquece”, como nos diz Arnaud em seu
romance (o termo “resiliência”, utilizado hoje pelos pedagogos do ca-
pital, surgiu na física e significa a capacidade humana de superar tudo,
tirando proveito dos sofrimentos, inerentes às dificuldades. Tem sido
trabalhado em todas as áreas como saúde, finanças, indústria, sociolo-
gia, e psicologia).
Ao assumirem a empreitada de risco, Mario, Luigi e Bimba eram
levados pela expectativa do dinheiro. Ao procurar convencer M. Jo a
luta contra sua covardia, Mario exclamava: “Há dois mil dólares nos es-
perando”. E Jo retrucava: “Eu preciso continuar vivo.” Era o pragmatis-
mo de Mário – talvez um dos elementos compositivos da sua resiliência,
que não o deixava desistir. Ele disse: “Agora é muito tarde para desistir.
Quando tive medo você disse: Não se preocupe, eu estou com você. Nós
temos que continuar. Já foi loucura aceitar o emprego. Foi você que me
convenceu. Volte pra lá e me oriente”. Mas M. Jo era incompetente para
enfrentar a nova natureza do risco que apresentava a morte como um
ente abstrato, onipotente e onipresente – mas intransparente e oculto.
Mario revolta-se contra M. Jo: “Seu rato sujo e nojento. O chefão mor-
rendo de medo. Um Al Capone do tipo acovardado. Você e sua febre
malária. Está morto de medo. Você é um maricas.”

76
O mundo do trabalho através do cinema

Por outro lado, a incompetência de M. Jo diante da empreitada


de risco possui um caráter pessoal vinculada a experiencias pretéri-
tas. Há um lastro de experiencias passadas que o impedem de ser re-
siliente. Enquanto capacidade humana, a resiliência é uma construção
onto-genética das individualidades pessoais. Exige-se uma determi-
nada formação humana para efetiva-la. Por isso, hoje, por exemplo, a
necessidade das grandes empresas em reestruturarem os coletivos de
trabalho, extirpando gerações de operários e empregados que guardam
ainda, em si e para si, experiencias vividas e experiencias percebidas
inadequadas para as empreitadas de risco do novo (e flexível) mundo
do trabalho.
Disse Arnaud no romance: “Foi por ter experimentando esse
medo, e talvez só uma única vez, que o velho Jacques [Jo, no filme de
Clouzot] se transformou naquele frangalho desesperado.” No filme “O
Salário do Medo”, M. Jo e Mário travam um dialogo interessante. Diz Jo:
“Se você soubesse o que já passei...” E Mário observa: “Mas agora você
só serve para atacar pelas costas. Não gosta de correr riscos”. E Jo asse-
vera: “Sei o que isto significa. Você se arrisca imprudentemente. Você
não tem imaginação. Vejo cada feixo e cada buraco. Morri mil vezes
desde ontem a noite. Vejo a explosão. E me vejo partindo em pedaços.
Eu tenho um cérebro na cabeça. “ E Mário faz gracejo: “Se tivesse cora-
gem também...” Jo conclui: “Vai acabar pendurado numa árvore. Como
as folhas mortas.”
Na verdade, a imaginação de Jô, sua prévia-ideação, lastreada em
experiencias pretéritas, diante da situação de risco extremo, destro-
ça seu espírito e o transtorna. Mario retruca outra vez: “Ele está com
medo. Um valentão de meia-tigela.”. Entretanto, o que Mario não sabe é
que M. Jo trabalhou numa salina, num campo de concentração nazista
durante a II Guerra Mundial. Naquela situação de risco concreto, onde
a morte presente tinha uma face distinguível, o medo assumia uma for-
ma concreta (talvez Bimba compreendesse o medo de Jô, pois também
tivera a experiência do terror nazista. Diz: “Se for comparar, isto aqui é
uma piada.”) Por isso, M. Jo dissera para Mário: “Se você soubesse o que

77
Trabalho e Cinema • Volume 3

já passei”. Portanto, as experiências passadas tornaram M. Jo incompe-


tente para a empreitada de risco.
A percepção do risco é mesclado pelas lembranças do tempo pas-
sado e pelas expectativas do tempo futuro. O medo que se origina de si-
tuações de risco é um afeto intenso que paralisa o sujeito, expondo seus
fantasmas íntimos. É o que Clouzot sugere em “O Salário do Medo”. O
medo de Jo é o medo do tempo passado e das lembranças do terror,
dos fantasmas íntimos e das incógnitas existenciais. Ele tem em seu
passado uma terrível experiência de presença constante com a morte
– uma morte estranhada, mas não uma morte fetichizada, intranspa-
rente e opaca, como aquela que persegue as empreitadas de risco da
vida moderna neoliberal. O que significa que o medo que Jo sente é de
outra natureza, pois é impregnado de terror pretérito que o persegue
no inconsciente. Nesse trajeto do risco supremo de morte, Jô se deses-
trutura e torna-se um covarde, um frangalho desesperado, como nos
diz Arnaud.
Portanto, a natureza do medo que nasce de situações de risco é
determinada pelo corte geracional. O que implica dizer que M. Jo e Ma-
rio são homens proletários que carregam, em si e para si, experiencias
vividas e experiencias percebidas diferenciadas. Mario e M. Jo per-
tencem a gerações diferentes. Mário é mais novo que M. Jo. Antes do
comboio partir, ele diz para M. Jo: “Estou com medo. Tenho medo de
não ser bom o suficiente.” O medo de Mário é o medo egoísta, o medo
do sujeito heróico, que está diante de sua provação irremediável. Seu
medo é não conseguir provar que não é bom o suficiente. Enquanto o
medo de M. Jo é o medo do tempo passado, o medo de Mário é o medo
do tempo futuro, das expectativas que alimenta a respeito de si. É o
medo que a juventude proletária cultiva hoje sob a nova precariedade
salarial.
Num certo momento, M. Jo observa: “Sabe para que você é pago,
rapaz? Para ter medo. É a sua parte da tarefa. Você dirige e eu me pre-
ocupo.” Ora, as empreitadas de risco do novo (e precário) mundo do
trabalho remuneram operários e empregados para terem medo – mas

78
O mundo do trabalho através do cinema

exigem, ao mesmo tempo, coragem e capacidade de resiliência para o


enfrentamento dos riscos sistêmicos
Por outro lado, Luigi e Bimba não demonstram sentir medo. Mas
eles o sentem. É perceptível em suas expressões de pavor e terror. Mas
eles a dissimulam. Por exemplo, Bimba demonstra uma atitude de indi-
ferença cautelosa. A experiência de vida incrustou nele certa sabedoria
do risco de morte. Tal como M. Jo, Bimba estivera também em campo
de concentração nazista. Ele sabe o que é sentir o gosto da desefetiva-
ção humano-genérico plena. Diz-nos: “É possível envelhecer em pou-
cos meses. É só estar no lugar certo e na hora exata.”
Na verdade, o tempo de vida do homem é marcado pela intensi-
dade de seus afetos íntimos – o medo é o mais intenso e desgastante.
Ele corrói a alma. Se Bimba adota uma atitude reflexiva, quase perene,
como um condenado à morte caminhando para o cadafalso, Luigi se
expressa com gestos de ousadia provocadora, como na cena do filme
em que, pouco antes de chegarem ao aterro, Luigi xinga uma placa de
aviso com o símbolo da morte que indica zona de perigo.
Ora, diante do risco e periculosidade extrema, cada individualidade
pessoal faz um acerto de contas íntimo com seus fantasmas interiores.
As situações de risco expõem cada um a respostas singulares. O risco ex-
plicita, através das respostas ou atitudes pessoais diante da possibilidade
de nos tornarmos meramente o Nada, dimensões ocultas do nosso Ser,
constituído por experiencias vividas e experiencias percebidas.
Luigi, que sofre de doença pulmonar – possui cimento nos pul-
mões – restando-lhe talvez poucos anos de vida, enfrenta a empreitada
de risco com ousadia singular. Na cena do filme em que eles explodem a
pedra, Luigi corre, tentando apagar o pavio da dinamite, demonstrando
coragem singular (em contraste com M. Jo que está paralisado pelo medo
da morte. “Ele está parecendo um cadáver ambulante”, diz Luigi).
É irônico que, logo no começo do filme, Luigi e M. Jo tenham se
enfrentado no “Corsário Negro” e o velho gangster tenha dado à Luigi
uma lição de coragem. Naquele momento, M. Jo provoca Luigi, apon-
tando-lhe uma arma, e a seguir, dá-lhe a arma para que Luigi demons-
tre se tem coragem de atirar. Diz Jo: “Ter arma não é o bastante. Tem

79
Trabalho e Cinema • Volume 3

que ser corajoso”. Luigi não consegue puxar o gatilho. Diz Luigi: “Não
sou assassino”. Ele não tem coragem de atirar num homem. Entretan-
to, mais adiante, no decorrer da empreitada de risco, Luigi demonstra
coragem de enfrentar a Morte que o espreita a todo momento. Ao con-
trário de M. Jo que cai paralisado de medo, Luigi demonstra que – nas
empreitadas de risco, onde a periculosidade é recorrente e o adversário
que nos desafia é tão abstrato, quanto onipresente, estar vivo não é o
bastante. Tem que ser corajoso.
A coragem é um valor crucial para a afirmação das individuali-
dades pessoais de classe nas condições do metabolismo social do risco.
É o modo de dar respostas efetivas à situações de negação de si, desfe-
tichizando objetivações estranhadas. O filme “Salário do Medo” expõe
dimensões do medo e dimensões da coragem. A coragem de M. Jo é a
coragem de apontar uma arma e atirar. É a coragem do assassino que
se afirma negando o Outro. É a coragem como vicio e afeto espúrio. A
coragem que afirma um poder estranhado.
Por outro lado, a coragem de Luigi é a coragem de enfrentar o
risco que se coloca nas empreitadas da vida. É a coragem como virtu-
de, que visa superar obstáculos, como a pedra no meio do caminho do
“comboio da morte”. É a coragem da “negação da negação” – mesmo
que no plano pessoal de afirmação heróica da individualidade de si e
para si.
Na verdade, a coragem é condição de qualquer virtude, pois é ela
que subsidia – na prática - a alma humana com forças para a negação
da negação. Implica decisão e não apenas raciocínio A coragem afirma
a singularidade pessoal – toda coragem é pessoal (o que explica porque
na ordem do capital – que é a ordem da despersonalização – corrói-
se a formação de homens com coragem no sentido de virtú, isto é, a
qualidade do homem que o capacita a realizar grandes obras e feitos, o
pré-requisito da liderança.
Na ordem estranhada do capital, amesquinha-se a coragem re-
duzida a dimensões particularistas do ser. Ela perde o sentido de virtú,
que diz respeito a lideranças coletivas capaz de realizar utopias huma-
no-comunitárias. A liderança que os manuais de administração de em-

80
O mundo do trabalho através do cinema

presas salientam é a liderança (e a coragem) amesquinhada ao particu-


larismo das prerrogativas egoístas da acumulação privada do capital.
Perde-se a dimensão de enfrentamento coletivo-histórico (ou mesmo
individual-singular) do desconhecido estranhadoe fetichizado.
A ordem do capital é a ordem da mediocridade pessoal que insti-
ga a mera conformação às reiterações sistêmicas. É claro que a coragem
pode servir para tudo – para o bem ou para o mal. Mas a discussão da
coragem que apresentamos possui um sentido histórico-concreto: a co-
ragem é qualidade pessoal imprescindível para a “negação da negação”,
isto é, para a ação coletiva (e pessoal) capaz de desfetichizar o mundo
estranhado do capital.
Na odisséia do medo, há momentos de concorrência entre os par-
ceiros do risco extremo e também há parceria e cooperação entre eles.
Por exemplo, logo no começo da viagem dos dois caminhões carrega-
dos de nitroglicerina, as “equipes de trabalho” concorrem uma com
a outra. Apesar do risco extremo, uma equipe pressiona a outra para
prosseguir adiante.
O trajeto do pavor oculta vários obstáculos que as equipes têm
que superar – a região dos corais, onde a pista não está boa e exige-se
certa velocidade para evitar que o caminhão trepide muito e a nitrogli-
cerina exploda: “A 40 milhas por hora você vai voar sobre a areia. Mas
você precisa ganhar velocidade. Abaixo de 30 vai vibrar e caba tudo”.
Outro obstáculo é o velho aterro, onde os caminhões têm que ma-
nobrar para pegar o retorno para a estrada. A imensa pedra caída no
meio da estrada é outro obstáculo às equipes de trabalho.
Finalmente, a equipe de trabalho que resta – Mário e Jo (Luigi e
Bima foram pelos ares – literalmente) tem que enfrentar o obstáculo
final: atravessar a poça de óleo aberta pela explosão do outro caminhão
carregado de nitroglicerina. Enfim, a narrativa do filme “O Salário do
Mêdo” demonstra que a empreitada de risco é constituída de vários de-
safios prementes às equipes de trabalho que buscam cumprir sua Meta:
a entrega dos 200 galões de nitroglicerina no campo 6 da S.O.C.
Ao atravessarem o coral, as equipes de trabalho agem por conta
própria, concorrendo entre si. Ao enfrentarem o aterro, cada equipe

81
Trabalho e Cinema • Volume 3

prova sua habilidade em manobrar o caminhão e envolver o parceiro


da equipe da superação do obstáculo (Mário enfrenta a covardia apa-
vorada de M. Jo). Mas é a situação de transpor a pedra no meio da es-
trada que vai exigir cooperação e parceria. Na verdade, a imensa pedra
aproximou novamente Mário e Luigi. Eis o paradoxo: os parceiros do
risco extremo cooperam para conseguirem cumprir seu trabalho estra-
nhado. Após explodirem a pedra que obstaculizava o caminho, temos
no filme o único momento de alegria e companheirismo entre Mário,
Luigi e Bimba (M. Jo paralisado pelo mêdo, mantém-se à margem da
confraternização ocorrida entre eles).
Apesar das situações de risco extremo e da morte sempre à esprei-
ta, os proletários do risco sonham e imaginam não apenas a morte, mas
a realização de seus desejos pessoais. Aliás, a coragem e a negociação
íntima que a impulsiona como afeto necessário para superar os obstá-
culos que se encontram no caminho do comboio da morte, é permeada
de utopias pessoais, sendo alimentada – caso a Meta seja cumprida –
pelos US$ 2.000 de salário pela empreitada de risco.
É a utopia da plena aquisitividade capitalista que fascina os sujei-
tos monetários sem dinheiro. É com as gratificações e bônus de produ-
tividade que as empresas alimentam as utopias pessoais que tecem os
consentimentos espúrios da nova precariedade salarial (É Mário que
exclama para Jo: “Há 2.000 dólares nos esperando”. Logo antes de irem
pelos ares - literalmente – Luigi e Bimba têm um dialogo de sonho e es-
perança. Luigi pergunta a Bimba: “Quer dar uma fumada?”. E retruca:
“Bimba, por que está assim tão triste? Não vai mais misturar cimento.
Seremos ricos...isso se não morrermos. Se morrermos acaba tudo. Mas
se vivermos, será muito bom ir embora. “ Bimba, mais pessimista ob-
serva: “Ir para onde? Para ver outros mosquitos? Há o suficiente neste
lugar. Os de casa não são melhores”. E Luigi, sonhador, diz: “Com esse
dinheiro voltarei para a bela Itália. Vou comprar uma cantina e me ca-
sar com uma linda garota.”). Entretanto, os sonhos e utopias pessoais
de proletários do risco extremo são tão precários quanto suas condi-
ções trabalho. O caminhão de Luigi e Bimba explode ao ter solavanco
na estrada.

82
O mundo do trabalho através do cinema

Em dois momentos do filme, Henri-Georges Clouzot, num toque


existencialista, expõe a atitude de homens proletários diante da morte.
Por exemplo: antes dos caminhões partirem para sua empreitada do
medo, Mário aparece para tomar seu posto de motorista bem vestido.
Ele nos diz: “Até quando te mandam para a guilhotina, tem que se vestir
bem.” Mais tarde, Bimba, antes de ir pelos ares, junto com Luigi, devi-
do a explosão do caminhão, se barbeia. É quase um pressentimento
do destino trágico. Luigi pergunta: “Por que se barbeia?”. Bimba relata
uma história familiar: “Antes de ser enforcado, meu pai me pediu para
tomar um banho. Isto é uma tradição na família. Gosto de limpeza.
Ao ser um cadáver, eu quero estar apresentável.” Segundos depois do
diálogo entre Bimba e Luigi, ocorre a explosão da carga de nitrogli-
cerina, que não deixaria nenhum rastro deles. Não haveria cadáveres
apresentáveis.
A cena da explosão no filme “O Salário do Medo” é deveras suges-
tiva. O caminhão de Mário e M. Jo estão logo atrás – mas distantes – do
caminhão de Luigi e Bimba. Enquanto Mário dirige, Jo manipula taba-
co. A câmera se fixa nos dedos de Jo manipulando o tabaco. De repente,
uma corrente de ar espalha o tabaco - o ar deslocado pela explosão do
caminhão de Luigi e Bimba. Foi o tabaco ao vento que nos avisou que
Bimba e Luigi não existem mais (é só depois que vemos, ao longe, um
cogumelo de fumaça da explosão do caminhão). Os proletários do risco
tornaram-se pó levado pelo vento.
Estupefato, M. Jo observa, de imediato: “Luigi não existe mais”.
Ele está apavorado. Vislumbra a morte diante de si. Logoa diante, ao
observar o estrago da explosão do caminhão de Luigi e Bimba na vege-
tação. Mário diz: “Parece marca de avião que levantou vôo”. Jo assevera:
“Foi o que aconteceu. Levantaram vôo”. Nada restou do caminhão de
Luigi e Bimba. M. Jo encontra a piteira de Bimba (“Foi o que sobrou
deles”, observou ele).
O filme “Salário do Mêdo” contém candentes sugestões existen-
cialistas. É importante salientar que a França de 1953 estava imersa
no clima existencialista do pós-guerra, com Jean-Paul Sartre e Marcel
Camus. O romance homônimo de Georges Arnoud continha tal espíri-

83
Trabalho e Cinema • Volume 3

to existencialista, expressando o mote clássico do existencialismo ateu


sobre a condição humana: o homem é um ser jogado no mundo e des-
tinados à morte.
O problema do existencialismo é considerar um traço ontológico
o que é uma derivação histórico-concreta. A alienação não é uma con-
dição humana, no sentido metafisico, mas a condição de uma forma
histórica de homem: o homem proletário. Na verdade, a precariedade
salarial no filme “O Salário do medo” é a precariedade do trabalho es-
tranhado capitalista em sua dimensão extrema. A empreitada de ris-
co – ou a odisséia do medo – teve uma origem histórico-concreta: foi
convocada por uma corporação capitalista do petróleo, com homens
proletários desempregados e desterritorializados num país miserável
da América Central sob o signo do imperialismo moderno.
No local da explosão do caminhão de Luigi e Bimba, abriu-se
uma cratera de óleo bruto, que escorre da tubulação que estava ao lar-
go da estrada. É na poça de óleo que o caminhão de Mario e M. Jo se
atola. Ao colaborar com Mário – que dirige o caminhão – para tentar
retirá-lo do atolamento na poça de óleo, M. Jo tem sua perna esmagada
pelo caminhão. Apesar do trágico acidente, Mário consegue desatolar
o caminhão, conduzindo-o para a estrada. Nas cenas finais, na boleia
do caminhão, Mário dirige, tendo ao seu lado, quase ao seu colo, agoni-
zante, M. Jo. (é mais uma cena sugestiva do filme “O Salário do Mêdo”:
homens sujos enegrecidos pelo óleo bruto tentando ir adiante e chegar
a seu destino).
Enquanto dirige o caminhão, Mario ouve a agonia do velho M.
Jo que diz: “Não sou perigoso. Não sou mais. Sentiu o cheiro, É minha
perna. Sou eu mesmo. Cheiro a cadáver. Posso sentir que estou apo-
drecendo. Olhe as minhas unhas. Estão roxas. Está chegando o fim.”
Nesse momento, M. Jo é a personificação da angústia existencialista.
Está condenado ã morte. Cai a noite. Eles estão próximos do campo 6
da S.O.C. onde está o poço de petróleo em chamas.
O último diálogo entre Mário e M. Jo contém elementos da meta-
fisica existencialista. Para tentar reanimar Jo, Mário tenta busca divagar
sobre o passado e lembranças de sua terra distante. O passado reminis-

84
O mundo do trabalho através do cinema

cente é visado para levantar o ânimo do homem que agoniza. Mário per-
gunta ao amigo agonizante: “Onde morava em Paris?”. Jo diz: “Eu morava
na Rua Galande”. “Lembra da tabacaria que ficava na esquina?”, retruca
Mario. “É claro. Ao lado da loja de ferragens.”, observa Jo. E diz ainda:
“No meu tempo havia uma cerca”. Mário confirma: “Está certo. Primeiro
havia uma cerca.” De repente, emerge o mistério nas reminiscências de
Jo. Confessa que nunca soube o que havia lá atrás daquela cerca.
Na verdade, a cerca que habita o tempo passado de Jo é a pre-
figuração da sua incógnita existencial. Possui um denso significado
existencial. É a objetivação imaginária do mistério que marca as lem-
branças do tempo perdido irrecuperado. É traço de experiência vivida
singular e experiencia percebida como representação onírica. Para Jo,
a cerca era mais que uma cerca. Era o síntese concreta do Mistério que
nos faz viver, apesar da ordem social de rsico extremo. O velho gangster
era um homem de imaginação. Ora, Mário não sabe nada disto. Para
ele, aquele cerca, era apenas uma mera cerca que havia na Rua Galande.
Ele responde para Jo que não havia nada atrás daquela cerca: “Nada.
Apenas um terreno vazio.”
Mário desencantara, para o amigo que agoniza, o mistério da
vida. “Apenas um terreno vazio” – eis o cosmo desencantado da vida
burguesa. Após ouvir a resposta de Mário, Jo parece agonizar. O de-
sencantamento do mundo reminiscente o abalara com certeza. “Está
bem?”, pergunta Mario preocupado. ”Estou bem”, diz Jo submerso no
passado distante. Vislumbra em seu delírio a Rua Galande: “É uma rua
comprida”. E diz: “Estou sem ar”. Mario tenta incentivá-lo: “Agüente!
Estamos quase chegando!”. Mas Jo agoniza:“Estou tentando lembrar-
me. Aquela cerca...o que poderia haver por trás dela.” Mário reitera:
“Não havia nada. Realmente nada”. As últimas palavras do homem mo-
ribundo são: “Não há nada!”.
Ora, o que a cerca da Rua Galande poderia significar para M. Jo?
Estamos no universo das experiencias singulares que marcam a vida
pessoal. M. Jo era um homem burguês decadente, espécime do mundo
desencantado do poder do capital – um mundo social sem mistérios,
manipulado pela força das armas. Mas, em seu íntimo, alimentava um

85
Trabalho e Cinema • Volume 3

mistério quase delirante que – no seu inconsciente – dava um sentido à


vida prosaica: o que havia por trás da cerca da Rua Galande.
Conduzindo o caminhão carregado de nitrogliceribna, Mario é
o único que consegue chegar vivo ao objetivo. No seu colo, jaz o velho
amigo M. Jo, morto. Mário cumpriu com sucesso, a Meta. Desfalece de
cansaço e acorda no dia seguinte, disposto a retornar para Las Piedras
com US$ 4.000 no bolso (recebe também, em cheque, a parte de M. Jo).
Diz ele: “Quero chegar antes que o banco feche”.
No dia seguinte, Mário se apressa para chegar a Las Piedras. Diz
ele: “Quero chegar antes que o banco feche”. O gerente do campo 6 da
S.O.C. oferece a Mário um motorista para leva-lo a Las Piedras: “Está
cansado. Tem um chofer. Ele vai dirigindo.” Entretanto, Mário dispensa
o serviço. Diz ele: “Obrigado. Tenho medo quando alguém dirige.”
Ao saber que Mário sobrevivera à odisséia do risco extremo, Lin-
da se alegra e dança “Danúbio Azul”, a valsa vienense de Johann Strauss
II com clientes do “Corsário Negro”. De certo modo, a valsa de Strauss
celebra a vitória do homem burguês diante das adversidades do mundo
natural. É uma ode à belle époque do progresso da civilização burguesa
na virada do século XIX para o século XX. Ao som de Strauss, Mário
“dança” com o volante do caminhão na íngreme estrada, livre da carga
de nitroglicerina, desprezando os riscos contingentes. Entretanto, de
repente, numa curva da estrada, ele perde o controle da máquina e o
caminhão cai no despenhadeiro abaixo. Mário morre sem conseguir
descontar o cheque de US$ 4.000.
A tomada derradeira do filme são as mãos de Mário, morto, se-
gurando o pequeno ícone de seus sonhos: o bilhete do Metro (Georges
Arnoud conclui seu romance dizendo: “ Vítima do próprio entusiasmo,
do seu entusiasmo de viver, Sturmer [ou Mario, no filme] ficou agarra-
do ao volante.”).
É interessante um paralelo com o filme “2001 – Uma Odisséia no
Espaço”. No filme clássico de Stanley Kubrick, a valsa “Danubio Azul”,
de Johan Strauss glorifica o Homem que conseguiu ir além do espaço-
tempo por meio dos avanços da tecnologia espacial. A valsa dos ar-
tefatos espaciais é uma cena clássica do filme “2001 – Uma Odisséia

86
O mundo do trabalho através do cinema

no Espaço”. Em Clouzot, a valsa de Strauss acompanha, como fundo


musical, a dança do caminhão, máquina suprema conduzida pelo “su-
jeito burguês” heróico (Mario), em seu caminho de volta a Las Piedras
(portanto, na cena final de “O Salário do Mêdo”, de 1953, Clouzot nos
dá uma sugestão magistral: a morte do sujeito heróico burguês através
do descontrole da máquina).
Ao cumprir a Meta, Mário, seguro de si, imaginava estar livre das
contingências do risco. Ora, a sociedade do capital é a sociedade do risco
que perpassa não apenas a produção de mercadorias ou o processo de
trabalho propriamente dito, mas a totalidade social. O risco nos espreita
em cada momento da vida cotidiana. Ele está no trabalho e cotidiano que
nos estressa; na alimentação que nos contamina, no complexo urbano
dominado pelos automóveis que nos avassala, na degradação ambiental
que desequilibra o ecossistema; nas relações humanas fetichizadas...En-
fim, como diz o poeta: “São demais os perigos desta vida”.
Mário é vítima não apenas da imprudência, mas da contingencia
das coisas do mundo social do capital. A máquina – o caminhão - não
responde aos seus comandos numa curva. O que Clozout sugere é que
o homem burguês, seguro de si, perdeu o controle da máquina. A má-
quina voltou-se contra ele. O caminhão aparece, neste momento, como
a máquina-fetiche, coisa que possui vida própria.
Talvez, Mário seja a personificação do sujeito humano, o Prome-
teu existencialista, ou o homem proletário iludido pelo cumprimento
da Meta (ou pela posse da capacidade aquisitiva), que, após conseguir
realizar seus intentos heróicos – conduzir a carga de explosivos por um
trajeto difícil – retorna cheio de si para o lar, acreditando que conseguiu
livrar-se das misérias do mundo social estranhado. É a máquina des-
controlada que irá lembrar-lhe da sua sina trágica – diriam os existen-
cialistas, ou então, da sua condição de precariedade humano-social.
Um detalhe: existe uma questão de gênero no filme “O Salário
do Mêdo”. Por um lado, temos a submissão de Linda a Mário (ela é
empregada de “Corsário Negro”, mulher branca, interpretada por Vera
Clouzot, mulher brasileira do diretor francês). Linda é a namorada
apaixonada que corteja constantemente Mario. Existe uma relação de

87
Trabalho e Cinema • Volume 3

carinho, aversão e manipulação entre os dois. Na verdade, a única pai-


xão de Mário é partir de Las Piedras e voltar para Paris.
Entretanto, em “O Salário do Medo”, a mulher não aparece apenas
como sexo submisso e instrumentalizado pelos homens. Embora ela
não se insurja contra a opressão do macho, ela dirige a insubmissão
contra a exploração de classe. É importante destacar a presença de uma
mulher como líder sindical. Ela aparece protestando contra as mortes
de nativos na explosão do poço de petróleo da S.O.C. Entretanto, a mu-
lher sindicalista é um personagem secundário e totalmente periférico
na narrativa de Clouzot.
Além da misoginia de M. Jo e do machismo de Mario, é impor-
tante destacar a presença homossexual de Bimba, um holandês decla-
radamente homossexual (interpretado por Peter Van Eyck). De certo
modo, os pequenos detalhes inscritos sobre gênero e sexualidade no
filme “O Salário do Mêdo”, com seus desvios estranhados – da miso-
ginia ao machismo – e afirmação de novas identidades sexuais (a ho-
mossexualidade), sugerem a precarização da identidade masculina no
mundo do capital, com homens proletários estranhados de si, em todos
os sentidos, homens em processo de desefetivação que só confiam (e
têm prazer) na força e rudeza da vontade de si, traços de auto-afirma-
ção precária da identidade do macho.

88
O mundo do trabalho através do cinema

Capítulo 2

“A Classe Operária
Vai Ao Paraíso”
Elio Petri
(1971)

O capitalismo industrial, desde que emergiu no século XIX, e se


desenvolveu no século XX, no plano mundial, como capitalismo
monopolista, se caracterizou por um traço essencial: a produção da
mais-valia relativa. Na verdade, trata-se de um elemento obsessivo da
ontologia do capital como “sujeito automático” da valorização do valor,
a produção da mais-valia relativa. Não é à toa que Karl Marx intitula
a seção IV do Livro I de “O Capital – Crítica da Economia Política” de
“A produção da Mais-Valia Relativa”, depois de tratar de mercadoria
e dinheiro, a transformação do dinheiro em capital e a produção da
mais-valia absoluta. É um momento de inflexão fundamental da lógi-
ca expositiva do movimento constitutivo do capital. Depois Marx iria
tratar – na ordem da exposição do Livro I - da produção da mais-valia
absoluta e relativa, o salário e o processo de acumulação do capital.
Enfim, a produção da mais-valia relativa significa o incremento da
produtividade da força de trabalho por meio de inovações tecnico-organi-
zacionais que propiciam a redução do tempo de trabalho necessário para a
produção de mercadorias (é importante salientar que a principal mercado-
ria é a mercadoria “força de trabalho” que, na medida em que é desvalori-
zada, contribui sobremaneira para o aumento da taxa geral de mais-valia).
Diz Marx: “É impulso imanente e tendência constante do capital aumentar
a força produtiva do trabalho para baratear a mercadoria e, mediante o ba-
rateamento da mercadoria, baratear o próprio trabalhador.”
Deste modo, o aumento da produtividade do trabalho possui
um significado essencial: a desvalorização da força de trabalho como

89
Trabalho e Cinema • Volume 3

mercadoria e – por conseguinte – a desefetivação humano-genérica do


trabalho vivo, onde a degradação da saúde do trabalhador – no tocante
a sua dimensão da subjetividade do homem que trabalha – é sua prin-
cipal forma de manifestação.
Por isso, o eixo temático principal do filme “A classe operária avi
ao para’sio”, de Elio Petri, articula, por um lado, inovações técnico-or-
ganizacionais – a introdução, numa fábrica metalúrgica, de um novo
sistema de controle da produção (as quotas) e, por outro lado, elemen-
tos de degradação do trabalho vivo explicitada num fato narrativo de
ampla significação: a perda do dedo do operário Lulu e o espectro da
loucura que lhe apavora. Ao mesmo tempo, articula-se em torno da de-
gradação do trabalho vivo intrinseca à produção da mais-valia relativa,
o movimento de resistência contingente e necessária do proletariado.
No filme “A classe operária vai ao paraíso”, de Elio Petri (Itália,
1971), Lulu Massa é um operário consumido pelo capital e cujo traba-
lho estranhado consome sua vida. A fábrica adota sistema de quotas
(metas) que intensifica a produção. Lulu é o operário-padrão da fábri-
ca, sendo hostilizado pelos outros companheiros de chão de fábrica.
Após perder um dedo na máquina, Lulu adota uma atitude critica ao
modelo de exploração., confrontando a gerencia. Os operários – situ-
ação e oposição sindical contestam as cotas. Após uma greve, Lulu é
demitido. Depois de negociações consegue ser readmitido na fábrica
voltando a linha de produção, reintegrando-se ao coletivo de trabalho.
Por conta da mobilização operária, o sistema de cotas é revisto pela
direção da fábrica.
Deste modo, podemos caracterizar a estrutura lógico-explicativa
da analise critica do filme de Elio Petri a partir de dois importantes
eixos: primeiro, produção de mais-valia relativa (inovação técnico-
organizacional do capital), desvalorização da força de trabalho como
mercadoria, degradação do trabalho vivo (saúde do trabalhador) e
resistência contingente e necessária do proletariado. Segundo, capital
consome trabalho vivo e trabalho estranhado consome vida. Os dois
eixos explicativos da estrutura narrativa do filme constituem os traços

90
O mundo do trabalho através do cinema

essenciais do que seria a precarização (e precariedade) do trabalho no


capitalismo global.

A Precarização do Trabalho no Capitalismo Global


Eixo 1
Produção de mais-valia relativa


Desvalorização da força de trabalho como mercadoria


Desefetivação humano-genérica do trabalho vivo


Resistência contingente e necessária do proletariado

Eixo II

Capital Consome Força de Trabalho e Trabalho Vivo

Trabalho Estranhado Consome Vida

91
Trabalho e Cinema • Volume 3

É importante salientar que o filme “A classe operária vai ao paraí-


so”, de 1971, surge num contexto histórico de crise e lutas operárias nos
EUA e Europa Ocidental – com destaque para a Itália. Na virada para
década de 1970, a economia capitalista mundial apresenta sinais de cla-
ra deterioração nas margens de lucro das corporações capitalistas. O
ciclo virtuoso do fordismo-keynesianismo estava se esgotando. A crise
na organização do trabalho fordista-taylorista, sob pressão do sindica-
lismo organizado, era flagrante. Estamos no limiar da temporalidade
histórica de crise estrutural do capital.
Nos países capitalistas de organização histórica da classe operá-
ria, como a Itália, os conflitos fabris cresceram. Os dois últimos anos
da década de 1960 trouxeram à tona uma expressiva ascensão do ca-
ráter reivindicatório dos movimentos sociais existentes no território
italiano. Se, em 1968, foi o movimento estudantil que deu o tom da
ofensiva, alinhando-se com aquilo que vinha acontecendo em várias
partes do planeta, no ano de 1969 foi a hora e a vez do movimento
operário fazer avançar as manifestações contra a ordem capitalista, por
meio de um conjunto de movimentações que entraram para a história
da Itália como o “outono quente”. Iniciado no mês de setembro de 1969
com a greve dos operários metalúrgicos, no momento da renovação
dos seus contratos de trabalho, o “outono quente” alastrou por toda
a Itália uma verdadeira avalanche de greves, passeatas e confrontos
com as forças policiais, num crescendo que acabou por impulsionar até
mesmo um singular movimento de luta por moradia. Na esteira dessa
multifacetada mobilização, advieram palavras de ordem extremistas
que enfatizavam a necessidade de estruturação de organizações extra-
parlamentares voltadas para a formação de um poder operário autôno-
mo em relação às instituições da democracia representativa. A partir
de então, começaram a se formar na Itália agrupamentos políticos de
extrema-esquerda críticos em relação aos caminhos trilhados pelo PCI.
É neste contexto da luta de classes na Itália que Elio Petri e Ugo Pirro
escreveram o roteiro do filme.
A obsessão pelo incremento da produtividade do trabalho por
meio de inovações técnico-organizacionais – causalidade essencial da

92
O mundo do trabalho através do cinema

reestruturação produtiva do capital – que iria marcar sobremaneira a


nova temporalidade histórica do capitalismo global, tende a esgarçar
as candentes contradições objetivas do sistema produtor de mercado-
rias. É o que explica, por exemplo - no plano fenomênico – a série de
manifestações reestruturativas no ser social do capitalismo nas últimas
décadas do século XX que buscam constituir uma nova forma social
no interior da qual podem se desenvolver tais contradições da ordem
burguesa hipertardia. Deste modo, a constituição do Estado neoliberal
– que inclusive entra em crise nas primeiras décadas do século XXI - é
a forma de estatalidade politica adequada à nova etapa de crise estru-
tural do capital (deve-se observar que o Estado moderno do capital pa-
dece de uma crise estrutural de legitimidade e a adequação do Estado
neoliberal à nova ordem burguesa é uma adequação problemática – e
intrinsecamente contraditória - na medida em que necessidades ob-
jetivas da economia capitalista exigem – ao contrário do que reza a
cartilha liberal - a intervenção paulatina do Estado).
Do mesmo que no filme “A classe operária vai ao paraíso”, em
“Tempos Modernos”, de Charles Chaplin, é a problemática da mais-
valia relativa – e obsessão pela produtividade do trabalho, traço que
marcaria o capitalismo do século XX, que constitui o mote narrativo.
O que demonstra que a intensificação do ritmo de produção das mer-
cadorias, com impactos dilacerantes nas individualidades pessoais de
classe, é a problemática crucial da modernidade do capital em sua eta-
pa de capitalismo industrial.
Sob o domínio da produção da mais-valia relativa, a condição de
proletariedade moderna incorpora novas determinações sociais. Na
medida em que se amplia a proletariedade na sociedade burguesa, com
o avanço do processo de proletarização e constituição de uma massa
da humanidade totalmente destituida de propriedade (como observou
Marx na “Ideologia Alemã”) – no sentido de propriedade dos meios
de produção da vida social, hoje concentrada nas mãos do oligopólio
mundial do capital – a produção de mais-valia relativa imprime a sua
marca na totalidade concreta da vida social. A expansividade do capital
significa a posição da totalidade social como produção do capital. In-

93
Trabalho e Cinema • Volume 3

clusive no filme de Elio Petri, como iremos salientar adiante, é percep-


tível a idéia da totalidade social como fábrica.
No plano onto-metodológico, a condição de proletariedade mo-
derna – que é uma condição existencial - implica a totalidade concreta
da vida social – trabalho e cotidianidade – das individualidades pesso-
ais de classe subsumidas ao trabalho assalariado e a relação-capital. É
essa implicação paradoxal – trabalho e vida/vida e trabalho – que mar-
ca a existência humano-social do homem que trabalha nas sociedades
burguesas.
No filme “A classe operária vai ao Paraíso”, o metalúrgico Lulu,
sob pressão do trabalho estranhado, torna-se um proletário em pro-
cesso de desefetivação humano-genérica. Sua capacidade de fruição
vital está sendo “capturada” (e obliterada) pelo trabalho capitalista na
fábrica, onde ele é apenas força de trabalho. Ora, o modo de produção
capitalista tende, num primeiro momento, a reduzir o trabalho vivo
à força de trabalho como mercadoria, obliterando o desenvolvimento
das individualidades humano-genéricas. Depois, ocorre a substituição
da força de trabalho como mercadoria por trabalho morto – eis a su-
pressão última do trabalho vivo.
Utilizamos o conceito de trabalho vivo como sendo a capacidade
humano-genérica que se constituiu através do trabalho como categoria
ontológica fundante (e fundamental) do ser social e que diz respeito a
individualidade humana integral em sua atividade de fruição vital (tra-
balho vivo se contrapõe a trabalho morto ou trabalho objetivado como
manifestação do trabalho social sob a forma antagônica do capital e
do assalariamento). O homem como ser social é ontologicamente tra-
balho vivo. Por outro lado, força de trabalho seria a capacidade fisico-
espiritual que produz valores de uso do homem que trabalha. É uma di-
mensão das individualidades humano-genéricas vinculada à luta pela
sobrevivência/existência do homem como espécie. O desenvolvimento
do processo civilizatório implica a potencialização progressiva da força
de trabalho do homem por meio do desenvolvimento da força produ-
tiva do trabalho social.

94
O mundo do trabalho através do cinema

Ora, sob o modo de produção capitalista ocorre uma dupla per-


versão do processo civilizatório – que é o cerne essencial do problema
da alienação/estranhamento: (1) a transformação da força de trabalho
em mercadoria e (2) o desenvolvimento da força produtiva do trabalho
social por meio da desvalorização da força de trabalho como mercado-
ria, o que implica a substituição de trabalho vivo por trabalho morto.
Assim, a produção de mais-valia relativa tende a significar a subs-
tituição de trabalho vivo por trabalho morto no sentido da introdução
da máquina na produção de mercadorias. Portanto, sob o capitalismo
da grande indústria a desvalorização da força de trabalho como mer-
cadoria significa não apenas a descartabilidade da força de trabalho
da produção social, mas a própria do supressão do trabalho vivo no
sentido da desefetivação humano-genérica (que vai da animalização
ou barbárie social à própria morte). A vigência do trabalho morto é o
domínio da barbárie social (no filme, como iremos ver adiante, existem
várias passagens de remissão à animalização do homem).
Na análise critica do filme “A classe operária vai ao paraíso”, de
Elio Petri, iremos privilegiar três movimentos reais que constituem a
estrutura narrativa do filme – (1) o capital consumindo força de traba-
lho (produção fordista); (2) o trabalho estranhado consumindo a vida
cotidiana das individualidade de classe, o trabalho vivo – no caso, o
personagem Lulu Massa e (3) a resistência da classe em si contra a ex-
ploração e opressão capitalista.

1. Fábrica fordista: capital consumindo força de trabalho


(e trabalho vivo)

O filme “A classe operária vai ao paraíso” expõe a dimensão da


produção de mercadorias sob a fábrica fordista com seu controle de
tempos e movimentos e o desgaste cotidiano. O capital como relação
de assalariamento na produção consome o trabalho vivo como força
de trabalho.
A fábrica fordista é a fábrica dos operários-massa, constituido
pela multidão de homens e mulheres proletários, trabalhadores assa-

95
Trabalho e Cinema • Volume 3

lariados, homens e mulheres anônimos, submetidos ao trabalho estra-


nhado.
A fábrica fordista, em geral, era constituída por grandes estabele-
cimentos fabris com seus conjuntos de máquinas automáticas que ocu-
pavam imensos espaços territoriais de produção e administração, onde
se concentrava a massa da força de trabalho (o trabalhador coletivo).
Foi Henry Ford, fundador da Ford Motor Company, que em 1915
inovou a organização da fábrica capitalista, criando a produção em
massa, que significava a produção em série de mercadorias utilizando-
se uma linha de montagem acoplada a esteira mecânica. Ao lado dela,
como apêndices do conjunto de máquinas automáticas, um exército de
operários parcelares, sob controle estrito do capataz, executando movi-
mentos monótonos e repetitivos em seu posto de trabalho.
Ford incorporou na organização cientifica do trabalho, idealizada
por Frederick Taylor, em fins do século XIX, o arcabouço técnico-me-
cânico da grande indústria (por isso, a inovação capitalista tem o nome
de modelo de produção fordista-taylorista). Taylor concebeu na organi-
zação da produção capitalista a separação entre execução e concepção e
o estrito controle de tempos e movimentos dos operários e empregados
visando maior rendimento da força de trabalho. Por exemplo, a presença
de engenheiros de produção no interior da fábrica capitalista é inovação
taylorista. Por outro lado, Ford deu um passo adiante adotando um ar-
cabouço técnico-mecânico para a organização científica do trabalho (a
linha de montagem acoplada a esteira mecânica). A idéia da organização
fordista de produção em massa seria adotada – e aprimorada - por outras
empresas capitalistas. Ela marcaria a produção capitalista no século XX,
sendo adotada – com adaptações – por setores industriais, escritórios e
inclusive administração pública. A forma material do fordismo-tayloris-
mo tornou-se adequada para expressar a forma social do capital como
trabalho abstrato ou trabalho estranhado que subsume o trabalho vivo,
reduzindo a força de trabalho a mercadoria.
O organismo da produção em massa fordista-taylorista seria
constituido por um corpo de operários especializados – no sentido de
semi-qualificados – apendicizados pela máquina e executando um tra-

96
O mundo do trabalho através do cinema

balho simples, monotono e repetitivo. A produção em massa implicou


na constituição de operários-massa. Mas a idéia de operário-massa
não diz respeito apenas a sua natureza numérica (os grandes estabele-
cimentos fabris concentravam milhares e milhares de operários), mas
a sua indiferenciação pessoal decorrente da redução do trabalho vivo à
força de trabalho como mercadoria.
Além disso, sob o ponto de vista sociológico, a idéia de “massa” se
contrapõe à idéia de classe social “em si” e “para si”. Enquanto operá-
rios-massa, os trabalhadores assalariados da fábrica capitalista não são
classe social. São meramente a “classe” imersa na condição de proleta-
riedade. Na medida em que se organizam em sindicatos e lutam contra
o capital, tornam-se classe em si e negam a condição de operário-massa
instituida pela fábrica fordista. A verdadeira crise do fordismo começa
quando o operário-massa deixa de sê-lo e contesta a disciplina/controle
no processo de trabalho. O filme de Elio Petri é o filme que trata da
crise do operário-massa.
No filme “Tempos Modernos”, Charles Chaplin temos nos apre-
sentou – nas primeiras cenas do filme - elementos da fábrica fordista,
com os operários-massa sendo caracterizados por Chaplin com a metáfo-
ra de ovelhas submissas (o curioso é que, se olharmos bem, existe uma
ovelha negra entre elas) – destaca-se ainda como elementos da fábrica
fordista, grandes estabelecimentos fabris e imenso conjunto de máquinas
automáticas, com uma linha de montagem acoplada à esteira mecânica.
O controle do ritmo e movimento dos operários é dado pela máquina
automática (René Clair em seu clássico filme “À Nós a Liberdade”, de
1931, nos apresentou também em suas cenas magistrais, a anatomia da
fábrica fordista-taylorista).
Na fábrica fordista, além dos operários da linha de produção,
operários-ferramenteiros que lidam com o torno mecânico, o chão de
fábrica incorpora operários da limpeza e transporte de material, fun-
ções indispensáveis para o andamento da produção Operários de trans-
porte e limpeza são trabalhadores produtivos no interior do trabalhador
coletivo da B.A.N, a fábrica metalúrgica do filme (talvez como sintoma
da abstratividadedo capital, não sabemos o significado da sigla B.A.N.).

97
Trabalho e Cinema • Volume 3

Os operários de transporte e limpeza não produzem diretamente a mer-


cadoria, mas exercem indispensável atividade de apoio e preparação no
interior do próprio processo de produção. (por exemplo, no filme, a
jovem Adalgiza exerce a função de transporte de material, circulando
pelo chão da fábrica, alimentando os operários com peças e componen-
tes. É a operária que flui e circula entre operários fixos em seus postos
de trabalho. O trabalho capitalista é um trabalho combinado – trabalho
social constituido como trabalhador coletivo do capital.
Foi o capital que constituiu a figura do trabalhador coletivo. A
constituição do trabalhador coletivo ou trabalhador combinado signifi-
ca, em si, o desenvolvimento da força produtiva social do trabalho ou
da força produtiva do trabalho social. O capitalista compra a força de
trabalho individual isolada, mas ao fazê-lo cooperar, obtém um “renda
relacional” que provém da força combinada não-paga do trabalhador
combinado. A força produtiva social do trabalho, segundo Marx, é uma
força gratuita que não custa nada ao capital e, por outro lado, não é
desenvolvida pelo trabalhador antes que seu próprio trabalho pertença
ao capital.
Na verdade, como observa Marx, “como pessoas independentes,
os trabalhadores são indivíduos que entram em contato com o mesmo
capital, mas não entre si.” Na medida em que só começam a cooperar
no processo de trabalho como processo de valorização, eles já deixa-
ram “de pertencer a si mesmos”. E destaca: “Como cooperadores, como
membros de um organismo que trabalha, eles não são mais do que um
modo específico de existência do capital”. Por isso, o trabalhador coletivo
aparece como trabalhador coletivo do capital: “A força produtiva que o
trabalhador desenvolve como trabalhador social é, portanto, força pro-
dutiva do capital”.
Na medida em que o operário-massa da produção fordista-taylo-
rista é um operário semi-qualificado, a sua aprendizagem das tarefas
fabris é aligeirada. Por exemplo, no filme, Lulu, como operário-padrão
da B.A.N., recebe do engenheiro de produção, a incumbência de treinar
jovens operários que chegaram à fábrica, vindo de regiões periféricas
na Itália. Lulu – como operário-padrão - exerce um duplo sobretraba-

98
O mundo do trabalho através do cinema

lho: executa suas tarefas no chão-de-fábrica, produzindo mais-valia; e,


ao mesmo tempo, treina jovens operários récem-chegados na fábrica.
Nesse, momento, Lulu está imerso na produção. Reclama que os apren-
dizes lhe tiram a atenção. Os jovens operários, ingênuos e amigáveis,
logo se apresentam para Lulu. Mas a dureza de Lulu é a dureza da vida
operária. “Não me interessa seu nome”, diz ele. Sob a ditadura do traba-
lho abstrato, nomes pessoais não interessam.
Um importante aspecto da fábrica fordista no filme “A classe operá-
ria bai ao paraíso” é que ela é uma fábrica de operários imigrantes vindo
de regiões periféricas da Itália – no caso do filme - convergem para os
centros de acumulação de capital em busca de emprego: Tarcisio Menna,
veio da Manfredonia; Salvatore Quaranta, de Lecce; Adalgisa Stachi, do
Bassoticino; e o personagem princiapl do filme, Ludovico Massa (vul-
go “Lulu”), veio da Lombardia. Entre operários imigrantes dissemina-se
preconceitos cultivados pela ordem burguesa. Os sulistas – ou meridio-
nais, da Sicilia, por exemplo, são considerados lerdos e indispostos ao tra-
balho pesado. Lulu diz: “Já chegam cansados e eu os supero no ritmo”.
No restaurante da fábrica B.A.N. temos um momento de sociabi-
lidade operária. Entretanto, mesmo no restaurante, o tema é trabalho.
Os operários conversam e se apresentam. Lulu conversa com os operá-
rios aprendizes. A discussão trata de como obter melhor desempenho
na produção visando ganhar mais. Ao produzir acima da quota, Lula
ganha um bônus de produtividade. Lulu conta qual seu segredo para
obter alta produtividade do trabalho. Na verdade, nesse momento, o
operário Lulu transmite para os jovens aprendizes, o espírito da cons-
ciência burguesa, transpondo para o local de trabalho, a lógica social
da sociedade civil burguesa – que ele considera a lógica da vida. “A vida
é uma competição”, diz ele. Nesse caso, o capital incentiva a competição
entre operários para obter maior produtividade do trabalho. Não se tra-
ta ainda do “trabalho em equipe”, mas da pura competição entre operá-
rios visando ir além da quota estipulada pela empresa. A recompensa
é ganhar mais. Ao visar a competição, o operário tende a considerar o
companheiro de trabalho um adversário a ser vencido. Dilacera-se a

99
Trabalho e Cinema • Volume 3

solidariedade de classe. O jovem operário houve atentamente as lições


de vida (e trabalho) de Lulu.
A fábrica capitalista é um templo do trabalho abstrato. Logo na
entrada da metalúrgica B.A.N. – sigla que desconhecemos o significa-
do – se coloca a estátua de um operário. Ela realça – quase num estilo
do realismo socialista - a determinação e vigor físico do homem operá-
rio. É o homem operário, como persona do trabalho abstrato, que pro-
duz valor. O capital o deifica na medida em que ele funciona. A estátua
recepciona, dia-a-dia-, as turmas de operários que entram para as ati-
vidades fabris. No restaurante da fábrica, existe outra estátua – talvez o
busto do fundador da metalúrgica, o capitalista objetivado que controla
com seu olhar pétreo a refeição dos operários e operárias.
O território da fábrica capitalista sob o fordismo-taylorismo é o
território do controle/disciplina explícita, com o despotismo fabril se
manifestando por meio da presença constante dos capatazes/enge-
nheiros de produção controlando a pulsão do organismo mecânico e
a exploração da força de trabalho. O controle capitalista permeia o ter-
ritório da produção, seja na forma do olhar vigilante das chefias, seja
com recursos audio-visuais (cartazes e anúncios de recepção e informe
da gerencia da produção). Todos os dispositivos de controle possuem
um telos absoluto: o aumento da produtividade do trabalho visando a
extração de mais-valia relativa.
Por exemplo, no filme, todo dia, ao entrarem no local de trabalho,
os operários ouvem a exortação do capital, com uma voz suave e cari-
nhosa. Diz a gerência: “Trabalhadores, bom dia, a direção da fábrica
lhes deseja bom trabalho. Para seu interesse, tratem com amor a má-
quina que lhes foi confiada. Cuidem da sua manutenção. As medidas
de segurança devem ser respeitadas.. Sua saúde depende da sua relação
com a máquina. Respeitem suas exigências e lembrem-se que: máqui-
na mais atenção é igual a produção. Bom trabalho.”
A voz suave, quase melodiosa, do gerente do capital - que se
contrasta, por exemplo, com os discursos agitados e raivosos da mili-
tância sindical de esquerda nos megafones - é um modo midiático de
“captura” da subjetividade do trabalho, que busca cuidar do operário,

100
O mundo do trabalho através do cinema

poupando-o, pelo menos na recepção cotidiana, do stress. O capital ex-


plora, no processo de “captura” da subjetividade do trabalho, dimensões
emocionais do homem que trabalha. A suavidade e o carinho do capi-
tal são disposição instrumentais, meramente manipulatórias, visando
tão-somente preservar a capacidade pessoal de produção. A Produção
é Tudo! Eles se dirigem para a instância do trabalho vivo, que – ironi-
camente – é a instância humana que o capital busca a reduzir a mera
força de trabalho como mercadoria.
O discurso gerencial fetichiza a máquina, atribuindo-lhe quase
uma natureza humana. Ora, apenas um ser humano é objeto de amor.
Tratar com amor significa dar atenção e cuidar da sua manutenção
com carinho, visando a auto-preservação. Temos uma inversão típica
da relação fetichizada do capital: humaniza-se as coisas e coisifica-se os
homens. As máquinas tornam-se objetos de amor e os homens meras
mercadorias como força de trabalho, elementos numerários da conta-
bilidade empresarial.
O controle fabril mostra que as “medidas de segurança no traba-
lho” não significam preocupação com a saúde do trabalhador. Eles têm
um compromisso com a produtividade do trabalho visando a extração
de mais-valia relativa pelo capital. Por exemplo, no filme, o capataz exi-
ge que o operário trabalhe em pé tendo em vista que tal postura signifi-
ca produzir mais, apesar de que pode implicar em sérios problemas de
saúde para o trabalhador assalariado.
Diz o discurso gerencial no filme: “Sua saúde depende de sua re-
lação com a máquina”. Mas o que se observa é o primado da produção
que se impõe sobre a saúde do trabalhador. Na verdade, o que menos
interessa é a saúde do trabalho vivo – talvez, o capital tenha “preocu-
pação” com a saúde da força de trabalho como mercadoria na medida
em que signifique a preservação da capacidade de produção do capital.
Ora, como o organismo mecânico do capital é devorador, consumin-
do irremediavelmente a força de trabalho - Marx diria: “O movimento
do capital é insaciável” – justifica-se a “preocupação” gerencial com as
medidas de segurança no trabalho. Entretanto, a preocupação geren-
cial é uma falsa preocupação – ela se restringe a aspectos operacionais

101
Trabalho e Cinema • Volume 3

no manejo das máquinas que, se não forem respeitados pelo operador


redundará em parada na produção e prejuízos para a empresa capita-
lista.
Embora as medidas de segurança no local de trabalho devam ser
respeitadas para se evitar acidentes de trabalho, a saúde do trabalhador
não depende apenas da sua observância. Pelo contrário, as medidas
de segurança no trabalho não tratam (e ocultam) a verdadeira insegu-
rança que desefetiva o trabalhador assalariado: a natureza do trabalho
estranhado.
No filme, o controle do capital no local de trabalho se expres-
sa também na saída da fábrica – território do despotismo capitalista
– quando operários, selecionados pela máquina são revistados (ironi-
camente, o dispositivo automático possui a curiosa denominação de
“Imparcial”). “Vermelho. Pra revista” – acusa a vigilância. O operário
selecionado diz: “Eu não roubo”. O guarda da segurança diz: “Não é a
mim que deve dizer isso”. Esta é mais um exemplo da lógica capitalista
da culpabilização da vítima. Ocorre, nesse caso, uma inversão estra-
nhada. No sistema do capital, os expropriados são suspeitos (e acusa-
dos) de serem os expropriadores.
Nesta cena do filme, os estudantes agitadores da extrema-esquer-
da, portadores da teoria materialista, vociferam na saída da fábrica:
“Operário, não de se deixe revistar! A violência patronal te revista todo.
Revista o teu corpo e a rua mente. Para os patrões os ladrões são vocês,
mas na verdade são eles os ladrões. Temos que revistar as contas ban-
cárias dos patrões engordados com o sangue, com a vida e o trabalho
dos operários. Não permitam que revistem seus corpos e suas mentes.”
O estudante barbudo da extrema-esquerda provoca de forma continua
Lulu, questionando-o sobre suas atividades no tempo livre. O conteú-
do do discurso radicalista é verdadeiro, mas a sua forma perverte sua
intencionalidade (talvez, não se conscientiza, mas provoca - e estressa
- os operários).
A morfologia sócio-técnica da fábrica capitalista é constituída
por um corpo de máquinas-ferramentas que incorporam um contin-
gente de força de trabalho que, como trabalho vivo, “contrapõe-se” ao

102
O mundo do trabalho através do cinema

trabalho morto (as máquinas-ferramentas e o conjunto do complexo


fabril). A produção fordista é caracterizada pela relação “um operador
e sua máquina-ferramenta” ou ainda, “um conjunto de operadores e a
linha de montagem acoplada a uma esteira mecânica”.
No filme, a máquina-ferramenta de Lulu fabrica peças abstratas. O
velho Militina percebeu isso quando se interrogou: “O que fabricamos
naquela fábrica? Pra que servem aquelas peças…milhões de peças?”.
Na fábrica do filme “Tempos Modernos”, também nos interrogamos: o
que se fabrica naquela fábrica?. É o cúmulo da irracionalidade do capi-
tal como produto do trabalho abstrato. Na medida em que o trabalho
produtor de valor é o trabalho abstrato, a natureza qualitativa do que se
produz pouco interessa à lógica capitalista. Apesar do valor de troca ser
dependente do valor de uso, em si, ele o despreza. Nos lembremos que
foi a relação estranhada do produtor com o produto que enlouqueceu o
velho Militina (como iremos ver adiante). Na sua conversa com Militi-
na, Lulu disse que sabe que faz peças que pertence a outra máquina que
serve a um motor…que porém não está ali. E Militina irônico observou:
“Ah, não está ali?”. Eis a lógica do trabalho estranhado: abstratividade
de propósito e ausência de resultados concretos.
O trabalho monótono e repetitivo da fábrica fordista exige mera
atenção e cuidado com a máquina, liberando, nesse caso, os recursos da
dialogicidade e fantasias do operador – na produção fordista-taylorista,
a cabeça está separada do corpo (eis o principio taylorista da separação
entre execução e concepção).
A relação de Lulu, o ferramenteiro, com seu torno mecânico, é
uma relação quase afetiva que mobiliza toda sua corporalidade viva
(cabeça, tronco e membros). Ele se prepara com atenção e cuidado para
enfrentar a máquina como se preparando para um duelo de vida ou
morte. Há uma tensão cotidiana que consome corpo e mente do operá-
rio – isto é, a subjetividade do trabalho vivo e força de trabalho.
Em “Americanismo e fordismo”, Antonio Gramsci, observou que
o taylorismo rompeu o velho nexo psicofísico do trabalho profissional
qualificado, que exigia uma determinada participação ativa da inteli-
gência, da fantasia, da iniciativa do trabalhador” e buscou desenvolver

103
Trabalho e Cinema • Volume 3

no trabalhador, ao máximo, as atitudes maquinais e automáticas. Gra-


msci observou que no taylorismo, a qualificação é medida “a partir de
seu desinteresse intelectual, da sua mecanização”.
Entretanto, Gramsci indicaria que uma das contradições viscerais
do taylorismo, que iria contribuir para a crise do processo de trabalho
capitalista nas década de 1960/1970, é que, com Taylor, só o gesto físico
mecanizou-se inteiramente, deixando livre o cérebro para outras ocu-
pações. Eis o “calcanhar de Aquiles” do fordismo-taylorismo: no taylo-
rismo-fordismo, o homem produtivo tem muito mais possibilidade de
pensar, inclusive pensamento pouco conformista. Gramsci observa
que os industriais norte-americanos compreenderam muito bem “esta
dialética inerente aos novos métodos industriais”. Diz ele: “Compre-
enderam que ‘gorila domesticado’ é apenas uma frase, que o operário
continua ‘infelizmente’ homem e, inclusive, que ele, durante o trabalho
pensa demais ou, pelo menos, tem muito mais possibilidade de pensar,
principalmente depois de ter superado a crise de adaptação. Ele não
só pensa, mas o fato é que o trabalho não lhe dá satisfações imediatas,
quando compreende que se pretende transformá-lo num gorila domesti-
cado, pode levá-lo a um curso de pensamento pouco conformista”.
No filme “A classe operária vai ao paraíso”, Lulu executa gestos
maquinais e automáticos, deixando livre o cérebro para a fantasia com a
bunda de Adalgisa. Nesse caso, temos o que poderíamos denominar de
técnica da sublimação às avessas que torna o operário Lulu, um campeão
de produtividade. Na medida em que o trabalho não lhe dá satisfação
imediata e ele optou por ser um campeão de produtividade. Lulu dribla
o sofrimento do trabalho estranhado, apegando-se a fantasias sexuais.
Ao invés de ocupar seu cerebro com “pensamentos pouco conformista”,
Lulu se concentra em outro mundo: “Cada peça é um buraco; cada bura-
co é uma peça; para não cair no buraco, penso na Adalgisa.” E diz: “Eu me
concentro na bunda da Adalgisa e vou: uma peça, uma bunda”.
O operário Lulu opera uma curiosa inversão na sua disposição ín-
tima para emular um melhor desempenho no trabalho: tendo em vista
que a fábrica o aborrece, ele trabalha. Nesse caso, o trabalho é válvula
de escape para um aborrecimento existencial. Entretanto, a totalida-

104
O mundo do trabalho através do cinema

de social é uma imensa fábrica. Por isso, a válvula de escapa falha. A


vida pessoal de Lulu o aborrece. Nesse caso, temos uma sublimação às
avessas – Lulu descarrega suas energias vitais reprimidas no trabalho
estranhado. Ocorre a inversão sinistra indicada por George Orwell no
romance 1984: “Liberdade é Escravidão; Paz é Guerra”. Diríamos: Vida
é Morte.
A inversão estranhada, nódulo racional da sublimação às aves-
sas, é um traço distintivo do trabalho estranhado. Disse Marx: “...quan-
to mais poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna;
quanto mais rico de espírito o trabalho, mais pobre de espírito e servo
da natureza se torna o trabalhador. [...] Esta relação é a relação do tra-
balhador com a sua própria atividade como uma [atividade] estranha
não pertencente a ele, a atividade como miséria, a força como impotên-
cia, a procriação como castração. A energia espiritual e física própria
do trabalhador, a sua vida pessoal - pois o que é vida senão atividade -
como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele, não
pertencente a ele. O estranhamentode-si (Selbstentfremdung), tal qual
acima o estranhamento da coisa.)” (Karl Marx, “Manuscritos Econômi-
co-Filosóficos”, 1844)
A técnica de Lulu é conversar pouco e divagar na fantasia da bun-
da – a bunda de Adalgisa. A fantasia sexual de Lulu (como a Nona Sin-
fonia de Beethoven, para Alex, em Laranja Mecânica, de Stanley Kubri-
ck), é o recurso sublimativo invertido que permite a ele se sentir como
homem livre e ativo mesmo sendo mero agente reiterativo da ordem
opressivo do capital. Nesse caso, o humanamente sublime se interverte
em medium sublimatório para a reiteração do estranhamento humano.
Eis a suprema contradição: a forma humana tende a denunciar o con-
teúdo alienado (animal). Mais uma passagem dos Manuscritos econô-
mico0filosóficos, de Karl Marx, explicita outra dimensão da inversão
estranhada que está na base da sublimação às avessas. Diz Marx: “O
homem (o trabalhador) só se sente como [ser] livre e ativo em suas fun-
ções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação,
adornos etc, e em suas funções humanas só [se sente] como animal. O

105
Trabalho e Cinema • Volume 3

animal se torna humano, e o humano, animal”. (Karl Marx, “Manuscri-


tos Econômico-Filosóficos”, 1844)
Na fábrica fordista, o templo da exploração disciplinar do corpo e
mente do trabalhador assalariado, qualquer dispersão fisico-espiritual
é um atentado à dogmática do capital. Como Jeová, o Capital é um Deus
que exige dedicação exclusiva. Numa das cenas do filme, o supervisor
do chão de fábrica arranca uma foto de mulher nua afixada na pare-
de da fábrica. O local de trabalho da fábrica fordista-taylorista é um
local recalcitrante às pulsões de vida. O desejo – que dispersa corpo
e mente - é subversivo no território do capital. Ele tende a dispersar a
atenção e concentração necessárias para o desempenho produtivo do
trabalho. Ora, nada deve tirar a atenção do trabalhador das suas ta-
refas estranhadas. O desejo sexual só é admissível – como na fantasia
de Lulu com a bunda de Adalgisa – se conseguir tornar-se portador
da emulação da produtividade do trabalho. A sexualidade só se torna
aceitável, caso seja sublimada às avessas para a preservação da ordem
burguesa – isto é, tornar-se mercadoria e incorporar a forma animales-
ca da inversão estranhada (é o que ocorre não apenas com a fantasia
sexual de Lulu, mas com a própria sexualidade como mercadoria no
mundo do capital).
O operário Lulu é um homem tensionado e intranqüilo em suas
disposições intimas. Não consegue ter uma vida sexual insatisfató-
ria com a mulher. O fetichismo da produção o dilacera intimamente,
esgarçando sua vida pessoal. É um homem insatisfeito em seus care-
cimentos humanos. Quanto mais alienado de si, mais intranqüilo As
fantasias sexuais que alimenta no local de trabalho (como a obsessão
pela bunda de Adalgisa), recurso íntimo de sublimação às avessas,, são
meros sintomas da sua desefetivação humano-genérica. Adalgisa diz:
“Mas você só pensa nisso?”. Ora, Lulu é o homem comum, operário-
padrão do filme. Por isso, nele se manifesta, de formas extrema, as
sintomatologias do homem burguês dilacerado e intranqüilo, carrasco e
algoz da ordem do fetichismo do capital.
O operário Lulu, 31 anos de idade, trabalhando há 15 anos na
fábrica – portanto desde os 16 anos – é um homem comum submetido

106
O mundo do trabalho através do cinema

à miséria do capital. Mas aos 31 anos de idade, sente o desgaste paulati-


no de sua corporalidade viva. Ele já teve intoxicação e úlcera, sintomas
físicos da desefetivação humano-genérico. As doenças de Lulu pos-
suem nexo causal com o trabalho. Ele próprio o reconhece. Mas Lulu
sente – aos 31 anos – dificuldades de conciliar o sono e insatisfação
na vida sexual com a mulher. Torna-se um homem consumido pelo
trabalho estranhado que o aliena cada vez mais de si mesmo como ser
humano-genérico. Essa alienação se traduz em problemas de saúde do
trabalhador.
O momento significativo de inflexão da narrativa do filme “A
classe operária vai ao paraíso” é o momento da perda do dedo de Lulu.
A pressão pelo cumprimento da quota cria um ambiente hostil entre
Lulu, o operário-padrão, e os demais operários que se sentem superex-
plorados pelo novo sistema de produção baseado nas quotas. Aliás, o
elemento narrativo que detona a problemática do filme é a adoção das
quotas como inovação organizacional na fábrica fordista.
A nova sistemática de trabalho implica na revisão dos tempos de
produção de cada máquina. Lulu como operário-padrão, é a medida da
nova média elevada de produtividade do trabalho. Cada máquina deve
aumentar a sua produção em torno de 30%. Busca-se reduzir o tempo
de trabalho necessário na produção das peças. Lulu diz: “Se parar a
máquina, perde tempo”. Sob o olhar atônito do colega de trabalho, Lulu
se arrisca a sofrer um acidente de trabalho, expondo-se à máquina em
movimento ao retirar (e colocar) peças que estão sendo manufatura-
das, sem parar a máquina.
Com a sistemática das quotas, torna-se intensa a pressão sobre
os operários no chão-de-fábrica visando o aumento da produção.
Acompanha-se o rendimento de cada operário hora-a-hora. Verifica-se
se estão cumprindo a quota mínima. Em cada momento, surgem atri-
tos pessoais entre supervisores de produção e operários que aparecem
como resistências contingentes da classe contra a exploração do capital.
É a luta de classes – em sua dimensão contingente - que aparece nos
interstícios da produção. O sistema de quotas – elemento da reestru-
turação produtiva do capital – acirra o conflito entre capital e trabalho

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Trabalho e Cinema • Volume 3

organizado. Mais uma vez, Elio Petri se utiliza da referência de cunho


sexual para contestar a ordem repressiva do capital. Questionado pelo
supervisor de produção sobre o ritmo de sua produção, o operário diz:
“Sinto muito, mas eu me regulo segundo a minha velocidade de mas-
turbação”.
Diante dos novos tempos de produção, que intensificará o ritmo
de trabalho, os operários esboçam uma reação coletiva. Por exemplo, a
representação sindical no local de trabalho pergunta ã chefia: “A par-
tir de quando vigorarão esses tempos?”. A chefia, persona do despo-
tismo fabril, diz que entrarão em vigor imediatamente. Os operários
não concordam – surge o impasse. Os operários clamam: “Deve nos
dizer quanto ganharemos com isso”. E ainda: “Maior produção, maior
salário”. A autocracia da chefia faz o lider sindical no local de trabalho
observar: “Escute aqui. Não estamos numa prisão. Deve aprender a dis-
cutir com os operários!”.
É a nova sistemática de trabalho – a adoção das quotas de pro-
dução e a intensa pressão pela produtividade do trabalho que trans-
tornam o trabalho e a vida cotidiana do personagem principal do fil-
me: Lulu Massa (assim como o aumento da velocidade da máquina na
última hora da jornada de trabalho no filme “Tempos Modernos”, de
Charles Chaplin, fez o industrial worker surtar). Na verdade, no filme,
a perda do dedo de Lulu e a agitação sindical-grevista dos operários
B.A.N decorrem do aumento da exploração da força de trabalho sob as
condições da produção da mais-valia relativa.
Como um tipo de meta a ser cumprida, a imposição das quotas de
produção é uma forma organizacional de reestruturação produtiva do
capital. Os operários organizados em sindicatos lutam para negociar os
termos da nova sistemática de trabalho, Por outro lado, os estudantes
radicalistas não aceitam nenhuma negociação com o capital e exigem a
abolição imediata das quotas de produção.
Como operário-padrão, Lulu provoca os companheiros de traba-
lho: “Tem que se acabar para acompanhar o meu ritmo”. Mas os ope-
rários o provocam à altura. Um deles diz: “Você se acaba sozinho pois
eu não cumpro a quota.” Um outro operário alerta Lulu: “Lulu, a vida

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O mundo do trabalho através do cinema

de um homem é longa. Pense na velhice; pense em quando você terá a


espinha tomada pela artrite no hospital, com pneumonia, meio cego,
meio surdo e sem um amigo.” Lulu fica irritado com as advertência
do colega de trabalho. Repete: “Te quebro o cranio! Armo uma confu-
são! Te arranco as tripas! Te quebro a espinha em dois pedaços! Pego
uma metralhadora!”. Lulu está cego pelo ódio. Talvez por isso, perde a
atenção na máquina e tem o dedo decepado (uma curiosidade: logo na
cena inicial do filme, na entrada na fábrica, uma cartaz com um dedo
prenuncia a cena do decepamento do dedo de Lulu).
Na medida em que os operários tiraram a atenção de Lulu, des-
viando seus pensamentos para atitudes de revanche, Lulu foi levado a
cometer – sob a ótica fetichista do capital - um gesto de desamor com a
máquina (se Lulu pensasse na bunda de Adalgisa, estaria sublimando
sua libido para um melhor desempenho na produção – mas o ódio con-
tra os operários que o contestavam, era um ato meramente dispersivo
que não contribuiu para melhor desempenho com a máquina). Diz a
voz da gerência: “Trate com amor a máquina que lhes foi confiada.” A
máquina-ferramenta o puniu: decepou seu dedo! A máquina é impla-
cável com aqueles que não lhe dão dedicação exclusiva.
O acidente de trabalho de Lulu - que lhe decepou um dedo – pre-
judicou a produtividade do trabalho na fábrica. Lulu era o operário-
padrão que dava o ritmo da produção. É diante do cenário de crise de
produtividade que o capital apela para o espirito de colaboração entre
capital e trabalho. Diz o gerente da fábrica da B.A.N.: “Precisamos fazer
como antes; restabelecer aquele espírito de colaboração, compondo os
interesses do operariado e do capital.”
Ora, sob o capitalismo fordista-keynesiano, o discurso da colabora-
ção de classe implicava o reconhecimento pelo capital, da existência de
interesses diferenciados entre capital e trabalho. Operários são operários.
O que se busca é restabelcer o espírito de colaboração de classe (admite-se
assim, que existem classes sociais). Entretanto, sob o capitalismo global,
com a hegemonia toyotista-neoliberal e a dissolução dos coletivos orga-
nizados de trabalho, o discurso da colaboração de classes se interverte –
em geral – no discurso do protagonismo capitalista, onde operários não

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Trabalho e Cinema • Volume 3

são mais operários, mas parceiros/colaboradores do empreendimento


capitalista. Individualiza-se a relação de colaboração/envolvimento. Não
se reconhece a classe como sujeito de direitos.
Inquieto, o patrão da metalúrgica B.A.N. – talvez mero gerente
executivo da fábrica, que responde diante de um Conselho de Acionis-
tas, lamenta que a produção tenha caído. Ele se dirige ao chão de fábri-
ca para conversar com seus operários, acompanhado dos engenheiros
de produção. Diz: “Falo por vocês. Eu também sou um dependente”.
Ora, o capitalista é mera persona do capital. De fato, ele é um depen-
dente, inserido, portanto numa situação de alienação/estranhamento.
Cumpre meramente uma função dirigente: organizar a exploração
da força de trabalho, extrair mais-valia e valorizar o capital investido.
Caso não cumpra com sua função executiva, tende a ser desefetivado
enquanto individualidade pessoal de classe. Inclusive pode ser também
demitido pelo Conselho de Administração da empresa (caso ela seja
uma sociedade anônima). O homem burguês dirigente da B.A.N é um
mero “proletário” do capital, absolutamente incapaz de emancipar-se
da sua personalidade estranhada.
Mais uma vez, o velho Militina, ex-operário enlouquecido, conse-
guiu apreender que senhores e escravos são participes (e dependentes)
do mesmo jogo do capital – o jogo do dinheiro. São personas do capital
implicados numa condição de alienação da sua dimensão humano-
genérica. Por isso, ricos e pobres enlouquecem do mesmo modo: “Nós
enlouquecemos porque temos pouco e eles porque tem demais.”
Após perder o dedo, Lulu volta para a produção. Entretanto, ele
não é mais o mesmo. Não apresenta o mesmo rendimento de trabalho.
O supervisor de produção Sanguetta, acusa que o rendimento está bai-
xíssimo e que ele acabará perdendo a quota. Como salientamos acima,
Lulu é a referencia para o ritmo de produção dos demais operários na
fábrica. Por isso, pressiona-se Lulu para retomar o desempenho pro-
dutivo anterior. Entretanto, Lulu diz: “Não é que não posso; é que não
quero! Tenho outras coisas na cabeça!”.
De fato, o acidente de trabalho – com a perda do dedo – fez Lulu
refletir sobre a loucura do trabalho. Ocorre um surto íntimo em Lulu que

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O mundo do trabalho através do cinema

o tornou um “critico” da lógica produtivista. Lulu oscila para a outra po-


sição extrema – “sabota” o ritmo de trabalho.
O supervisor Sanguetta diz que o ritmo de Lulu é de criança.
Nesse momento, Lulu diz: “Ah, sim! Crianças! As crianças vão à es-
cola! Tudo Mentira. Aqui não nos tratam como crianças do maternal?
Aliás, do reformatório!”. Ora, Lulu questiona o infantilismo da fábrica
fordista-taylorista, que suprime a autonomia mental-intelectual dos
operários , tornando-os meros executores do escritório da engenharia
de produção (Taylor observava que o operário-padrão da organização
científica do trabalho deveria ser um “homem bovino”, isto é, um ho-
mem que não pensasse muito e trabalhasse como um boi – e diríamos
mais, fosse para o matadouro sem se insurgir).
Sanguetta o ameaça com multa, e Lulu, indignado, vocifera que
antes de multá-lo, terão que devolver a ele tudo que lhe roubaram – in-
clusive o dedo. Ao ser ameaçado de multa por não acompanhar o ritmo
da produção, Lulu – o xodó dos engenheiros de produção – agora sem
um dedo, fica indignado e grita com os engenheiros de produção: “Por
que não me multam? Vamos, multem-me!”.
O operário Lulu tem um lampejo de consciência de classe ao per-
ceber que é roubado pelo capitalista. Num momento de indignação,
explicita-se a consciência de classe contingente de Lulu. A idéia de que
operários são roubados pelos capitalistas aparece no filme também na
cena da revista dos operários comentada acima. Naquela cena, como
disse o estudante agitador de extrema-esquerda: “Para os patrões os
ladrões são vocês, mas na verdade são eles os ladrões”. É o conceito de
mais-valia que é o sobretrabalho excedente não-pago pelo capitalista
ao operário.
Após o surto de indignação, Lulu é levada a ter uma entrevista
com o assistente social da B.A.N e a fazer um teste psicotécnico visando
identificar as causas do seu desvio de conduta na fábrica. Sob o ca-
pitalismo fordista-keynesiano, a profissão do assistente social – como
a profissão do psicólogo e sociólogo industrial - possui uma função
meramente disciplinar e conformativa. A pressão sobre as individua-
lidades pessoais visando a sua conformação às injunções da produção

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Trabalho e Cinema • Volume 3

fordista-taylorista como instituição social do trabalho é intensa e re-


corrente, utilizando-se para tal, de um corpo de profissionais (e técni-
cos) da conformação social. Aliás, a profissão do assistente social surgiu
com o fordismo nas primeiras décadas do século XX nos E.U.A.
No teste de discernimento, Lulu identifica os símbolos (cachimbo,
tromba, compasso e vaso de flores). O assistente social busca fazer cor-
relações psicanalíticas convencionais, como identificar a perda do dedo
com o sentimento de castração. Mas Lulu o desconcerta quando diz que,
agora sem o dedo, pelo contrário, aumentou o ritmo (ou disposição) de
fazer sexo: “Dou até 3 por noite”. O que o assistente social não percebe é
que, após perder o dedo, Lulu, de certo modo, se “liberou” do stress do
produtivismo das quotas, na medida em que se auto-impôs um ritmo de
trabalho mais lento – como ele disse:””Tenho outras coisas na cabeça”.
Ao revoltar-se contra o trabalho estranhado, destravou – pelo
menos, de imediato, sua vida sexual com Lídia, a cabeleireira (o que
não significa que tenha tornado sua vida sexual com a companheira
plenamente satisfatória, tendo em vista que, mais adiante, ao transar
no carro com Adalgisa, observou: “Aqui entre nós, com aquela lá, não
consigo mais”). Mas há uma incógnita: Lula diz gostar de dinheiro. Ora,
se Lulu gosta de dinheiro, por que se revoltou contra o trabalho e, por-
tanto, contra o dinheiro? Fica a interrogação para o assistente social.
É curioso, num certo momento, que o assistente social faz coisas
estranhas: ele arruma os lápis na caixa, colocando-os certinhos, em or-
dem. Talvez isto seja um tipo de obsessão maniaco-compulsiva, indí-
cio de algum tipo de loucura do trabalho. Como Militina observou – e
iremos tratar mais adiante - a sua loucura teve início com ele fazendo
coisas estranhas (por exemplo, quando comia, colocava os talheres re-
tinhos, em fila, como soldados).

2. No limiar da barbárie social: trabalho estranhado con-


sumindo vida humano-genérica

O filme “A classe operária vai ao paraíso” expõe não apenas a ex-


ploração da força de trabalho na fábrica, mas dimensão da vida cotidiana

112
O mundo do trabalho através do cinema

do personagem central – Lulu Massa – sendo consumida em sua inte-


rioridade pelo trabalho estranhado. Na verdade, como traço ontológico
da expansividade do capital, o trabalho estranhado tende a repercutir
nas instâncias pessoais, implicando a vida familiar e seus afetos (sexu-
alidade) das individualidades de classe. O trabalho estranhado produz
o estranhamento que convulsiona a vida pessoal de Lulu.
A pessoa humana Ludovico Massa (vulgo, Lulu) é um homem
bom, que trabalha como operário desde os 16 anos, sendo que, aos 31
anos, tornou-se um homem de vida fraturada, que busca, em si e para
si, preservar laços danificados e dispersos (por exemplo, ele sustenta
seu filho que está com a ex-mulher e ainda o filho da atual mulher com
quem mantém uma relação de companheirismo).
Ao invés do filme “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin, que
começa com o cenário do trabalho estranhado - a fábrica fordista, o
filme “A classe operária vai ao paraíso” começa com o cenário do estra-
nhamento íntimo do homem que trabalha. Lulu acorda na madrugada,
e volta a dormir. Horas depois, volta a acordar para ir trabalhar. Durante
o sono, a imagem da empresa o persegue (B.A.N.). Demonstra ser um
homem intranqüilo, “capturado”, em sua subjetividade, pelo capital.
O homem proletário imerso nos fetichismos do sistema estra-
nhado do capital é um homem intranqüilo. Ao escolher o comprome-
timento com valores do capital – Lulu é o operário-padrão da B.A.N.
– o homem que trabalha é envolvido num processo de desefetivação
humano-generica. A “captura” da subjetividade pelo capital – “captura”
que implica escolhas pessoais sob determinadas circunstâncias e condi-
ções – dilacera o núcleo humano-pessoal de Lulu.
É importante salientar, portanto, que a “captura” implica escolhas
pessoais-morais do homem que trabalha, sendo portanto, um gesto de
inautenticidade do homem alienado da sociedade burguesa. Na medi-
da em que a sociedade burguesa (de)forma individualidades pessoais
de classe como homens e mulheres inautênticos em sua vida cotidiana,
cria as condições humano-morais para as “escolhas” espúrias que ocor-
rem nos locais de trabalho.

113
Trabalho e Cinema • Volume 3

Uma dimensão da intranqüilidade visceral do homem proletário


é a intranqüilidade do sono. Lulu sonha com a linha de produção. A
fábrica está na sua vida. O trabalho estranhado consome sua vida pes-
soal e sua interioridade psíquica. Como o fetichismo da mercadoria,
o trabalho estranhado adere à vida pessoal de Lulu. Na verdade, a sua
vida cotidiana se impregna do “mal odor” do trabalho estranhado. Na
medida em que ele tem sua subjetividade “capturada”, sua mente – à
noite, durante o sono – divaga pelos espectros estranhados da explo-
ração capitalista.
O filme começa com a cena do despertar cotidiano de Lulu em
mais um dia de trabalho, após uma noite de sono intranqüilo. No de-
correr do filme iremos verificar a natureza da intranqüilidade de Lulu.
Talvez diante de uma situação de crise, a fábrica capitalista decidiu
aumentar o ritmo de produção (como salientamos, na virada da déca-
da de 1960 para a década de 1970, as economias capitalistas davam os
primeiros indícios de desaceleração, prenunciando a grande crise – a
primeira recessão generalizada da economia capitalista do pós-guerra,
em 1973).
Lulu acorda, tendo ao seu lado, um relógio-despertador (“paren-
te” próximo do cronometro taylorista na fábrica fordista); e a bandeira
do Milan, seu time de futebol. Está cansado. Bate na cabeça, observa o
filho que ainda dorme. Faz café e lê as manchetes de futebol no jornal
local.
Num certo momento, Lulu exclama: “A cabeça é tudo”. Ora, na
fábrica fordista-taylorista, não se exige a participação ativa da cabeça
do operário. Entretanto, é a cabeça – ou as escolhas que ela faz – que
implica (ou não) o trabalho vivo e a força de trabalho com os valores do
capital. A cabeça pode cultivar tanto pensamentos pouco conformistas
como comprometer-se com os valores da empresa. No decorrer do fil-
me, a cabeça de Lulu muda – ao perder o dedo ele próprio reconhece
que passou a ter “outras coisas na cabeça”.
Ao dizer que a cabeça é tudo, Lulu coloca em seu horizonte de
auto-percepção, o ordenamento lógico da fábrica fordista, onde a ca-
beça – o corpus administrativo do capital envolvida na concepção - é a

114
O mundo do trabalho através do cinema

direção central que faz os projetos e programa a produção e que põe em


movimento os braços, as pernas, a boca, os olhos, a língua.
Ao fazer a analogia do individuo com uma fábrica, Lulu de-
monstra estar imerso no estranhamento do capital. A fábrica – natu-
ralizada como organismo vital – dividida entre os responsáveis pela
concepção e os responsáveis pela execução – torna-se fetichizada.
Nesse sentido, a analogia da “fábrica de merda”, expressão do feti-
chismo da fábrica, denuncia que Lulu está imerso nos fetichismos da
ordem social estranhada do capital. Na verdade, Lulu é um homem
proletário intranqüilo subsumido ao fetichismo da fábrica. O que ex-
plica seu sono intranqüilo
Na medida em que Lulu tem uma vida pessoal consumida pelo
trabalho estranhado, ele tem não apenas um sono intranqüilo, mas
uma vida sexual conjugal insatisfatória. Nesse caso, há um nexo causal
entre sexualidade travada e imersão no trabalho estranhado.
As novas condições da exploração da força de trabalho na empre-
sa, exacerbando a extração de mais-valia relativa, e sua escolha pessoal
em comprometer-se a ganhar 20 mil liras a mais, tornando-se o operá-
rio-padrão da B.A.N, consumiram suas energias vitais. Essas condições
– que incluem também a rotina e monotonia da vida conjugal proletá-
ria – contribuíram para a falta de desejo sexual de Lulu, impedindo sua
ereção com sua companheiro Lidia.
Num primeiro momento, Lulu – como um machista latino - se uti-
liza de desculpas para explicar sua falta de desejo sexual – “Como é pos-
sível fazer amor com carne enlatada? Cabelo de mentira…”. Mas a mulher
contesta e diz que ele deve marcar uma consulta e procurar um médico.
Lulu se irrita, expondo sua condição do trabalho vivo que sofre com a
exploração do capital. Diz que o seu membro viril não é uma máquina
que funciona automaticamente: “Acha que tenho uma máquina entre as
pernas?”. Na verdade, seu membro virial é parte da subjetividade desefe-
tivada do homem que trabalha pela exploração do capital.
Depois, Lulu assume o nexo causal entre seu estilo de vida operá-
ria, as novas condições de exploração na fábrica e a sexualidade travada
com sua falta de desejo sexual. Ele diz que só sente vontade pela manhã.

115
Trabalho e Cinema • Volume 3

“Na fábrica, daria até três, mas você não está lá.” Ora, o trabalho estra-
nhado tende não apenas a consumir trabalho vivo, mas a organizar a
alocação espaço-temporal das energias vitais do desejo do sujeito que
trabalha.
Como salientamos acima, a causalidade da falta de desejo sexual
de Lulu por Lidia, sua companheira, possui uma dimensão comple-
xa. Não podemos atribui-la tão-somente ao trabalho estranhado, mas
também ao estranhamento social com o irremediável desgaste afetivo-
amoroso da vida sexual em virtude da rotina (e monotonia) da vida
proletária Além disso, Lulu, em sua singularidade pessoal de macho
latino, gosta de mulheres noviças (como Adalgisa, a operária).
As cenas de Lulu diante da TV, com mulher e filho, demonstram
a monotonia do tempo livre no lar fordista. Lidia, sua companheira
que trabalha num salão de beleza, faz o trabalho doméstico. Numa das
cenas, questiona se ele pegou dinheiro para dar para ex-mulher. Lulu, o
machão latino, é um homem bom. Noutra cena, eles assistem o mesmo
programa na TV, talvez no mesmo horário e canal (Lulu está inquieto
porque o chamam de “puxa-saco” do patrão. Diz ele: “Eu nem conheço
o patrão”. Lulu diz que a fábrica não é como um salão de beleza onde o
patrão está ali e se quiser te botam na rua. “Na fábrica não tem patrão.
Tem uma sociedade...”, diz ele). Mas Lidia, como mulher carente, está
inquieta com a falta de desejo sexual do companheiro que alega úlcera.
Antes era dor de cabeça. “Você nunca tem vontade”, diz ela.
Lulu aproveita a greve na fábrica da B.A.N. para transar com seu
objeto de fantasia sexual na fábrica – Adalgisa. São momentos de trans-
gressões da ordem burguesa. Por um lado, a greve operária. Por outro,
a “escapada” de Lulu que desvirgina a jovem Adalgisa.
A perda do dedo de Lulu, ironicamente, não significou sua irre-
mediável castração. Pelo contrário, deu-lhe mais vigor humano. Pri-
meiro, Lulu rompe com suas atitudes de operário-padrão, passando a
ter outras coisas na cabeça. A transa sexual com Adalgisa, dentro do
carro, num estacionamento abandonado de uma fábrica desativada,
demonstra, entre outras coisas, que a jovem Adalgisa não é mais uma
mera fantasia sexual de Lulu, objeto-veículo de sublimação às avessas

116
O mundo do trabalho através do cinema

do operário-padrão, mas sim, tornou-se uma mulher real que Lulu tira
a virgindade.
Ora, Lulu sente imensa satisfação no ato sexual com Adalgisa. Foi
um ato apressado no estilo fordista – diz ele: “Não percamos tempo”.
“Ah, como estou satisfeito! Pronto, acabou!”, observa Lulu. “Você não
pode imaginar o prazer que me deu. Aqui entre nós, com aquela lá não
consigo mais. Pensei que ia acabar como o Militina. Já estava culpando
a fábrica. O dia todo ali, pedalando aos 31 anos.”. Adalgisa diz: “Eu não
senti nada. Só dor”. E arremata: “Amor é só isso?”. Lulu, pragmático,
diz: “Amor, amor…amor se faz; uma vez feito, tá feito. E aí se volta ao
normal. Como os animais.”.
É um diálogo deveras interessante que revela que o operário Lulu,
o metalúrgico, é um homem em processo de desefetivação humano-ge-
nérica. É claro que a perda do dedo e sua insurgência individual contra
a exploração do capital na fábrica da B.A.N não o libertou da condi-
ção objetiva do trabalho estranhado e estranhamento social. Lulu é um
homem constituído pelo metabolismo social do capital, individualida-
de pessoal de classe (de)formada em sua sensibilidade (e afetividade)
humano-genérica pela lógica (e estética) da mercadoria. Por isso, Lulu
em suas funções humanas, ele se sente um animal. Eis o traço típico da
vida estranhada do capital. O sexo tornou-se mera satisfação animal e
o amor, mero ato de fazer sexo. Adalgisa está desapontada. Mas Lulu
está realizado como macho.
Com Adalgisa, Lulu conseguiu ter desejo sexual. Diz ele: “Pensei
que ia acabar como o Militina. Já estava culpando a fábrica”. Como sa-
lientamos acima, é claro que a insatisfação sexual de Lulu com Lidia,
sua companheira, não poderia decorrer apenas do trabalho estranhado
na fábrica. Existe uma insatisfação visceral em Lulu ligada à dimensão
do irremediável desgaste (e desalento) afetivo-amoroso da vida cotidia-
na proletária. A jovem Adalgisa mostrou a Lulu que ele - como macho
latino – é um homem vivo, afastando dele o espectro da loucura de Mili-
tina. Portanto, a loucura do trabalho sob o modo de produção capitalis-
ta decorre, de certo modo, do medo da perda irremediável do pulsar da
afetividade sexual. Por isso, Lulu disse: “Ah, como estou satisfeito!”.

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Trabalho e Cinema • Volume 3

Lulu é um homem intranqüilo, imerso em objetos-fetiches que


constituem o mundo da produção e vida cotidiana do capital. As coisas
o perseguem. De forma metafórica, Elio Petri utiliza objetos-coisas de
animais observando Lulu. Por exemplo, numa das primeiras cenas do
filme, um burrinho observa o operário Lulu que acorda para mais um
dia de trabalho. Noutra cena, quando Lulu transa com Adalgisa dentro
do carro, vemos uma pequena estatueta de cão. Mas existe uma cena
curiosa: desalentado, Lulu, operário desempregado, decide numa tar-
de, trancar-se no apartamento e liquidar as coisas que acumulou nos
últimos anos. Diz ele: “Vendo tudo! Liquidação!”. Lulu está cercado por
um mundo de mercadorias inúteis. Ele traduz o preço delas em horas
de trabalho. “Bichos variados”, diz ele. E assevera: “Não servem para
nada. Se pego o inventor dessas porcarias, Se eu pego quem inventa
essas coisas; quem tem essas idéias eu parto a cara dele.”
Lulu observa que tem 4 despertadores. “Por que será?”, pergunta ele
ironicamente. Ao abrir um armário, exclama: “O Museu! O Museu!”. É o
local em sua casa onde ele guarda as notas e as lembranças. Diz ele: “Qual-
quer dia fico aqui também”. Observamos um quadro de Josef Stalin – teria
Lulu em algum momento sido militante do Partido Comunista Italiano? - e
logo depois, ele pega um envelope de ações. Diz ele: “Vou ficar aqui embal-
samado também’”. Enfim, Stálin e ações, enfim, “múmias”-ícones do século
XX - o comunismo soviético e o capitalismo democrático. Ao encontrar o
boneco do Pato Donald de plástico exclama: “ Está me controlando? Eu te
quebro, sabia? Me controlando. O que está controlando?”.
O operário Lulu é um homem alienado do produto e do proces-
so de trabalho – é um operário na fábrica fordista. Mas é um homem
desvinculado de si e dos Outros. Separou-se da primeira mulher com
quem teve um filho (Armando). É um homem alienado da futuridade
de si pois não consegue se relacionar pessoalmente com nenhum dos
filhos – Armando ou Arturo, filho da sua companheira Lídia.
Numa das cenas, visita a ex-mulher para falar da perda do dedo,
mas todos estão indiferentes a ele – inclusive o filho Armando. “Perdi
o dedo e quero que meu filho saiba”, diz ele. O colega de fábrica, sindi-
calista, companheiro de sua ex-esposa, cobra dele dinheiro para pagar

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O mundo do trabalho através do cinema

despesas do filho. A ex-mulher observa: “Um pai mesmo com nove


dedos deve manter o filho”. Lulu reclama que o filho chama o compa-
nheiro de sua ex-mulher de pai. A avó diz: “Pra ser pai precisa pagar.
Agora o pai é ele”. Lulu é um proletário sem laços com a futuridade. É
um homem alienado da paternidade. Não é reconhecido como pai pelo
próprio filho. Após encontrar a indiferença da ex-mulher e do filho Ar-
mando, Lulu vai busca conquistar o filho da sua companheira, - Arturo
– indo busca-lo na escola. Mas encontra certo distanciamento.
Ao ir buscar Arturo na escola, Lulu observa: “Parecem operários
pequenos”. As crianças saem da escola em massa, como os operários
da fábrica em que trabalhava. De certo modo, Lulu intui, naquele mo-
mento, que a lógica fordista que organiza a produção de mercadorias,
impregna a vida social, inclusive a instituição escolar. A sociedade bur-
guesa tornou-se uma imensa indústria. Eis o sentido do conceito de
grande indústria tratada por Marx. Ao invés de ser apenas uma for-
ma material de organização da produção capitalista sob a produção da
mais-valia relativa, ela é uma forma social de dominação do capital.
Mas as cenas do encontro de Lulu com o “louco” Militina são as
cenas de lucidez do filme “A classe operária vai ao paraíso”. Aliás, o
“louco” Militina é um dos personagens mais lúcidos do filme. Recolhi-
do ao hospicio público, recebe a visita de Lulu. Lulu está inquieto pois
teme que possa estar enlouquecendo. Militina é um “espectro” que ron-
da Lulu Massa. Nesse momento, ao conversar com o “louco” Militina,
coloca-se com clareza o vinculo entre trabalho estranhado e loucura. É
um tema candente do mundo do trabalho sob o capitalismo global.
Logo de começo, Lulu pergunta a um dos internos quantos anos
ele tem. Fica impressionado com a pouca idade do enlouquecido. Encon-
tra Militina lendo “Spartacus” e rasgando algumas páginas do romance
de Howard Fest. O amigo louco mostra depois uma curiosa reportagem
onde, em Estocolmo, um chimpanzé pensa que é homem. Lula observa:
“Pobre animal!”. Lulu mostra a Militina o registro de suas horas de tra-
balho na fábrica. Existe um detalhe importante no registro de horas de
trabalho de Lulu: a participação das quotas no salário total é bastante sig-

119
Trabalho e Cinema • Volume 3

nificativa, demonstrando o alto grau de exploração da força de trabalho


na B.A.N. (horas normais: 17.400 liras; quotas: 9.918 liras).
Na verdade, Lulu, ao conversar com Militina, está intranqüilo so-
bre uma coisa. Ele quer saber de Militina como soube que estava fican-
do doido. A lucidez de Militina impressiona. Primeiro diz: “Mas são os
outros que decidem que você está doido”. E arremata: “A verdade é que
já tinha suspeitado antes deles.” E observa que a suspeita é uma rapo-
sa peluda, ladra, covarde, reacionária. Diz que fazia coisas estranhas.
Lulu está curioso. Pergunta: “Que coisas?”. Militina relata que passou
a ter obsessões compulsivas com a organização dos talhares à mesa:
“Quando comia, por exemplo, os talheres tinham que estar retinhos em
fila, sabe? Como soldados.” E arremata algo interessante, que demons-
tra mais uma vez a tese da totalidade social como fábrica: “Eu estava ali
comendo e sonhava que ainda estava na fábrica.”
Mas a loucura de Militina veio de uma obsessão demasiadamen-
te humana: saber o que se produz naquela fábrica: “O que fabricamos
naquela fábrica? Pra que servem aquelas peças…milhões de peças?”.
E disse que um dia pegou o engenheiro da B.A.N. pelo pescoço e per-
guntou: “O que se fabrica nesta fábrica? Diga ou eu te mato”. E arre-
mata: “Um homem tem o direito de saber o que faz, pra que serve…
ou não?”.
Uma das idéias-força do filme é a idéia da fábrica como totalidade
social. Eis o sentido do conceito de grande indústria. Por exemplo, na
cena com Militina, Lulu pergunta como é a comida no hospício e Mi-
litina diz que é igual a do refeitório da B.A.N.: “Aqui é igual à fábrica,
só que não deixam sair de noite.” Militina sente falta das conversas de
bar com os companheiros. Embora ressalte a hipocrisia dos próprios
companheiros de bar. Mas a idéia da totalidade social como fábrica
aparece noutras cenas do filme como, por exemplo, a cena em que diz
para Arturo, filho de sua companheira, que vai esperar na escola: “Pa-
recem operários pequenos”. Na conversa com Militina, outro momento
em que a idéia-força aparece é quando o amigo louco observa que tinha
percebido que estava ficando doido quando, na hora da comida, passou
a sonhar que ainda estava na fábrica. Enfim, sob o sistema do capitalis-

120
O mundo do trabalho através do cinema

mo global, as fronteiras entre produção e reprodução social tendem a


tornar-se tênues - Escola é Fábrica! Hospício é Fábrica! Vida é Fábrica!
Fábrica é Vida! A extensão orgânica da fábrica para a totalidade social
enlouquece as individualidades pessoais ou a colonização do mundo da
vida pelo mundo sistêmico do capital é um elemento de desefetivação
humano-genérica ou de insanidade do homem que trabalha.
Mas, Militina possui uma explicação para a loucura universal. Diz
ele: “Lulu, é o dinheiro. Todos fazemos parte do mesmo jogo. Patrões e
escravos do jogo do dinheiro. Nós enlouquecemos porque temos pouco
e eles porque têm demais. Assim é este inferno…” E conclui melancóli-
co: “Esse planeta cheio de hospitais, de manicômios, de cemitérios, de
fábricas, de quarteis, e de ônibus A cabeça pouco a pouco sai de orbita..
faz greve, greve, greve…”
Militina é um observador sagaz – verifica que no hospício púbi-
co a classe do proletariado está toda representada. A loucura do tra-
balho atinge a todo o mundo do trabalho, Diz ele: “Eram operários,
camponeses, pedreiros, policiais, funcionários, coveiros, contadores,
porteiros, motoristas, operários de primeira, segunda, terceira e até a
décima categoria..” Talvez um outro atributo existencial da condição
de proletariedade seja a propensão à loucura que é a forma mais aguda
desefetivação humano-genérica – isto é, a perda do sentido de realida-
de. E observa: “Os loucos ricos não estão aqui. Estão escondidos nas
clinicas privadas, o que é compreensível Se eles soubessem que os ricos
também enlouquecem…cairiam em prantos.”

3. A rebeldia do trabalho

O corte do dedo de Lulu irá deflagrar o processo de rebeldia ope-


rária. É o evento que promoverá uma inflexão na narrativa do filme,
alterando tanto a atitude do coletivo fabril, quanto a de Lulu Massa.
Indignados e revoltados contra a perda do dedo do companheiro de
trabalho, os operários encontram o motivo para se rebelar contra as
quotas. Cria-se um clima de quase quebra-quebra. Percebe-se no mo-
vimento coletivo dos operários naquela situação concreta a diferença

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Trabalho e Cinema • Volume 3

entre teleologias politicas. Um operário grita: “Greve! Ai está o resulta-


do da quota! Greve! Todos unidos!”. O representante sindical no chão-
de-fábrica procura acalmar a massa. Diz: “Não podemos perder a cabe-
ça!”. Um operário discorda da atitude contemporizadora: “Por que está
recuando agora?”. O líder sindical rebate: “Não estou recuando. Quero
refletir! Existem outros meios!”.
Antes de proclamar a greve, ele pensa em marcar uma assembléia
para organizar o movimento. Mais adiante clama contra os engenhei-
ros de produção, “cérebros” da fábrica fordista: “Vocês cortam os tem-
pos e nós cortamos os dedos! Queremos assembléia!”. Enfim, ocorre
um movimento operário espontâneo que extravasa sua contestação à
superexploração do trabalho. Deste modo, o corte do dedo de Lulu foi
o ato contingente que deflagra o movimento essencial de luta operária
contra as quotas.
O momento da assembléia sindical que ocorre no interior da fá-
brica, é o momento de explicitação das teleologias politicas que existem
no interior do movimento operário da B.A.N. Trata-se de uma fábrica
metalúrgica de alta organização no local de trabalho. De fato, os ope-
rários possuem uma consciência de classe em si, que os coloca contra
o capital, pelo menos no plano do reconhecimento de seus direitos so-
ciais e políticos. Ora, para reagir contra o capital, eles precisam fazer
escolhas decisivas sobre o que fazer. É nesse momento, que se coloca
as teleologias politicas. Como disse Lukács, o homem que trabalha é
um ser que dá respostas. O que significa que é obrigado a fazer escolhas
politico-morais. Só que, para que possa dar respostas, o homem que
trabalha precisa fazer as perguntas adequadas à situação concreta (nes-
se momento, se colocam as mediações politicas necessárias).
Ora, desde o começo do filme percebe-se que a luta operária é
clivada por diferenças de estratégias e táticas politicas (de um lados os
sindicatos unidos e, de outro, os estudos radicalistas, que conquista-
ram dentro do coletivo operário da B.A.N. algum apoio politico, prin-
cipalmente entre os jovens operários). As diversidades de posições
teleológicas é um dado sócio-ontológico ineliminavel da luta histórico-
politica de classe. Ela decorre dos diferentes graus de desenvolvimento

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O mundo do trabalho através do cinema

da consciência social, dos interesses materiais em jogo e das tradições


politico-culturais herdadas do passado nas circunstâncias concretas da
luta de classes.
A assembléia sindical abre com um operário apoiando as quotas.
Ele utiliza um argumento curioso que apela à consciência economi-
cista dos operários: “Mas, companheiros, para vocês, 20.000 liras por
mês, não valem nada? Considero a quota importante. Quando recebem
20.000 da quota, não é bom?” Logo adiante ele esclarece a posição: “Eu
sou a favor da quota, mas revista pra ganharmos o máximo possível”.
Ora, este operário compõe, com certeza, a base social que ga-
rante a posição politica da concertação propositiva de cariz classista
que busca – naquele momento - ganhar dentro do sistema produtor
de mercadorias mais participação nos lucros e resultados. Talvez não
se coloque no horizonte politico desta posição contingente a luta para
além do capital. Esta é a posição politica que marcou o sindicalismo e
a politica social-democrata no século XX. Nada contra a abolição da
exploração da força de trabalho, desde que ganhemos maior parcela de
riqueza material. Enfim, viva os “grilhões dourados” do assalariamen-
to! Tais posições politicas aproveitam-se – muitas vezes, sem o saber -
do fetichismo da mercadoria, para afirmar sua razoabilidade diante das
posições extremistas de esquerda.
O dirigente sindical conduz a assembléia colocando duas propos-
tas: abolição imediata da quota ou luta pela negociação da quota através
de delegados, caso por caso. Apenas 12 operários apoiaram a abolição
imediata da quota (esta é a base politica dos estudantes radicalistas). O
sindicalista, numa manobra de liderança, encaminha, logo a seguir, a
orientação prática – o que fazer? Greve por tempo indeterminado ou
ação articulada, com 2 horas diárias de greve. Esta ultima proposta é a
proposta dos sindicatos unidos, que vence a assembléia. Indignado, um
operário radicalista exclama: “Fascistas! A culpa é de vocês! Por causa
da tal quota, eu adoeci! Vocês não pensam na umidade, nos gases, ex-
perimentem um pouco!”.
Talvez. os jovens operários demonstrem mais indignação contra
o sistema de quotas. Muitos deles, pertencem a setores operários mais

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Trabalho e Cinema • Volume 3

expostos à superexploração do capital – o que demonstra que a cisão


ideológico-politica do coletivo operário possui um lastro objetivo.
Lulu sentiu na pele – literalmente – o preço do “desamor” à máquina
da produção, A perda do dedo lhe fez oscilar de uma posição politica de
apoio irrestrito às quotas a uma posição de contestação radical ao sistema
de produção do capital. É a característica extrema da consciência de classe
contingente. Percebe-se que o discurso vociferante do estudante radicalis-
ta, que com seu megafone, na porta da fábrica, expõe as contradições do
capital, lhe subiu à cabeça. Faz referência várias vezes a ele. Sua indignação
é mais um gesto visceral contra a exploração do capital, que uma posição
politica consciente das implicações de sua atitude extremista.
Diz Lulu: “Não sei como chama-los: senhores trabalhadores, ope-
rários, companheiros, não sei…O estudante lá fora disse que entramos
aqui cedo, ainda escuro e saímos à noite, no escuro. Que vida é a nossa?
Isso já é sabido. Agora eu digo: já que é assim, por que não dobramos a
quota, heim?! Trabalharemos aos domingos, viremos a noite também…
aliás, traremos mulheres e filhos também! As crianças trabalharão e as
mulheres farão sanduíches Assim, trabalharemos sem parar, sem pa-
rar, por algumas míseras liras, até morrer. E assim, deste inferno, sem
parar, passaremos direto ao outro inferno pois dá no mesmo!”.
O operário representante sindical na B.A.N. buscando desqualifi-
car ad hominem o discurso de Lulu, pergunta a ele: “Diga onde estavas
quando fundamos o sindicato aqui da fábrica, da B.A.N?”. Lulu responde:
“Cumprindo a quota! Fazendo a política dos sindicatos, trabalhando pela
produtividade. Pois agora vejam no que me tornei: um animal! Me tornei
um animal!” E prossegue: “O estudante lá fora disse que eu…que nós so-
mos como máquinas, entenderam? Sou uma máquina, sim, uma rolda-
na; sou um parafuso…sou uma esteira de transmissão, uma bomba…e
agora a bomba quebrou! Não funciona mais e não tem mais conserto!”.
Como os estudantes radicalistas de extrema esquerda, Lulu pas-
sa da constatação critico-objetiva da realidade perversa do capital para
uma proposta de ação prático-imediata - sem nenhuma mediação poli-
tico-concreta capaz de apreender a efetividade dos resultados da ação .
Diz ele, clamando: “Abandonem imediatamente o trabalho todos!”.

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O mundo do trabalho através do cinema

Ora, após a assembléia operária, Lulu se retira com os compa-


nheiros operários extremistas, abandonando, de imediato o local de
trabalho. Mas eles são poucos. A ampla maioria do coletivo operário
recusou a proposta extremista e decidiu seguir a orientação politica dos
sindicatos unidos. Fora da fábrica, os estudantes extremistas correm
para verificar o apoio a suas orientações radicalistas. Lulu, sempre ir-
reverente, goza deles. Diz: “Olha como correm os barbudos! Espera os
operários…Que raça de merda os operários! Vão se divertir vocês, que
têm dinheiro! Pra que esperam os operários?...Como correm!”.
Foram 12 os votos de apoio à proposta extremista, mas apenas
4 saem da fábrica. Alguns retornam, se borrando de medo. Um ope-
rário extremista que aderiu à proposta de Lulu, grita contra um ope-
rário fura-greve: “Vendidos! Fascistas!”, como se o mero xingamento
com chavões políticos, contribuísse para a formação da consciência de
classe daquele operário dissidente. Ora, os extremistas – ou radicalistas
– não levam em consideração – e desprezam - uma mediação concreta
crucial na luta de classe: o grau de desenvolvimento da consciência de
classe do operariado que – nas circunstâncias normais do metabolismo
social do capital nas sociedades burguesas desenvolvidas tende a estar
imerso na contingência da “classe” ou da classe em si. Na verdade, o dis-
curso radicalista tende a apelar – in abstracto - para uma virtualidade
possivel mas efetivamente inexistente: a consciência de classe “para si”
dos operários da B.A.N., inclusive no sentido para-além-de-si (embora
mantenha o caráter obreirista da radicalidade).
A paralisação operária de 2 horas na fábrica da B.A.N. assume
dimensões de confronto entre operários e polícia na neve. O sindica-
lista observa: “Pra que tanta policia? É uma greve pacífica de 2 horas.”
E alerta: “Companheiros, não aceitem provocações, nem da policia,
nem dos extremistas.” Os estudantes de extrema esquerda aproveitam
a oportunidade da mobilização de massa para convoca-los a lutar uni-
dos contra a exploração patronal. “2 horas de paralisação não servem
pra nada”. O confronto ocorre quando tentam impedir os dirigentes de
entrarem na fábrica. O sindicalista diz: “Não é o momento de provocar
o confronto”. Mas o estudante radicalista contesta: “Pra vocês nunca é o

125
Trabalho e Cinema • Volume 3

momento de enfrentar patrão e policia!”. Curiosamente, outro operário


observa: “A assembléia não votou pela revolução!”.
Formam-se piquetes. Nesse momento, os sindicalistas adotam
um discurso pedagógico classista: “Os piquetes são a força da classe
operária. São expressão da disciplina de classe. Todos no piquete! Os
fura-greves tem que bater com a cara na unidade sindical!”.
Num certo momento, o policial, numa atitude de desprezo pela mo-
vimentação grevista dos operários, diz para um dos dirigentes da B.A.N.
que tenta entrar na fábrica em seu veículo: “É só uma greve de operários”.
A paralisação operária de 2 horas sai do controle das lideranças sindicais.
O confronto com a polícia e os atos de vandalismo contra veículos de di-
rigentes demonstram a perda de controle do movimento reivindicativo.
A repressão policial e a correria na neve adquire conotação dramática de
luta de classe decisiva – embora seja apenas um movimento reivindicati-
vo de uma fábrica metalúrgica de médio porte.
Na cena de confronto na neve, entre operários grevistas e a po-
lícia, diante da fábrica da B.AN., toca-se, ao fundo, a musica-tema do
filme – o mesma tema musical que toca quando os operários estão
entrando na fábrica. Talvez a música-tema recorrente sugira que – na
linha de produção ou na greve de viés corporativo - a classe operária
tende a estar tão-somente imersa na contingencia do capital.
No dia seguinte, a volta ao trabalho na fábrica da B.A.N. Os sin-
dicalistas clamam para que os operários não aceitem provocações. Eles
devem realizar outra assembléia para decidir o destino do movimento
de luta contra as quotas. Os estudantes extremistas - sempre vocife-
rando nos megafones – clamam contra os sindicatos. Lulu, o xodó dos
engenheiros, não consegue entrar na fábrica. Recebe a carta de demis-
são. Foi a única vítima do movimento grevista. Ele grita: “Viram! Me
mandaram embora. Primeiro, me jogaram debaixo do carro. Depois,
me demitem! É comigo! Querem que eu morra! Façam greve, compa-
nheiros! Aonde vou? Pra onde vai um operário? Pra escola? Pro teatro?
Pro cemitério? Pra casa da mãe? Pra onde?”.
Lulu pergunta onde está o pequeno barbudo, o estudante extre-
mista. Dizem: “Tá na escola”. Depois Lulu irá saber que a assembléia

126
O mundo do trabalho através do cinema

rejeitou a proposta de greve e decidiu não desviar o foco das agitações


– a questão é a quota e não a revolução. Diz o operário sindicalista:
“Não se trata de se expor. E depois cada vez que fazemos greve não
levamos dinheiro para casa.” Eis o pensamento sindicalista clássico que
tende a desprezar a greve como escola da luta de classes e vê-la apenas
no sentido da luta economicista. Lulu exclama, indignado: “Dinheiro,
dinheiro…”. É o sistema do dinheiro – como sistema do capital - que
prende patrões e operários.
Na entrada da fábrica da B.A.N., com seus megafones, os estu-
dantes extremistas vociferam: “Não aceitem a chantagem dos sindica-
tos. Eles são os servos, os lacaios dos patrões. São reformistas! Respon-
dam à violência patronal com a violência revolucionária, Sabotem a
produção Rejeitem o trabalho!”
Este é o clássico discurso radicalista que tende a confundir a
constatação objetiva verdadeira da perversidade do capital (sempre no
plano da produção), com a adoção imediata – sem mediações politico-
concretas mais densas (principalmente no tocante a levar em conside-
ração o grau de desenvolvimento da consciência de classe do coletivo
operário dado) – de práticas imediatamente revolucionárias no sentido
de confrontar o poder estabelecido do capital.
A resistência do trabalho organizado – no plano da classe “em-si”
–pode assumir dimensões contingentes ou dimensões necessárias, isto
é, pode ser caracterizado por indisposições individuais ou mobiliza-
ções coletivas de cariz sindical (ou politico) contra as imposição geren-
ciais. O homem que trabalha é um ser que dá resposta. De imediato, os
operários podem reagir – de forma espontânea - à gerencia autocrática.
O trabalho vivo tende a resistir a seu modo, mesmo de forma contin-
gente, à loucura do trabalho; mas a resistência do trabalho assume uma
dimensão necessária – no plano da classe em si - quando consegue dar
um sentido coletivo – e organizado – à espontaneidade insubmissa do
“em–si” da classe.
O sindicalismo é o movimento organizado – e portando com te-
leologia politica - da classe que resiste à exploração do trabalho pelo
capital na dimensão da produção. No filme ele aparece fracionado pela

127
Trabalho e Cinema • Volume 3

disputa politica entre oposição sindical de extrema esquerda e sindicatos


operários que divergem no encaminhando da luta operária de classe.
Como salientamos, o fracionamento politico (e ideologico) da resistên-
cia de classe é intrínseco ao movimento sindical que possui, dentro de
si, diversas teleologias politicas.

Elementos da materialidade do trabalho assalariado

Objetividade

capital consumindo trabalho


[produção];
trabalho consumindo vida
[reprodução social])

[experiencia vivida]

Subjetividade

Resistências de “classe”/classe

(sindicalismo/partido)

consciência social/consciência critica/consciência de classe)

experiencia percebida/ experiencia compartilhada

[intersubjetividade]

A disputa política entre os sindicatos unidos e os estudantes ex-


tremistas é feita, principalmente, na porta da fábrica com discursos
inflamados e palavras de ordem. Quando a B.A.N. suspendeu 6 ope-
rários, os sindicalistas exigem a imediata retirada das suspensões sob

128
O mundo do trabalho através do cinema

pena deles adotarem – unidos – posições mais duras. Os sindicalistas


salientam a importância da unidade sindical contra a ofensiva patro-
nal. De certo modo, criticam os estudantes extremistas por dividir o
movimento operário, fragilizando a luta da categoria metalúrgica (os
sindicalistas sempre se interrogam no filme: “Quem lhes paga?”, tal-
vez sugerindo que, por trás daquela estrutura de agitação anti-sindical
existe financiadores escusos).
Por outro lado, os estudantes radicalistas clamam em seus mega-
fones: “A violência patronal se reage com a violência operária.” E contra
os sindicalistas, exclamam em coro: “Abaixo os servos dos patrões”. Por
outro lado, os sindicalistas respondem com a palavra de ordem: “Uni-
dade sindical”. Portanto, enquanto os extremistas atacam não apenas
os patrões, mas também os que eles chamam de “servos de patrões”,
que são os sindicalistas reformistas, desprezando assim, a dita “uni-
dade sindical”. Para eles, pelo contrário, não se faz unidade e luta com
lideranças sindicais e sindicatos reformistas.
De certo modo, o uso freqüente de megafones pelos agitadores
extremistas e sindicalistas caricaturiza uma postura de ativismo poli-
tico meramente discursiva. É uma agitação “mecânica” pouco efetiva
– no sentido pedagogico-reflexivo - para a formação da consciência de
classe necessária. No limite, elevam a massa à condição de classe em
si. Num certo momento, Lulu incomodado pelo megafone, exclama:
“Espere um pouco! Sempre com esta coisa nos ouvidos!”
A agitação politica de sindicalistas e estudantes extremistas
ocorrem cedo pela manhã. Logo no início do filme, vemos a massa de
operários da B.A.N. entrando na fábrica às 8 horas da manhã, sob a
intensidade do discurso dos estudantes radicalista. Dizem eles: “Hoje
quando saírem já será noite a luz do dia não brilhará pra vocês. São 8
horas de quotas a serem cumpridas. Sairão cansados, vazios, pensando
que ganharam o dia e no entanto foram roubados! Sim, roubados em
8 horas de suas vidas! Se com a quota ganham 10 liras a mais… Por
cada 10 míseras liras a mais os patrões ganham 100.” (um operário sin-
dicalista chega a exclamar: “Por que não vão estudar?”). E o discurso
extremista, que desvela com argúcia crítica, a realidade dos operários

129
Trabalho e Cinema • Volume 3

explorados pelo capital, prossegue: “Operários, vocês estão entrando


numa prisão. Depois de 8 horas de trabalho forçados sairão no escuro.
Pra voces hoje a luz do sol não brilhará.” E finaliza com uma programá-
tica política: “Operários, para minar a aliança de patrões e sindicatos,
propomos a formação de comitês de base! A aliança revolucionário en-
tre estudantes e operários! Operários”.
O discurso sindicalista possui outra direção politica. Por exemplo,
numa cena do filme, o líder sindicalista salienta os principais pontos da
plataforma sindical reformista. Diz ele: “Os 3 sindicatos unidos lutam
contra os ritmos, pela saúde, por salários mais altos, por um tempo
livre com sua mulher e filhos. Quando faziam mil peças recebiam 300
liras de quota. Agora produzem 3 mil com os novos ritmos e a quo-
ta permanece a mesma! Isso quer dizer que só a B.A.N se beneficiou,
enquanto que, pra vocês, os preços aumentam! Tudo custa caro, só o
trabalho extra é gratuito. A quota tem que aumentar! Mais peça, mais
dinheiro! Menos peças, mais dinheiro, menos trabalho!”.
Para contrastar, logo a seguir, a liderança dos estudantes extre-
mistas exclama: “Operários, imponham aos sindicatos uma plataforma
revolucionária. A quota não deve ser negociada e sim abolida. A fábrica
é uma prisão e da prisão se evade”.
O líder sindical logo responde indignado, dirigindo-se aos operá-
rios: “Mantenham os pés no chão. O nosso objetivo é a revisão da quota.
Mostraremos aos patrões a nossa força, a voz de 3 sindicatos unidos”.
Ora, a politica dos sindicatos unidos (FIM–Federazione Italia-
na Metalmeccanici;FIOM–Federazione Impiegati Operai Metallur-
gici; UIL– Unione Italiana del Lavoro) é a política da preservação da
capacidade fisico-espiritual da força de trabalho como mercadoria.
Mantém-se no interior da ordem burguesa, não contestando a aliena-
ção/estranhamento intrínseca à relação-capital. A preocupação com a
saúde dos trabalhadores assalariados implica apenas em reconhece-los
como vendedor da mercadoria força de trabalho, buscando preserva-
los como homens produtivos à disposição da acumulação de valor. De
certo modo, o campo “saúde do trabalhador” possui um viés reformis-
ta, não questionado – inclusive no plano epistemológico - a própria

130
O mundo do trabalho através do cinema

condição estrutural da posição “trabalhador assalariado”. O que se co-


loca não é a problemática da “saúde do trabalhador”, mas sim, a “saúde
do homem como ser genérico”.
Da mesma forma, a reivindicação de tempo livre com sua mulher
e filhos numa perspectiva reformista pode apenas significar tempo li-
vre para consumo de mercadorias, na medida em que se reivindica, do
mesmo modo, mais dinheiro.
Enfim, o filme “A classe operária vai ao paraíso” expõe, de certo
modo, duas misérias da resistência operária – de um lado, o extremis-
mo metafisico contra o capital (a posição dos estudantes de extrema-
esquerda); e de outro, o reformismo taticista que – naquele momen-
to histórico - embora capaz de articular – de forma mediada – ações
táticas de resistência laboral à estratégia capitalista, deixava de lado a
formação estratégica de luta contra o metabolismo social do capital.
Os sindicatos unidos conseguem, por meio da paralisação e ne-
gociação coletiva com os patrões da B.A.N., a readmissão de Massa e a
revisão das quotas. Na entrada da fábrica, o líder sindical proclama a
vitória dos sindicatos unidos. E exclama: “A luta continua. Controlem
os tempos de trabalho!”.
Na verdade, eis o espírito do sindicalismo reformista no século
XX: colocar barreiras à sanha do capital, buscando garantir um melhor
preço para a venda da força de trabalho, além de garantir a preservação
da base operária. Administra-se a classe “em-si” e “para-si”, preservan-
do-a enquanto classe diante do capital (aliás, a idéia de classe do tra-
balho se constitui apenas – e tão-somente – em referencia antagônica
ou não-antagônica ao capital). A condição de precariedade salarial é
regulada, sindical e politicamente. A ideia do controle negociado – na
empresa e na categoria assalariada, e por vezes, em plano nacional - es-
tabelece o marco político do reformismo social-democrata.
Por outro lado, o discurso dos estudantes extremistas é um dis-
curso abstrato em sua verdade candente. Explicita, é claro, a verdade
da exploração do capital, mas não consegue traduzir-se numa prática
cotidiana concreta capaz de lidar com problemas imediatos da catego-
ria operária. Numa das últimas cenas de agitação operária no filme,

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Trabalho e Cinema • Volume 3

dizem – reiteradamente – os estudantes extremistas: “Hoje, depois de


8 horas de trabalho forçados sairão, de novo, no escuro” (é interessante
que, logo após a fala extremista, Lulu conversa – na multidão - com um
operário que lhe pergunta se está mesmo contente por ter voltado à fá-
brica e Lulu diz: “Claro!”. Eis o fato concreto-particular – a readmissão
de Lulu - que se contrapõe à “verdade abstrata”).
O barbudo prossegue: “Operários, rebelem-se! As vitórias de hoje
não são obras dos sindicatos, mas sim do nosso espírito de luta! Lute-
mos unidos operários e estudantes. O vosso objetivo imediato é e será
sempre Tudo e Já! Tudo e Já!”.
Mas a morfologia ideológica do discurso extremista pode ser
verificado numa das cenas curiosas do filme – a ocupação do aparta-
mento de Lulu pelos estudantes extremistas. Ao ocuparem o pequeno
apartamento do operário Lulu, os estudantes extremistas foragidos da
policia, mostram outros aspectos da critica sarcástica do esquerdismo
infantil que transparece no filme “A classe operária vai ao paraíso”.
A presença de Lidia, mulher de Lulu, proletária assalariada de um
salão de beleza, mulher simples que cultiva as ilusões do proletariado
com sua consciência social contingente, abre um confronto abismal
com o outro extremo da consciência social – estudantes radicalistas
cujo esquerdismo teórico os faz perderem o sentido de realidade.
Num certo momento, Lulu observa para Lidia: “Tem que ouvir
como falam. Não se entende nada”. Por outro lado, ela diz: “Você os
trouxe para não ficar sozinho comigo”. O esquerdismo infantil dos es-
tudantes faz com que eles percam o sentido de realidade – dizem: “Os
revisionistas estão isolados”. Ora, eles é que estão isolados e não os sin-
dicalistas reformistas. Noutro momento, mostram que seu infantilismo
de esquerda é um culto metafisico da teoria como conjunto de verdades
abstratas. Dizem: “A teoria é correta. O confronto gera união. Com um
partido revolucionário o confronto seria decisivo.”
O simplismo das colocações dos estudantes extremistas assusta
Lidia que os confronta. Eles dizem: “Os operários estão prontos para o
poder.”Mas Lidia os provoca: “Os operários…Aquele ali é um incapaz.
Conheço bem os operários.” E prossegue, indignada: “Esse é o seu co-

132
O mundo do trabalho através do cinema

munismo. Como farão depois? Quando estiverem em Roma no poder,


o que farão? “.
Lidia os provoca naquilo que lhes falta – a mediação politico-con-
creta. Eles respondem: “Será o fim dos patrões.” Mas Lídia diz: “E você,
sem os patrões, o que seria? Um morto de fome!”. E exclama: “Esse é o
comunismo…”. E explicita em sua consciência ingênua, o preconceito
democrata-cristão contra o comunismo considerado por ela como an-
típoda da liberdade. Diz ela: “Eu sou pela liberdade, entendeu? Eu gosto
de casaco de pele, gosto mesmo. Ainda vou ter um porque eu trabalho.
Eu mereço. Trabalho desde os 12 anos, entendeu?”
Incapazes de lidar com a realidade concreta, com suas densas e
múltiplas contingencias que, na maioria das vezes, resistem à nossa
vontade política de mudança radical e imediata – “tudo e já”, como cla-
mam os extremistas, os estudantes esquerdistas esbanjam em teoria
como construto abstrato para explicar uma realidade recalcitrante aos
seus ideais revolucionários Dizem eles sobre a atitude Lídia: “São con-
tradições típicas desse tipo de família. O proletariado é explorado na
fabrica, mas se modela pela televisão, mas imita o explorador.”
A questão decisiva não é a inverdade (ou não) da constatação socio-
lógica, mas sim, como mudar essa realidade de alienação do proletaria-
do. Incapazes de construir a contra-hegemonia cultural, os esquerdistas
apenas vociferam contra proletários subsumidos à ideologia burguesa.
Novamente, na linha de explicitar a morfologia sócio-ideológica
do extremismo de esquerda, Elio Petri, no filme , nos apresenta o diá-
logo entre Lulu, operário demitido, e o líder estudantil barbudo. Após
ser demitido, Lulu se dirige à Faculdade ocupada onde está “barbudo”,
líder dos estudantes de extrema-esquerda que fazem agitação na porta
da fábrica da B.A.N. Consegue entrar no local que está ocupado por
estudantes. Encontra “barbudo” deitado e dormindo. Diz que ele de-
via estar lá na porta da fábrica. Na verdade, Lulu esperava um apoio
da liderança radicalista à luta contra a sua demissão. “Não podemos
estar em todos os lugares. Somos poucos ainda. Faço o que posso.”, diz
barbudo. Prossegue ele: “Tentamos expor as contradições para mudar
esse sistema de vida.”

133
Trabalho e Cinema • Volume 3

Mas Lulu só tem uma preocupação – está desempregado. Perdeu


o emprego, seu meio de subsistência pessoal. O desemprego o projeta
irremediavelmente no seu universo particularista. “Barbudo” observa:
“Enquanto se obedece, não tem perigo. Uma vez consciente, te botam
na rua. Você já devia saber disso. Não é uma novidade”. Lulu insiste em
quere-lo na porta da fábrica. Mas o estudante repete: “Estamos dividi-
dos e somos poucos.”. Lulu se preocupa com sua subsistência Diz que
tem que comer e não quer pedir esmolas.
Finalmente, o impasse que explicita uma postura ideológica do
extremismo de esquerda – o desprezo pela dimensão da particularida-
de concreta, geralmente reduzida à universalidade abstrata da classe
social. O estudante “barbudo” diz: “O teu caso é individual, pessoal.
Não nos interessa. O nosso é um discurso de classes. Quer um discur-
so pessoal? Quer o meu? Olhe para minha cara! Tenho 30 anos. Estou
acabado, hein! Fiz 3 exames. Tenho piorréia!”. Lula exclama: “E eu tive
intoxicação”. E o “barbudo” reitera: “E eu piorréia!”. Lulu pergunta o
que fazer agora. O lider estudantil oferece como opção a Lulu ficar com
eles e, como está desempregado, se quiser, militar o dia inteiro”.
Piorréia, a doença do estudante barbudo de extrema-esquerda,
é uma doença do periodonto, o tecido que envolve a raiz dos dentes.
Causa sangramento, inflamação, dor. secreção e quando não tratada
precocemente determina o amolecimento dos dentes e sua perda pela
destruição do tecido de sustentação. Causa ainda intenso mau hálito
e o tratamento e prevenção estaciona o processo mas não restitui os
tecidos lesados. Ao imputar, no roteiro da narrativa do filme, o líder
estudantil de extrema-esquerda acometido de piorréia, talvez Elio Petri
quisesse caracterizar seu mal-hálito como a metáfora da incapacidade
contra-hegemônica do discurso verborrágico do líder radicalistas
Mais adiante, os companheiros sindicalistas visitam Lulu para
informá-lo que assinaram o acordo de sua readmissão por meio de
uma negociação coletiva com a empresa. “Conseguimos tudo…até a
quota!”, diz o sindicalista. Afirma: “Esse é o resultado da união sindical.
É a primeira vez que readmitem um operário demitido por questões
políticas.” Ao contrário do velho operário Militina, que foi demitido no

134
O mundo do trabalho através do cinema

passado e não conseguiu ser readmitido, Lulu (e os sindicatos) conse-


guiram o intento inédito. Lulu pergunta por que ele conseguiu e Mili-
tina não conseguiu ser readmitido no passado. “Eram outros tempos”,
diz o lidr sindical – “hoje somos mais fortes, mais conscientes! Hoje
nós intimidamos, Lulu! Nós intimidamos!”.
Antes da grande crise capitalista de meados da década de 1970,
o sindicalismo europeu – com destaque para o sindicalismo italiano –
tinha maior poder de barganha, tendo em vista que a reestruturação
produtiva ainda não tinha corroido as bases de mobilização sindical.
Por isso, o líder sindicalista contata que “hoje somos mais fortes, mais
conscientes!”. E assevera: “Hoje nós intimidamos”.
De fato, naquela época, coletivos operários organizados coloca-
vam obstáculos à sanha avassaladora do capital. Na verdade, a ofen-
siva do capital que ocorreu com o intenso processo de reestruturação
produtiva a partir da década de 1970 nos principais países capitalistas
avançados, visou criar condições objetivas (e subjetivas) para um novo
processo de acumulação de capital por meio do desmonte da fortaleza
(e consciência de classe) do trabalho organizado nos principais pólos
da acumulação de valor. No começo da década de 1970 o sindicalismo
operário organizado intimidava o capital nos paises capitalistas euro-
peus de larga tradição de luta operária (como a Itália, onde o Partido
Comunista Italiana crescia a cada eleição), apesar dos limites visíveis
na condução politica da luta de classes
Na cena final do filme “A classe operária vai ao paraíso”, Elio Pe-
tri conclui a narrativa com um sonho enigmático de Lulu. É mais um
recurso narrativo do freudismo de esquerda do cineasta italiano. Nesta
cena, os operários estão na linha de produção, lado a lado. “Trabalhem
escravos, trabalhem!”, grita Lulu, contente por estar de volta à fábrica.
“Todos de castigo na linha de montagem, hein!”, exclama. “Que desti-
no!”, diz ele. E Lulu relata o sonho. Diz que sonhou com um muro (tal-
vez ele – inconscientemente – tenha rememorado o muro que Militina
fez referência na sua última visita a ele, no hospício público). Diz Lulu:
”Eu estava, eu estou morto, não? Estou morto…Estava morto e enterra-
do e encontrei o Militina. E aí o Militina disse, gritando: vamos quebrar

135
Trabalho e Cinema • Volume 3

tudo e vamos entrar! Quebramos tudo e tomamos o paraíso! O Paraíso


do outro lado do muro…” E Lulu relata o que viu: “Uma visão impres-
sionante! Tinha um com a cabeça aqui e o corpo a 10 metros...Uma
coisa incrível…E todos contra o muro. E todos contra o muro…E o
muro caiu! O muro caiu!”. Os operários perguntam: “O que tinha atrás
do muro?”. Lulu disse: “Uma neblina…”. “Mas o que tinha na neblina?”,
interroga outro operário. “A principio nada…depois, olhando bem vi
o Militina; depois vi um servente, vi um cara sem dedo e disse: quem
é aquele? Mas aquele sou eu!”, observou Lulu. Lulu disse que viu todos
os seus companheiros de fábrica lá. “O que quer dizer?”, perguntam os
operários. “Se se tem um muro para derrubar, derruba-se, não?”. Um
exclama com ousadia: “Quero derrubar o muro”. Outro pergunta: “Por
que tinha neblina no paraíso?”. E Lulu pondera: “O que importa?”.
Ora, o poder (e unidade) sindical fizeram Lulu sonhar com a que-
da do “muro” e a conquista do “paraíso” pela classe operária. Estava-se
ainda sob os influxos das greves operárias de massa de 1969 na Itália.
A luta de classes ganhava impulso sindical e politico na Itália (é im-
portante salientar que a reestruturação capitalista da década de 1970
– incluindo o processo de reestruturação produtiva e a ofensiva neoli-
beral - é não apenas um desdobramento à grande crise capitalista que
estoura em 1973, mas uma reação radical à luta do trabalho assalariado
organizado contra o capital). O velho Militani, em sua lúcida loucura
almejava derrubar o muro, o muro da alienação que sufocava a classe
do proletariado. Lulu – sonhando – reflete: “”Se se tem um muro para
derrubar, derruba-se, não?”.
O processo de derrubada do muro – ou construção do socialismo
- é um processo de esforço coletivo pois Lulu viu não apenas ele, mas
todos seus companheiros operários lá no paraíso. Mas o paraíso que
encontram atrás do muro é cheio de neblina – talvez seja a metáfora
do desconhecido que nos aguarda na construção de uma sociedade do
trabalho para além do capital.

136
O mundo do trabalho através do cinema

Capítulo 3

“Morte de um
caixeiro-viajante”
Volker Schlöndorff
(1985)

O filme “Morte de um caixeiro-viajante”, de Volker Schlondorff, pro-


duzido para a TV alemã, em 1985, e que teve Dustin Hoffmann
numa de suas melhores atuações, fazendo o papel de Willy Loman, é
um filme baseado na peça homônima do dramaturgo estadunidense
Arthur Miller (1915-2005), escrita em 1949. Vista por muitos como
uma crítica cáustica do “sonho americano” de sucesso, ela tornou Ar-
thur Miller e o personagem principal (Willy Loman), nomes famosos.
Foi recebida com críticas entusiasmadas, recebeu o Prêmio Pulitzer
para dramas em 1949 e transformou Miller em uma sensação nacional
como dramaturgo.
Através do drama de Arthur Miller, teremos a oportunidade de
discutir problemas candentes da precariedade do trabalho no capita-
lismo global, como a dissiminação da implicação mercantil na relação
laboral ou a constituição de um novo paradigma de trabalhador assa-
lariado: o proletário-mascate, elemento compositivo do sócio-metabo-
lismo da barbárie.
O envolvimento intenso de homens e mulheres que vivem do
trabalho com a lógica social do mundo das mercadorias, seja nas ins-
tâncias sócio-reprodutivas, enquanto consumidores; seja na instância
da produção social, enquanto trabalhadores assalariados, implica, de
forma crucial, sua subjetividade com o fetichismo da mercadoria. Esta
implicação fetichizada com as coisas tende a desefetivar o ser genérico
do homem e, portanto, o ser-personalidade do homem que trabalha.

137
Trabalho e Cinema • Volume 3

É importante salientar um detalhe curioso: Gregor Samsa , perso-


nagem do clássico conto “A Metamorfose” (de Franz Kafka - 1915), que
certa manhã acordou e “achou-se em sua cama convertido num mons-
truoso inseto”, era um caixeiro-viajante. Na verdade, o vendedor é um
homem que trabalha envolvido nas teias do fetichismo da mercadoria
em sua dimensão candente, com aquilo consumindo irremediavelmente
seu núcleo humano-genérico.
Entretanto, além da discussão desta implicação estrutural do sala-
riato no capitalismo global, discutiremos através do filme (e peça teatral),
um dos elementos intrínsecos da condição de proletariedade que marca
hoje o mundo do trabalho: a deriva existencial. Ela é composta pela de-
riva pessoal e a deriva profissional. Faremos a discussão da natureza da
deriva existencial sob a ótica de uma posição problemática na estrutura
de “classe”: os “proletários de classe média”, trabalhadores assalariados
que cultivam a ilusão pequeno-burguesa de autonomia laboral.
É claro que a análise critica do filme exige uma articulação cui-
dadosa de elementos da particularidade de classe dos personagens –
“proletários-mascates de classe média”, com traços de sua singulari-
dade pessoal (é a singularidade pessoal das individualidades de classe
que explicam porque, sob determinadas condições de exploração do
trabalho vivo e força de trabalho, uns surtam, e outros, não). É a dia-
lética entre universalidade e particularidade de classe e singularidade
pessoal que é capaz de esclarecer a candente complexidade ontológica
constitutiva das individualidades pessoais de classe, onde o traço bio-
gráfico0-singular explica escolhas individuais e suas conseqüências no
plano sócio-ontológico.
Portanto, nossa análise crítica do filme visa desvelar a totalidade
concreta no interior da qual se insere as individualidades pessoais de
classe, totalidade concreta constituída pelas dimensões da universali-
dade/particularidade de classe (capitalismo global e a condição socioló-
gica dos “proletários mascates”) e a dimensão da singularidade pessoal,
onde elementos da biografia como ontogênese do processo de indivi-
duação pessoal de homens e mulheres que trabalham, e não apenas
a inserção sócio-estrutural na divisão social do trabalho, compõem o

138
O mundo do trabalho através do cinema

quadro explicativo da forma de ser particular destas individualidades


de classes (no caso, os personagens do filme, com destaque para Willy
Loman e seus filhos Biff e Happy).
Ora, se Willy Loman é um “proletário-mascate de classe média”,
nem todo “proletário-mascate de classe média” é Willy Loman – eis o
cerne da singularidade pessoal das individualidades de classe.
É a instância da singularidade pessoal enquanto campo histórico-
singular de ontogênese da individuação de homens e mulheres que tra-
balham que explica a constituição da instância pessoal propriamente
dita, que não está desligada da história, mas que, pelo contrário a cons-
titui, embora a história não seja (como a instância pessoal) produto
de escolhas teleológicas conscientes dos sujeitos (Lukács observa que
embora a história seja feita de escolhas humanas baseadas em posições
teleológicas, ela própria – a história – não possui uma teleologia).
Na medida em que as individualidades pessoais são produtos do
desenvolvimento do ser social, sendo portanto participes de uma so-
ciedade, elas têm, como substância única, a singularidade pessoal que,
enquanto tal, é portadora da história humana como síntese de múlti-
plas decisões alternativas das individualidades pessoais em condições
concretas da vida social.
Uma digressão sobre a natureza do que denominamos de indivi-
dualidades pessoais de classe torna-se interessante. Primeiro, pelo cará-
ter contraditório da denominação (o adjetivo “de classe” tende a negar
o substantivo “individualidades pessoais”). Há uma tensão essencial
que constitui a própria natureza da individuação humana na sociedade
de classe.
As individualidades pessoais se constituem no processo de de-
senvolvimento da personalidade singular que é a síntese de múltiplas
escolhas ou decisões alternativas feitas no decorrer do espaço-tempo
de vida individual.
Na medida em que se amplia o campo de manobra das possibili-
dades de desenvolvimento dos indivíduos humano-sociais, se colocam,
cada vez mais, sob pena de ruina, as decisões alternativas que, enquan-

139
Trabalho e Cinema • Volume 3

to escolhas (ou respostas do homem que trabalha), formam a dimensão


pessoal das individualidades de classe.
Nesse sentido, a individuação é o lócus da ação das decisões alter-
nativas singulares que atuam sobre a vida dos indivíduos.
A singularidade do homem singular se forma na síntese dessas
múltiplas decisões alternativas singulares, escolhas que se põem como
respostas aos momentos econômico-sociais, ou no caso das individu-
alidades pessoais de classe, à condição de proletariedade que emerge
com a modernidade do capital. Nesse caso, vinculamos, desde já, o de-
senvolvimento pessoal da individualidade à própria condição de classe
social como momento econômico-social da temporalidade histórica da
modernidade do capital.
A morfologia pessoal das decisões alternativas ou escolhas do ho-
mem singular como um ser que dá respostas (como nos diz Lukács),
implica a apreensão da natureza das perguntas previamente formula-
das na interioridade do homem singular.
Diz Lukács: “O homem torna-se um ser que dá respostas precisa-
mente na medida em que - parale­lamente ao desenvolvimento social e
em proporção crescente - ele generaliza, transformando em perguntas
seus próprios carecimentos e suas possibilidades de satisfazê-los; e quan-
do, em sua resposta ao carecimento que a provoca, funda e enriquece a
própria atividade com tais mediações, freqüentemente bastante articu-
ladas. De modo que não apenas a resposta, mas também a pergunta é
um produto imediato da consciência que guia a atividade; todavia, isso
não anu­la o fato de que o ato de responder é o elemento ontologica-
mente primário nesse complexo dinâmico.” (o grifo é nosso).
Embora as respostas sejam o ato ontologicamente primordial ou
o elemento ontologicamente primário no complexo dinâmico do tra-
balho que funda o ser social (o que dura são as respostas dadas), as
perguntas previamente formuladas, oriundas de generalizações sobre
seus próprios carecimentos, constituem a substância da singularidade
do homem singular.
As perguntas como generalizações de seus próprios carecimentos
(o que pressupõe um desenvolvimento da linguagem), constituem o

140
O mundo do trabalho através do cinema

campo de significações e léxico de sentidos que as individualidades pes-


soais utilizarão para se apropriar do produto das respostas ou decisões
alternativas.
Enquanto animal simbólico, o homem singular se apropria das
suas experiencias pessoais com um conjunto complexo de significações
herdadas do passado ou re-significadas no presente, tanto na particu-
laridade da cultura, no interior da qual o homem ou a mulher que tra-
balha estão subsumidos; quanto na singularidade de sua ontogênese
única no grupo familiar primordial - todas elas marcadas pela condi-
ção histórica de classe social.
Assim, pode-se dizer, num primeiro momento, que a singularida-
de do homem singular se constitui através das respostas – ou escolhas
– onde as decisões alternativas são tomadas sob pena da ruina. Enfim,
a necessidade ou carecimentos os impulsionam a escolher entre alter-
nativas concretas. Mas, na medida em que o homem é um ser que dá
respostas, ele é um ser que formula perguntas. Aliás, ele só dá respostas
na medida em que formula previamente perguntas que generalizem –
no plano da linguagem – seus carecimentos.
Portanto, a singularidade do homem singular se constitui não
apenas pelas escolhas que objetivamente ele toma e sua vida cotidiana,
mas pelas perguntas – permeadas por um campo de significações/re-
significações e um léxico de sentidos – que subjetivamente, na interio-
ridade do seu ser, formula no momento prévio às respostas dadas.
Embora – objetivamente – no plano ontológico, o homem singu-
lar seja em-si, a síntese das múltiplas decisões alternativas tomadas no
decorrer de sua vida pessoal, das mais insignificantes às mais cruciais;
subjetivamente – e aqui trata-se da singularidade do homem singular,
ele é também – na mesma medida – o conjunto herdado (ou apropria-
do/re-significado) de elementos simbólico-ideais (ideologias ou uto-
pias) que dão sentido ou significações ao produto dessas múltiplas es-
colhas tomadas. Como disse William Shakespeare, numa de suas peças
clássicas – “A Tempestade” (1611), “We are such stuff as dreams are
made on.” (isto é, “somos da mesma substância que os sonhos.”)

141
Trabalho e Cinema • Volume 3

Jean-Paul Sartre, filosofo marxista existencialista, observou, cer-


ta vez, que “o importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós
mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós”. Isto é, o importante
não é apenas o que somos efetivamente por conta das decisões alter-
nativas tomadas, mas sim também, o que vamos fazer com aquilo que
fizeram de nós, ou seja, como nos apropriamos – no plano subjetivo-
valorativo – daquilo que efetivamente nos tornamos.
Portanto, no plano da singularidade da individualidade pesso-
al de classe, é importante não apenas apreender aquilo que elas são
em-si efetivamente, mas também o que elas pensam (ou imaginam)
ser para–si. O que significa, nesse caso, levarmos em consideração so-
nhos, expectativas e utopias de classe, não apenas no sentido sociológico
propriamente dito, mas no sentido profundo que eles possuem para a
interioridade do ser singular em sua unicidade.
Eis a natureza do processo de transformação da singularidade em
personalidade. Na verdade, o homem singular forma a sua personalidade
humana através das respostas dadas por ele, em si e para si, às experien-
cias vividas (sem desconsiderar, como salientamos acima, a cadeia de
mediações lingüísticas que constituem as perguntas previamente formu-
ladas que generalizam seus carecimentos).

Singularidade
 Personalidade

É claro que a personalidade, com toda sua problemática, como


produto do desenvolvimento da singularidade do homem singular, é
uma categoria social. Ela expressa um complexo singular que embo-
ra não possa ser reduzida à pura interioridade do sujeito – pois ela é
permeada de objetivações sociais –, possui como elemento mediativo
fundamental, no plano da interioridade do sujeito, a subjetividade em
suas instâncias intra-psiquicas (consciencia, inconsciência e pré-cons-
ciência).

142
O mundo do trabalho através do cinema

Nesse caso, tem-se a interação concreta e complexa entre o que


Marx denominou de objetivação e exteriorização. A primeira (a objeti-
vação), dizendo respeito a valores sociais introjetados/socializados ou
formativos/conformativos da personalidade humana; a segunda (a ex-
teriorização), dizendo respeito ao modo de apropriação pelo sujeito, em
sua interioridade singular (mediado pelas instâncias intrapsiquicas),
destas objetivações sociais dadas.
Lukács observou que o desenvolvimento das capacidades huma-
nas não produz obrigatoriamente aquele da personalidade. Isto é, a
objetivação pode implicar uma interação problemática com a exterio-
rização. Aliás, o desenvolvimento da singularidade do homem singular
– mediado pelo desenvolvimento social do capital – tende a produzir
personalidades problemáticas ou personalidades estranhadas cuja me-
diação intrapsiquica está subsumida à instancia do inconsciente.
Enquanto categoria histórico-social – e não onto-biológica, como
sugere o freudismo – o inconsciente é uma formação intrapsiquica da
exteriorização que sob o estranhamento do capital tende a aparecer
de forma mistificada (pode-se considerar Sigmundo Freud é o “Adam
Smith da Economia Politica da subjetividade burguesa” – onde, segun-
do ele, o inconsciente tende a aparecer como um dado natural do ho-
mem e não como uma formação intrapsiquica histórico-concreta).
Um homem singular submerso, em sua interioridade/exteriorida-
de, nas formações do inconsciente/valores-fetiches ou sonhos e utopas
de mercado, tende a obstaculizar, em si e para si, o desenvolvimento
da sua personalidade humana. Eis o sentido do estranhamento para
Lukács,
Assim, individualidades pessoais de classe tendem, na medida
em que estão subsumidas à “classe” do proletariado ou condição de
proletariedade, negar (no sentido processual), a dimensão pessoal da
individualidade. Isto é, o modo de produção capitalista tende a produ-
zir individualidades despersonalizadas ou personalidade-simulacros em
processo de desefetivação, cuja resistência – no plano da legalidade da
individuação – tende a explicitar-se, sob determinações, como adoeci-
mento.

143
Trabalho e Cinema • Volume 3

Tipos da forma-resistência

Resistência politico-social

Resistência pessoal

A categoria de resistência não é apenas uma categoria politico-so-


cial, mas também uma categoria ontológico-moral, colocando-se, deste
modo, como resistência pessoal à dissolução, no plano da singularida-
de do homem singular, do núcleo humano-genérico (trabalho vivo),
Ocorre resistência pessoal porque há – no plano do ser social – um
campo de manobra objetivo de possibilidades de realização concreta do
ser humano-genérico ou desenvolvimento das capacidades humanas.
Deste modo, a resistência pessoal possui um lastro objetivo-concreto
dado pela dimensão da sociedade como promessa onde se coloca – no
plano espectral - a riqueza do possivel (em contraste com a miséria do
presente).
Na medida em que a dimensão da sociedade como promessa – a
genericidade em-si do homem – permeia a singularidade do sujeito de
forma ineliminavel, sob as condições do trabalho estranhado e estra-
nhmento social, ele tende a resistir, consciente ou inconscientemente, à
sua degradação humano-genérica.
O capitalismo, incapaz de realizar a promessa da genericidade
humana em si e para si, tende a potencializar meramente as capaci-
dades singulares, o que leva ao aviltamento e desfiguração da perso-
nalidade do homem. Essa potencialização das capacidades singulares
significa a manifestação de formas de “personalidades particularistas”
(onde o adjetivo “particularista” tende a negar o substantivo “persona-
lidade humana”). Assim, emerge o homem burguês - homem singular
particularista, homem despersonalizado em si e para si.
Lukács observa na “Ontologia do ser social” que o desenvolvi-
mento capitalista é o momento do desenvolvimento histórico do ho-

144
O mundo do trabalho através do cinema

mem em que se produzem ou se colocam em si, necesidades sempre


mais social.
Uma das necessidades sempre mais social – que se coloca como
carecimento radical – é a necessidade de interação humana, expressa na
socialidade enquanto relação com o Outro como Próximo. O capitalis-
mo tende a reduzir as necessidades humanas às necessidades reprodu-
tivo-naturais, não impulsionando-as para uma elevação das individua-
lidade a um plano compativel com o desenvolvimento das capacidades
alcançadas até o momento.
Ora, estão colocadas, objetivamente, como traço ineliminável do
processo civilizatório, necessidades cada vez mais social – necessida-
des como carecimentos radicais que são “negadas” pelo capitalismo, no
sentido de que ele as reconhece, ao mesmo tempo que as inverte e as
perverte.
Como o sistema do capital é incapaz de integrar, em si e para si, as
necessidades cada vez mais social, isto é, os carecimentos radicais (“ra-
dicais” no sentido de que a raiz é o próprio homem como ser social),
o capitalismo as manipula. Na verdade, a dinâmica da manipulação é
explicada pela necessidade sistêmica do capital tratar com carecimen-
tos radicais ou necessidades cada vez mais social incapazes de serem
intergradas pelo sóciometabolismo do capital.
A manipulação implica inversão/perversão ou aviltamneto – isto
é, o desfiguramento do que é incapaz de ser integrado no sentido de
compor o sistema de valores da dinâmica social burguesa ou realização
das promessas contidas nos valores vislumbrados.
De fato, pode-se “integrar” as necessidades cada vez mais social
ou carecimentos radicais, cujo núcleo efetivo é a socialidade radical,
apenas reduzindo-as e desintegrando seu contéudo valorativo (o Outro
deixa de ser Próximo e aparece apenas como meio de realização de fi-
nalidades particularistas).
Além disso, na medida em que se mercadorifica (ou aparece como
produto-mercadoria no mercado) opera-se uma suposta integração de
necessidades cada vez mais social. Ora, a forma-mercadoria é a forma
adequada para a manipulação de carecimentos radicais, o que explica

145
Trabalho e Cinema • Volume 3

porque o capitalismo manipulatório tinha que assumir a forma do capi-


talismo neoliberal onde todo poder é dado ao Mercado.
Portanto, estar alienado, no sentido marxiano, é estar fora do com-
plexo do ser-homem (do ser social ou do ser-personalidade) que se tornou
possivel no plano do gênrro humano ou genericidade humana em si.
O estranhamento é produto de um deslocamento ocasionado pela
relação-capital que “des-projeta” as individulaidades pessoais de classe
para aquém de suas possibilidades concretas no plano do gênero hu-
mano.
Esse deslocamento histórico – que ocorre, portanto no plano da
temporalidade histórica do capital – possui implicações categóricas no
plano das individualidades pessoais de classe (por exemplo, por meio
das formas de desefetivação humano-génerica que se manifestam nos
adoecimentos do homem singular ou ainda por meio do que denomi-
namos de “explicitações espectrais” de vários tipos que permeiam o
imaginário social).
Ora, no filme “Morte de um caixeiro-viajante”, Willy Loman é um
homem singular em processo de deseftivação humano-generica. Lo-
man é o homem burguês, uma individualidade pessoal de classe imer-
so na deriva existencial.
Para que possamos compreender a deriva existencial de Willy
Loman torna-se necessário articular elementos da universalidade/par-
ticularidade de classe (que iremos explorar ao tratarmos do paradigma
salarail do proletário-mascate) com elementos da singularidade pes-
soal (traços da sua ontogenese pessoal marcado por situações únicas
de uma singularidade obstaculizada por formações inconscientes que
impediam o desenvolvimento da sua personalidade humana).
Apesar disso, Willy Loman resiste – pessoalmente. Temos no filme
de Volker Schlondorff , vários exemplos de resistências pessoais – com
destaque para Willy e Biff Loman. Menos talvez, para Happy Loman, que
escolhe “integrar-se” ao sistema, manipulando seus algozes. Na medida
em que Willy Loman submerge na deriva pessoal, explicita seus sonhos
e utopias pequeno-burguesas e seus impasses no plano da socialidade e
frustração afetivo-familiar.

146
O mundo do trabalho através do cinema

Ao deslocar-se do complexo do ser-homem ou ser-personalidade,


Willy Loman, como personalidade tipica do drama realista, explicita a
miséria social da sociedade burguesa. A miseria de Willy Loman é a
miseria do homem burguês, embora nem todo homem burguês seja
Willy Loman.
O filme começa com Willy Loman dirigindo seu veículo numa noite
de densa escuridão. Ele é um vendedor cansado, que fixa seu olhar adian-
te, buscando se orientar na estrada. As viagens tornaram-se um fardo
pesado para Willy Loman. Na cena de abertura, percebemos tão-somen-
te, de imediato, os faróis do carro. Willy Loman é um caixeiro-viajante,
cansado de viagens, prestes a perder o emprego, e com sérios problemas
de relacionamento com o filho mais velho, Biff, jovem desempregado e
sem perspectivas de futuro. Willy Loman está em franco processo de
autodestruição pessoal, imersos em fantasmas do passado.
A crise do trabalho de Willy Loman explicita a condição de pro-
letariedade no qual está imerso. A deriva existencial é um sintoma da
despersonalização. Ele não consegue dar uma resposta à desefetivação
humano-genérica posta pelo trabalho estranhado naquelas condições
concretas (talvez porque seja incapaz de formular as verdadeiras per-
guntas como generalizações de seus carecimentos radicais – Willy
Loman está implicado com ilusões pequeno-burguesas e possui uma
auto-estima danificada).
Mesmo tendo relativa autonomia em sua atividade de caixeiro-
viajante, o velho Willy Loman, no momento crucial em vai barganhar
melhores condições de trabalho, no trato individual com a chefia, ve-
rifica a dureza do mundo do salariato. É apenas um mero empregado
subalterno que deve se submeter as diretrizes gerenciais.
Como salientamos na aula 2, o modo de produção capitalista sur-
ge constituindo uma condição existencial histórico-particular: a condi-
ção de proletariedade, que é a condição de homens e mulheres despos-
suidos dos meios de produção da vida social, ineridos numa relação
social de subalternidade estrutural e obrigados a vender sua força de
trabalho. A condição de proletariedade implica uma série de atribu-

147
Trabalho e Cinema • Volume 3

tos existenciais das individualidades pessoais de classe que nela estão


inseridas.

Traços existenciais da condição de proletariedade


Subalternidade
Acaso e contingencia
Insegurança e descontrole existencial
Incomunicabilidade
Deriva pessoal e sofrimento
Risco e periculosidade
Invisibilidade social
Experimentação e manipulação
Prosaísmo e desencantamento
Corrosão do caráter

Sob o capitalismo, o trabalho assalariado é um trabalho heterôno-


mo que pode assumir a forma de emprego – onde o operário, empregado
ou servidor público obedece a um patrão público ou privado – ou ainda
a forma de trabalho por conta própria, onde o trabalhador é “patrão de
si mesmo” (embora esteja subsumido às condições do mercado).
Tanto a forma-emprego quanto a forma-trabalho por conta própria
são modos de trabalho heteronomo ou trabalho assalariado, na medida
em que o homem que trabalha está subsumido ao capital, seja numa
relação de exploração ou relação de opressão/dominação/espoliação.
Mesmo o “trabalhador por conta própria” que aparece como traba-
lhador “autônomo” está efetivamente subsumido às condições do mer-
cado e à lógica do capital. Ele não deixa de ter um patrão – a si mesmo,
obrigado por si a submeter-se às leis do mercado.
Portanto, a forma-salariato é a forma social da heteronomia do traba-
lho sob o modo de produção capitalista. A categoria de trabalho assalaria-
do diz respeito a todas as formas de subalternidade estrutural do trabalho

148
O mundo do trabalho através do cinema

ao capital, seja como trabalho assalariado propriamente dito, numa relação


de emprego, seja como trabalho assalariado “excentrico”, numa relação de
trabalho por conta própria.
• A relação salarial de emprego se caracteriza pela dependência
diante de um patrão, persona do capital (pode ser um capita-
lista individual ou um capitalista anônimo). É a forma hete-
rônoma clássica que constitui o empreendimento capitalista.
Caracteriza-se pela submissão do operário, empregado ou
servidor público a uma divisão hierárquica do trabalho.
• A relação salarial do trabalho por conta propria se caracteriza
pela dependência diante de condições de mercado. O homem
que trabalha por conta própria é “patrão de si mesmo”, sub-
metido às leis do mercado. Preserva a ilusão de autonomia
pessoal e independência laboral.
O capitalismo em sua origem histórica, enquanto as relações de
mercado não dominavam, em larga medida, o metabolismo social, man-
tinha espaços de autonomia laboral para “empreendedores por conta
própria”. Nas áreas de expansão, a idéia de autonomia pessoal possuía
efetividade social. Na medida em que o capitalismo concorrencial dá lu-
gar ao capitalismo monopolista, estreitam-se os espaços de “trabalho au-
tônomo” e impõe-se as relações salariais propriamente ditas .
O caixeiro-viajante é um trabalhador-vendedor implicado numa
relação salarial de emprego que possui traços de trabalho por conta
própria, tendo em vista que, em sua origem – e em certos casos – o
vendedor de mercadorias era um trabalhador por conta própria (era o
mascate tradicional que comprava e revendia no mercado).
Mas sob o capitalismo monopolista, a profissão de caixeiro-vajante
altera sua morfologia laboral: ele se torna cada vez mais um empregado
das grande empresa de venda ligada a grupos industriais – torna-se
um empregado de vendas. Apesar disso, preserva os traços do empre-
endedor “autônomo” desvinculado do controle intrínseco ao emprego
propriamente dito e cujo talento pessoal torna-se relevante para seu
desempenho produtivo.

149
Trabalho e Cinema • Volume 3

Na medida em que se desenvolve, o capitalismo mundial torna-se


cada vez mais a sociedade das mercadorias. As individualidades pes-
soais de classe tendem a se tornarem implicados de forma intensa (e
extensa) com o mundo das mercadorias, seja nas relações de consumo
ou nas relações de trabalho e emprego. Observou Marx:
“A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção
capitalista aparece como uma imensa coleção de mercadorias e a mer-
cadoria individual como sua forma elementar.” (Karl Marx, O Capital)
Um dos traços inegáveis do precário mundo do trabalho no século
XXI é a disseminação das implicações laborais de cariz mercantil com o
surgimento de um contingente imenso de trabalhadores vendedores de
mercadorias e, portanto, imersos nas contingências do mercado. Sur-
ge o que poderíamos denominar de proletariado-mascate, um imenso
contingente de trabalhadores assalariados vendedores de mercadorias
e prestadores de serviços como mercadorias dos mais diversos tipos.
Todos nós nos tornamos vendedores de produtos-mercadoria.
Por exemplo, a epigrafe da peça “O sucesso a qualquer preço”, de David
Mammet - “Always be closing” (algo como “sempre esteja fechando um
negócio”) é a máxima do caixeiro-viajante que expressa a condição do
tempo de vida tornado tempo de trabalho do “proletário-mascate”
Sob o capitalismo global, as implicações laborais de cariz mercan-
til assumiram proporções inauditas no seio do mundo do trabalho. O
vendedor de mercadorias ou representante comercial aparece diante de
nós, presencialmente e virtualmente, por meio das novas tecnologias
de informação e comunicação. A atividade de venda confunde-se com o
serviço de marketing e propaganda. Na TV ou Internet nos deparamos
com novas mercadorias sendo exibidas por algum proletário-mascate.
Com a terciarização do mercado de trabalho, ampliaram-se, no
setor formal e informal da economia capitalista, atividades de serviços
ligadas às áreas de vendas. Na verdade, muitos serviços possuem vín-
culos orgânicos com a atividade industrial propriamente dita. Os ditos
“serviços” são o modo de manifestação da industrialização universal.
Enfim, vivemos hoje, a lógica do capital industrial sob a forma de uma
“sociedade de serviços”.

150
O mundo do trabalho através do cinema

Diante do sistema do capital imerso numa crise de superprodução


e de subconsumo, a atividade de venda tornou-se uma atividade crucial.
Ela tornou-se uma atividade central no capitalismo mundial em sua
fase de crise estrutural, com a venda se antecipando à produção. Por
exemplo, o sistema toyotista incorpora o princípio do estoque mínimo
e do just-in-time, onde a venda se confunde com a produção de merca-
dorias. Deste modo, o mundo do trabalho tende a assumir a feição de
um mundo de vendedores de mercadorias.
A crise do emprego clássico devido a corrosão do estatuto salarial
tradicional do mundo do trabalho, expele um imenso contingente de su-
bempregados que buscam por meio das atividades de venda ou de pres-
tação de serviços dos mais diversos tipos, estratégias de sobrevivência
pessoal enquanto individualidades de classe.
A instauração da nova precariedade do mundo do trabalho atra-
vés da constituição do “proletário-mascate”, vincula-se às múltiplas
determinações no campo da lógica organizacional da produção capi-
talista (o toyotismo) ou da lógica sistêmica do capital com sua crise de
superprodução e subconsumo endêmico.
A venda de mercadorias não é tarefa apenas dos tradicionais co-
merciantes ou comerciários ligados diretamente às áreas de venda ou
de prestação de serviço. Ela mobiliza o corpo da empresa, alterando o
perfil de seus empregados. Por um lado, a base operária é “enxuta” por
meio de constantes downsizing industriais. Por outro lado, amplia-se a
rede de empregados administrativos envolvidos direto ou indiretamen-
te com as atividades de venda e planejamento.
Devido a terceirização, muitos operários e empregados tornaram-
se meros “prestadores de serviços”. Sob a alcunha de “trabalhadores
autônomos”, são verdadeiros proletários-mascates, reproduzindo – na
tênue linha de demarcação entre trabalho produtivo/improdutivo, o
trabalho abstrato virtual. É o caso, por exemplo, dos camelôs e dos tra-
balhadores que vendem novos serviços que surgem das necessidades
sociais supérfluas originárias do capitalismo desenvolvido.
Por exemplo, vejamos ainda o caso das atividades dos trabalha-
dores bancários, principalmente aqueles ligados ao atendimento do

151
Trabalho e Cinema • Volume 3

público. O bancário tornou-se hoje um executivo de vendas de produtos


financeiros do banco. Inclusive, a remuneração flexível do bancário in-
corpora uma parte de comissões de vendas. Ele tornou-se um “masca-
te financeiro”. É claro que não possui autonomia pessoal, nem circula
pelos espaços sociais (como o velho mascate de outrora). Entretanto, o
bancário está cada vez mais envolvido em oferecer e vender produtos e
serviços financeiros dos mais diversos tipos (de títulos de capitalização
à seguros de vida). Essa atividade cotidiana recorrente tende a compro-
meter a subjetividade do trabalho vivo.
É importante salientar que a ampliação exacerbada da implicação
laboral de cariz mercantil se origina de uma sociedade capitalista que se de-
senvolve ampliando à exaustão, a mercantilização das relações sociais. Deste
modo, de alguma forma, se a mercadoria e sua lógica fetichizada penetram,
cada vez mais, nos poros sociais, erigindo, em torno de si, uma aura de
necessidade de consumo, precisa-se de alguém para suprir tal necessidade
(com sua respectiva mercadoria). E de repente, de algum modo, em algum
lugar, nos tornamos vendedores de alguma coisa-mercadoria.
Ora, o ato de venda é um ato de investimento libidinal. O homem que
trabalha com vendas mobiliza a integralidade da sua personalidade no ato
de venda. Corpo e mente se entregam à realização da forma-mercadoria.
A inversão fetichista (o que é humano se coisifica e as coisas se humanizam)
se transfigura noutra inversão homóloga: a realização da mercadoria é a
irrealização da individualidade pessoal subsumida à condição de classe.
A prática social mercantil, ao tornar-se estruturante da vida co-
tidiana, penetra no mundo do trabalho, articulando novas formas de
precarização do trabalho vivo, comprometendo, deste modo, a subje-
tividade do homem que trabalha, envolvendo (e manipulando) a sub-
jetividade complexa, na medida em que o capitalismo do século XXI é
um capitalismo desenvolvido que ampliou as possibilidades concretas
de individuação social. Esta é uma das formas de “captura” da subjeti-
vidade do trabalho e um dos nexos mais amplos do estranhamento que
é intrínseco ao sóciometabolismo da barbárie.
Ora, o homem que trabalha com vendas compromete mais ainda
a dimensão subjetiva do trabalho vivo e da sua força de trabalho. Eis o

152
O mundo do trabalho através do cinema

elemento decisivo da mudança qualitativa da atividade proletária sob o


capitalismo global. Por isso, a ampliação das implicações mercantis não
apenas no seio da esfera de circulação, mas nos próprios interstícios da
produção, com uma produção de mercadorias cada vez mais implicada
com a atividade de venda em si, significa que o capital se apropria, de
forma intensa - e qualitativamente nova - da subjetividade complexa
do trabalho vivo. O trabalhador assalariado - ou o proletário que se diz
“prestador de serviço” - está imerso na lógica do produto-mercadoria.
Nesse caso, a reificação dissemina-se com mais intensidade e am-
plitude. Ao vender mercadorias, o trabalhador assalariado ou “presta-
dor de serviço” (o que denominamos de “proletário-mascate”), vende
não apenas um produto, mas vende a si próprio, a imagem com suas
disposições anímicas e afetivas.
Ao incorporar-se na “lógica do produto-mercadoria” por meio
da atividade de venda, o “proletário-mascate” tende a sedimentar um
grão de consentimento à ordem sóciometabólica do capital. O reverso
subjetivo da implicação estranhada é a proliferação das “doenças da
alma”, com destaque para o estresse em suas múltiplas manifestações
derivadas. Sob o capitalismo global, a maior incidência das doenças do
trabalho dizem respeito à mente e não só ao corpo.
Enfim, na época de sua crise estrutural, o capital fechou o cerco à
personalidade viva do trabalho, cuja implicação estranhada reverbera
em sintomas psicossomáticos. Por isso, dissemina-se em nossa épo-
ca, as mais diversas formas de literatura de auto-ajuda ou atividades
de lazer com conteúdos de (auto) agressividade. Uma das formas de
precarização do trabalho é a precarização da subjetividade do trabalho
vivo com implicações profundas na sociabilidade social. Ela é um dado
objetivo da barbárie social.
A profissão do trabalhador de vendas assume diversas configura-
ções sociais no decorrer do desenvolvimento capitalista. Por exemplo,
um caixeiro-viajante – como Willy Loman – é o vendedor ou represen-
tante comercial ligada a grandes empresas que ainda guardam o sonho
de autonomia pessoal no processo de trabalho de venda.

153
Trabalho e Cinema • Volume 3

Mas, na medida em que se amplia o poder do capital mono-


polista, aumenta o controle gerencial sobre a atividade do vendedor.
Impõem-se metas e técnicas de venda. Restringe-se - embora não se
possa suprimir - o espaço do talento pessoal e adota-se novas práticas
de manipulação. Nesse momento, o profissional torna-se um mero em-
pregado (“proletário-mascate”) imerso numa relação salarial.
A deriva profissional de Willy Loman é, num primeiro momen-
to, a desilusão do homem que trabalha desefetivado em seus sonhos
de ser um profissional autônomo de sucesso. Enquanto o irmão mais
velho, Benjamin Loman, tornou-se um desbravador das fronteiras de
expansão capitalista, enriquecendo-se com minas de ouro na África
(o herói colonizador do capitalismo em ascensão histórica), Willy Lo-
man escolheu ser um vendedor de mercadorias, preenchendo assim
sua necessidade de interação social por meio da afirmação pessoal com
venda de mercadorias. Tornar-se um caixeiro-viajante sognifica des-
bravar um espaço aberto do talento profissional no limite do trabalho
heterônomo, onde seus constantes deslocamentos de cidade em cidade,
distante do olhar disciplinar da chefia criava um halo de autonomia la-
boral, além de simular o sonho do pioneiro que desbrava o Novo Mun-
do (Willy Loman era empregado da grande empresa de vendas, mas, na
origem, mantinha relações pessoais com a chefia da corporação).
Na sociedade burguesa que emerge sob a crise do processo de
expropriação primordial (e sistêmica) do trabalho vivo, na medida em
que avança o poder social do capital monopolista, abre-se uma tensão
crucial entre o avanço paulatino da condição de proletariedade – com o
processo de proletarização (a transformação de pequenos proprietários
da agricultura ou comércio ou inclusive profissionais liberais em prole-
tários assalariados) e a preservação, no plano da consciência social e do
processo de socialização dos pequenos proprietários, do sonho de au-
tonomia laboral, ligada a idéia do trabalho por conta própria, onde não
existe a presença do patrão. É o sonho pequeno-burguês do pequeno ne-
gócio, utopia laboral vinculada a etapas pretéritas do capitalismo con-
correncial, mas sempre reiterada efetivamente, a cada momento, pelo
capital (principalmente hoje devido a crise do emprego capitalista).

154
O mundo do trabalho através do cinema

Sob o capitalismo monopolista, torna ilusão passadista o que an-


tes era mero sonho. A ilusão da autonomia laboral nos casos do tra-
balho por conta própria – onde o homem que trabalha é “patrão de si
mesmo” - esquece que a presença do capital se dá através dos constran-
gimentos de mercado. Muitas vezes, o “patrão interior”, que está dentro
de nós como persona do capital, é mais exigente – e perverso – que o
“patrão exterior”.
Ora, o sonho de autonomia laboral é ideologia-sintoma da opres-
são/dominação do capital sobre as individualidades pessoais de classe,
que reagem, no plano contingente (no sentido do modo de resistência
pessoal, tratado acima), elaborando para si, a utopia da autonomia la-
boral. Por trás desta ideologia-sintoma, existe o “núcleo racional” da re-
sistência humano-pessoal à desefetivação do ser genérico do homem.
A “classe” do proletariado é constituída por múltiplas frações de
classe que cultivam determinados valores, ideologias e utopias de classe.
As inserções materiais diferenciadas na divisão social do trabalho, no
tocante à ocupação e qualificação, status e prestígio social, propiciam
múltiplos níveis de consciência social, chegando alguns grupos sociais
a terem maiores possibilidades concretas de consciência de classe em si
e para si. Na verdade, algumas frações do proletariado – com destaque
para os “proletários de classe média” - tendem a cultivar valores, ideo-
logias e utopias pequeno-burguesas.
A origem de classe pequeno-burguesa, no tocante a experiencia de
socialização, contribui para a incrustação de valores, ideologias e utopias
“estranhas” à posição objetiva de classe do proletariado. Por exemplo, um
homem proletário, trabalhador assalariado, operário ou empregado de
grande empresa, filho de família pequeno-burguesa, cuja socialização se
deu por meio da apropriação de valores, ideologias e utopias pequeno-
burguesas, tende a incorporar, valores estranhos à sua posição objetiva
presente de classe social (ele incrustará em seu campo de mediação lin-
güístico, a visão de mundo pequeno-burguesa, que irá determinar as per-
guntas formuladas como generalizações de seus carecimentos, em face
das escolhas como respostas às decisões alternativas).

155
Trabalho e Cinema • Volume 3

Nesse caso, ocorre uma tensão problemática entre a origem pe-


queno-burguesa e a presente condição de proletariedade (o que não sig-
nifica que, sob certas circunstancias históricas, o conflito interior não
possa ser resolvido pela atualização da consciência social adequada à
classe a qual efetivamente pertence). Esta é a tensão problemática (e
dilacerante) entre passado e presente, que verificamos na deriva profis-
sional de Willy Loman.
Os Estados Unidos da América se constituíram cultivando, para
um largo extrato do proletariado (e campesinato) europeu e asiático
que migrou para este país nos seculos XIX e século XX, o sonho da li-
berdade – isto é, o sonho do pequeno negócio ou pedaço de terra onde
homens e mulheres poderiam ser “patrões de si mesmos”. A saga da
colonização ligava-se à socialização pequeno-burguesa com os valores
heróicos do self-made man.
No século XX, o avanço do capital monopolista criou uma tensão
problemática com os valores, ideologias e utopias pequeno-burguesas
cultivadas pelo “sonho americano”. O capital monopolista semeia a pro-
letariedade e nega a autonomia laboral. No limite, utiliza-se dos símbolos
e ideologias do “sonho americano” para manipular a consciência social,
mas a realidade social do big business se impõe sobre o pequeno negócio
e os anseios do little man.
O capitalismo monopolista, que se desenvolve no século XX, am-
plia a condição de proletariedade moderna. É constituído pelas grandes
empresas oligopolistas, trustes e carteis que se incrustam no Estado,
tornando-o fiel, como forma politica de si, aos interesses materiais do
big bussiness.
A consciência social é convulsionada, por um lado, pelo processo
de proletarização paulatino que tende a transformar a velha pequeno-
burguesia em proletários assalariados. Por outro lado, pela preservação
de valores, ideologias e utopias pequeno-burguesa em camadas sociais
proletárias, mas de origem pequeno-burguesa (velha pequeno-burgue-
sa ) ou novas camadas pequeno-burguesas vinculadas ao capital mono-
polista – e portanto imersas numa proletariedade problemática.

156
O mundo do trabalho através do cinema

Os sonhos pequenos-burgueses sobrevivem à realidade social do


capital monopolista que se impõe sobre os destinos pessoais. Muitas
vezes, eles são manipulados pelos interesses políticos do grande capital
em sua luta social (e politica) contra a classe do proletariado.
O avanço do processo de proletarização, que significa para largas
camadas sociais de inserção e origem pequeno-burguesas, a perda da
pequena propriedade de comércio ou terra, ou ainda a perda de car-
reiras ligadas às “profissões liberais”, possui implicações ideológico-
pessoais. Ela se traduz, em algumas camadas sociais, num desencanto
contingente com o mundo burguês, que se explicita, muitas vezes, na
cosmovisão trágico-conformista de fundo irracionalista.
Ora, a proletarização cria seu caldo de “cultura metafisica”. Ao
mesmo tempo, as novas camadas pequeno-burguesas, que se distin-
guem da velha pequena-burguesia por estarem inseridas no mundo
social do capital monopolista, e portanto, viverem uma proletariedade
problemática, têm, em si, a candente contradição entre valores, ideo-
logias e utopias pequeno-burgueses e a realidade perversa da proleta-
riedade moderna. Oscilam entre um encanto fetichista com o mundo
burguês e suas ilusões de realização pessoal, e o desencanto íntimo de
cariz contingente e muitas vezes, não-consciente, com o mundo social
do capital e seus fetichismos sociais. O desencanto pequeno-burguês
se traduz em aguda inquietação íntima, recorrente experimentação (e
manipulação) pessoal e deriva existencial (é o caso de Happy, o outro
filho de Willy Loman).
Deriva Existencial

Deriva Profissional

Deriva Pessoal

Willy Loman vive uma deriva existencial que se manifesta pela


deriva profissional e deriva pessoal. Uma é parte da outra. Trabalho e
vida são atividades fragmentárias interconectadas na ordem burguesa.

157
Trabalho e Cinema • Volume 3

A deriva profissional caracteriza-se pela explicitação, no plano da


consciência pessoal, da alienação do produto e do processo de trabalho.
A deriva profissional da nova pequeno-burguesia ocorre quando os in-
teresses profissionais, permeados da auto-ilusão da autonomia laboral,
entram em choque com as prerrogativas materiais do capital.
Na verdade, a idéia de profissão, sob a ótica pequeno-burguesa, é
permeada de sonhos de autonomia (e liberdade) pessoal, que se depa-
ra – sob certas circunstâncias - com a divisão hierárquica do trabalho
e a redução do trabalho intelectual à trabalho material, no sentido de
trabalho heterônomo, vazio de conteúdo, explicitando a subalternidade
estrutural do trabalho vivo (e força de trabalho) ao capital.
Willy Loman vive em seu drama trágico, uma deriva profissional,
quando percebe que é obrigado a se submeter às determinações impes-
soais da chefia da empresa que quer lhe aposentar compulsoriamente.
A tragédia de Willy Loman no plano profissional é se recusar a aceitar
que possui um emprego, sendo ele mero empregado subalterno do ca-
pital. Loman possui um tipico orgulho pequeno-burguês em resistir à
máquina impessoal da modernidade salarial. A deriva profissional é a
perda irremediável de vínculos com seu passado de sonhos de sucesso
e autonomia laboral.
Por outro lado, a deriva pessoal se caracteriza pela alienação de si e
dos Outros. A deriva pessoal do homem pequeno-burgues é a percepção
(e auto-percepção) da perda (ou deterioração) de seus laços íntimos
com Outros como Proximos e consigo mesmo. É a dimensão da auto-
alienação do homem que trabalha, alienação de si e dos outros, onde o
Outro primordial são os filhos, verdadeiros vínculos com a futuridade.
A deriva pessoal do caixeiro-viajante Willy Loman é marcada por
conflitos familiares com o filho Biff. Nesse caso, temos a perda de vín-
culos com sua futuridade pessoal, com Willy tornando-se incapaz de
ver reproduzidos no filho primogênito (Biff Loman), os caros valores
de sucesso profissional que ele alimentou por toda a vida. Na verdade,
o fracasso de Biff é também o fracasso pessoal-profissional de Willy
Loman.

158
O mundo do trabalho através do cinema

Willy Loman é um homem proletário pequeno-burguês convul-


sionado pelo passado e presente. Está em pleno processo de desefetiva-
ção humano-genérica. Passado e presente habitam o mundo íntimo de
Willy Loman. Todos nós dialogamos com espectros do tempo passado
ao enfrentarmos o tempo presente. Diante da alienação crucial que o
assola no tempo presente, Willy mobiliza, em sua deriva existencial,
espectros do tempo passado (como seu irmão Ben, que é menos sinto-
ma de degradação mental, e mais expressão dos conflitos íntimos do
homem pequeno-burgues diante da percepção e auto-percepção da sua
irremediável condição de proletariedade).
A abertura do filme “Morte de um caixeiro-viajante” mostra Willy
Loman chegando em casa, carregando duas malas pesadas, depois de
mais uma viagem de negócios. É um homem proletário em crise – na
verdade, homem proletário imbuído do espirito burguês. Mesmo assim,
ele diz para a esposa Linda: “Está tudo bem”. Mas depois, chega a dizer:
“Estou cansado”. E logo adiante: “As palmilhas estão me matando”. Willy
não conseguiu dirigir seu carro. “De repente saí da estrada. Esqueci que
dirigia. Cinco minutos depois estou sonhando de novo”, diz ele.
Willy Loman não está apenas com cansaço físico, mas torna-se
evidente um agudo stress mental. Começa a divagar, submergindo no
passado. É um homem proletário à deriva. O tempo presente tornou-se
mera factualidade estranhada.
Willy Loman não dialoga – sua fala é puro monólogo. É mais um
sintoma da despersonalização do homem que trabalho (a incomunica-
bilidade). Por isso, Willy Loman sonha acordado. Diz ele: “Pensei em
algumas coisas. Coisas estranhas”.
A mulher Linda é a voz da razão familiar. Ela se preocupa com a
saúde de Willy. Diz ela: “Sua mente trabalha muito e é ela que importa”.
Na verdade, o trabalho de caixeiro-viajante sufoca Willy. É o elemen-
to causal crucial na sua desefetivação humano-genérica. É o trabalho
de vendedor que o faz viajar toda semana, afastando-o da família – as
viagens são desgastantes. Linda diz: “Mas você tem 60 anos. Não pode
viajar toda semana.” E observa: “Não há motivo para você não trabalhar
em Nova York”.

159
Trabalho e Cinema • Volume 3

A questão principal é que Willy precisa evitar as viagens e ficar em


Nova York. Naquela idade, ele não tem mais condições de executar suas
tarefas de caixeiro-viajante. Após tantos anos dedicados à empresa de ven-
das, não encontra o reconhecimento necessário da chefia para lhe preser-
var a saúde de trabalhador. Eis a explicitação do seu trabalho estranhado.
Ora, a natureza do trabalho estranhado de Willy Loman se mani-
festa com intensidade no ocaso de suas forças fisico-espirituais. Aos 60
anos, Willy Loman, submerso em sua deriva existencial, quase faz um
balanço de vida. Diz ele: “Levei uma vida para pagar uma casa. E não há
ninguém para viver nela”. Nesse momento, expressa o desencanto com a
vida de trabalho e acumulação de bens familiares. Eis o nexo causal entre
trabalho estranhado , deriva existencial e desencanto pessoal-familiar.
O velho caixeiro-viajante sente que não realizou nada na vida pes-
soal. Eis o sintoma do desencanto existencial. Linda procura consola-lo:
“Sempre deixamos algo de lado na vida”. Mas o marido retruca: “Algumas
pessoas realizam algo”. Ora, Willy Loman sente um vazio pessoal. Consu-
mido pelo trabalho estranhado no decorrer de sua vida vivida, de repen-
te, ele se encontra diante do deserto da sua existencia pessoal-familiar.
Willy Loman está imerso num complexo de alienação que o afas-
ta do ser-homem ou ser-personalidade: primeiro, ele está alienado dos
produtos do trabalho (as mercadorias que vende são capitais-mercado-
ria da empresa em que trabalha); depois, está alienado do processo de
trabalho (ele é obrigado a viajar para locais indicados pela empresa,
cumprindo tarefas de venda, provavelmente com metas a serem cum-
pridas). Nisso investe seu talento pessoal, cultivando ilusões de autono-
mia laboral; além disso, ele está alienado de si mesmo - embora se iden-
tifique com a profissão de vendedor, com o tempo, ela se tornará um
fardo de vida, devido o cansaço e stress mental. O trabalho estranhado
consome o trabalho vivo como dimensão de sua genericidade humana.
Para as profissões que implicam o talento pessoal, esta dimensão da
alienação – a alienação de si mesmo - manifesta-se, no decorrer do tem-
po, como auto-percepção de irrealização na vida pessoal. Finalmente,
Willie está alienado dos Outros – os outros familiares como Próximos,
mulher e filhos que cresceram com o pai distante, viajando em trabalho

160
O mundo do trabalho através do cinema

de vendas. Uma dimensão da deriva pessoal de Willy Loman decorre


da fratura relacional com seu filho Biff e a completa indiferença para
com seu outro filho Happy.
Willy Loman é um homem proletário implicado com as coisas.
A mulher Linda apresenta-lhe as contas do lar: conserto de peças da
geladeira, prestação de máquina de lavar e aspirador de pó, conserto do
teto e carburador do carro – enfim, gastos elementares do proletário
pequeno-burguês para manter um padrão de “classe média”. Diz ele:
“Se os negócios não melhorarem, estou perdido”. Mais uma vez, sua
vida pessoal-familiar remete ao trabalho estranhado.
Na família Loman, só Willy e Happy possuem emprego. Entre-
tanto, o pai parasse ser o único provedor do lar – a mulher executa
trabalho domésticos, cuidando da casa (eis o modelo de lar fordista);
Happy, embora tenha emprego, está afastado de casa e Biff, que largara
os estudos, está desempregado.
Mas Willy Loman, o homem que trabalha, possui uma singulari-
dade pessoal que limita o desenvolvimento da sua personalidade. Ele é
um vendedor inseguro de si. É a dimensão da singularidade do homem
singular. Diz ele: “O problema é que as pessoas não me levam a sério. Eles
riem de mim. Eles passam e nem sou notado”.
A mulher Linda que sempre procura consola-lo, diz que ele ga-
nha muito bem por semana. Mas o velho caixeiro-viajante deixa claro
mais um traço de seu trabalho estranhado: o tempo de trabalho con-
some quase todo seu tempo de vida. Diz que trabalha 12 horas por dia.
“Para outros é mais fácil. Não sei porque”, diz Willy. Mas isto é como ele
percebe os outros a partir do fardo pessoal que carrega. Talvez não seja
tão fácil assim para os outros também.
Percebemos que Willy Loman possui baixa estima como profis-
sional de vendas – como salientamos é um traço da sua singularidade
pessoal: “Eu falo demais. Um homem deve falar pouco. Charley fala
pouco e eles o respeitam. Faço piadas demais. Sou baixo. Sou uma figu-
ra cômica. Preciso superar isto. Talvez não me vista bem.”
Mas enquanto a mulher o consola dizendo que ele é o mais bo-
nito, Willy Loman, diante do espelho, divaga e pensa na amante casual

161
Trabalho e Cinema • Volume 3

(logo depois, como um contrapeso à consciência de culpa, elogia sua


mulher, Linda, dizendo que ela é ótima e uma grande companheira).
Ora, a presença da amante serve para explicitar outro aspecto da
profissão de caixeiro-viajante – a solidão das viagens. Ele diz: “Sinto-
me só, sobretudo quando as vendas vão mal e não há com que falar.
Sinto que nunca mais venderei. Não sustentarei você, nem ajudarei os
rapazes.” Finalmente, observa: “Vou me redimir” (provavelmente, a
consciência de culpa o consome intimamente – o que mostra que o ho-
mem burguês Willy Loman possui traços de um anti-herói kafkiano).
Aos poucos, Willy Loman vai indicando os elementos compositi-
vos do processo de trabalho do caixeiro-viajante, traços característicos
que contribuíram para sua deriva existencial. Como homem singular
e individualidade pessoal de classe, Willy Loman é um vendedor de
baixa-estima, apesar dos anseios e sonhos de sucesso que marcaram
sua vida pessoal. Inseguro de si, possui carecimentos íntimos de reco-
nhecimento e atenção (gosta de contar piadas e fala demais. Considera-
se baixo e talvez, feio).

Estilo de Trabalho do caixeiro-viajante

Longas jornadas de trabalho (12 horas de trabalho)

Constante trato interpessoal

Talento pessoal para convencimento e respeitabiidade

Remuneracão vinculada a desempenho nas vendas


(salário por peça)
Freqüentes viagens de venda Vida solitária
em quartos de hotel

Pouco contato familiar

162
O mundo do trabalho através do cinema

Linda, como mãe e trabalhadora do lar, sente nostalgia dos fi-


lhos pequenos, quando estavam sob seus cuidados no lar. Biff e Happy,
crescidos, se afastaram mais de casa, deixando-a sozinha. O marido
Willy, com suas freqüentes viagens de negócios, contribui também com
a solidão de Linda. Mas ela é uma mulher trabalhadora do lar, bem-
resolvida consigo mesma.
Um detalhe: enquanto Linda tem nostalgia com os filhos, Willy
lembra-se do Chevy vermelho, que comprou em 1928, ano de prospe-
ridade comercial, pouco antes da Grande Depressão em 1929. O Chevy
vermelho, ícone da civilização fordista, o faz lembrar daquela época
(Linda diz: “Algo deve te-lo feito lembrar”). Willy observa, lembrando-
se do filho: “Como Biff o lustrava”. E diz: “O vendedor não acreditou que
ele tinha rodado 128 mil km” (o Chevy 1928, carro da Chevrolet lança-
do com US$ 50 de descontos em 1928, desbancou a liderança de vendas
do Modelo A, da Ford, líder de vendas até então. Com o Chevy 1928 a
Chevrolet conseguiu, pela primeira vez, passar da Ford em vendas).
Mas Willy Loman – sempre implicado com valores pequeno-
burgueses, quer saber se Biff está ganhando algum dinheiro. Linda se
interroga: “Como ele ganharia algum dinheiro?”. Esta é a preocupação
de Willy com Biff: saber se ele se tornou um homem produtivo. Loman
é um homem proletário implicado com valores-fetiches.
Pai e filho discutiram e estão com relações estremecidas. Willy
diz: “Ele esconde algo. Ele se tornou sombrio”. No decorrer da narrativa
percebemos um estranhamento entre pai e filho. De repente um tor-
nou-se estranho ao outro. Diz o pai: “Quando ele era jovem, eu pensei:
‘É bom viajar, ter diversos empregos. Mas passaram 10 anos e ele nem
ganha US$ 35 por semana.” Na verdade, Biff , o filho, não conseguiu se
tornar um homem de sucesso (como o amigo Bernard). Frustrou o pai
que via nele a projeção de seus anseios de sucesso e autonomia labo-
ral. A mãe observa que Biff está se encontrando. Willy retruca: “Não se
encontrar aos 34 anos é uma desgraça.” E vocifera: “Biff é preguiçoso.
Vagabundo”. A mãe compreende Biff: “Ele ainda está perdido”.
O velho caixeiro-viajante tem uma aguda frustração com o filho:
“Biff Loman perdido?. No maior país do mundo, um jovem bonito se

163
Trabalho e Cinema • Volume 3

perde.” Ele não compreende como isso possa ocorrer. É algo tão trágico
quanto a sua deriva profissional de caixeiro-viajante. Mas Willy está
num conflito íntimo. Na verdade, Biff é parte de si, uma parte de si
estranhada. Diz que Biff é vagabundo, mas logo a seguir, observa que
ele é trabalhador: “Biff não é preguiçoso. Vou arranjar um trabalho de
vendedor para ele.” Ora, Willy não consegue não se projetar no filho
Biff. Quer vê-lo realizar seus sonhos frustrados. Quer que Biff se torne
um homem de sucesso (como Thomas Edson ou B.F. Goodrich). Diz:
“Muitos começaram tarde. Eu aposto no Biff ”.
A insatisfação visceral de Willy Loman não é apenas com as via-
gens de trabalho como caixeiro-vaijante ou o desemprego do filho Biff.
Por um momento, ele expressa insatisfação com a degradação da vida
urbana e o crescimento dos prédios de apartamentos – ele explicita sua
cosmovisão pessimista quase exalando um anti-capitalismo romântico:
“Ficamos presos, tijolos e janelas; janelas e tijolos.” Lamenta não ter
mais espaço de vida: “A rua está cheia de carros. Não há mais ar puro.
A grama não cresce mais. Não consigo plantar cenouras, Prédios de
apartamento deviam ser proibidos.”
O velho caixeiro-viajante lembra dos dois lindos Olmos onde Biff
brincava de balanço e que foi cortado: “Deviam prender quem cortou
as árvores. Destruíram o bairro”. Novamente, ele se refugia no tempo
passado: “Penso cada vez mais nesses dias”. É o sintoma de deriva exis-
tencial.
O tempo passado é tempo dourado: “Era época de lilás e glicínia
As peônias desabrochavam. E os narcisos. O perfume nos quartos.” In-
dignado, Willy Loman apenas constata traços fenomênicos da miséria
do capital. A partir de sua consciência ingênua, atribui a degradação da
vida urbana ao crescimento da população: “É o que destrói o país. A
população saiu de controle. A concorrência é enlouquecedora.”
Mas a inquietação existencial é também do filho de Willy Loman.
Biff vive uma deriva existencial, mas por outros motivos. Elelamenta:
“Sempre fiz questão de não desperdiçar minha vida. E tudo o que fiz foi
desperdiça-la.” É a percepção da vida pessoal estranhada onde intenção
e resultados se excluem. Ele é um homem perdido e incapaz de se inte-

164
O mundo do trabalho através do cinema

grar no mundo de sucesso idealizado pelo pai (o que explica o conflito


candente entre ele e Willy).
Biff foge do padrão social do homem fordista – casado e provedor
do lar com um emprego regular (como o amigo Bernard iria se tornar).
Na verdade, Biff tornou-se um homem perdido no limbo dos sonhos da
velha pequeno-burguesia. Diz ele: “Talvez devesse me casar. Me fixar
em algo. Talvez seja o meu problema. Sou como um menino. Não sou
casado, não trabalho. Sou como um menino”.
Na medida em que não se insere no padrão salarial vigente, imer-
so em empregos precários, incapaz de se fixar em algo, Biff quase que
reproduz – no auge do fordismo (a peça de Arthur Miller ocorre no
pós-guerra quando os EUA se tornaram economia capitalista industrial
afluente), o drama dos jovens adultos proletários do capitalismo flexí-
vel, incapazes de se inserirem em empregos fixos e regulares, renun-
ciam a serem provedores do lar. São homens infantilizados pela logica
do capital em sua fase estrutural. Tornam-se eternos meninos.
O diálogo entre os irmãos Biff e Happy Loman, são elucidativos
das angústias e dilemas existenciais que lhes perseguem. Primeiro, per-
cebemos que Biff – como o pai Willy – vive um processo de deriva
existencial. Antes, Biff era um rapaz extrovertido, cheio de vida e bem-
sucedido com as mulheres. Mas algo mudou. Happy observa: “Você me
ensinou tudo sobre mulheres.” Enquanto Biff era desenvolto em suas
conquistas amorosas, Happy era tímido. O que percebemos é que, aos
poucos, na medida em que cresce, Biff se amarra em seus fantasmas
interiores e inquietações sobre seu futuro profissional.
Há um desalento progressivo ligado a valores da vida burguesa
que ele não compartilha e que constituem exigências do mundo social
em que vive. Biff não se ajusta à idade madura, que exige dele os requi-
sitos de um “homem produtivo” e “homem de sucesso”. Pelo contrário,
ele vai aos poucos se perdendo e entrando em conflito com o pai. Ha-
ppy pergunta: “O que aconteceu, Biff? Onde está o humor, a confiança?
O que há…?”.
Primeiro, Biff demonstra preocupar-se com a atitude do pai para
com ele: “Por que papai caçoa de mim? Tudo que faço, ele faz careta.” O

165
Trabalho e Cinema • Volume 3

irmão observa: “É porque você não tomou rumo ainda. Não es estabe-
leceu. Há algumas coisas que o deprimem”. Happy acredita no irmão:
“Se você começar, há um futuro para você”.
Mas Biff não acredita em si. Numa passagem magistral do filme, ele
diz: “Não sei qual é o futuro. Não sei o que devo querer”. E explicita sua in-
satisfação intima com a lógica social que organiza o mundo do trabalho
na sociedade burguesa: “Passei sete anos após o colégio procurando tra-
balho. Expedidor, vendedor. Todo tipo de serviço. É algo medíocre Pegar o
metrô durante o verão. Viver controlando estoque e telefonando. Vendendo
e comprando?. Sofrer 50 semanas num ano para aproveitar duas, quando
o que se quer é estar fora de casa, sem camisa…E sempre tentar superar o
colega. E é assim que você constrói um futuro?”.
Ora, Biff demonstra se insurgir contra o estilo de vida e trabalho
da sociedade do salariato, vida social medíocre, estúpida, rotinizada,
meramente mecânica no dia-a-dia. Ele não aceita a condição do traba-
lho assalariado como sofrimento que consome a fruição da vida, vida
de si e vida com os outros. Ele critica a concorrência alucinada com os
colegas de trabalho, o mundo da farsa e trapaça pessoal. E se interroga
com lucidez: é assim que você constrói o futuro?”
O diálogo entre Biff e Happy explicita uma crítica mordaz à socie-
dade burguesa, principalmente no tocante ao trabalho estranhado que
se manifesta na incapacidade de dar a homens jovens e audazes, como
Biff Loman, uma vida plena de sentido.
Biff pergunta a Happy: “Você é feliz? Você é bem-sucedido. É fe-
liz?”. Happy – cujo nome em inglês, significa ironicamente “feliz”- diz:
“Não”. Biff não entende. Ganha bem, mas não é feliz. “Por que não?”,
pergunta ele. O irmão diz: “Só espero o gerente de merchandising mor-
rer.” Enfim, ele “torce” pela morte do colega de trabalho para ocupar
seu lugar.
Happy parece adotar aquilo que Biff acabara de criticar no estilo
de relação pessoal do trabalho estranhado: a predação do Outro - “Sem-
pre tentando superar o colega”. Ora, o trabalho estranhado instiga um
tipo de relação interpessoal que é a negação do Outro como próximo. É
o cerne da manipulação sistêmica que caracteriza o metabolismo social

166
O mundo do trabalho através do cinema

do capitalismo global. O fetichismo social interverte o Outro em mero


objeto de predação. É a sociedade da manipulação e da farsa.
Mas Biff, como o pai, é um sonhador. Talvez seja uma dimensão
da sua resistência pessoal (enquanto o pai está imerso no tempo passa-
do, Biff sonha com o tempo futuro). Sonha em ir com o irmão Happy
para o Oeste: “Acharemos uma fazenda. Criaremos gado. Usaremos os
músculos. Precisamos de espaço aberto.” Eis o ideal da autonomia la-
boral cultivada pelo pai Willy Loman. O pequeno-burguês precisa de
espaços abertos.
Os filhos socializados no ambiente pequeno-burguês sentem ne-
cessidade intima de”espaços abertos”. O mundo do salariato os sufoca.
Entretanto, Biff e Happy dão respostas diferenciadas à necessidade de
liberdade pessoal.
Happy, como o irmão, sonha com isso: “As vezes, quero rasgar
a roupa no escritório.” Mas, ao mesmo tempo que possui o sonho de
espaços abertos, é Happy também um homem implicado com os valores
da ordem burguesa concorrencial. Possui auto-estima e anseia ascen-
der no interior desta ordem competitiva. “Consigo superar qualquer
um na loja e tenho de obedecer àqueles cretinos”. E observa um traço
da ordem burguesa competitiva: “Todos são falsos. Eu diminuo meus
ideais.” Happy quer demonstrar – mais do que o irmão – que ele pode
vencer naquela ordem burguesa e não apenas fora dela. Diz ele: “Preci-
so mostrar àqueles arrogantes que posso chegar lá.”
Enquanto Biff sequer tenta enfrentar o trabalho estranhado, re-
cusando-se a aceitar os termos do jogo da manipulação e farsa burgue-
sa, Happy faz o contrário – intimamente, é como o irmão: sonha com
a autonomia laboral e com os “espaços abertos”. Mas Happy quer dar
uma resposta dentro do sistema, utilizando-se dos artifícios de mani-
pulação do próprio sistema da ordem competitiva. Biff diz: “Não fomos
educados para ganhar dinheiro. Não consigo”. Mas o que Happy quer é
dar uma resposta à banalização da vida burguesa a seu modo – dentro
da ordem do trabalho e vida estranhadas.
Assim, a formação pequeno-burguesa deu a Biff e Happy um sen-
tido vital na autonomia pessoal e busca de “espaços abertos”. Mas existe

167
Trabalho e Cinema • Volume 3

uma singularidade pessoal em Happy que se contrasta com a singu-


laridade pessoal de Biff. Embora os dois irmãos tenham nascido e se
desenvolvido no interior da mesma ordem familiar, dão respostas dife-
renciadas aos seus carecimentos radicais. Eis o espaço da singularidade
do homem singular.
Happy afirma-se dentro da ordem competitiva de mercado, nas
relacões concorrencias no trabalho, predando as mulheres dos concor-
rentes. “Faço isso sempre que quero, quando me sinto enojado. Mas
é como boliche. Eu derrubo todas, mas isso não significa nada.” Ora,
Happy é um exímio manipulador da afetividade humana. É seu modo
de sublimar – às avessas – o trabalho (e vida) estranhados. É a vingança
íntima contra seus concorrentes. Ele diz: “Vai me chamar de canalha.
Charlotte, a garota de hoje, vai casar em cinco semanas. Ele quer ser
vice-presidente. Talvez eu seja competitivo demais. Mas acabei com ela
e agora não me livro dela. É o terceiro executivo com quem faço isso..
Não é safadeza? E ainda vou aos casamentos”. Apesar disso, Happy, tal
como Biff diz querer se casar e ter uma garota séria: “Alguém de caráter,
substância, como a mãe.”
É curioso que Happy contesta o sistema competitivo, explici-
tando, de forma cínica, seus artifícios de manipulação, atingindo os
concorrentes naquilo que é um ponto nevrálgico da vida pessoal – a
afetividade.
Pode-se conhecer muito da natureza de uma sociedade pelo modo
como seus homens tratam as mulheres. Happy tornou-se um homem cíni-
co – canalha, competitivo e safado, mas que possui intimamente bons ide-
ais (como seu irmão Biff). Curiosamente, é por sentir nojo do sistema que
ele age - de forma padrão e com exímio talento – como qualquer integrante
do sistema. Esta é a inversão estranhada que lhe consome a personalidade
humana. Com as mulheres, adota uma afetividade-boliche – “derruba to-
das, mas isso não significa nada.” É a manipulação em sua forma cínica. Há
uma auto-satisfação particularista intimamente estranhada.
Willy Loman divaga sobre o tempo passado. É através das divaga-
ções retrospectivas de Willie que organizamos, aos poucos, elementos
da sua deriva existencial. Em seu devaneio passadista, ele acabara de

168
O mundo do trabalho através do cinema

chegar de viagem no Chevy vermelho. Os filhos treinam soccer. O fi-


lho Biff observa: “Sentimos saudades”. Willy se interroga: “Saudades?”.
Biff: “O tempo todo”. E o pai conta um segredo – a sua utopia pessoal
de autonomia laboral. Ele diz que um dia terá seu próprio negócio e
nunca mais sairá de casa. Ele sente o fardo do trabalho estranhado que
lhe afasta da convivência familiar. Para compensar, promete aos filhos
leva-los numa dessas viagens e mostra-los todas as cidades. Biff diz:
“Adoraria ir com você”. Mas as viagens de Willie são viagens de trabalho
e não viagem de férias. Naquela época, pai e filho são amigos.
Willy Loman cultiva valores pequeno-burgueses que entram em
conflito crucial com as determinações do trabalho estranhado. Aos
poucos sua vida íntima (e familiar) torna-se estranhada. O homem de
sucesso, segundo Willy, é aquele que é apreciado e popular. É o que pro-
jeta – intimamente – para o filho Biff. Enquanto isso, o jovem Bernar-
do, filho de Charley, alerta continuamente para Biff: “O professor vai
reprovar você em Matemática se não estudar”.
Na fase de ascensão histórica do capital, a Educação era garantia
de mobilidade social. Willy Loman, “alienado” da vida familiar e imer-
so em sonhos pequeno-burgueses, não se atentou para o desprezo que o
filho mais velho dava aos estudos universitários.
Ora, Willy é um homem que busca uma resposta. A incapacidade
de encontra-la é sintoma de sua despersonalização irremediável. Willy
diz sobre Ben: “Ele é o único homem que conheço que conhece as res-
postas.” E diz para Ben: “Espero você há muito tempo. Qual é a respos-
ta? Como conseguiu?”.
Mas o irmão Ben está sempre correndo. Não tem tempo para
conversar com Willy, talvez, do mesmo modo como Willy em toda sua
vida de trabalho estranhado, não teve tempo para conversar com espo-
sa, filhos e inclusive consigo mesmo. Ben diz continuamente: “Tenho
pouco tempo.” Talvez o irmão mais velho seja um espectro de si. Na
verdade, Willy é o homem do monólogo. Está imerso num particularis-
mo estranhado. O drama da “Morte de um caixeiro-viajante” é também
um drama da incomunicabilidade (um dos atributos da condição de
proletariedade).

169
Trabalho e Cinema • Volume 3

O irmão mais velho, Benjamin Loman, é o homem de sucesso no


imaginário de Willy. Ele apresenta Ben para os filhos: “Rapazes! Ouçam
isso! Seu tio Ben, um grande homem!”. Ora, Ben é o espelho que reflete os
anseios pequeno-burgueses de Willy. É aquilo que ele queria ser e não foi.
Ben diz: “Eu entrei na selva aos 17 anos e sai aos 21. Estava rico!”.
Mas o sucesso de Ben não é o sucesso do homem carreirista do
trabalho heteronomo do salariato capitalista, mas sim do homem des-
bravador, audaz e empreendedor, com autonomia laboral e dono de seu
próprio negócio nas fronteiras de expansão civilizatória. Um homem de
sorte – Ben ia encontrar o pai no Alasca e em vez disso, chegou na Áfri-
ca (“Eu era ruim em geografia”), onde descobriu Minas de Diamantes.
O Alasca é a terra da promissão. Ben diz: “Preciso avaliar algumas ter-
ras no Alasca. Se tivesse ido ao Alasca tudo seria diferente.” Ou ainda:
“Há muitas chances no Alasca. Devia estar lá.”
É por meio do “espectro” de seu irmão mais velho que conhe-
cemos as origens de Willy Loman – seus anseios, desejos e sonhos de
vida pessoal que, com o tempo, se frustraram e se perderam no tempo.
Por isso, nesse momento de sua vida, quando a natureza do trabalho
estranhado e o estranhamento de sua vida íntima se explicitam, ele se
perde de si e dos outros.
Willy pede ao irmão Ben que fale para seu filhos, do pai, um ho-
mem empreendedor, artesão desbravador de novas oportunidades de ne-
gócios, “patrão de si mesmo”, que utilizava os filhos para vender as flautas
que fabricava. Diz Willy: “Fale do pai! Eles [Biff e Happy] precisam saber
de onde vieram. Só lembro dele com barba grande. Eu estava com a mãe
perto da fogueira, ouvindo música. ” O irmão Ben diz: “Era flauta. Ele
tocava flauta.” E prossegue: “O pai era um homem extraordinário. Saímos
de Boston. Ele colocou a familia na carroça. Ele atravessou o país: Ohio,
Michigan, Illinois. Todos os estados do Oeste. Nas cidades, vendíamos as
flautas que ele fabricava. Era um inventor. Com um aparelho fazia mais
flautas numa semana do que alguém numa vida.” E Willy exclama: “É
como eu os crio: ‘durões, populares, versáteis’”.
Encontramos na reminiscência do passado familiar de Willy Lo-
man, os valores de autonomia laboral que cultivava e a partir dos quais,

170
O mundo do trabalho através do cinema

educara os filhos. Certa vez, dialogando com o irmão Happy, Biff disse
que eles não foram educados para ganhar dinheiro. Ora, a socialização
que Willy Loman deu aos filhos – uma socialização pequeno-burguesa
de cariz tradicional - era uma socialização inadequada à ordem compe-
titiva emergente nos Estados Unidos da América do pós-guerra.
Ao confrontar-se com a ordem capitalista urbano-industrial do
trabalho assalariado heterônomo, Biff e Happy “surtavam”, cada um a
seu modo, tendo dificuldades de adaptação à sociabilidade moderna.
Submerso em “espectros” do passado, estranhando o insucesso (e deriva
existencial) do filho Biff e desprezando as artimanhas boêmias – mera
“sublimação às avessas” – do filho Happy, o estranhamento de Willy Lo-
man estende-se à prole familiar.
Num certo momento, Willy disse, espelhando-se no irmão
Ben:’”É como eu os crio: durões, populares e versateis.” Na verdade, tais
atributos morais na ordem competitiva que emergia com o capitalismo
urbano-industrial adquiriam outros significados, tendo em vista que a
dureza, popularidade e versatilidade do homem moderno dizia respeito
a ordem do trabalho heterônomo, onde ser duro poderia significar saber
cumprir ordens e ter disciplina meramente protocolar; e ser popular
significava fingir e ser farsante; ou ainda, ser versátil implicava em ser
adaptável às multitarefas estranhadas.
O tio Ben dá uma lição a Biff, após derruba-lo num golpe de mão:
“Nunca brigue com um estranho. Jamais saíra da selva assim”. Em sua
ingenuidade visceral, Willy Loman não conseguira ensinar aos filhos
– principalmente a Biff – as artimanhas da selva (inclusive a selva do
mercado), onde a cautela e a desconfiança é um traço indispensável
para a sobrevivência pessoal. De certo modo, a falsidade das pessoas na
ordem competitiva burguesa é um traço de caráter adequado à selva
de mercado.
O velho caixeiro-viajante possuía uma frustração íntima – não
ter ido, tal como o irmão Ben, para a selva da África, desbravar novas
terras e conquistar espaços abertos. Pelo contrário, escolhera trabalhar
em vendas como empregado subalterno. Disse Willy: “Ben, estamos
no Brooklin, mas também caçamos. Temos cobras, coelhos; por isso

171
Trabalho e Cinema • Volume 3

vim para cá. Biff derruba qualquer árvore.” Imaginando-se em “espaços


abertos”, Willy delirava e incentivava o filho mais velho a pegar areia e
madeira da construção do prédio vizinho – materiais de construção
que valiam muito dinheiro - como se a circunvizinhança fosse campo
aberto a ser desbravado como “terra de ninguém”.
Na verdade, Biff crescera com disposição íntima em furtar. Talvez
seja manifestação de sentimento inconsciente de expropriação contra
a ordem da propriedade privada, ordem competitiva que constrange
espaços abertos para o desenvolvimento humano-generico. Linda, in-
quieta com as atitudes do filho Biff, dizia: “Não deixe Biff roubar mais”.
Mas Willie tem uma profunda despercepção do real – diz: “As cadeias
estão cheias de destemidos” e observa que Biff, um garoto vigoroso, não
roubou nada: “Não há nada errado”.
Enfim, Willy Loman é um homem fora do tempo histórico da nova
ordem burguesa que emerge com o capitalismo monopolista. Essa nova
ordem capitalista não exige homens destemidos, mas meramente ho-
mens venais, adaptáveis – muitas vezes, com um toque de esperteza
– às disposições burocráticas da ordem burguesa.
No decorrer do filme, verificamos que Willy Loman vive o drama
da crise profissional e dos impasses na socialização dos filhos – tal-
vez ele se pergunte: o que aconteceu?. A grande depressão afetou seus
negócios de vendas. Charley, seu vizinho diz: “Meu homem da Nova
Inglaterra deu-se mal. Não viu nada por lá.” Willy diz que não e que sua
viagem foi apenas para contatos importantes. Mas admite depois: “Os
negócios vão mal. É terrível”
A crise de negócios expeliu suas angústias com a escolha profis-
sional – trabalhar em vendas. Mas, ao mesmo tempo, Wily é um homem
preocupado com a socialização dos filhos, Como educá-los? É ao teu ir-
mão Ben que procura. Disse: “Você é o que preciso. O pai partiu quando
eu era pequeno. Nunca falei com ele. Ainda me sinto inseguro.”.
Talvez esta seja a raiz da insegurança existencial de Willie, inse-
gurança íntima que se transmite para a educação dos filhos. Diz: “As
vezes acho que não os ensino direito. Como devo ensiná-los?”. Para ele,
o irmão mais velho, Ben, é o modelo de vida. E Ben sempre diz: “Eu

172
O mundo do trabalho através do cinema

entrei na sela aos 17 anos. Sai aos 21. E estava rico”. Willy exclama: “É o
espírito que quero neles. Entrar na selva. Eu estava certo.”
O filme “Morte de um caixeiro-viajante” trata da crise estrutural
do homem proletário de “classe média”: Willy Loman . É um complexo
de crises objetivas e subjetivas, interconectadas entre si - crises íntimas
da individualidade pessoal de classe, crise dos negócios, crise profissio-
nal, crise existencial e crise de socialização da prole.
No ser de Willy Loman, há uma profunda insegurança existencial
que lhe afeta a auto-estima pessoal (diz ele: “O pai partiu quando eu era
pequeno”). Esse o traço de singularidade do homem singular Willy Lo-
man. Há forças pessoais inconscientes que obstaculizam seu desenvol-
vimento humano-pessoal, afetando sua percepção do real. Na verdade,
como homem proletário em processo de desefetivação humano-gené-
rica perdeu o sentido de realidade. Ele ensina aos filhos um modelo de
vida que não é adequado ao capitalismo moderno. Por exemplo, o es-
pirito do irmão mais velho, Ben, homem desbravador, não se coaduna
com o mundo das grandes empresas, onde a subalternidade de caráter
é o traço pessoal mais adequado.
Na medida em que se aprofunda a angústia existencial de Willy
em virtude da sua deriva profissional, o caixeiro-viajante se interro-
ga cada vez mais, como o irmão mais velho Ben conseguiu o sucesso:
“Como conseguiu? Qual a resposta? Preciso falar com você.” Mas, como
observamos acima, de forma recorrente, Ben nunca tem tempo para fa-
lar com Willy: “Não tenho tempo” ou ainda “Não tenho muito tempo”.
Talvez seja expressão da insegurança primordial de Willie, um
homem cujo pai o abandonara quando pequeno. Ao ser demitido por
Howard, Willy chega a sua situação-limite: “Nada dá certo. Não sei o
que fazer.” Wi;;ly Loman é um homem desencontrado com os Outros e
consigo mesmo.
No decorrer da tragédia pessoal, Willy Loman é empurrado cada
vez mais para fantasias interiores: do sonho pequeno-burguês tradicio-
nal, insustentável nas condições históricas do capitalismo da grande
empresa (que exige outro tipo de espirito pequeno-burguês - o espirito
do homem pequeno-burguês de espaços fechados de carreira, que cul-

173
Trabalho e Cinema • Volume 3

tiva sua falsidade . executando tarefas medíocres) para a fantasia do


empreendedor de caráter, que desbrava novas terras distantes, como
o Alasca. Diz o irmão Ben: “Tem um novo continente à vista. Deixe a
cidade. Só há conversa e processos judiciais aqui. Você pode obter uma
fortuna lá.” E diz ainda: “Há um continente a seus pés. Pode sair rico.”.
Na verdade, o irmão Ben representa para Willy a fuga do real. É a
plena manifestação espectral de sua desefetivação humano-genérica,
sintoma íntimo de sua deriva profissional e deriva pessoal. A crise exis-
tencial é a matriz da crise estrutural de Willy Loman.
Ao mesmo tempo, é por meio das fantasias interiores com o irmão
Ben, que constatamos, na vida familiar de Willie Loman, a socialização
inadequada dos filhos Biff e Happy. Willy cultivou nos filhos valores
pequeno-burgueses defasados. Na medida em que Willy fracassou no
sonho profissional – ele sempre almejou intimamente ser como o ir-
mão Ben – o caixeiro-viajante tendeu a projetar seus ideais pessoais
anacrônicos nos filhos Biff e Happy (principalmente Biff, o filho mais
velho, que seria o que o pai não foi – ora, é importante ressaltar que Biff
não é Willy Loman.).
Bernard, filho de Charlie, é um homem de sucesso – ele se tornou
tudo o que Biff não conseguira ser. Ao encontra-lo no escritório do pai,
Willy interroga Bernard: “Qual o segredo? Por que você? Por que ele [
Biff] nunca conseguiu?”
Esta claro que Willy Loman é um homem que se interroga, bus-
cando uma explicação para o segredo do sucesso do irmão Ben e de
Bernard e as causas do fracasso do filho Biff (é interessante que Willy
Loman jamais se interroga porque ele – o caixeiro-viajante - fracas-
sou).
Diz Willy para Bernard: “Voce era amigo dele. Tem algo que não
entendo. A vida dele acabou após aquele jogo.” Primeiro, Bernard iden-
tifica a causa do fracasso de Biff na educação – “Ele nunca estudou para
nada”. Mas, existe uma incognita contingente que intriga Bernard : por
que Biff não foi fazer a prova de recuperação? Biff foi a Boston comu-
nicar ao pai a reprovação. Mas quando voltou de Boston, era um outro
homem. Diz Bernard: “Ele foi reprovado e apagou como se um martelo

174
O mundo do trabalho através do cinema

o atingisse.” E fez a pergunta: “Por que ele se entregou? Era estranho sa-
ber que ele tinha desistido da vida. O que aconteceu em Boston?”. Willy
exclama: “Quer me culpar? Se ele fracassa, a culpa é minha?”.
Ora, o fracasso de Biff é constituido por um complexo de causa-
lidades necessárias e causalidad contingentes que constituem sua sin-
gularidade pessoal e que determinam sua individualidade pessoal de
classe:
Primeiro, Biff nunca se dedicara aos estudos. Bernard, ao contrário,
investira em seu “capital humano”, ascendendo, deste modo, na vida pro-
fissional. É o homem de sucesso no mundo capitalista em ascensão.
Mas, existe uma causalidade contingente, vinculada à singularidade
pessoal de Biff – por que ele desistiu de lutar pela vida? Enfim, como ele
respondeu àquela situação contingente da vida pessoal.
O evento contingente crucial foi o que aconteceu em Boston,
quando Biff encontra o pai com a suposta amante e discute com ele.
Chama o pai de mentiroso e farsante. Naquele momento, desmancha-
se a imagem do pai que ele cultivava: o pai que lhe ensina o que um
homem deve ser. Naquele momento, Biff, em sua iterioridade, “mata” o
Pai, autoridade moral suprema da ordem familiar. Em seu íntimo, Biff
fica indignado por Willy dar “as meias da mamãe” à amante. Este fato
singular detonou o complexo de obstruções intimas que conduziria Biff
à estagnação em sua vida profissional nos próximos quinze anos.
O trabalho de caixeiro-viajante é um trabalho solitário. De cidade
em cidade, em quartos de hotéis vazios, sem ninguém para conversar.
Willy diz para a amante: “Sinto-me tão só”. Além disso, a singularidade
do caixeiro-viajante Willy Loman, homem inseguro, é marcada por uma
angústia primordial – o pai partiu quando ele era pequeno e nunca
falou com ele. Portanto, em sua origem primordial, é um homem onto-
logicamente solitário cujo egoísmo decorre da necessidade intima de se
auto-preservar diante do abandono primordial.
Eis o elemento da singularidade pessoal de Willy Loman que
obstaculiza – ao lado do trabalho estranhado e dos valores-fetiches da
ordem pequeno-burguesa que cultiva, o desenvolvimento de sua per-
sonalidade humana. Ao tornar-se caixeiro-viajante, o trabalho intrin-

175
Trabalho e Cinema • Volume 3

secamente solitário contribuiria sobremaneira para sua deriva pessoal.


Portanto, não é apenas a dimensão do trabalho estranhado (a solidão
do trabalho) que explica a deriva pessoal de Willy, mas há também ele-
mentos singulares vinculados a sua origem enquanto individualidade
pessoal (o trabalho da solidão).
Willy Loman está – mais uma vez – intrigado: não entende como
Bernard se tornou um homem de sucesso sem que o pai – o amigo
Charlie - nunca lhe dissesse o que fazer ou se interessasse demasiada-
mente por ele. Charlie diz: “Minha salvação é que nunca me interessei
por algo.” Apesar da orientação constante sobre como deve ser um ho-
mem de sucesso e do interesse candente por Biff, Willy não conseguira
evitar o fracasso do filho.
De fato, as interrogações de Willy Loman decorrem da sua imer-
são num complexo de relações fetichizadas – ou intransparentes - con-
sigo mesmo e com os outros. Enfim, o caixeiro-viajante vive na névoa
existencial. Vive constantemente se interrogando imerso em seu par-
ticularismo pessoal. Como temos salientado, o drama “Morte de um
caixeiro-viajante” é quase um monólogo de Willy Loman. Não conhece
a si mesmo na medida em que não conhece o mundo social em que
vive. É um homem alienado de si e dos outros.
Willy pede mais uma vez dinheiro emprestado a Charlie para pa-
gar o seguro de vida. Charlie pergunta o que está acontecendo. Diz: “Eu
lhe ofereci um emprego”. Mas Willy assevera: “Tenho um emprego”. E
Charlie retruca: “Sem salário.” E afirma: “Que tipo de emprego é esse
que não paga?”.
Na medida em que Willy não consegue vender nada, ele perde
as comissões. O emprego de caixeiro-viajante vincula a remuneração
à venda dos produtos. Willy velho e cansado com a idade, quando de-
veria ter maior conforto pessoal, tem, ao contrário, seu rendimento sa-
larial decrescido. Vive pedindo empréstimos ao amigo Charlie. Eis um
dos elementos decisivos de sua deriva profissional.
O diálogo entre Charlie e Willy é deveras interessante. Mais uma
vez, Willy explicita sua candente ingenuidade pessoal. Não conhece o
mundo em que vive – o mundo do capital como dinheiro, onde o que

176
O mundo do trabalho através do cinema

conta é o valor de troca e não o valor de uso. A lógica dominante do


valor de troca possui profunda implicação nas atitudes estruturantes
da sociabilidade burguesa. Willy lamenta que tenha sido demitido
por alguém cujo nome foi atribuído por ele”: “Dei seu nome. Dei-lhe
o nome de Howard.” Charlie retruca: ”Quando perceberá que isso não
significa nada? Você deu-lhe o nome de Howard, mas não pode vender
isso. A única coisa que tem valor nesse mundo é o que pode vender.
Você é um vendedor e não sabe disso.” Willy diz: “Sempre tentei pen-
sar de outra maneira. Sempre pensei que se um homem causasse boa
impressão, fosse popular…”. Charlie, atento à lógica do dinheiro como
capital que organiza a vida moderna diz: “Por que todos devem amá-
lo? Quem gostava de J.P. Morgan?. Ele impressionava? Na sauna parecia
um açougueiro. Mas com seus bolsos, era popular. ” Enfim, o que conta
é o dinheiro e não atitudes morais.
Após receber o dinheiro para pagar o seguro de vida, Willy obser-
va, antes de sair: “Engraçado, após todas as estradas e trens, e reuniões
e os anos, você acaba valendo mais morto que vivo.” Finalmente, Willy
conseguiu perceber um traço estrutural do mundo do capital. Entre-
tanto, esta é a conclusão de um homem que desistiu de lutar pela vida.
Willy se dirige a Howard para dizer que tomou a decisão de não
viajar mais. Está cansado e pretende ficar em Nova York. Lembra a Ho-
ward a promessa que ele - Howard - fizera no Natal de que arranjaria
alguma coisa para ele no escritório. Mas o diretor-chefe diz: “Não con-
segui pensar em nada para você”. E prossegue: “Mas você é caixeiro-
viajante. Trabalhamos na estrada. Temos poucas pessoas aqui”. Willy
insiste”: “Escute os filhos cresceram. Não preciso de muito. Se ganhar
US$ 65 poderei pagar as contas.” Aos poucos Willy vai baixando a pre-
tensão salarial com Howard, na medida em que verifica que o diretor-
chefe resiste em aceitar sua proposta – de US$ 65 passa para US$ 50 e
depois para US$ 40.
Utiliza vários argumentos com Howard. Primeiro, apela para ar-
gumentos sentimentais: “Eu estava aqui quando seu pai o levava nos
braços. Quando você nasceu, ele perguntou o que achava do nome Ho-
ward.”

177
Trabalho e Cinema • Volume 3

Depois, utiliza argumentos de autoridade que decorre da experi-


ência de trabalho. “Quando eu tinha 18, 19 anos, já estava ma estrada.”
E lamenta a dureza dos novos tempos da profissão de vendedor: “Ami-
zade e personalidade não contam.” Mas Howard está firme em seu pro-
pósito de não conceder a Willy um lugar no escritório central: “Assim
são as coisas”.
Finalmente, Willy utiliza o argumento final: a promessa do pai
de Howard: “Falo de seu pai! Foram feitas promessas aqui.” Mas no
mundo dos negócios do capital, não há espaços para sentimentos, ex-
periências do passado e promessas de ocasião
Logo que Willy chega no escritório central, Howard pergunta:
“Teve outra crise?”. O que demonstra que não foi a primeira vez que Willy
se dirigiu a Howard para tratar de problemas do trabalho. Na verdade, a
deriva profissional de Willy Loman se arrasta há anos. A situação-limite
chegou quando ele demasiadamente cansado, não consegue mais viajar e
explicita-se, ao mesmo tempo, a deriva pessoal com as reminiscências e
impasses familiares na relação pessoal com o filho Biff..
Foi na época do Natal que Howard disse que arranjaria algo para
Willy Loman no escritório central. Naquela época, ele já percebia que
não podia continuar mais viajando – o cansaço o atormentava depois
de quase 35 anos de trabalho como vendedor, viajando pelas estradas
do país. Entretanto, o período de Natal é ocasião para promessas piedo-
sas que reconfortam a consciência burguesa atormentada pela dureza
dos negócios o ano todo. É uma temporada de troca de presentes e ges-
tos alvissareiros de doces hipocrisias. O burguês Howard não poderia
deixar de prometer a Willy, na época do Natal, o que mais tarde não
poderia cumprir: “Não consegui pensar em nada para você”.
Willy pede um favor. Diz que nunca tinha feito isso. E lembra a
Howard que foi ele que lhe deu o nome de Howard. O diretor-chefe lhe
agradece, mas diz em seguida que não há lugar para ele ali. “Se tivesse,
eu o traria para cá, mas não tenho.” O apelo sentimental de Willy não
comoveu Howard que observa que isso é um negócio : “Todos precisam
de se virar”.

178
O mundo do trabalho através do cinema

Na verdade, Howard é um escravo do capital. Apenas cumpre o


que as imposições dos negócios o obrigam. Talvez não houvesse mes-
mo lugar para Willy no escritório. Para inclui-lo, talvez tivesse que se
submeter a gastos extras. No sistema da concorrência, não há lugar
para favor ou concessões pessoais. O capital pode não perdoar. Como
homem de negócio, Howard apenas nada pôde fazer. Diz ele: “Não pos-
so tirar sangue de pedra”
Willy tenta utilizar o argumento da experiencia do passado para
comover Howard. Conta sua pequena história de vida e história do tra-
balho, inclusive dizendo porque optou pela profissão de vendedor.
Diz ele: “Quando eu tinha 18, 19 anos já estava na estrada. Nes-
sa época eu queria ir para o Alasca. Acharam três veios num mês no
Alasca. Eu queria ir. Queria aventura. Meu pai morou no Alasca. Era
um aventureiro. Minha falimia é destemida. Pensei em ver meu irmão
e ficar no Norte. Estava quase decidido a ir, quando encontrei um ven-
dedor em Park House. Seu nome era Dave Singleman. Tinha 84 anos.
Já tinha vendido em 31 estados. Ele ia para sua sala, colocava o chinelo
verde. Telefonava para os compradores. Nunca saia da sala. Vendo isso,
percebi que vender era a maior carreira do mundo. O que poderia ser
melhor do que ir, aos 84 anos a 20 ou 30 cidades, pegar o fone e ser
lembrado e amado por tanta gente? Ele teve a morte de um caixeiro-
viajante. De chinelo verde, no trem Nova York-New Haven-Boston.
Centenas de vendedores e clientes foram ao funeral. O ambiente ficou
triste nos trens por três meses.”
Willy escolheu a profissão de vendedor – “vender era a maior car-
reira do mundo”- não apenas porque lhe dava uma margem de auto-
nomia laboral, mas porque que era uma profissão lhe prometia que ele
seria lembrado e amado por muita gente.
No mundo duro da civilização do capital, onde a concorrência,
indiferença, ambição e coragem eram os traços marcantes, a carreira
de vendedor parecia para ele, quando jovem, um lugar paradisíaco No
fundo, Willy não um homem destemido, como pai e irmão que enfren-
tavam a corrida do ouro no Alasca. Ele era um homem simples (em
inglês: singleman).

179
Trabalho e Cinema • Volume 3

Após contar a história de Dave Singleman, ele consegue fazer um


juízo lúcido dos tempos modernos, lamentando a dureza do mundo dos
negócios. Na verdade, trata-se de uma nova época do capitalismo mo-
derno – a época do capitalismo monopolista, onde a máquina-capital
impõe suas prerrogativas automáticas, abolindo os espaços de iniciativa
pessoal, onde alguns valores da ordem tradicional – como amizade e
camaradagem - permeavam as relações de trabalho e de negócios. Willy
diz: “Naquela época havia personalidade nisso. Havia respeito e camara-
dagem. Agora, não há piedade. Amizade e personalidade não contam.”
Enfim, o sistema do capital é o sistema da despersonalização. O
ordem competitiva de mercado impõe isso: despersonalização impos-
ta pelo “sujeito automático” do capital-dinheiro. Isto é, dinheiro que
se auto-valoriza. Despersonalização significa negar a personalidade, e
por conseguinte, amizade e respeito pessoal. Nega-se (e desefetiva-se)
a pessoa humana. Howard apenas diz: “Assim são as coisas” – as coisas
do mundo das coisas-fetiches
Willy apela para a memória do pai de Howard: “Quando Al Smith
foi indicado, seu pai, falo de seu pai, foram feitas promessas aqui!”. Mas
o capital renega a memória (e promessas) da tradição, afirmando tão-
somente o tempo presente e a lógica do capital-dinheiro.
Mais diante Willy observa: “Em 1928, eu tive um grande ano. Ga-
nhei US$ 170 por semana de comissão. Você jamais ganhou isso. Ga-
nhei US$ 170 por semana de comissão em 1928. Seu pai me disse. Ele
estava nessa mesa, pôs a mão no meu ombro.” (um detalhe: em 1928,
um ano antes do crack da Bolsa de Nova York, o capitalismo norte-
americana vivia uma exuberancia irracional).
Mas Howard sai da sala para atender alguém. Willy, delirando,
conversa com um espectro do tempo passado que ainda ocupa o mes-
mo espaço presente: “Frank, não se lembra do que me disse? Como pôs
a mão no meu ombro…” Inadvertidamente, ele liga o gravador automá-
tico de Howard. O delírio do tempo passado é “abolido” pelo aparato
tecnológico do tempo presente.
Willy não se conforma com a indiferença de Howard.: “Trabalho
há 35 anos e não consigo pagar o seguro. Não pode chupar a laranja e

180
O mundo do trabalho através do cinema

jogar o bagaço. Um homem não é uma fruta.” Na verdade, eis a essên-


cia do mundo do capital-dinheiro. Como disse Marx, sob o sistema do
capital, o homem não vale nada, sendo tão-somente uma mera carcaça
do tempo.
Ao ser despedido, Willy diz que precisa ganhar dinheiro. Mas
Howard, quase de modo cínico, observa: “E seus filhos? Por que não o
ajudam? Não seja orgulhoso. Diga a seus filhos que está cansado. Voce
tem filhos ótimos.” E Willy exclama: “Não posso depender dos filhos.
Não sou aleijado.”
Na verdade, Howard se utiliza de constrangimentos modernos
para excluir um homem da vida ativa; e apela – a título de compen-
sação – para “recursos previdenciários” da ordem tradicional. Sem di-
nheiro – Willy sequer teria uma poupança ou previdência social – seria
obrigado a depender da generosidade dos filhos. Willy se sente um ho-
mem aleijado, absolutamente dependente daqueles que pós no mundo
– enfim, um homem fracassado à enésima potência.
Um detalhe curioso: logo ao chegar na sala de Howard, Willy o
encontra fascinado com um gravador automático. Diz ele: “É a máqui-
na mais incrível que vi na vida.” E observa: “Comprei para ditados, mas
ele tem muitos usos.” (no filme “Tempos Modernos”, Charlie Chaplin,
numa cena de verdadeira ficção-cientifica, nos apresenta um vendedor
automático que emite mensagens gravadas de propaganda da nova má-
quina de alimentação oferecida para o capitalista, que pretende reduzir,
com ela, o tempo - e custos - de trabalho. Talvez Howard não imaginas-
se que, um dia, as máquinas automáticas de propaganda e merchandi-
sing – como a TV - iriam tomar o lugar do velho caixeiro-viajante).
Ora, Willy Loman é um homem solitário. Diz: “Não tenho com
quem falar”; inseguro de si – ao contrário do irmão Ben que desbravou
novas terras, ele contentou-se em morar no Brooklin achando que lá
era sua “Terra de Ninguém”, próxima da vida selvagem, educando os
filhos para outro mundo. Willy Loman é um homem inválido – ao ser
demitido por Howard, teve invalidado toda uma trajetória profissional
como vendedor, onde cultivara seu pequeno sonho de sucesso. A de-
missão o invalidara. Foi mais um golpe em sua personalidade à deriva.

181
Trabalho e Cinema • Volume 3

O que se coloca, numa das cenas finais do filme, é a idéia de sui-


cídio de Willy – ele cometeria suicídio, forjando uma morte acidental
para que a mulher e filhos possam ficam com US$ 20 mil dólares da
apólice de seguros. Mas o espectro do irmão Ben, que dialoga consigo,
diz que ele é covarde. Falta-lhe coragem. Willy diz: “É preciso mais co-
ragem para ficar aqui como inválido?”. O irmão Ben diz que o filho o
chamará de covarde, de grande idiota e que o odiará. Wily fica inquieto,
mas não desiste da idéia da solução final.
Willy é um homem proletário que perdeu a percepção de sentido de
realidade. Imagina que seu funeral será concorrido e que velhos amigos
acorrerão ao cemitério com placas estranhas. Lembremos que ele esco-
lhera a carreira de caixeiro-viajante imaginado que através dela poderia
granjear amizade e reconhecimento – enfim ser lembrado e amado por
muita gente. Vã ilusão! Imaginava que o funeral seria o ocasião para o
filho Biff – a quem sempre procurou impressionar – ver que ele era um
homem conhecido. “Ele verá com os próprios olhos, de uma vez por to-
das. Ele verá o que sou. Ele terá um choque”. Pura fantasia! No enterro de
Willy só apareceram mulher, filhos, o amigo Charlie e o filho Bernard.
“Onde estão os amigos?”. Perdido na vida, perdido na morte.
Talvez Willy Loman imaginasse que seu funeral fosse como o de
Dave Singleman, o velho vendedor que lhe inspirou a seguir a carrei-
ra de caixeiro-viajante há muito tempo. Dave Singleman teve a morte
de um caixeiro-viajante. O fracasso de Willie Loman foi irremediavel-
mente completo – não teve sequer o funeral de um caixeiro-viajante.
Willy Loman não apenas não sabia quem era, mas também des-
conhecia em que mundo social vivia. No mundo do capital não havia
lugar para personalidade, amizade e camaradagem e, muito menos,
para piedade . No mundo dos negócios – a selva do mercado e da cor-
rida do ouro - o que valia eram os registros do Poder e do Dinheiro. Na
verdade, algo obnubilava em Willy, a percepção de si e dos outros. A
adoção de valores pequeno-burgueses anacrônicos era sintoma de uma
inadequação pessoal.
Willy Loman, homem solitário e sozinho no mundo, carente de
atenção e amizade, fizera escolhas na vida baseado em sua personalida-

182
O mundo do trabalho através do cinema

de singular. Desistiu de seguir o pai e o irmão mais velho em suas aven-


turas destemidas no Alasca em busca do ouro. Encontrara na carreira
de vendedor um espaço para a amizade e o reconhecimento pessoal,
além da possibilidade de autonomia laboral.
Entretanto, os tempos mudaram – as qualidades humanas que
sonhara para si e para seus filhos, não serviam no mundo administra-
do dos grandes negócios Disse Linda: “Um vendedor precisa sonhar.
É inerente à profissão”. Mas o sonho de Willy era inadequado à ordem
competitiva do capital monopolista. Na verdade, seu sonho era uma
auto-ilusão. Os registros de seus “sonhos” do que era ser um homem
de sucesso não eram validados pela nova ordem burguesa do trabalho
mecanizado e das personas medíocres e venais do capital.

183
O mundo do trabalho através do cinema

Capítulo 4

“O Que Você Faria?”

Marcelo Piñeyro
(2005)

C inco homens e duas mulheres disputam uma vaga para um alto


cargo executivo de uma grande empresa em Madri (Espanha). Os
candidatos participam da última etapa da seleção, do qual apenas um
restará. Fechados numa sala, as provas são elaboradas baseadas num
chamado “Método Grönholm”, que basicamente incitará os piores ins-
tintos de cada candidato na tentativa de eliminar os concorrentes. Esta
é a trama narrativa do filme “O Que Você Faria?” (El método), de Mar-
celo Piñeyro, produzido em 2005, que baseia-se na peça de teatro “El
método” (de 2003), escrita pelo autor catalão Jordi Galcerán (na peça
eram quatro os candidatos a executivo de uma multinacional – e não
sete, como no filme).
O chamado “método Grönholm” é um método de contratação de
pessoal onde o avaliador faz jogos psicológicos entre os participantes e
joga uns contra os outros. É composto por testes psicológicos e práti-
cas que induzem ao comportamento nervoso e transparente, uma vez
que os candidatos são submetidos a situações extremas que os jogam
um contra o outro. Nesse contexto, conflitos e discussões abrem espaço
para a insegurança, de forma que o candidato lute com todas as forças
para sair ileso desse processo, tanto física como emocionalmente, e de
preferência, com o emprego conquistado. O processo de seleção envol-
veu algumas fases, que foram desde a descoberta de um integrante da
organização, disfarçado entre eles de candidato, até a escolha de um
líder no grupo, sendo que em todas as fases, a própria equipe age como
uma espécie de juiz, com poder de contratação e de eliminação. Ao fi-

185
Trabalho e Cinema • Volume 3

nal, o vencedor será aquele que resistir a todas as pressões e ao estresse,


e demonstrar alto grau de equilíbrio psicológico e emocional.
Num primeiro momento, a abertura do filme nos mostra frag-
mentos compostos do despertar cotidiano dos candidatos ao posto de
alto executivo da empresa Dekia, numa Madri sitiada pelos manifes-
tantes anti-globalização que protestam contra o encontro de cúpula
FMI-Banco Mundial. Com certeza, este é um dia especial para todos
eles – e para o centro de Madri, tomado pela agitação popular. Assim,
um dos candidatos, Julio, acorda às 7 horas. Ana dá café da manhã
ao filho e observa na TV as notícias da manifestação popular. Diz:
“Parece que vai ter confusão”. O filho parece querer aproveitar a con-
fusão para faltar à escola. Ricardo, outro candidado, lê os jornais na
mesa do café da manhã ao lado da família Nieves se prepara para a
seleção, maquiando-se. Fernando toma o café da manhã na rua, lendo
manchetes do jornal. Enrique escreve em seu palm, sentado no banco
traseiro de uma van. Carlos chega de moto à torre da Dekia. Panfletos
de manifestantes dizem: “Outro mundo es posible”. Carlos – o último a
chegar - se dirige ao Departamento de Pessoal da grande empresa.
A abertura do filme, através da composição (e recomposição) de
imagens em movimento, nos coloca diante da dialética candente en-
tre cotidiano e história. Assim, ao lado de cenas do despertar cotidiano
de alguns trabalhadores candidatos de alta qualificação, que naquele
dia especial participarão dos testes de seleção para contratação do alto
executivo da grande empresa, observamos, lado a lado, fragmentos de
cenas de manifestações populares anti-globalização durante o encon-
tro de cúpula FMI-Banco Mundial em Madri. Ora, o movimento da
história, totalidade concreta em movimento contraditório, história da
luta de classes, é constituída, em si, pela vida cotidiana de homens e
mulheres que vivem do trabalho.
Mas, além da dialética candente entre cotidiano e história, o
movimento intrincado de cenas da abertura do filme sugere outra
importante “disjunção”: por um lado, a massa de manifestantes anti-
globalização – massa-multidão que se faz classe social em si através do
confronto com o poder constituído do capital; por outro lado, o con-

186
O mundo do trabalho através do cinema

junto dos candidatos (Julio, Ana, Nieves, Fernando, Ricardo e Enrique),


individualidades pessoais de classe – “proletários de classe média” - em
busca de seus interesses egoísticos (todos eles querem como teleologia
egoístico-singular, um emprego como executivo da Dekia). Portanto,
temos, de um lado, a representação imagética do interesse coletivo em
movimento, constituído por uma multidão de homens e mulheres, in-
dividualidades pessoais de classe movidos (e unidos) pelo ideal anti-
globalização; e, por outro lado, imagens em representação de interesses
particularistas de homens e mulheres que visam se inserir no mercado
de trabalho. De um lado, a multidão-massa que abole – por alguns mo-
mentos - a concorrência ao se unir no movimento por um “outro mun-
do possível”; de outro lado, um pequeno conjunto de individualidades
pessoais de classe que afirmam a concorrência em sua luta pela existên-
cia alienada no mercado de trabalho. Ora, é esta suposta “disjunção”
que caracteriza a “sociedade civil” burguesa.

História

Interesses
Interesses coletivos
particularistas

Vida Cotidiana

Fechados numa sala do Departamento de Pessoal da grande em-


presa, os candidatos à executivo da Dekia, por um instante, têm sua
atenção capturada pela palavra de ordem das multidão-massa que cla-
ma: “O povo unido jamais será vencido”. Na verdade, este é o único
momento do filme em que a História como movimento do interesse
coletivo, “invade” a sala onde estão os candidatos, um verdadeiro mi-
crocosmo de manipulações incitadas pelos “método Grönholm”. É En-

187
Trabalho e Cinema • Volume 3

rique que se interroga: “O que estará acontecendo lá embaixo?”. Todos


se levantam – com exceção de Carlos e Ana – e se dirigem à janela de
vidro (um detalhe: Ana – que com seu voto tinha, anteriormente, eli-
minado Júlio, tinha acabado de ser eliminada do jogo). Diante da janela
de vidro, é Ricardo, ao lado de Fernando e Enrique, que observa: “Não
se vê nada daqui”. Ora, esta observação de Ricardo é bastante signifi-
cativa: os “proletários de classe média” tendem a estar imersos numa
névoa ideológica que encobre a percepção do verdadeiro movimento
da história, que é a história da luta de classes. A partir do pequeno
mundo da pseudo-concreticidade cotidiana, eles nada vêem – a não
seus interesses particularistas. Enquanto individualidades pessoais de
classe imersos na existência alienada que apenas reitera sua condição
de proletariedade subsumida ao acaso e contingência, eles não vêem
nada (talvez não vêem sequer sombras, como os homens e mulheres
no mito da Caverna, de Platão). Eles apenas ouvem sons ecoando à
distância, sons das palavras-de-ordem inscritas na dialética das massas
em movimento - massas-que-se-fazem-classes-sociais.
De onde provém a “cegueira branca” que oculta (ou obstaculiza) a
percepção pelas individualidades pessoais de classe, dos interesses coleti-
vos que constituem a dimensão da “classe social” como sujeito histórico
capaz de promover a “negação da negação”?
Sob o “capitalismo manipulatório”, expressão utilizada por Georg
Lukács para caracterizar o capitalismo tardio (o capitalismo que emer-
ge após a II Guerra Mundial), a vida cotidiana e a reprodução social,
tanto quanto o trabalho e a produção social, são marcadas pela intensi-
ficação da manipulação sistêmica. O avanço do mundo das mercadorias
na modernidade do capital significa que a sociedade industrial tende a
torna-se, cada vez mais, uma sociedade administrada pelas coisas.
O predomínio da forma-mercadoria na vida social, com a conso-
lidação da sociedade de consumo de mercadorias, faz com que os dispo-
sitivos sócio-reprodutivos estejam à merce da lógica mercantil, carac-
terizada pela ânsia da vendadabilidade universal e pelo fetichismo da
mercadoria que promove a ocultação da essência das coisas – no caso,

188
O mundo do trabalho através do cinema

oculta o trabalho social como sendo a origem dos produtos-mercadoria


e oculta a contradição estrutural antagônica entre capital e trabalho.
Existe, deste modo, uma derivação histórico-estrutural entre
predominio da forma-mercadoria, que se impulsiona sob as condições
históricas do capitalismo do pós-guerra, com a expansão (e hegemo-
nia) do american way of life, e predomínio da manipulação sistêmica
nas várias instâncias da vida social.
Nesse caso, a sociedade do capital sob o capitalismo manipulató-
rio aparece como a sociedade do trabalho ideológico que visa à “captura”
da subjetividade do homem que trabalha. Põem-se com vigor inaudito,
o poder da ideologia. O processo de manipulação como posição teleoló-
gica secundária socialmente condicionada pelos interesses da reprodu-
ção social do sistema do capital – seja no consumo, lazer, e inclusive na
política e nas relações sociais em geral – torna-se um traço essencial do
metabolismo social da modernidade burguesa.
Em sua “Ontologia do ser social”, o velho Lukács distingue a po-
sição teleológica primária da posição teleológica secundária. A primei-
ra – a posição teleológica primária, que caracteriza o ato do trabalho,
diz respeito a ação do homem sobre a Natureza; a segunda - a posição
teleológica secundária, traço distintivo da esfera da ideologia, diz res-
peito a ação do homem sobre outro homem (ou ação do homem sobre
si mesmo). Na medida em que se desenvolve o complexo do trabalho,
amplia-se o campo das posições teleológicas secundárias, caracteriza-
das pelos atos de preparatórios do trabalho social.

Trabalho e Ideologia
(segundo Lukács)

Trabalho
 Posição teleológica primária
Homem – Natureza


Posição teleológica secundária
Ideologia
Homem - Homem

189
Trabalho e Cinema • Volume 3

O “trabalho ideológico” tende a ocupar uma função crucial no


desenvolvimento da esfera do trabalho. É o que podemos considerar
como sendo a ideologia como exigência sócio-ontológica da produ-
ção/reprodução social (é o sentido ontológico de ideologia dado, por
exemplo, por Antonio Gramsci). Além disso, o “trabalho ideológico”
constitui não apenas a esfera do trabalho, mas também a esfera da re-
produção social e vida cotidiana, sendo ele próprio, em si e para si, o
terreno do imaginário social.
Ora, toda sociedade humana precisa de ideologia. A distinção
trabalho/ideologia é meramente heurística, tendo em vista que todo
trabalho pressupõe – como dimensão intrínseca a si – uma ideologia.
Isto é, implica não apenas a ação do homem sobre a Natureza, mas a
ação do homem sobre outros homens e ação do homem sobre si mes-
mo (mediada, nesse caso, pelas relações sociais de produção, que no
caso da sociedade do capital, está lastreada na propriedade privada/
divisão hierárquica do trabalho).
Assim, sob a relação-capital, o “trabalho ideológico” assume, cada
vez mais, um caráter manipulatório – no sentido negativo. É o que po-
demos considerar como sendo a ideologia como recurso sistêmico de
controle/manipulação social. (é o sentido negativo de ideologia como
falsa consciência). Portanto, o “trabalho ideológico” tende a reforçar,
intensificar e ampliar, o sentido do trabalho capitalista como trabalho
estranhado.
A ideologia sob a sociedade de classes – e a sociedade burguesa é a
forma histórica mais desenvolvida de sociedade de classe – tende a as-
sumir, cada vez mais, um caráter manipulatório. A forma-mercadoria
e seu fetichismo, que se dissemina sob a sociedade capitalista, a mais
desenvolvida sociedade mercantil da história humana, tende, por sua
vez, a ocultar a natureza da manipulação sistêmica. Aliás, o fetichismo
é o modo de operar da ideologia sob uma sociedade produtora de mer-
cadorias. Na medida em que oculta/inverte/perverte o sentido real (ou
essência) das objetivações sociais (produto-mercadorias, instituições e
valores morais que aparecem como coisas), a operação de fetichização
é, em si e para si, um “trabalho ideológico”, que constitui significantes

190
O mundo do trabalho através do cinema

a partir de significados estranhados (posições teleológicas secundárias


que reiteram a relação-capital).
Sob o capitalismo global ou capitalismo manipulatório, a ideolo-
gia como manipulação sistêmica que é a ideologia propriamente dita,
em seu sentido de negatividade, tende a assumir uma nova textura
interna decorrente das próprias exigências do processo de produção/
reprodução social do capitalismo complexo.

Formas de ser da Ideologia

Ideologia como exigência sócio-ontológica da


produção/reprodução social

Ideologia como recurso sistêmico de


controle/manipulação social

A crise estrutural do capital que emerge em meados da década


de 1970, abre um período histórico de reestruturação capitalista nas
várias instâncias da vida social. No centro do complexo reestruturati-
vo do capital coloca-se a reestruturação produtiva que impulsiona um
complexo de inovações tecnológico-organizacionais e inovações sócio-
metabólicas do mais amplo espectro social. Na verdade, a crise estru-
tural coloca a necessidade sistêmica da reestruturação da produção do
capital como produção de sobretrabalho alienado. A produção do ca-
pital se coloca como totalidade social cujo traço essencial é a “captura”
da subjetividade do homem que trabalha.
Na reestruturação produtiva do capitalismo manipulatorio , o “tra-
balho ideológico” organiza a construção de consentimentos espúrios à
dinâmica da exploração capitalista. É a busca por uma nova hegemonia
do capital na produção e reprodução social, implicando a vida cotidiana
das individualidades pessoais de classe. No plano da produção de valor,
instauram-se novos métodos de organização corporativa plasmados pelo

191
Trabalho e Cinema • Volume 3

espírito do toyotismo cujo nexo essencial é a “captura” da subjetividade do


homem que trabalha.
O toyotismo é a ideologia orgânica da produção do capital nas
condições históricas do capitalismo manipulatário. Enquanto modo de
subjetivação social – e não apenas modelo de produção e gestão empre-
sarial - o toyotismo, organiza, inclusive no plano da reprodução social e
vida cotidiana, uma série de valores-fetiches que visam construir, atra-
vés de escolhas pessoais das individualidades de classe, consentimen-
tos indispensáveis para o funcionamento de dispositivos organizacio-
nais do sistema do capital.
Deste modo, busca-se constituir na produção (e reprodução so-
cial) – isto é – no âmbito da totalidade social, novas disposições psico-
físicas necessárias para o envolvimento do homem que trabalha com o
sistema-mundo do capital. O que se põe cada vez mais é o capital como
um modo de controle do metabolismo social.
Assim, das estratégias de contratação dos gestores do capital
(como vimos no filme “O que você faria?”) às estratégias de organiza-
ção dos grupos de trabalho e de produção nos locais de trabalho rees-
truturados, o que se coloca é a lógica da “captura” da subjetividade do
homem que trabalho implicado, em cada momento da vida cotidiana,
com escolhas pessoais sob constrangimentos sistêmicos dados.
A “captura” da subjetividade do homem que trabalha – nexo es-
sencial do toyotismo enquanto ideologia orgânica da reestruturação
produtiva sob as condições históricas do capitalismo manipulatório -
ocorre através de escolhas pessoais sob condições sistêmicas constran-
gedoras, implicando, portanto, consentimentos espúrios construídos
sob efeito do “trabalho ideológico”.
Portanto, a “captura” da subjetividade do homem que trabalha é
uma escolha pessoal alienada, um tipo de servidão voluntária de agen-
tes/sujeitos de classe sob determinadas condições. Ela opera um nexo
psicofísico de novo tipo que implica dimensões inconscientes e pré-
conscientes da alma humana. Enquanto efeito do trabalho ideológico,
a “captura” da subjetividade do homem que trabalha, implica a desper-

192
O mundo do trabalho através do cinema

sonalização do trabalho vivo através de dispositivos de desconstrução


pessoal (como, por exemplo, a culpabilização da vitima).

Nexos do Capitalismo Global


“capitalismo manipulatório”
Primado do “trabalho ideológico”
Crise estrutural do capital
Reestruturação Produtiva
Produção como Totalidade Social
Toyotismo

“Captura” da subjetividade do homem que trabalha

Escolhas pessoais estranhadas

O título em português do filme “El método” (titulo original) – “O


que voce faria?” – foi feliz, na medida em que conseguiu apreender o
nexo moral dos dispositivos de “captura” da subjetividade do homem
que trabalha: a pergunta “o que você faria” implica uma escolha moral
das individualidades de classe constrangidas, jogadas na “selva do mer-
cado” pelas estratégias de negócios das corporações globais.
Assim, a “captura” da subjetividade do trabalho se dá por meio
de escolhas pessoais às perguntas feitas em situações estratégicas do co-
tidiano: “O que você faria?”. Enfim, escolhas que implicam a adoção
“voluntária” de valores – valores-fetiches da ordem burguesa.
Sob o capitalismo manipulatório, o foco privilegiado é o Eu das
individualidades pessoais de classe. Estamos do “capitalismo Você S/A”.
Por isso, o apelo às ideologias do empreendedorismo e trabalho por

193
Trabalho e Cinema • Volume 3

conta própria que usam e abusam da noção de talentos humanos ou


mesmo de capital humano.
É claro que as ideologias do auto-empreendedorismo são (1) ex-
pressões da crise do emprego sob o capitalismo global, além de (2)
expressarem a transformação do conhecimento em capital imaterial
sob a lógica de mercado e o capitalismo da sociedade em rede. Mas
também o foco no Eu das individualidades pessoais de classe expres-
sam (3) a constituição de uma nova forma de capitalismo – o capita-
lismo manipulatório - onde a disputa pelo valor ocorre no interior da
subjetividade do trabalho vivo. Nessa etapa do processo civilizatório
humano-genérico, pressuposto negado do capitalismo global, de fato, é
o Eu das individualidades pessoais de classe, que faz, no interior da vida
cotidiana, escolhas éticas, cada vez mais imprescindíveis ao processo de
reprodução social (embora negada – e subsumida à relação-capital –
a ideologia no sentido sócio-ontológico, isto é, ação do homem sobre
outro homem e também ação do homem sobre si, não deixa de ser uma
necessidade ineliminável do processo civilizatório).
As individualidades pessoais de classe enquanto “proletários de
classe média”, trabalhadores assalariados de alta qualificação que visam
se inserirem no mercado de trabalho como gestores do capital (o que
implica graus de status e prestigio social), têm uma vida de provação pes-
soal – ou “vida de entrevistas” buscando galgar novas posições de traba-
lho compatíveis com seus interesses pessoais e de carreira profissional.
Por exemplo, numa das cenas do filme “O que você faria?”, Ana observa
que já veio a duas entrevistas. Enrique diz que veio a três – sendo que o
primeiro teste não foi propriamente uma entrevista, mas sim, um teste
psicotécnico.
Ora, a condição de proletariedade dos gestores do capital é marcada
pela subalternidade aos valores-fetiches da empregabilidade e competên-
cia na gestão da ordem burguesa, além da contingencia de carreiras pro-
fissionais marcadas pela intermitência de mercado. Parecem livres mas
estão submetidos ao poder das coisas. A vida pessoal é quase reduzida à
interesses de carreira profissional. Na verdade, a vida pessoal é clivada de
testes que buscam validá-los como homens da administração das coisas,

194
O mundo do trabalho através do cinema

homens e mulheres coisificados capazes de incorporarem valores-fetiches


da ordem burguesa. Por isso, o devassamento da alma humana através de
entrevistas e testes psicotécnicos quase que recorrentes
Os candidatos se interrogam sobre as condições da avaliação a
qual serão submetidos. Eles desconhecem a natureza do método de se-
leção de pessoal. Há um claro estranhamento no processo de seleção,
que incita os candidatos a especularem sobre o que é o “método Grö-
nholm de seleção de pessoal”. Enrique, o candidato mais bem informado
sobre as técnicas de contratação de pessoal, explica o que seria o dito
“método Grönholm”. Diz ele: “Um método em que se reúnem todos os
candidatos e os fazem interagir para ver quem se destaca.” É um tipo
de dinâmica de grupo. Julio imagina ser uma entrevista conjunta com
todos os candidatos.
Na verdade, o “método Grönholm” não é mera entrevista com
todos os candidatos, mas sim um tipo de dinâmica de grupo. Enrique
observa: “Apresentam aos candidatos uma série de casos teóricos, por
exemplo, ou problemas inerentes ao cargo, e eles têm que discutir qual
a melhor solução.” Noutro momento, ele observa que nos EUA, fazem
um tipo de seleção de pessoal em que os candidatos são convocados e
trancados numa sala e eles observam como agem, como se relacionam
entre si, quem tem algum conflito, quem se acha mais do que é, quem
fala mais, quem fala menos.” É um tipo de reality show do capital.
O problema dos realities show aplicados a seleção de pessoal –
como o “método Grönholm” – está em saber quem avaliará os candi-
datos, tendo em vista que aparentemente não há ninguém da empresa
presente no local do experimento. Ora, todo processo de avaliação im-
plica um avaliador externo que, não estando presente, pode se utilizar
– ou não - de aparatos técnicos para acompanhar o desempenho dos
candidatos à distância.
Num primeiro momento, os candidatos suspeitam de microfones
ou câmeras na sala de teste. Por exemplo, Enrique coloca a possibili-
dade de existirem microfones ou câmeras instaladas. Por outro lado,
Julio, que apela para a noção de direitos individuais da pessoa humana,

195
Trabalho e Cinema • Volume 3

pergunta: “Mas é legal colocarem câmeras?”. Enrique observa: “Como


se a ilegalidade fosse um problema”.
Entretanto, a lógica interna do método Grönholm de seleção de
pessoal é outra. Ele não implica o olhar externo que utiliza aparatos de
controle ou informantes que observam o desempenho dos candidatos,
mas sim o envolvimento de cada candidato num jogo de manipulação
do Outro visando atingir, com competência, interesses particularistas.
A dúvida continua: como os candidatos serão avaliados se não
há ninguém da empresa? Após suspeitarem de microfones ou câmeras,
levantam a possibilidade da existência de um informante da empresa
entre eles. Ora, mesmo deste modo, o que se coloca ainda é um olhar
externo de controle que todos temem – microfones, câmeras ou infor-
mantes não deixam de ser um “vigia externo” a cada um deles.
Mas o que cada um não teme como agente da avaliação da empre-
sa é o Outro-próximo-de-si, o Igual que compartilha os mesmos valo-
res particularistas. Na medida em que o Outro-próximo–de-si, o con-
corrente que se encontra lado a lado se envolve com valores-fetiches,
ele tende a agir – muitas vezes sem o saber – como o agentes capazes
de avaliar o colega concorrente. É o que podemos denominar de ma-
nipulação reflexiva, uma manipulação invisível e onipresente instigada
pelas estratégias do reality show.
Eis o sentido da manipulação sistêmica do capital e do novo pa-
noptismo dos métodos de gestão toyotista – no processo de obtenção
das metas pelas equipes de trabalho, cada um é “carrasco” de si e do
Outro como próximo. Enfim, não há chefias externas imediatas para
o controle, mas ela está introjetada em cada um. É o sentido radical
do dito hobbesiano do “bellum omnes contra omnes” (a luta de todos
contra todos).
Entre o grupo de candidatos observa-se que há um membro do
departamento de seleção de pessoal. A primeira tarefa é fazer a iden-
tificação deste “informante” da empresa. Entretanto, o que talvez não
saibam é que, a presença do “informante é mais para propiciar a di-
nâmica de manipulação reflexiva, que para “vigiar” os candidatos nas
provas de seleção. Num certo momento, Enrique observou: “Se fazem

196
O mundo do trabalho através do cinema

passar por candidatos e assim podem nos observar de perto, ouvir o


que dizemos.” Entretanto, Enrique não entendeu a nova lógica de con-
trole do capital baseado na estratégia da manipulação reflexiva, onde
o verdadeiro “vigia” de si e dos outros não é um “Informante externo”,
mas sim, cada um dos colegas.
Ora, a primeira tarefa da empresa foi ocultar a nova lógica da ma-
nipulação sistêmica. No decorrer do processo de seleção de pessoal,
tornar-se-á claro que quem observa de perto, ouve e olha cada um deles
não é o Informante da empresa, mas sim, os próprios Iguais, onde cada
um elimina o Outro-próximo-de-si através de subterfúgios pessoais
Ao ser inquirido se tem câmera ou não, Ricardo apenas confirma
que a empresa Dekia se utiliza de um novo método de seleção de pessoal
baseado na técnica do reality show, estratégia de manipulação reflexiva
que altera o registro da manipulação sistêmica. Como o espírito do pro-
testantismo, que, como observou Marx, coloca os grilhões no interior da
alma humana, o espírito do toyotismo – base material da nova lógica
de manipulação reflexiva – tende a excluir o vigia exterior (câmeras e
microfones, por exemplo), e mesmo o informante oculto - como salien-
tamos, a função de Ricardo, o suposto “Informante da empresa”, é menos
vigiar os candidatos que mediar (ou facilitar, como se diz) a dinâmica
do reality show). Os verdadeiros algozes de cada um dos candidatos é
o Outro-proximo-de-si ou o próprio candidato (o que demonstra que a
culpabilização da vítima possui um lastro real).
Mais tarde, Ricardo iria confirmar que não tem “vigia externo”
– embora possamos verificar, ao final, que há sim, câmeras de video
nos recintos da Dekia. Na verdade, as câmeras de video não cumprem
a função de vigiar os candidatos da dinâmica de seleção de pessoal. Diz
ele: “Não porque seja ilegal [o que demonstra o desprezo das grandes
empresas pelos “preciosismos” legais - G.A]. Não nos parece ético.”
Ora, nesse caso, o discurso da ética faz parte da técnica de ma-
nipulação reflexiva, na medida em que visa preservar a credibilidade
indispensável que a empresa deve ter perante os candidatos a postos de
executivos. Para que o espírito do toyotismo seja incorporado pelos can-
didatos que pleiteiam um cargo de executivo ou emprego, é necessário

197
Trabalho e Cinema • Volume 3

que a empresa apareça como portadora de confiabilidade ética. Eles


têm que acreditar, de fato, na imagem de “empresa responsável”.
Na verdade, o discurso da ética é a moeda de troca no jogo do auto-
engano. O discurso da ética oculta a ética do (mero) discurso, sem lastro
no mundo real do capital – o mundo da exploração e estranhamento
social. Ele torna-se um recurso subliminar do “trabalho ideológico”,
não apenas na ação do homem sobre o homem (a suposta imagem de
credibilidade pública da empresa responsável), mas do homem sobre si
mesmo (a ética como matéria-prima ideológica do auto-engano).
No começo da dinâmica de seleção de pessoal, a empresa Dekia,
que se comunica com os candidatos através de telas de computadores
ligados em rede, dá boas-vindas aos candidatos finalistas e apresenta o
termo de compromisso moral entre ela e eles. Num primeiro momento,
a empresa – que não tem voz, pois são os próprios candidatos finalistas
que lêem os comunicados da Dekia nas telas dos monitores - levanta a
moral dos candidatos, parabenizando-os por serem eles os finalistas!:
“Parabéns por terem chegado até aqui. Vocês são finalistas das entre-
vistas e provas anteriores porque demonstram capacidade e experien-
cia para ocupar o cargo. No entanto, hoje se decidirá quem é o mais
apto. Considerarem algumas das provas inaceitável para vocês, podem
abandonar o processo. Ninguém é obrigado a fazer o que não quer, mas
enquanto permanecerem na sala, deverão aceitar as condições descri-
tas no método Grönholm.” (o grifo é nosso). Quem lê o comunicado
de apresentação da empresa é Julio Quintana, um dos candidatos fi-
nalistas, advogado, economista e ex-diretor comercial de uma grande
empresa (ele seria considerado por Ricardo, muito qualificado para o
cargo). Julio será o primeiro candidato a ser eliminado na dinâmica de
seleção do método Grönholm.
No comunicado da empresa salientamos a observação: “...hoje se
decidirá quem é o mais apto.” Eis a questão-chave: a lógica da seleção
de pessoal é decidir quem é o mais apto para ocupar o cargo de exe-
cutivo da empresa Dekia. Como na selva, sobrevive os mais aptos. A
questão é saber quais os critérios de avaliação e o método de seleção do

198
O mundo do trabalho através do cinema

“mais apto” entre os candidatos finalistas. Iremos desvelar, aos poucos,


a natureza do método Grönholm.
Um detalhe curioso: além de não ter voz – pois a voz é dos pró-
prios candidatos finalistas que lêem seus comunicados nas telas dos
monitores (expressão da empresa toyotista), não sabemos o que a em-
presa produz (o que é expressão da lógica social do trabalho abstrato).
É interesante observar que o processo de seleção de pessoal por meio
do método Grönholm é mediado por telas de monitores ligados em
rede que dizem quais os próximos passos da dinâmica de grupo. Um
dos concorrentes diz, logo que a logomarca da empresa Dekia aparece
na tela do computador: “Vamos ver o que as máquinas têm a dizer”. Na
verdade, no sistema-fetiche do capital, são as máquinas que se expres-
sam. Máquinas que têm algo a dizer e homens que agem como máqui-
nas – eis a dimensão fetichizada da sociabilidade capitalista.
Na lógica da manipulação reflexiva, as grandes empresas criam a
redundância planejada como técnica de implicação subjetiva. Na verda-
de, trata-se de estratégia de despersonalização do homem que trabalha
visando testar sua disposição de auto-humilhar-se diante das imposições
sistêmicas do capital. DE certo modo, é um elemento-teste de resiliência
onde o sujeito escolhe – e se trata de uma escolha pessoal – aceitar as
condições de sua própria anulação pessoal.
Por exemplo, vejamos a cena em que um dos candidatos – Ri-
cardo - observa que já preencheu um mesmo formulário várias vezes
– um em cada entrevista. E diz: “E entreguei um curriculum onde digo
praticamente o mesmo.” E protesta: “Não sei porque tenho que pre-
encher outra vez.” Ricardo se insurge contra a redundância planejada,
considerando isto uma humilhação. A secretaria da empresa, Montse,
observa: “Todos estão preenchendo”.
Deste modo, ela apela para a reflexividade social a serviço da
construção do consentimento espúrio. Enfim, faça o que todos fazem,
mesmo que isto seja humilhante. Depois, ela observa que não é obri-
gatório preencher o formulário redundante, mas terá que preenche-lo
se quiser participar da avaliação. Ora, trata-se de uma argumentação

199
Trabalho e Cinema • Volume 3

cínica que desvela a farsa da liberdade burguesa (você é livre, muito


embora esteja submetido ao poder das coisas).
Ricardo vê no artifício da redundância planejada um teste de pa-
ciência. Montse, a secretária, observa que ele está sendo “pouco flexí-
vel”. Nesse caso, um recurso de ironia desvelado por Ricardo: “É incrí-
vel Tenho que preencher um formulário mil vezes e o inflexível sou
eu.” Ora, desmitifica-se o mito da acumulação flexível – o capital exige
flexibilidade do trabalho vivo, mas enquanto relação social, é a forma
social mais rígida na face da Terra.
Diante do embate verbal entre Ricardo e Montse, Fernando e En-
rique aproveitam para exibir suas disposições colaborativas com a lógica
da redundância planejada. Nesta cena, os dois se aproveitam da atitude
não-colaborativa de Ricardo, para exibir sua capacidade flexível. Diz
Fernando: “Tudo bem, companheiro. Já deixou claro que não se rebai-
xa. Agora deixe que nos rebaixemos se quisermos.” Enrique demonstra
que soube verifique detalhes na solicitação de preencher mais um for-
mulário, julgando não ser isto redundante. Diz ele: “Desculpe, não sei
se reparou, mas o formulário não era igual aos anteriores. Por exemplo,
nesse havia a cláusula do método Grönholm.”
Após a eliminação de Júlio, Enrique, Ricardo e Carlos conversam
no banheiro. O temor de câmeras ocultas é instigado por Ricardo que
observa – de forma sarcástica: “Acha que se pode tirar alguma conclusão
pelo modo como alguém urina?”. De repente, aquele coletivo de candi-
datos teme um “vigia externo” – câmeras, microfones ou informante
oculto. Ou ainda, a exposição de segredos pessoais que comprometam a
avaliação. Ricardo – que instiga os demais candidatos – pergunta: “Fico
pensando se não terão um segredo de cada um nós guardado para usar
quando for preciso.”. Ao mesmo tempo, a eliminação de Júlio, para Ri-
cardo, significou apenas “um candidato a menos”. Ele procura instigar
nos candidatos afetos particularistas adequados para o enfrentamento
que ocorre naquele processo de seleção (o medo e o egoísmo pessoal).
Como psicologo da empresa infiltrado no grupo de candidatos, Ricardo
não “vigia”, mas faz a mediação catalisadora capaz de promover a auto-
seleção de pessoal para exercer o cargo de executivo na empresa.

200
O mundo do trabalho através do cinema

Embora Ana tenha elogiado Fernando pela boa defesa que fez de
Júlio, colocando, segundo ela, os colegas concorrentes contra a parede,
Ana votou contra Júlio, desclassificando-o. Fernando intrigado pergun-
ta: “Se achou tão boa, por que votou contra?”. Ana dá uma resposta
intrigante: “Acho que gosto de que me implorem.” Ora, a atitude dela
expressa um tipo de auto-satisfação perversa. Impotentes diante das
condições de produção de sua vida pessoal, individualidades de clas-
se com personalidades narcísicas, se auto-satisfazem com a exaltação
de sua pessoa por outrem. Ao dizer que gosto que me implorem, Ana
expressou uma falha de personalidade que expõe uma crueldade in-
terna. Na sociedade do fetiche, as falhas de caráter que expõem o lado
desumano das pessoas, tornam-se quase constantes. Nas situações de
concorrência, elas são recorrentes, com a exaltação perversa do Eu por
atitudes de imploramento se pondo como bálsamos da alma humana
alienada.
Após exercitar sua crueldade narcísica no jogo da predação pes-
soal como método de seleção para ocupar um cargo executivo na em-
presa Dekia, Ana é excluída tal como Júlio foi excluído pelo voto dela na
prova anterior. Nesse caso, coube a Carlos exercer o papel de predador
– predação exercida com argumentação lógico-racional (no sentido da
racionalidade sistêmica). Mas Carlos – como Ana – sabem que estão
inseridos num jogo cruel. Ele diz: “Sinto muito, Ana. Fiz o mesmo que
você. Cuidei de mim. O que eu disse, não foi pra valer. Só estava inter-
pretando um papel para ganhar um jogo.”

Traços da personalidade particularista


Auto-satisfação perversa
Pragmatismo cínico
Resignação e auto-humilhação

Enfim, com sinceridade, Carlos expõe, com consciência, a atitude


cínica que o sistema exige de cada um. Primeiro, expressa sentimentos
humanos (Sinto muito!) para depois, imbuído do pragmatismo cínico,

201
Trabalho e Cinema • Volume 3

expor a verdade das coisas: “Fiz o mesmo que você. Cuidei de mim”.
Está é a moral sistêmica que involucra a “guerra de todos contra todos”
do mundo neoliberal. Enfim, como os antigos gladiadores no Coliseu
da Roma Antiga, que vença o melhor ou o mais apto. Eis a lógica inter-
na do método Grönholm. Na atitude cínica de Carlos ao dizer – “cuidei
de mim” - há a moral particularista que marca as individualidades de
classe sob a (des)sociabilidade neoliberal.
Ao lado da “culpabilização da vítima”, um dos recursos cruéis do
metabolismo social do capital em sua etapa de crise estrutural, onde
o desmonte da pessoa humana (ou desefetivação humano-genérica)
tornou-se regra sistêmica, é a frustração recorrente de expectativas.
A frustração – mesmo que de forma simulada, como ocorreu por
alguns segundos no filme - é o sentimento adequado para esmagar as
veleidades pessoais das individualidades de classe. Frustra-se para de-
compor vontades e projetos – mesmo que sejam projetos particularistas,
como o de cada um dos concorrentes pelo cargo de executivo da Dekia.
Na verdade, Montse, a secretária, simula que o RH decidiu terminar as
provas. Por alguns segundos, frustraram-se expectativas. Mas logo a se-
guir, ela diz: “Brincadeira! . Na verdade, não é apenas uma brincadeira,
mas uma técnica de revolver e manipular a subjetividade dos candida-
tos.
Ora, manipula-se expectativas (e sonhos) como técnica de “cap-
tura” da subjetividade. Um pequeno trauma de frustração que logo
aparece como mera brincadeira – na verdade, é um ardil da equipe de
psicólogos da Dekia. Enfim, eles querem testar a capacidade de resigna-
ção às frustrações – elemento recorrente da ordem burguesa.
Cada situação da trama do reality show instituído pelo método Grö-
nholm é um verdadeiro teste para os candidatos onde – intimamente -
se interroga sobre o que você faria. A manipulação imputa às vítimas a
culpa pelas escolhas constrangidas. Por exemplo, ao simular por alguns
segundos o término do teste, avaliou-se, naquele momento, a atitude dos
candidatos à frustração, que é um elemento recorrente do metabolismo
do capital. Depois, ao servir comida fria e mal-cheirosa aos candidatos,
na hora do lanche, avalia-se a resignação dos candidatos às situações de-

202
O mundo do trabalho através do cinema

gradantes. Ninguém reclama. Observam que a comida está fria. Montse


atribua a culpa aos protestos populares anti-globalização que fizeram os
restaurantes fechar. Carlos observa: “É imaginação minha ou isto está fe-
dendo?”. Entretanto, ninguém se manifesta. Talvez saibam que estão sen-
do avaliados em sua capacidade de resiliência. Nieves desiste de comer,
mas diz: “É que não estou com fome”.
Enfim, a prova da comida estragada visa apreender traços compor-
tamentais que são relevantes para a empresa toyotista, onde mais im-
portante que a qualificação profissional propriamente dita, são as compe-
tências emocionais e habilidades comportamentais adequadas à lógica do
capital. Enfim, o capital exige hoje atitudes colaborativas, mesmo que isso
signifique frustração ou humilhação da pessoa humana.
A dinâmica do método Grönholm promove um tipo de intera-
ção espúria onde – pouco a pouco – cada candidato, ao mesmo tem-
po em que exerce um “trabalho ideológico” sobre o Outro, buscando
convence-lo com argumentos factíveis, intimamente visa elimina-lo. Há
um processo de auto-aprendizagem pessoal estranhada, onde cada um
é predador do Outro. Enrique observa: “É tudo muito bem pensado.
E se aprende muito. Com o debate, por exemplo. De início eu pensa-
va uma coisa e Nieves me fez mudar de opinião.” Mais tarde, Ricardo
observaria: “Há alguns candidatos que me agradecem, mesmo sendo
eliminados. Dizem que se sentem melhor preparados para a luta diária,
mais conscientes de suas possibilidades e de suas limitações.”
Ora, as provas de seleção nas empresas, além de possuírem uma
caráter avaliativo, têm um sentido pedagógico. Ao mesmo tempo que
avaliam, educam. Elas conformam os candidatos que as exigências
postas pelo metabolismo social do capital. A concorrência como prá-
tica sócio-metabólica recorrente no mundo do capital “educa” homens
e mulheres para a conformação à selva do mercado. Portanto, impul-
sionam um tipo de processo de subjetivação que conforma homens e
mulheres ã lógica do trabalho heterônomo.
Ricardo, o psicologo do método Grönholm, explica como surgi-
ram as provas de seleção. Diz ele: “Sabiam que os militares inventaram
as provas de seleção? Depois da 1ª. Guerra Mundial, na Alemanha, já

203
Trabalho e Cinema • Volume 3

que impuseram muitas limitações ao exército alemão depois do Trata-


do de Versalhes, eles resolveram testar seus comandantes com provas
como esta. E, para melhor avalia-los, incluíam um psicologo na comis-
são de seleção. Do exército alemão, passou ao inglês; do inglês para o
americano e depois para as empresas.”
As provas de seleção nas empresas buscam afirmar um padrão de
subjetividade adequada à lógica do capital que implica, como seu traço
estrutural, a divisão hierárquica do trabalho. Na verdade, a hierarquia
social é a alma do capital. A manipulação sistêmica, que visa afirmar a
lógica do capital nas condições de subjetividades complexas, origina-se
no exército, uma das instituições sociais onde a hierarquia é sua coluna
vertebral. Do exército sai para as empresas capitalistas.
Existe um medo primordial no “coletivo” de candidatos finalistas
na dinâmica de seleção para o cargo de executivo da empresa Dekia: o
medo do impostor ou informante da empresa. O subproduto do medo
é a desconfiança. Na lógica da concorrência, instigada pela sociabilida-
de neoliberal, o principio basilar é semear desconfianças mútuas entre
homens e mulheres. Ora, a desconfiança desconstitui o Outro como
próximo. Ela é um subproduto da “sociabilidade” da concorrência. Na
verdade, a desconfiança é o afeto que inaugura o campo da predação
concorrencial, corroendo e eliminando quaisquer laços de reconheci-
mento humano-genérico.
O impostor ou informante da empresa é o Outro negativo, e na-
quele simulacro de coletivo, que é o grupo de concorrentes, qualquer
um pode não ser um verdadeiro candidato. Como diz um candidato,
“tem um de nós que não é um de nós.”Ao colocar como primeira prova
a ativação da desconfiança mútua, o método Grönholm sedimenta as
bases da sociabilidade concorrencial, abrindo o espetáculo de predação
mútua entre os candidatos.
Enrique lê a primeira prova da dinâmica de seleção de pessoal:
“Dissemos que são os últimos candidatos. Só que não são sete candi-
datos. Entre vocês, há um membro do nosso departamento de seleção
de pessoal. Sua primeira tarefa é averiguar qual de vocês não é um ver-
dadeiro candidato.” Ora, não deixa de ser curioso que, após semear a

204
O mundo do trabalho através do cinema

desconfiança – não se conseguiu identificar quem é o Impostor – a


empresa propõe como próxima tarefa a escolha do líder do grupo, não
por maioria, mas por consenso do próprio grupo.
Ora, o capitalismo manipulatório visa semear um complexo de
afetos contraditórios na alma humana. O método Grönholm revolve
a subjetividade pessoal, esgarçando-a com afetos contraditórios. Por
exemplo, instiga desconfiança e exige confiança.. Além disso, coloca es-
colha do líder de um grupo que é mero simulacro de grupo, tendo em
vista que se trata de um conjunto de candidatos concorrentes (a atitu-
de de Fernando é a mais coerente com a lógica particularista implícita
– diz ele: “não vou escolher ninguém a não ser eu mesmo”). E pior:
exige-se que a escolha do suposto líder do grupo – mero simulacro de
time – deve se dar por consenso, ativando nesse caso, a capacidade de
construir supostos consensos em situações adversas.
Júlio diz: “Não nos conhecemos. Terá que ser por intuição.” E in-
dica Enrique como líder do grupo. Mas Enrique estava sob suspeita de
ser o Impostor. Fernando diz que se recusa a escolher o Informante
da empresa. Diante do impasse, Enrique indica Júlio e Nieves propõe
uma votação por escrito e secreta para escolher o “capitão do time”, e
verificar quanto apoio tem Enrique ou Júlio. No final, depois de romper
impasses com Fernando, Júlio é o líder escolhido.
A manipulação sistêmico-reflexiva constrói verdadeiros simula-
cros – um líder de grupo que não é um líder propriamente dito, pois a
dinâmica de seleção de pessoal instiga atitudes predatórias de uns para
com o outro – incluindo o próprio suposto líder (o que se verá a seguir);
além disso, não se trata, a rigor, de grupo (ou time), pois sim, de um
conjunto de individualidades de classe concorrente.
Na verdade, vive-se num mundo de simulações ou atribuições fic-
tícias É a lógica do capitalismo manipulatório em sua expressão plena,
onde paz é guerra, liberdade é escravidão, confiança é desconfiança;
O sistema da manipulação reflexiva cria expectativas e as frustra, joga
uns contra os outros, simula com situações, revolve, inverte e perverte a
subjetividade do homem que trabalha. Enfim, a interioridade do homem
singular é devassada por estímulos de valoração que a todo momento exi-

205
Trabalho e Cinema • Volume 3

gem dele um posicionamento ético. Eis o significado do título: “O que você


faria?”. Toda escolha existencial implica um posicionamento ético mais ou
menos significativo no plano sócio-ontológico. Os candidatos estão a todo
momento sendo inquiridos no plano ético-moral. A subjetividade do ho-
mem que trabalha está a todo momento sendo convocada para se posicio-
nar, assumindo para si uma responsabilidade que não é sua.
A manipulação reflexiva se constitui no interior deste campo
ético-moral que mobiliza os sujeitos de classe. Assim, a empresa que
instigou os candidatos a escolherem o líder do grupo, provoca, logo a
seguir, uma situação capaz para destitui-lo – de fato, são os colegas que
o elegeram, que o destituem. Na verdade, o expulsam.
Ora, talvez, a empresa tenha vasculhado a vida pessoal de cada can-
didato. Qualquer candidato que fosse escolhido como líder, teria um fato
comprometedor contra si. Como observa Fernando: “Estamos começan-
do a perceber como funciona o tal método Grönholm. Terão uma assim
guardada para cada um de nós?”. É parte da técnica de manipulação re-
flexiva ir compondo um ambiente de concorrência onde cada um possa
predar o outro. Não se trata apenas da empresa explorar o homem que
trabalha, mas sim, dos próprios trabalhadores assumirem a responsabili-
dade moral pela exploração instituída pelo capital (o trabalhador é algoz
de si próprio). Sob a manipulação reflexiva, a exploração é plenamente
compartilhada entre capital e trabalho assalariado.
Líder escolhido, líder deposto – deposto pelos próprios colegas
que o escolheram. Após Júlio Quintana ser escolhido como líder do
grupo, aparece de imediato, na tela dos monitores, a reportagem de um
jornal que relata a luta de Júlio contra a empresa em que trabalhava,
uma fábrica de pesticidas que iria provocar uma catástrofe ecológica no
Rio Douro (o título da manchete é é “David contra Golias” - o David da
consciência ético-ecológica contra o Golias da avidez de lucros).
A empresa Dekia coloca para o grupo após a denúncia apresen-
tada contra Júlio a seguinte a tarefa: “Decidam agora o que fariam com
a candidatura de Júlio Quiroga ao cargo se fizessem parte do Departa-
mento de Pessoal da empresa. Sua decisão determinará se Júlio Quiro-
ga continuará ou não no processo de seleção.”

206
O mundo do trabalho através do cinema

Nesse momento, discute-se a atitude de Júlio Quiroga em de-


nunciar a empresa em que trabalha, acusando-a de cometer catástrofe
ambiental. Nieves diz: “Temos que decidir se confiamos em Júlio, ou
não?”. Embora diga que não quer julgar Júlio, diz que ele, do ponto de
vista empresarial traiu a empresa. Júlio diz que não traiu pois não teve
opção: “Não tive outra saída”.
O que está em jogo são valores ecológicos que devem ser respei-
tados inclusive pela empresa (Enrique chegou a dizer: “A ecologia e o
meio-ambiente são fatores que nenhuma empresa pode prescindir”).
Num primeiro momento, coloca-se, portanto, uma discussão no plano
ético-moral: Júlio fez ou não a coisa certa? O próprio Júlio quer que a
discussão permaneça nesta instância ético-moral. Enfim, coloca-se o
primado ético-moral (diz ele: “O que temos que discutir é quais são
as conseqüências das nossas decisões. Se a empresa lhes pedisse algo
ilegal, vocês fariam?” – todos se calam).
Fernando, que defende a responsabilidade social das empresas,
fica do lado de Júlio. Diz: “Eu escolheria o Júlio e digo porque: o que
importa para uma empresa são os resultados das discussões. De fato, as
melhores empresas são as que sabem absorver as melhores idéias, não
importa de que empregado. No caso da fábrica de pesticidas, ou o que
fosse a empresa de Júlio, o problema está na diretoria. A responsabili-
dade é claramente dela, por haver assumido um risco suicida ao lançar
resíduos no rio e por não ter sabido prever as conseqüências, como a
denúncia de Júlio.”
Deste modo, Fernando assumiu uma posição de critica à impu-
tação de responsabilidade às vítimas – mecanismo de manipulação re-
flexiva ao estilo da “culpabilização das vítimas”. O capital como sistema
de manipulação reflexiva tende a implicar cada vez mais a dimensão
moral do homem. Fernando discorda que a responsabilidade pela ex-
pulsão de candidatos concorrentes possa ser dos próprios candidatos
concorrentes. Diz ele: “Isso é uma responsabilidade que a empresa jo-
gou sobre nós, sem nos consultar e de graça.” E diz para os colegas: “E
vocês aceitaram sem reclamar porque acham que é isso que a empresa
espera de vocês. Mas se não for assim? Estão convencidos que é isso

207
Trabalho e Cinema • Volume 3

que a empresa espera de vocês?”. Diante do empate técnico na votação


sobre a expulsão de Júlio, Fernando diz que é a empresa que deve deci-
dir se expulsa ou não Júlio.
Ora, enquanto se coloca no plano ético-moral, a atitude de Júlio
Quiroga é defensável. Carlos reconhece que, do ponto de vista do juízo
moral, Júlio agiu corretamente. Entretanto, ele passa a avaliar o colega
concorrente a partir da lógica da razão comunicativo-instrumental.
Diz ele: “Júlio agiu bem e a empresa agiu mal. Ninguém aqui du-
vida de que sua intenção e objetivo eram corretos. Mas nosso dever
agora é decidir se nessas circunstâncias, hoje aqui, escolheríamos você
para o emprego. E nesse caso, há um detalhe que me faz pensar que
não o escolheria. Não é haver posto os interesses dos outros na frente
dos da sua própria empresa, mas ter usado os meios equivocados para
consegui-lo. Se era tão evidente que tinha razão, se era tão evidente o
erro da diretoria, moral e empresarialmente, como não conseguiu faze-
los ver?”. E conclui: “A empresa provavelmente também errou, mas aqui
avaliando Júlio, minha conclusão é que você não soube estabelecer uma
comunicação correta e eficaz com a diretoria. Por isso não o escolheria
para o cargo.”
Enfim, o que é decisivo não são os valores morais em si (a causa
ecológica), mas a capacidade de transmiti-los aos outros. Nesse caso, pas-
samos da competência moral à incompetência comunicativo-instrumental.
Isto é, Júlio Quiroga não teve competência comunitivo-instrumental. De
qualquer modo, Carlos encontrou uma lógica adequada para “expulsar”
Júlio Quiroga da dinâmica de seleção de pessoal (inclusive, influenciando
Enrique que passou a dizer que não aceitaria o pedido de Júlio para fazer
parte da empresa) – além de ser, é claro, um motivo mais digno que a
mera desqualificação do juízo moral e a contestação do valor ecológico
em nome do valor empresarial (como queria Nieves).
Logo após a eliminação de Júlio, abre-se outra prova que propicia
que outro candidato possa ser eliminado pelos demais. Na verdade, eis
a lógica do método Grönholm: não é a empresa que elimina os candida-
tos, mas sim, seus colegas concorrentes. As vitimas se eliminam umas
as outras. É a lógica da manipulação reflexiva, onde a culpabilização

208
O mundo do trabalho através do cinema

das vitimas possui seu reverso: a incorporação, pelas vitimas, da própria


perversidade do capital (Enrique conseguiu apreender, de forma não-
critica, a lógica do método Grönholm ao observar: “Terão que disputar
para ver quem ganha”. Aliás, Enrique é a personalidade conformista
que visa se adequar às disposições sistêmicas. É um homem medíocre
e perspicaz, mas volúvel às imposições dadas).
A discussão para eliminação de Júlio não foi propriamente uma ta-
refa, mas um ardil armado pela empresa para eliminar o líder escolhido.
Na segunda tarefa propriamente dita coloca-se uma tarefa que apela para
o mito clássico da escassez como elemento da exclusão primordial. Diz
o texto da prova: “Ano de 2013. A Terceira Guerra Mundial estourou e o
planeta se afoga sob uma nuvem radioativa. Por sorte, todos vocês estão a
salvo porque tiveram acesso a um abrigo antinuclear equipado com o ne-
cessário para sobreviverem 20 anos. Infelizmente o refúgio foi projetado
para uma família de cinco pessoas e um de vocês terá que abandona-lo.
Decidam quem deverá ir embora, defendendo antes, cada um, a sua per-
manência com argumentos comprováveis. Quem for expulso do abrigo,
abandonará também o processo de seleção.”
Existe permeando o texto da prova o que podemos denominar
de ideologia da escassez, cuja lógica interna, em última instância, visa
legitimar a relação-capital. Na verdade, a escassez é um mito do capital,
principalmente no atual estágio civilizatório quando ocorreu uma re-
dução inédita dos limites naturais e a produtividade social do trabalho
alcançou níveis altíssimos. Como se pode falar em escassez quando a
capacidade de produção social incrementada pela nova base tecnológi-
co-cientifica, conseguiu atingir um elevado patamar? Na verdade, a ló-
gica da escassez tende a legitimar a exclusão social do acesso à riqueza
produzida, concentrada nas mãos da oligarquia capitalista.
A parábola do abrigo anti-nuclear contém um fundo ideológico
que expressa em si, a própria lógica da exclusão social. Isto é, deve-se
excluir porque não há riqueza – ou o necessário - para todos sobrevive-
rem. Ressaltemos a seguinte passagem do texto da prova: “Infelizmente
o refúgio foi projetado para uma família de cinco pessoas e um de vocês
terá que abandona-lo.”

209
Trabalho e Cinema • Volume 3

Nesse caso, o trabalho ideológico opera nos dois níveis de discurso:


primeiro, o discurso manifesto, que supõe, num nível acritico, uma dada
racionalidade social não-discutivel – “infelizmente o refúgio foi projeta-
do para uma família de cinco pessoas...”. A exigência manifesta é: alguém
terá que abandona-lo. O discurso parabólico é organizado pela lógica da
mera adequação/adaptação à realidade dada quase como “destino”. Na-
quelas condições dadas, cada um deve meramente justificar, com argu-
mentos comprováveis, sua permanência no abrigo. No caso da prova, o
candidato deve permanecer no plano do discurso manifesto, sem ousar
questionar as exigências impostas por aquela racionalidade.
Segundo, o discurso latente que contém o viés ideológico com
sua lógica social – ora, a artimanha da escassez organiza os significados
do discurso manifesto. E pergunta-se: por que se escolheu – e trata-se
de uma escolha moral – construir o discurso parabólico com o regis-
tro simbólico da escassez? Não se poderia faze-lo com outro registro
ideológico (por exemplo, a lógica da abundância e a perspectiva da so-
lidariedade)? Nesse caso, poderia-se aferir, do mesmo modo, compe-
tências morais com outros conteúdos sociais. É claro que, sem escassez,
não haveria necessidade da concorrência...e inclusive, do poder social
estranhado (o capital). É curioso que Fernando atribui a si, a função
de representar o poder político como “competência” necessária sob as
condições sociais da escassez. Isto é, a escassez implica, por natureza,
o poder político. Ora, a inquirição crítica desvela, numa camada mais
profunda, o telos ideológico da construção da parábola do abrigo nucle-
ar: ora, por que o abrigo anti-nuclear só foi projetado para uma família
de cinco pessoas?
Aos poucos, a parábola do abrigo antinuclear – como os mitos
biblicos – possuem um complexo de significados que desvelam a natu-
reza da ordem sócio-metabólica do capital. Indo além do mero registro
ideológico manifesto, pode-se interrogar - por que existe hoje exclusão
social no mundo capitalista, ou seja, por que um imenso contingente
de pessoas deve ser excluído do usufruto da riqueza social, se a capa-
cidade de produção de riqueza tem crescido de forma impressionante
no século XX?

210
O mundo do trabalho através do cinema

Ora, a relação-capital baseia-se no princípio da apropriação pri-


vada da riqueza coletiva. Produz-se cada vez mais não para satisfazer
de forma ampliada as necessidades/carecimentos sociais, mas para se
acumular, nas mãos de proprietários privados, mais riqueza social em
sua forma abstrata. Sob o sistema do capital, acumula-se visando acu-
mular cada vez mais. Produz-se, assim, de modo contínuo, a escassez,
tendo em vista que poucos se apropriam da riqueza social produzida
coletivamente.
Na parábola do abrigo antinuclear há escassez porque o refúgio
foi projetado apenas para uma família de cinco pessoas. Mas no mundo
social do capital, há escassez social porque há propriedade privada/divi-
são hierarquica do trabalho. Enfim, existe a relação-capital.

A lógica da manipulação reflexiva


Imputação da culpa
(cada um assume a culpa pela sua própria desgraça)
Atribuição de responsabilidades
(é atribuída a cada um a responsabilidade pela
eliminação do outro)
Jogo de perversidades mútuas
(cada um age para eliminar o outro)

Como salientamos acima, a parábola do abrigo anti-nuclear


está permeada de significados ideológicos do mundo do capital. Por
exemplo, Ana contesta a utilização do currículo para escolher quem
irá sobreviver no abrigo antinuclear. Diz ela: “Temos que nos basear só
nos nossos currículos?”. Afinal, diz ela, que há coisas que não estão no
currículo. Ela adota o ponto de vista da competência do saber que nas-
ce da experiencia vivida, um elemento desprezado pelas necessidades
sistêmicas. No sistema da manipulação reflexiva, impõe-se a ditadura
do currículo, que pode ser usado para mediar o jogo das perversidades
mútuas.

211
Trabalho e Cinema • Volume 3

Na verdade, o desprezo pelo saber vivido – ou experiencia de vida


decorre da própria relação-capital que se baseia na desconfiança intrín-
seca na pessoa humana. Enrique expressa o espírito sistêmico quando
diz que, sem o currículo, “não tenho como saber se isso é verdade ou
não”. Enquanto Ana adota o ponto de vista do saber vivido – propõe-se
a ser cozinheira (e inclusive, procriadora, como Nieves), atividades que
atendem às necessidades humanas básicas, Fernando, Ricardo e Carlos
se propõem a atividades sociais instrumentais (militar, médico, literato
e técnico de rádio).
No jogo das perversidades mútuas que transparece no desenrolar
do método Grönholm, temos preconceitos de todos os tipos. Por exem-
plo, Ana é eliminada por um ardil de preconceito. Ela se expôs e foi pre-
dada por Carlos. Embora Fernando tenha se expostos também, soube
contra-argumentar com Nieves. Mas no jogo de perversidade, Carlos
identificou um ponto fraco no argumento de Ana – ela se propôs a
ser, como Nieves, procriadora da raça humana. Carlos a interroga: “Sua
idade não é um pouco avançada?”. Ana discorda. Mas Carlos arremata:
“Até que idade vai poder ser mãe?”.
O ardil de Carlos foi se utilizar de preconceitos arrigados na coti-
dianidade burguesa. Ele se utiliza do preconceito contra homens e mu-
lheres “improdutivos”. Na verdade, ele mobiliza em seu argumento, um
duplo preconceito – primeiro, preconceito ancestral de gênero (contra o
“sexo frágil”) – Ana é mulher; e, depois, preconceito contra os supostos
“improdutivos”.e “fracassados” da ordem burguesa – Ana é mulher em
idade avançada, portanto, “improdutiva”, segundo os padrões burgue-
ses (preconceito seminal que nasce da ordem capitalista produtivista).
Como um predador voraz, Carlos se utiliza com habilidade discursiva,
do preconceito para desqualificá-la – e “exclui-la” Ana – como o ancião
cansado do conto de Jack London – teve seu tempo e deve ser sacrifi-
cada. Sob o capitalismo global, a exclusão social de homens e mulheres
fracassados é quase como uma “lei da vida”.
Sob a barbárie social, pode-se utilizar a arte para desqualificar,
com requinte de crueldade mental, o Outro-como-próximo. Foi o que
Carlos fez ao se utilizar do conto “A lei da vida”, de Jack London, para

212
O mundo do trabalho através do cinema

justificar a exclusão de Ana. Ele diz: “Já leu Jack London, Ana? Escreveu
um conto sobre uma tribo de esquimós que migra sazonalmente. É a
história de um ancião cansado, quase cego, que sente que não pode
acompanhar a tribo e então, todo o grupo pára e se despede dele, um
por um; seus filhos também, e simplesmente o deixam ali com um pou-
co de lenha. O ancião senta-se na neve, tranquilo, se lembrando do que
foi sua vida. E quando acaba a lenha, morre congelado.”. E arremeta que
este conto é bastante didático – “há muita gente que deveria aprender
com ele”. É curioso que Carlos se utilize do conto de um escritor socia-
lista (Jack London) à serviço do darwinismo social que marca hoje a
dinâmica do capitalismo global.
Ao se propor ser o literato do abrigo anti-nuclear, Carlos opta por se
tornar o ideólogo do grupo. Enquanto os demais membros do grupo ado-
tam encargos de natureza instrumental (Fernando, o juiz e militar, ver-
dadeira representação do poder político estranhado; Enrique e Ricardo,
o técnico e o médico, representações do poder técnico, respectivamente;
Nieves, a mulher procriadora, representação do poder natural – e no caso
de Ana, a mulher cozinheira), Carlos optou por uma função ideológi-
ca: “Vou lhes contar uma estória a cada noite. Pode parecer estranho,
mas estudei literatura nesses anos. Posso fazer sua vida sob a Terra mais
tolerável.” Através de seus contos ele iria incutir visões de mundo que
transparecem na literatura. Enquanto Ana opta por uma função ligada a
necessidade do estomago – elaborar um bom prato, Carlos, opta por uma
função ligada à necessidade da fantasia – contar uma estória. Por isso,
ele se utiliza do conto de Jack London – “A lei da vida”, para desqualificar
Ana. Ele se utiliza, com inteligência, do conto de London para exprimir
valores compositivos da lógica do capital que hoje, mais do que nunca,
desqualifica e exclui àqueles que não se adaptam às novas disposições
sistêmicas. Os fracos – homens e mulheres que não se adequam à lógica
produtivista – merecem morrer (como o ancião cansado).
Enfim, o capitalismo global é intrinsecamente capitalismo mani-
pulatório. Por isso, o poder da ideologia assume dimensões inéditas na
história humana (não é a toa que é Carlos que consegue ser o homem
escolhido para exercer o cargo de executivo da Dekia).

213
Trabalho e Cinema • Volume 3

O método Grönholm é uma dinâmica de avaliação de atitudes


morais das individualidades pessoais de classe. A todo momento, ava-
liam-se comportamentos morais – isto é, atitudes pessoais diante de si-
tuações concretas. É um modo de aferir – em termos qualitativos – não
apenas disposições de personalidades, mas competências morais.
Por exemplo, a exclusão de Enrique é bastante ilustrativa – Ricar-
do, o psicologo da empresa infiltrado no grupo, testa Enrique sem ele
saber. Apesar do aparente intervalo na dinâmica de grupo, transcor-
re ali, naquele momento de diálogo entre Ricardo e Enrique, um teste
moral-psicológico. O que significa que, não há trégua (ou intervalos)
na avaliação dos candidatos concorrentes. Na verdade, o método Grö-
nholm é um método de avaliação continuada, baseado na manipulação
reflexiva das pessoas – cada um por si e todos contra todos.
Num primeiro momento, Ricardo confidencia a Enrique ter sido
líder sindical de uma empresa récem-privatizada na Argentina. Ricar-
do executa um mirabolante jogo de provocações. É um das característi-
cas do jogo da manipulação reflexiva – provocar para testar. Como um
bom ator – qualidade intrínseca de quem manipula, Ricardo assume
o papel de ativista sindical enrustido. Joga palavras de ativismo social,
provocando a opinião de Enrique, verificando como ele se manifesta
diante de afirmações progressistas (“O FMI está sufocando o mundo”
ou ainda: “Mas vai concordar comigo que o mundo está uma merda”).
Depois, a seguir, pressionado por Montse, Enrique delata Ricardo
à titulo de lealdade à empresa. Entretanto, o que desqualifica Enrique
na ótica da empresa é menos sua atitude de delação e mais sua cons-
trangedora vacilação, quando Ricardo, a seguir, se apresentando como
o Informante da empresa, perguntou a ele se sua atitude de delatar o
colega foi correta ou não.
Enfim, Enrique demonstrou ser uma pessoa inconfiável e opor-
tunista. Ao contrário de Júlio, Enrique demonstrou ser um homem
moralmente frágil que se adequa às exigências dadas. É um típico fi-
listeu sem vertebração moral. Ao vacilar, demonstrou ser moralmente
incompetente. Não assumiu pra valer, sob pressão extrema, sua lealda-
de com a empresa..

214
O mundo do trabalho através do cinema

Na ordem do capital, exige-se cada vez mais competência moral


– isto é a capacidade de assumir (e afirmar), sem vacilação, valores mo-
rais da ordem burguesa. Portanto, Enrique se desqualifica não quando
delata o coleta concorrente, mas quando vacila em afirmar que o que
fez foi expressamente correto. Não basta apenas acreditar, mas sim,
assumir plenamente a responsabilidade. Eis o sentido da competência
moral.
Assim, o que está em jogo é não apenas o grau de percepção da
lealdade à empresa, mas a capacidade de sustentá-la moralmente. Na
verdade, o capital busca pessoas moralmente competentes para execu-
tar, com firmeza seus atos imorais. No mundo da lógica insana, a firme-
za moral – por incrível que pareça – é uma qualidade apreciável para
a consecução da imoralidade sistêmica. Ricardo tenta identificar em
Enrique elementos de competência moral – isto é, a crença firme em
algo – nem que seja protestar contra o FMI.
Sob a temporalidade histórica de sua crise estrutural, o capital
exige dedicação exclusiva – inclusive no plano moral. As personas do
capital tendem a adotar atitudes fundamentalistas. A “captura” da sub-
jetividade do trabalho vivo pressupõe incorporar – inclusive no espí-
rito – o horizonte cognitivo-emocional do capital, não se permitindo
sequer reconhecer o Outro como ente existente. Enfim, Enrique deveria
ser firme em contestar a greve, evitando, portanto, entender os motivos
dos grevistas. Ele diz que “entende os motivos, mas não está de acordo.”
Ora, como executivo do capital. não deveria se permitir a se colocar no
lugar daqueles que contestam o mundo. Ele vacila – como todo equili-
brista. Não tem a personalidade firme exigida pela empresa. Por isso,
Ricardo é categórico: “Nesse momento, não preenche o requisito para
o cargo.”
Ricardo percebeu, de imediato, o caráter vacilante de Enrique:
“Você é o que chamo de equilibrista”. Diz: “Não entra em greve, mas
pede o dia livre. E assim, fica bem com todo mundo. Diante dos em-
pregados, posa de chefe progressista e diante dos chefes, de homem
sensato que quer evitar o carro incendiado.”. Não é que Enrique seja um
aproveitador ou hipócrita, o que exigiria dele certa argúcia mental. Mas

215
Trabalho e Cinema • Volume 3

Enrique é um mero equilibrista moral, que para se preservar acende


uma vela a Deus e outra ao Diabo.
O jogo da manipulação reflexiva, levado a cabo pelo método Grö-
nholm, implica firmeza de caráter, embora a ordem burguesa hipertar-
dia promova a corrosão de caráter (como observou Richard Sennet).
Talvez, os mecanismos de corrosão de caráter da nova ordem do capital
apenas “limpem o terreno” da velha moralidade burguesa – marcada
ainda por princípios ético-morais rígidos, para semear personalidades
comprometidas intimamente com uma nova moral burguesa adequada
à acumulação flexível/acumulação por espoliação, onde o valor moral
de fidelidade à empresa assume dimensões fundamentalistas. Assim,
diante do fracasso, deve-se culpar a si próprio. A lealdade à empresa,
implica trapacear e delatar o Outro, sem vacilar diante da pergunta cru-
cial se a atitude foi (ou não) correta. Mais importante do que se auto-
humilhar diante da empresa – como fez Enrique – é agir com firmeza
diante de atitudes morais tomadas. Enfim, a “captura” da subjetividade
pelo capital pressupõe uma subjetividade moralmente adequada a ser
“capturada”.
A manipulação reflexiva é constituída por elementos de provoca-
ção. Por um lado, é o jogo da provocação, que instiga e revolve a subjetivi-
dade do homem que trabalha. Por outro lado, é a provocação do jogo, que
possui o sentido de dar caráter lúdico à concorrência voraz que dilacera
as individualidades pessoais de classe.
A utilização do jogo como campo de provocação (e provação) cria
um campo pleno de reflexividade perversa. Ela expõe no microcosmo
da disputa, a lógica do “omni bellum contra omnes” (a luta de todos
contra todos). O último teste do método Grönholm é a provocação pelo
jogo. Ricardo, o Informante da empresa, apenas comanda e assiste os
concorrentes se digladiarem num jogo de palavras que exigem agilida-
de e desenvoltura no domínio de informações sobre temas de futebol,
conhecimentos gerais e economia dos países Espanha, França e Grã-
Bretanha. A mediação ocorre através da troca de bola.
Fernando adota a insígnia da Espanha; Nieves, da França; e Car-
los, da Grã-Bretanha. O jogo equaliza significados e significantes – por

216
O mundo do trabalho através do cinema

exemplo, o tema de “contribuições para a humanidade”, coloca, lado a


lado, Presunto Serrano, guilhotina, Santa Inquisição, Shakespeare, “Dom
Quixote”, “A República”. Sob o jogo da manipulação reflexiva instaura-se
a platitude do valor simbólico. Não há diferenças entre Presunto Serrano
e Shakespeare. Depois, o tema da troca de bola entre os concorrentes é
“Vantagens financeiras”.
No entremear do jogo, Carlos e Nieves provocam Fernando. As
provocações ocorrerem num crescendo, visando exclui-lo da dinâmica
de grupo. Carlos é mais incisivo nas provocações. Apela em sua pro-
vocação para aquilo que é mais caro a Fernando: a auto-estima sexual.
Fernando é o tipo “macho ibérico”, como o chamou Nieves. Por exem-
plo, durante o jogo, Fernando fala em “déficit fiscal”. Carlos rebate: “É
mesmo? Talvez não fiscal, mas físico”. Fernando diz que a Espanha é
uma potência…E Carlos provoca: “Você deve estar se referindo a um
tipo de potência que não tem”. Num certo momento, Fernando está
visivelmente irritado. Carlos diz: “Calma é só um jogo de palavras!”.
Mas prossegue: “Não confundimos ato sexual com olhar pelo buraco da
fechadura.”, ou ainda, “sempre quis ser corretor e acabou punheteiro”.
brinca Carlos com um trocadilho de palavras. Nieves é incisiva: “Está te
chamando de punheteiro”. Fernando a agride com a bola do jogo.
Ao agredir Nieves com a bola, Fernando é excluído. Ele se volta
não contra Ricardo, psicologo da empresa que assiste a tudo, impas-
sível Mas, sim contra seus colegas concorrentes que o provocaram –
Nieves e Carlos. A manipulação reflexiva envolve todos homens e mu-
lheres que concorrem entre si, aceitando as regras do jogo. Além disso,
invisibiliza as personas do capital ou o próprio capital. Cada homens
e mulher, ao invés de se revoltar contra o sistema da manipulação re-
flexiva, volta-se contra o Outro concorrente. É intrínseca à lógica da
manipulação reflexiva, vítimas culpabilizarem vítimas – inclusive a si
– pela sua própria desgraça.
Raivoso e indignado, Fernando vocifera sua crítica à ideologia da em-
presa moderna, imersa na ideologia da responsabilidade social e desenvolvi-
mento sustentável. Carlos e Nieves tornaram-se os mais aptos, segundo ele
porque acreditaram na ideologia do capital: “Acreditaram nessa mentira de

217
Trabalho e Cinema • Volume 3

empresas responsáveis, com decoração japonesa; nessa mentira de empre-


sas democráticas e desenvolvimento sustentável.” E prossegue: “Disseram-
lhes que são os melhores e vocês acreditaram; os mais inteligentes, e vocês
acreditaram; os mais solidários, os mais tolerantes, os mais modernos, in-
clsuive os mais humanos, o que é o cúmulo e acreditaram.”
Enfim, o capital financeiro que articula as teias do capitalismo glo-
bal, alimenta – com pura auto-ideologia – as individualidades de classe
sujeitas à manipulação reflexiva. Com seu “trabalho ideológico”, cria pe-
quenos mitos a respeito de si. Os vencedores aparecem como os melho-
res, os mais inteligentes, os mais solidários, os mais tolerantes, os mais
modernos e o pior – os mais humanos. Ora, o capital fictício, como pro-
duto orgânico da crise estrutural da valorização do valor, é capaz de criar
personalidades fictícias imersas em auto-ilusões ideológicas.
Em sua fala indignada, Fernando ataca a ideologia crucial do capi-
talismo global: a ideologia da grande empresa responsável, democrática,
de gestão toyotista, que investe no desenvolvimento sustentável. Diante
do caos global, não se culpabiliza as grandes empresas, mas apenas in-
dividualidades de classe, homens e mulheres trabalhadores proletários
e – no limite, os Estados-nação, preservando-se, deste modo, a imagem
do mercado e seus operadores (investidores e grandes empresas).
Fernando é o tipo “macho ibérico”, homem conquistador, objetivo
e direto na abordagem sexual. Por exemplo, ousou encontrar–se com
Nieves no banheiro e aborda-la com objetividade: “Passei o dia queren-
do falar com você a sós. E não achei ocasião melhor.”. Pode-se dizer que
Fernando não manipula as mulheres – ele se impõe com franqueza,
tendo inclusive auto-consciência de sua canalhice. No filme Fernando
demonstra ter personalidade autocrática, dominando pela força (por
exemplo, assume o papel de “militar” no teste do abrigo anti-nuclear).
Apesar disso, ele é capaz de expressar generosidade humana com cole-
gas concorrentes como Júlio. É um homem tosco, mas firme de opinião
(ao contrário, por exemplo, de Enrique).
Fernando não faz o tipo jovem yuppie “globalizado” (como Car-
los) – inclusive não chega a dominar idiomas, Talvez no mundo da
manipulação reflexiva, Fernando seja um velho “dinossauro” que não

218
O mundo do trabalho através do cinema

possui a agilidades (e desfaçatez) dos jovens “predadores” - flexíveis e


velozes. Ao contrário, dos sujeitos/agentes da manipulação reflexiva,
Fernando não dissimula sua canalhice. Ele é personalidade antípoda de
Carlos (e Nieves é a versão feminina de Carlos).
Por ser uma jovem mulher, Nieves é o objeto de obsessão sexual de
Fernando, o velho predador. Mas Nieves é uma mulher moderna, que foge
dos velhos predadores. sem deixar, é claro, de “manipula-los” com sua na-
tureza graciosa, principalmente no caso deles serem colegas concorren-
tes (por exemplo, no banheiro, ela se deixaria ser seduzida por Fernando,
para frustra-lo, logo a seguir, terrivelmente, deixando-o literalmente na
mão. Disse: “Termine sozinho”. Ele retruca: “Maldita piranha!”).
A cena de Fernando e Nieves no banheiro é sintomática das ati-
tudes antípodas entre eles. Por um lado, Fernando é o “macho ibérico”,
ousado e galanteador, que busca seduzir a jovem mulher. Enquanto
Fernando assume – seja aonde for - seu desejo de predador sexual.
Nieves, renunciou ao desejo de maternidade em prol da carreira profis-
sional. Além disso, no filme, Fernando é um dos poucos personagens
que é capaz de expressar opiniões criticas sobre o mundo social em que
vive (o que Nieves – como Carlos – são incapazes de fazer). Por exem-
plo, é Fernando que observa que seria ruim se descobrisse que hoje
tem câmeras no banheiro, porque o banheiro é, segundo ele, “o último
lugar da empresa onde podemos ser nós mesmos. Onde podemos tirar
o disfarce.” Nieves não entende o sentido crítico dado por Fernando
e diz: “Quer dizer a roupa?”. Entretanto, o verdadeiro disfarce não é a
roupa, que podemos tira-la quando nos aprouver., mas sim os modos
de ser – pensar e sentir – que correspondem aos interesses do capital
como sistema de controle sócio-metabólico. O banheiro da empresa é
o lugar onde confessamos nossas inquietações e angústias diante do
controle social dissimulado do capital. É o espaço possível de sermos
nós mesmos – como diz Fernando. Entretanto, sob a manipulação re-
flexiva, este espaço de resistência pessoal está minado pela presença do
olhar vigilante do Outro como próximo estranhado.
No filme, o casal Carlos e Nieves representam o núcleo humano-
afetivo dilacerado pela roda-viva do capital, verdadeira máquina de

219
Trabalho e Cinema • Volume 3

moer sonhos pessoais. Há alguns anos viveram um sonho pessoal de


afetividade mútua. Durante um Congresso na Tunísia, na Semana San-
ta de 2003, encontraram um verdadeiro paraíso emocional - tornaram-
se amantes à beira da praia e construíram um castelo de sonhos pesso-
ais. Carlos relembra os sonhos passados: “Lembra-se da noite na praia?
Se fizéssemos o que dissemos, hoje viveríamos na África.” E ela: “Sim,
na beira do mar. Em uma choupana, de onde esticaria o pé e tocaria na
água”. Carlos diz: “Seria ótimo. E pensamos em abrir um restaurante
lá, não?. Para ganhar algum dinheiro. Porque íamos ter muitos filhos e
teríamos que alimentá-los. É verdade, um montão de filhos africanos.
Um time de futebol. Foi legal sonharmos juntos”.
Nieves é uma mulher moderna, personalidade fictícia imersa
em seus sonhos particularistas. Para ser o que é, teve que sacrificar
sonhos pessoais de afetividade mútua. Ao encontrar Carlos, ela diz,
de imediato: “É uma pena que nos tenhamos encontrado aqui, não?
Porque não me resta alternativa senão vence-lo.” É a jovem mulher
que busca se afirmar através da carreira profissional. Utiliza a beleza
pessoal como mero meio de sobrevivência na selva do mercado – é
sintomática que a primeira cena em que ela aparece no filme, nas ima-
gens da abertura, ela está se maquiando.
Foi Nieves que abandonou Carlos – talvez tenha constatado na-
quele romance, um perigo à sua carreira profissional. É a mulher prisio-
neira dos valores do capital. Por exemplo, mora em Madri, mas como
ela diz, “não tem tido tempo para curtir esta cidade”. E arremata: “Não
paro de trabalhar”. Talvez, Nieves tenha vindo de família humilde que
progrediu a duras penas através de seus próprios esforços pessoais. Por
ser mulher, utiliza-se de seus atributos naturais para galgar posições
profissionais. Na dinâmica de grupo para para seleção do cargo execu-
tivo da Dekia, Nieves demonstrou ser a mais dura – por exemplo, foi
ela que acusou Júlio de trair a empresa. Foi ela que provocou Fernando,
entregando-se a ele no banheiro e depois frustrando-o. Mais adiante, a
frustração de Fernando, o “macho ibérico”, o conduziria a sua expulsão
da dinâmica de grupo.

220
O mundo do trabalho através do cinema

Numa das cenas finais, após a eliminação de Fernando, Carlos e


Ricardo, o psicologo da empresa, conversam no banheiro. Ele explica
a Carlos a natureza do método Grönholm. Como só restaram Carlos e
Nieves, um dos dois deve ser o escolhido para ocupar o cargo de execu-
tivo da Dekia. Na verdade, Ricardo e Montse, a secretaria - a outra psi-
cologa da empresa = “armaram” para Carlos e Nieves uma arena onde
os dois pudessem demonstrar sua capacidade de perversidade mútua.
Torna-se necessário provocar Carlos, ex-amante de Nieves, para a pre-
dação derradeira. Assim, Ricardo elabora outra farsa. Diz ele: “O certo
é que o emprego é dela, Carlos. Neste momento, eu deveria estar di-
zendo ‘adeus, obrigado por ter vindo, entraremos em contato.’ E não é
só porque Montse tem certeza. Uma mulher pode ser ótima psicologa,
mas sempre decide por outra mulher. É que Nieves pontuou melhor
que você nas provas, esta é a verdade.”
Ora, não é que Ricardo quer mandar Carlos embora – pelo contrá-
rio, quer prepara-lo para provocar Nieves no limite. Cria-se mais uma
situação de farsa. Por isso, diz: “Fiz um acerto com Montse. E vamos lhe
dar uma última oportunidade.” E exorta Carlos a “destruir” Nieves. Diz
Ricardo: “Quero que entenda que abriram uma exceção porque eu in-
sisti. Se não conseguir destrui-la, o emprego é dela.” Carlos está perple-
xo. Pergunta: “Mas como destrui-la?”. E Ricardo diz: “Isso é com você.
Tive que brigar por isso. Não vá falhar. Tem 15 minutos.”
É interessante destacar, na conversa entre Carlos e Ricardo no ba-
nheiro, o seguinte: Carlos pergunta: “E de onde vem esse ‘método Grö-
nholm”? Ricardo diz: “De lugar nenhum. Mas soa bem, não?”. De fato, o
“método Grönholm”, como o capitalismo, incorpora em seu micro-me-
tabolismo social, elementos de farsa. Por exemplo, o sistema capitalista
é capaz de prometer um mundo de palavras que soam bem, mas que
não se realizam em lugar nenhum. O método Gronholm possui esse
nome apenas para soar bem, mas é a mera aplicação – na dinâmica de
grupo – de práticas sociais da manipulação reflexiva.
Os psicólogos da Dekia apenas levaram às últimas conseqüências,
a lógica social do capitalismo manipulatório, com a forma-mercadoria
se exacerbando – isto é, ampliando-se e intensificando-se por conta da

221
Trabalho e Cinema • Volume 3

vigência da crise estrutural do capital e do complexo de reestruturação


capitalista das últimas décadas (neoliberalismo e reestruturação produti-
va). Ao ser colocado como centro articulador da dinâmica social, o mer-
cado deslocou o homem e colocou as coisas em seu lugar. A coisificação
do homem propiciou a disseminação de formas de manipulação reflexi-
va, onde um homem dilacera o outro – de forma perversa. Na verdade, o
capitalismo global apenas explicitou, intensificou, ampliou e exacerbou
conteúdos latentes da forma social capitalista, vigentes, em maior ou me-
nor proporção, desde os primórdios da modernidade do capital.
O método Grönholm busca verificar como individualidades pes-
soais de classes que pleiteiam cargo como personas do capital, lidam
com as adversidades. Ainda na cena do diálogo no banheiro, Ricardo
diz para Carlos: “Queríamos ver como se sairia em uma situação adver-
sa”. Por isso, a construção de uma dinâmica de grupo que incorporasse
elementos do sócio-metabolismo capitalista. Ora, naquela sala de ava-
liação do Departamento de Pessoal da Dekia temos um microcosmo
do mundo burguês. O capitalismo global é, em si, o sistema social da
adversidade. Por isso, a importância de uma habilidade cognitivo-com-
portamental como a resiliência que significa a capacidade do homem
burguês em lidar com adversidades do mundo social – principalmente
nos locais de trabalho.
O método Grönholm busca verificar se o candidato é uma pessoa
resiliente, isto é, pessoa capaz de vencer as dificuldades, isto é, os obs-
táculos, por mais fortes e traumáticos que elas sejam. A resiliência é um
atributo de personalidade, uma qualidade humano-pessoal que tende a
ser apropriada pelas empresas como input da prática de gestão.
A capacidade de vencer adversidades – isto é, a resiliência - é um
traço humano das individualidades pessoais. Nesse caso, a adversida-
de pode ser desde um desemprego inesperado, a morte de um parente
querido, a separação dos pais, a repetência na escola ou uma catástrofe
como um tsunami. Mas o que interessa ao capital é se apropriar desta
qualidade pessoal do trabalho vivo oriunda das instâncias vividas da
experiencia social, para suas finalidades particularistas na instância
sistêmica. Incentiva-se a formação de personalidades resilientes ade-

222
O mundo do trabalho através do cinema

quadas às novas exigências da acumulação flexivel. A empresa toyotis-


ta – empresa flexível, difusa e fluida, exige agentes/sujeitos resilientes
capazes de lidar com as adversidades de mercado.
Numa entrevista dada ao site de RH, o consultor de empresas
Eduardo Carmelo, ao ser interrogado sobre qual o perfil do gestor que
melhor se adapta às adversidades, observou:
“O gestor resiliente é aquele que sustenta e aprimora continua-
mente suas organizações e times, com a competência de absorver al-
tos níveis de mudança com o máximo de inteligência, desempenho e
sabedoria possível. Os saberes necessários para o gestor resiliente são:
adaptar-se às mudanças e às situações ambíguas; ser capaz de se recu-
perar de esgotamento, exaustão ou traumas; ser proficiente em man-
ter calma, clareza de propósito e orientação em situações adversas; ter
capacidade para pensar estrategicamente e tomar decisões acertadas
mediante pressão; liderar sistemas de trabalho complexos e adotar
condutas flexíveis na resolução de problemas; contar com a capacidade
de trabalhar eficazmente com os superiores e liderados em problemas
complexos de gestão”.
O perfil da personalidade resiliente descrita acima pode ser ade-
quado não apenas ao gestor de empresas, mas ao comandante de um
exército num campo de batalha. O capital em sua fase de crise estru-
tural, transforma o mundo dos negócios - como a própria totalidade
social – num campo de batalha. Ora, ninguém sai ileso de uma guerra.
É vã ilusão (ou má fé) acreditar que alguém seja capaz de se recupe-
rar de esgotamento, exaustão ou traumas sem danos pessoais e perdas
humanas. Ao transformar a vida cotidiana numa guerra civil perma-
nente, com a manipulação reflexiva se tornando o arsenal privilegiado
das disputas intangíveis, o sócio-metabolismo do capital instaura uma
nova etapa do processo de hominização – a desumanização do homem
como ser génerico – isto é, a barbárie social.
É sintomática que o consultor de empresas Eduardo Carmello
utilize o personagem principal do filme “Gladiador” (de Oliver Stone)
– Maximus - como exemplo do gestor que consegue não apenas su-
perar – mas conviver com a adversidade. E mais: o líder – verdadeiro

223
Trabalho e Cinema • Volume 3

gestor imbuído do espirito toyotista – consegue envolver pessoas com


os propósitos do empreendimento capitalista.
Diz ele: “Acredito que a grande riqueza do líder está na capacidade
de conseguir conscientizar seus funcionários a transformar as adversida-
des em desafios a serem conquistados. No filme Gladiador você nunca vê
Maximus - personagem principal, que pode ser considerado um exemplo
de líder - dizer: - ‘Homens, o dia de hoje será muito difícil. Temos poucos
homens e não sei se vamos dar conta da batalha. A adversidade é gran-
de!’. Sua fala na primeira batalha do filme, aos seis minutos e 33 segundos
do filme é:- ‘Em três semanas estarei fazendo minha colheita. Imaginem
onde estarão, e assim será!- Irmãos, o que fazemos na vida, ecoa na eter-
nidade.’ Maximus oferece um sentido de protagonização, responsabilidade
e significado em cada ação da vida. Para o líder resiliente, o foco não deve
estar na adversidade e sim no propósito e na capacidade de sua equipe em
superá-la. Não há nenhuma necessidade de se criar adversidades, pois já
há muitas exigências e estímulos a serem cumpridos”.
Realmente, como diria Ricardo, psicologo do filme “O que você
faria?”, soa bem as palavras “sentido de protagonização, responsabilida-
de e significado em cada ação da vida”. Entretanto, o jogo de palavras é
um recurso manipulatório que oculta a perversa irracionalidade social
intrínseca à lógica da concorrência como guerra social total.
Nas condições históricas do capitalismo global predominante-
mente financeirizado, cuja dinâmica sistêmica de acumulação é in-
trinsecamente instável, o risco e as adversidades são modos cotidianos
de sua forma de ser. O capitalismo global é a etapa histórica do capi-
talismo planetário como guerra civil permanente. Na medida em que
o mercado se coloca como modo estruturante da dinâmica social e a
forma-mercadoria como nexo da sociabilidade, altera-se o registro da
manipulação (manipulação reflexiva) e o modo de ser da representação
social - a guerra de todos contra todos torna-se o motivo do microcos-
mo social, permeado de disputas intangíveis
Enquanto Ricardo incita Carlos a “destruir” Nieves, para poder
ficar com o cargo de executivo da Dekia, Montse procura persuadir
Nieves a adotar uma última estratégia para tirar Carlos da jogada: “Tem

224
O mundo do trabalho através do cinema

que convence-lo a abandonar a prova”. Enfim, ela deve encontrar um


jeito para fazer Carlos ir embora. Esta última prova é o embate final
entre os dois últimos candidatos. Mais uma vez, o jogo da manipula-
ção reflexiva, organizado por Ricardo e Montse, se impõe – tanto um
quanto o outro buscam convencer os dois candidatos que há ainda uma
chance, apesar da vantagem do adversário. Montse diz que parece que
Carlos pontuou melhor que Nieves. Mas Ricardo disse o mesmo para
Carlos – que Nieves está com vantagem em pontos). O que procura é
utilizar o recurso da vantagem do adversário para emular o concorrente.
E a última chance que ainda existe. O prêmio é o emprego, o tão cobiça-
do cargo de executivo da Dekia.
Uma das imagens da cena final do filme “O que você faria?” é
significativa da derrocada humana sob o capitalismo da manipulação
reflexiva: Nieves decaída na poltrona, tendo, como primeiro plano, a
mesa e as telas de monitores da Dekia (interface virtual da empresa que
acusava as tarefas para a dinâmica de pessoal e indicava quem devia ser
excluído da concorrência pelo emprego na Dekia_.
Apesar de Montse sugerir que a batalha da concorrência é sem-
pre duas vezes mais difícil para as mulheres, estudos indicam que o
estresse é menos agressivo nas mulheres. Por exemplo, segundo a Dra.
Shelley Taylor psicóloga e professora do departamento de psicologia e
sociologia da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, enquanto os
homens sob estresse experimentam episódios de violência que podem
conduzi-los a cometer homicídios/suicídio, dependência de substân-
cias psicotrópicas e a reações cardiovasculares nocivas, nas mulheres
o estresse produz maior relaxamento e cria necessidades de um maior
número de relações sociais.
Na verdade, existe um fundo hormonal para a conclusão da Dra.
Taylor: quando o organismo enfrenta situações de tensão, a oxitocina é
gerada da mesma maneira que a adrenalina. No caso das mulheres, a
geração de oxiticina é ampliada graças à ação dos estrógenos, enquanto
nos homens, tende a ser inibido pelos hormônios masculinos. Pesso-
as e animais com altos níveis de oxitocina são mais calmos, relaxados

225
Trabalho e Cinema • Volume 3

e menos ansiosos. Em outras palavras, o hormônio induz a condutas


maternas e sociais.
Nieves está estressada. Aparentemente, como mulher, ela parece
mais sensível às batalha psicológica pelo emprego. Montse a encontra
desanimada na poltrona da sala. Pergunta se está bem. Oferece uma
aspirina. É nesse momento que observa: “Para nós [mulheres], é sempre
duas vezes mais difícil.” E incentiva: “Mas você esteve incrível o dia in-
teiro, em todas as provas.”
Mas sob a manipulação reflexiva, a situação de estresse assume
dimensões qualitativamente nova. Ela mobiliza (e revolve) em homens
e mulheres as instâncias sócio-afetivas, criando, deste modo, situações
de tensão que envolve as relações sociais, frustrando, no caso das mu-
lheres, as condutas maternas e sociais.
Ora, desde o começo da dinâmica de pessoal, Nieves assume o pa-
pel de loba voraz – por exemplo, ela acusa Julio de trair a empresa. Fica
calada quando Ana é “trucidada” pelos argumentos de Carlos; manipu-
la o desejo de Fernando, frustrando-o quando o abandona no ápice do
intercurso sexual no banheiro (“Termine sozinho”, diz ela). Além disso,
encontra como concorrente, Carlos, ex-amante, com quem tivera há
alguns anos, um sonho pessoal de afetividade. Portanto, Nieves sente
uma excessiva carga de estresse que se manifesta na batalha final.
A batalha final ocorre entre Carlos e Nieves. Eles representam o
núcleo humano-afetivo do grupo, tendo em vista que possuem uma
história de sonho pessoal de afetividade em comum. Na verdade, é o
cúmulo da perversidade mútua colocar ex-amantes que ainda preser-
vam laços de afetividade, para se digladiarem na arena numa luta de
vida e morte em prol de uma vaga de emprego.
Temos o jogo da encenação final conduzida por Carlos, que toma
a iniciativa de inquirir Nieves sobre as situações constrangedoras que
ela viveu com Fernando. Na verdade, à titulo de expressar apoio moral
à Nieves, buscando ajudá-la, Carlos quer apenas estressa-la ainda mais,
fazendo-a relembrar momentos de tensão. Nieves reage, exclamando:
“Não quero falar nisso, Carlos”. Ele diz: “Claro. Eu só queria ajudá-la.
Se precisar desabafar…”. Mas Nieves está preocupada com a situação

226
O mundo do trabalho através do cinema

de derrotar o ex-amante: “Um de nós terá que perder agora”. Carlos já


identificou nela o “calcanhar de Aquiles”: os sentimentos afetivos liga-
dos à carência maternal.
Ao colocar Carlos e Nieves como os “gladiadores” finalistas da
dinâmica de grupo, os psicólogos da Dekia souberam levar às últimas
conseqüências um dos mecanismos da manipulação reflexiva: o jogo de
perversidade mútua. Naquele microcosmo, deve-se dilacerar à exaus-
tão, laços de afetividade mútua, expressão-mor da dimensão humano-
genérica. São os sonhos pessoais de afetividade mútua que lastreiam as
experiencias de enamoramento e amor que contém os elementos mais
plenos de genericidade humana. Assim, ao colocarem Carlos e Nieves
como gladiadores finais da batalha pelo emprego, os psicólogos da
Dekia expuseram o sentido de barbárie social contido no capitalismo
da manipulação reflexiva.
Carlos recebe de Ricardo a missão de “destruir” Nieves, eliminan-
do-a da dinâmica de grupo. Entretanto, há entre os dois uma história
de amor. É este lastro de sentimento que Carlos irá manipular para
utiliza-lo contra Nieves.
Os sentimentos são matéria privilegiada da manipulação reflexiva,
Primeiro, Carlos aparece com a solicitude cuidadosa de quem se pre-
ocupa com Nieves: “Se eu puder ajudá-la em algo, se quiser desabafar.
Que escroto o tal de Fernando, não? Sujeito mais violento. Fiquei com
medo.” Nieves – que parece estar transtornada com todo o processo de
predação do Outro, além de angustiada em ter que enfrentar, na reta
final, o ex-amante, diz: “Acha mesmo que é [Fernando] um canalha?”.
Na verdade, Nieves possui, nesse momento, a clara consciência de que
no jogo cruel da concorrência deixamos de ser o que somos – enfim,
nos alienamos de nós mesmos.
Carlos prossegue, rememorando Nieves daqueles momentos do-
lorosos. Eis o ardil de Carlos: “Nieves, quase machucou seu rosto com
uma bolada. Depois falou dos filhos que você não teve, que voce está
sozinha…Talvez tenha visto nisso seu ponto fraco.” Nieves retruca:
“Prefiro não falar nisso”. Eis a questão: Carlos identificou em Nieves
o ponto fraco dela – os sentimentos de maternidade e afeição por ele

227
Trabalho e Cinema • Volume 3

(numa das provas Nieves se disponibilizou a ser a mãe da humanidade


pós-nuclear). A manipulação dos sentimentos humanos é a fronteira
final da manipulação sistêmica do capital.
A título de ajudar Nieves a desabafar, Carlos rememora momen-
tos constrangedores dela com Fernando. Ela retruca: “Não quero falar
nisso, Carlos!”. É um ardil para derruba-la ainda mais. Mas a cartada fi-
nal é Carlos expressar, naquele momento, seu amor por Nieves. Diz ele:
“Adorei reencontrar você, Nieves. Ainda que seja por aqui.” E prossegue:
“Desta vez, não vou deixa-la escapar. Pensei muito em você esse tempo
todo.” Diz ainda: “E nesses três anos, não é que eu tenha sentido falta da
vida que inventamos, mas também não consegui construir nada. O que
disse do africaninho, era verdade? Teria mesmo um filho comigo?” No
íntimo, Carlos apela para o sentimento maternal de Nieves.
Sob pressão sentimental de Carlos, estressada com a dinâmica de
grupo, sem saber como convencer Carlos a abandonar a prova, Nie-
ves numa atitude inusitada, diz para Carlos: “Vamos embora! Vamos
abandonar a prova?”. Carlos fica desconcertado: “Agora?”. Nesse mo-
mento, ela faz um desabafo pessoal no estilo de Fernando”. Diz ela: “Já
provamos para eles o que valemos. Vamos desistir agora. Se quiserem
escolher um de nós, que escolham.” E prossegue: “Quanto mais vão nos
avaliar? Até quando teremos que competir? Até que arranquemos os
olhos um do outro? Sei que são muitos candidatos e só há uma vaga.
Entendo que seja necessário competir. Estou até disposta a aceitar que
a vida é assim. Tudo bem, se é preciso ser um lobo, eu sou.” E expressa
que o sentimento afetivo que sente por Carlos é seu ponto fraco: “Com
os outros, não me importava competir, mas com você…com você, não
quero, não quero. O que quero é voltar àquela praia, tomar um porre e
sonhar que montamos um restaurante e moramos lá.”
É claro que a estratégia da manipulação reflexiva inscrita no filme
“O que você faria?”, cria uma névoa de insinceridade no discurso do Ou-
tro como próximo. Na verdade, não há Próximos, mas apenas Outros
concorrentes. O que prevalece é uma “cegueira branca” onde uns não
reconhecem o Outro como sujeitos humanos, mas apenas obstáculos

228
O mundo do trabalho através do cinema

a serem superados. Talvez Nieves esteja – como Carlos – jogando com


sentimentos afetivos.
Finalmente, Nieves convida Carlos a sair. Ele vacilante, a acompa-
nha. No elevador, ela exclama: “Como não percebi! Também estabele-
ceram um objetivo para você, não é?”. Transtornada, pergunta a Carlos:
“Tudo que me disse era para alcançar o seu objetivo, certo? Quando me
perguntou sobre o africaninho, queria saber mesmo se eu teria tido
filho com você ou só foi para ganhar a prova? Você ainda tem tempo.
A vaga ainda pode ser sua. Tenho que fazer algo para que a consiga?
O que tenho que fazer, Carlos?”. Na verdade, Nieves se rendera. Ela sai
do elevador. Mas Carlos permanece lá. Fora, ela acompanha o elevador
subindo até o andar do DP da Dekia. Carlos ganhara a prova.
Ao perguntar a Carlos, “Tudo que me disse era para alcançar o
seu objetivo, certo?”, Nieves apreendera a lógica perversa da manipula-
ção reflexiva, que reduz a interação humana à práticas instrumentais,
onde o Outro como próximo é mero meio para seus objetivos particu-
laristas. Carlos soubera manipular de forma magistral, a afetividade de
Nieves, apreendendo a carencia de maternidade como seu “calcanhar
de Aquiles”.
Nieves possui um carecimento radical – a maternidade. Entre-
tanto, ele é incapaz de ser realizado em virtude de seu modo de vida.
Ela tornou-se uma mulher escrava do trabalho e da lógica sistêmica do
capital. “Capturada” pela lógica da competição e obsessão pela carreira
profissional, Nieves renunciou à maternidade. Entretanto, aquele care-
cimento radical está lá – pulsando, à disposição para ser manipulado.
Carlos soube apreende-lo e o manipulou a seu bel-prazer.
Carecimentos radicais são necessidades/carecimentos despertados
nas individualidades pessoais, no limite da alienação capitalista, e que,
pela sua natureza, são incapazes de serem incorporados plenamente
pelo sistema do capital. Eles são necessidades humanas inelimináveis
“negadas” pelo capital. Ora, o que o capital não consegue eliminar, ele
tende a manipular. Por exemplo, no caso das mulheres, a maternida-
de é uma necessidade natural. Entretanto, ela jamais será plenamente
realizada nas condições da mulher “capturada” pelo modo de vida à

229
Trabalho e Cinema • Volume 3

serviço dos valores do mercado e roda-viva do trabalho estranhado.


Por isso, torna-se – no caso de Nieves – um carecimento radical.
Nas cenas finais do filme “O que você faria?”, percebemos que
existe sim, uma câmera que vigia todos os ambientes da empresa
Dekia. Ela acompanha a movimentação de Carlos e Nieves que se re-
tiram da sala do Departamento de Pessoal e se dirigem ao elevador.
Talvez Ricardo e Montse estejam monitorando os candidatos concor-
rentes, acompanhando deste modo, a “batalha final”. Ela focaliza a ex-
pressão de Nieves acompanhando a subida do elevador (com Carlos)
até o andar do DP.
Nieves renuncia à vaga para Carlos. É seu gesto quase maternal,
rendendo-se àquele que soube jogar de forma magistral até o final. A
câmera de video possui o “olhar” de uma persona virtual do capital. Sob
o capitalismo da manipulação reflexiva, proliferam formas de controle
midiático que visam “capturar” os mínimos gestos humanos. É claro
que as câmeras de vigilância exercem uma função de segurança pública.
Entretanto, sob o capitalismo manipulatório, sob certas condições, cum-
prem o papel de enquadrar gestos pessoais à lógica sistêmica. Sob o olhar
vigilante da câmera, não podemos tirar o disfarce e ser nós mesmos.
Ao sair da torre empresarial da Dekia, Nieves encontra um am-
biente de total desolação nesta rua central de Madri. É a expressão ple-
na do mundo caótico do capitalismo global. Enquanto os candidatos
a um cargo de executivo da Dekia se digladiavam lá dentro, cada um
deles imerso em seus interesses particularistas, lá fora, uma massa-
multidão de ativistas anti-globalização, em prol de interesses coletivos,
enfrentavam a policia que garantia a segurança do encontro de cúpula
do FMI e Banco Mundial na capital espanhola.
Na verdade, o filme “O que você faria?”, soube articular, a dialética
candente entre o microcosmo das batalhas particularistas sob o capita-
lismo neoliberal, onde domina a manipulação reflexiva; e o macrocos-
mo do cáotico capitalismo global, permeado de intensas (e ampliadas)
contradições sociais – uma delas sendo a contradição entre os careci-
mentos radicais e a relação-capital em sua forma sócio-metabólica

230
O mundo do trabalho através do cinema

Capítulo 5

“A Agenda”

Laurent Cantet
(2001)

N o filme “A Agenda”, de Laurent Cantet, explicita-se, com vigor, di-


mensões candentes do capitalismo como farsa. É sob o capitalis-
mo global que o sistema sócio-metábolico do capital expõe, mais do
que nunca, suas intensas (e ampliadas) contradições sócio-históricas.
O filme de Laurent Cantet nos sugere através de sua narrativa instigan-
te uma série de elementos preciosos para uma reflexão crítica sobre o
metabolismo social do trabalho estranhado nas condições históricas do
capitalismo global. Todos nós somos um pouco Vincent, personagem
principal do filme – eis o sentido da análise critica do filme capaz de
nos propiciar o cinema como experiencia (auto)critica. Talvez através
da narrativa de Cantet possamos apreender a natureza íntima da pre-
cariedade do trabalho no capitalismo global.
O capitalismo global é a etapa do capitalismo mundial na épo-
ca da crise estrutural do capital. Explicitam-se de forma candente as
contradições sistêmicas irremediáveis da “civilização do capital” em
seu período de decadência histórica. O verdadeiro sentido da idéia de
crise estrutural do capital não está na incapacidade do sistema mundial
produtor de mercadorias se expandir ou fazer crescer a produção de
riqueza abstrata, mas sim na aguda explicitação de sua incapacidade
objetiva em realizar as candentes promessas do processo civilizatório
como pressuposto negado do desenvolvimento humano-histórico.
Desde seus primórdios, o desenvolvimento do capitalismo his-
tórico caracterizou-se pela candente dialética entre promessas e frus-
tração. Por exemplo, na Revolução Francesa de 1789, com seus ideais

231
Trabalho e Cinema • Volume 3

de Igualdade, Fraternidade e Liberdade, a burguesia se apropriou (e


perverteu) ideais de emancipação humana. Foi o caso clássico de pro-
messa e frustração (ou de revolução e contra-revolução), traço essencial
da ontologia politica das revoluções burguesas. Mas a maior explicita-
ção contraditória do capital ocorre no desenvolvimento da base técnica
do sistema social produtor de mercadorias que, ao mesmo tempo que
reduz as barreiras naturais, oprime homens e mulheres em relações
sociais estranhadas fetichizadas.
Karl Marx conseguiu atentar para esse traço estrutural do meta-
bolismo social do capital, onde a promessa de emancipação social se
frustra e interverte-se em sua própria negação. No discurso pronun-
ciado na festa de aniversário do jornal cartista “People’s Paper”, em 14
de abril de 1856, ele observou, com perspicácia genial, a natureza do
espírito da temporalidade histórica do capital:
“Hoje em dia tudo parece levar em seu seio a sua própria contra-
dição. Vemos que as máquinas, dotadas da propriedade maravilhosa de
reduzir e tornar mais frutífero o trabalho humano, provocam a fome e
o esgotamento do trabalhador. As fontes de riqueza recém-descobertas
se convertem, por artes de um estranho maleficio, em fontes de priva-
ções. Os triunfos da arte parecem adquiridos ao preço de qualidades
morais. O domínio do homem sobre a natureza é cada vez maior; mas,
ao mesmo tempo, o homem transforma em escravo de outros homens
ou da sua própria infâmia. Até a pura luz da ciência parece só poder
brilhar sobre o fundo tenebroso da ignorância Todos os nossos inven-
tos e progressos parecem dotar de vida intelectual as forças materiais,
enquanto reduzem a vida humana ao nível de uma força material bru-
ta. Este antagonismo entre a indústria moderna e a ciência, de um lado,
e a miséria e a decadência, de outro; este antagonismo entre as forças
produtivas e as relações sociais de nossa época é um fato palpável, es-
magador e incontrovertível.”
No Manifesto Comunista de 1848, Karl Marx e Friedrich Engels
conseguiram apreender uma dimensão ontológica da crise do capita-
lismo. Elas são crises de superproprodução que possuem um sentido irô-
nico – a forma social do capital é incapaz de conter a riqueza produzida

232
O mundo do trabalho através do cinema

em demasia. Talvez a “civilização do capital” seja a primeira civilização


histórica que entra em crise não em virtude de uma situação de es-
cassez, mas sim, de uma situação de abundância. As crises capitalistas
ocorrem porque, como observam Marx e Engels, “a sociedade possui
demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada
indústria, demasiado comércio”. É a suprema ironia do capital.
Nesta pequena passagem do genial opúsculo político de 1848,
Marx e Engels trataram em seus contornos histórico-ontológicos da
natureza da crise do capitalismo. Cada crise do sistema do capital reite-
ra – quase como um “surto neurótico” – as convulsões críticas que são
intrínsecas à natureza do modo de produção capitalista: “Há dezenas
de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a história
da revolta das forças produtivas modernas contra as atuais relações de
produção e de propriedade que condicionam a existência da burguesa
e seu domínio. Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-
se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade
burguesia. Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa
de produtos já fabricados, mas também uma grande parte das próprias
forças produtivas já desenvolvidas”.
E logo a seguir, Marx e Engels salientam a novidade histórica des-
ta convulsão civilizatória intrínseca à forma de ser do capital: “Uma
epidemia, que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo,
desaba sobre a sociedade - a epidemia da superprodução. Subitamente,
a sociedade vê-se, reconduzida a um estado de barbárie momentânea,
dir-se-ia que a fome ou uma guerra de extermínio cortaram-lhe to-
dos os meios de subsistência; a indústria e o comércio parecem ani-
quilados. E por quê? Porque a sociedade possui demasiada civilização,
demasiados meios de subsistência, demasiada indústria, demasiado
comércio. As forças produtivas de quê dispõe não mais favorecem o
desenvolvimento das relações de propriedade burguesa; pelo contrário,
tornaram-se por demais poderosas para essas condições, que passam a
entravá-las; e todas as vezes que as forças produtivas sociais se libertam
desses entraves, precipitam na desordem a sociedade inteira e amea-
çam a existência da propriedade burguesa.”

233
Trabalho e Cinema • Volume 3

Uma “crise de superprodução” é ironicamente, um paradoxo his-


tórico. É o supra-sumo da dialética (Heráclito de Éfeso, o pai da dia-
lética antiga, diria que o capitalismo “vive de morte, morre de vida”).
Na verdade, são nos momentos de crises que a desvela-se a farsa do
capitalismo. Elas explicitam o caráter irracional do modo de produção
capitalista. A epidemia de superprodução provoca um estado de bar-
bárie que, hoje, sob a crise estrutural do capital, com a cronificação da
epidemia de superpodução, tende a tornar-se não um estado momentâ-
neo, mas sim, um estado permanente de barbárie social.
Finalmente, Marx e Engels decifraram a saída capitalista para
suas crises paradoxais – a destruição violenta das forças produtivas.
Proferidas em 1848, elas ressoam hoje, em 2009, quando o capitalismo
global vive a maior crise da história moderna. Dizem eles: “O siste-
ma burguês tornou-se demasiado estreito para conter. De que maneira
consegue a burguesia vencer essas crises? De um lado, pela destruição
violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro lado, pela
conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos anti-
gos. A que leva isso? Ao preparo de crises mais extensas e mais destrui-
doras e à diminuição dos meios de evitá-las as riquezas criadas em seu
seio”. (os grifos são nossos).
A crônificação das epidemias de superprodução e a instauração do
estado permanente de barbárie social colocam como necessidade sistê-
mica de manutenção e reprodução do capitalismo global, o aprofunda-
mento – e agudização – do estranhamento e fetichismos sociais.
Numa situação de crise estrutural, a pletora de fetichismos sociais
tende a se aprofundar, pois as contradições são dilacerantes, além de
virem a tona elementos de força. Na verdade, a reprodução do sistema
mundial articularia elementos de força e elementos sistêmicos, com o
fetichismo – a forma capitalista do estranhamento primordial - tendo
um papel central.
Mas a dinâmica ontológico-histórica de promessas e frustrações e
o traço irônico de “morrer de vida” – o verdadeiro sentido da crise de ci-
vilização, conteúdo essencial das crises de superprodução que marcam
o desenvolvimento capitalista dos últimos séculos – possuem um outro

234
O mundo do trabalho através do cinema

componente essencial que perpassa e constitui os elementos anteriores:


o capitalismo como farsa. Enfim, estamos diante de um sistema social
que se reproduz dissimulando/ocultando/deslocando suas contradi-
ções objetivas intrínsecas, constituindo, deste modo, um metabolismo
social impregnado da miséria da farsa.
Por exemplo, incapaz de realizar suas promessas (e ideais) de in-
dividuação, o capitalismo elabora a farsa do individualismo, que é a
degradação das individualidades pessoais em relações particularistas
de mercado. Assim, a ideologia capitalista é, em sua essência, a ideolo-
gia-farsa, que embora contenha elementos de verdade em sua em sua
forma fenomênica, essa promessa de verdade tende a ser negada – no
decorrer do processo social – pela forma essencial de relação-capital.
Assim, a verdade da farsa do individualismo é a promessa de in-
dividuação, que tende a ser negado pelo próprio desenvolvimento criti-
co do metabolismo social do capital. A ideologia-farsa como percepção
contingente pode ser expressa no ditado popular que diz: “nem tudo
que parece, é”.
A dinâmica social e a vida cotidiana na sociedade burguesa estão
permeadas da forma farsesca de ser das relações sociais. É o fetichismo
da mercadoria que é o nexo essencial constitutivo da ideologia como
farsa. N´O Capital, Marx observava que a mercadoria parece algo pe-
rene, mas que oculta, por conta do fetichismo que lhe é intrínseca, sua
origem como produto da atividade do trabalho social. Enfim, a mer-
cadoria é um embuste e o logro primordial da sociedade burguesa. Na
medida que a forma-mercadoria tende a permear as relações sociais no
capitalismo histórico, ela torna a sociabilidade burguesa um complexo
de relações sociais impregnadas de farsa.
Por isso, a farsa como traço sócio-metabolico das relações sociais
no capitalismo global decorre da plena manifestação do fetichismo da
mecadoria. A sociedade global do capital é a sociedade das mercadorias
em sua dimensão planetária. Nos últimos trinta anos, sob a mundiali-
zação do capital e o neoliberalismo, com a vigência do mercado, nunca
as mercadorias impregnaram tanto as relações sociais.

235
Trabalho e Cinema • Volume 3

O que significa que nunca o fetichismo da mercadoria e as formas


estranhadas da vida social tornaram-se tão presentes em nossas vidas.
O impacto deste fato histórico candente sobre o metabolismo social da
modernidade do capital é claro: a disseminação da farsa como ethos bur-
guês, impregnando as relações sociais e as formas ideológicas do capital.
Segundo o Dicionário Aurélio, farsa possui um significado originário
no teatro. É a peça teatral de comicidade exagerada, ação vivaz, irreveren-
te e burlesca, e com elementos de comédia de costume. Outro significado
de farsa, ainda ligado ao teatro, é significar baixa comédia. E vem outro
significado: ato ridiculo, próprio de farsas. Ou ainda coisa burlesca; em-
buste, logro, pantomima. Como exemplo, a frase: “Aquela choradeira foi
uma farsa: estava contentissima”. No mesmo dicionário, farsante é a pessoa
sem seriedade, sem palavra (eis o sentido que buscamos recuperar – o ca-
pitalismo é um sistema social farsesco, isto é, que está impregnado em seu
metabolismo humano-social de elementos de farsa).
No Dicionário Houaiss, a palavra farsa – que se origina em 1505
(ironicamente, nos primórdios do capitalismo moderno), é definida,
primeiro, na acepção do teatro como sendo “pequena peça cômica po-
pular, de concepção simples e ação trivial ou burlesca, em que predo-
minam gracejos, situações ridículas, etc. Na história do teatro, farsa é
a peça de teatro cômico, geralmente curta e de poucos personagens,
em que se inseriam canções (surge no século XIV e adquire maior ex-
pressão nos dois séculos seguintes). O Dicionário apresenta ainda mais
acepções para definir a palavra farsa: narração que provoca o riso; nar-
ração burlesca, risível; comédia de baixo nível; ato grotesco, próprio de
farsa; qualquer coisa de caráter burlesco; ação ou representação que
induz ao logro; mentira ardilosa, embuste.
Eis o sentido preciso que buscamos recuperar: farsa como “ação
ou representação que induz ao logro; mentira ardilosa, embuste”. É o
traço característico da sociabilidade mercantil, imersa na névoa do fe-
tichismo das mercadorias e suas derivações sistêmicas.
A farsa como traço sócio-metabólico do capitalismo histórico – e
que adquire proporções intensas e ampliadas sob o capitalismo global -
impregna em sua dimensão objetiva a dinâmica do sistema social, per-

236
O mundo do trabalho através do cinema

meando a constituição das subjetividades de classe. As individualida-


des pessoais de classe tendem a incorporar como elemento de sua vida
inautêntica, baseada no trabalho estranhado e estranhamento social,
atitudes farsescas. Deste modo, o homem burguês – modelo humano
que impregna a sociabilidade de classe – é um homem farsante.
Na medida em que a vida cotidiana sob a sociedade do estranha-
mento fetichizado não propicia uma vida plena de sentido, mas uma
vida social marcada pela inautenticidade, a farsa tende a impregnar
os construtos ideológicos nas várias instâncias da vida cotidiana. Ele-
mentos de farsa estão nas práticas (e discursos) da política e economia,
trabalho e vida cotidiana, dos discursos religiosos às candentes decla-
rações de amor.
Por exemplo, as novas ideologias educacionais (competência, em-
pregabilidade, empreendedorismo) estão eivadas de elementos farses-
cos, na medida em que expõe na aparência ideais valorativos de reali-
zação humana, mas ocultam, em seu conteúdo essencial, a verdade de
si: são ideologias do capital, que, como relação social fetichizada, tende
a frustrar tais candentes promessas de realização humano-generica (a
competência é impossível no “sistema social da incompetência”, onde
despersonaliza-se a pessoa humana subsumindo-a à máquina da pro-
dução; a empregabilidade oculta a lógica da produção destrutiva de
empregos que caracteriza o capitalismo global; o empreendedorismo
dissimula a heteronomia do trabalho social à lógica dos oligopólios fi-
nanceiros, ocultando que o mercado não é para todos).
O construto ideológico da farsa opera a dialética negativa entre
sonho e realidade. Sob o capitalismo global, que é o capitalismo ma-
nipulatório, as individualidades pessoais de classe estão intensamente
dilaceradas por contradições vivas dentro (e fora) de si. Com o sócio-
metabolimso da barbarie, nunca o núcleo humano-generico esteve tão
ameaçado de desefetivação.
A barbárie social é o verdadeiro conteúdo do capitalismo mani-
pulatório. Ela tende a acirrar as contradições sociais que perpassam a
objetividade e subjetividade de classe. Inquietas e intranqüilas, dilace-
radas pela desefetivação do núcleo humano-generico, do trabalho vivo

237
Trabalho e Cinema • Volume 3

reduzido à força de trabalho, as individualidades pessoais de classes so-


frem – a idéia de “sofrimento” – moral ou psíquico - é um dado objeti-
vo, no sentido da deriva pessoal que atinge, por exemplo, trabalhadores
assalariados submersos na insegurança do desemprego e do trabalho
precário. Estamos diante não de um fato epidemiológico, mas sim de
um fato sociológico da mais alta relevância
Nos últimos trinta anos – o que denominamos de “trinta anos
perversos” do capitalismo histórico – o “moinho satânico” do capital
incitou sonhos como elemento de manipulação social, na mesma me-
dida em que os frustrou irremediavelmente, tendo em vista a base mi-
serável da forma social incapaz de conter as riquezas produzidas por
conta do desenvolvimento espetacular da base técnica.
Por exemplo, a Internet com o ciberespaço significou maior apro-
ximação das pessoas e aquilo que David Harvey denomina “compressão
espaço-temporal”. Ao mesmo tempo, o “diluvio dos Outros” que ocorre
no ciberespaço, tende a explicitar os Outros como meros “Outros feti-
chizados”, ou ainda “Outros-que-não-são-próximos”, mas meros meio
para finalidades particularistas. Sob a sociabilidade burguesa, o am-
biente virtual tende a incitar atitudes farsescas. A compressão espaço-
temporal contribui para o maior giro do capital, mas desterritorializa
identidades humanas e fragmenta laços sociais.
A questão que se coloca neste pequeno ensaio é saber quais as
conseqüências humanas do sistema social da farsa; ou ainda, qual tipo
de humanidade está sendo produzida pela civilização do capital em sua
etapa de crise estrutural.
Com a era da barbárie social que emerge sob o capitalismo glo-
bal, cujo traço essencial é a manipulação – Lukács atentou para isso ao
salientar o conceito de “capitalismo manipulatorio” – o ponto candente
é o aprofundamento do estranhamento social, ou ainda, um estranha-
mento social com “crosta” fetichizada. Portanto, torna-se necessário
uma agenda investigativa que recupera a crítica da vida cotidiana em
sua dimensão inautêntica e a critica da subjetividade burguesa com
seus traços farsescos. Trata-se de um metabolismo social que impregna

238
O mundo do trabalho através do cinema

objetivamente as relações sociais e não meros traços psicológicos (ou


morais) da alma humana.
A “humanidade” do capitalismo global é a humanidade desefeti-
vada. Os sintomas da desefetivação humano-generica são perceptíveis
na dinâmica do capitalismo global por meio dos dispositivos ideoló-
gicos de culpabilizaão da vitima, com o esmagamento da auto-estima
das individualidades pessoais de classe, abrindo espaço interno para
a manipulação sistêmica; e com a resignificação perversa do universo
locucional, artificio sutil de corrosão da linguagem ao estilo do Big Bro-
ther do romance 1984, de George Orwell (Guerra é paz; Liberdade é
Escravidão). O que explica, por exemplo, a perversão minimalista de
ideais valorativos cultivados na “era dourada” do capitalismo fordista-
keynesiano: a garantia do emprego àquele que acumulou capital hu-
mano interverte-se em mera empregabilidade; a inclusão social que se
dava por meio de emprego com carreira profissional e com garantias
de seguridade e previdência social universalista, interverte-se em polí-
ticas públicas focadas em praticas assistencialistas.

Dispositivos psicossociais de manipulação do capitalismo global


“Culpabilização das vitimas”
Resignificaçao perversa do universo locucional

Enfim, trata-se de mecanismos psicossociais do capitalismo glo-


bal que se impõem nas condições da barbárie social. Na verdade, tanto
a “culpabilização das vitimas”, quanto a “perversão do universo locu-
cional” possuem um sentido farsesco – incitam sonhos enquanto meras
ilusões ou embustes – enfim, pura “mentira”.
No “18 Brumário de Luis Bonaparte”, Karl Marx nos apresentou
um traço ontológico da ordem burguesa – repetir o passado como farsa.
É o caso de Luis Bonaparte, que era a farsa de Napoleão Bonaparte. Ob-
servou ele na abertura de seu livro clássico: “Hegel observa, em uma de
suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na

239
Trabalho e Cinema • Volume 3

história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se


de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.”
Logo adiante, ele expressa frases geniais que explicitam dimen-
sões ontológicas da práxis social (e politica): “Os homens fazem sua
própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob cir-
cunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam di-
retamente, legadas e transmitidas pelo passado.” E arremata: “A tradição
de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos
vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se
a si e as coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses
períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente
em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os
nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa
linguagem emprestada.”
Ora, nesse traço ontológico da práxis politica dos homens que fa-
zem sua própria história, há elementos primordiais da atitude farsesca
que constituí o metabolismo social da vida burguesa. Na modernidade
do capital, paradoxalmente, a tradição tende a oprimir como um pesa-
delo, o cérebro dos vivos. A farsa constitui o próprio recurso de apelo
aos “espíritos do passado” – o passado das promessas burguesas glorio-
sas de emancipação social diante do mundo feudal. Por isso, apela-se,
em pleno estado permanente de barbárie social, aos ideais de “Direitos
Humanos” e “cidadania” no horizonte de um “capitalismo inclusivo”. É
a tradição e os espíritos do passado que, como farsa, se apresentam na
dinâmica politica e social do capitalismo global.
O capitalismo do século XX apelou para vários artifícios farsescos,
onde o ideais valorativos do passado são resignificados perversamente
para ocultar, dissimular e desviar a miséria do presente do capitalismo
histórico. De artificio estrutural da vida politica, a atitude farsesca im-
pregna o metabolismo social.
Na medida em que a sociedade burguesa é a sociedade do traba-
lho estranhado, os sujeitos/agentes sociais tendem a perder o sentido de
realidade. É a o processo de desefetivação humano-generico que marca
o trabalho estranhado. Karl Marx, nos “Manuscritos econômico-filosó-

240
O mundo do trabalho através do cinema

ficos” (de 1844), caracteriza como uma das conseqüências cruciais do


trabalho estranhado é a desefetivação do trabalhador. Constitui-se assim,
a desefetivação humano-genérica. Marx utiliza a palavra em alemão “En-
twirklicht”, que significa literalmente “privado de realidade e/ou de efe-
tividade”; ou melhor, perda do sentido de realidade. É o que caracteriza,
nas várias instâncias da vida cotidiana, a percepção dos sujeitos/agentes
sociais, que são privados do sentido de realidade, tanto no tocante à auto-
percepção de si (o que explica as atitudes narcísicas e particularistas das
individualidades pessoais), quanto à percepção dos outros e da realidade
social e política (talvez a escassez do “discernimento” e do velho “bom
senso” na vida social e relações interpessoais seja decorrência deste can-
dente processo de desefetivação humano-genérica que marca o capitalis-
mo tardio). Enfim, é o sentido pleno da “alienação”.
Portanto, a “perda do sentido de realidade” significa a constituição
de um complexo sóciometabolico de ilusões e auto-ilusões que envol-
vem as individualidades pessoais de classe. Ela permeia a vida cotidia-
na, permitindo a fluidez da manipulação sistêmica. Enfim, sonhos que
são ilusões e utopias de mercado ou utopias particularistas tornam-se
meros arremedos do sentido categórico de utopia como não-lugar de
realização humano-generica.
As utopias de mercado e as utopias particularistas são meros so-
nhos diurnos invertidos em seu sentido categórico – não nos movem
em direção à futuridade, mas nos torna pressas da “presentificação cro-
nica” do capitalismo global. Na verdade, são mecanismos de resistência
inercial do sistema sóciometabolico do capital, obstaculizando a verda-
deira percepção de si e para si da classe do proletariado.
O que é importante investigar são as implicação subjetivas – no
sentido da formação da consciência social critica e da consciência de
classe - do sóciometabolismo da farsa que impregna o capitalismo glo-
bal. Deste modo estaremos aptos a investigar as possibilidades da pra-
xis sócio-humana de emancipação do trabalho social.
Após um longo excurso sobre o significado do termo capitalismo
como farsa, é interessante elaborarmos um tratamento crítico do fil-
me “A Agenda” (L‘emploi du temps), de Laurent Cantet. A narrativa do

241
Trabalho e Cinema • Volume 3

filme é singela: Vincent está desempregado, mas sem coragem de con-


tar à esposa e aos três filhos. Todas as manhãs ele sai para “trabalhar”,
mas na verdade fica perambulando pela cidade. No seu desespero por
se reintegrar à sociedade, Vincent simula viagens de negócios e chega
ao cúmulo de entrar em escritórios e cumprimentar as pessoas como
se fosse parte da equipe. Quanto mais o tempo passa, mais Vincent
se enrola para convencer a família de que tem uma agenda cheia de
compromissos e suas mentiras começam a surtir efeito, aumentando
os problemas familiares e sua angústia pessoal.
O filme “A Agenda” foi o grande vencedor do Leão de Ouro em Ve-
neza, sendo o filme inspirado numa história real tão espantosa que, no
ano seguinte, os franceses fizeram outra versão sobre ele: “L’Adversaire“
(“O Adversário”), de Nicole Garcia com Daniel Auteuil, baseado no ro-
mance homonimo de Emmanuel Carrère, publicado em 1999. Carrère
apresenta o relato de um fato verídico ocorrida em 9 de janeiro de 1992
na França: Jean-Claude Romand, 39 anos, matou a mulher (Florence), os
filhos (Caroline, 7 anos; e Antoine, de 5 anos) e os pais, temendo ser des-
mascarado após enganá-los por quinze anos. Durante este tempo todo,
Jean-Claude dizia estar empregado, trabalhando na OMS. Após cometer
os homicidios, Jean-Claude Romand tentou suicidar-se, mas escapou da
morte. Foi preso, julgado e condenado à prisão perpétua (com liberdade
condicional após 22 anos de reclusão). Ao contrário de Jean-Claude Ro-
mand, Vincent, o personagem do filme “A Agenda”, ao ser desmascarado
pela família, não reage como o personagem da vida real.
O filme “A Agenda”, de Laurent Cantet , é a narrativa do capitalis-
mo como farsa, onde Vincent, o personagem principal, explicita atra-
vés de seu drama pessoal, um traço do sócio-metabolismo do capital
nas condições de sua crise estrutural: o capitalismo como farsa.
Vincent finge estar empregado. Ele é um farsante que incorpora
em si e para si, uma disposição sistêmica do capitalismo global. Vin-
cent expressa tão-somente um traço da lógica sócio-metabólica capi-
talista em sua fase de crise estrutural. O sistema do capital finge ser a
sociedade do emprego, quando hoje, mais do que nunca, o capitalismo é
um sistema da destruição paulatina do emprego. Na verdade, o capita-

242
O mundo do trabalho através do cinema

lismo histórico em sua fase de crise estrutural (o capitalismo global) se


reproduz dissimulando/ocultando/deslocando suas contradições obje-
tivas intrínsecas, constituindo um metabolismo social impregnado da
miséria da farsa.
Como temos salientado, a farsa como traço sócio-metabolico das
relações sociais no capitalismo global decorre da plena manifestação
do fetichismo da mercadoria. A sociedade global do capital é a socie-
dade das mercadorias em sua dimensão planetária. Nos últimos trinta
anos, sob a mundialização do capital e o neoliberalismo, com a vigência
do mercado, as mercadorias impregnam, mais do que nunca, as rela-
ções sociais. O que significa que nunca o fetichismo da mercadoria e as
formas estranhadas da vida social tornaram-se tão presentes em nossas
vidas. O impacto deste fato histórico candente sobre o metabolismo so-
cial da modernidade do capital é claro: a disseminação da farsa como
ethos burguês, impregnando as relações sociais e as formas ideológicas
do capital.
A farsa como traço sócio-metabólico do capitalismo histórico – e
que adquire proporções intensas e ampliadas sob o capitalismo global
– impregna, em sua dimensão objetiva, a dinâmica do sistema social,
permeando a constituição das subjetividades de classe. As individuali-
dades pessoais de classe tendem a incorporar como elemento de sua
vida inautêntica, baseada no trabalho estranhado e estranhamento so-
cial, atitudes farsescas. Deste modo, o homem burguês – modelo huma-
no que impregna a sociabilidade de classe – é um homem farsante.
Na medida em que a vida cotidiana sob a sociedade do estranha-
mento fetichizado não propicia uma vida plena de sentido, mas uma
vida social marcada pela inautenticidade, a farsa tende a impregnar
os construtos ideológicos nas várias instâncias da vida cotidiana. Ele-
mentos de farsa estão nas práticas (e discursos) da política e economia,
trabalho e vida cotidiana, dos discursos religiosos às candentes decla-
rações de amor (sob a ótica lukácsiana, a vida inautêntica é a vida sem
sentido impregnada das disposições sistêmicas da ordem do capital
que obstaculizam o desenvolvimento humano-genérico).

243
Trabalho e Cinema • Volume 3

Com o sócio-metabolismo da barbárie, o núcleo humano-generico


das individualidades pessoais de classe está ameaçado de desefetivação.
A barbárie social é o verdadeiro conteúdo do capitalismo manipulatório.
A barbárie social acirra as contradições sociais que perpassam a objetivi-
dade e subjetividade de classe. Inquietas e intranqüilas, dilaceradas pela
desefetivação do núcleo humano-generico, do trabalho vivo reduzido à
força de trabalho, as individualidades pessoais de classes sofrem – a idéia
de “sofrimento” – moral ou psíquico - é um dado objetivo, no sentido da
deriva pessoal que atinge, por exemplo, trabalhadores assalariados sub-
mersos na insegurança do desemprego e do trabalho precário.
Ora, barbárie social significa a fase do desenvolvimento his-
tórico marcado pela intensa (e ampla) contradição entre o grau de
desenvolvimento civilizatório, que coloca possibilidades inéditas de
desenvolvimento humano-genérico (a riqueza do possível), e a misé-
ria do presente das relações sociais capitalistas impregnadas de for-
mas fetichizadas estranhadas que reduzem trabalho vivo a força de
trabalho como mercadoria.
O construto ideológico da farsa opera a dialética negativa entre
sonho e realidade. Sob o capitalismo global, que é o capitalismo ma-
nipulatório, as individualidades pessoais de classe estão intensamente
dilaceradas por contradições vivas dentro (e fora) de si.
O filme “A Agenda” inicia-se com a cena de Vincent , pela manha
cedo, recostado no banco dianteiro do carro, dormindo. Logo adiante,
a paisagem de um campo aberto. É a cena de um homem solitário que
decidiu não contar para a mulher e os filhos que está desempregado. Ao
abandonar o último emprego, ele decidiu viver uma farsa – a farsa de
estar empregado. Para isso, simula que faz viagens de negócio.
Nesta cena inicial, enquanto Vincent telefona para a mulher di-
zendo que tem um encontro com um cliente em Marselha, observa-
mos, ao fundo, crianças saindo de um ônibus escolar. Nesse momento,
a farsa do emprego de Vincent se contrasta com a ideologia da vida
escolar que promete na sua prática cotidiana, formar jovens - homens
e mulheres - para o mundo do emprego. É o contraste entre o cotidiano
da formação escolar, que só adquire sentido no interior da sociedade

244
O mundo do trabalho através do cinema

do trabalho, e o cotidiano da farsa do emprego como proto-negação da


ética do trabalho sob a sociedade do capital – a sociedade do trabalho
abstrato. Ora, a lógica do trabalho abstrato, em si e para si, tende a ne-
gar o trabalho concreto como atividade humana do emprego.
Vincent não é um mero homem desempregado. Ele parece estar
desempregado. Entretanto, ele optou por viver assim. Ele fez uma esco-
lha moral que tende a negar – em si – a ética do trabalho burguês. Vin-
cent oculta da mulher e filhos sua condição de desocupação voluntária,
criando, a partir daí, uma farsa – a farsa do emprego.
Na verdade, Vincent decide viver, a seu modo, a farsa do capital –
eis a singularidade do homem singular. Ele simula seu próprio empre-
go, organizando a partir daí, seu tempo de vida como tempo da farsa
do trabalho. Ele escolhe viver o papel de um funcionário da ONU. Num
certo momento, observa o arranha-céu de concreto e vidro da organi-
zação, expressão suprema dos aparatos tecnocrático que organizam a
sociedade do (des)emprego. Vincent assume o papel de empregado de
alto escalão que atende ONG’s que cuidam de programas de desenvolvi-
mento na África. Ao viver a farsa do emprego, ele busca dar um sentido
à vida no mundo do emprego sem sentido.
O mundo social de Vincent é o mundo social do capitalismo
global erigido sobre promessas (e ilusões) de emprego e desenvolvimen-
to. Ele incorpora a lógica do sistema para desvelá-lo. Enfim, Vincent,
como todo personagem típico de dramas realistas, é um personagem
heurístico, anti-herói problemático que se afirma levando à exaustão as
idiossincrassias sistêmicas.
No começo do filme, observamos o pseudo-cotidiano de Vincent
– dormindo no carro, simulando atender clientes, dirigindo pela auto-
estrada do interior da França. Ele transmite uma sensação de liberdade
angustiada. Ele não sofre pelo desemprego. O jogo da farsa do emprego
dá-lhe uma satisfação de controle sobre a própria vida (o que talvez ele
não tinha quando era mero empregado).
Num certo momento, Vincent aposta corrida com o trem veloz.
Corre lado a lado, quase simulando fazer parte da roda-viva do sistema.
É a vida veloz do capitalismo global, onde se corre sem sentido, para lá

245
Trabalho e Cinema • Volume 3

e para cá. No carro em alta velocidade, Vincent não apenas imagina (ou
vive) a ocupação fictícia, mas sente, ao dirigir o veículo pela auto-estra-
da, uma liberdade fictícia que lhe dá satisfação momentânea No fundo,
ele quer fugir do mundo dos constrangimentos burocráticos e metas
pré-impostas pelo capital. Talvez queira fugir de si como individualida-
de de classe. Ou ainda talvez isto seja uma mera forma contingente de
resistência pessoal. Ao simular estar ocupado, Vincent constrói – como
o capitalismo - seu próprio auto-engano. Ele precisa dar uma satisfação
aos outros e a si – mesmo que a suposta “saída” seja tão fictícia (e liqui-
da) quanto a riqueza abstrata produzida pelo capitalismo global.
Dirigindo o carro pela auto-estrada, Vincent divaga, ouvindo rá-
dio e cantarolando músicas que o afastam da pseudo-concreticidade
do cotidiano burguês. Na verdade, estar no carro em alta velocidade,
deslocando-se pelo interior do França, diante de paisagens abertas, dá-
lhe a sensação da liberdade que tanto almeja. A música que toca no
rádio - e que ele cantarola com alegria - o projeta para além da dureza
da realidade cinzenta do mundo administrado. É literalmente um de-
vaneio – ele concebe na imaginação a utopia do ócio livre das amarras
do emprego estranhado.
Eis o sentido da farsa do emprego criada por Vincent: um de-
vaneio como via escapatória contingente da pseudo-concreticidade do
cotidiano burguês. Foi uma escolha singular de Vincent – ele como
homem singular – e somente ele - escolheu agir assim. Entretanto, a
singularidade da sua escolha pessoal não invalida - e pelo contrário,
confirma - as causalidades essenciais que o constrangem como indivi-
dualidade pessoal de classe, alienado do ser genérico do homem.
Ao cair da tarde, Vincent ouve no carro a cotação das ações das
grandes empresas na bolsa de valores de Paris. Após devanear canta-
rolando canções alegres que o projeta para além do cinzento mundo
burguês, Vincent acompanha o noticiário econômico. Do mundo da
vida – divagado nas canções do rádio - para o mundo sistêmico do
capitalismo global. Carrefour, Credit Lyonnais, Aventis – eis as grandes
empresas que apostam no cassino global, com suas cotações oscilando
ao saber da financeirização da riqueza.

246
O mundo do trabalho através do cinema

Nesse momento do filme, explicita-se um traço essencial do capi-


talismo global: a financeirização da riqueza, cuja lógica do capital fic-
tício constitui um mundo social farsesco – a farsa do emprego diante da
reestruturação produtiva que enxuga cada vez mais os postos de traba-
lho das grandes empresas; e a farsa da produção (e do desenvolvimento)
diante da economia da especulação financeira, que constrange politi-
cas de crescimento e investimento produtivo em prol da rentabilidade
dos papéis acionários. A financeirização da riqueza capitalista é um
traço fundamental da nova ordem do capital, alterando, deste modo, o
metabolismo social.

Financeirização da riqueza capitalista

Farsa da produção e do desenvolvimento capitalista


farsa do emprego

Ao romper com a ordem disciplinar do emprego capitalista, exer-


cendo uma desocupação voluntária que aparece como farsa de empre-
go (Vincent diz ser alto-funcionário da ONU), o tempo para ele, pára
(o título da versão americana do filme é “time out” que significa “pa-
rada”). Ao conversar com a esposa, observa: “Não vi o tempo passar”.
É claro que ele diz isso com outro significado (deixou de ligar a esposa
no horário combinado). Mas a sua afirmação possui um sentido laten-
te: ocorreu uma parada do tempo em virtude do seu desligamento do
metabolismo social do trabalho estranhado.
De fato, o homem desempregado está alienado do espaço-tempo
do metabolismo social instaurado pela ordem burguesa (os proletários
desempregados do filme “Segunda-Feira Ao Sol”, de Fernando Léon de
Aranoa vivem se interrogando: “Que dia é hoje?”). Talvez pareça que o
homem desempregado tenha todo o tempo do mundo pelo fato de estar
desocupado. Mas pelo contrário, não possui tempo nenhum – sob a or-

247
Trabalho e Cinema • Volume 3

dem do capital, o homem proletário é mera carcaça do tempo. O tempo


de Vincent parou (time out!) no sentido dele ter-se deslocado da ordem
temporal constituída pelo metabolismo social do capital.
Ora, a percepção do tempo é uma construção social demarcada
por papéis atribuídos pela ordem sócio-metabólica. Ao romper com
uma representação de papéis e criar – no imaginário – a sua própria
representação estranhada, Vincent se insere noutra escala de tempo
diversa da estrutura temporal vigente. Ele parece mais livre (por exem-
plo, senta-se ao ar livre e lê jornal, buscando acompanhar as noticias do
mundo). Entretanto, a suposta liberdade pessoal é, de fato, a sua subor-
dinação irremediável ao acaso e contingencia da vida social do capital.
O filme “A Agenda” é permeado de contrastes entre a lógica do
mundo da vida e a lógica do mundo sistêmico do capital. Por exemplo,
Vincent conversa com a mulher pelo celular. Diz estar no trabalho, mas
está ao ar livre, numa praça de uma pequena localidade no interior
da França. Ao fundo, crianças brincam despreocupadas com o mundo
sistêmico. Estão imersas no mundo da vida usufruindo do tempo de
ócio. Nesse momento, Muriel, mulher de Vincent, diz: “Conheço seu
valor”. Ora, nesse caso, valor diz respeito àquilo que é útil para o desen-
volvimento humano-genérico. Enquanto categoria moral-ontológica,
o valor não se calcula, mas se apreende essencialmente no plano dos
sentimentos. Assim, o brincar das crianças ao ar livre é uma ativida-
de útil para o amadurecimento pessoal. É portanto um valor huma-
no inestimável – isto é, que não pode ser estimado quantitativamente.
Para Muriel, Vincent é importante como homem companheiro, pai de
seus filhos e homem amado. Possui, deste modo, um valor inestimável
e impossível de ser aprendido pela lógica do mundo sistêmico, onde a
noção de valor possui um sentido meramente utilitarista reduzido ao
quantum monetário. Esta expressão de sentimentos se contrasta que a
lógica do valor econômico que “coloniza” o tempo de vida das pesso-
as. O próprio Vincent ao renunciar a ter seu tempo de vida disciplina-
do pela empresa, escolhendo ele próprio construir sua própria farsa,
surpreende-se que possa ter um valor que seja medido pela própria

248
O mundo do trabalho através do cinema

dimensão humano-genérica. A mulher conhece o valor dele – um valor


como homem não reconhecido no mundo do capital.
Vincent constrói sua própria farsa do emprego, empregando o
tempo de vida a seu bel-prazer, simulando para mulher e filhos, pa-
rentes e amigos, que está empregado, quando, na verdade, encontra-se
“desempregado”. Ao fazer isso, ele não foge da lógica do capital, mas
apenas a incorpora de outro modo – ele reitera a farsa sistêmica a seu
modo. Talvez seja uma tentativa invertida de recuperar o controle de
sua própria vida pessoal, assediada pelo tempo de trabalho estranhado.
Vincent interverte o tempo do emprego, pelo emprego do tempo a seu
modo, mas sem romper com a imagem do trabalho assalariado. Ele
ainda é escravo do emprego virtualizado como farsa que dissimula sua
desocupação.
Ao ser escravo da imagem do emprego, Vincent sofre a condição
do trabalhador assalariado. Como o capital fictício, que apesar de ser
fictício, se reproduz virtualmente, o emprego fictício de Vincent o afas-
ta do convívio familiar como qualquer outro emprego real. Talvez até
pior – o emprego fictício o obriga a se afastar daqueles que poderiam
descobrir que ele construiu uma farsa.
Nesse caso, Vincent é um homem solitário, homem invisível para
mulher e filhos. Por isso a mulher observa: “Sempre me digo que me
casei com um cara formidável, mas que não o vejo.” A solidão de Vin-
cent implica na solidão de mulher e filhos que estão diante da figura
do Pai ausente. A farsa de Vincent expõe, deste modo, um problema
real: ao reduzir tempo de vida a tempo de trabalho – mesmo que vir-
tualmente (ou mesmo como farsa) – o capital danifica o mundo da
vida familiar. Cria um mundo de homens, mulheres e filhos solitários
carentes da figura do Pai.
A farsa do emprego criada por Vincent não é uma resposta autên-
tica contra a colonização do mundo da vida pessoal (e familiar) pelo
mundo sistêmico do capital. Pelo contrário, a farsa (ou a virtualização)
da condição salarial – tal como o “capital fictício” – é tão-somente uma
forma exacerbada (e irracional) de reiteração dela mesma. Tanto que
seus efeitos corrosivos são tão reais quanto se Vincent estivesse mesmo

249
Trabalho e Cinema • Volume 3

empregado. Enfim, Vincent não consegue fugir da relação-capital pela


farsa, mas apenas a reitera de outro modo – por conta própria. Ele con-
tinua subsumido à lógica do capital.
A mulher de Vincent, Muriel, o pólo afetivo que expressa o mun-
do da vida colonizado pela racionalidade salarial exacerbada (mesmo
que fictícia, no caso de Vincent), se insurge contra o marido ausente.
Ela fica chateada pelo fato de Vincent estar fora toda semana devido ao
novo emprego. Diz ela: “Se entendi bem vai ficar fora a semana toda?”.
A farsa salarial de Vincent aprofunda a miséria da existência assala-
riada. Instaura–se assim, uma crise conjugal em virtude dela não ver
muito o marido, pai de seus filhos.
A solidão é uma dimensão da desefetivação humano-generica, na
medida em que o homem é um ser-com-os-Outros-como-Próximos. A
familia é o locus de realização destes laços comunitários primordiais
que efetivam o ser generico do homem. Na medida em que o trabalho
estranhado rompe com esses laços humano-afetivos, instaurando a so-
lidão, tende a desefetivar o ser genérico de homens e mulheres.
Portanto, sob o drama trágico de Vincent, que construiu a farsa
da sua condição salarial, existe uma outra tragédia humana – a solidão
de mulher e filhos. Numa cena do filme, Vincent diz que conseguiu
emprego como consultar de uma agência da ONU para projetos de de-
senvolvimento na África. Diz ele: “É um trabalho interessante. Você
vai ver, vai ficar surpresa.” A mulher observa: “Fico feliz por você. É
formidável mudar de vida. Mas eu continuo na mesma, cuidando da
casa, das crianças…”. E a mulher desabafa: “Estou sufocando” (sufoco e
cansaço são expressões utilizadas por Muriel no filme, mulher alienada
de si na medida em que se insere numa relação conjugal estranhada).
Deste modo, no filme “A Agenda”, existe, por um lado, um ho-
mem “fugindo” da condição do emprego que o aliena do seu tempo
de vida ou tempo de autonomia pessoal; e por outro lado, uma mulher
incapaz de fugir da condição de gênero oprimido pelas tarefas domés-
ticas (gênero feminino).
Vincent pode construir a farsa do emprego (como ardil para
“fugir” da vida heternoma); entretanto, Muriel, sua mulher, não pode

250
O mundo do trabalho através do cinema

construir a farsa correlata à sua condição de trabalhadora doméstica.


Explicita-se, no filme a condição de gênero que opõe homens e mulhe-
res na sociedade do capital. Vincent nada pode fazer diante do desaba-
fo da mulher: “Estou sufocando”. Ele também diria que estava sendo
sufocado no emprego. Ele construiu sua farsa (“time out”) para “respi-
rar” um pouco como individualidade pessoal.
Portanto, ao construir a farsa do emprego, Vincent, por um lado,
se aproxima de si, ao ter, por exemplo, mais tempo para “curtir” seu
tempo de vida autônomo. É quase uma atitude particularista ao ex-
tremo que aparece como uma resistência pessoal contingente à vida (e
trabalho) estranhado exacerbado sob o mundo social do capital (a dis-
seminação de personalidade particularistas é correlata com a exacerba-
ção do estranhamento social – talvez o particularismo seja uma forma
espúria de resistência pessoal à desefetivação humano-genérica). En-
tretanto, ao se aproximar de si – quase numa reação narcísica - Vincent
se afasta da vida familiar, reiterando, deste modo, as disposições sistê-
micas do estranhamento.
Quando ele estava empregado na Partner, empresa de consulto-
ria financeira, talvez Vincent tivesse, do mesmo modo, menos tempo
para si e para a família. Seu tempo de vida se reduzia quase a tempo de
trabalho. Agora, ao estar “liberado” do emprego, através da construção
de sua farsa salarial, ele passa a ter – supostamente - todo o tempo do
mundo para si, mas se afasta irremediavelmente da mulher e filhos. É
uma situação paradoxal que aflige Vincent. Ele acompanha de longe a
família e apenas aparece em ocasiões especiais. Pelo celular diz: “Preci-
so desligar. Amo vocês”. Assim, apesar de sua liberação pessoal, ele está
desligado de seu mundo de vida.
Na verdade, a liberação por meio do trabalho “autônomo” ou por
conta própria, é mera ilusão espectral – eis a lição crítica que o parado-
xo de Vincent está nos ensinando (sob o capitalismo global cultiva-se
a ilusão da liberação pessoal pelo trabalho “por conta própria”). Ora,
como salientamos acima, Vincent exerce certo grau de particularismo
ao ligar-se a si e “desligar-se” da vida familiar. Eis o paradoxo do tra-
balho “por conta própria” - desliga-se do trabalho estranhado, mas cai

251
Trabalho e Cinema • Volume 3

preso do estranhamento como dimensão sistêmica do metabolismo


social. Esta é a tragédia de Vincent. Enfim, não existem saídas indivi-
duais, principalmente se elas são meras farsas particularistas.
A mulher de Vincent também vive a sua tragédia pessoal. Num
certo momento, ao conversar pelo telefone com o marido distante, diz:
“Preciso desligar. As crianças estão brigando. Preciso bancar o policial”.
A relação de Vincent com Muriel trata-se de uma relação de gênero in-
trinsecamente antípoda – na medida em que Vincent se liga mais a si,
ao se desligar do trabalho estranhado, a mulher submerge na domesti-
cidade estranhada (“bancar o policial”), desligando de si (e literalmen-
te, do marido, que já está distante). Ele se auto-dispensa do fardo sala-
rial, embora crie a farsa do emprego e ela mantém seu fardo doméstico,
buscando manter contato com o marido pelo telefone. A crise do pai
ausente é um elemento de crise do fardo doméstico para a mulher que
não se libera de sua condição de gênero. A alienação apenas se reitera
em ambas as situações pessoais. Portanto, a idéia de autonomia (e libe-
ração) de Vincent – que aparece como um homem livre – é meramente
ilusória como a própria farsa salarial que ele construiu.
Embora Vincent tenha se liberado do emprego estranhado que
lhe consumia enquanto trabalho vivo, ele não se liberou do trabalho do
desemprego, mesmo sendo uma desocupação voluntária. Num certo
momento do filme, seu pai observa: “Está tão pálido. Está com o ros-
to um pouco cansado”. E Vincent diz: “Tenho trabalhado demais, só
isso.” Ora, não é só a rotina do emprego como trabalho estranhado que
cansa e leva ao estresse. Existe também a rotina do desemprego como
desocupação involuntária (ou voluntária, como é o caso de Vincent). O
desemprego estressa – talvez mais do que o trabalho estranhado como
emprego, tendo em vista a deriva pessoal decorrente da pressão social
introjetada – e inconsciente - na exigência de ser homem produtivo.
“Tenho trabalhado demais, só isso” – diz ele.
Talvez, seja extenuante o esforço de construir a farsa salarial e
viver segundo ela no mundo burguês, fingindo ser o que não é. No ín-
timo, existe um estresse do fingimento ou mesmo um estresse da inca-
pacidade de ir além do trabalho estranhado que reaparece em sua vida

252
O mundo do trabalho através do cinema

como estranhamento de si e dos outros no plano da reprodução social.


Vincent não usufruiu da vida social. Ele foge da sociabilidade para cui-
dar – como bom empregado do ardil salarial – de sua farsa de homem
empregado. Por isso diz: “Tenho trabalhado demais”.
Na sociedade burguesa, existe uma pressão social sobre as indi-
vidualidades pessoais de classe subsumidas aos valores do emprego e
carreira profissional. O foco é o emprego assalariado vinculado a car-
reira profissional. A ideologia do sucesso é parte integrante do fardo
psicossocial que obriga homens e mulheres a serem produtivos na ótica
do capital. Vincent torna-se o centro de fofocas sobre seu novo empre-
go. Todos perguntam: “Que emprego é esse?”. Outros respondem: “Não
conseguimos saber”. Até o filho pequeno o interroga: “Papai, vai mudar
de emprego?”. Enfim Vincent é um personagem acuado no seu cotidia-
no, pela cobrança de status e prestigio do emprego formal.
Sob a era do desemprego estrutural, o emprego torna-se uma ra-
ridade social. De repente, Vincent vê-se sob fogo cruzado das atenções
da coletividade. Mulher, filhos, parentes e amigos constituem uma rede
social que cobra dele a responsabilidade do homem produtivo. Talvez a
parada de Vincent seja o modo particularista dele se insurgir – de modo
farsesco – contra as imputações sociais. Ele procura manter a aparência
para se autopreservar e preservar mulher e filhos. Mas ao renunciar ao
tempo do emprego como trabalhado estranhado, opta pelo emprego do
tempo virtualmente para-si, muito embora, como temos demonstrado,
não consiga ir além da dimensão do estranhamento social.
Existe um aspecto interessante do filme “A Agenda” – de certo
modo, ele trata da crise da forma-mercadoria sob o capitalismo global.
Ao construir a farsa do emprego, Vincent renuncia a ser mera força
de trabalho como mercadoria (é, deste modo, uma crise da subsunção
formal do trabalho ao capital).
No filme, temos a expressão do trabalho vivo que decide empre-
gar o tempo – pelo menos, virtualmente - como tempo de vida e não
como tempo de trabalho estranhado (embora, como salientamos acima,
não ele consiga romper com o estranhamento social). Estamos diante
de mais uma curiosa narrativa de individualidades pessoais de classe

253
Trabalho e Cinema • Volume 3

“subvertendo” – a seu modo – a forma-mercadoria (como Carlitos em


“Tempos Modernos” que subverte a todo momento o valor de troca).
Sob a crise estrutural do capital, a mercadoria dissolve seu lastro
de objetividade monetária – por exemplo, a operação de “troca” torna-
se meramente arbitrária, no sentido de ser arbitrada pelo sujeito mone-
tário. O valor de troca desmancha-se no ar na medida em que instaura-
se a desmedida do capital. A lei do valor que lastreia a relação-capital
torna-se cada vez mais inadequada (ou incapaz) de medir a riqueza
social que é produzida – materialmente - sob a vigência do trabalho
imaterial. Enfim, como medir o que é recalcitrante à quantificação,
como o savoir-faire?.
Sob o capitalismo global, o capitalismo é um sistema de acumula-
ção de valor afetado de negação. É curioso que, na cena da feira escolar,
Félix, o pequeno filho de Vincent, decide “vender tudo a preço de bana-
na”, como diz o pai. O pai retruca com o filho: “Por que baixou tanto o
preço? O outro você vendeu por 30.” O menino responde: “Porque daque-
le eu gostava; esse eu nem ligo. Eu faço o que quero.” Como o pai, Félix faz
o que quer – subverte o valor da mercadoria, tal como Vincent subverteu
a lógica do emprego. Por trás da imperatividade do sujeito monetário,
existe não apenas a afirmação da vontade (“Eu faço o que quero”), mas a
crise da forma-mercadoria devido a desmedida do capital.
Assim, em seus detalhes, o filme “A Agenda”, nos mostrar traços
essenciais da ordem burguesa sob sua crise estrutural. Como salienta-
mos acima, um deles é o desmanche do referente objetivo de valor das
mercadorias. Com a desmedida do valor, o sistema do capital desman-
cha o lastro real de seus fundamentos estruturais. Como a mercadoria
das mercadorias, o dinheiro perde seu lastro com a produção.
As crianças no filme são – como Vincent – personagens heurís-
ticos que em suas falas e atitudes desvelam elementos constitutivos da
ordem burguesa. Num certo momento, o filho pequeno de Vincent per-
gunta ao avó: “O que está fazendo?”. O avó diz: “Estou dando dinheiro
ao papai”. E o menino retruca: “Também vai me dar?”. O pai sorrindo,
observa: “Escuta, Félix, não exagera!”. E o avô responde: “Cada vez que
dou ao seu pai, estou dando para você também”. Na verdade, na ótica

254
O mundo do trabalho através do cinema

infantil, a emissão de dinheiro é mero ato volitivo, sem perceber que


ele deve – para expressar o valor das mercadorias que transaciona en-
quanto meio de troca – ter como lastro a produção real de riqueza. Para
uma criança, em sua percepção ingênua, dinheiro é meramente dinhei-
ro que pode se dar a vontade – tal como o capital financeiro que busca
se valorizar em forma especulativa a vontade, de acordo com o humor
das especulaçoes. Deste modo, dinheiro gera dinheiro sem passar pela
instância da produção de mercadorias.
Na cena em que visita o prédio de escritórios da ONU, em Gene-
bra, Vincent aparece como um verdadeiro “voyeur” de emprego. Ele
apenas contempla o trabalho dos escritórios. Ao assumir o papel de
empregado da ONU num projeto para o desenvolvimento da África,
ele torna-se um bom “performer” do empregado assalariado de alta
qualificação. Circula pelos corredores do portentoso arranha-céu, es-
piando os locais de trabalho. Observa os trabalhadores de escritório
quase como o olhar antropológico. Seu olhar é inquisitivo e profundo.
Ele não olha as coisas, mas os homens imersos no mundo das coisas –
estantes, mesas de escritório, telefones e computadores. Interessa-lhe
observar as pessoas despersonalizadas pelo trabalho cotidiano. Nos in-
terrogamos: o que Vincent deve estar pensando daquilo tudo? – eis um
enigma. Talvez esteja pensando como aqueles homens trabalhadores
de colarinhos brancos são infelizes, obrigados a tarefas disciplinadas e
rotineiras, reduzindo seu tempo de vida a tempo de trabalho estranha-
do. Mas a tragédia de Vincent é querer ir além do trabalho estranhado,
submergindo nele de modo farsesco.
Vincent incorpora ser empegado da ONU trabalhando na UCDI,
a agência da ONU cujos programas e projetos estão voltadas para o
desenvolvimento de países pobres através de parcerias com ONG’s e câ-
maras de comércio local. Ele passa a ler folhetos desta Agência visando
representar à altura seu novo papel de empregado competente. Vincent
precisa incorporar os requisitos formais do novo papel assalariado,
mesmo que, no íntimo, aquilo seja apenas uma farsa salarial. Ele absor-
ve – como bom protagonista de si - o conteúdo do projeto sem nenhum

255
Trabalho e Cinema • Volume 3

senso critico. Interessa-lhe apenas cumprir o “papel”, assumindo assim,


a farsa de empregado eficiente.
Ora, Vincent não é um homem transgressor, no sentido de visar ir
além do capital. Como muitos personagens realistas de dramas pesso-
ais da modernidade do capital, ele faz, mas não o sabe. Na verdade, no
sentido concreto, é um homem do sistema que reage de forma contin-
gente à vida alienada, e que, na sua reação contingente, não deixa de ser
uma individualidade pessoal de classe que visa integrar-se ao sistema
(o que é quase um eufemismo) – mesmo que num sentido farsesco.
Numa das cenas do filme, Vincent se recolhe numa pequena ca-
bana abandonada nos Alpes suíços para ler e absorver as idéias do pro-
jeto da UCDI-ONU. Diz o texto lido por Vincent: “A fim de encorajar
um maior comprometimento das ONG’s nos programas e projetos da
UCDI, o secretário-geral da UCDI, Sr. Walter Ribeiro lembrou em fó-
rum que a colaboração entre a agência e as ONG’s permitiu concretizar
mais de 800 projetos-pilotos em estreita colaboração com as câmaras
de comércio locais.”
A leitura do texto sobre a UCDI no cenário gélido dos Alpes su-
íços sugere – como metáfora de imagem - a inocuidade de projetos de
desenvolvimento para países pobres sob a ordem do capital. É a gélida
farsa do desenvolvimento cujos programas são meramente protocolares
e com resultados meramente contingentes, incapazes de alterar as re-
lações sociais de exploração e dominação que marcam a realidade dos
países pobres da África, ex-colônias do imperialismo europeu. Nesse
jogo de imagens e discursos escritos que aparecem no filme “A Agenda”
há uma candente crítica da ideologia do desenvolvimento no sistema
da produção destrutiva. Ora, sob o capitalismo global, cuja lógica da
acumulação é predominantemente financeirizada, o desenvolvimento é
uma tão-somente farsa.
Sob o capitalismo global, onde temos a vigência dos mercados
financeiros, a temática do desenvolvimento está vinculada ao “clima
favorável aos investimentos”. Por exemplo, ao penetrar no prédio da
ONU, Vincent passeia pelos corredores e, num certo momento, ob-
serva uma reunião de técnicos e investidores discutindo politicas de

256
O mundo do trabalho através do cinema

desenvolvimento para a África. Diz o técnico: “Outra informação im-


portante que a pesquisa revelou são os indícios de um clima favorável
aos investimentos. Evidentemente os indícios mais citados são um bom
governo, regras previsíveis e transparentes, a primazia do direito e a
estabilidade social são necessárias e vem em terceiro.”
Ora, através da porta de vidro, Vincent perscruta com o olhar a
conversa dos tecnocratas imbuídos dos valores de mercados. Embora
o neoliberalismo afirme a centralidade do mercado, ele não dispensa
– e pelo contrário, torna indispensável – a presença do Estado político
para garantir a segurança juridico-institucional dos investimentos.
Eis o ponto: o Estado mínimo que o neoliberalismo proclama diz
respeito apenas aos direitos dos trabalhadores, mas por outro lado, o
que aparece com vigor é o Estado máximo para o capital, isto é, Estado
como garantidor da ordem pública e instância capaz de garantir a segu-
rança jurídica dos investimentos privados. Por isso, a importância do
“bom governo” que garanta direitos e regras previsíveis e transparentes
para investimentos do capital, além é claro da estabilidade social (o que
exige controlar e suprimir, se necessário com violência policial, a “luta
de classes”).
Embora não o saiba, Vincent desvela a farsa do capitalismo global.
Num certo momento, ao conversar com o pai, observa que, enquanto
países pobres da Africa pleiteiam infra-estruturas básicas (por exem-
plo, uma rede de telecomunicações), a ostentação e o luxo - mármore,
estrutura de vidro, espaço...- caracterizam o ambiente das tecnoburo-
cracias capitalistas globais sediadas nos países capitalistas centrais. Diz
ele: “Outro dia estava ao telefone com um cara do Moçambique que
está brigando para conseguir uma rede de telecomunicações no país.
De repente comecei a olhar em minha volta todo aquele mármore e
aquela estrutura de vidro, aquele espaço…” . Eis o caráter impressio-
nista da farsa do capitalismo global. Na verdade, é uma crítica incisiva
à ONU que representa, em última instância, a ordem sócio-metabólica
do capital. Num certo momento, Muriel, mulher de Vincent pergunta
se ele está se queixando e ele observa: “Não, mas é completamente sur-
real”. Ora, o que Vincent vê em sua percepção contingente como “com-

257
Trabalho e Cinema • Volume 3

pletamente surreal” é mera expressão da “contradição viva” intrinseca


ao sistema mundial do capital.
Após observar o surrealismo das impressões contingentes do ca-
pitalismo global, Vincent lê um documento da agência da ONU voltada
para o desenvolvimento da África que concebe a promoção do desen-
volvimento em função das privatizações e investimentos privados. Diz
ele: “Os recursos naturais são o maior interesse do investidor estrangei-
ro. Nota-se contudo fluxo considerável para as indústrias e serviços. As
privatizações mais investimntos para a África nos anos 90 do que nas
décadas anteriores. Entre 1990 e 1998, os paises que as privatizações
foram numerosas foram: África do Sul, 1.4 bilhoões de dólares; Gana,
769 milhões de dólares; Nigéria, 500 milhões de dólares; Zâmbia, 420
milhões de dólares; Costa do Marfim, 373 milhões de dólares.”

Binômio neoliberal

“Desenvolvimento” = privatização + investimento privado

O binômio neoliberal marcou a década de 1990 nos países ca-


pitalistas supostamente emergentes (apesar da maior parte dos países
africanos estarem “desconectados” do fluxo de capital mundial, alguns
buscam atrair investimentos “conectando-se” à agenda neoliberal glo-
bal, como Africa do Sul, Gana, Nigéria e Zâmbia). Na verdade, a agenda
neoliberal que marcou a década de 1990 condicionava investimentos a
privatizações (isto é, oportunidades de novos negócios rentáveis para o
capital financeiro).
O filme “A Agenda” explícita as relações promiscua entre organis-
mos públicos transnacionais como a ONU e organizações não-gover-
namentais imbuídas da lógica de colaboração com o capital privado.
Vincent observa o seguinte: “Voce não imagina quantas empresas gra-
vitam em torno da ONU.”
Assim, o neoliberalismo significa o cerco de organizações públicas
pelo mercado e a conversão plena da lógica estatal pela lógica privada.

258
O mundo do trabalho através do cinema

Constitui-se teias de interesses de colaboração entre ações públicas e


mercado, mediadas pelas ONG’s. Por isso, como observa Vincent para
um amigo, organismos públicos como a ONU, precisam de consultores
com experiencia no setor privado.
Sob o capitalismo global ocorre não apenas uma reestruturação
produtiva, mas uma reestruturação política (e ideológica) das tecno-
estruturas públicas, cercadas pela lógica do mercado, isto é, do setor
privado com seu protagonismo.
É claro que a crise fiscal do Estado burguês limita a ação social do po-
der público; mas o protagonismo social do setor privado é também decor-
rência de uma ofensiva ideológica e política do capital visando recompor
as bases materiais de sua reprodução social minadas pela crise estrutural
do capital. Eis assim o sentido crucial das parcerias público-privadas.
Em seu devaneio existencial onde se cumpre a farsa do homem
empregado, Vincent sente-se cercado pelos espaços cativos dos interes-
ses privados. De fato, ele é – como cada um de nós, em alguma medida
- um homem sem espaço, que circula nos interstícios da ordem burgue-
sa, adotando a máscara de homem incluído na ordem salarial. Numa
cena, ele logo é identificado como “persona” estranha no ambiente de
trabalho da ONU. O guarda de segurança observa que Vincent está
mais de uma hora sentado no hall de entrada do prédio: “Lamento.
Este local não é público.”.
Noutro momento do filme, ao cair da noite, Vincent decide dor-
mir dentro do carro, estacionando-o na área de estacionamento de um
hotel. Mas logo é alertado pelo vigilante: “O senhor está num estacio-
namento particular, sabia?”. E observa: “Isto é um hotel. Os quartos são
para dormir. Não pode ficar aqui”. Enfim, Vincent é obrigado a trans-
gredir espaços de reprodução cativos da lógica privada. Ao tornar-se
um homem proletário transgressor da ordem salarial, ele percebe que
isto significa também tornar-se um homem sem território de vida, des-
territotializado na medida em que não emprega o tempo para o capital,
mas para si – mesmo que virtualmente.
Vincent é um homem proletário que se auto-exclui da ordem sala-
rial, embora, ao mesmo tempo, escolha criar em torno disso, uma farsa de

259
Trabalho e Cinema • Volume 3

inclusão salarial – simula ter um emprego na ONU. Ele torna-se a própria


expressão das candentes ambigüidades das individualidades pessoais de
classe. Talvez a farsa de Vincent seja expressão da contradição candente
entre pessoa e classe social que tende a dilacerar sua individualidade hu-
mana. Ele busca fazer a mediação entre a aparência do sistema de traba-
lho e modo de vida burguês e a essência de seus carecimentos humanas
que almeja um espaço-tempo de vida em si e para si.
Vincent é um homem proletário solitário, solidão expressa pelas
imagens de sua reclusão numa cabana das montanhas geladas dos Al-
pes suíços. Nestas cenas gélidas, percebe-se um homem só e solitário
buscando aprender a agir como empregado de alta qualificação da
ONU. É um “ator” decorando seu papel no teatro da farsa salarial que
criou para si. Talvez o capitalismo seja um imenso teatro de farsa sala-
rial – a solidão de Vincent é a solidão do homem proletário empregado
sob as condições gélidas do capitalismo global.
Ao estudar os documentos da UCDI, Vincent demonstra que a
farsa verdadeira exige o pleno envolvimento do ator com seu papel
farsesco. É como se ele precisasse (e buscasse) acreditar naquilo que
construiu para si – o papel de “proletário de classe média” emprega-
do da ONU na gestão de politicas de desenvolvimento para a Africa
em parceria com o setor privado. Aos poucos percebemos no filme “A
Agenda”, que a farsa de Vincent não é a única farsa no mundo farsesco
do capitalismo global.
Vincent tem consciência da sua condição de pai ausente. Diz ele
para o filho: “Julian, nas últimas semanas tenho estado mais na Suiça
que com vocês”. É uma condição contraditória: Vincent vive uma far-
sa salarial que – enquanto farsa – produz os mesmos efeitos objetivos
em sua vida pessoal que o emprego real caso fosse de fato empregado
da ONU. Talvez o afastamento da família seja uma fuga para ele tanto
quanto o afastamento do vínculo empregatício real. Ele finge ser um
pai, na mesma medida em que finge ser um empregado. Eis a simetria
perversa da ordem farsesca construída por ele.
Existe, deste modo, uma farsa da família, na mesma medida em
que existe uma farsa do emprego. Talvez, a atitude paradoxal de Vin-

260
O mundo do trabalho através do cinema

cent explicite a natureza farsesca das instituições burguesas sob a crise


estrutural do capital, que implode suas referências significativas reais,
tornando-as meros simulacros de si. Assim, sob a lógica da financei-
rização da riqueza capitalista, o emprego é mera virtualidade na ótica
sistêmica, tanto quanto a produção de mercadorias, na medida em que
a dinâmica do capital é dirigida pelo capital financeiro parasitário.
A produção de mercadorias é uma farsa na ordem do capitalis-
mo financeirizado. Do mesmo modo, a família tende a tornar-se uma
farsa na ordem do metabolismo social do capital onde tempo de vida
se reduz a tempo de trabalho e instituições vitais como a família são
colonizadas pela lógica sistêmica do dinheiro e do poder.
O homem proletário em processo de desefetivação sob a ordem
farsesca do capital está imerso em consciência de culpa. Vincent tem
consciência da vida de farsas que o consome como individualidade
pessoal de classe. Ela vive a farsa do emprego e ao esmo tempo, a farsa
de pai. No seu íntimo, está clivado de sentimentos de culpa. Por isso,
ao encontrar-se com o filho, busca compensar sua ausência com agra-
do monetário – ele dá uma boa mesada de 500 francos para Julian. A
mãe fica indignada: “Não pode dar 500 F a um menino. Ficou louco?
É muito dinheiro.” Julien olha estupefato para os 500 F. Mas a loucura
de Vincent é a tentativa de minorar a dor da culpa que o assola por
não dar o devido apoio aos entes familiares. O dinheiro entra como
substituto afetivo. Na verdade, é um substituto estranhado que busca
compensar – literalmente – sua dívida íntima com os laços familiares
(em alemão a palavra “dívida” é a mesma de “culpa”). Enfim, quem tem
dívida, tem culpa.
Por um momento, Vincent se trai ao imputar ao filho – num ges-
to de brincadeira - a atitude de farsante que diz mais respeito a si que
ao próprio filho. Após ter um ótimo desempenho na disputa de judô,
Julian observa: “Agora sei que estou em forma.” Vincent exclama: “Seu
farsante! Mas foi legal.” Vincent vive num mundo de farsas da qual ele
faz parte – isto é, sua atitude farsesca talvez seja um modo de resistên-
cia pessoal diante dos conflitos íntimos entre as exigências sistêmicas
e seus carecimentos pessoais. É uma saída contingente tão alienada

261
Trabalho e Cinema • Volume 3

quanto a mera integração no sistema do capital. Entretanto, o caráter


grotesco da farsa de Vincent explicita – ou torna claro – um traço real
da sociedade burguesa sob as condições de sua crise estrutural. Ele é
um personagem heuristico – isto é – um personagem típico que desvela
traços de essencialidade da ordem burguesa, isto é, o capitalismo como
farsa – mesmo que não o saiba.
Ao construir a farsa salarial, Vincent financiou-a espoliando a
poupança familiar do pai. A título de compra de um apartamento em
Genebra, pediu dinheiro emprestado a ele – 200 mil francos. A mu-
lher observa: “Com o auxilio-moradia de Vincent pagamos tudo em
dois anos.” Na verdade, o auxilio-moradia que Vincent diz receber é um
blefe. O dinheiro emprestado seria utilizado para pagar suas despesas
correntes, servindo, deste modo, como substitutivo do suposto salário
– e inclusive, auxilio-moradia – de alto funcionário da ONU.
Nessa operação de “financiamento familiar”, o filho espolia o
próprio pai. Entretanto, o que importante salientar é que mesmo uma
farsa imaginária necessita de financiamento real oriundo do trabalho
efetivo de homens e mulheres (o que seria da farsa salarial de Vincent
se não houvesse o esquema de financiamento?). Ora, nenhum farsa se
sustenta por si só – ela necessita de um lastro real, muitas vezes oculto.
Talvez a lição seja esta: o capital financeiro como capital especulati-
vo-parasitário não se sustenta com a mera especulação monetária em
cima de papéis sem lastro real. As operações especulativas do mercado
financeiro ocorrem a partir de uma base real da produção de mercado-
rias onde se produz valor. É claro que a produção de valor se dá – em
termos relativos – sobre condições problemáticas (salientamos acima
uma delas – a desmedida do capital), o que contribui para a fuga da
massa de capital-dinheiro para a valorização fictícia
Entretanto, como diz o próprio nome – a valorização financeira
ou a reprodução hermafrodita da riqueza abstrata, é uma valorização
meramente fictícia, que não cria, por si só, riqueza efetiva, sendo ela
mesma uma farsa monetária. Portanto, o capital financeiro está con-
denado irremediavelmente a manter seus vínculos materiais com o
capital industrial (ou capital produtivo) baseado na organização da

262
O mundo do trabalho através do cinema

produção de mercadorias e exploração intensa e ampliada da força


de trabalho – quando o capital financeiro se descola em demasia da
base real de valorização, ocorrem as denominadas “bolhas especula-
tivas”, um fenômeno financeiro recorrente no capitalismo global. En-
tretanto, como nenhuma farsa se sustenta indefinidamente, as “bolhas
especulativas”tendem a estourar, provocando as crises financeiras (as
maiores crises financeiras do capitalismo global – o “capitalismo das
bolhas especulativas” - ocorreram em 1987, 1996 e agora, 2008).
O financiamento da farsa salarial de Vincent se dá não apenas
por meio de “empréstimos” do pai, mas também de um ardil financei-
ro que consiste em oferecer aos amigos endinheirados uma aplicação
fictícia num banco suíço a taxas generosas. Estamos diante de um jogo
de reflexividade farsesca. Vincent diz se utilizar da mala diplomática
para a transação especulativa. Diz ele: “Em geral não existe controle.
Não tem perigo nenhum. Alias, em dois anos, o cara fez fortuna! É ina-
creditável.”
Vincent descreve para Jean-Michel seu suposto esquema de finan-
ceirização. Ele diz contactar pessoas próximas – “só pessoas que conheço
para não tumultuar” - e propõe um negócio onde a pessoa dá o dinheiro.
Ele diz que abre uma conta e o dinheiro gira...Vincent observa que não dá
nenhum extrato. Apenas mantém as pessoas informadas. Diz ele: “Essas
contas são numeradas – extra-oficiais, se preferir. Não muitos legais.” É
uma pura operação de risco – ilícita - que promete altos ganhos finan-
ceiros. Jean-Michel pergunta: “Como faz esse dinheiro render?”. Vincent
observa: “Entrei em contato através de um colega de escritório com um
banco que gerencia fundos de investimentos russos.”
Mas Jean-Michel retruca: “Isso me deixa apreensivo. Não é meio ar-
riscado investir em mercados emergentes?”. Ora, Vincent se aproveita do
clima propicio da ganancia universal instaurada pelo capitalismo global
com a sanha da financeirização para construir sua farsa financeira. Ele
teve a habilidade de se utilizar da ganancia dos pequenos investidores,
explorando, deste modo, a confiança que os amigos nutriam por ele. Os
possuidores de massa de capital-dinheiro anseiam valoriza-lo. É uma di-
mensão de irracionalidade sistêmica que faz com que as pessoas despre-

263
Trabalho e Cinema • Volume 3

zem riscos de perdas. Vincent diz: “Sim, mas é o que interessa. Ganhos de
400%, como na bolsa de Moscou não tem em qualquer lugar.” Por outro
lado, o amigo observa: “Sim, por esse lado. Mas esquece que, no mesmo
ano, a mesma bolsa perdeu mais de 200% de seu valor num dia só.” Vin-
cent conclui: “Nunca disse que não há riscos.”
Na verdade, o capitalismo global é o sistema do risco movido pela
sanha da financeirização da riqueza capitalista. Ela envolve não apenas
os grandes investidores, mas também os médios e pequenos investido-
res imbuídos da ambição de valorizar poupanças pessoais. Enfim, sob
o capitalismo global a sociedade burguesa é tomada pela febre da espe-
culação financeira. Emerge a cultura do risco que permeia os negócios
financeiros, mas que perpassa a vida cotidiana. O capitalismo global é
a sociedade dos riscos.
Finalmente, Jean-Michel questiona Vincent dizendo: “Não sei,
mas me pareceu mais convincente com seus amigos.” E observa adian-
te: “Não está muito clara esta história.” Vincent incomodado, diz: “Com
licença, volto já.” Ora, diante de impasses cotidianos, Vincent foge. É
um homem que foge – ele é incapaz de dar respostas efetivas às situ-
ações da vida real. Por exemplo, a farsa salarial engendrada por ele é
uma fuga imaginária diante da insatisfação radical que ele tem diante
do candente prosaísmo da vida burguesa sob o trabalho estranhado.
Enquanto representação típica do homem particularista, Vincent tende
a volta-se para si.
Um detalhe: Vincent evita envolver um casal de amigos de vida
simples no esquema extorsivo. O amigo é um músico desempregado
de vida familiar simples que Vincent busca preservar da sua farsa fi-
nanceira. O amigo diz: “Acha que não gosto de grana?”. Mas Vincent
retruca: “Pode parar. Não vou mete-los nisso”. Mas o amigo insiste: “Ao
contrário, estamos interessados. Temos algum dinheiro guardado.” O
amigo – como os demais – demonstram estar possuído pela sede de
valorizar suas pequenas economias. Como salientamos acima, sob o
capitalismo global, dissemina-se a ânsia pela valorização do dinheiro.
Incitado pelo aparato midiático, emerge uma cultura da financeirização
que envolve a todos e não apenas os grandes investidores capitalistas.

264
O mundo do trabalho através do cinema

Mas, ao buscar ter cuidado para não prejudicar o casal, preservando o


amigo de sua extorsão financeira, Vincent demonstra que, mesmo no
mundo social da barbárie, existe um espaço íntimo para a preservação
de valores autênticos.
Jean-Michel, o novo amigo de Vincent, propõe a ele trocar o
jogo da farsa financeira pelo jogo da farsa comercial. Eis outro aspec-
to compositivo do capitalismo global indicado pelo filme “A Agenda”,
de Laurent Cantet. O capitalismo global não é apenas o capitalismo da
financeirização exacerbada, mas também o capitalismo da falsificação
disseminada das marcas das mercadorias de griffe. Diz Jean-Michel:
“Está vendo este relógio? Na França vale 15.000 F. Na Polônia, compro
por 200 F. Revendo por 1.000 F. 100 peças no mínimo. Muito longe dos
200% aleatórios dos mercados emergentes. Relógios, lenços, camisetas.
Meio volumoso é verdade, mas vende bem. Canetas, óculos de sol, tudo
isso dá muito dinheiro. Daí meu interesse por sua história na Suiça.”
E arremata: “O que lhe proponho é um posto na minha organização.
Modesto, mas lucrativo, como pode ver.”
Entretanto, Vincent recusa a proposta do amigo: “Acho que não
me interessa.” Ao se recusar alinhar-se com a farsa comercial, Vincent
opta pelo modo farsesco mais adequado à sua personalidade particu-
larista. A farsa financeira é capaz de construir fábulas imaginárias de
valorização do valor como o próprio Vincent criou para si e para os ou-
tros (a sua farsa salarial). A farsa comercial organizada por Jean-Michel
por meio do negócio de venda de mercadorias falsificadas, não cria
mundos imaginários mas apenas constrói trocas comerciais falseadas
(o relógio de marca não é autêntico, mas funciona, mesmo que não a
contento). Enquanto a farsa comercial do amigo é uma prática ances-
tral em sociedades monetárias – comprar por um preço e vender por
outro (embora tenha traços modernos como a mistificação da marca,
que contribui para inflar o preço de venda, sendo assim, uma forma de
valorização fictícia), a farsa financeira de Vincent possui um lastro can-
dente de modernidade capitalista vinculada à lógica da financeirização
que predomina sob o capitalismo global.

265
Trabalho e Cinema • Volume 3

Ora, os mercados financeiros executam operações de alto risco


e alta rentabilidade que se contrasta com o pequeno risco e modesta
rentabilidade – em termos relativos - do comércio de mercadorias fal-
sificadas. Como disse Jean-Michel: “Modesto, mas lucrativo” ou ainda
“Meio volumoso, mas vende bem”. Entretanto, tanto num caso, quanto
noutro, temos traços sistêmicos do capitalismo global: a vigência do
parasitarismo capitalista que pouco produz de valor, mas trafica ilu-
sões, manipulando subjetividades monetárias. Além disso, da financei-
rização da riqueza capitalista à falsificação das mercadorias de marcas
temos sintomas da crise irremediável da forma-mercadoria sob o capi-
talismo global.
O amigo Jean-Michel se apresenta para a família de Vincent como
sendo funcionário da Comissão Européia para coordenação anti-frau-
de. Diz ele: “Meu campo é o das falsificações’.” Julien, filho de Vincent,
observa: “Não é tão sério”. Jean-Michel retruca: “Luto precisamente
para mostrar que é sério, que não é um crime leve.” Julien que, como
jovem demonstra sua indiferença pelo direito de propriedade repre-
sentado pelas marcas, rebate: “Se me oferecerem um Reebok pela me-
tade do preço, para mim é igual.” O pai intervém: “Acha o quê? Nunca
terá a mesma qualidade. Num mês está ferrado.” O filho insiste: “Como
sabe? Nunca teve um. Meus amigos tem falsificações e duram o mesmo
tempo.”. Jean-Michel pondera: “Seu pai pode não conhecer, mas lhe as-
seguro que são uma merda. Se der três voltas numa pista, adeus tênis.
Sem contar que está cometendo um crime. E isso não é sério!” (Julien
ainda insiste: “Talvez, mas se sei onde comprar barato um Reebok, eu
compro.”). Prossegue Jean-Michel: “Se gosta tanto de tênis, então vá à
Itália, perto de Nápoles. Em Nápoles, são as roupas, camisetas e sué-
teres; Florença não vai lhe interessar. Lá são os artigos de couro. Em
Turim, são os artigos de luxo, jóias, metais preciosos, relógios.” Julian
espanta-se: “É genial! Se sabem onde se falsifica, por que não pren-
dem?”. Jean-Michel, que demonstra conhecer o ramo das falsificações,
diz: “Não é tão simples assim. Sabemos que existem mais de 200 ofi-
cinas de falsificados na Toscana. Mas elas são clandestinas. Também

266
O mundo do trabalho através do cinema

fazem artigos perfeitamente legais. Por isso não é tão simples distinguir
entre a economia legal e a economia paralela.”
Assim, por trás do comércio de mercadorias de marcas falsifi-
cadas, existe uma afluente indústria da pirataria, a indústria que mais
cresce sob o capitalismo global.
O filme “A Agenda” explicita que o capitalismo global é o capi-
talismo das falsificações – falsificação das mercadorias-marcas, que
por meio da economia paralela se difunde, sendo combatido como ato
ilícito; e a falsificação da riqueza capitalista, que por meio do capital
especulativo-parasitário aparece como atividade financeira licita mas
que transforma a economia mundial num cassino global. Trata-se de
um complexo de reflexividades farsescas que se disseminam pela so-
ciedade do risco.
Num bar, Vincent ouve um relato de um camioneiro que diz ter
sido assaltado: “Roubaram meu caminhão e me levaram para um lu-
gar; me levaram de volta, ainda me levaram a jaqueta...”. Pelo relato
dele, os ladrões levaram tudo do trabalhador camioneiro, deixando-o
apenas de cuecas – ele tornou-se um homem desnudado.
Ora, o mundo social do capitalismo global é um mundo da in-
segurança social. A predação pessoal, dos pequenos furtos às gran-
des extorsões financeiras; da farsa das marcas falsificadas às relações
humanas inautênticas, tornou-se fato cotidiano. Enfim, vivemos num
mundo de furtos que se dissemina. Cada individualidade pessoal de
classe está à mercê das contingencias da vida cotidiana. O caminheiro
lesado pelo furto, deixou-o desnudo – “só de cueca”. É a situação das
pessoas humanas, desnudas diante do mundo do capital. Nada podem
fazer diante das ameaças intangíveis que cercam o cotidiano burguês,
inclusive em países capitalistas mais desenvolvidos como a França.
Vincent não foi apenas demitido. Ele renunciou ao emprego. Foi
despedido e sumiu, não aproveitando a oportunidade de empresas que
– segundo ao amigo de Vincent – não hesitariam em contratá-lo. Por-
tanto, houve uma escolha moral em não assumir mais um emprego
que significasse o controle de seu tempo de vida. Vincent renuncia ao
emprego para empregar seu tempo de acordo consigo próprio. Ele cria

267
Trabalho e Cinema • Volume 3

sua própria agenda pessoal. A renúncia é um gesto de afirmação “ra-


dical” que, por ser meramente individual, não consegue romper com
o círculo de ferro do capital. Ele fica desempregado, mas é obrigado a
encenar uma farsa salarial, além de se utilizar da extorsão financeira
– recorrendo à cultura da financeirização como álibi – para continu-
ar representando seu papel de cidadão respeitável Enfim, Vincent não
rompe com o metabolismo social do capital. Pelo contrário, submerge
nele de forma intensa e bizarra, representado a sua farsa pessoal.
O trabalho estranhado é uma atividade laboral sem sentido para
o sujeito que trabalha. Na medida em que não encontra sentido na sua
atividade vital o homem que trabalho ausenta-se de si. Uma parte de si
não está consigo. Na verdade, o homem que trabalha no capitalismo é
um homem cindido na medida em que está alienado de si e dos outros
– eis um dos significados da alienação do trabalho capitalista.

Num das cenas mais interessantes do filme, Vincent dirige seu


automóvel na escuridão da noite e confessa para o amigo Jean-Michel:
“Adoro dirigir. Na verdade, quando comecei a trabalhar, era minha hora
favorita. Sabe, fico sozinho no carro sem pensar em nada, fumando e
ouvindo música. Pode durar horas. Enfim, acho que a única coisa de
que gostava em meu trabalho era o trajeto. Mas isso acabou me preju-
dicando. Me sentia tão bem no carro que não queria mais sair. Às vezes,
percorria 200 km para ir a um encontro. E na hora de sair da estrada,
no último minuto, sem pensar, eu seguia em frente. Evidentemente,
isso acabou irritando meu patrão. Mas a coisa correu bem. Todos sa-
biam que eu não tinha mais lugar ali e ninguém me segurou. Assim,
ficou fácil negociar minha saída.” Jean-Michel pergunta: “Por que não
contou a sua esposa?”. E Vincent responde: “Não sei. Me pareceu mais
simples continuar.”
Vincent reage à falta de sentido do trabalho, fugindo – eis um
dos traços peculiares de sua personalidade singular. Ele não enfrenta a
alienação, buscando adaptar-se como os demais. A sua resposta singu-
lar – e, como observou Lukács, o homem é um ser que dá resposta - é
fugir, seguindo adiante, quase num movimento inercial. Como temos

268
O mundo do trabalho através do cinema

salientado, Vincent é um homem que foge. Por isso, quando Jean-Mi-


chel pergunta porque ele não contou à esposa que tinha renunciado ao
emprego, ele apenas responde: “Me pareceu mais simples continuar”.
Estar sozinho no carro, dirigindo, “sem pensar em nada, fumando e
ouvindo música”, é o momento existencial em que Vincent se reencon-
tra consigo mesmo.
Existe um contraste candente entre o momento do trabalho assa-
lariado – em que Vincent se afasta de si, dedicando-se às atividades es-
tranhas à sua gratificação pessoal, e o momento do reencontro consigo
mesmo na solidão da autovia, dirigindo o automóvel, cultivando aquela
sensação de liberdade pessoal que a automobilidade lhe concedia: “Me
sentia tão bem no carro que não queria mais sair.”
Na medida em que Vincent é uma personalidade narcísica, cuja
singularidade pessoal está em responder à alienação do trabalho (e
vida) burguesa fechando-se em si – ou melhor, confraternização con-
sigo próprio, a sua fuga do trabalho – e também, da família – é uma
reação particularista que, em última instância, não consegue romper
com o metabolismo social do estranhamento que caracteriza as socie-
dades capitalistas. Pelo contrário, o particularismo singular de Vincent
apenas reitera a lógica da vida e (trabalho) estranhados.
Existe um contraste candente entre o momento do trabalho assa-
lariado – em que Vincent se afasta de si, dedicando-se às atividades es-
tranhas à sua gratificação pessoal, e o momento do reencontro consigo
mesmo na solidão da autovia, dirigindo o automóvel, cultivando aquela
sensação de liberdade pessoal que a automobilidade lhe concedia: “Me
sentia tão bem no carro que não queria mais sair.”
O trabalho de Vincent lhe propiciava um momento de gratifica-
ção, momento casual que acabou lhe seduzindo, levando-o primeiro à
autoconsciencia da sua profunda insatisfação com o trabalho assala-
riado e depois, à fuga para um outro espaço-tempo de vida (e traba-
lho) imaginário. Ao reencontrar-se consigo, Vincent cria sua própria
agenda de trabalho. Literalmente, torna-se um “trabalhador por conta
própria”.

269
Trabalho e Cinema • Volume 3

Ora, a fuga de Vincent não é a rigor, uma saída da situação de


estranhamento. É um via de escape particularista – e excêntrica – da
situação de trabalho (e vida) estranhadas. Ao deixar-se levar pelo mo-
vimento inercial de sua autogratificação intima – sem ponderar sobre
as conseqüências de seus atos pessoais – Vincent está imerso numa
deriva pessoal. É um dos traços da sua condição de proletariedade. Inti-
mamente, ele se recusa à adaptar-se à uma atividade vital insatisfatória
– e pior – perversa, segundo ele, apesar do ambiente legal e a relação
amistosa com os colegas. Talvez seja o conteúdo da atividade laboral
que lhe torna insatisfeito.
Noutra cena interessante do filme, ao conversar com Muriel, a es-
posa, ele confessa – mesmo que tardiamente, pois ele já tinha fugido do
velho emprego que lhe causava insatisfação – suas angústias pessoais.
A perversidade do trabalho estranhado, segundo ele, torna a mentira
mais fácil: “Dizer que tudo vai bem é mentira”. Mas Vincent confessa
não apenas sua insatisfação íntima com o trabalho estranhado, mas, ao
mesmo tempo, seu medo de desapontar. Diz ele: “Medo de não estar à
altura”. E prossegue: “Não tenho mais o controle. Estou me deixando
levar. As vezes, não sei o que fazer; o que esperam que eu faça. Entro
em pânico. Um simples telefonema se torna insuperável. Não consigo
pensar. Minha cabeça está no vazio.” E explicita alterações na própria
percepção que ele tem das pessoas no local de trabalho: “Olho as pes-
soas à minha volta; as pessoas com quem trabalho e vejo apenas rostos
desconhecidos. São como momentos de ausência. Estou cansado.”
O espaço-tempo de Vincent não é o espaço-tempo das outras pes-
soas ao seu redor. Nesta cena em que confessa para a esposa Muriel
suas angústias pessoais, Vincent já tinha deixado há tempos o velho
emprego. Mas confessa sentimentos (e angústias) presentes que per-
tencem ao tempo passado e que talvez ainda o persigam como reminis-
cência. Assim, mesmo vivendo a farsa salarial de funcionário da ONU,
ele é perseguido pelo espectro do trabalho alienado que se reitera em
seu imaginário, apesar de ter cortado laços efetivos com o empregado
passado. Talvez, a sensação de estranhamento que emerge com o traba-
lho estranhado – como o fetiche que impregna os produtos-mercadoria

270
O mundo do trabalho através do cinema

- adere à subjetividade do homem que trabalha e o persegue mesmo


que ele não esteja mais naquela situação pretérita.
Vincent confessa para Muriel que tem uma insatisfação aguda
com o emprego. Como ele diz, é algo “perverso”. Ora, a idéia de perver-
sidade do trabalho estranhado é interessante, pois remete à dimensões
intimas da subjetividade do homem que trabalha – perversidade im-
plica na conjunção contraditória entre gratificação íntima e desefetiva-
ção. Nesse caso, na medida em que o trabalho possui uma gratificação
pessoal – ambiente legal e colegas amistosos – ele, ao mesmo tempo,
desefetiva o ser genérico do homem que trabalha. Eis a contradição
crucial que dilacera Vincent em sua insatisfação laboral. Sob o capi-
talismo global, dissemina-se formas de trabalho capitalista – o traba-
lho flexível – que possui uma dimensão de perversidade. As empresas
buscam criar ambientes de trabalho gratificantes, acolhedores e que
propiciam uma gratificação íntima. Mas ao mesmo tempo, o trabalho
flexível capitalista não perde a sua dimensão de trabalho estranhado
– ou trabalho capitalista, que significa a desefetivação do ser genérico
do homem. Eis a dimensão da perversidade do trabalho flexível nas
empresas toyotizadas. Alias, o capitalismo global é um sistema da per-
versidade em sua dimensão plena, na medida em que é, por um lado, a
riqueza do possível, e ao mesmo tempo, a miséria do presente.
A perversidade (e a perversão) se apresentam, portanto, como a
moralidade íntima do metabolismo social do capital em sua etapa de
crise estrutural. Na verdade, o tempo histórico do capital é o tempo
histórico da perversidade. Sob o capitalismo global, a perversidade se
coloca no cerne do metabolismo social tendo em vista que o fetichis-
mo da mercadoria assumiu proporções exuberantes. Aliás, o fetiche
é intrinsecamente perverso – articula em si, ao mesmo tempo, auto-
gratificação e desefetivação humano-genérica (ora, a mercadoria que
seduz é o mesmo produto que se tornou coisal, negando, deste modo, o
sujeito humano e o ser genérico do homem).
A manipulação capitalista sob o capitalismo global assume di-
mensões perversas na medida em que é intrinsecamente envolvente e
sedutora – instiga desejo e, ao mesmo tempo, aliena o homem no sen-

271
Trabalho e Cinema • Volume 3

tido radical. Aliás, a “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital


é, hoje mais do que nunca, uma operação envolvente – inclusive com
os requintes da sedução íntima que visa desefetivar o ser genérico do
homem (isto é, a consciência de classe em si e para si capaz de negar o
statu quo).
Pode-se dizer que existe uma homologia estrutural entre forma-
mercadoria (e sua moralidade implícita) e formas de perversidade
sexual que emergem sob o tempo histórico da burguesia decadente.
Por exemplo, no alvorecer da modernidade burguesa, Marques de Sade
traduzia em sua filosofia erótica o espírito da perversidade que carac-
terizaria e era burguesa. É claro que Sade representava a nobreza deca-
dente cuja perversidade íntima era uma resposta à sua obsolescência
histórica enquanto classe social. Mas Sade soube traduzir na trama de
suas narrativas perversas o traço essencial do mundo burguês: a reifi-
cação – isto é, as relações humanas se intervertem em relações coisais
e o outro como próximo é apenas um meio para a sua auto-gratificação
íntima estranhada.
Na sociedade burguesa, o Outro como próximo é apenas meio
para a auto-gratificação alienada (o sadismo como perversão sexual se
caracteriza por uma satisfação íntima intrinsecamente particularista
– o que significa que é, ao mesmo tempo, desefetivação humano-gené-
rica do outro como próximo e, na mesma medida, desefetivação de si
próprio como ser genérico).
O fetichismo da mercadoria como forma social, ao cruzar com
as pulsões libidinais, tenderia a constituir, no plano de singularida-
des pessoais, traço sóciometabolico das perversões que permeiam, em
maior ou menor proporção, a vida cotidiana do mundo burguês.
Na verdade, Vincent é um homem proletário cindido à exaustão
em sua personalidade singular. A cisão íntima da individualidade pes-
soal de classe, no caso de Vincent, projetou-lhe noutro espaço-tempo
imaginário, espaço-tempo particularista, onde ele construiu a sua farsa
salarial. É curioso que ele ainda sofre – mesmo sob a situação imaginá-
ria da farsa salarial – a perversidade do trabalho estranhado. Enfim, ele
não consegue livrar-se do estigma da alienação que lhe persegue. A sua

272
O mundo do trabalho através do cinema

fuga do trabalho é tão farsesca como a sua mentira de ser funcionário


da ONU.
Outra implicação contraditória no espírito de Vincent – além da
implicação perversa indicada por na conversa com Muriel (gratificação
íntima versus desefetivação humano-genérica) é aquela entre insatisfa-
ção pessoal com o trabalho estranhado e comprometimento moral com
valores-fetiches do capital. Por isso ele tem medo de desapontar e medo
de não estar à altura, como confessou para a esposa. Enfim, Vincent é
um homem cindido e clivado de contradições entre o princípio de reali-
dade – que é estranho a si e o desefetiva de forma perversa; e o principio
de desempenho, que exige, no seu subconsciente, que ele esteja à altu-
ra das competências exigidas e metas colocadas pela empresa. E mais
ainda: como homem provedor, a consciência coletiva de Vincent exige
de si que ele esteja à altura da moral da carreira de sucesso e homem
produtivo. Enfim, Vincent é um homem proletário dilacerado pelos
valores-fetiches do mundo burguês

Perversidades do capitalismo flexivel

Auto-gratificação íntima versus


desefetivação humano-genérica

Insatisfação pessoal versus


comprometimento moral

O trabalho estranhado e o prosaísmo da vida burguesa inquietam


Vincent, deprimindo-o. Ele torna-se um homem taciturno e depressivo,
pois na medida em que o tempo de vida se reduz a tempo de trabalho,
estreita-se seu campo de desenvolvimento humano (como consultor
financeiro na era do capitalismo global, caractrizado pela exuberancia
do capital especulativo-parasitário, o trabalho estranhado de Vincent o
estava consumindo). Muriel, sua esposa, que o amava, conseguia senti-
lo depressivo, e relaciona sua depressão com o regime salarial. Por isso,

273
Trabalho e Cinema • Volume 3

num certo momento, quando o casal estava na cama, na cabana nos


gélidos Alpes suíços, a mulher retrucou: “O trabalho ainda o deprime?
Se está com problemas, quero que me conte.” Ora, quando estava depri-
mido, Vincent recolhia-se em seu particularismo, fechando-se em sua
interioridade avassalada. Submerso na alienação íntima, o homem par-
ticularista fecha-se em si mesmo, não expressando nem para a pessoa
amada, aquilo que lhe incomoda. Como homem avassalado ao regime
salarial, Vincent é um homem fechado que criou para si mesmo a farsa
de sua própria desgraça. Ao calar-se, torna-se incomunicável. Vincent
expressa, deste modo, um dos atributos da condição de proletariedade:
a incomunicabilidade, que é a condição existencial de personalidades
humanas reduzidas à própria particularidade.
Vincent é um homem proletário cuja personalidade humana está
reduzida ao estado de particularidade. Em sua singularidade pessoal,
exprime com tipicidade a situação de estranhamento que emerge sob a
relação-capital. Ao submergir em seu particularismo pessoal, cria para
si a farsa de sua própria desgraça – o trabalho asssalariado. Torna-se
um homem isolado, da família e dos velhos amigos. Ele quer estar ape-
nas consigo mesmo e ter sua própria agenda. Numa cena do filme, o
velho amigo e ex-colega de trabalho lamenta o afastamento de Vincent:
“Almoçamos juntos quase 10 anos. E os serões que passamos juntos?
Isso não conta?”.
Ao romper os laços profissionais com o velho emprego, Vincent
rompe também os laços de amizade que mantinha com os colegas de
trabalho. Talvez ele não percebesse os momentos de almoço em tor-
no da empresa e as horas-extras no trabalho como momentos de sua
humanidade. Talvez aquelas relações sociais humanas no local de tra-
balho estavam impregnadas de instrumentalidade sistêmica, sendo
aquilo tudo algo estranho – ao romper com o regime salarial, rompeu
também com aqueles laços humanos que se constituíram em torno do
trabalho assalariado.
Na verdade, o metabolismo do capital tende a criar em torno de
si, laços humanos fragilizados pelas relações sociais instrumentais que
se sobrepõem à relação social verdadeiramente humana. No sistema

274
O mundo do trabalho através do cinema

social em que não é possível uma vida plena de sentido, laços de ami-
zade tendem a serem fragilizados pela contingencia da vida social. Na
medida em que Vincent é uma personagem típico – ou personagem heu-
ristico – capaz de explicitar os desvarios da vida humana sob a sociabi-
lidade estranhada do capital, ele explicita, quase que de forma exage-
rada, os limites da humanidade na ordem sócio-metabólica burguesa
(o exagero da narrativa realista é um mero recurso metodológico para
explicitar os traços essenciais da sociabilidade burguesa).
Num das cenas do filme, Vincent visita um amigo músico e se
depara com um homem desempregado que fica em casa, cuidando da
filha, enquanto a mulher trabalha fora de casa. Diz o amigo: “Toco para
mim ou para meus amigos. Só isso.” A mulher observa: “Gosto de tra-
balhar. Ele fica com a música, com a filha, está tudo bem!”. É curioso
que há, nesse caso, uma inversão de papéis sociais devido a crise do
emprego – o homem deixa de ser provedor do lar e torna-se dono de
casa. O amigo sorrindo observa, referindo-se a Vincent: “Ele vai me
tomar por cafetão.” Isto é, ele tende a aparecer como aquele que coloca
a mulher para trabalhar para ele.
Ao se reduzir no trabalho do lar, o homem desempregado, reduz-
se a um trabalho não-reconhecido pela ordem social do capital como
trabalho digno. Por isso a comparação com o papel de cafetão. Nesse
caso, apesar do tom irônico do amigo de Vincent, sorridente com a
inversão de papeis no lar, existe a partir da crise do emprego assala-
riado formal, uma crise de identidade do homem provedor na ordem
burguesa hipertardia.
Ainda nesta cena do filme, Vincent, à mesa, conversa com o ami-
go , a mulher e filha pequena sobre a cidade de Genebra, na Suiça. Dá
a sua impressão sobre a vida urbana: “É cosmopolita, mas vejo sempre
as mesmas caras. Grandes executivos ou banqueiros. Não, é sério. Ge-
nebra é uma cidade muito animada.” A impressão de Vincent trata da
ordem social do capitalismo global, cujo cosmopolitismo não se traduz
necessariamente numa diversidade humana, mas sim, numa homoge-
neização de caras impessoais que circulam pelas metrópoles globais.
Vincent percebe – de modo impressionista – o sentido da moderniza-

275
Trabalho e Cinema • Volume 3

ção global das aglomerações urbanas – a concentração num espaço-


tempo de caras impessoais – rostos sem face humana que circulam pe-
los trajetos urbanos. Na verdade, trata-se de uma característica típica
da aglomeração urbana na modernidade burguesa, que assumiria pro-
porções grotescas nas metropóles globais.
Ainda à mesa, a mulher do amigo de Vincent observa, ao saber
que ele é funcionário da ONU trabalhando em projetos de desenvolvi-
mento para a África, que “deve ser gratificante trabalhar para ajudar a
África em vez de trabalhar numa empresa privada ou algo assim.” Ora,
estamos diante de um mito social – nada garante que os projetos de
desenvolvimento conduzidos pela ONU ajudem, de fato, a Africa. Na
medida em que incorporam a agenda neoliberal, talvez eles sejam mais
um elo de reprodução do capital, como qualquer outra empresa priva-
da ou algo assim. Portanto, a suposta gratificação íntima que Vincent
poderia ter – estar trabalhando numa empresa que ajuda a Africa –
seja tão ilusória quanto a situação farsesca criada por ele. Eis mais um
elemento de perversidade social – a ilusória auto-gratificação oculta a
verdadeira desefetivação humano-genérica no sentido de preservação
da reprodução estranhada do capital.
O capitalismo global instaura o poder da ideologia como ilusio-
nismo social. Na verdade, nem tudo que parece, é. O que aparece como
interesse público pode representar tão-somente a forma de ser do inte-
resse privado sob determinadas condições da luta de classe. É claro que
não podemos desprezar a aparência como forma de ser da essência –
isto é, reduzir meramente o “interesse público” ao “interesse privado”.
Mas, sob determinadas condições da luta de classes e do desenvolvi-
mento histórico do capitalismo, o denominado “interesse público” ou
“interesse geral” – que não se confunde com interesse coletivo – é a
forma de ser da reprodução complexa do capital como sistema de con-
trole do metabolismo social (o que coloca, deste modo, a necessidade
sócio-ontológica do Estado político – a representação-mor do “interes-
se geral” - para a reprodução das sociedades complexas do capital).
Ao conversar com o pai, Vincent incorpora a posição de funcio-
nário da ONU ligado a agencia de desenvolvimento da África. Ele vive

276
O mundo do trabalho através do cinema

com intensa dose de realismo sua farsa salarial. Chega a discutir com
o pai sobre o programa da ONU intitulado “Treinamento para o de-
senvolvimento”, que lhe retruca com veemência: “Não me venha com
belas palavras”. Mas Vincent, que deve ter aprendido tudo isto lendo
os folders que recolheu na ONU, insiste explicando: “’Educação para o
desenvolvimento’ é pomposo, mas não é um termo vazio. Por exemplo,
fiquei surpreso ao ver que no comitê ONU/ONG somos 6 representan-
tes da ONU num total de 26. As outras são de ONG’s. Percebe? É quem
está no campo que nos ensina sobre a situação local.”.
O pai de Vincent não se convence com a argumentação quase-
ingênua do filho. Pelo contrário, retruca dizendo: “Sei bem como é isso.
O tempo é todo gasto em reuniões que nada produzem. Por exemplo, o
que se decide nesse Fórum?”. E Vincent observa: “Simplesmente a cria-
ção de empresas em países em desenvolvimento – o que é bom. Por um
lado propomos financiamentos para montar empresas. Por outro lado
acompanhamos a administração, fazemos consultoria…”.
Percebe-se que o “desenvolvimento” que Vincent faz referência
decorreria tão-somente da lógica do mercado, não tendo nada a ver de-
senvolvimento social propriamente dito. Enfim, é pura farsa que oculta
os interesses de classe em reforçar e ampliar a lógica da acumulação
de capital. O pai – talvez um velho socialista – critica: “Está sonhando!
Consultoria na África? Como pode acreditar nisso?”. Muriel, esposa de
Vincent que acompanha atentamente a conversa faz referência ao “co-
mércio eqüitativo”. Mas o sogro rebate: “Isso é besteira. São iniciativas
privadas que nunca resolveram os problemas dos países subdesenvol-
vidos.” E conclui: “É evidente que é importante tentar esse tipo de coisa.
E é bom que Vincent esteja nisso. Mas não me diga que isso vai salvar
o mundo.”
Numa cena curiosa, Vincent, ao retornar da cabana nas monta-
nhas geladas nos Alpes suíços, com Muriel, por um momento, se afasta
dela, que desaparece na névoa branca. É um momento quase onírico
do filme, onde Vincent expressa, por alguns segundos, sua insegurança
existencial e o medo de perder a mulher amada, companheira, mãe de
seus filhos. Há um claro sentido metafórico na cena da paisagem gela-

277
Trabalho e Cinema • Volume 3

da dos Alpes suiços – sob o tempo gélido do capitalismo global, com


sua névoa branca que envolve a todos, há momentos de dispersão onde
podemos nos afastar, sem percebermos, do Outro como próximo. A
perda do outro – e de nós mesmos – se coloca a todo momento.
O filme “A Agenda” é construído sobre um conjunto de situações de
farsas que compõem o capitalismo global. Da farsa salarial (o emprego
de Vincent) à farsa da mercadoria (os produto-mercadorias de Jean-Mi-
chel), temos o relato da trapaça na politica, experiencia vivida pelo amigo
de Vincent – Jean-Michel, ex-relações públicas de um politico envolvido
em corrupção financeira que diz: “Tinha um amigo na politica. O parti-
do precisava do dinheiro dele, eu também. Trapaceamos juntos. Eu era
meio bobo, meio ingênuo.” O caderno laranja com recortes de jornais – o
pressbook – foi feito pela filha de Jean-Michel – Annie, Diz ele: “Ela colou
tudo, anotou tudo, registrou tudo. Fez um belo trabalho.” Talvez a atitude
da filha tenha tido um caráter pedagógico – não fazer o pai esquecer do
tempo passado marcado pela insensatez.
Jean-Michel é um homem solitário. A filha, que hoje tem 19 anos,
o abandonou. Diz ele: “Acho que gostava mais de mim quando estava
preso do que depois que saí”. Vincent faz uma observação – talvez pen-
sando também em si: “Deve ser estranho perder tudo de um dia para o
outro”. Jean-Michel viveu a sua deriva pessoal no presidio ao cometer
atos de trapaça financeira. Ele diz que hoje, passado o tempo, tem a
impressão de ter se livrado disso tudo. Por outro lado, Vincent vive hoje
sua deriva pessoal construindo sua farsa salarial e cometendo trapaça
financeira com o dinheiro dos outros.
Julian, filho de Vincent, pratica judô, arte marcial que tornou-se
inclusive esporte olímpico. Eis a metáfora da competitividade que rege
o mundo do mercado global. Como esporte individual, o judô exem-
plifica a lógica da concorrência sob o capitalismo global. O embate
exige concentração e golpes calculados num ritual de enfrentamento
demarcado por regras estabelecidas. Sob o olhar perscrutador do juiz,
os movimentos dos contendores são calculados e qualquer erro pode
significar vantagem decisiva ara o adversário. Talvez o tablado seja a

278
O mundo do trabalho através do cinema

metáfora do mercado. Ao lutar judô, o filho de Vincent demonstra estar


incluído – tanto quanto o pai – na lógica do capitalismo global.
Numa certa cena do filme, Julien, o filho de Vincent, conversa
com o pai e Jean-Michel. O amigo de Vincent pergunta a Julien porque
escolheu o judô ao invés do aikidô ou tae-kwon-do. O jovem adolescen-
te observa: “Tae-kwon-do é coisa de moda. Equilíbrio interno. Essas
besteiras não me interessam.” Jean-Michel observa que talvez o aspecto
New Age do tae-kwon-do incomode Julien, que diz: “Sei lá. É muito
espalhafatoso. Como esse troço de combate corpo a corpo. Essas coisas
não me interessam. Os caras me dão medo.”
Julien treina com afinco judô, que lhe toma todo o tempo – o judo
é sua paixão (apesar disso, ele diz ter boas notas). Jean-Michel observa:
“Tem sorte, Vincent, de ter um filho que tem uma paixão. Se eu tivesse
um filho, gostaria que ele sonhasse com o futuro.”.
Ora, como o pai, Julien se recusa a aceitar as “coisas da moda” ou
as trivialidades da pseudo-concreticidade da vida cotidiana. Por exem-
plo, como vimos, Vincent se insurge contra o emprego prosaico que lhe
provoca insatisfação, criando a sua própria farsa salarial. Ora, talvez
Vincent devesse ouvir Enya, música da New Age ou lutar, por exem-
plo judô (ou mesmo tae-kwon-do) para desestressar – mas Vincent se
recusa – pelo menos sob a situação de deriva pessoal, a adaptar-se ao
salariato que lhe dá uma vida sem sentido.
Numa das cenas finais do filme, Vincent enfrenta Julien, seu fi-
lho mais velho, que se recusa a descer para jantar à mesa, com o pai. O
filho diz que está sem fome e não quer ver o pai: “Não vou comer com
ele. Ele é um canalha. Sabe disso! Ele mentiu. Ele me dá nojo.” Vincent
percebe que a sua farsa salarial – ou vida de farsa – caiu diante da fa-
mília. Por um momento, ele sente o estranhamento dos filhos pequenos
que olham impávidos para ele: “O que deu em vocês? Estão com medo
de mim?”. Vincent se dirige a Julien no quarto acima. O filho diz para
ele: “Você nos traiu. Riu de nós”. Vincent extravasa: “O que há de erra-
do? Pode me dizer? O que mudou? Estive ausente demais? Não cuidei
o bastante de vocês? Sim, é isso. Demorei demais? Está pensando em
quê? Não é tão simples. O que está achando? Que eu sou um canalha?

279
Trabalho e Cinema • Volume 3

Nada mudou para voce. Tem consciência disso? De tudo que fiz para
que vivesse como se nada tivesse acontecendo? Eu podia ter sumido.
Sabia disso?”.
Nesse momento, Vincent salienta outro aspecto constitutivo da
sua farsa salarial – é tão-somente um modo de acomodação possível do
statu quo familiar nas condições da sua abrupta deriva pessoal. Nesse
caso, deve-se levar em consideração a singularidade do homem sin-
gular. Considerar Vincent meramente um canalha ou mentiroso seria
demasiadamente simples. “Não é tão simples”, diz ele. A “loucura” de
Vincent não pode ser avaliada meramente por critérios morais. Vin-
cent escolheu a farsa para não extinguir a vida familiar. Ele fez tudo
aquilo para que nada mudasse na vida familiar. A outra saída possível
– segundo ele – seria ter sumido. Enfim, a construção da farsa social
não é um ato de imoralidade, mas diz respeito às determinações sócio-
ontológicas - articuladas com a singularidae pessoal de cada indivi-
dualidade de classe – que se impõe, sob certas condições concretas, a
homens e mulheres imersos na condição de proletariedade.
Após discutir com o filho mais velho, enfrentando o clima des-
confortável da família, Vincent foge – como sempre faz diante de situ-
ações de impasse. Pega o carro a noite e dirige pela auto-estrada. Pelo
celular, num primeiro momento, o pai faz um apelo para que ele volte:
“Não fique assim. Problemas de dinheiro podem ser resolvidos. Se não
quiser conversar, não conversaremos. Ninguém vai pedir explicações.
Em um mês será esquecido. Acredite nisso. Nós acreditamos. Apenas
responda, Vincent!”. Teme-se pelo pior. Logo a seguir, a mulher busca
contactá-lo: “Vincent, sou eu. Estou sozinha. Estamos só nós dois. Não
vai me atender? Vincent, queria estar com você agora. Sinto saudade.
Não vá destruir tudo. Não vá me deixar sózinha. Estou cansada, Vin-
cent. E amo você.”
Ora, nessa cena final, percebe-se que os dois pilares da ordem fa-
miliar de Vincent – o pai e a mulher - fazem um apelo visando resgata-
lo de atitudes transloucadas. Na verdade, eles representam a Ordem
vigente que procura assegurar-se que Vincent se mantenha na linha da

280
O mundo do trabalho através do cinema

racionalidade familiar (o Pai, autoridade moral da família primordial e


a Mulher, mãe dos seus filhos, autoridade moral da família vigente).
A cena final do filme “A Agenda” é uma cena de reconciliação com
a realidade. Enfim, Vincent não rompe com a racionalidade familiar,
evitando cometer loucuras (como, por exemplo, o personagem princi-
pal do filme “O Adversário”). Nesta cena final, Vincent está diante do
executivo de uma empresa de consultoria que o contrata, apresentando,
para Vincent, nesse momento, os termos do novo emprego. É provável
que o novo emprego tenha sido arranjado pelo pai, diante da situação
desesperadora do filho (o pai de Vincent observou para o executivo que
o filho era um homem de ambição).
Nesta entrevista de Vincent, num primeiro momento conhe-
cemos, com clareza, a sua trajetória profissional: ficou cinco anos na
empresa DR – Consultoria, ocupando o cargo de consultor financeiro
(Vincent lidava assim, há tempos, com a lógica do mercado financeiro,
centro nevrálgico do capitalismo global). A DR Consultoria foi quase
uma escola para Vincent, em começo de carreira. Depois, ele muda-
se para outra empresa – a Partner, ficando lá 11 anos. Entretanto, ele
resolve sair. Diz ele: “Simplesmente senti que estava andando em círcu-
los, sem ver futuro. E sou uma pessoa que funciona pelo entusiasmo.”
Após sair da Partner, ficou 7 meses parado (é o período de tempo que o
filme aborda). O executivo pergunta: “O que aconteceu? Não havia pre-
parado sua saída?”. Vincent dissimula: “Digamos que pesquisei muito
nesse período. Preferi dar um tempo até encontrar um emprego que
me satisfaça plenamente.”. O executivo observa, sempre num discurso
pró-ativo: “Posso entender. Acho que é uma qualidade saber esperar.
Sobretudo depois de 11 anos numa empresa. É importante pensar na
adequação entre o que oferece a empresa e o que esperamos dela”.
A reconciliação com a realidade – isto é, com a ordem familiar
– que ocorre no final do filme “A Agenda”, é decorrência objetiva dos
impasses íntimos do personagem principal – Vincent, que tornou-se
incapaz de dar uma resposta efetiva à insatisfação existencial com o
trabalho estranhado depois de 16 anos como consultor financeiro. Na
verdade, ele acaba sendo “capturado”pela racionalidade familiar que

281
Trabalho e Cinema • Volume 3

impede o pior – uma atitude irracional (suicídio, por exemplo), tendo


em vista a impossibilidade dele ir além da situação dada de agudo es-
tranhamento íntimo.
Após Vincent ter-se apresentado, o executivo faz uma explana-
ção das tarefas que Vincent deverá assumir no novo emprego. Ora, a
reconciliação com a realidade é, na verdade, um novo cerco do capital
na vida de Vincent. Nesta cena final, sua expressão humana é de aguda
resignação à existência perversa que lhe aguarda.
O pai de Vincent observara para o executivo que Vincent era um
homem de ambição. Ambição - eis o atributo moral decisivo na ordem
sócio-metabólica do capital sob o capitalismo global predominante-
mente financeirizado. Diz o executivo: “A ambição é um grande motor
na carreira. Mais ainda nesse caso, já que é um cargo de alta respon-
sabilidade. Primeiro, porque é uma área que mal começou e estamos
investindo muito. Trata-se de uma aventura financeira estratégica para
nosso grupo, mas também e acima de tudo, ao nosso ver uma aventura
humana.” Ora, eis a suprema ironia do capital – reduzir a aventura hu-
mana à busca da valorização do capital financeiro.
É importante salientar que a ambição é o afeto moral do capi-
talismo global sob a acumulação predominantemente financeiriza-
da. Traduzido literalmente do latim – “ambire” - “ambição” significa
“mover-se livremente”. É o que quer o capital financeiro – mover-se
sem barreiras para acumular mais e mais. Enquanto afeto moral, a am-
bição, em si, não significa um vicio condenável, mas, sob a ordem da
aquisitividade capitalista, ela traduz o impulso irracional do egoismo
burguês. Na verdade, ela é o afeto primordial da ordem capitalista ori-
ginária. O que move o capitalista a acumular, acumular, acumular é a
ambição. Por exemplo, os amigos de Vincent que aceitaram investir a
poupança na aventura financeira proposta por ele, estavam todos mo-
vidos pela ambição de fazer mais dinheiro. Neste modo, sob a ordem
sócio-metabólica do capital, a ambição é um afeto moral à serviço da
valorização do valor.
Após 7 meses sob deriva pessoal – o tempo em que Vincent parou,
isto é, ficou fora do tempo do trabalho estranhado, por livre e espon-

282
O mundo do trabalho através do cinema

tânea vontade (“time out”, título do filme na versão inglesa), ele volta
quase à estaca zero, entregando-se à atividade de gestão de uma aven-
tura financeira. Enfim, coloca-se no centro nevrálgico da financeiriza-
ção capitalista, entregando-se ao cultivo do mais fascinante fetiche do
capital – o fetiche do capital-dinheiro.
No final, sob a expressão circunspecta de Vincent (nos pergun-
tamos o que ele deverá estar pensando naquele momento) o executi-
vo apresenta-lhe a nova aventura humana. Diz ele: “Terá uma equipe
de 8 pessoas, uma equipe jovem que terá de moldar. É um campo de
trabalho bastante completo que lhe propomos. E, é claro, exigirá um
investimento pessoal grande de sua parte. Enfim, se vier se juntar a nós
nesse empreendimento.” (o grifo é nosso) E o executivo observa, mais
uma vez com tremenda ironia: “Mas sejamos claros, não haverá pres-
são excessiva sobre você. Não vou subestimar a amplitude da tarefa que
o espera.”. Vincent, com expressão séria – como a do boi indo para o
matadouro – afirma: “Isso não me assusta”.
E o executivo prossegue: “Nesse caso, entraremos um pouco mais
nos detalhes. Naturalmente, a direção da empresa identificou oportuni-
dades que nos levaram a preparar esse tipo de investimento. Contudo,
trata-se apesar de um plano de atividade que passaremos a você. Não
temos a perspicácia da pessoa encarregada dessa atividade. Em outros
termos, se sentir que há uma possibilidade de investimento, uma opor-
tunidade, é seu papel nos alertar, formalizar a oportunidade.”
O filme conclui-se com a “captura” de Vincent pelo capital finan-
ceiro – “captura” da subjetividade do trabalho – por exemplo, como
salientamos no grifo acima, a empresa exigira de Vincent um “grande
investimento pessoal” e a sua “perspicácia”. Além disso, é curioso como
o discurso empresarial é permeado de candentes ironias que talvez
ocultem a dimensão farsesca do capitalismo sob sua crise estrutural Na
verdade, o capitalismo como farsa constitui seu discurso hegemônico
a partir de singelas ironias, como por exemplo, reduzir a aventura hu-
mana à atividade de valorizar capital-dinheiro; ou ainda, dizer que não
haverá pressão excessiva sobre você ao mesmo tempo que salienta a

283
Trabalho e Cinema • Volume 3

amplitude da tarefa de risco (como toda tarefa do mercado financeiro)


– e o pior: exigirá de Vincent um grande investimento pessoal.
Portanto, ambição profissional e perspicácia para identificar
oportunidades de investimentos – eis o que Vincent será obrigado a
cultivar, implicando nesta tarefa, o amesquinhamento da subjetividade
humana. Ora, a subjetividade é a condição ontológica da pessoa huma-
na – assim, ao implica-la numa atividade prático-sensivel tão mesqui-
nha quanto acumular capital-dinheiro em si e para si – o homem como
trabalho vivo se amesquinha na mesma medida do valor acumulado.

284
O mundo do trabalho através do cinema

Capítulo 6

“O Invasor”

Beto Brandt
(2001)

O filme “O Invasor”, de Beto Brandt, explicita, com vigor, dimensões


candentes do sociometabolismo da barbárie nas condições do ca-
pitalismo periférico. É o que iremos destacar nesta análise crítica do
filme. Num primeiro momento, é importante distinguir barbárie so-
cial de barbárie histórica e apreender a morfologia social da barbárie
como sistema de perversões sociais. Além disso, é importante salientar,
a partir da análise critica do filme, um processo de inversão social que
caracteriza a era do sociometabolismo da barbárie: a lumpenização da
‘classe média” e o aburguesamento do lumpesinato.
Ora, o processo de lumpenização social que marca as formas capi-
talistas periféricas sob a mundialização do capital – como retrata o filme
“O invasor”, de Beto Brandt – são sintomas candentes do apodrecimento
do homem burguês sob o período da decadência histórica do capital.
O filme “O Invasor” é baseado no romance homônimo de Marçal
Aquino, publicado em 2002. Nascido em 1958, na cidade de Amparo,
no Estado de São Paulo, Marçal Aquino é um jornalista, escritor e rotei-
rista de cinema brasileiro. Trabalhou como revisor, repórter e redator
nos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde. Atualmente, trabalha
como jornalista free-lancer. Escreve ficção adulta e juvenil, e faz rotei-
ros para o cinema. Publicou, entre outros livros, os volumes de contos
O amor e outros objetos pontiagudos, Faroestes e Famílias terrivelmente
felizes (antologia), além das novelas O invasor e Cabeça a prêmio. Atuou
como roteirista dos filmes Os matadores, Ação entre amigos, O invasor e
Nina. Recebeu diversos prêmios por seu trabalho literário, como o pri-

285
Trabalho e Cinema • Volume 3

meiro lugar na categoria conto da 5ª Bienal Nestlé de Literatura (1991)


e o Prêmio Jabuti (2000). Jornalista, trabalha como free-lancer.
A narrativa do filme é simples: Estevão, Ivan e Giba são sócios em
uma construtora – Araújo Associados. Tudo corre bem até o dia em
que um desentendimento na condução dos negócios os coloca em con-
flito. Estevão, o sócio majoritário, ameaça desfazer a sociedade. Ivan e
Gilberto, acuados, resolvem eliminar o sócio, contratando Anísio, ma-
tador profissional. Após cumprir o plano, Anísio, passa a interferir nos
negócios da empresa e a namorar a jovem Marina, filha de Estevão.
Em primeiro lugar é importante situar o período histórico em
que se constitui o sociometabolismo da barbárie. A primeira grande
recessão do pós-guerra, em 1973, inaugura o período histórico de cri-
se estrutural do sistema do capital, marcada pela sobre-acumulação e
intensa concorrência internacional. A crise estrutural do capital se ca-
racteriza pelo fim da ascensão histórica do capital no Ocidente. É com
a crise estrutural do capital que se abre um novo patamar histórico da
barbárie social no século XX.
Em “Para Além do Capital”, István Mészáros observa que “a crise
do capital que experimentamos hoje é fundamentalmente uma crise
estrutural”. É claro que, como observa ele, não há nada especial em
associar-se capital a crise. Pelo contrário, crises de intensidade e dura-
ção variadas são o modo natural de existência do capital. As crises são
maneiras do capital progredir para além de suas barreiras imediatas e,
desse modo, estender com dinamismo cruel sua esfera de operação e
dominação. Enfim, o capital necessita de crises para que possa se de-
senvolver como sistema de acumulação de valor. Nesse sentido, como
salienta Meszáros. a última coisa que o capital poderia desejar seria
uma superação permanente de todas as crises, mesmo que, como sa-
lienta o autor, seus ideólogos e propagandistas freqüentemente sonhem
com (ou ainda, reivindiquem a realização de) exatamente isso.
A novidade histórica da crise que atinge hoje o sistema mundial
do capital torna-se manifesta – segundo István Meszáros - em quatro
aspectos principais:

286
O mundo do trabalho através do cinema

1. seu caráter é universal (no sentido de ser uma crise sistê-


mica), em lugar de restrito a uma esfera particular (por
exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aque-
le ramo particular de produção, aplicando-se a este e não
àquele tipo de trabalho com sua gama específica de habili-
dades e graus de produtividade etc.;
2. seu alcance territorial é verdadeiramente global (no sentido
mais literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado
a um conjunto particular de países (corno foram todas as
principais crises no passado);
3. sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir, perma-
nente, em lugar de limitada e cíclica, como foram rodas as
crises anteriores do capital;
4. em contraste com as erupções e os colapsos mais espetacu-
lares e dramáticos do passado, seu modo de se desdobrar
poderia ser chamado de rastejante, desde que – como ob-
serva Meszáros – “acrescentemos a ressalva de que nem se-
quer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam
ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando a
complexa maquinaria agora ativamente empenhada na ‘ad-
ministração da crise’ e no ‘deslocamento’ mais ou menos
temporário das crescentes contradições perder sua energia”.
Prossegue ele: “Seria extremamente tolo negar que tal maquina-
ria existe e é poderosa, nem se deveria excluir ou minimizar a capa-
cidade do capital de somar novos instrumentos ao seu já vasto arse-
nal de autodefesa contínua. Não obstante, o fato de que a maquinaria
existente esteja sendo posta em jogo com freqüência crescente e com
eficácia decrescente é uma medida apropriada da severidade da crise
estrutural que se aprofunda”.

287
Trabalho e Cinema • Volume 3

Modos da crise estrutural do capital


Sistêmica
Global
Permanente
Rastejante

A crise estrutural do capital com sua dinâmica sistêmica, global,


permanente e rastejante – possui implicações sócio-metabólicas capazes
de alterar o registro civilizatório no sentido radical. Por isso, ela consti-
tui um novo metabolismo social – o sócio-metabolismo da barbarie.
Antes, a barbárie social aparecia como fenômeno de perversida-
de política nos atos planejados, técnica e cientificamente, de genocídio
de Estado, perpetrados contra populações delimitadas (os judeus, por
exemplo). Ora, com a crise estrutural do capital, a partir de meados da
década de 1970, a barbárie aparece como metabolismo social constitu-
ído no bojo da crise estrutural e complexo de reestruturações capitalis-
tas, que colocam o mercado como instância de controle social.
Assim, sob a vigência do neoliberalismo, tende-se a agudizar o fe-
tichismo e estranhamento social. A ação social tende a ser caracteriza-
da por atitudes particularistas das individualidades pessoais de classe.
Instauram-se formas perversas de desefetivação humano-genérica que
impregnam o metabolismo social nas instâncias da vida cotidiana. Por-
tanto, a barbárie social tende a se manifestar não apenas como perversi-
dade politica, mas também como sistema de perversões cotidianas das
relações sociais no trabalho, família, consumo e lazer. O capital aparece
como sistema social das perversões.
O conceito de barbárie social possui um sentido sociológico pre-
ciso – não podemos confundi-la, por exemplo, com as atrocidades
sanguinárias que têm caracterizado a história humana nos últimos mi-
lhares de anos. Nesse caso, trata-se da barbárie histórica que marca a
história (e pré-história) das sociedades de classes. O que denominamos
de barbárie social, que se distingue de outras formas de barbárie histó-
rica, emerge com sua candente particularidade, no século XX, primei-

288
O mundo do trabalho através do cinema

ro, com a derrota histórica da Revolução Socialista no Ocidente (1919),


abrindo espaço para a ascensão do nazi-fascismo e stalinismo (perver-
sidade política); e depois, com o fim da ascensão histórica do capital no
Ocidente (1973) que alterou, radical e irremediavelmente, as condições
de reprodução expandida do sistema mundial do capital, empurrando
para o primeiro plano, como salienta Mészáros, “suas tendências des-
trutivas e seu companheiro natural, o desperdício catastrófico”.
Na verdade, a barbárie social é a reposição da barbárie históri-
ca nas condições de uma sociedade cada vez mais social (a sociedade
burguesa). A barbárie social é a barbárie histórica sob o estágio mais
avançado do processo civilizatório (no sentido de etapa histórica do
desenvolvimento humano-social sob o afastamento tardio das barrei-
ras naturais).
No “Manifesto Comunista” de 1848, Karl Marx e Friedrich Engels
salientaram um conceito de “barbárie” posta como determinação refle-
xiva da civilização do capital - o que significava que o desenvolvimento
natural do capitalismo tendia a ser interrompido por uma epidemia de
superprodução. Dizem eles: “A sociedade vê-se de repente retranspor-
tada a um estado de momentânea barbárie [...] E por que? Porque a
sociedade possui civilização em excesso.” Assim, a barbárie histórica do
capitalismo em sua fase de ascensão era um momento necessário, “um
estado de momentânea barbárie”, caracterizada pela destruição de par-
te das forças produtivas, um elemento necessário para a continuidade
da própria acumulação de capital.
Na verdade, o estado de barbárie decorre da “civilização em ex-
cesso”. Eis a suprema “contradição viva” do capital com impactos deci-
sivos no próprio metabolismo social da modernidade capitalista. Pela
primeira vez na história, o elemento de barbárie histórica, isto é, a des-
truição das forças produtivas, faz parte do próprio modo de produção
(o que não ocorria em nenhum dos modos de produção anteriores). Eis,
portanto, o significado de barbárie social num sentido histórico pro-
priamente dito, isto é, a barbárie social implica na vigência da lógica da
produção destrutiva.

289
Trabalho e Cinema • Volume 3

Marx caracterizou o capital como sendo a “contradição viva”, isto


é, o sistema da barbárie social, tendo em vista que, se por um lado a so-
ciedade burguesa, como observa Lukács, é a sociedade que se torna cada
vez mais social (o que é um elemento do processo civilizatório), por ou-
tro lado, devido as suas crises sistêmicas, ela tende a obstaculizar, com
intensidade e amplitude, o desenvolvimento do ser genérico do homem,
dessocializando-o pelo trabalho estranhado e pelo fetichismo e estra-
nhamento sociais. Além disso, como salientamos acima, o elemento de
barbárie histórica, caracterizada pelas crises sistêmicas recorrentes que
destruíam as forças produtivas do trabalho social, faz parte do próprio
modo de produção, sendo intrínseca à civilização do capital.

Elementos da Barbárie social


Sistema de socialização dessocializadora
(o afastamento das barreiras naturais implica a
constituição de “segunda natureza” que desefetiva o ser
genérico do homem)
Mecanismos intrínsecos de auto-reprodução
ampliada do modo de produção baseado
no estado da barbárie histórica
(produção destrutiva)

Em 1905, Rosa Luxemburg traduziu na frase “Socialismo ou bar-


bárie” o dilema histórico crucial dos primórdios do século XX. Na ver-
dade, a Primeira Guerra Mundial foi a expressão primordial daquilo
que marcaria o século XX como século da barbárie social. Diante da
matança da Primeira Guerra Mundial, se colocava a necessidade histó-
rica do socialismo. Ora, a Revolução Russa de 1917 era parte do pro-
cesso de reação das massas à barbárie social nascente. Mas a derrota da
Revolução Socialista no Ocidente ocorrida em 1919, com o fracasso da
Revolução Alemã, selou o destino do século XX. Primeiro, colocando a
experiencia soviética na Rússia num beco-sem-saida; e depois, abrindo
espaço para a ascensão do nazi-fascismo na Alemanha e Itália.

290
O mundo do trabalho através do cinema

As experiencias do nazi-fascismo e stalinismo são exemplos de


barbárie social como perversidade politica, caracterizando-se como ge-
nocídios de Estado. Elas evidenciam o fracasso das experiencias his-
tóricas da revolução social no Ocidente, derrota histórica que deter-
minariam os limites das experiencias revolucionárias no seculo XX,
(incluindo China e Cuba), incapazes de irem além do capital.
A barbárie social é a etapa tardia da civilização do capital que
não apenas explicita sua incapacidade em realizar as promessas civili-
zatórias, como tende a corroer as bases materiais para a formação de
subjetividade insubmissas capazes de realizar a “negação da negação”.
Ora, a barbárie social é expressão mórbida do apodrecimento do ho-
mem burguês
No decorrer do século XX, a barbárie social se manifesta, num
primeiro momento, como perversidade política. É o caso das técnicas
de extermínio de massas de populações cujo exemplo histórico é a So-
lução Final dos Nazistas. Auschwitz é expressão suprema da barbárie
social como perversidade politica. É a prática racional de eliminação
do Outro diferente levada a cabo – de forma científica – pelo Estado
politico do capital.
Com a crise estrutural do capital, a barbárie social aparece como
sistema de perversões sociais caracterizado pelas formas múltiplas do me-
tabolismo social da desefetivação humano-generica. As formas perversas
de desefetivação do ser genérico do homem se disseminam por meio do
trabalho estranhado e das múltiplas formas de fetichismos sociais sob a
sociedade da precarização do trabalho e desemprego de massa
A barbárie social como sistema de perversões se manifesta por
meio da desefetivação do ser genérico do homem. O metabolismo social
da dessocialização impera sob o capitalismo global, a fase superior do
capitalismo mundial. Sob a crise estrutural do capital se dissemina a
lógica da forma-mercadoria, ampliando-se deste modo, os fetichismos
sociais sob a égide do fetichismo da mercadoria.
Sob a vigência da forma-mercadoria, os produtos da atividade
humana – objetos, instituições e valores - se tornaram coisais – isto é,
opacos e intransparentes, recalcitrantes ao controle social, “negando”

291
Trabalho e Cinema • Volume 3

tendencialmente o sujeito humano e deformando/desconstituindo as


subjetividades insubmissas capazes de “negação da negação”.
A barbárie social possui como significado intrínseco, a dessocia-
lização do homem como ser genérico numa etapa suprema do processo
civilizatório. Nesse caso, há um pleno sentido de regressividade ontoló-
gica do ser social: as individualidades pessoais de classe são desconsti-
tuídas em si e para si, num sentido regressivo.
Ora, a condição de “classe” do proletariado levada à exaustão, no
sentido de sua lumpenização, tende a negar a dimensão pessoal das in-
dividualidades humanas, decompondo-as, em si e para si, como meras
personalidades fictícias, auto-centradas e vazias, carentes de uma vida
plena de sentido.
O homem se dessocializa no momento histórico em que sociedade
tornou-se cada vez mais social – eis o supremo paradoxo da barbárie
social. A dessocialização do homem é produto do desemprego em mas-
sa e exclusão social e do processo de precarização e institucionalização
de uma nova precariedade do trabalho baseada em formas de gestão
pelo estresse e fragmentação dos coletivos sociais.
Em sua forma histórica de sistema de perversões sociais, a barbárie
social é marcada pelo estágio supremo dos processo de fetichização e es-
tranhamento social, onde se coloca o problema crucial da possibilidade
de constituição do sujeito histórico capaz de ir além do capital. Como
sintomas da barbárie social, estão a dissolução do horizonte utópico e a
reiteração do tempo presente, que se traduzem num novo irracionalis-
mo social caracterizado pelo intimismo narcísico – verdadeira expres-
são de personalidades fictícias cada vez mais particularistas, imersas na
concorrência de mercado; e pelo ideal de consumismo voraz que visa
suprir o vazio existencial de vidas inautênticas.
Na medida em que ingressamos na fase de descenso histórico do
capital, caracterizada pela sua intensa expansividade e incontrolabilida-
de, agudizam-se as “contradições vivas” do capital, visto que a mundia-
lização do capital contém um elemento de “civilização em excesso”, ins-
tigando, portanto, o desenvolvimento de um novo patamar do estado
de barbárie. Constitui-se a barbárie social no sentido sociometabólico,

292
O mundo do trabalho através do cinema

isto é, barbárie social que se constitui como sociabilidade de mercado


numa alta etapa de desenvolvimento civilizatório
A barbárie sócio-metabólica se constitui na medida em que se
altera a natureza da crise capitalista que assume um caráter estrutu-
ral, acirrando-se as contradições sistêmicas do capital. Enfim, a crise
estrutural do capital altera a temporalidade da barbárie social que não
se restringe tão-somente a um “momentum” de “exceção” política, mas
torna-se a nova temporalidade sóciometabólica.
Portanto, o capitalismo em sua etapa de crise estrutural instaura
o que podemos chamar de estado de “barbárie social” como sistema de
perversões ampliando, pela raiz, os elementos de negação contínua da
própria civilização humana (o sistema mundial do capital é um sistema
social “afetado de negação”).
O capital como sistema de perversões se caracteriza pela constituição
de personalidades narcísicas auto-centradas em suas fruições egoísticas que
se utilizam do Outro como mero meio do gozo particularista. Além disso, o
homem perverso tende a imputar ao Outro a culpa pela sua própria desgra-
ça. É o que Hannarh Arendt denominou a banalidade do mal.
Na verdade, o que temos é uma sociedade perversa – a sociedade
do capital cuja banalidade (e racionalização) do Mal tende a ser in-
corporada pelo próprio metabolismo social. Como as crises capitalistas
tornaram-se historicamente uma necessidade intrínseca do sistema de
reprodução ampliada do capital, as formas perversas (e farsescas) de
sociabilidade tornaram-se modo de estruturação do próprio metabo-
lismo social da manipulação do capital.

Sociabilidade da perversão
O outro como mero meio de fruição do gozo particularista
Imputação ao Outro da culpa pela sua própria desgraça
Supressão do sentimento de culpa por meio de técnicas de
racionalização (e banalização) do Mal.

293
Trabalho e Cinema • Volume 3

A crise estrutural do capital abre uma nova temporalidade his-


tórica do Estado politico do capital – a temporalidade histórica neo-
liberal. Surge o Estado (e sociedade civil) neoliberal que ampliam os
espaços de sociabilidade de mercado, instaurando, de forma intensa
e ampliada, a concorrência no seio das individualidades pessoais de
“classe” do proletariado. No bojo desta temporalidae histórica particu-
lar, põe-se com maior candência, a desconstituição da subjetividade
humano-genérica. Por isso, o sentido de perversão se impõe nas práti-
cas de manipulação social.
No Brasil, sociedade burguesa hipertardia de origem prussiano-
colonial, cujos desenvolvimento histórico capitalista – a industrialização
moderna - ocorreu no decorrer do século XX, sob o signo da barbárie so-
cial, tende a explicitar, com todas as cores, a barbárie sócio-metabólica em
sua forma periférica. Ela se manifesta, por exemplo, no apodrecimento do
projeto social burguês em seus nichos de modernidade salarial.
No caso do filme “O Invasor”, de Beto Brandt, ela se explicita,
por exemplo, por um duplo processo social: a lumpenização da “classe
média” e o aburguesamento do lumpesinato. Enfim, é um processo de
inversão (e perversão) que – no plano sócio-territorial – se expressa
por meio da invasão dos espaços sociais da modernidade burguesa pela
“ralé” e dos espaços sociais da periferia metropolitana pelo “burguês”
(por um lado, Anísio e por outro lado, Mariana).
O filme “O invasor”, de Beto Brandt, expõe elementos sociomor-
fológicos da barbárie que se explicitam sob a era neoliberal. Ele expõe
a miséria das relações humanas coisificadas sob a sociedade do fetichis-
mo expandido da mercadoria. Eis o cerne essencial da barbárie social: a
intensificação (e amplitude) da reificação das relações sociais humanas
que se intervertem em relações sociais instrumentais, mediadas pelo
dinheiro e poder.
É com o modo de produção capitalista que emerge a coisificação
de homens e mulheres, transformados em meras forças de trabalho
como mercadoria. Este é o princípio constitutivo da sociabilidade bur-
guesa. O avanço do mercado na vida social – que se dá sob a era ne-
oliberal - só fortalece este principio social estranhado. Na medida em

294
O mundo do trabalho através do cinema

que ocorre a coisificação de homens e mulheres, que se tornam meros


meios para fins particularistas, instaura-se, com vigor, o império da
manipulação social.
O filme “O invasor” expõe a degradação humano-genérica em dois
campos fundamentais da sociabilidade humana – as relações de traba-
lho (as relações entre Giba, Ivan e Estevão) e as relações afetivas (Ivan e
Cláudia/Fernanda e Anisio/Marina), relações humanas intrinsecamente
coisificadas e que aparecem esvaziadas de conteúdo ético-moral.
Sob a era da barbárie social, a objetividade da coisificação intrín-
seca às relações sociais capitalistas, é mediada por formas perversas de
subjetividade. Isto é, os algozes tendem a imputar às vitimas de opres-
são, espoliação e exploração, a culpa pela sua própria desgraça. Além
disso, os atos infames dos algozes aparecem como mera expressão da
normalidade extrema de um sistema intrinsecamente perverso – o
sistema do capital. Outro movimento de legitimação perversa é con-
siderar que as vitimas aspiram a sua própria desgraça como modo de
remissão social.
Na cena de abertura, dois sócios – Giba e Ivan - procuram um
matador profissional para eliminar o outro sócio (Estevão) – eis o sen-
tido da barbárie social. Primeiro, a miséria das relações humanas no
núcleo organizado do trabalho capitalista, trabalhadores de classe mé-
dia, pequenos burgueses sem nenhum lastro ético-moral, subsumidos
às relações instrumentais de mercado. Depois, a lumpenproletariedade
cujo degradação humana ocorre não apenas pela despossessão crônica
do controle dos meios de produção da vida social, mas pela impossi-
bilidade objetiva de participar da sociedade de consumo e a imersão
paulatina deles em valores de consumo burguês. Ora, o lumpen – como
Anísio - é um ser ambíguo por natureza – sua proletariedade extrema o
faz não indignar-se com a ordem burguesa, mas sim, almejar integrar-
se a ela. Na verdade, Anísio é o burguês em sua forma barbarizada.
O filme abre com o olhar de Anísio – o olho da barbárie extrema,
o invasor que explicita a miséria da vida pequena-burguesa. É Anísio
que, sentado à mesa do barzinho da zona leste, acompanha, a chegada
de Giba e Ivan. É um olhar que está interposto pelas grades do barzinho,

295
Trabalho e Cinema • Volume 3

sugerindo que ali se trata de homens cativos de sua miséria humana.


Na verdade, todos – Giba, Ivan e Anísio - estão entre grades – grades
do fetichismo social.
A cena de abertura do filme é ocupada, num primeiro momento,
pela figura do lumpen-proletariado – um jovem negro vendedor am-
bulante que segue seu caminho na calçada ao lado do barzinho onde
Anísio observa a chegada de Giba e Ivan no carro de luxo. É deveras
uma sugestiva cena de abertura que expressa o cerco da barbárie na ci-
vilização burguesa – barbárie social expressa não apenas pela presença
ampliada do lúmpen, mas pela pequena-burguesa degradada em seus
valores ético-morais.
Lumpen-proletariado, ou simplesmente lúmpen, é uma palavra
alemã que significa, ao pé da letra, trapo ou homem trapo. É a popula-
ção trabalhadora situada abaixo do proletariado do ponto de vista de
suas condições de trabalho e de vida, constituído pelos elementos de-
gradados e desclassificados do proletariado urbano, assim como aquela
parte da população que, para sua sobrevivência, desenvolve atividades
à margem da legalidade ou sob marginalidade social (delinqüência,
prostituição, etc). O “ser lúmpen” significa pessoa desprovida de qual-
quer tipo de princípio ético; é um estado de espírito que não se restrin-
ge a classes ou categorias sociais; por vezes um oportunista.
Gilberto Vialli (Giba) e Ivan Soares são empresários da constru-
ção civil, que possuem, em sociedade com Estevão Araújo, uma cons-
trutora (Araújo Associados). Estevão é o sócio com maior participa-
ção na sociedade empresarial. Gilberto, Ivan e Estevão são homens de
meia-idade que cresceram e se formaram no Brasil da ditadura militar
e da transição à democracia burguesa. São pequenos-burgueses que
gerenciam diretamente seus negócios de construção (Estevão se nega a
entrar numa licitação fraudada de obra pública, o que leva Giba e Ivan
a tramar a execução do sócio).
Ora, o negócio de construção civil é um campo fértil para a corrup-
ção. Giba, além de sócio na construtora, investe seu capital numa casa de
prostituição para endinheirados na zona sul de São Paulo. Ele é o peque-
no capitalista que visa frutificar seu capital-dinheiro em negócios ilíci-

296
O mundo do trabalho através do cinema

tos, mas rentáveis. Na verdade, ele incorpora o espírito do lumpesinato,


sendo deste modo, desprovido de qualquer princípio ético-moral. Temos
nesse caso, a expressão de degradação da ética do trabalho, reivindicado
por Ivan, que se surpreende com os negócios do sócio.
Estevão Araújo, sócio majoritário da construtora, é contra o ne-
gócio de licitação fraudada que Giba quer fechar com Rangel, o fun-
cionário público corrupto. Por isso Giba e Ivan tramam eliminá-lo. O
filme “O Invasor” mostra o vínculo intrínseco entre a corrupção que
assola a máquina estatal e a corrosão ético-moral das relações humanas
fetichizadas no trato dos negócios privados entre amigos (Ivan, Giba e
Estevão eram velhos amigos).
No caso da história brasileira, há uma determinação reflexiva
entre corrupção pública e corrosão ético-moral nos negócios priva-
dos. Nem a ditadura militar, nem os governos neoliberais conseguiu
eliminar a corrupção endêmica do Estado e sociedade civil do capi-
tal – pelo contrário, sob a nova temporalidade histórica neoliberal,
explicitou-se as entranhas íntimas da promiscuidade entre corrupção
pública e negócios privados escusos. Deste modo, a prática de Rangel
tão corriqueira quanto a prática de Giba e Ivan, demonstrando que,
entre nós, a barbárie social que marca o capitalismo mundial no sécu-
lo XX, sempre esteve à sombra do capitalismo retardatário de origem
colonial-prussiaina.
O modo de objetivação prussiano-colonial do capitalismo no Ba-
sil levou à constituição de um Estado burguês fragilizado em seus com-
ponentes ético-politicos. Corroído pelo patrimonialismo e interesses
privatistas, o Estado burguês no Brasil sempre teve dificuldades insti-
tuir-se como esfera pública. Por isso, a corrupção da res publica aparece
como fenômeno endêmico lastreada pelos interesses das classes domi-
nantes. Feito à imagem do Estado politico, a sociedade civil, incorpora
os traços da corrosão ético-moral. Sob a era neoliberal, agravou-se as
debilidades da institucionalidade pública, tendo em vista o protagonis-
mo do mercado com seus interesses particularistas.
A corrupção privada subsiste à sombra da corrupção estatal. Na
verdade, o Estado politica é explicitação geral da sociedade civil bur-

297
Trabalho e Cinema • Volume 3

guesa, que o constituiu como sua imagem e semelhança. Numa das


cenas do filme, Anísio insiste para que Giba e Ivan dêem dinheiro para
seu amigo, o cantor de rap Sabotage. Entretanto, Ivan, furioso, diz que a
construtora é um empresa que tem contabilidade e não pode chegar pe-
gando dinheiro sem mais nem menos. Anísio exclama: “Toda empresa
não tem um esquema por fora?. E o caixa 2 !”.
O termo caixa dois refere-se a recursos financeiros não conta-
bilizados e não declarados aos órgãos de fiscalização competentes. É
utilizado por algumas empresas, que deixam de emitir ou emitem no-
tas fiscais com valor menor ao da transação realizada, para que sejam
devidos menos impostos. Desta forma, ao declarar os valores das notas
fiscais aos órgãos fiscalizadores, apuram menos impostos a recolher
ao erário. A diferença constitui o caixa dois. Ou seja, caixa dois é um
dos instrumentos utilizados para sonegação fiscal e também lavagem
de dinheiro, que são crimes, no Brasil. Muitos políticos e empresas são
acusados judicialmente por utilizarem caixa dois. A utilização do caixa
dois se faz de diversas maneiras: compra de moedas estrangeiras, jóias,
veículos, pagamento a servidores corruptos, financiamento de campa-
nha de políticos, financiamento do tráfico de drogas, armas e pessoas,
exploração de prostituição, contratação de capangas e assassinos, além
de outras formas.
Ora, o lúmpen Anísio, que vive à margem da lei, conhece como
normalidade social, a corrupção dos negócios privados. Anísio, como
o Invasor, é também o Transgressor que explicita a lógica de corrosão
ético-politica que permeia a sociedade civil burguesa. Para ele, o normal
é a transgressão dos limites legais, desde que sirvam a seus interesses
egoísticos. Mas Anísio apenas desvela o que está posto como efetividade
social na sociedade burguesa hipertardia sob a era da barbárie social.
Numa das mais importante cena do filme, Giba expõe sua visão
pequeno-burguesa da sociedade civil – uma visão cínica e realista ade-
quada às condições do estado de natureza que viceja sob a era da bar-
bárie social. É a visão oportunista do lúmpen. Este é um diálogo rico
em significações ideológicas, onde Giba tenta convencer Ivan a apoiar
a trama para matar o sócio Estevão. Giba possui um realismo social que

298
O mundo do trabalho através do cinema

traduz a idéia hobbesiana de que, sob o estado de natureza, o “homem


é o lobo do próprio homem”. Como diz Giba, sobre Estevão: “Se a gente
bobear, ele põe no nosso rabo. É só uma questão de oportunidade”.
Diante da crise estrutural do Estado como instância político-mo-
ral capaz de impor limites à voracidade da lógica do mercado, o que
vige é a luta de todos contra todos. No Brasil, a fragilidade crônica do
Estado burguês como instância ético-politica, tendeu a instaurar um
mundo social no limiar do “estado de natureza”. A crise estrutural do
capital – e a vigência do capitalismo neoliberal - apenas perverteram
ainda mais a cronicidade da miséria do capitalismo hipertardio.
Ivan tenta pular fora do plano para matar Estevão. Ivan vacila.
“Não dá pra segurar”, diz ele. Giba exclama: “Você tá nessa comigo e
vamos até o fim”. Ora, Giba ameaça contar ao Anísio que Ivan é um
“cuzão, bunda-mole, e que está arrependido”. Diz ainda que Ivan é um
inocente – ou melhor ainda, um pobre ingênuo que não entende o que
é o mundo real (ou o “lado podre da vida”). Giba tenta convencer Ivan
de que Estevão não é santo. Diz ele: “Se a gente bobear, ele põe no nosso
rabo. É só uma questão de oportunidade.” Eis como Giba apreende seu
mundo social – um mundo de concorrência e oportunidades. É a pura
transcrição das relações de mercado no plano da sociabilidade.
Giba possui uma filosofia de vida que legitima suas atitudes cíni-
cas. Ele vive no mundo social da escassez irremediável onde ninguém
– inclusive o operário Cícero, mestre-de-obras - está contente com o
que tem. Enfim, todo mundo quer mais; e, como ele observa, se alguém
tiver uma oportunidade para ter mais, irá aproveita-la, nem que tenha
que transgredir a lei. Enfim, é o mundo da concorrência onde todos
procuram levar vantagem. E se precisar, “vira bicho”, como diz Giba.
No mundo da escassez do capital o que organiza a alocação de
recursos é o poder. Como pequeno-burgueses, Giba e Ivan se afirmam
pelo poder conferido pela posição social de proprietários. Giba diz para
Ivan que o mestre-de-obras Cícero só o respeita porque sabe que Ivan
tem mais poder que ele. Enfim, eis o respeito espúrio que nasce de re-
lações sociais fetichizadas.

299
Trabalho e Cinema • Volume 3

No mundo social do capital o único respeito possível é aquele


mediado pelas coisas. Como pequeno-burgueses imersos em relações
sociais fetichizadas, Giba e Ivan vêm o mundo social organizado em
relações de poder – é o poder das coisas – e até o poder politico/policial
- que garante a eles o “respeito” da ralé.
Mas Giba observa que é bom não facilitar com essa gente. Enfim,
Giba teme proletários e lúmpens que, como espectros ameaçadores,
rondam o mundo social da pequeno-burguesia. Diz ele: “No fundo esse
povo quer o seu carro, querem o seu cargo, o seu dinheiro, as suas rou-
pas, querem comer a sua mulher, Ivan. É só surgir uma chance. É isso
que nós vamos fazer com o Estevão. Vamos aproveitar a nossa oportu-
nidade antes que ele faça isso primeiro.” Ironicamente, é o que o lúm-
pen Anísio iria fazer.
Giba cultiva um pragmatismo pequeno-burgues. Ao ser questio-
nado por Ivan que o critica por envolver-se com negócios ilícitos - casa
de prostituição (Ivan diz para Giba, quase de forma ingênua: “Isso dá
cadeia”), Giba responde com sarcasmo: “Diversificação de negócios, a
onda do momento”. Ora, Giba é o pequeno-burgues pragmático e opor-
tunista, um neolúmpen que busca ascender socialmente investindo em
transações ilícitas (inclusive com apoio da policia corrupta).
Por outro lado, Ivan é o pequeno-burguês desencantado com a
degradação moral de sua classe social, ingênuo, inseguro e incapaz de
contrapor-se às circunstâncias estranhas na qual está envolvido. Pelo
contrário, Ivan se deixa levar pela roda-viva da barbárie social. Num
primeiro momento, deixou-se levar por Giba e depois, quando decide
pular fora, já é tarde. Diz Giba: “Não pense que você não está sujando
as mãos só porque é outro cara que vai fazer o serviço. Dá na mesma,
meu velho. Bem-vindo ao lado podre da vida.”
A lumpenizacão da “classe média” se expressa pela disseminação
de práticas ilícitas de “colarinho-branco” diante das novas condições
de barbárie social, onde se acirram a concorrência e a degradação
dos principios ético-morais de sociabilidade. É a expressão do apo-
drecimento do homem burguês. De guardiã dos valores burgueses de
civilização, a “classe média” torna-se coveira das promessas éticas de

300
O mundo do trabalho através do cinema

reprodução social da ordem burguesa. No mundo social da escassez, o


pequeno-burguês, por má-fé ou ingenuidade, suja as mãos, assumindo,
com fatalismo, o lado podre da vida.
Numa das cenas do filme, Giba teatraliza a fábula dos três porqui-
nhos para a filha pequena. Na fábula dos três porquinhos, existe o fundo
ideológico do trabalho como valor moral que tende a ser recompensa-
do (o porquinho preguiçoso confronta-se com o porquinho laborioso).
Entretanto, é o porquinho mais esperto que se sai bem, pois é ele que
queima a bunda do lobo mau.
Ora, a fábula social contém mensagens de uma ordem burgue-
sa hipertardia onde a ideologia do trabalho que funda a modernidade
burguesa é subvertida pela ideologia da esperteza, ou a “lei de Gérson”,
onde o mais esperto leva vantagem em tudo. Esta é a filosofia de Giba,
a filosofia do burguês hipertardio que não encontra mais um lugar para
si no mundo oligopolizado do capital. Nesse caso, só a esperteza pode
lhe garantir um lugar ao sol. Na verdade, sob as condições da deca-
dência histórica do capital, a esperteza não é apenas a filosofia do bur-
guês periférico, mas da burguesia parasitário-especulativa que busca
acumular riqueza abstrata por meio da reprodução hermafrodita do
capital financeiro (em 2002, no filme “Los lunes ao sol”, Fernando Leon
de Aranoa utilizaria, a fábula da cigarra e a formiga” para tratar da
ideologia do trabalho como valor social. Nesse momento, Santa, o me-
talúrgico desempregado, critica o relato parabólico).
O lúmpen Anísio invade a construtura Araújo Associados buscando
ocupar um lugar ao sol – o lugar do pequeno-burguês. Anísio é o lúmpen
que, de forma cínica, tal como Giba, quer seu lugar de prestigio social na
ordem burguesa degradada. Esta é a ascensão social espúria baseada na
fraude e ato criminoso. São resquícios da assim chamada acumulação
primitiva que se reitera na ordem sistêmica do capital. Anísio, como lúm-
pen inteligente, sabe que esta é a única forma de obter status e prestigio
na ordem burguesa que o discrimina e exclui como classe social.
Num primeiro momento, Giba e Ivan tentam faze-lo voltar para
seu lugar – a periferia. Entretanto, Anísio se recusa a retornar àquela
condição de lúmpen tradicional. Giba e Ivan vêm que tem que conviver

301
Trabalho e Cinema • Volume 3

com ele. Anísio é o lúmpen que tornou-se parte da ordem burguesa


degradada. Aliás, a invasão da ordem burguesa pelos “novos bárbaros”
– o lumpesinato – no sentido figurado da incorporação pela “classe
média” de valores do lúmpen – é sintoma do esgotamento das energias
civilizatórias da ordem burguesa. O homem burguês se desmancha no
ar – como tudo que é sólido. No caso do mundo burguês periférico, a
invasão do lúmpem Anisio é mero sintoma do vazio ético-moral que
desconstitui a sociedade civil neoliberal.
Pela segunda vez no filme - a primeira foi na abertura - o olhar
de Anísio dirige a cena – é o momento de sua chegada na construtora
Araújo Associados. Anísio é o invasor que irá fazer os playboys convive-
rem com o pesadelo da realidade – a realidade da barbárie social. Sob a
música-tema “Ninguém Presta”, música do grupo Tolerância Zero, Anísio
percorre os corredores da empresa até a sala de Giba e Ivan (“eu, você, a
vadia, ninguém presta!”, grita o vocal do “Tolerância Zero”). Ivan, sur-
preso, diz: “O que você está fazendo aqui?”. Num certo momento Anísio
diz: “Eu queria conhecer o lugar onde vocês trabalham.” Ora, Giba e Ivan
sentem-se incomodados com o retorno do reprimido, isto é, o lúmpen
que executou o serviço sujo ordenados por eles e que Giba e Ivan buscam
esquecer. Mas o lúmpen Anísio, como o pesadelo que persiste mesmo ao
acordar, não os fará esquecer jamais o ato infame que cometeram.
Anísio é a própria expressão da barbárie social. Ele bate na porta
da ordem burguesa periférica degradada pelo neoliberalismo (“É eu!”,
diz ele). Ora, Anísio é um personagem heurístico que busca desvelar a
miséria social da ordem burguesa hipertardia. Não é um mero farsante
como Giba e Ivan. Pelo contrário, Anísio é o que é, explicitando em
suas atitudes invasivas, a aspiração singela do lúmpen de incorporar-se
na ordem social burguesa. É expressão prática da filosofia de Giba que
demonstrou assim, ser a filosofia do lúmpen. Parafraseando Giba, dirí-
amos que Anísio “quer mais, como todo mundo. E se tiver uma oportu-
nidade, ele vai aproveitar.” E como Giba observou para Ivan, “o mundo
é assim, meu velho.”
Anísio insiste e persiste em ocupar um lugar. Enfim é expressão
da territorialização da barbárie social que se instala no lugar do tra-

302
O mundo do trabalho através do cinema

balho (de Giba e Ivan) e lugar da vida (de Marina). Anísio não é um
estrangeiro na terra burguesa. Pelo contrário, está muito à vontade
naquele mundo social que descobre ser o seu – o mundo social das
práticas corrompidas (de Giba) e práticas devassas (de Marina). Anísio
sente-se muito à vontade na ordem burguesa degradada, afinal pergun-
temos: no que ele se distingue de Giba e Marina, pequeno-burgueses
que perderam o registro ético-moral da civilização burguesa?
O lúmpen Anísio luta pelo seu reconhecimento como parceiro da
ordem burguesa. De certo modo, Anísio poderia dizer: “Aqui é meu
lugar!”. Eis a assim dita acumulação primitiva buscando ser reconheci-
da pela ordem sistêmica do capital. Talvez Anísio tenha consciência de
que ele é o herdeiro veraz da ordem burguesa degradada.
Ora, é importante que se diga que a barbárie social não vem de
fora, como os antigos bárbaros que ocuparam Roma. Mas sim, ela
emerge de dentro da ordem perversa do capital que degrada em suas
entranhas, as relações humano-sociais. Anísio simplesmente invade o
que está corroído (e corrompido) pelo apodrecimento humano. Ele é
sintoma metafórico desta verdade histórica. A luta pelo reconhecimen-
to de Anísio é a luta espúria do poder intimidatório.
Numa das cenas do filme exclama Anísio, simulando disparar um
revólver, diante do espelho: “Clac clac bum! Respeito é pra quem tem!”.
Novamente, impõe-se o tema do respeito. Certa vez, Giba observou,
numa conversa com Ivan, que a ralé respeitava os detentores de poder.
Disse Giba que a ralé “só te respeita porque sabe que você tem mais po-
der que ele. Mas é bom não facilitar com essa gente.” Ao exclamar com
ostentação de poder (das armas) que respeito é pra quem tem, Anísio
valida a filosofia lúmpen de Giba.
Sob o mundo social do capital em fase de crise estrutural, em
virtude do agudo fetichismo social, tende a ocorrer a desefetivação dos
laços linguistico-comunicacionais. “Respeito é pra quem tem (poder)”,
exclamou Anísio. Deste modo, a luta pelo reconhecimento no interior
da ordem – no sentido de ocupar um território de poder – restringe a
sua margem de manobra, implicando assim, práticas intimidatórias.

303
Trabalho e Cinema • Volume 3

Anísio ocupa o novo território conquistado circulando pelas sa-


las de trabalho da construtora Araújo Associados. É a territorialização
da barbárie social. Ele se apresenta como um dos novos gerentes da
construtora, preposto do patrão que pode tudo, como ele mesmo diz.
Assim, ao invadir o território da burguesia, ocupa o lugar do controle
gerencial.
Na verdade, o lúmpen Anísio se traveste na função suprema do
capital como relação de poder gerencial sobre a força de trabalho. Ao
assumir – mesmo que invasivamente - um lugar de poder naquele lo-
cal de trabalho, Anísio explicita que o capital é, acima de tudo, divisão
hierárquica do trabalho. Ele visa se impor sobre os demais exercitando
o poder de mando e controle gerencial. O lúmpen Anísio exercita com
desenvoltura o arcaico poder de mando da ordem burguesa decadente.
Interroga ao empregado subalterno: “O que está fazendo?”. Mais adian-
te ameaça: “O patrão vai olhar...”.
Ao circular pelo espaço da construtora Araújo Associados , “in-
vadindo” o recôndito de seus aposentos, Anísio instaura (e afirma) seu
poder invasivo. Na verdade, é circulando pelo território da burguesia)
trabalho e lar - que ele se impõe. Faz o mesmo, por exemplo, quando
visita (ou invade, sob o consentimento de sua vítima) a mansão da jo-
vem Marina Araújo. Aos poucos, o lúmpen Anísio, o rosto da barbárie
social, conquista – de forma perversa - o território da burguesia. Ele
obtém – mesmo que com poder intimidatório – o consentimento de
suas vítimas. O lúmpen Anísio quase as redime de sua própria medio-
cridade social.
Anísio conhece o território do poder, pois sente-se habilitado
para ocupar um lugar que ele imagina lhe pertencer. Primeiro, aparece
como o guardião do poder gerencial: “Vou dar um trato na segurança.
Quero dar sossego para vocês.” Na verdade, ao cumprir o serviço de
exterminar um dos sócios, Anísio sentiu que aquele ato tornou-se sua
investidura no território de poder que busca conquistar. De fato, aos
poucos ele se impõe sobre Giba e Ivan, ocupando, lenta e paulatina-
mente, o território da empresa. Ele diz: “Tô pensando em me envolver.
Vou dar um trampo aqui”.

304
O mundo do trabalho através do cinema

Ora, antes de ser uma invasão, trata-se de um envolvimento de


Anísio no mundo burguês. Estamos diante de um processo de invasão/
envolvimento/captura onde, de guardião do poder gerencial, Anísio
torna-se parceiro do consórcio de poder burguês, lado a lado com Giba.
No final, Anísio desloca Ivan da sociedade empresarial, tornando-se,
tanto quanto Giba, homem de negócio.
A linha narrativa do filme “O Invasor” expõe um processo de in-
vasão/ocupação/envolvimento de Anísio no mundo burguês. Da em-
presa à família, o lúmpen Anisio constrói seus laços sociais capazes de
efetivá-lo no consórcio de interesses pequeno-burguês. Trata-se de um
processo dialético onde pari pasu à alienação de Ivan, Marina e Giba –
cada um a seu modo - temos a reconcialiação perversa de Anísio com o
novo território do poder.
Ora, o território pequeno-burguês degradado pela corrosão ético-
moral é o território do lumpesinato. A invasão de Anísio, exclui Ivan,
que se aliena literalmente de seu espaço de trabalho e vida; aos poucos,
Ivan surta com o clima de traição e perseguição que lhe envolve. Imerso
na deriva pessoal, ele sente de forma aguda o clima do estranhamen-
to. Marina se aliena de si aos submergir na vida mundana desregrada,
conduzida por Anísio. Ela vive a sua deriva pessoal como fruição extá-
tica. Mas Giba também se aliena, pois é obrigado a compartilhar seu
poder com o lúmpen Anísio.
Num primeiro momento, Giba quer afastar Anísio do seu territó-
rio de poder. Ele sente-se incomodado com a presença de seu alter-ego
lúmpen. Chega inclusive a suborna-lo: “Quanto você quer para sumir
da minha vida?”. Entretanto Giba não entende que Anísio não quer
dinheiro, mas sim, uma posição social que possa lhe conferir status e
prestigio na ordem burguesa: “Estou gostando, não tem conta bancária
que me tira daqui”.
Ora, posição social não se compra, mas se conquista. É o que
Anísio irá fazer – impor-se, aos poucos, sobre Giba e Ivan. Invasão é
ocupação. Ocupação é envolvimento. Envolvimento é a luta pelo re-
conhecimento. Deste modo, como lúmpen, Anísio constrói um lugar

305
Trabalho e Cinema • Volume 3

no território de poder burguês, lugar de status e prestigio capaz de lhe


propiciar o acesso à riqueza capitalista.
Nesse processo de transformismo do lúmpen em pequeno-bur-
guês, Anísio se interverte naquilo que o lúmpen renega por ressenti-
mento: o playboy. Anísio torna-se o lúmpen playboy. O lúmpen Anísio,
pistoleiro de aluguel, torna-se o empresario Anísio, playboy da Zona
Sul. É quase o percurso histórico do capital que nasce com as mãos su-
jas de sangue e, aos poucos, por meio de um processo de envolvimento
e luta pelo reconhecimento (que implica, é claro, práticas intimida-
tórias), conquista posições de status e prestígio social (eis o percurso
típico do burguês periférico – político e empresário respeitável, cuja
riqueza, em última instância, se origina de atos infames).
Como expressão suprema da lógica do capital, inclusive sendo –
como diz o ditado – “mais realista que o rei”, Anísio busca disciplinar
a força de trabalho, destilando os preconceitos da classe que visa assu-
mir. A ocupação do território do poder empresarial implica assumir
prerrogativas do controle gerencial. Como o lúmpen, Anísio almeja
tão-somente ocupar o lugar do opressor e explorador. E inclusive, age
como o burguês autocrático. Anísio é a própria consciência burguesa
esclarecida de suas prerrogativas de poder. Ele manda e desmanda. Não
é burguês, mas aspira ser – eis o segredo oculto do lúmpen. Numa das
cenas do filme, interpela o mestre-de-obras Cícero, acusando operários
de furtar a empresa. É um ato perverso – culpabilizar as vítimas. Ora,
como lúmpen, Anísio incorpora a persona do capital contra o proleta-
riado. Na verdade, o lúmpen é o burguês ressentido de sua miserabili-
dade. O lúmpen Anisio quer ser preposto do burguês, testa-de-ferro do
explorador. Diz ele: “Eu vim aqui para acabar com a gozolândia.”
Tanto Giba quanto Anísio projetam em Cícero, o mestre-de-obras,
sua visão de mundo pequeno-burguesa. Para eles, Cícero é um esperto
que sempre que puder, procura levar vantagem. Na verdade, a visão de
mundo pequeno-burguesa lumpenizada tende a amesquinhar o mundo
e as pessoas. Por exemplo, num certo momento, Giba disse: “O Cícero
até pode ter essa cara de sonso. Mas se precisar, ele vira bicho. Ele só te
respeita porque sabe que você tem mais poder que ele. Mas é bom não

306
O mundo do trabalho através do cinema

facilitar com essa gente.” Mais adiante, o lúmpen Anísio iria interpelar
Cícero acusando-o de furtar materiais da obra de construção civil. Ora,
o proletariado empregado encontra-se assim sob o cerco da pequena-
burguesia lumpenizada – detentora do poder gerencial - e do lúmpen
aburguesado – aspirante dos ideais de consumo e poder burguês..
O lúmpen Anísio é um personagem heurístico que expõe com no-
tável expressividade a miséria social do capital como poder impositivo.
Ele catalisa as prerrogativas gerenciais (e morais) do capital. “Deixa
tudo comigo. Eu vou estar pelos quatro cantos. Eu estar cercando” – diz
Anísio. Ora, ele cumpre uma função reminiscente - lembra a Giba e Ivan
o que eles, de fato, podem como gerentes do capital .
Deste modo, Anísio é o alter ego perverso de Giba e Ivan. É o es-
pectro do lúmpen que invade seu território para lembra-los, como re-
miniscência grotesca, o que eles são, de fato – capitalistas, detentores
do poder do capital, donos do mundo, proprietários que não dão trela
para ninguém. Diz Anísio: “Dono pode tudo. Dono manda prender.
Manda matar.” Nesse caso, Anísio destila a essência do poder burguês
– o despotismo cínico que – no caso da burguesia periférica – se impõe
pelo respeito mediado pelas prerrogativas de poder autocrático. Anísio
parece saber mais que Giba e Ivan. No discurso de Anísio, a percepção
do poder dos donos vincula-se a um imaginário do capitalismo de obje-
tivação colonial-prussiana, onde os proprietários são os donos do poder
. Transgredindo a lei – ou sendo a própria lei -, os burgueses periféricos
podem tudo (mandam prender e mandam matar).
O lúmpen Anísio ocupa o território da empresa, cercando os só-
cios Giba e Ivan. Mas ao se envolver com a jovem pequeno-burguesa
Marina, Anísio avança mais além na incorporação do território bur-
guês. Ele não apenas se impõe sobre os donos do poder, mas “captura” a
afetividade da jovem pequeno-burguesa, órfã dos pais trucidados pelo
próprio Anísio Eis um ato perverso de Anísio – envolver-se afetivamen-
te com a vítima de seus atos infames. Na verdade, Anísio cativa Marina
com seus gestos de atenção e segurança. Após a morte dos pais, a jovem
pequeno-burguesa submergiu numa deriva pessoal. Com seu talento
manipulatório, o lúmpen Anísio soube ocupar o vazio existencial da jo-

307
Trabalho e Cinema • Volume 3

vem pequeno-burguesa. Na cena em que a conhece, Anísio aproxima-


se de Marina, ensinando-a a acariciar, sem medo, o cachorro. É quase a
metáfora do que irá ocorrer a seguir – com Anísio, Marina irá conhecer
as delícias do mundo-cão.
O lúmpen Anisio é um típico perverso. Primeiro, ao acusar Cíce-
ro, o mestre-de-obras, de furtar materiais de construção, culpabiliza
vitimas. Segundo, envolve-se afetivamente com a vítima de seus atos
infames. Enfim, é o gesto supremo de cinismo que caracteriza as per-
sonalidades perversas.
Visando se aproximar de Marina, Anísio visita Marina e dá-lhe
de presente um filhote de cão. É o motivo para se aproximar mais dela,
cativando-a. Deste modo, Anísio ocupa não apenas o território da em-
presa, mas o território da afetividade da jovem pequeno-burguesa, her-
deira dos negócios do Araújo Associados.
Ao invadir o território da afetividade de Marina, Anísio consegue
fechar o circulo da dominação/manipulação que articula razão instru-
mental e emoção manipulada. Assim, o lúmpen teve o talento perverso
não apenas para executar os pais de Marina, mas para preencher o va-
zio familiar da jovem pequeno-burguesa, vítima de suas atrocidades.
Nessa operação de hábil manipulação, Anísio ocupa o lugar de Estevão
Araújo, sócio de Giba, nos negócios da construtora, isolando Ivan e
neutralizando Giba.
A visita da Marina à Zona Sul de São Paulo é o “batismo de fogo” da
jovem pequeno-burguesa. Ao som do rap “Na Zona Sul” (de Sabotage),
Anísio dirige o carro de playboy, expondo a paisagem da periferia para
a jovem pequeno-burguesa. É claro que na periferia não existem ape-
nas lúmpens. O proletariado em situação de precariedade extrema não é
composto apenas por lúmpens, mas por homens e mulheres operários e
empregados em situação precária, gente simples que vive o cotidiano difí-
cil da periferia. O filme “O Invasor” expõe movimentos sócio-territoriais
que ocorrem sob a nova dinâmica do capital. Trata-se de processos de
inversão social traduzidos como invasão/ocupação de espaços de classe –
inclusive no sentido valorativo-simbólico. Por exemplo, o lúmpem Anísio
invade o território da burguesia – ele aspira ser burguês. Marina ocupa o

308
O mundo do trabalho através do cinema

território da proletariedade extrema – ela incorpora valores decadentista


do lumpesinato. A inversão de classe – no sentido valorativo - é sintoma
do sociometabolismo da perversão que caracteriza a dinâmica social da
sociedade burguesa sob a crise estrutural do capital.
O filme “O Invasor” explicita processos sociais de inversão social
que ocorrem sob o sociometabolismo da barbárie: por um lado, a lum-
penização da “classe média” e, por outro, o aburguesamento do lumpen-
proletariado. Trata-se de processos valorativo-simbólicos.
Por exemplo, a ida de Marina à periferia é expressão simbólica da
lumpenização de jovens pequeno-burgueses que – em termos de valo-
res e expectativas de vida – se encontram na periferia do metabolismo
social do capital. Ora, diante da falta de sentido da vida sob a ordem
burguesa decadente, jovens pequeno-burgueses tendem a incorporar
valores do lumpesinato. Trata-se de uma assimilação perversa, na me-
dida em que o lúmpen é algoz do pequeno-burguês, objeto de amor e
ódio do ser marginal. O pequeno-burguês assimila valores de seus al-
gozes (na mesma medida, o aburguesamento do lumpen-proletariado
é também uma assimilação perversa – o lúmpen aspira tornar-se bur-
guês, isto é, gestor da ordem social que o exclui).
É importante salientar que utilizamos o termo lumpenização no
sentido valorativo-moral (Marina não se torna objetivamente uma
lúmpen). O ser lúmpen implica um determinado ethos decadentista
que, com o apodrecimento do homem burguês, tende a se disseminar
pelo metabolismo social. Sob condições de proletariedade extrema, o
lúmpen-proletário vive imerso em situações de acaso e contingencia,
além de risco e periculosidade constante.
O filme “Meu nome não é Johnny”, de Mauro Lima (2008), expõe,
de certo modo, o tema da lumpenização da “classe média”. João Guilher-
me Estrella era um típico jovem da classe média, inteligente e simpático,
adorado pelos pais e popular entre os amigos. No início da década de
1990, ele se tornou o rei do tráfico de drogas da zona sul do Rio de Ja-
neiro. Investigado pela polícia, foi preso e seu nome chegou às capas dos
jornais. Em vez de festas, passou a freqüentar o banco dos réus.

309
Trabalho e Cinema • Volume 3

A ida de Marina ao barzinho da zona sul é a comunhão simbólica de


Marina com o ethos do lumpesinato. Naquele momento, a jovem pequeno-
burguesa levada pelo lúmpen Anísio, incorpora-se ao habitat ético-moral
da marginália paulistana. A bebida – “maria-mole” - é o congraçamento
com o terror na periferia (nome inscrito na camisa de um dos garotos do
bar). Ora, Marina é a jovem pequeno-burguesa que renuncia à sua pers-
pectiva ético-moral de classe, assimilando o ethos decadentista do lúmpen.
O papel do lúmpen Anísio é promover o novo movimento de territorializa-
ção pessoal de Marina. Ele invade o território burguês e, ao mesmo tempo,
incorpora Marina no território ético-social do lumpesinato. Anísio é não
apenas o invasor, mas o mediador da barbárie perversa.
Numa noite estrelada, do alto de um morro na Zona Sul, dentro
do carro, Anísio e Marina contemplam a cidade de São Paulo. Mari-
na pergunta: “Aqui não é perigoso?”. Anísio diz: “Aqui é o paraíso do
mundo”. Traçando a carreira de cocaína, Anísio e Marina dialogam e
curtem a intimidade. Ora, o lúmpen Anísio é um personagem cínico,
quase histriônico, de uma ironia mordaz com os valores burgueses que
ele quer assumir para expô-los em sua podridão íntima. O paraíso de
Anísio é o paraíso da degradação burguesa que ele quer compartilhar
como sócio emérito.
O lúmpen Anísio possui uma ironia fina – enquanto, exaltada,
Marina exclama “Adão e Eva”, ele retruca: “Romeu e Julieta”. Ora, Aní-
sio como personagem heurístico, tende a desmitificar, com sua ironia
sagaz, o amor romântico como fantasia utópica da burguesia revolu-
cionária. O que era verdadeiro sob as condições de ascensão histórica
do capital, com a crise estrutural do capital, tornou-se mera farsa ou
imagem vazia de significações autênticas. Diante da impossibilidade
de utopia amorosa – não em virtude de sua obstaculização pelas forças
da tradição, mas pelo esvaziamento dos projetos amorosos, dissolvidos
irremediavelmente pelas forças do fetichismo social, o amor romântico
aparece como uma farsa ingênua dos limites trágicos da emancipação
humano-genérica sob as condições sociometabólicas do capital.
Sob a sociedade feudal, os laços de matrimônio eram tecidos pe-
las conveniências de interesses de clãs familiares. O que vigorava era

310
O mundo do trabalho através do cinema

a força da tradição e não os impulsos do coração dos amantes. Temos


assim, o amor por conveniência. É sob a sociedade burguesa que tende
a prevalecer o amor romântico que busca afirmar os interesses das in-
dividualidades amorosas. A peça teatral “Romeu e Julieta”, de William
Shakespeare, é uma tragédia moderna. Impedidos de unir-se em vida
devido a força da tradição e os interesses de clãs familiares antagônicos,
o casal de amantes decide unir-se na morte. O final trágico da peça
shakespeariana é uma condenação dos obstáculos sociais tradicionais
que impediam o pleno desenvolvimento das individualidades pessoais
e suas utopias amorosas
A lumpenização de Marina significa sua imersão na condição de
proletariedade extrema, levando, deste modo, uma vida de risco (por
exemplo, num certo momento, ardente de desejo, pergunta a Anísio, se
ele tem camisinha. Ele diz não ter – mesmo assim ela transa com ele).
Ora, o processo de lumpenização social amplia a disseminação de atri-
butos existenciais próprios do proletariado como “classe” social.
O lúmpen é a camada miserável do proletariado que vive em si-
tuação extrema a sina da classe social dos proletários: subalternidade
às condições de mercado, acaso e contingencia, risco e periculosidade,
incomunicabilidade e deriva pessoal, corrosão de caráter e instabilida-
de social, prosaísmo e manipulação social. Ao se lumpenizar, a jovem
pequeno-burguesa, embora não incorpore todos os atributos existen-
ciais, como por exemplo, subalternidade, acaso e contingencia, tendo
em vista que não está à mercê do mercado (como os proletários pro-
priamente ditos), não deixa de incorporar, em maior ou menor propor-
ção, os demais atributos existenciais.
Aos poucos, Anísio invade os interstícios da vida burguesa, ocu-
pando assim, os territórios da empresa e os territórios da família bur-
guesa. Como lúmpen aburguesada expressa em alto grau o sentimento
de possessividade do objeto amado. Anísio é a expressão apodrecida
do homem burguês. Como macho possesivo, cultiva uma generosidade
perversa que se impõe pela força no mundo pequeno-burguês. A moe-
da de troca de Anísio é a violência, poder intimidatório que ele utiliza
para se afirmar como individualidade pequeno-burguesa nos círculos

311
Trabalho e Cinema • Volume 3

de amizade de Marina. Ora, o terror para Anísio é não sentir-se reco-


nhecido nos círculos pequeno-burgueses. Como lúmpen, ele sabe o que
é a invisibilidade social. Por isso, ele foge dela – enfim, não quer ser
tratado com indiferença. Na cena da boate, Anísio é tratado com indi-
ferença por Pietro, amigo de Marina (ele apenas diz: “E aí, cara, tudo
bom?”) “ – ocorre uma mescla de ciúmes e ressentimento social que o
levam a se impor pela atitude intimidatória.
O lúmpen Anísio ascende à boa vida pequeno-burguesa das ba-
ladas noturnas agitadas com álcool, ecstasy e sexo fácil. Nesse caso,
temos a expressão do aburguesamento do lúmpen que descobre as
delícias do Paraíso do neolumpesinato pequeno-burguesa. No filme, a
cena noturna da odisséia orgiástica de Anísio e Marina, ocorre paralela
à deriva noturna de Ivan, totalmente desesperado e perdido na noite
paulistana. Na medida em que Anísio ocupa, cada vez mais, o território
pequeno-burguês, Ivan se desefetiva como individualidade pessoal de
classe, alucinado em sua paranóia noturna.
No filme, Ivan e Cláudia são um casal pequeno-burguês de alta
classe média paulistana, sem filhos, com vida conjugal vazia. Dialogam
pouco. Talvez não tenham muitas coisas em comum. Numa das cenas
do filme, a mulher se arruma para ir a uma festa de negócio, mas Ivan
decide não acompanha-la. Na verdade, ele não tem o mínimo interesse.
Ela diz: “Porque você nunca me acompanha nas minhas coisas, hein!”.
Ivan está indiferente à mulher. Na verdade, seu coração está com a ou-
tra - a amante Cláudia/Fernanda. Ivan é um personagem à deriva, que
demonstra ser um homem medíocre e indeciso que se deixa levar por
Giba e sua trama perversa. Logo Ivan irá saber que é manipulado pelo
amigo Giba e entra numa deriva trágica que o conduz a total perdição.
Ao dialogar com a amante Cláudia, num chalé à beira da praia no
litoral norte de São Paulo, Ivan remete-se ao tempo passado recuperando
a memória de tempos passados. Cláudia diz: “Que lugar, hein! Dá vonta-
de de largar tudo e ficar por aqui.” Talvez Ivan pense o mesmo. O lugar
paradisíaco se contrasta com o pesadelo da vida metropolitana. Ivan diz
que o pai tinha uma casa de praia naquele lugar e desde moleque ele
freqüentava aquela praia. Depois o pai faliu e teve que vender tudo. Na

312
O mundo do trabalho através do cinema

verdade, ele está em deriva pessoal e sua remissão à memória é sinto-


ma de sua alienação progressiva. É como se ele se encontrasse consigo
rememorando o tempo passado. Cláudia dá-lhe um presente de aniver-
sário – um isqueiro de luxo. Ivan não sabe que vive aqueles momentos
agradáveis naquele lugar paradisíaco com uma farsante – Giba contratou
Cláudia para seduzir e acompanhar Ivan. Ivan é um homem azarado – eis
o sentido da sua perdição. Talvez lhe sirva a letra da música “Azar”, da
banda Tolerância Zero, incluída na trilha musical do filme.

Azar

Tolerância Zero
Às vezes não se pode fugir do azar
Às vezes não se consegue fugir do azar
Sinto lhe dizer, otário
Às vezes não se pode fugir do azar
Prejuízo tá fudido
Acredita no dinheiro
e na felicidade cuzão?
Cartas na mesa, sua alma em jogo
Já que o dinheiro te faz tão feliz
É melhor não acreditar no azar
Azar
Fim da balada
Cadê a cadela que lhe sorria
Como uma vadia?
Foi vendida se lembra?
Já não existe saída e você pensa
Eu devia ter matado a vagabunda
Eu podia ter matado a vagabunda
Azar
Me sinto apodrecer de ódio
com o azar gritando em minha cabeça
Azar
Eu devia ter matado a vagabunda
Eu podia ter matado a vagabunda

313
Trabalho e Cinema • Volume 3

A construtora Aragão Associados é uma sociedade de constru-


ção civil criada por jovens engenheiros – os amigos Estevão, Gilberto
e Ivan - que montaram o negocio no começo da década de 1990. Eram
os bons tempos, onde os sócios brigavam para ver qual nome entraria
primeiro na placa. Gilberto (ou Giba) demonstrou ser o mais ambicio-
so – talvez por isso tenha decidido eliminar Estevão, possível obstáculo
às suas ambições pessoais. Aliás, Estevão descobrira que Giba mexia
com prostituição (“O Giba é cafetão nas horas vagas”, disse ele). Mas o
evento detonador que levou Giba a tramar a eliminação do sócio foi a
atitude de Estevão em ser contra negócios com o governo (“Tem sem-
pre alguma falcatrua no meio”, disse ele). Giba consegue envolver Ivan
na trama criminosa (são os dois que procuram Anisio no barzinho na
Zona Sul, logo na abertura do filme). Entretanto, Ivan está incomodado
com o jogo sujo do sócio. Mas vacila e só depois – tarde demais – se
coloca contra a trama assassina.
Ivan é um pequeno-burguês à deriva, com vida conjugal vazia, in-
seguro e insatisfeito com o sócio Giba. Perdido pela noite paulistana, fre-
qüenta baladas noturnas talvez em busca de si ou de um rosto amigo (um
detalhe: ao entrar num banheiro de boate, observamos gravuras de rostos
ao lado dos espelhos – rostos num mundo sem rostos). Ivan circula pela
noite agitada com luzes de néon e sons high-tech. Ivan é o personagem
antípoda do lúmpen Anísio. Talvez não tenha se lumpenizado como Giba.
No decorrer da narrativa, enquanto o lúmpen invade o território burguês,
ocupando espaços de poder, aos poucos, Ivan se perde, entrando numa
espiral de estranhamento e completa deriva pessoal
O mundo social da barbárie é um mundo de homens sem rostos,
rostos virtualizados, vazios de expressão humana. Rostos-simulacros que
nada dizem. Nada dizem e nada lembram. Como diz uma das canções da
trilha musical do filme: “Não tenho rosto. Nada do que possa se lembrar
depois”. Ao entrar numa das boates, Ivan houve a letra de musica “Orgia”,
que tem muita ver com o que ele sente. A deriva pessoal de Ivan possui
um sentido de vazio humano – ele não encontra na sua vida cotidiana,
relações sociais humanas, mas apenas relações sociais instrumentais. No
mundo do fetichismo social, esvaziam-se o conteúdo humano das rela-

314
O mundo do trabalho através do cinema

ções sociais. As relações sociais instrumentais são marcadas pela mani-


pulação farsesca. Talvez Ivan sinta fome de gente. Como diz a canção: “Eu
tenho fome/Eu tenho em mente/Uma grande orgia”).

Orgia
Paulo Miklos

Não tenho nome


Eu tenho sede
Alimenta a tua fantasia

Eu tenho fome
Eu tenho em mente
Uma grande orgia

Tudo o que eu mais quero


Você não tem
O que você tem
É só do que eu preciso
Tudo o que você sempre quis
Eu não sou
Do que você precisa
É só o que eu sou

Não tenho rosto


Nada do que possa
Se lembrar depois

Só o gosto
Por essas cenas
Que fazem você vibrar

Ivan vive a sua deriva pessoal circulando pelas boates na noite


paulistana. Está encurralado pelas circunstâncias que ele próprio criou
(ele fez escolhas e mesmo vacilando, submeteu-se a elas). Primeiro,

315
Trabalho e Cinema • Volume 3

participou de uma trama criminosa, e logo a seguir, demonstrou arre-


pendimento. Mas já era tarde. Viu-se cercado pelo lúmpen Anísio, exe-
cutar do crime hediondo. Anísio invade sua empresa e ele nada pode
fazer. Cada vez mais se desentende com o sócio Giba, mas não rompe a
sociedade. Além disso, está imerso numa vida conjugal insatisfatória,
mas não consegue dar um basta.
Ivan é o pequeno-burguês incapaz de dar um resposta. Talvez,
o apodrecimento do homem burguês crie dois tipos de homens: por
um lado, homens bons, mas incapazes de ação contundente contra a
barbárie social (portanto, são homens tacanhos, como Ivan); por outro
lado, homens de ação incisiva, mas imbuídos de narcisismo particula-
rista (homens perversos, como Giba). Na verdade, ao flanar pela noite
paulistana, Ivan tenta encontrar uma saída. Está solitário no meio de
tanta gente. Finalmente, encontra Cláudia, que mais tarde demonstra
ser uma farsa, armada por Giba, para pega-lo. O que parecia um amor
autêntico, era mero engodo.
A angústia de Ivan é a angústia do homem burguês irremediavel-
mente perdido, sem mulher e sem amigos, atraiçoado e encurralado
pelas circunstâncias que ele deixou acontecer na medida em que não se
impôs – como devia - sobre o sócio Giba. Enfim, Ivan demonstrou ser
é homem vacilante envolvido pela barbárie social, incapaz – no sentido
moral - de se contrapor a ela. É um homem alienado de si na medida
em que não deu uma resposta contundente à barbárie social. Ele se
perdeu – de si e dos outros – não apenas pelo que fez, mas também pelo
que deixou de fazer. Ivan apenas acompanhou Giba. Quando decidiu
agir por conta própria, era tarde demais. De repente, a arma de fogo
tornou-se sua única companheira de angústia.
Ao fugir de forma alucinada na madrugada pela avenida da capi-
tal paulista, Ivan continua tentando se reencontrar. É o homem burguês
que está apenas diante de si mesmo. Não encontra mais uma resposta
capaz de deter a barbárie social. De repente, o carro de Ivan atravessa
uma avenida preferencial e bate noutro veículo – um carro de jovens
da periferia. Ora, na madrugada, Ivan reencontra o lumpesinato. Mas
é Ivan que age como um lúmpen - puxa a arma e ameaça os ocupantes

316
O mundo do trabalho através do cinema

do veículo que vieram tomar satisfação com ele. Eis o ápice da inversão
social – um tema-chave que percorre o filme. Encurralado, o pequeno-
burgues se lumpeniza, sendo levado a agir como tal. Acuado, Ivan reage
de modo alucinado. Ainda quer fugir de modo desnorteado.
Ivan abandona seu veículo abalroado e corre na madrugada, pela
avenida, tendo ao fundo uma favela – é a paisagem do lumpesinato que
o cerca em sua fuga alucinada. De um lado, a pequeno-burguesia apo-
drecida (Giba) e de outro, o lúmpem aburguesado (Anísio). Ora, Ivan
é o pequeno-burgues encurralado pelos sintomas da barbárie social.
O tema da canção “Vai explodir”, da banda Pavilhão 9, que faz parte
da trilha musical do filme, trata do cerco do lumpesinato e seu ethos
decadente ao mundo burguês apodrecido.

317
O mundo do trabalho através do cinema

Capítulo 7

“Eles Não Usam


Black-Tie”
Leon Hirszman
(1981)

O filme “Eles não usam black-tie”, de Leon Hirzsman (1981), expõe


a problemática da consciência de classe a partir da dialética entre
contingencia e necessidade (das respostas) da classe do proletariado à
condição existencial de proletariedade. Eis a questão: a consciência de
classe necessária – que constitui a classe social do proletariado – emerge
das respostas que as individualidades pessoais de classe são obrigadas a
dar – no plano da contingencia da vida cotidiana – à condição existen-
cial de proletariedade. No caso do filme de Leon Hirzsman as respostas
dadas pelos homens e mulheres operárias à condição de proletariedade
exposta no decorrer do filme assumiram um caráter coletivo, organiza-
do no movimento sindical.
Ora, como observou Georg Lukács, “o homem é um ser que dá
respostas”. O que significa que, homens e mulheres proletárias imersas
em sua condição de proletariedade são obrigados a dar resposta à alie-
nação/estranhamento que permeiam suas vidas cotidianas. Na verda-
de, o que se coloca como questão essencial é a natureza das respostas
humanas contingentes e necessárias capazes de constituírem, no plano
do imaginário social, a identidade de classe do proletariado.
É claro que as respostas existenciais das individualidades pessoais
de classe às misérias da proletariedade são múltiplas. Elas perpassam
um largo espectro que vai da pura contingencia à mais consciente ne-
cessidade da ação coletiva sindical ou política. Assim, num extremo, as
respostas humanas podem assumir dimensões puramente contingen-
tes, meramente individuais no sentido de serem intrinsecamente cor-

319
Trabalho e Cinema • Volume 3

porativo-particularistas; e noutro extremo, podem assumir um caráter


coletivo, organizado no sentido sindical, quando permanecem numa
dimensão econômico-corporativa; ou ainda organizadas no sentido
politico, quando a resposta coletiva assume um caráter geral, de cariz
ético-politico na medida em que se generaliza, envolvendo homens e
mulheres proletárias das mais diversas inserções sócio-profissionais,
num projeto político de transformação social do terreno nacional-
popular, abrangendo, deste modo, a totalidade viva do complexo do
trabalho social.
Portanto, o movimento de formação da consciência de classe é in-
trinsecamente o movimento de respostas que o homem que trabalha dá
à sua condição de proletariedade, surgindo, deste modo, como solução
de resposta ao carecimento que a provoca, carecimentos originários da
própria alienação/estranhamento que constitui o ser do proletariado
como “classe”. Deve-se salientar também que essas respostas humanas
ocorrem sempre a partir da vida cotidiana como espaço concreto das
atividades prático-sensível de homens e mulheres proletários.
O movimento cotidiano de formação da classe do proletariado
expressa tão-somente, mutatis mutantis, o movimento histórico-on-
tológico da própria formação da humanidade. Nesse sentido, é inte-
ressante apreender que a consciência social se forma no próprio devir
humano dos homens e mulheres, sendo a consciência de classe uma
forma histórico-concreta de consciência social - a consciência social
capaz de fazer a história sob as condições da dominação do capital. O
que significa que não existe história sem consciência de classe.
Lukács desvela o “mecanismo” intrincado da formação da cons-
ciência social (e por conseguinte, da consciência de classe) a partir da
dialética histórica do movimento respostas (que pressupõem pergun-
tas) aos carecimentos sociais. Diz ele: “...o homem torna-se um ser que
dá respostas precisamente na medida em que - parale­lamente ao de-
senvolvimento social e em proporção crescente - ele generaliza, trans-
formando em perguntas seus próprios carecimentos e suas possibili-
dades de satisfazê-los; e quando, em sua resposta ao carecimento que

320
O mundo do trabalho através do cinema

a provoca, funda e enriquece a própria atividade com tais mediações,


freqüentemente bastante articuladas”.
Nessa passagem, Lukács busca salientar não apenas que o homem
que trabalha é um ser que dá respostas, mas também – e vale a pena
destacar isso - a importância da capacidade de generalizar e transfor-
mar em perguntas seus próprios carecimentos e suas possibilidades de
satisfaze-los. Esta, inclusive, é um pressuposto fundamental (e fundan-
te) do próprio ato (e processo) da solução de respostas humanas aos
carecimentos que a provoca.
Portanto, o processo de conscientização (de classe) envolve não
apenas respostas, mas também perguntas que emergem dos carecimen-
tos materiais postos pela condição existencial de proletariedade – per-
guntas que se interrogam sobre as possibilidades de satisfazer os care-
cimentos cotidianos de homens e mulheres proletárias.
Deste modo, o homem que trabalha é um ser que transforma em
perguntas seus próprios carecimentos, perguntas sobre a possibilidade
de satisfaze-los. Enfim, conscientizar não é apenas dar respostas, mas sa-
ber elaborar perguntas a partir dos próprios carecimentos cotidianos.
Nesse caso, podemos distinguir “experiência” da simples “vivên-
cia”. Uma experiencia (de classe) vivida e percebida, implica a capaci-
dade de dar respostas e elaborar perguntas, que são a verdadeira ma-
triz consciente da formação da consciência de classe e da própria classe
como sujeito histórico-social.
Na verdade, o capital como relação social estranhada busca cor-
roer a capacidade do homem proletário de viver experiências de clas-
se – mesmo no plano contingente, tornando-o meramente um “ente
vivencial”, “sujeito” de vivências cotidianas pseudo-concretas, incapaz
tanto de elaborar perguntas sobre seus carecimentos e a possibilida-
de de satisfaze-los, quanto de dar respostas efetivas capazes de ir além
da fixação fetichizada da ordem burguesa. Sob o capitalismo tardio,
agudiza-se a manipulação que visa a destruir a capacidade de viver ex-
periencias de classe e portanto, do homem fazer história.

321
Trabalho e Cinema • Volume 3

Vivência (de “massa”) Experiência (de classe)


Certeza sensível/pseudo- Entendimento/Razão/concreção
concreticidade da vida cotidiana da vida cotidiana

A simples vivência é a dimensão da mera certeza sensível que


impregna a pseudo-concreticidade da vida cotidiana. Neste plano pré-
contingente, construção social da ideologia do capital, a experiência (de
classe) não tem o seu lugar. A “classe” é mera massa de vivências aliena-
das de si e dos outros. A ordem da experiencia – que torna-se possível
pela capacidade social não apenas de dar respostas, mas de perguntar
sobre seus próprios carecimentos e a possibilidade de satisfaze-los –
põe-se como o campo sócio-histórico de formação da consciência de
classe, seja ela consciência contingente ou consciência necessária.
Um detalhe: um filme clássico que expressa com vigor o papel do
interrogar-se no processo de conscientização de classe é o filme “Vinhas
da Ira” (1941), de John Ford. Mais do que o filme de Leon Hirszman
“Eles não usam Black-tie”, o filme “Vinhas da Ira”, de John Ford, é capaz
de expor por meio da experiencia vivida do personagem Tom Joad, o
movimento de formação da consciência de classe do proletariado.
Ainda tratando da dialética da práxis social, Lukács observa: “De
modo que não apenas a resposta, mas também a pergunta é um pro-
duto imediato da consciência que guia a atividade; todavia, isso não
anu­la o fato de que o ato de responder é o elemento ontologicamente
primário nesse complexo dinâmico”.
O que significa que, numa situação de aguda manipulação social,
as perguntas de homens e mulheres proletárias podem até expressar,
em si e para si, contéudos da contingência da ordem da proletariedade,
assumindo, deste modo, pelo menos no plano da elaboração consciente
– no sentido propriamente dito – um caráter de critica do mundo bur-
guês. É o caso de inúmeras narrativas que denunciam o prosaísmo da
vida burguesa com seu vazio sem esperança. Entretanto, no plano das
respostas, a vivência critica não se traduz em elementos de experiencia
de classe, mesmo no plano contingente, mas sim como mero sentido

322
O mundo do trabalho através do cinema

irracional (por exemplo, o estranhamento como condição humana e a


deriva como sina do destino). Na medida em que o ato de responder,
como observa Lukács, é o “elemento ontologicamente primário nesse
complexo dinâmico”, o equívoco da resposta intrinsecamente manipu-
lada obstaculiza o trabalho de “negação da negação” (com suas cadeia
de mediações) – cujo movimento implica a passagem da contingen-
cia à necessidade da classe do proletariado. Nesse caso, a manipula-
ção incide hoje com vigor, mais sobre o ato de responder (a corrosão
da política) que propriamente sobre o ato de perguntar. A corrosão do
complexo dinâmico do movimento de formação da classe do proleta-
riado como sujeito histórico limita (e invalida) o próprio sentido da
experiência (de classe) como salientamos acima, abrindo espaços de
vivências pseudo-concretas que permeiam as narrativas da proletarie-
dade pós-moderna.
O que se visamos destacar, em nossa análise crítica do filme, é
menos a “consciência de classe” e mais a “conscientização de classe”,
isto é, o processo de formação da classe em si e para si (a passagem da
contingência à necessidade da classe do proletariado). O termo “cons-
cientização” é mais adequado que a palavra “consciência” para expor
a dimensão processual da formação do sujeito coletivo “classe social”.
Até hoje, os marxistas não atentaram para a diferença categórica entre
“conscientização” e “consciência”. Enquanto o último remete para um
estado do ser (a consciência), o primeiro implica um processo de for-
mação com tudo aquilo que lhe é intrínseco (o movimento da contin-
gência à necessidade, como salientamos acima).

Conscientização de classe
Consciência de classe
(movimento do ser da contingência
(estado do ser)
em-si à necessidade para-si)

Na medida em que se trata aqui da conscientização de classe, de-


vemos considerar o movimento em si e para si, com suas idas e vindas,
impregnado da dialética entre individualidades pessoais e ser social, con-

323
Trabalho e Cinema • Volume 3

tingencias e necessidade (no sentido de respostas efetivas - com sua ca-


deia de mediações - à condições objetivas dadas pelo mundo do capital).
Mias uma vez salientamos que conscientização (de classe) nos
remete ao espaço-tempo da vida cotidiana, verdadeiro território de
construção/formação da classe que se dá intrinsecamente a partir das
respostas humanas, sejam elas impregnadas de particularismo indivi-
dual (a contingencia do em-si), ou ainda respostas na direção da ação
coletiva da classe como sujeito histórico para-si ou mesmo para além-
de-si (necessidade).
É importante salientar que a luta de classes – seja ela sindical ou
politica – é eixo estruturante da consciência (ou conscientização) de
classe necessária. Ao dizermos consciência de classe necessária, expri-
mimos a necessidade de dar resposta à condição de proletariedade no
sentido radical (ser radical, na ótica dialética, é ir até as raízes Mas
a raiz é o próprio homem como ser social). Portanto, a consciência
necessária da classe implica – como a própria constituição da classe
social – a apreensão da necessidade do movimento coletivo contrapos-
to à resposta meramente individual no sentido particularista. E mais
– movimento coletivo que articula em si, a identidade entre homens e
mulheres proletários, identidade que nasce da não-identidade com o
mundo do capital, isto é, emerge da luta contra o capital e suas perso-
nas estranhadas. Em síntese: a identidade da classe – como matriz da
consciência necessária da classe - nasce da própria luta da classe (o que
explicita a função pedagógico-moral da luta de classe).
Na verdade, a narrativa do filme “Eles não usam black-tie” tra-
ta, em si, da natureza íntima – intrinsecamente dialética, e, portanto,
contraditória - da formação da classe do proletariado no Brasil. Ela ar-
ticula, objetividade do ser social (o que se expressa na condição de pro-
letariedade particular de uma formação capitalista de industrialização
hipertardia e de via colonial-prussiana); e subjetividade de homens e
mulheres proletários impregnados – no sentido da representação cultu-
ral - pelas clivagens de geração, gênero e etnia. O filme nos apresenta
uma verdadeira totalidade concreta da vida (e trabalho) de homens e

324
O mundo do trabalho através do cinema

mulheres proletários, operários empregados e desempregados, à mercê


do mundo social do capital.
Num primeiro momento, não temos a classe social do proleta-
riado, mas sim a “classe” do proletariado como conjunto de indivi-
dualidades pessoais de homens e mulheres, jovens, adultos e idosos,
operários e operárias empregadas na indústria absorvidos pela vida
cotidiana do emprego (ou desemprego). Nesta apreensão imediata da
narrativa do filme “Eles não usam Black-tie”, é perceptível o universo
da família como realidade efetiva ou em desefetivação do ser genérico
do homem (família no sentido da comunidade humano-genérica origi-
nária) – aliás, a narrativa do filme gira em torno da família de Otávio, o
metalúrgico; ou mesmo o universo da família como utopia pessoal das
individualidades de classe – projetos de vida constituídos pelo afeto
mútuo de casais (como o casal Tião e Maria que planejam – ou se vêem
diante da – constituição da família).
Aos poucos, no decorrer da narrativa fílmica, constitui-se – apa-
rece – a classe como movimento de resposta organizada (no sentido
coletivo) à condição de proletariedade. A classe social aparece em sua
forma econômico-corporativa. É a contingência da classe em-si em seu
nivel superior (expressas pela organização sindical e a greve).
Nas condições históricas da industrialização hipertardia em as-
censão – como ocorreu no Brasil da década de 1970 – o locus de for-
mação da classe social do proletariado é o espaço-tempo da fábrica, o
local de trabalho organizado, onde o capital estrutura a exploração e
acumulação de valor. Inclusive as outras instancias da vida cotidiana se
articulam em torno da fábrica, como não poderia deixar de ser no caso
de uma sociedade do trabalho.
Naquela época, a classe operária – no sentido de proletários indus-
triais - está no centro do movimento de formação da classe do proleta-
riado, tendo em vista que constituem coletivos mais organizados – tanto
no sentido da produção em si, com o capital concentrando-os num ter-
ritório da produção de valor (a grande indústria), quanto no sentido da
organização sindical com entidades associativas consolidadas (estrutura
sindical). É em torno da classe operária organizada que se articula a re-

325
Trabalho e Cinema • Volume 3

sistência em suas múltiplas gradações (a idéia de resistência vincula-se a


própria idéia de movimento de formação da classe – o que significa que
percorre uma complexa gradação da contingencia à necessidade).
Mas a classe operária que aparece no filme não esta só na fábrica,
como iremos ver adiante. Ela está em múltiplos espaços da vida coti-
diana – com destaque para o espaço do lar e espaços do lazer (cinema,
barzinho, futebol). Enfim, dimensões da sociabilidade da “classe” que
se faz classe. Aliás, a formação da consciência de classe ou a conscien-
tização de classe percorre fundamentalmente dimensões da sociabili-
dade do complexo vivo do trabalho. A classe social do proletariado se
forma ou se constitui nos espaços de sociabilidade e não apenas nos
espaços de trabalho propriamente dito – embora não haja uma barrei-
ra intransponível entre as instâncias do trabalho e instancias da vida.
Aliás, a natureza do trabalho – no caso de operários e operárias da
grande indústria capitalista fordista-taylorista – coloca determinações
à própria natureza da sociabilidade como espaço de formação da classe
social do proletariado.
A conscientização de classe é um processo de gradação – é claro –
levado a cabo por homens (e mulheres) mais ou menos conscientes da
necessidade de resposta coletiva e não apenas individuais à miséria da
vida cotidiana. É importante que se diga que a resposta é sempre uma
resposta concreta às condições existenciais da vida cotidiana organiza-
da em torno do trabalho/emprego (em sua forma particular-concreta).
Assim, o filme “Eles não usam Black-tie” trata do proletariado indus-
trial da grande indústria fordista-taylorista num país de formação capi-
talista colonial-prussiana de industrialização hipetardia.
Outra coisa: o processo de conscientização de classe ocorre sem-
pre em contraposição a obstáculos internos e externos à morfologia
social da classe e de seus agentes/sujeitos pessoais. Por exemplo, no
caso da narrativa fílmica, como iremos ver, a contraposição dilacerante
ocorre não apenas na sociedade civil propriamente dita, no interior do
lar da família operária onde o conflito candente entre pai e filho expõe
o movimento desigual e combinado do processo de conscientização
de classe. O conflito entre Tião e Otávio é quase um conflito edipiano

326
O mundo do trabalho através do cinema

clássico que contém elementos do processo de formação da classe do


proletariado.
Antes de avançarmos para a análise critica do filme – expondo
mais elementos da relação dialética entre consciência contingente e
consciência necessária de classe – seria interessante apresentarmos al-
guns elementos sócio-históricos no plano da objetividade do ser social
que condicionam o processo de conscientização da classe do proleta-
riado industrial no Brasil. O drama social exposto no filme de Leon
Hirszman é a síntese concreta de uma forma de ser do capitalismo sob
as condições da modernidade capitalista periférica. Como salientamos
acima, o Brasil é país de formação capitalista colonial-prussiana de in-
dustrialização hipertardia.
É importante que se diga que a natureza da formação da classe do
proletariado é condicionada – no sentido de condições herdadas de gera-
ções passadas, como diria Marx - num primeiro momento, pela objetivi-
dade do ser social enquanto modo particular-concreto de objetivação do
capitalismo (no caso do Brasil, via não-clássica de cariz colonial-prussia-
no); e num segundo momento, pela própria luta de classes como resposta
contingente às condições sócio-históricas herdadas do passado.
Isto é, o movimento da classe – no sentido da formação da sua efe-
tividade social como sujeito histórico – é determinado tanto pelo pas-
sado quanto pelo presente – ou seja, condições históricas herdadas do
passado, que colocam limites e alcances da efetividade de classe social
(a dimensão da estrutura social), e escolhas políticas feitas no tempo
presente diante do cenário concreto de luta de classes (a dimensão da
contingencia).
No escrito “18 Brumário de Luis Bonaparte” (1852), Karl Marx
expressou numa frase lapidar, a dialética da história como devir hu-
mano dos homens, que é a própria dialética da formação da classe do
proletariado. Disse ele:
“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segun-
do a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e
sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmi-
tidas pelo passado”.

327
Trabalho e Cinema • Volume 3

Num prmeiro momento, Marx observa: “os homens fazem sua


propria história”. O que significa o reconhecimento da subjetividade na
história e o papel da liberdade como resposta humana que implica es-
colhas contingentes e ações politicas propriamente ditas. Mas logo a se-
guir, Marx alerta: “...mas a não fazem segundo a sua livre vontade, não
a fazem sob circunstâncias de sua escolha...”. Enfim, o fazer histórico –
que é o fazer da classe social do proletariado – é um fazer condicionado
pelas circunstâncias legadas e transmitidas do passado.
O filosófo Jean Paul Sartre observou certa vez: “O importante não
é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os
outros fizeram de nós.” Mas, segundo Marx, o que nós mesmos faze-
mos do que os outros fizeram de nós é condicionado pelas circunstân-
cias herdadas e transmitidas do passado. A práxis histórica, matriz da
própria formação da classe social, articula a dialética entre liberdade
e necessidade, passado e presente, trabalho morto que oprime traba-
lho vivo. O processo de conscientização de classe é um processo in-
trinsecamente contraditório. No processo de conscientização de classe,
as circunstâncias herdadas e transmitidas do passado – no sentido da
pura contingencia viva que contém em si, resíduos do conservantismo
social, limitam a efetividade da formação do sujeito histórico coletivo,
agente da transformação histórica social.
Marx, ao afirmar que “a tradição de todas as gerações mortas
oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”, trata, de fato, da cons-
ciência social e da sua efetividade histórica para além de si (problema
do devir histórico). A contingencia pura oprime a necessidade histó-
rica como movimento da classe do proletariado que nega o estado de
coisas existentes. A própria “classe” do proletariado imersa na pseudo-
concreticidade da vida cotidiana, como Tião (do filme “Eles não usam
black-tie”) com seus interesses particularistas condicionado pela auto-
preservação egoísta, é elemento compositivo do statu quo contingente.
A condição de proletariedade – como o próprio nome diz – é uma
condição existencial. Como uma tradição histórica quase naturalizada,
oprime – em si e para si – homens e mulheres proletárias. Ao mesmo
tempo, obriga – sob pena deles irem à ruina – uma resposta contun-

328
O mundo do trabalho através do cinema

detente, mesmo que limitada, às miserias da proletariedade. Os prole-


tários em seu processo de conscientização de classe lutam não apenas
contra o capital, mas também consigo mesmo, afinal eles são partes
compositiva deste mundo social.
Noutra passagem brilhante do texto “18 Brumário de Luis Bona-
parte”, Marx traduz o movimento dramático da classe do proletariado
como sujeito histórico coletivo da revolução proletária que convulsiona
a modernidade do capital. Observem a atualidade candente da reflexão
marxiana no sentido de expressar o movimento histórico contraditório
da classe do proletariado. Diz ele:
“As revoluções proletárias, como as do século XIX, se criticam
constantemente a si próprias, interrompem continuamente seu curso,
voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarne-
cem com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias
de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário apenas
para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente,
agigantado, diante delas, recuam constantemente ante a magnitude in-
finita de seus próprios objetivos até que se cria uma situação que toma
impossível qualquer retrocesso e na qual as próprias condições gritam:
‘Hic Rhodus, hic salta! Aqui está Rodes, salta aqui!’” .
Uma observação: “Hic Rhodus, hic salta!” (Aqui está Rodes, sal-
ta aqui!): expressão de uma fábula de Esopo sobre um fanfarrão que,
invocando testemunhas, afirmava que uma vez, em Rodes, conseguira
dar um salto enorme. Os que o escutavam responderam-lhe:”Para que
é preciso testemunhas? Aqui está Rodes, agora salta!” No sentido figu-
rado significa: aqui é que está o essencial, agora é preciso demonstrar.
Enfim, a frase esopiana utilizada por Marx expressa o desafio his-
tórico constante que o capital coloca para a “classe” do proletariado,
submersa nas misérias do estranhamento social, e que é obrigada – nas
condições de proletariedade extrema – a saltar sobre Rodes, isto é, a
demonstrar, sob pena de ir a ruina, que é capaz de colocar – pelo me-
nos - obstáculos à sanha do capital (como aconteceu nas experiencias
revolucionárias do século XX). Para isso, homens e mulheres proletá-

329
Trabalho e Cinema • Volume 3

rios – como verdadeira lei histórica – precisam converter-se em classe


em si e para si.
Esta passagem brilhante do “18 Brumário...” é quase visionária
em sua acuidade histórica. Diz Marx com respeito as “revoluções pro-
letárias” – que podemos traduzir como sendo o movimento da própria
classe do proletariado como movimento que nega o estado de coisas
existentes: “...voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra
vez...”. É o que ocorre no século XXI – o movimento da classe do pro-
letaridao son as condições da reação histórica do capital em sua crise
estrutural parece ser obrigado a recomeçar outra vez.
E prosssegue: “...escarnecem com impiedosa consciência as defi-
ciências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços...”. Eis a nece-
sidade historica de critica (e autocritica) das experiencias de revolução
pós-capitalistas do século XX que não conseguiram ir além do capital
e que obrigam a classe do proletariado – na medida em que ela se for-
ma – a ir além das misérias dos primeiros esforços de construção do
socialismo no século XX.
E Marx conclui, quase que antevendo a reação do capital no li-
miar do nosso século: “...parecem derrubar seu adversário apenas para
que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agi-
gantado, diante delas, recuam constantemente ante a magnitude infini-
ta de seus próprios objetivos ...”. Ora, nos últimos trinta anos, o capital
ergueu-se agigantado diante do proletariado que se invisibiliza como
classe social. O capital retirou da tera novas forças, fazendo recuar o
mundo do trabalho organizado. É o sentido da reestruturação capitalis-
ta e da ofensiva do capital.
Mas, Marx, com dramaticidade critica, reconhece na dialética do
movimento social, a necessidade historica do socialismo (o que não
significa o determinismo de sua efetividade histórica). Diz ele: “...até
que se cria uma situação que toma impossível qualquer retrocesso e
na qual as próprias condições gritam: ‘Hic Rhodus, hic salta! Aqui está
Rodes, salta aqui!’”
Enfim, sob a crise estrutural do capital, as margens de recompo-
sição civilizatória da ordem burguesa se estreitam. Está colocada para

330
O mundo do trabalho através do cinema

a humanidade proletária a necessidade histórica do avanço social, sob


pena dela ir a ruina. A universalizaçào da condição de proletariedade
com a agudização da alienação/estranhamento que lhe é intrinseca,
desafiam – objetivamente - o proletariado a dar uma resposta radical,
mesmo que desigual e limitada – em sua efetividade social – pelas cir-
cunstâncias do tempo passado – cristalizada nos mecanismos do pre-
sente fetichizado da ordem burguesa que ainda oprime o trabalho vivo
em processo de desefetivação.
Perguntemos: Qual a “tradição de todas as gerações mortas” que
oprime, “como um pesadelo”, a “classe” do proletariado que se faz classe
social no Brasil?
Resposta: primeiro, a tradição histórica da herança colonial (Caio
Prado Jr. diria: o “sentido da colonização”) e a tradição histórica da he-
rança politico-autocrática no sentido de um Estado burguês despótico
e voraz na repressão e/ou incorporação do movimento social autono-
mo da classe do proletariado. Em nossa história social, sempre que o
povo organziado se levantada e caminhava com suas proprias pernas, o
capital como sistema de poder da burguesia, reprimia ou incorporava
utilizando seus aparatos de manipulação sistêmica (o Estado político
de Vargas e Lula ou o neoliberalismo de Collor ou FHC).
Enfim, neste primeiro momento é o que tentaremos esclarecer.
Este “pesadelo histórico-genético” da objetividade capitalista no Brasil
limita/oprime/perverte/inverte/trasverte o processo de conscientiza-
ção de classe do proletariado nos últimos séculos.
A tradição histórica da herança colonial está nos preconceitos
escravistas-coloniais que permeiam o próprio metabolismo social im-
pedindo o desenvolvimento de sujietos autonomos capazes de irem
além da servidão intrisneca à lógica escravista. Estes preconceitos so-
ciais permeiam o próprio metabolismo social da classe, expressando
com clareza na discrminação intra classe entre barncos formalziados
e negros/mulatos informalizados. Por exemplo, no filme, não deixa de
ser curioso que Braulio, operário negro, é o personagem assassinado na
narrativa do filme.

331
Trabalho e Cinema • Volume 3

A tradição histórica da herança prussiana – no sentido de Estado


burguês despótico - está visivel na autocracia policial-estatal secular
que oprime a “rale” proletária na vida cotidiana e nos espaços da pro-
dução social. Por exemplo, o mandonismo das chefias e a truculencia
policial contra pobres expressam, na narrativa do filme “Eles não usam
black-tie”, a misério do autocratismo burguês que permeia nossa vida
social. Ao mesmo tempo, o próprio proletário incorpora/introjeta – nas
atitudes machistas, por exemplo, – a truculencia autocrática do Estado
burguês colonial-prussiano que, no caso do Brasil, criou – quase a sua
imagem e semelhança - a própria “sociedade civil” (o que explica outra
miséria – a miséria do corporativismo que crassa na sociedade brasi-
leira). A repressão politica violenta obstaculiza a organização da classe
– eis um traço histórico da república burguesa no Brasil, onde tivemos
poucos momentos de liberdade politica e democrática (com muita difi-
culdade, apenas o periodo de 1945-1964 e hoje – desde 1985). A ditadura
militar (1964-1985) nos seus quase vinte anos de vigência autocrática,
teve só uma função histórica: destruir – por meio da violência policial
-militar, lideranças orgânicas do movimento da classe do proletariado
e reforçar, à exaustão, a tradição histórica do fardo colonial-prussiano e
todas as suas miséria sociais. Mesmo hoje, sob a “democracia politica”,
a lógica protagônica do mercado e a corrosão do espaço público levado
a cabo pelo neoliberalismo, não deixam de ser traços indeleveis do que
poderia ser um “prussianismo de mercado” que oprime – como um
pesadelo - homens e mulheres proletárias no Brasil.
A análise crítica do filme “Eles não usam Black-tie” irá desvelar
elementos do processo de conscientização da classe do proletariado e
as particularidades histórico-concretas intrínsecas à ordem burguesa
no Brasil. Iremos apreender, num primeiro momento, traços da con-
dição de proletariedade no Brasil que sempre aparece vinculada com o
terreno nacional-popular em sua dimensão concreta. Como condição
existencial de homens e mulheres proletárias, a condição de proletarie-
dade, com seu rol de misérias sociais, possui um vínculo orgânico com
a formação social histórico-concreta do país capitalista.

332
O mundo do trabalho através do cinema

Primeiro, vejamos a sinopse da narrativa do filme: o jovem Tião,


operário metalúrgico da região metropolitana de São Paulo, ao tomar
conhecimento que sua namorada, Maria, está grávida, decide noivar e
casar. Por outro lado, Otávio, pai de Tião, velho militante sindical meta-
lúrgico, está envolvido na organização de uma greve operária. O confli-
to entre pai e filho torna-se inevitável quando Tião decide “furar” a gre-
ve metalúrgica. Ao assumir atitude de “fura-greve”, ele entra também
em conflito com a noiva, que apóia o movimento sindical metalúrgica.
O filme “Eles não usam black-tie”, de Leon Hirszman, baseia-se
na peça teatral homônima de Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006),
que estreiou em São Paulo em 22 de fevereiro de 1958, iniciando a fase
nacionalista do Teatro de Arena. Foi esta peça teatral, escrita em 1956,
que lançou o jovem Gianfrancesco Guarnieri, então com 24 anos de
idade. Em 1958, devido a um período tumultuado pelas discussões po-
líticas internas e escassas possibilidades de público, o Teatro de Arena
pensa em fechar as portas. Pressionado pelo grupo originário do Teatro
Paulista do Estudante (criado por Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo
Viana Filho em 1954), fundido com o Arena desde 1956, José Renato
Pécora, fundador e idealizador do Teatro de Arena, resolve assumir a
produção de “O Cruzeiro Lá no Alto”, texto de Gianfrancesco Guarnie-
ri. Antevisto como o último ímpeto da companhia é rebatizado como
“Eles Não Usam Black-Tie”, provocativa referência ao Teatro Brasileiro
de Comédia (TBC) e seu público, uma vez que a peça trata da greve
operária, colocando em cena moradores de uma favela e seus proble-
mas socioeconômicos. O texto faz um recorte preciso de um momento
altamente dramático: o jovem operário Tião fura o movimento grevista,
pois tendo engravidado a namorada teme perder o emprego na hora em
que mais necessita de recursos. As conseqüências de sua atitude são dolo-
rosas, enfrentando não apenas seu pai, o líder grevista, como sua própria
namorada grávida, que o impele a frente de luta e o abandona ao final.
O ano de 1958, ano de lançamento da peça teatral “Eles não usam
black-tie”, é marcado por candentes acontecimentos políticos e sociais.
O Brasil de 1958, sob o governo Juscelino Kubitsckek, era um país que
vivia a expansão do capitalismo industrial, com afluência do movimen-

333
Trabalho e Cinema • Volume 3

to operário. Alguns fatos históricos que marcaram o ano de 1958: 21 de


janeiro de 1958, greve dos têxteis no Recife; greve geral no Recife em 13
de março; em 30 de outubro de 1958, grande manifestação do Pacto de
Unidade Intersindical (PUI), em S. Paulo, contra o aumento do trans-
porte. Há repressão e resistência com 5 mortos; 2 de dezembro de 1958,
ocorreu a greve geral em São Paulo contra a carestia, e em 23 de dezem-
bro de 1958, greve nos transportes coletivos de São Paulo. Em 21 de no-
vembro de 1958 é inaugurada a fábrica da Ford, S. Bernardo (SP) - JK
comparece. Em São Paulo, é eleito Carvalho Pinto como governador. No
cenário internacional, a guerrilha cubana toma a cidade de Santa Clara;
em 1958, o Brasil vence a sua primeira Copa do Mundo de Futebol e pela
primeira vez aconteceu no Maracanãzinho o concurso Miss Brasil; nos
EUA, ocorre a fundação da NASA para coordenar o programa espacial
norte-americano. Morre o papa Pio XII e João XXIII é escolhido o novo
papa; Nikita Kruchov é escolhido primeiro ministro da URSS.
O ano de 1981, ano de lançamento do filme “Eles não usam black-
tie”, de Leon Hirzsman, o Brasil, sob o governo militar do General João
Batista Figueiredo, assiste os seguintes fatos históricos: em 2 de janeiro
de 1981, assassinado por grileiros no Estado do Pará, José Manuel de
Sousa, o Zé Piauí; em 5 de janeiro, a Volkswagem demite 3.750 ope-
rários em 1 só dia ; em 7 de janeiro, grileiros assassinam no Estado do
Pará, o líder rural Sebastião Mearim; em 6 de fevereiro, quebra-quebra
nos trens suburbanos da Zona leste de S. Paulo; em 20 de fevereiro,
Congresso de professores em Campinas (SP), cria a Andes (Associação
Nacional de Docentes do Ensino Superior); em 25 de fevereiro, a Jus-
tiça Militar condena Lula e mais dez sindicalistas do ABC, com base
na Lei de Segurança Nacional, pela greve de 1980 (as penas mais tarde
serão revogadas); em 9 de abril, quebra-quebra de trens em S. Paulo;
em 28 de abril, greve de 60 mil médicos em Dia Nacional de Protesto;
em 30 de abril, durante show realizado no Riocentro, no Rio de Janeiro,
por entidades de oposição em comemoração ao Dia do Trabalho, duas
bombas explodem; em 4 de maio, greve na FIAT do Rio barra demis-
sões; em 2 de junho, o cel. Moacyr Coelho, diretor da PF, divulga lista
de comunistas e simpatizantes, que inclui Fernando Henrique Cardoso

334
O mundo do trabalho através do cinema

e Chico Buarque; em 13 de junho, assassinado Joaquim Neves Norte,


advogado dos Trabalhadores Rurais de Naviraí (PR); em 6 de julho,
greve de 9 mil, contra 400 demissões, conquista comissão de fábrica na
Ford do ABC (SP); em 7 de agosto, acaba, após 15 meses, a interven-
ção no Sindicato dos Metalúrgicos de S. Bernardo (SP). Jair Menegueli
é eleito presidente ; em 20 de agosto, quebra-quebra de 750 ônibus
em Salvador, após ato contra alta da tarifa; em 21 de agosto, em Praia
Grande (SSP, 5 mil delegados de 1.126 entidades realizam a CONCLAT
(Conferencia Nacional das Classes Trabalhadoras), que elege Comissão
Pró-CUT ; greve na Embraer, de S. José dos Campos (SP), contra 400
demissões. No cenário internacional de 1981, temos o seguinte: 20 de
Janeiro, Ronald Reagan torna-se o 40º presidente dos Estados Unidos
da América, substituindo Jimmy Carter; em 9 de fevereiro, golpe na
Polônia. O general Jaruzelsky sobe ao poder, em meio a onda de greves;
em 10 de maio, François Mitterrand elege-se presidente da França que
vive seu 1º governo de esquerda desde o da Frente Popular, em 1936
; em 5 de junho, descoberto o 1º caso de AIDS (Califórnia, EUA); em
11 de dezembro, golpe militar na Argentina, assumindo o governo o
general Leopoldo Galtieri.
A peça teatral de Gian Francesco Guarnieri traduziu em sua nar-
rativa, um traço histórico-estrutural da sociabilidade urbano-industrial
em expansão no Brasil: a luta de classes, cujo metabolismo social per-
passa gerações de operários e empregados. Na verdade, o autor conse-
guiu traduzir de forma histórico-concreta uma lei histórica geral ex-
pressas por Karl Marx e Friedrich Engels no Manifesto Comunista de
1848: “A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história
das lutas de classes”.
Ao ser reescrita como roteiro de filme para o Brasil de 1981, o
texto de Guarnieri preservou, como valor histórico-ontológico da for-
mação social do capitalismo no Brasil, o traço essencial da processuali-
dade histórica da sociedade brasileira: a luta de classe em suas múltiplas
manifestações sócio-metabólicas.
A partir do conflito antagônico-estrutural entre capital e trabalho,
o autor explicitou por meio da narrativa dramática da vida cotidiana de

335
Trabalho e Cinema • Volume 3

operários industrias na região metropolitana de São Paulo, a maior re-


gião industrial do País, os conflitos internos ao metabolismo social da
própria classe do proletariado no Brasil, perpassados, por um lado, pela
diferença contingente da “consciência de classe” entre os própios ope-
rários – diferenças que assumem, no filme, a dimensão do “conflito de
geração” (por exemplo, o conflito candente entre Tião, o pai e Otávio, o
filho); e, por outro lado, pelas diferenças de percepção e entendimento
sindical e político da práxis do proletariado (por exemplo, o embate
politico entre Tião e Bráulio, por um lado, e Santini, pelo outro).
Enfim, em torno do conflito principal entre capital e trabalho, com
a luta de classes em seu âmago estrutural organizando a narrativa do fil-
me, temos um conjunto complexo de conflitos derivados no interior do
metabolismo social da própria classe do proletariado (por exemplo, os
conflitos entre operários e chefias, pai e filho, homem e mulher, policia
e povo, empregados e desempregados marginais, etc). O filme “Eles não
usam Black-tie” é uma narrativa permeada de tensão candente – intensa
e extensa - entre classes – afinal trata-se, em última instância, da luta
de classe entre burguesia e proletariado - e tensão candente intra-classe
do proletariado (o sujeito histórico-coletivo da transformação social). Na
verdade, o conflito social em suas múltiplas dimensões cotidianas é um
traço indelével da processualidade histórica brasileira marcada historica-
mente pelo autocratismo estatal-burguês, pela superexploração do tra-
balho e pela desigualdade e misérias sociais crônicas. Uma obra de arte
realista como a peça teatral/filme escrito por Gian Francesco Guarnieri,
não poderia deixar de explicitar, em sua rica complexidade típica, esses
traços essenciais da formação social do capitalismo histórico no Brasil.
Antes de expormos a análise critica do filme propriamente dita,
seria interessante desenvolver mais uma digressão teórico-analitica so-
bre o significado de classe e a consciência de classe. Na verdade, como
salientamos acima, o filme “Eles não usam Black-tie” é um narrativa de
formação da classe do proletariado em sua dimensão contingente (classe
em-si). O nexo mediativo essencial da formação da classe é a conscien-
tização de classe – ou o processo (movimento) da consciência social do
proletariado da dimensão pré-contingente, contingente e necessária.

336
O mundo do trabalho através do cinema

O mundo do trabalho é constituído, em si e para si, pela “classe


social” do proletariado no sentido sociológico propriamente dito. Uti-
lizamos a expressão “classe do proletariado” no sentido de homens e
mulheres subsumidos à condição de proletariedade, isto é, alienados do
controle dos meios de produção da vida social. Devido a sua posição
estrutural na divisão social do trabalho, a “classe social” do proletariado
tende a ser os verdadeiros agentes histórico-coletivos da transformação
histórico-social da modernidade do capital.
Mas classe social pressupõe consciência de classe. Na verdade, só
se pode tratar de classe social, no sentido de agente da transformação
social, se houver, de fato, consciência de classe, em seus diversos graus
de desenvolvimento (da consciência de classe pré-contingente à consci-
ência de classe necessária – para-si da classe- passando pela consciência
contingente – o em-si da classe). O que significa que há na sociedade,
processos sócio-institucionais múltiplos de formação de classe, desde
processos pré-contingentes, contingentes e processos necessários que
implicam (ou levam a) intervenção social e política da classe.
É importante distinguir, no sentido analítico, (1) “classe” (com as-
pas), no sentido de contingentes de homens e mulheres imersos na “con-
dição de proletariedade” (condição de existência marcada, em maior ou
menor grau, pela contingência, acaso, alienação e deriva pessoal); (2) de
classe (sem aspas), no sentido de trabalhadores organizados, conscientes
– no sentido de consciência de classe, capazes de intervenção coletiva, no
plano econômico-corporativo ou no plano ético-politico (respectivamente,
classe em–si ou classe para-si). A dinâmica da transformação social no ca-
pitalismo moderno exige a presença da classe e portanto, da consciência
de classe, com a formação da classe a partir da “classe”.

“classe” pré-contingencia
Classe “em-si” Contingencia
Classe “para-si”/para-além-de-si necessidade

337
Trabalho e Cinema • Volume 3

A constituição da classe através da formação da consciência de


classe ocorre a partir de múltiplos processos sócio-institucionais (sujei-
tos/agentes politico-culturais e instituições de formação) mediado ir-
remediavelmente pela luta de classe em sua dimensão histórico-estru-
tural (o conflito antagônio-estrutural capital versus trabalho). A luta
de classes produz conflitos derivados no interior da própria classe por
conta da diferença pré-contingente/contingente de consciência de classe
entre proletários.
É no movimento da consciência de classe pré-contingente/contingen-
te/necessária (nos níveis do senso comum, percepção e entendimento)
que ocorrem os conflitos derivados internos à “classe” do proletaria-
do. Um detalhe: a consciência de classe pré-contingente não é, a rigor,
consciência de classe – no sentido usual utilizada no marxismo. É uma
forma incipiente de consciência social cotidiana que constitui a pseudo-
concreticidade da vida cotidiana da “classe” do proletariado. Portanto,
o verdadeiro movimento da classe in fieri é o movimento do “em-si” da
contingencia para o “para-si” necessário. É claro que não se deve des-
prezar a dimensão da pré-contingencia da “classe”, mas, neste caso, não
temos propriamnete a classe (e, portanto, consciência de classe).
Num primeiro momento, a dialética contingencia-necessidade
caracteriza o movimento desigual e combinado da “classe” que reage –
isto é, uma “classe” que consegue ir além da sua coisidade (o puro Eu
que marca a certeza sensível de Hegel na “Fenomenologia do Espírito”).
Nesse caso, o movimento da consciência pré-contingencia/contingencia/
necessidade da classe tende a assumir múltiplas formas, seja como sen-
so comum ou mera certeza de si impregnada de particularismos e sin-
gularidades pessoais (consciência social pré-politica propriamente dita
ou contingencia pura da individualidade isolada); seja como percepção
e entendimento, opiniões e interesses organizados em “corpus” de ide-
ologia econômico-corporativo (o nivel sindical propriamente dito); ou
ainda “corpus” de ideologia politica da classe que se coloca contra outra
classe com projeto politico de transformação social de acordo com seus
interesses históricos (tanto o “em-si”, quanto o “para-si” da classe tratam

338
O mundo do trabalho através do cinema

da formação de individualidades coletivas e não apenas individualidade


isoladas (nesse caso, estamos no nivel do em-si/para-si da classe).

pré-contingencia da “classe” (individualidade isolada)

contingência – “em-si” da classe


(nivel econômico-corporativo)
(individualidade coletiva)
necessidade – “para-si” da classe
(nivel ético-politico)

Por exemplo, vejamos Tião, em “Eles não usam Black-tie”, en-


quanto individualidade pessoal de classe/individualidade isolada, está
no limiar do senso comum, sendo movido pelo seu particularismo
singular (para isso se impregna da ideologia dominante do individu-
alismo). Tião está impregnado da pré-contingencia imbuída de parti-
cularismo pessoal.
Por outro lado, a contingencia de Bráulio, Otávio e Santini é outra:
é a contingencia impregnada da necessidade coletiva da luta de classe.
Eles conseguem ir além do nivel da pré-contingencia da resposta par-
ticularista de Tião à sua condição de proletariedade. Nesse caso, em
Bráulio, Otávio e Santini, a consciência de classe – que se constitui a
partir do momento em que aparece a individualidade coletiva - opera
no nível sindical propriamente dito, onde atuam modos de percepção
e entendimento da estratégia/tática de luta de classes (nesse momento,
põe-se o embate de teleologias politicas sobre a direção da luta de clas-
ses em sua dimensão contingente – por exemplo, uma das discussões
candentes entre Bráulio e Otávio, de um lado, e Santini, de outro, é, por
exemplo, se deve ou não fazer a greve naquele momento (enfim, sob o
movimento da práxis coletiva que constitui o “em-si” da classe coloca-
se sempre, irremediavelmente, para os sujeitos sociais, a necessidade
de escolhas politicas entre alternativas concretas postas.

339
Trabalho e Cinema • Volume 3

Como na vida cotidiana, as individualidade coletivas são convo-


cadas a escolher quais os caminhos de sua própria formação como clas-
se social. Eis o sentido da política – primeiro, organizar-se como mo-
vimento coletivo e segundo, fazer escolhas entre alternativas de ação
coletiva para dar resposta à condição de proletariedade. Deste modo,
o homem proletário é um ser que dá resposta (e elabora perguntas) à
condição de proletariedade, como salientamos no começo deste texto.
Nesse caso, a resposta no sentido da ação coletiva é a própria natureza
da resistência de classe (seja “em-si” ou “para-si”).

Formas de resistência social

Resistência de classe Resistência pessoal

Um detalhe: pode-se admitir um outro sentido categorial de re-


sistência: a resistência pessoal que ocorre no nível da individualidade
isolada imersa na pré-contingencia de classe. Ela não opera, é claro,
escolhas políticas propriamente dita, no sentido que não se configura
como ação coletiva, muito embora, no plano objetivo, possa ter reper-
cussões políticas na medida em que se vincula, em si, a uma condição
social de “classe”.
Por exemplo: um operário ou empregado, decide por conta pró-
pria, indignado com as condições degradantes do trabalho, agredir
fisicamente a chefia imediata. Ou ainda: sob pressão de intenso assé-
dio moral, um operário ou empregado adoece. Podemos considerar o
adoecimento provocado pelo trabalho como uma forma de resistência
pessoal à exploração do capital. É um tipo de resistência que opera no
plano da pré-contingencia da “classe”. Assim, a resistência pessoal é a
resposta categórica das individualidades isoladas dada no plano da in-
dividualidade pessoal de classe às misérias da proletariedade. Ela opera
na dimensão da singularidade do homem singular, isto é, ela é marcada
por reações idiossincráticas categóricas, inclusive mobilizando as di-
mensões pré-conscientes e inconscientes da alma humana.

340
O mundo do trabalho através do cinema

O que significa que, por exemplo, num local de trabalho, apenas


um ou outro operário ou empregado pode adoecer, mas não todos –
enfim, por que uns adoecem e outros, não?. O adoecimento de um nú-
mero significativo de operários e empregados submetidos às mesmas
condições de trabalho pode explicitar o nexo causal do adoecimento
provocado pelo trabalho. Mas, é claro, que não houve, nesse caso, uma
concertação sobre o adoecer coletivo (operários e empregados não se
reuniram num assembléia para decidir coletivamente – vamos adoe-
cer!). Obviamente não se trata de uma ação coletiva ou resistência de
classe, mas sim uma multiplicidade de resistências pessoais involuntá-
rias às condições degradantes de exploração do trabalho.
Mas é importante salientar que a resistência pessoal, embora esteja
num patamar de pré-contingencia da “classe”, estando imbuída de parti-
cularismos, inclusive particularismos idiossincráticos oriundos da sin-
gularidade do homem singular, não pode ser desqualificada meramente
por ser um ato pré-politico propriamente dito. Aliás, embora não seja
uma resistência de classe ou ação política propriamente dita – tendo em
vista que não se origina de uma teleologia politico-coletiva organizada –
a resistência pessoal é sim, resistência social no sentido da individualida-
de pessoal de classe enquanto individualidade isolada; ela possui agudo
conteúdo politico pressuposto objetivamente. O que significa que – de-
pendendo das circunstâncias da luta de classes – o movimento social do
proletariado pode “politizar” – no sentido pleno de “in-corporar” - as
resistências pessoais esparsas dando-lhe o devido significado categórico
como resistências humano-sociais às misérias da proletariedade.
No filme “Eles não usam black-tie” são perceptíveis uma série de
elementos compositivos da condição de proletariedade, marcada pela es-
poliação, exploração e opressão social, traços estruturais que se traduzem,
no plano das individualidades de classe, em sentimentos de indignação
individual (e coletiva) e ambições individuais contingentes. A exploração
da força de trabalho, ocorre nas fábricas metalúrgicas; a espoliação do
homem que trabalha ocorre, por exemplo, com o trabalho não-pago e
tempo de vida ocupado por preocupações do trabalho estranhado; e a
opressão social, perpassa a vida cotidiana de operários e operárias. Por

341
Trabalho e Cinema • Volume 3

exemplo, a truculencia policial na abordagem de proletários empregados


e desempregados é um exemplo de opressão social. Além da violência
cotidiana, perseguida pelos aparatos policiais, são vítimas de preconceito
explicito ou oculto, contra negros e nordestinos.

O metabolismo social da condição de proletariedade

O mundo do trabalho é constituído pela “classe” do proletariado


no sentido sociológico propriamente dito. Utilizamos o termo “classe”
do proletariado (com aspas em classe) no sentido de homens e mu-
lheres submersos na condição de proletariedade, alienados do controle
dos meios de produção da vida social. Só na medida em que se tornam
agentes histórico-coletivos da transformação histórico-social da mo-
dernidade do capital é que aparecem como classe social do proletariado
(sem aspas em classe).
Portanto, classe pressupõe consciência de classe – e nesse caso,
temos o “em-si” e o “para-si” da classe. Na verdade, só se pode tratar de
classe social, no sentido de agente da transformação social, se houver,
de fato, consciência de classe, em seus diversos graus de desenvolvimen-
to (da consciência de classe contingente à consciência de classe necessá-
ria). O que significa que há na sociedade, processos sócio-institucionais

342
O mundo do trabalho através do cinema

e sócio-históricos múltiplos de formação de classe, desde processos con-


tingentes de luta e enfrentamento com o mundo do capital até proces-
sos necessários que implicam a intervenção social e política consciente
da classe para si.
É importante distinguir, no sentido analítico, (1) “classe” (com
aspas), no sentido de contingentes de homens e mulheres imersos na
“condição de proletariedade” (condição de existência marcada, em
maior ou menor grau, por uma série de atributos existenciais); (2) de
classe (sem aspas), no sentido de trabalhadores organizados, conscien-
tes – no sentido de consciência de classe - capazes de intervenção cole-
tiva, no plano econômico-corporativo ou dimensão ético-politico (classe
em –si ou clase para-si). A dinâmica da transformação social no capita-
lismo moderno exige a consciência de classe e portanto a formação da
classe a partir da “classe”.
Nos primórdios do capitalismo moderno, os atributos existen-
ciais da proletariedade se reduziam ao núcleo proletário propriamnete
dito. Nesse caso, a condição de proletariedade se confundia com a
condição proletária. Mas, com o desenvolvimento histórico do capi-
talismo e a expansão da relação-capital sob o capitalismo monopolista,
os atributos da proletariedade atingem, em maior ou menor medida,
contingentes de homens e mulheres que trabalham não implicados di-
retamente com a exploração do capital, como, por exemplo, emprega-
dos de “colarinho branco”, gestores, profissionais, pequenos e médios
proprietários, etc.
Enfim, a condição de proletariedade se universaliza sob o mundo
do capital, ampliando a “classe” do proletariado. Entretanto, a formação
da classe se dá de forma diferenciada entre os vários contingentes labo-
rais, onde alguns, mesmo imersos na condição de proletariedade, são
incapazes de desenvolverem – em virtude dos fetichismos sociais - a
consciência de classe.

343
Trabalho e Cinema • Volume 3

Atributos existenciais da proletariedade


Subalternidade
Acaso e contingencia
Insegurança e descontrole existencial
Incomunicabilidade
Deriva pessoal e sofrimento
Risco e periculosidade
Invisibilidade social
Corrosão do caráter
Prosaísmo e desencantamento
Experimentação e manipulação
Carecimento de sentido de vida

O filme “Eles não usam black-tie” é um filme que retrata o mundo


da proletariedade a partir da condição proletária de operários e operá-
rias da cidade de São Paulo (Brasil). É um mundo social permeado de
conflitos – conflitos entre classes (capital versus trabalho) e conflitos
intraclasses (por exemplo, operário empregado versus operário empre-
gado, e ainda operário empregado versus operário lumpenizado). No
centro dos conflitos está Otávio, lider sindical em conflito com o capital
e com outras lideranças operárias divergente de sua orientação politica
(Santini); ou ainda, pai de família em conflito com o filho operário
(Tião). São as dimensões da luta de classes que contém em si, conflitos
intrageracional no interior do movimento da classe do proletariado.

Condição de proletariedade
Condição proletária
Homens e mulheres que trabalham
Núcleo proletário propriamente dito
implicados nos atributos existenciais
diretamente explorado pelo capital
da proletariedade

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O mundo do trabalho através do cinema

No filme “Eles não usam black-tie” são perceptíveis alguns ele-


mentos compositivos da condição de proletariedade. Em primeiro lugar,
temos (1) a violência policial. Por exemplo, logo na abertura do filme,
ao retornarem para casa, Tião e Maria presenciam à noite, uma batida
policial no barzinho do bairro operário. É flagrante atitudes autoritá-
rias, preconceituosas e arrogantes dos policiais com os trabalhadores
pobres. Diz um policial: “Não pode andar sem documento não. Viu, ó
panaca!”. Indignada, Maria observa: “Corre não que é pior. Esse pessoal
não pensa não, atira.”
A presença da polícia nos bairros operários é marcada pela trucu-
lência policial na abordagem de proletários empregados e desemprega-
dos. Além da violência cotidiana, perseguida pelos aparatos policiais,
operários empregados ou desempregados são vítimas de preconceito
explícito ou oculto, contra negros e nordestinos. O (2) preconceito – ou-
tro elemento compositivo da condição de proletariedade - é um traço
da opressão social cotidiana que atinge as “classes pobres”. Como ele-
mento constitutivo da sociabilidade de um país capitalista de extração
colonial-prussiana, sob a ditadura militar, o preconceito fortaleceu-se,
devido a transgressão institucionalziada de direitos da cidadania.
É visível na mise-en-scene do filme “Eles não usam black-tie”, a (3)
situação de pobreza do cotidiano operário, seja na degradação do local
de moradia (bairros sem infra-estrutura urbana), seja no ambiente do
lar, simples e sem requintes de luxo.
Por exemplo, o lar de Otávio e Romana é o típico lar operário, lar
simples, humilde e modesto, expressando um padrão de vida e consu-
mo nos limites da comodidade moderna. Embora Otávio seja operário
especializado (torneiro-mecânico), com os filhos Tião e Chiquinho
complementando a renda familiar, o lar não possui requintes de luxo.
O lar de Maria, namorada de Tião, que vive com a mãe doente e o pai
operário da construção civil desempregado, é mais modesto ainda, ex-
pressando de forma singela, a pobreza operária no Brasil de 1981.
A frugalidade do lar operário e a precariedade do local de moradia
explicitam de forma candente, a condição de proletariedade de homens
e mulheres alienados do controle da vida social, explorados e oprimi-

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Trabalho e Cinema • Volume 3

dos pelo modo de produção capitalista (numa cena do filme, por exem-
plo, Otávio reclama do descaso do poder público com o bairro operário,
explicitando uma insatisfação candente com a classe política). Na ver-
dade, o núcleo proletário vive com intensidade os atributos existenciais
da condição de proletariedade.
Outro elemento compositivo da condição de proletariedade que
aparece no filme é o (3) desejo de consumo. Ao saírem do cinema, Tião
e Maria passeiam a noite pelo centro comercial em direção ao ponto de
ônibus O olhar de Maria expressa seu desejo de consumo das mercado-
rias exibidas nas vitrines. Operários e operários fascinados pelos apelos
das mercadorias, alimentam sonhos legítimos de melhores salários para
terem acesso às comodidades da sociedade de consumo. Por exemplo,
o pai de Maria pede emprestado ao mestre-de-obras um adiantamento
de 200 cruzeiros. Numa das primeiras cenas do filme, uma mercadoria
em promoção está em oferta por 30 cruzeiros, pouco menos de ¼ do
valor adiantado do salário do operário da construção civil.
A (4) “ambição de ascensão social” é um traço contingente com-
positivo da condição existencial de proletariedade. Este é um dos senti-
mentos contingentes intrínseco às individualidades pessoais de classe
imersas na condição de proletariedade. O candente anseio de ascensão
social de Tião tem que ser apreendido, por um lado, no contexto da per-
cepção (de Tião) do fracasso do pai em dar um melhor padrão de vida
para a família; e, por outro lado, mediado pelo sentimentos de medo
do pai perder o emprego e ele tornar-se provedor de duas famílias.
O tempo de trabalho estranhado impõe um tempo de lazer como
entretenimento para os homens que trabalham. Portanto, o (5) lazer
operário como entretenimento é outro traço compositivo da condição
de proletariedade. Além disso, é um espaço de sociabilidade necessária
na instância da reprodução social (por exemplo nas cenas do filme “Eles
não usam Black-tie”, o jovem casal operário Tião e Maria freqüenta o
cinema, que em 1981, ainda não estava localizada nos shopping center;
Maria flerta com as mercadorias, sonhos de consumo nas vitrines da
loja; no final de semana, Tião freqüenta a mesa do bar e a sinuca e de-
pois, passeia com a namorada num parque/balneário público. Noutra

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O mundo do trabalho através do cinema

cena do filme, alguns operários jogam futebol de areia, enquanto ou-


tros companheiros discutem a greve).
Finalmente, outro traço compositvo da condição de proletarieda-
de que se explicita no filme é (6) risco e periculosidade. Traumatizada
pelos “anos de chumbo” da ditadura militar, Romana vive temendo que
algo possa acontecer com o filho (ou com o marido) e ela demore a
saber. Por isso, ela sempre insiste, no decorrer do filme, que Tião ou
Otávio leve o endereço de casa consigo . É o espírito da mãe que se
angustia com outro atributo da proletariedade moderna: risco e peri-
culosidade. No mundo do capital, como diz a canção, “são demais os
perigos desta vida”.
Na abertura do filme “Eles não usam Black-tie”, configura-se na
cena da sala de estar da casa de Otávio, os elementos de conflito que
irão envolver irremediavelmente pai e filho. De um lado, o jovem ope-
rário Tião depara-se com a perspectiva de constituição da nova família;
de outro, o pai Otávio, trabalha a perspectiva da greve operária que
irá confrontá-lo com o filho. Na verdade, temos um conflito intergera-
cional no interior do movimento da classe. De um lado, o fato social da
Família; do outro, o fato social da Greve. De um lado, o fetiche da Re-
produção Social, cuja responsabilidade paralisa de medo e apreensão
o jovem Tião; de outro lado, a desfetichização da Produção Social que
impulsiona a indignação candente do operário Otávio.
O jovem Tião está marcado pela experiência pessoal de Otávio,
seu pai, velho militante sindical, que, apesar de ter dedicado parte de
sua vida à luta sindical e política, não conseguiu dar um melhor padrão
de vida para mulher e filhos. Ele teme que, seguindo a opção moral do
pai, que subsumiu-se no coletivo político, se arrisque a ver, como ele
diz, “minha mulher sofrer como minha mãe sofre”. Para Tião, o pai fra-
cassou em dar um melhor padrão de vida para a família. Diz ele: “Des-
de que eu me conheço por gente que ouço esse papinho, mas é a mesma
merda.” Na verdade, ele acredita que sua opção pela saída individualis-
ta possa significar melhores possibilidades de realização familiar.
Ora, medos e desejos compõem inconscientemente a singulari-
dade do homem singular Tião. Ele se projeta no pai. O pai é a figu-

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Trabalho e Cinema • Volume 3

ra do fracasso. Assim, ao projetar-se no pai, visa, ao mesmo tempo,


distinguir-se dele irremediavelmente por oposição. Tião não consegue
particularizar sua projeção fantasmática. Faz uma projeção abstrata
que perde a diferença essencial do espaço-tempo histórico. Otávio tem
a percepção da diferença essencial. Diz ele para o filho: “Quando casei
com a tua mãe, eu estava numa situação muito pior que a tua.”
O jovem Tião, apesar de estar imerso na condição de proletarie-
dade como seu pai, pertence como individualidade pessoal de classe,
a outra geração operária. Os valores morais de Tião são outros. Como
homem singular, Tião possui uma personalidade forte, cuja auto-con-
fiança, orgulho e teimosia o levam a apostar com vigor em suas utopias
pessoais com conteúdo individualista. Tião exclama: “Sabe, mãe? Ain-
da ganho essa parada”.
A ideologia de Tião é apostar na profissão e arrumar sua vida
para constituir sua familia. É um telos particularista que exclui, sob as
condições da luta de classes, a participação dele no movimento coletivo
da classe. Naquelas condições históricas de luta de classe, o jovem Tião
imbuído do seu telos egoistico, escolhe o caminho contrário de seu pai,
Otávio. Não aposta na classe em luta, mas sim na profissão (que é ideo-
logia) e no esforço pessoal (“[Eu] ainda ganho essa parada”).
Nesta cena final do filme, Romana, a mãe, apenas ouve o filho,
evitando intervir na decisão pessoal do filho. Ela respeita a autonomia
pessoal do filho, apostando talvez, que a sua decisão possa contribuir
para sua auto-educação. É a vida (e a história) que talvez ensine Tião o
valor do movimento coletivo para a realização dos anseios pessoais das
individualidades de classe.
Numa das cenas do filme, Tião e Maria passeiam no domingo
num parque público. É o tempo do lazer operário. A imagem quase me-
tafórica de Tião no teleférico projetando-se para o alto, explícita seus
anseios de ascensão social. Naquele momento, Tião carrega em si, a
preocupação com a nova condição de pai de família. “Acabou a poesia”,
diz ele. E logo a seguir, diz que as coisas não caem do céu. Ele confessa
que está preocupado pois agora tem que cuidar de um lugar para morar
e dinheiro para comprar as coisas. Tião é um homem preocupado com

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O mundo do trabalho através do cinema

as coisas. Mas logo a seguir, exclama: “Eu me arrumo”. Eis um traço de


sua personalidade: é um homem orgulhoso de sua capacidade de “ven-
cer na vida” (por isso diz que o filho que vai nascer, vai ser homem,
parecido com ele, “para poder vencer na vida”).
As forças ideológicas da instituição família exercem pressão con-
servadora sobre o jovem operário que planeja casar e constituir o novo
grupo social. Tião é convulsionado pela expectativa de ser o provedor
daquele núcleo orgânico da ordem burguesa. Enquanto Otávio. essa
singularidade pessoal moldada pelas experiencias de luta política e luta
de classes em sua juventude (Otávio cresceu na década de 1950 e 1960),
tem paixão pelo macro-coletivo (o coletivo político), o jovem Tião, que
cresceu no período histórico da ditadura militar, tem paixão pelo mi-
cro-coletivo egoístico, o coletivo egocentrado na sua família em vias de
constituição. Tião se convulsiona intimamente a partir do momento
em que percebe que será pai e irá constituir um novo grupo social. O
medo (de “fracassar” como o pai) e paixão (pela mulher e sua prole)
confundem-se com interesses meramente particularistas que amesqui-
nham a sua ambição pessoal.
O jovem Tião possui uma ideologia pessoal impregnada de valo-
res-fetiches de sua geração castrada da perspectiva coletiva: a ideologia
da ascensão social por conta própria. Eis a força (ou fardo) ideológica de
seu tempo histórico. Esta ideia-força de cariz individualista (“vencer na
vida”) implica alienar-se do movimento da classe (e por conseguinte,
de seus entes queridos e de si próprio). Na verdade, “Vencer na vida”
é o discurso da individualidade pessoal de classe imersa numa ótica
meramente individualista. A ascensão social é da personalidade singu-
lar e não da classe que ele representa. Não se faz movimento coletivo
para vencer na vida. Tião – como o pai Otávio – assume, com paixão e
decisão, a sua própria briga.
Mas ao invés de Otávio, o “coletivo” de Tião é um coletivo ames-
quinhado em seu particularismo. Noutro momento, Tião chegou a afir-
mar que, como o pai, “é de briga”. Mas a briga de Tião é, no fundo, por
si mesmo. Tião é o antípoda do pai – fura a greve. Ele é movido por
duas teleologias íntimas – primeiro, coloca como obsessão o “vencer na

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Trabalho e Cinema • Volume 3

vida” no sentido pessoal; segundo, visa “vencer na vida” porque avalia


– a partir de seus referentes mentais - que o pai, militante do coletivo
político, fracassou. Mesmo sendo o antípoda do pai, age conforme ele,
pois ele só quer realizar aquilo que o pai foi incapaz de dar por conta de
circunstâncias intrinsecamente históricas.
A conversa entre Tião e Otávio no bar do Alípio explicita alguns
elementos interessantes sobre os dois homens em conflito (pai e filho).
São duas gerações operárias (não deixa de ser sintomático que o pai
pede para beber, cachaça; e o filho, cerveja). O pai tenta explicar a mu-
dança do perfil ideológico do filho pela sua história de vida. A ironia
da história é que a sua própria história de militância sindical e politi-
ca continha dentro de si a sua própria negação. Para Otávio, Tião se
afastou das suas idéias porque foi viver com os padrinhos, tendo em
vista que ele, Otávio, perseguido e desempregado, não poderia cuidar
do filho adolescente. “Quem muda de casa, muda de idéias”, disse ele.
Assim, Tião cresceu noutro ambiente ideológico, distanciando-se do
pai. Otávio diz ter impressão que o filho Tião está um pouco perdido. O
pai tenta retomar o diálogo com o filho, oferecendo-se a ajuda-lo. Diz:
“Às vezes, a gente tem um problema e só vê o problema; não vê mais
nada adiante”. Mas Tião, orgulhoso e teimoso, recusa a ajuda do pai:
“Sei onde me aperta o sapato e porquê.”
Eis o mote do individualismo heróico: “Quem pode me ajudar
sou eu”. Tião recusa a ajuda do pai. Ele busca auto-afirmar-se através
de sua própria ação individualista heróica expressa na frase “vencer na
vida”. Como observou Braulio, Tião é o “bunda-mole que não enxerga
ninguém a não ser ele mesmo”. É um jovem autocentrado eu sua am-
bição pessoal de ascensão social. Na medida em que anseia ir além da
proletariedade, afirma sua condição proletária.
Tião e Otávio – eis o contraste de atitudes: uma, coletiva solidá-
ria; outra individualista egocentrada. Otávio e Tião são personalidades
antípodas contrastantes que expressam pólos antitéticos do movimento
da consciência de classe. Um, o pólo no limiar da consciência ingênua,
imersa na certeza de si; o outro, o pólo no limiar da consciência de

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O mundo do trabalho através do cinema

classe para si, quase na perspectiva do entendimento do mundo como


produto da luta de classes.
Convulsionado intimamente pelo casamento e família, Tião está
dilacerado por papéis sociais impostos pela ordem burguesa – ser o
provedor da família operária (embora Maria possa trabalhar). É ele que
se angustia para sustentar a família e projeta sonhos de ascensão social
tendo em vista que o horizonte operário não lhe é suficiente. Busca
uma saída individual para se posicionar melhor no interior da condi-
ção existencial de proletariedade. O pólo trabalho e família, sob deter-
minadas condições, possui uma tensão ideológica interna no sentido
da conformação, tendo em vista que implica a adoção de estratégias
individuais por parte de personalidades singulares (o que significa que
nem os pais de família operária todos são assim). Na verdade, Tião é
um personagem singular em sua tipicidade – ele é o alter ego antitético
do pai Otávio. Inclusive, talvez o conflito aberto com o pai seja parte de
sua evolução humano-pessoal singular).
No filme “Eles não usam black-tie”, o proletariado aparece sob
várias formas de ser: operários e operárias metalúrgicos empregados e
desempregados; operários da construção civil; jovens proletários mar-
ginas que estão na senda do crime; o jovem office-boy, empregado de
escritório. Além disso, outra fração de classe que aparece é o peque-
no comerciante, trabalhador por conta própria, dono do barzinho no
bairro operário. Enfim, são múltiplas as formas de ser da “classe” do
proletariado na indústria e nas atividades de serviços.
No filme, a presença do operário desempregado que se lumpe-
niza, tornando-se marginal na ordem do capital é flagrante. Ora, o
lumpen-proletário aparece como síntese negativa do proletariado. É o
espectro negativo do proletariado “incluído” que persegue homens e
mulheres que trabalham, convulsionando a ordem pública do capital.
Primeiro, o lumpen é produto em si, da ordem burguesa – uma ordem
do capital que tende a lumpenizar uma parcela de homens e mulheres
proletários. A lumpenização é um processo social intrínseco à ordem
do capital. Ao escolher a senda do crime, o proletário se lumpeniza.

351
Trabalho e Cinema • Volume 3

Enquanto, lumpen-proletário, é um estrato marginal ao núcleo produ-


tivo do capital.
Entretanto, embora seja parte orgânica da ordem burguesa, o
lumpen-proletário como operário desempregado que “escolhe” a senda
do crime, não tem condições, em si e para si, de negá-la efetivamente
(eis a tragédia do lumpen-proletariado. Ora, na medida em que o lum-
pen não vive a experiencia civilizatória da exploração do trabalho, no
sentido amplo da palavra, ele tende a não possuir o horizonte da ação
coletiva contra o capital). A estratégia de sobrevivência dos proletários
lumpenziados, principalmente daqueles que “escolhem” a senda do cri-
me, tende a ser meramente egoístico-individualista.
Por exemplo, no filme, ao ser perseguido pelos policiais, o jovem
proletário marginalizado esconde no bar do Alípio, isto é, recolhe-se no
espaço dos proletários organizados incluídos na ordem do capital. No
filme “Eles não usam Black-tie”, o lumpen-proletário marginalizado é
um espectro social que persegue os proletários incluídos no mercado de
trabalho (noutro momento do filme, o pai de Maria é assaltado e morto
por um lúmpen-proletário marginalizado). É interessante a curiosa si-
militude entre os assaltantes lumpen e o jovem operário Tião – ambos
buscam saídas individuais para sua miséria humana, sendo eles formas
de negação da ação coletiva sob a ordem burguesa hipertardia.
No filme, a “classe” do proletariado ou homens e mulheres pro-
letários circulam e habitam espaços delimitados pela sua condição de
proletariedade. Temos a fábrica e o lar operário – é de seu lar que Otá-
vio vislumbra a cidade. O espaço da cidade sempre está no horizonte
da classe operária como algo ao longe. Morando na periferia urbana,
o proletariado é alienado da cidade como espaço público e da fábrica,
local da exploração. Talvez seu único espaço seja o lar, território de sua
autonomia humano-pessoal.
O filme “Eles não usam black-tie” explícita dimensões da cons-
ciência de classe do proletariado brasileiro, expondo suas fragilidades
e fraturas internas, expressas, por exemplo, pelo contraponto de posi-
ções típicas unilaterais: de um lado, o esquerdista Santini e de outro o
pragmático Tião. Como contraponto à unilateralidade, outras posições

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O mundo do trabalho através do cinema

de classe que são exemplos pessoais da busca de uma mediação essen-


cial entre contingencia e necessidade, estão expressos nos personagens
Otávio e Bráulio. Aliás, Bráulio – que morre no final do filme, execu-
tado por agentes policiais – é o personagem que busca, com dificulda-
des, um meio-termo entre as posições unilaterais do esquerdismo e do
fura-grevismo. (o destino trágico de Bráulio expressa a tragicidade da
consciência de classe no Brasil).
O personagem Tião é o jovem operário pragmático, que se con-
trapõe ao pai, velho militante sindical. Por um lado, expressa um
conflito geracional, onde pai e filho, embora tendo o mesmo perten-
cimento de classe, explicitam um acervo de valores morais antípodas
(coletivismo versus individualismo – por exemplo). O pragmatismo de
Tião não possui um viés idiossincrático – ele não age por covardia, mas
por convicção (ele acredita que se possa ter ascensão social por conta
própria, prescindindo do movimento coletivo da classe). É um tipo de
pragmatismo moral de viés individualista que se distingue do pragma-
tismo neocorporativo que não despreza a ação coletiva, mas a reduz (e
a restringe) à ação corporativa de escopo imediato.
A cena do diálogo entre Tião e Otávio na mesa do jantar é eluci-
dativa das diferenças cruciais de visões de mundo (e consciência con-
tingente da “classe”) entre pai e filho. Enfim, existe um “abismo ideo-
lógico” entre os dois. Primeiro, Otávio observa que despediram oito
na fábrica metalúrgica. Tião diz: “Vê se te cuida pai. É bom você tomar
cuidado. Se perder esse emprego não vai ser fácil encontrar outro.” Na
verdade, Tião se preocupa com o emprego do pai pensando em si. Diz
ele: “Não vai ser fácil para mim sozinho sustentar duas famílias”. Otá-
vio logo percebe que o filho está “se borrando de medo”. Diz: “Esse teu
casamento às pressas está deixando você mais medroso ainda.” E atenta
que o filho tem “medo da própria sombra” e “vive olhando para o pró-
prio pé”. Irritado, Otávio diz que os tempos são outros. Enfim, segundo
ele, é hora de batalhar e que Tião procure “viver mais com os compa-
nheiros” nas assembléias sindicais. Reconhece que Tião foi socializado
na época da ditadura militar e que isso marcou ele. Mas salienta que as
coisas mudam. Tião desabafa culpando o pai pela miséria que a família

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Trabalho e Cinema • Volume 3

vive e exclama que a visão de mundo do pai com suas idéias de que
“precisa organizar a classe operária” e “num sei lá de história”, é que
levou a familia a ficar “na mesma merda”.
Ora, como salientamos acima, Tião, o jovem operário, cresceu
durante a ditadura militar e suas utopias pessoais estão “contamina-
das” pela ideologia da conformação particularista. É uma geração cas-
trada em sua capacidade de perceber que o novo sempre vem a partir
da ação coletiva. A dimensão do coletivo é meramente uma abstração
para Tião (diferentemente de Otávio, onde o coletivo político é um eixo
prático-ontológico que organiza suas escolhas morais). É a partir do
coletivo político, com sua manifestação prático-sensível, que Otávio
pode afirmar que os tempos são outros. Diz ele: “Os trabalhadores es-
tão se organizando”. Por isso, ele diz: “É hora de batalha. Vai lá, Tião.
Aparece nas reuniões.” Tião só percebe a si mesmo e a sua dimensão do
coletivo é egoisticamente autocentrada.
Embora Tião tenha dito que não é covarde, sua atitude em “furar”
a greve, possui um fundo idiossincrático: ele tem medo (é o que obser-
vou Otávio) – medo de assumir responsabilidades pelas quais ele não
está preparado (eis o inferno astral de Tião: vai constituir família, tendo
em vista que Maria está grávida; vai sustentar a família da noiva, tendo
em vista que o pai de Maria foi morto num assalto e a mãe e irmãos
de Maria devem morar com ele; e finalmente, diante do risco da greve,
Tião vislumbra a possibilidade do pais ser demitido e ele ter que assumir
também a família do pai). Por isso, é o mundo das responsabilidades fa-
miliares que submete (e transtorna) o jovem operário às contingencias
instrumentais da classe. O medo é o afeto regressivo na alma de Tião –
através dele, negocia seu consentimento à ordem do capital.
Mas a atitude moral de Tião representa uma visão de mundo antí-
poda a de Otávio. Ele não percebe que a dialética do real e o movimento
da classe no sentido de negação da negação – mesmo que assumin-
do formas contingentes. Otávio procura ensinar-lhe isso utilizando a
metáfora da poça d’água versus a corrente do riacho. Mas Tião não se
convence: há um abismo geracional entre pai e filho.

354
O mundo do trabalho através do cinema

O jovem operário Tião expressa a visão da presentificação crô-


nica onde o impulso para a futuridade inexiste. As escolhas morais de
Tião são adequadas a essa visão de mundo. Na verdade, ele não é um
imobilista que nada faça. Pelo contrário, como o pai, Tião é um homem
de ação, só que noutra direção – das saídas individuais e da busca por
conta própria de sua ascensão social. Ora, tanto Otávio quanto Tião
acreditam que as coisas mudam e o que os tempos são outros – mas
se o primeiro vê a mudança na perspectiva da ação coletiva da classe;
o segundo, a partir da experiência do pai e da situação familiar, incor-
pora outros valores morais, e acredita na mudança numa perspectiva
da ação meramente individual (ele quer realizar o que – na percepção
dele - o pai não conseguiu – “vencer na vida”).
Em vários momentos, Tião desabafa diante do pai e da noiva Ma-
ria, dizendo que o mundo está enlouquecido. Ele vê o mundo social
a partir de outros valores morais – os valores burgueses baseados no
individualismo egoístico. Ele olha tão-somente para si. Naquelas con-
dições da luta de classes, a visão de mundo de Tião expressa uma certa
alucinação – para ele, o mundo da luta de classes está enlouquecido.
Ele só vê loucura nos outros. Num certo momento, exclama: “Pô, mer-
da! O quê que é? Está todo mundo ficando louco, é? “. Noutro momen-
to, exclama para o pai: “Fala que nem louco, pai. Porra!”. E noutra cena,
Tião diz para Maria: “Está meio maluca ai, como todo mundo.” Talvez
seja Tião que esteja enlouquecido e não o pai ou Maria.
Depois da séria discussão na mesa de jantar, no dia seguinte, an-
tes de irem para a fábrica, no café da manhã, Tião e Otávio têm uma
rápida conversa. Fazem as pazes, embora tenha sido estabelecida – no
plano ideológica – a diferença crucial entre a visão de mundo do pai e a
visão de mundo do filho. É claro que Tião chega a reconhecer que o pai
está certo e que ele está “meio perdidão”. E diz: “Muita responsabilidade
a gente acaba dizendo o que não pensa e o que não quer, que nem de
porre”. E diz para o pai que o respeita e que o admira muito. Se o confli-
to ideológico na mesa do jantar permitiu no dia seguinte, a paz entre os
dois; com a greve, o conflito prático entre pai e filho, com Tião furando

355
Trabalho e Cinema • Volume 3

o movimento grevista, irá significar efetivamente a ruptura entre Otá-


vio e seu filho pródigo.
Enquanto, por um lado, Tião “fura” a greve utilizando argumen-
tos racionais (como diz Otávio, ele “furou a greve fazendo comício”)
– no fundo, adotando um argumento liberal, embora sua motivação
intrínseca seja o medo e visão de mundo que possui com respeito a
forma de ascensão social de classe; por outro lado, Jesuino é o típico
filisteu que age por motivações mesquinhas – dinheiro e ascensão fun-
cional (diz ele: “E é sempre umas milhas a mais, falou?”). Ele oculta sua
traição de classe.
O recurso eufemístico é utilizado sempre de forma cinica para
ocultar, no plano lingüístico, as estratégias de dominação de classe.
Tião tem que ocultar não apenas para os outros, mas para si, que é
um espião do capital. Para cumprir seu papel de traidor da categoria
assalariada (um “traidor por convicção”), tem que ocultar inclusive de
si a vergonha de ser persona do capital. Para isso, mobiliza o recurso
lingüístico, utilizando palavras que consigam não apenas ocultar, mas
dar um tom de dignidade moral, a uma prática degradante.
A prática do transformismo ideológico de proletários ocorre, no
plano de individualidades pessoais, que assumem, de forma conscien-
te, serem personas do capital. É a consciência contingente que nega a si
própria como consciência de classe, tornando meramente consciência
cínica de individualidades isoladas. É o proletário que se recusa a ir
assumir uma atitude classe, alienando-se das possibilidades de forma-
ção em si e para si, da classe. Subsumido aos seus motivos pessoais e
interesses egoísticos, as escolhas individuais atuam para sedimentar a
ideologia da classe dominante.
A consciência cinica possui características como renegação de
práticas coletivas, opção por saídas individuais, atitudes oportunistas
visando ascensão pessoal no interior da ordem, aceitação da ideologia
dominante, subsumindo-se aos valores-fetiches. As atitudes de Tião e
do Jesuino expressam a psicologia do cinismo conformista que busca
auto-justificar-se utilizando-se a ótica liberal do direito. No centro da

356
O mundo do trabalho através do cinema

argumentação sempre a ótica do individuo abstrato burguês em detri-


mento da perspectiva coletiva.

Dimensões da consciência cínica

renegação de práticas coletivas,

atitudes oportunistas visando ascensão


pessoal no interior da ordem
aceitação da ideologia dominante,
subsumindo-se aos valores-fetiches

Incapaz de vislumbrar a mudança social e os saltos de qualidade


na praxis cotidiana do movimento da classe, a consciência cínica jus-
tifica sua adesão à classe dominante como um gesto pragmático. Diz
Jesuino: “A turma não fez greve ano passado? E agora está precisando
de outra. E vai precisar de mais outra, e mais outra, e nunca vai acabar”.
Diante do eterno retorno da contingencia, “o jeito é ficar do lado de
quem manda. Esses é que estão sabendo.” Assim, incapaz de vislum-
brar para além da contingencia da pseudo-concreticidade da vida co-
tidiana, a consciência cinica legitima seu conformismo paradigmático.
O filme “Eles não usam black-tie” confronta duas lógicas de pen-
samento – a lógica da individualidade coletiva e a lógica das indivi-
dualidades isoladas. Jesuino expressa com desenvoltura a lógica das
individualidades isoladas que pensam por si e agem de modo egoístico,
calculando seus ganhos particularistas. Diz ele para Tião: “Que cada
um quebre os seus galhos do jeito que pode”. Ele não pondera: “Que a
união de todos quebre os galhos de cada um”, ele não concebe que os
galhos que atingem as individualidades pessoas de classe são galhos
sociais que só podem ser efetivamente solucionados de modo coletivo
pela organização da categoria assalariada e pelo movimento social da
classe do proletariado.

357
Trabalho e Cinema • Volume 3

A ótica de Jesuino é a ótica neoliberal do “salve-se quem puder”,


que nega a vigência da coletividade em prol da vigência das individu-
alidades isoladas. É a lógica social que marcou a sociedade brasileira
desde a Colônia. Ele expressa um pensamento social adequado a uma
formação capitalista colonial-prussiana onde o movimento do coletivo
(a contestação social) sempre foi reprimida pelas forças politicas domi-
nantes. Com a ditadura militar e mais tarde, com a ofensiva neoliberal,
a cultura da individualidade isolada adquiriu uma força maior visando
destruir os esforços coletivos de mudança social.
O diálogo entre Tião e Jesuíno no restaurante da fábrica explicita
a traição de classe levada a cabo por Jesuino que assumiu o papel oculto
de “agente do capital” no interior da categoria assalariada. Jesuino en-
trega à gerência de recursos humanos, nomes de ativistas sindicais para
serem demitidos. Ele sugere que Tião adote a mesma postura. Diz: “Vai
inventando os nomes que eles vão cobrar também.” É claro que Tião
acha “sacanagem”, dedurar companheiros de trabalho. Na verdade, en-
quanto Jesuino traí a classe de modo oportunista e covarde (“Aproveitei
a chance, companheiro!”) (Otávio dirá mais tarde, “traidor por covar-
dia”); Tião apenas adota valores morais compatíveis com o mundo do
capital, escolhendo “vencer na vida” por conta própria (o que explicita
o sentido candente da “captura” da subjetividade do trabalho pelo capi-
tal). Enfim, Tião traí a classe por convicção.
A vigência da lógica individualista que corrói o espírito do mo-
vimento coletivo é explicito quando Jesuino observa para Tião: “É a
nossa chance, companheiro. É preciso levar vantagem em tudo.” É a
lei de Gerson que traduz a vigência conservadora intrinseca à nossa
formação colonial-prussiana. Na verdade, a ditadura militar e o neo-
liberalismo só tenderam a reforçar esta tara originária da objetivação
capitalista colonial-prussiana (a chamada “lei de Gérson” é a lei daque-
les que gostam de levar vantagem em tudo. Nesta propaganda do cigar-
ro Vila Rica, exibido na televisão brasileira na década de 1970, tendo
como garoto-propagando o jogador Gérson, “cerébro do time campeão
do mundo de 70”, temos a expressão candente da ideologia do oportu-
nismo que caracteriza o metabolismo social do capitalismo brasileiro.

358
O mundo do trabalho através do cinema

É um recurso ideológico que visa “quebrar por dentro” o protagonismo


dos movimentos coletivos no País. “Levar vantagem em tudo” tornou-
se a prática social sob o protagonismo do mercado. O neoliberalismo
acirrou um traço crônico da miséria brasileira, destilado pela ditadura
militar (1964-1985) cuja função histórica foi “quebrar” o ânimo coleti-
vista da sociedade brasileira por meio de uma “modernização conser-
vadora” do capitalismo tupiniquim).
O pragmatismo de Jesuino expressa um certo tipo de realismo
intrinsecamente oportunista. Por exemplo, ele diz: “Calma, garoto! A
vida não é assim como a gente quer, não!”. Na verdade, trata-se de uma
atitude de conformação que visa adequar-se às factualidades da vida
cotidiana. Ao dizer que “a vida não é assim como a gente quer”, ele ten-
de – em última instância - a negar a ação do sujeito e o enfrentamento
das circunstâncias impostas pelo capital (na verdade, o sujeito deve
apenas se aproveitar das oportunidades dadas pelo statu quo). Trata-se
da negação da dialética da práxis histórica. Ora, se por um lado, é ver-
dade que existem condições objetivas que constrangem a vontade e a
ação dos sujeitos sociais; por outro lado, as circunstâncias herdadas do
passado não eliminam absolutamente as escolhas e as possibilidades da
práxis histórica. Além disso, na medida em que o referente praxiológico
de Jesuino é meramente individualista – ele age por si só – o poder dos
fetiches sociais torna-se quase absoluto, invalidando assim, a “negação
da negação” cujo movimento é intrinsecamente coletivo.
Otávio é o velho militante operário, homem político no sentido
pleno da palavra, sempre indignado com as misérias do mundo bur-
guês. É um agitador (e organizador) da classe operária com posições
ponderadas que se contrasta, por exemplo, com Santini, cujo perfil de
militância operária tem um viés esquerdista. Otávio é um homem mo-
ral no sentido da ação coletiva organizada deliberada democraticamen-
te. Chefe de família, é o principal provedor do lar constituída por tra-
balhadores (Romana, trabalhadora do lar; e os filhos Chiquinho e Tião:
um, office boy e outro, operário, como o pai, de fábrica metalúrgica).
Romana, mulher de Otávio, é a organizadora do lar operário.
Como “intelectual orgânica” do lar operário, é uma trabalhadora do-

359
Trabalho e Cinema • Volume 3

méstica incansável que contribui para a reprodução da força de traba-


lho de Otávio, Tião e Chiquinho – aliás, a função estrutural da traba-
lhadora doméstica que executa um trabalho não-pago é reduzir o valor
da mercadoria força de trabalho dos membros da família operária. Ma-
drugadora, é ela que prepara o café da manhã. Diz ela: “Trabalhando,
acordando antes para acordar eles”. Preocupa-se com Otávio, marido e
companheiro, provedor do lar. Ela exclama: “Não se meta em confusão
de novo Otávio”. Diante do conflito crucial entre pai e filho, Romana é a
mediação vital que busca equilibrar o lar operário. Num certo momen-
to, numa observação metafórica, Romana chega a dizer: “Preciso refor-
çar essa porta senão ela não agüenta”. Apóia Otávio ao expulsar o filho
“fura-greve” de casa. Mas não deixa de expressar seu amor e carinho
pelo filho pródigo: “Dá cá um abraço, meu filho”, diz ela.
Romana é mulher supersticiosa que joga cartas para saber o futuro
do movimento grevista que convulsiona sua família. Na medida em que
se aproxima do clímax grevista, ela se preocupa com o marido (como
salientamos, ela chega a exclamar: “Não se meta em confusão de novo,
Otávio”). Ela é mulher calejada pela intempéries da luta social cujo es-
pectro da repressão política ameaça seu núcleo familiar. Na verdade,
ela teme ver aquele núcleo humano-familiar dissolver-se pelas forças
estranhadas do mundo social do capital. Presa à domesticidade do lar,
comunidade humana primordial, Romana, mulher do povo, busca dar
um sentido – ou apreender o sentido - da contingencia do real históri-
co. Diferentemente da religião, a superstição é uma técnica mística de
racionalização do mundo social alienado. Ao jogar cartas, Romana põe
um telos “previsível” da ação histórica contingente. Fechada naquele
mundo da domesticidade proletária, as cartas criam um suposto hori-
zonte de previsibilidade instrumental. Se como Marx disse, a religião
é a “teoria geral deste mundo da alienação”, a superstição é sua técnica
geral, racionalidade mistificada, que visa dar para homens e mulheres
comuns, um horizonte de previsibilidade cotidiana.
A cena final do filme “Eles não usam black-tie” é uma cena me-
tafórica onde Romana , sentada à mesa, cata feijão. O marido Otávio a
ajuda. Jogam no lixo os grãos que não prestam. Talvez o filho Tião, o

360
O mundo do trabalho através do cinema

fura-greve, seja o grão que não presta. A luta de classes que perpassa a
reprodução social dilacera os laços humano-familiares. No movimento
da classe enquanto uns se perdem na ideologia do capital, tornando-se
grãos que não prestam, outros conseguem avançar na sua consciên-
cia social, contribuindo para o processo de desenvolvimento histórico.
Ocorre irremediavelmente uma seleção moral que exclui aqueles que –
como grãos de feijão imprestáveis – devem ser excluídos Ao expulsar o
filho Tião de casa, Otávio reafirma o valor do núcleo humano-familiar
a partir de valores da classe social do proletariado. O valor moral fun-
damental e fundante da classe do proletariado é a solidariedade. É um
valor moral sagrado que está na base ontológica da comunidade huma-
na. Ao tornar-se fura-greve, Tião renegou àquilo que sempre marcou o
militante Otávio. Por iss, como um grão de feijão que não presta, pre-
cisava ser jogado fora.
A jovem operária Maria, noiva de Tião, é a figura da nova mulher
que busca uma vida digna diante da miséria humana do mundo social
do capital. Ela vem de uma família pobre, cujo pai é operário da cons-
trução civil desempregado (que depois consegue um emprego) e a mãe
adoentada, sofre com a embriaguez recorrente do marido. Quando o
pai bebe, para desafogar a angústia do desemprego, oprime a família.
Maria Chega a exclamar para si: “Não agüento mais essa vida”. Ela divi-
de o quarto com o irmão mais novo (Bié). Maria vive o drama da jovem
operária oprimida pela miséria da família e cujo horizonte de vida está
além daquele berço originário. Como Tião, ela está insatisfeita com a
miséria operária. É a jovem geração operária que diante do mundo das
mercadorias sonha com uma vida melhor. Mas, ao invés de Tião, Maria
alimenta o valor da solidariedade de classe.
Maria é a mulher operária digna que luta não apenas pelos seus
direitos de mulher, mas pela dignidade da classe que almeja uma vida
melhor. Não possui um discurso feminista, mas sim, um discurso de
afirmação da classe social do proletariado onde a luta necessária é a
luta social contra toda forma de exploração (de classe) e opressão (in-
clusive, a opressão de gênero). O machismo de Tião está subsumido
ao seu filisteísmo de classe. Talvez, Maria perdoasse Tião se ele fosse

361
Trabalho e Cinema • Volume 3

tão-somente machista, mas ela não o perdoaria jamais se ele traísse a


classe, como o fez. Ora, o machismo como deformação humano-gené-
rica de homens na sociedade do capital, é superado por meio de um
longo processo de socialização emancipada; mas atitudes de traição de
classe tende a abortar qualquer movimento de “negação da negação”
do capital.
A jovem operária Maria sonha com uma vida decente. Exclama
para Tião: “Eu também quero limpo e gostoso. Eu também quero uma
vida decente.” Mas, Maria não se submete à ideologia do capital. Não
pensa só em si, como Tião; mas cultiva o valor moral da solidariedade.
Fica indignada com o noivo. Diz ela: “Eles estão fodendo a gente e tu
ajudando a foder”.
O operário Santini, como Bráulio e Otávio, é uma das lideranças
sindicais metalúrgicas no filme. É o tipo esquerdista de liderança sin-
dical que tende a desprezar as mediações sociais no processo de luta
de classes. Por um lado, ele é um homem moralmente indignado com
a exploração e opressão do capital. Por exemplo, exclama, diante das
demissões de operários: “Não pode, Otávio, não pode, não pode des-
pedir desse jeito, porra!”. Noutro momento, ele descreve, indignado,
a situação de carência operária: “O salário verdadeiro diminuindo. O
trabalhador está na miséria. Comida na mesa, que é bom, não tem. A
inflação comendo…”.
Por outro lado, traduz a indignação (e revolta) moral com a ação
imediata contra o capital. Grita: “Vamos parar a fábrica é agora!”. É a
expressão típica do esquerdismo sindical. Ora, o operário Bráulio sabe
que entre a miséria do capital e a resposta efetiva contra a exploração e
opressão existe um complexo de mediações (formação da consciência
e organização, etc). Ele contesta Santini: “Sossega, italiano! Não é bem
assim!”. Uma ação imediata de reação à provocação do capital, sem
preparação e organização, pode significar a derrota prévia da classe.
Bráulio observa: “Todo mundo pro trabalho. Eles estão querendo que
percamos a cabeça”.
No filme, a posição de Santini se caracteriza pelo culto da imedia-
ticidade da ação operária – isto é, o desprezo pelas mediações concretas

362
O mundo do trabalho através do cinema

na luta de classes. Na ação espontânea – quase espontaneíssima – ele


tende a desprezar elementos de organização e consciência de classe,
além de importantes particularidades concretas na ação da classe.
Por exemplo, num certo momento, Otávio exclama: “Está pensan-
do o quê, Santini, que estamos em São Bernardo? Não temos organiza-
ção prá isso ainda não!”. Eis uma das características cruciais do esquer-
dismo politico: desprezar o concreto em sua dimensão territorial (São
Paulo não é São Bernardo – o que significa que Santini, em sua fantasia
esquerdista, projetava na sua localidade, a ação operária de massa que
ocorria em São Bernardo, desprezando a natureza social local).
O esquerdismo de Santini, como todo esquerdismo politico, ten-
de a superestimar o poder de luta da classe. É o discurso da ofensiva
direta e da guerra de movimento. Mas o esquerdismo de Santini é um
esquerdismo meramente sindical – o discurso dele é contra a explo-
ração e opressão do capital no âmbito fabril (por exemplo, no filme,
Santini não fala em socialismo; o que significa que seu esquerdismo se
restringe à luta econômico-politica imediata). Ele exclama: “Diálogo
com o patrão, é isso aí, é máquina parada, produção parada. Aí que eles
entendem a linguagem da gente.” Noutro momento, Santini dissera a
mesma coisa: “Negociação é com máquina parada, o único argumento
que patrão entende”.
Otávio e Bráulio discordam veementemente de Santini. Otávio
diz: “Estamos contra a porra-louquice. Queremos a greve, mas quando
a categoria quiser.” E Santini pergunta: “Vai me dizer que a categoria
não quer.” Para Otávio, Santini e sua facção politica, “querem ensinar
a greve no golpe.” É curioso que a categoria metalúrgica decide em as-
sembléia pela greve (contra a posição de Otávio e Bráulio). Mesmo as-
sim, Bráulio e Otávio se envolvem de corpo e alma com o movimento
grevista respeitando a deliberação coletiva da categoria (a greve provo-
ca prejuízos pessoais significativos para os dois camaradas metalúrgi-
cos – Bráulio, perde a vida e Otávio, perde o filho).
Talvez, na narrativa de “Eles não usam black-tie”, de Léon Hirzman,
Otávio e Bráulio sejam a representação política das lideranças comunistas
durante a greve metalúrgica do ABC paulista nos anos 1978/1979/1980,

363
Trabalho e Cinema • Volume 3

que adotaram tons moderado no confronto com o capital; enquanto San-


tini possa representar as lideranças do “sindicalismo autêntico”, de viés
esquerdista, que mais tarde fundariam em 1979, o PT. e a CUT. No filme
(como na história), a posição de Santini (e do PT/CUT) se impuseram
nos rumos da luta metalúrgica em São Bernardo.
No filme “Eles não usam black-tie”, a greve dos metalúrgicos é
decidida em assembléia da categoria (a deliberação da assembléia não
aparece na narrativa fílmica). É por meio da fala de Otávio que sabe-
mos que essa greve foi “arrancada no golpe”. É uma crítica à atuação
de Santini e sua facção política que conseguiu convencer a maioria dos
operários presentes na assembléia a votar pela greve naquele momento.
Lidando com o instinto de classe, a posturas esquerdistas tende, algu-
mas vezes, a obter sucesso. Muitas vezes, elas apelam para a imediatici-
dade (e espontaneidade) da categoria assalariada imersa na miséria do
capital. Entre a deliberação da greve e a sua realização efetiva existem
as mediações organizativas. Otávio e Braulio vêem dificuldade em pa-
rar as fábricas. Santini exclama: “Vamos é se preparar pro pau. Organi-
zar piquete na porta das fábricas.”. Otávio observa: “Vocês precipitaram
tudo e vocês confundem tudo.”
Diante da movimentação grevista, com piquetes buscando impe-
dir o acesso às fábricas, a repressão policial à serviço dos capitalistas
é a decorrência efetiva da ordem burguesa. No filme “Eles não usam
Black-tie”, o momento da greve operária é o momento não apenas da
denúncia sindical que explicita a exploração capitalista, mas o momen-
to da repressão policial que busca restaurar a ordem burguesa. Esta-
mos diante de uma lei histórica: o movimento de constituição da classe
contém em si, irremediavelmente, elementos de contra-movimento (e
de repressão) instaurados pela ordem burguesa. Enfim, como observou
Marx no “18 Brumário”, toda revolução social contém como germe, a
contra-revolução.
Indignado, Otávio, agredido pelo policial militar, exclama, quase
em tom pedagógico: “Olha, gente, é assim que tratam o proletário brasi-
leiro”. As lideranças operárias clamam pela união – “todo mundo uni-
do. Ninguém vai trabalhar” Ou ainda: “Todo mundo pro estádio. Patrão

364
O mundo do trabalho através do cinema

só entende quando a gente pára”. Para confrontar a concentração do


capital, que reúne o trabalhador coletivo nas fábricas para explorar, as
lideranças operárias criaram a concentração do trabalho, que reúnem
os operários no estádio, re-significando o trabalhador coletivo como
sujeito histórico de sua própria emancipação social. Exclama Otávio:
”Vamos pro estádio, pra assembléia, companheiro.”
Embora tenha sido contra a greve operária naquele momento,
Otávio (e Bráulio), após a deliberação da assembléia dos metalúrgicos
pela greve, decide acatar a decisão da maioria. Otávio se envolve fa-
zendo agitação na porta da fábrica. Diz: “E nós, que produzimos essa
riqueza, nós vivemos na miséria, porra!”. Ou ainda: “É de nossas mãos
que sai a riqueza desses poucos que estão ai”. Na verdade, Otávio usa a
greve operária como um instrumento pedagógico. Ele procura agitar,
ensinando alguns princípios da luta operária. Noutro momento, excla-
ma: “Olha, companheiro. A greve é a nossa arma de luta”. Ou ainda:
“Companheiros, a greve é o direito sagrado do trabalhador.”
O filme “Eles não usam black-tie”, é um filme que organiza a sua
narrativa em torno do conflito candente entre ação individual e ação
coletiva da categoria assalariada. No decorrer do filme, em cada mo-
mento, existe uma tensão contraditória entre movimento individual no
sentido de ação particularista e egoística (como Jesuino e Tião) e movi-
mento coletivo no sentido da ação da categoria assalariada em prol de
interesses da classe (como Otávio, Bráulio e Maria).
Eis o princípio da formação da consciência de classe – ir além da
ação particularista da individualidade pessoal de classe. Ela implica
ir além da espontaneidade da pseudo-concreticidade da vida cotidia-
na. Durante o movimento grevista, o fura-greve Tião sai da fábrica e é
abordado por um grupo de operários piqueteiros que tentam espanca-
lo, vingando-se da atitude egoística do companheiro de fábrica. Bráulio
intervém para evitar o espancamento de Tião pelos operários grevistas
revoltados. Como Otávio, Bráulio exerce uma intervenção pedagógica
durante a greve. Aliás, com Otávio e Bráulio aprendemos a dialética da
greve. Diz ele: “Ele não é nosso inimigo! Nosso inimigo é quem explora
a gente!” E ainda: “O nosso inimigo é a repressão que arrebenta coma

365
Trabalho e Cinema • Volume 3

gente”. E arremata: “Vão bater em todo mundo que furar a greve? E vão
descontar nesse bunda-mole que não enxerga a não ser ele mesmo? “.
O movimento da greve operária ocorre num crescendo de en-
frentamento entre operários grevistas e o aparato policial a serviço dos
capitalistas. Por um lado, os piquetes operários tentam impedir que
companheiros e companheiros entrem na fábrica para trabalhar. Por
outro lado, a repressão policial tenta dispersar a concentração operária
na frente das fábricas.
A formação da consciência de classe implica intrinsecamente luta
de classe onde se explicitam os interesses estruturais antagônicos en-
tre capital e trabalho. A greve é o momento privilegiado de formação
da consciência de classe do proletariado, impulsionando o movimento
para a constituição do “em-si” da classe. O “em-si” da classe é o pri-
meiro modo de aparição da classe social do proletariado na história.
É a classe social que age de modo coletivo e se distingue diante das
personas do capital. Torna-se muito claro o “nós” e “eles”.
Os patrões aumentaram o policiamento para impedir piquetes.
Santini exclama: “A turma da noite não entra”. A multidão da classe ex-
clama: “Trabalhador unido jamais será vencido” ou ainda “A greve con-
tinua”. Sempre voluntarista, Santini grita: “Não tem essa de ter medo de
repressão, não!”.
Nesta cena do filme vemos com clareza as diferenças políticas de
encaminhamento da ação grevista numa situação tensa – por exemplo,
enquanto o italiano Santini exacerba o confronto, visando garantir o
piquete, o negro Bráulio procura evitar o enfrentamento com o aparato
policial, inclusive recuando caso seja necessário. Bráulio exclama: “Não
precisa violência! Vamos dispersar!”. Ou ainda: “Calma, gente!”. Ora,
Bráulio é o homem da mediação política do processo de luta de classe,
evitando aceitar provocações que possam significar a derrota da luta
sindical da categoria assalariada
O aparato repressivo do capital sempre se utiliza de provocações
para provar o movimento coletivo da classe. Não existe movimento
coletivo da classe que não seja provocado pelo statu quo. Nesse caso,
prova-se a inteligência politica do movimento social que deve, por um

366
O mundo do trabalho através do cinema

lado, contornar as provocações politicas e por outro, avançar em sua


organização e luta.
O processo de luta de classe no plano do “em-si” e do “para-si” da
classe é sempre um processo concreto, com um complexo de mediações
sob múltiplas determinações. Na cena-climax da greve operária, quan-
do o aparato policial tenta evitar o piquete que impede a entrada do
turno da noite na fábrica, o confronto entre polícia e piquetes operários
parece ser inevitável. Percebe-se a infiltração no aparato repressivo de
policiais à paisana, policiais civis ligados aos organismos de repressão
politica do regime militar. Enquanto Santini, acirra a concentração
operária visando a garantia do piquete operário., Bráulio busca disper-
sar a multidão de operários grevistas visando evitar o confronto direto
com o aparato policial. Exclama: “Nada de confronto, companheiros!”.
Mas, logo Bráulio é atingido por um tiro e morre. Um policial civil,
eivado de preconceito racial, ordena a execução da liderança operária
negra: “O crioulo, o crioulo”.
Por ironia da história, Bráulio, o que evitava o confronto, é sacrifi-
cado, tornando-se símbolo da luta operária. A imagem da cena-climax
do filme, que retrata o momento exato do tiro que executa Bráulio, tem
ao fundo, um muro pichado com a frase emblemática do próprio mo-
vimento grevista: “Chega de Arrocho”. A partir de 1978, a luta operária
dos metalúrgicos paulistas concentrados na região mais industrializa-
da do País (o ABC paulista), teve como motivação contingente, a luta
contra a superexploração da força do trabalho.
A composição das imagens do filme é imbuída da dialética do
movimento da classe que se constitui enquanto “em-si”. O filme “Eles
não usam Black-tie” é composto por pares dialéticos no interior do
próprio movimento da categoria assalariada que constitui o “em-si” da
classe. Como temos salientado, o filme expressa, é claro, a contradição
estrutural antagônica entre Capital e Trabalho, que impulsiona inclusi-
ve o movimento de insatisfação operária e greve de massa. Mas o que
deve-se perceber são os múltiplos conflitos intraclasse que explodem no
interior do próprio movimento da classe: não apenas movimento sindi-
cal, com as divergências politicas entre Santini e Bráulio, por exemplo;

367
Trabalho e Cinema • Volume 3

mas movimento sócio-reprodutivo, com os conflitos intergeracionais,


como o conflito candente entre o jovem operário Tião e seu pai Otávio;
ou entre Tião e sua noiva operária Maria.
Como metabolismo social, o capital explicita em si e para si, di-
laceramentos no interior da classe que se constitui em movimento. É
curiosa a fotografia do filme abaixo. Apesar das divergências politicas
candentes, o trabalhador enquanto categoria assalariada da classe que
se constitui “em si”, está unido!
O pai de Maria vive o drama do operário desempregado. Ele é um
operário da construção civil que afoga suas mágoas do desemprego na
bebida. O desemprego dilacera sua individualidade pessoal, na medida
em que anula sua função de provedor familiar. Antes de ser um proble-
ma econômico, o desemprego é um problema moral que desconstitui a
capacidade de reação pessoal do homem que trabalha.
Ao conseguir um emprego numa obra de construção civil, ele re-
cupera o ânimo de vida. Diz ele: “Estou aproveitando não estar bêbado
pra poder pensar”. E depois: “Quem sabe a gente melhora. A bebida
atrapalhava um pouco.” A bebida é uma forma extrema de desefetiva-
ção pessoal das individualidades de classe. Bêbedo, o proletário não
pensa, apenas age instintivamente (como animais). Com o emprego, o
pai de Maria consegue mais sossego para se recompor como individu-
alidade pessoal de classe.
Na cena de abertura do filme “Eles não usam black-tie”, o casal
Tião e Maria saem de uma sessão de cinema. Os cartazes de entrada
do cinema anunciam o filme “Jornada nas Estrelas – O Filme” (1979)
(Star Trek - The Movie), cujo diretor é Robert Wise. No filme, os tripu-
lantes da nave Enterprise buscam solucionar um mistério envolvendo
um campo gravitacional que avança na direção da Terra e destrói tudo
em seu caminho. Mas, de fato, Tião e Maria acabaram de ver outro fil-
me: “O Campeão” (1979), cuja direção é de Franco Zefirelli. No filme,
Billy Flynn (Jon Voight) é um ex-campeão do boxe, mas que agora está
na pior, afundado nas bebidas e nos jogos. Porém, seu filho T.J. (Rick
Schroder) acredita no potencial de seu pai, sabe de sua condição, mas
nunca deixa de afirmar que ele é seu eterno campeão (é refilmagem de

368
O mundo do trabalho através do cinema

um filme homônimo de 1931). Ambos os filmes são narrativas carrega-


das de valores morais implicados com a conquista de sonhos pessoais.
A indústria cultural tende a desprezar em sua s narrativas filmicas a
capacidade moral da classe em conquistar coletivamente seus anseios
pessoais, investindo mais na saga de heróis individuais (ou saga de
equipes, como em “Star Trek”) rumo ao sucesso. É ironia que “Eles não
usam black-tie” rompe com a lógica da saga individual, embora, no fil-
me, por exemplo, o operário Tião, esteja imbuido desta ideologia do
capital.
As imagens fílmicas em “Eles não usam Black-tie” são carre-
gadas de significados candentes. Por exemplo, ainda na abertura
do filme, por alguns segundos, Tião e Maria conversam no ôni-
bus, e, ao fundo, brilha um letreiro em neón das Lojas G. Aron-
son, empresa de venda popular de bens de consumo duráveis
para a classe operária. De capital nacional, a empresa G. Aronson
marcou o sonho de consumo de inúmeras famílias operárias no
auge do desenvolvimento industrial do “milagre brasileiro”.

G. Aronson foi uma rede de varejo com sede em São Paulo es-
pecializada na venda de eletrodomésticos. Controlada por Girzs
Aronson, teve sua falência decretada em 1998. Seu Fundador, nas-
ceu em 18 de janeiro 1917, o russo de origem judaica construiu um
império de lojas que chegou a contar com 38 unidades no Estado, e
um faturamento de R$ 350 milhões por ano. Ele chegou ao Brasil
com 2 anos e começou no comércio aos 12, vendendo bilhetes de
loteria em Curitiba (PR), onde morava com a mãe -viúva- e os
irmãos. A fama veio quando Aronson vendeu um bilhete premiado
e recebeu do apostador parte do dinheiro. Em 1944, uma empresa
de casacos de pele do Rio o convidou para ser representante de
vendas em São Paulo. Foi naquele ano que ele abriu a empresa G.
Aronson. Chegou a vender 170 casacos em um mês, comprou um
Dodge, carro cobiçado da época, e expandiu os negócios. Nos anos
1960, criou a Gurilândia, especializada em artigos infantis. A rede
G. Aronson começou a se expandir nos anos 70, após comprar uma
loja de fogões em dificuldade financeira. Em junho de 1999, a G.

369
Trabalho e Cinema • Volume 3

Aronson faliu, com dívidas de R$ 65 milhões. Na época, o comer-


ciante culpou a explosão da inadimplência e a redução do poder de
consumo da população. No dia 17 de setembro de 1998, o dono da
G. Aronson foi vítima de um seqüestro dentro de sua empresa. Pas-
sou 14 dias no cativeiro e só foi solto, à noite, na rodovia Castello
Branco, sob chuva, após o pagamento de um resgate de R$ 120 mil.
No cativeiro, chegou a quebrar o nariz e sofrer hematomas. O caso
teve repercussão nacional. Girsz Aronson descobriu que sofria de
um câncer em novembro de 2007. Morreu em 19 de junho de 2008,
os 91 anos.

Jurandir, pai de Maria, operário da construção desempregado,


embriagado pela cachaça, senta-se à noite diante da TV, em alto som,
e curte angustiado sua deriva pessoal. Já é madrugada, e ele, bêbado,
prosta-se diante dos programas de TV. Para a classe operária, núcleo
proletário primordial, a TV é seu ópio mental. Prostado diante dos pro-
gramas de TV, Jurandir se entretém. A mulher clama: “Vem pra cama,
Jurandir. Desliga essa televisão”. Talvez a TV seja a “cachaça da mente”
para Jurandir.
Por alguns segundos, o filme “Eles não usam black-tie” retrata
cenas da linha de produção no interior da fábrica. O chão-de-fábrica é
campo minado do capital. É uma “caixa-preta” que oculta a exploração
da força de trabalho. Imagens da linha de produção das empresas são
proibidas a título de sigilo industrial. Na verdade, oculta-se a miséria
humana da produção de mercadoria, com seu trabalho monótono e
repetitivo, desprovido de significado para o homem que trabalha. As
fábricas do filme são fábricas de médio porte; não são grandes indús-
trias metalúrgicas como as montadoras da indústria automobilística no
ABC paulista. Percebe-se numa das imagens que Tião trabalha próximo
de Jesuino. Noutra, Otávio está atento no torno mecânico. Maria exerce
um trabalho de menor qualificação profissional na esteira mecânica.
Ao fundo, próximo a ela, está sua amiga Cilene, mulher de Bráulio. As
amizades do filme se fazem no chão-de-fábrica.
O bar do Alípio é um dos espaços privilegiados de sociabilidade
do filme. Várias cenas importantes do filme se passam no bar do Alí-

370
O mundo do trabalho através do cinema

pio. O pequeno comerciante é parte da comunidade operária. Nela os


proletários, empregados e desempregados, bebem, jogam e conversam.
Talvez, o tempo de vida de alguns operários seja ocupado no espaço
de sociabilidade do bar do Alípio (mais do que no lar, igreja ou ou-
tros locais de lazer). No final do filme, é Alipio que carrega o caixão de
Bráulio, ao lado de Otávio (o que demonstra a importância social deste
pequeno comerciante local para a comunidade operária).
A cena final do filme “Eles não usam Black-tie” é o enterro de
Bráulio que se confunde com a passeata dos operários em greve pelas
ruas centrais da cidade, sob o aplauso com papel picado da população
local. Exclama-se: “A greve continua! A greve continua! A greve con-
tinua”. Bráulio tornou-se um símbolo de luta operária (no velório de
Bráulio, Otávio chegara a dizer para o filho Chiquinho: “O teu filho vai
estudar o Bráulio na História do Brasil”. Nesta cena, ao lado da mulher
de Bráulio, Santini, rival politico de Bráulio, está consternado). Na pas-
seata, coroas de flores se confundem com faixas de protesto e agitação.
Na história imediata do Brasil, o assassinato de Bráulio reproduz, no
plano ficcional, o assassinato do operário Manuel Fiel Filho, morto pe-
los orgãos de repressão da ditadura militar em 1976.

Manuel Fiel Filho (Quebrangulo, 7 de janeiro de 1927 — São


Paulo, 17 de janeiro de 1976) foi um operário metalúrgico brasi-
leiro morto por tortura durante a ditadura militar. Foi preso em 16
de janeiro de 1976 ao meio-dia fábrica onde trabalhava, a Metal
Arte, por dois agentes do DOI-CODI/SP, que se diziam funcionários
da Prefeitura, sob a acusação de pertencer ao Partido Comunista
Brasileiro. No dia seguinte os órgãos de segurança emitiram nota
oficial afirmando que Manuel havia se enforcado em sua cela com
as próprias meias, naquele mesmo dia 17, por volta das 13 horas.
O corpo apresentava sinais evidentes de torturas, em especial he-
matomas generalizados, principalmente na região da testa, pulsos
e pescoço. As circunstâncias da sua morte são idênticas as de Ale-
xandre Vannucchi Leme e Vladimir Herzog. As evidentes torturas
feitas a ele dentro do II Exército de São Paulo provocaram o afas-
tamento do general Ednardo d’Ávila Melo, ocorrido três dias após

371
Trabalho e Cinema • Volume 3

a divulgação da sua morte. Em ação judicial movida pela família,


a União foi responsabilizada pela tortura e assassinato. O exame
necroscópico, solicitado pelo delegado de polícia Orlando D. Jerô-
nimo e assinado pelos médicos legistas José Antônio de Melo e José
Henrique da Fonseca, confirma a versão oficial. Segundo relato de
sua esposa, no dia seguinte de sua prisão, um sábado, às 22 horas,
um desconhecido, dirigindo um Dodge Dart, parou em frente à sua
casa e, diante de sua mulher, suas duas filhas e alguns parentes,
disse secamente: “O Manuel suicidou-se. Aqui estão suas roupas.”
Em seguida, jogou na calçada um saco de lixo azul com as rou-
pas do operário morto. Sua mulher então teria começado a gritar:
Vocês o mataram! Vocês o mataram!. Em documento confidencial
encontrado nos arquivos do antigo DOPS/SP seu crime seria re-
ceber o jornal Voz Operária. A entrega de corpo a família só foi
realizada com a condição de que os parentes o sepultassem o mais
rapidamente possível e que não se falasse nada sobre sua morte. No
domingo, dia 18, às 8 horas da manhã, ele foi sepultado por seus
familiares no Cemitério da IV Parada, em São Paulo.

O diálogo final entre Tião e Otávio – ao invés da conversa matinal


no dia seguinte após a discussão na mesa de jantar – é um diálogo de
ruptura. Tião escolheu – por convicção - o outro lado. Aquele não é
mais o território de Tião, o fura-greve. Não pertence mais àquela casa.
Otá vio está indignado, pois Tião transgrediu um valor moral funda-
mental: a solidariedade de classe. A alcunha de “fura-greve” diz respei-
to a uma escolha prática efetiva. Otávio conseguiu perceber um detalhe
crucial – Tião furou a greve por convicção. Diz ele: “Você furou a greve
fazendo comício”. Eis a diferença essencial entre Tião e Jesuino, como
salientamos acima. Diz Otávio: “Você não é um traidor por covardia; é
um traidor por convicção.” No final, Otávio diz assumir a culpa pelas
atitudes de Tião. Assim, o pai sofreria menos na medida em que pode-
ria considerar que o filho “não é um safado de nascença”. Tião insiste
com o pai (e com a mãe): “Não foi por covardia, não me arrependo”.
O último diálogo do filme é entre Tião e sua mãe. Trata-se de uma
despedida. Se o diálogo entre Tião e Otávio teve um caráter conclusivo,
com a declaração justificada da expulsão do filho, Romana apenas aca-

372
O mundo do trabalho através do cinema

ta a decisão do marido, concordando com seu teor moral, embora ex-


clame: “Vocês estão todos com a cabeça virada, meu filho”. Com a mãe,
Tião insiste que não furou a greve por covardia e que não se arrepende.
Romana sabe que ele não é covarde, mas sim um teimoso. Mas além de
teimoso, Tião tem orgulho pessoal: “Eu tenho minha profissão. Arranjo
minha vida e venho buscar”. A mãe pergunta: “Você acha que valeu a
pena, Tião?”. Ele diz: “O que tá feito, tá feito”. Finalmente, Romana ob-
serva: “Você vai ver que é melhor passar fome entre os amigos do que
passar fome entre os estranhos.” E o orgulho pessoal de Tião fala mais
alto – ele exclama: “Sabe, mãe! Ainda ganho essa parada!”.

373
Trabalho e Cinema • Volume 3

374
O mundo do trabalho através do cinema

Capítulo 8

“Pão e Rosas”
Ken Loach
(2000)

O drama social “Pão e Rosas”, de Ken Loach (2000), apresenta im-


portantes elementos temáticos que tratam da situação do trabalho
sob o capitalismo global. Primeiro, ele aborda a questão das migrações
laborais – no caso, a migração ilegal de proletários desempregados do
México (e da América Central) para os EUA; depois, trata da precarie-
dade salarial extrema no setor de serviços de baixa qualificação (no
caso, empregados faxineiros de prédios de escritórios em Los Angeles);
e finalmente, o filme expõe a luta pelo reconhecimento da organização
sindical dos setores pobres do mundo do trabalho.
O filme “Pão e Rosas” baseia-se em fato verídico ocorrido no im-
portante centro comercial de Los Angeles (Century City’s Office) em
maio de 1990, quando cerca de 500 a 700 trabalhadores faxineiros dos
prédios comerciais da região, parte deles de imigrantes ilegais, decidiu
entrar em greve reivindicando melhores salários. A paralisação dos ze-
ladores que durou de 29 de maio a 26 de junho de 1990, atingiu prédios
de escritórios de importantes corporações internacioais no centro de
Los Angeles. A paralisação atingiu os trabalhadores faxineiros da ISS
(International Service System Inc), uma das maiores empresas de sub-
contratação de zeladores para serviços em prédios comerciais nos EUA
(a ISS possui capital dinamarquês).
É importante salientar que no decorrer da década de 1980 a cate-
goria dos trabalhadores faxineiros de Los Angeles, subcontratada pela
ISS, sofreu um drástico processo de precarização. No começo desta dé-
cada, muitos faxineiros sindicalizados trabalhavam sob um contrato

375
Trabalho e Cinema • Volume 3

salarial que lhes garantia plano de saúde e um salário-hora de US$ 7.00.


Entretanto, a onda de imigrantes da América Central contribuiu para
rebaixamento do padrão salarial dos faxineiros. A ISS, empreiteira que
explora o proletariado de serviços de limpeza em prédios corporativos
em Los Angeles e em grandes cidades nos EUA, aproveitou para des-
truir o poder do trabalho organizado, explorando a natureza vulnerável
dos imigrantes latinos na década de 1980. Nessa época, muitos prédios
substituíram a força de trabalho de faxineiros sindicalizados que ga-
nhavam mais, por faxineiros não-sindicalizados de origem latina que
passaram a ganhar bem menos.
Foi sob o contexto histórico da precarização do trabalho dos pro-
letários dos serviços de limpeza nos grandes prédios corporativos da
década de 1980 nos EUA que surgiu em 1985, a campanha “Justice for
Janitors”, levada a cabo pelos sindicatos de trabalhadores de serviços, que
visava denunciar a exploração dos trabalhadores faxineiros em prédios
de luxo do centro empresarial de Los Angeles. Além disso, reivindicavam,
nesta campanha por justiça salarial, o reconhecimento do direito à sindi-
calização destes empregados precários. A “Justiça para Zeladores” inclui
mais de 225.000 zeladores em pelo menos 29 cidades dos Estados Unidos
(com destaque para Houston e Miami) que lutam pelo direito de repre-
sentação sindical, melhores salários e plano de saúde (na Grã-Bretanha
denomina-se “Justice for Cleaners”). O movimento utiliza uma extensa
rede de associações, bem como líderes de destaque na comunidade para
realizar seus objetivos. A campanha “Justice for Janitors” tornou-se uma
estratégia sindical vitoriosa para organizar a luta dos empregados zela-
dores por justiça salarial. O SEIU, sindicato internacional que coordenou
a campanha, mantêm parcerias com empresas que empregam faxineiros
sindicalizados para que essas empresas não recebam nenhum impacto
negativo devido às campanhas.
A campanha “Justice for Janitors” é dirigida pelo sindicato in-
ternacional Service Employees International Union (SEIU), que tem
quase dois milhões de membros em mais de 100 ocupações nos Esta-
dos Unidos, Canadá e Porto Rico. O sindicato organiza empregados da
saúde (cerca de 50% de adesão), incluindo hospital, “home care” e lar

376
O mundo do trabalho através do cinema

de idosos, além dos serviços públicos (funcionários do governo), bens


e serviços (incluindo zeladores e agentes de segurança). O SEIU não
apenas organiza os membros sindicalizados, mas os treina em habili-
dades profissionais.
A campanha “Justice for Janitors” conseguiu ampliar para 65%
o percentual de faxineiros sindicalizados em Los Angeles, mas o Cen-
tury City, local dos grandes prédios corporativos, permaneceu como
um bastião de empregados não-sindicalizados sob a subcontratação da
ISS. Ao comentar a vitoriosa greve de 1990 dos faxineiros do Century
City, David Sickler, um diretor regional da central sindical norte-ame-
ricana AFL-CIO, observou: “O que aconteceu expressa o abismo entre
as pessoas que limpam estes arranha-céus luxuosos e as pessoas que
os habitam”. E arremata: “O abismo assemelha-se àquele dos paises do
Terceiro mundo.”
A greve dos zeladores em Los Angeles, em Century City, retratada
no filme “Pão e Rosas”, teve momentos de repressão policial que levou
a 40 detenções e 16 feridos. As imagens da TV que mostraram policiais
agredindo faxineiros tiveram repercussão nacional, causando indigan-
ção entre lideranças trabalhistas nos EUA (importantes membros do
Partido Democrata, como o senador Jesse Jackson e o senador Robert
Kennedy expressaram apoio público à paralisação dos faxineiros). O
acordo coletivo realizado foi considerado uma expressiva vitória dos
trabalhadores zeladores sindicalizados que tiveram um aumento sala-
rial imediato de 10 a 15% (o salário era de U$ 4,50 por hora). Além
disso, conquistaram o seguro de saúde, férias e subsídio de doença. A
greve vitoriosa significou o reconhecimento do sindicato da categoria
que passou a ter a representação de toda a categoria de faxineiros sindi-
calizados de Los Angeles. Ela demonstrou a importância da organiza-
ção sindical para as camadas proletárias que vivem situação de preca-
riedade extrema. A greve dos trabalhadores faxineiros de Los Angeles
teve um caráter econômico, embora tenha tido uma importante reper-
cussão política na medida em que serviu de exemplo para categorias de
assalariados precários por todo os EUA.

377
Trabalho e Cinema • Volume 3

Migração de trabalho vivo, precariedade extrema e sindicalização


da força de trabalho – eis temas conexos sugeridos pelo filme “Pão e
Rosas”, de Ken Loach, que expõem hoje uma realidade candente do
mundo do trabalho sob o capitalismo global.
Pode-se dizer que hoje, mais do que nunca, o capitalismo global
é o capitalismo das migrações de imensos contingentes da população
proletária de regiões pobres para áreas de acumulação de capital (no
caso do filme de Loach, migrações ilegais do México e América Central
para os Estados Unidos). Várias regiões do globo são marcadas por cor-
rentes migratórias que buscam trabalho em áreas de acumulação capi-
talista. Essas migrações ocorrem entre países e continentes (da África
para a Europa ou da América Central para América do Norte) ou no
interior de cada país de dimensão continental (como é o caso da China
ou do Brasil, por exemplo).
É claro que a migração do trabalho vivo e da força de trabalho
como mercadoria é obstaculizada por impedimentos legais que impe-
dem sua livre-circulação. Diferentemente das outras mercadorias, a
força de trabalho que imigra está sob constante vigilância do Estado
político do capital.
Na verdade, um dos traços existenciais da condição de prole-
tariedade é a migrabilidade, isto é, a necessidade de deslocar-se com
freqüência para buscar melhores condições de trabalho e vida em ou-
tras regiões. A migrabilidade é intrínseca à própria condição dos pro-
letários como “trabalhadores livres” (em contraste, por exemplo, com
o trabalhador escravo, incapaz de migrar). Na medida em que o ser
proletário é um ser desenraizado, ou desterritorializado, tendo em vista
que perdeu os meios de produção de sua própria vida, adquire uma
capacidade inédita de circular pelos espaços do capital.
Talvez um dos traços existenciais mais candentes de homens e
mulheres proletários seja a migrabilidade com todas as implicações só-
cio-culturais que a envolvem no tocante a identidade de classe. O pro-
letário migrante é o estrangeiro alienado num sentido particular que
busca inserir-se noutras territorialidades espaciais do capital. Desde a

378
O mundo do trabalho através do cinema

sua origem histórica, o capitalismo é marcado por ondas migratórias de


proletários desenraizados que alimentam a produção de mercadorias.
Primeiro, temos a migração originária de camponeses expulsos
de suas terras e que, obrigados a sobreviver, trabalham nas manufa-
turas e fábricas da industrialização nascente. É a migração originária
que – como a dita “acumulação primitiva” - está na gênese histórica do
capitalismo.
Todo ser proletário é um ser originariamente desenraizado. Este
é um processo social (e cultural) que adquiriu dimensões universais –
a migração campo-cidade caracteriza todo processo de modernização
histórica. Envolve primordialmente populações proletarizadas dos ter-
ritórios capitalistas emergentes, no caso, no interior de cada objetivação
capitalista nacional nascente. O capitalismo em expansão exige, como
o deus Moloch, “trabalhadores livres”. Por exemplo, ondas migratórias
formam em vários períodos históricos, o mundo de proletários indus-
triais do Brasil. Ao deslocar-se teritorialmente, homens e mulheres
proletários carregam consigo memórias, sonhos e expectativas.
Segundo, temos a migração sistêmica de homens e mulheres pro-
letários assalariados, com hábitos urbanos, que saem de cidades de
regiões pobres para metrópoles de regiões de expansão capitalista, e
que se inserem não necessariamente na indústria, mas em setores do
terciário emergente (serviços). É mais uma forma de ser das migrações
internacionais que caracterizam o capitalismo global. É, por exemplo, a
migração de proletários latinos que chegam ilegalmente nos EUA atra-
vés da fronteira do México. Nesse caso, os trabalhadores migrantes são
proletários urbanos em suas terras de origem que buscam novas opor-
tunidades de emprego em terra estrangeiras. Na terceira modernidade
do capital, as ondas migratórias são constituídas por proletários de se-
gunda ou terceira geração, homens e mulheres proletários urbanizados
inseridos no sistema mundial do capital.
Outro traço do capitalismo global que o filme de Loach explicita
é presença do setor terciário precário que nas metrópoles capitalistas
absorve ondas migratórias. Na última metade do século XX, expandiu-
se nas economias capitalistas mais desenvolvidas o setor de serviços

379
Trabalho e Cinema • Volume 3

ou setor terciário que tende a absorver hoje mais proletários do que a


indústria ou agricultura. O terciário precário é um setor da economia
do trabalho intensivo que tende a empregar proletários assalariados de
baixa qualificação e pouca produtividade.
Antes a indústria absorvia a maior parte das ondas migratórias,
embora ainda não deixe de absorvê-las, mas em proporção menor e
dividindo com o setor terciário. O terciário de serviços prestados para
as atividades (e empreendimentos) industriais e financeiros tendeu a
crescer bastante nas últimas décadas. Primeiro, por conta da terceiriza-
ção da indústria e segundo, em virtude da própria complexificação das
atividades de produção de mercadorias que exige cada vez mais, ins-
tancias de apoio e preparação. Assim, muitas atividades estão ligadas
direto ou indiretamente à produção de mercadoria, sem que apareçam
como elementos da atividade secundária ou industrial.
Por exemplo, a atividade de limpeza e faxina cresceu com a am-
pliação de condomínios de escritórios ligados aos negócios industriais
e financeiros. São atividades imprescindíveis, embora não ligadas dire-
tamente ao core do negocio capitalista. O serviço de limpeza do espa-
ço de produção de mercadorias imateriais é atividade essencial tendo
em vista que sem elas, o desempenho das atividades produtivas fica
prejudicado. Embora não agreguem valor, torna-se essencial à própria
atividade de produção do capital.
Estas ocupações terciárias de cariz precário – pela baixa produ-
tividade e salários menores, além de maior controle e o pior, repressão
aos direitos de organização sindical – absorvem maior quantidade de
mulheres, além de imigrantes ilegais que se sujeitam às condições pre-
cárias de trabalho. A condição de trabalhadores pobres imigrantes ile-
gais é um traço de sua precariedade salarial à mercê de intermediários
subcontratantes.
Portanto, a relação salarial dos proletários da faxina é marcada
pela inserção precária tendo em vista que eles são contratados por em-
presas para prestar serviço aos condomínios de escritórios – no caso
do filme de Loach.

380
O mundo do trabalho através do cinema

Depois do problema da imigração proletária, ilegal ou clandesti-


na, e da ocupação em serviços subcontratados no terciário precário, o
filme trata do problema da organização sindical destes trabalhadores
assalariados, além da formação de sua consciência de classe. O pro-
blema da organização sindical é um tema candente no filme, tendo em
vista que ele o trata como eixo narrativo – a passagem de uma mera
condição de proletariedade para o processo de formação da classe em
si, no tocante a organização sindical e reivindicaçãoi de direitos e justi-
ça social (cosnciencia de classe contingente). Na verdade, o filme expõe
o desenvolvimento desta organização até o movimento grevista.
Eis, portanto, os eixos temáticos candentes do filme: imigração,
terciário precário e organização sindical num contexto nacional especí-
fico: os EUA na década de 1990.

imigração terciário precário organização sindical

Esse conjunto temático nos coloca a necessidade de refletirmos


sobre a nova precariedade salarial que emerge sob o capitalismo global.
Ela se caracteriza pela intensa migrabilidade, exigindo desterritoriali-
zação constante tendo em vista a instabilidade da relação empregatícia
e o cerco ampliado da sociabilidade mercantil.
Enfim, nunca tantos migraram em tão pouco tempo em busca
de realização profissional ou inserção salarial. Além disso, as facilida-
des dos meios de transporte, informação e comunicação contribuem
para intensificar os fluxos migratórios em busca de trabalho. Por outro
lado, o aumento das restrições legais (e políticas) à migração da força
de trabalho, por conta do esgotamento do desenvolvimento capitalista
na União Européia, EUA e Japão, abre um campo de conflitos sociais de
largo espectro histórico.
Na época de expansão capitalista no núcleo orgânico do capital,
os imigrantes eram bem-vindos como meio de barateamento da força
de trabalho em áreas industriais ou do terciário precário (como, por
exemplo, os faxineiros latinos nas Los Angeles de meados da década

381
Trabalho e Cinema • Volume 3

de 1980). Entretanto, com a crise da economia capitalista, os imigran-


tes laborais tornaram-se personas non grata do cenário social. A crise
instila um espírito de xenofobia e preconceitos contra trabalhadores
estrangeiros, sentimento reacionário incentivado (e aproveitado) pelas
forças políticas de direita. Entretanto, a ânsia de migrabilidade, como
um traço da condição de proletariedade, como salientamos acima, em-
bora possa ser contida, em termos relativos, não pode ser suprimida
pelo capital.
Além disso, a expansão do setor terciário precário nas últimas
décadas de globalização, tendeu a absorver ondas migratórias de tra-
balhadores imigrantes clandestinos executando serviços precários. De
certo modo, a absorção de força de trabalho barata para execução de
serviços subcontratados pelos grandes conglomerados de negócios
capitalistas é um componente essencial – nas condições da crise de
valorização do capital – para a acumulação de valor (o que explica a
ampliação de estratégias de subcontratação precárias pelas grandes
empresas nos últimos trinta anos).
A nova divisão internacional do trabalho a partir da década de
1970, significou a desindustrialização de amplas áreas dos países capi-
talistas desenvolvidos. Portanto, a globalização significou uma reestru-
turação industrial no sentido territorial. Muitas plantas industriais se
deslocaram para o Sudeste Ásiatico ou, no caso dos EUA, para a fron-
teira do México.
Por outro lado, expandiu-se nos países capitalistas desenvolvidos,
o setor terciário, cujos serviços se vinculam à nova morfologia indus-
trial (é o caso, por exemplo, dos novos prédios de condomínio na área
central de L.A. vinculados a grandes corporações capitalistas nas áreas
de serviços afluentes na década de 1980). Os proletários da limpeza, re-
crutados por grandes empresas da subcontratação, se inserem no novo
complexo do trabalho industrial do capitalismo global, onde indústrias
e serviços estão intimamente articulados, mesmo que territorialmente
distantes. Aliás, a sociedade em rede facilita e contribui com a nova
morfologia industrial das corporações de negócios multiteritorializada
e multisetorial).

382
O mundo do trabalho através do cinema

Capital global
(capital em geral)

Industria – Serviços – Agricultura


(Integração)

multiterritorios
(Globalização)

complexos vivos de trabalho


(mundo do trabalho abstrato)

Portanto, com a globalização, ao invés de uma sociedade pós-in-


dustrial, emerge uma sociedade da nova industrialização, onde indús-
trias, serviços e agricultura se complementam e se integram – a agri-
cultura torna-se agroindústria e cada vez mais, a expansão do capital
industrial incorpora áreas de serviços propriamente dita.
É nas bordas ampliadas do novo complexo vivo do trabalho in-
dustrial que se localizam os proletários do terciário precário, traba-
lhadores assalariados subcontratados por grandes intermediadores de
força de trabalho global, que otimizam os custos de compra da força de
trabalho, ampliando a margem de acumulação das corporações capi-
talistas globais.
Por exemplo, os proletários assalariados do serviço de limpeza de
condomínios comerciais vinculados aos grandes negócios capitalistas
aparecem como apêndices do core diretamente produtivo do sistema de
produção do capital.

383
Trabalho e Cinema • Volume 3

Por um lado, na medida em que se enxuga dos locais de trabalho,


proletários assalariados diretamente produtivos, tendo em vista o au-
mento da produtividade do trabalho e a racionalização da produção de
mercadorias, por outro lado, tende-se a ampliar o contingente de pro-
letários assalariados não-produtivos internos e improdutivos externos à
produção do capital.
Por exemplo, os proletários faxineiros do filme que “prestavam
serviço de limpeza” para escritórios de conglomerados capitalistas in-
seridos direto ou indiretamente na produção de mercadorias (mercado-
rias materiais ou mercadorias imateriais) eram proletários assalariados
não-produtivos internos ã produção do capital. Caso eles “prestassem
serviço de limpeza” para lares de trabalhadores assalariados (que os
contratassem como empregados domésticos/diaristas através de uma
empresa de subcontratação) seriam proletários assalariados improdu-
tivos externos à produção do capital.
Sob o capitalismo global tende-se a se ampliar o contingente de
proletários não-produtivos internos à produção do capital (ou indireta-
mente produtivos), que respondem por atividades de preparação ne-
cessária direta ou indiretamente à produção de mercadorias; e o con-
tingente de proletários improdutivos externos à produção do capital.
A utilização do termo produtivo/improdutivo diz respeito à na-
tureza do trabalho assalariado e sua função essencial no tocante a pro-
dução (ou não-produção) do valor. A sociedade burguesa e seu meta-
bolismo social baseiam-se na dinâmica de produção do valor-trabalho
(o valor produzido pelo trabalho abstrato, o trabalho produtor de mer-
cadorias).
Nem todo trabalho assalariado é trabalho produtor de valor, em-
bora todo trabalho produtor de valor seja trabalho assalariado. O tra-
balho assalariado surge com a condição de proletariedade, a condição
existencial de homens e mulheres despossuídos dos meios de produção
e das condições objetivas e subjetivas de produção da sua vida mate-
rial. Na medida em que estão alienados do controle social, subalternos
ao capital (enquanto relação social), os proletários são trabalhadores
assalariados.

384
O mundo do trabalho através do cinema

Nos últimos séculos de capitalismo industrial, ampliou-se o con-


tingente de trabalhadores assalariados ou proletários alienados do
mundo social. O processo de proletarização significou a ampliação de
contingentes de proletários à mercê do capital (como força social estra-
nha ao desenvolvimento humano-genérico).
Portanto, o estranhamento ampliou-se na medida em que se de-
senvolveu a civilização do capital. Ampliou-se, deste modo, a condição
de proletariedade e as possibilidades objetivas de formação da classe
social do proletariado. Embora, por outro lado, na mesma medida em
que se ampliou o estranhamento, ampliou-se o fetichismo da mercado-
ria, obnubilando a consciência social como consciência de classe, além
das misérias das instituições formadoras da consciência de classe – sin-
dicatos e partidos.
Mas no plano da formação de valor, a dinâmica sistêmica é outra:
a ampliação de trabalhadores assalariados não significa ampliação de tra-
balhadores assalariados produtivos, muito embora se tenha ampliado no
decorrer do século XX, em virtude do processo de industrialização (no sen-
tido amplo), o contingente do proletariado produtivo de valor-trabalho.
Mas, deve-se entender que, por conta do salto da produtividade
do trabalho, tende-se a diminuir, em termos relativos, diga-se de passa-
gem, o contingente de proletários assalariados produtivos propriamen-
te dito. Na verdade, eis uma das causas da valorização problemática
que está na raiz da crise estrutural do capital. É importante que se diga
que, não é que não tenha se ampliado o contingente de proletários as-
salariados produtivos, mas sim que ele não têm crescido na medida da
necessidade da valorização do capital acumulado.

385
Trabalho e Cinema • Volume 3

Sistema do Capital

Plano da formação do valor


(trabalho produtivo/improdutivo)
- proletários produtivos de valor-trabalho
- proletários não-produtivos internos à produção do capital
- proletários improdutivos externos à produção do capital.
(nova morfologia do trabalho industrial)
(valorização problemática – crise estrutural do capital –
precarização do trabalho)

Plano da formação da classe social do proletariado


processo de proletarização - condição de proletariedade
Obstáculos à formação da consciência de classe
(fetichismo da mercadoria – burocratização – poder da ideologia)

Mas existe um outro plano – o plano da formação da classe social


capaz de negar o sistema do capital – a classe social do proletariado.
Neste plano histórico abre-se um campo candente de contradições so-
ciais: por um lado, entre a ampliação da condição objetiva de proleta-
riedade, por conta do intenso processo de proletarização que marcou o
século XX (um dado objetivo que significa a posição da possibilidade
concreta, mais do que nunca, de constituição da classe social); e, por
outro lado, o surgimento de mecanismos sistêmicos de deformação de
um tipo específico de consciência social – a consciência de classe (além
dos próprios obstáculos estruturais postos pelo avanço da dinâmica
sistêmica da produção do capital como o fetichismo da mercadoria,
descoberto por Marx; e o processo de burocratização, salientado por
Weber). O poder da ideologia se impõe, deste modo, sobre a própria
formação da classe social (o que coloca a centralidade inédita da luta
ideológica como luta pela formação da classe social como formação
humano-genérica).

386
O mundo do trabalho através do cinema

A constituição ampliada de proletários assalariados improdutivos


externos à produção do capital (como, por exemplo, os trabalhadores
assalariados do setor de limpeza que aparecem no filme “Pão e Rosas”,
de Ken Loach; ou ainda, os trabalhadores assalariados públicos, que
exercem trabalho improdutivo externos à produção do capital e que,
no decorrer do século XX, aumentaram de forma significativa) expõe
as contradições sistêmicas da dinâmica da valorização do capital.
A valorização problemática está na própria raiz dos processos de
precarização do trabalho e a constituição da nova precariedade salarial.
Os conglomerados de negócios capitalistas inseridos em aguda concor-
rência no plano do mercado (concorrência agudizada pela estreita base
de valorização em relação com as necessidades crescentes de produção
de mais-valor), quase em uníssono, com a crise estrutural do capital,
visam “quebrar” as antigas relações salariais organizadas no bojo do
Estado fordista-keynesiano que obstaculizavam um aumento significa-
tivo da taxa de exploração da força de trabalho.
Na verdade, a lógica da precarização atua para o aumento da taxa
de exploração – no caso do trabalho produtivo – e para a redução da
parte da massa de mais-valia comprometida com gastos improdutivos
– por exemplo, serviços de preparação, como limpeza (ora, o ideal para
o capital industrial seria utilizar, sob as condições da valorização pro-
blemática, todo o quantum da mais-valia extraída). É por isso que, sob
as condições de crise estrutural do capital, a ação da oligarquia capita-
lista é quebrar as amarras do Estado providência (que, para garantir di-
reitos sociais do trabalho, abocanha, através de impostos, um quantum
da massa de mais-valia extraída pelo capital industrial).
A política neoliberal e seu Estado político que degrada direitos
sociais dos trabalhadores assalariados é sintoma da crise de valoriza-
ção do capital, tanto quanto as políticas de precarização do trabalho e
constituição da nova precariedade salarial.
Além disso, a financeirização da riqueza capitalista é outra estra-
tégia de sobrevivência da ordem sistêmica do capital diante da valori-
zação problemática. Mesmo precarizando – direitos sociais, emprego e

387
Trabalho e Cinema • Volume 3

relações salariais, a sanha de valorização do capital se impõe pela ânsia


da valorização fictícia nos mercados financeiros.
Portanto, a globalização implica na constituição de uma nova
totalidade concreta do sistema do capital, marcado pela (1) nova di-
visão internacional do trabalho (com a integração setorial – indústria,
serviços e agricultura e a desterritorialização/multiterritorialização in-
dustrial), (2) nova ofensiva do capital no plano da produção (com os
processos de precarização do trabalho e a nova precariedade salarial);
(3) nova morfologia social do trabalho vivo (devido o crescimento exa-
cerbado da produtividade do trabalho e a racionalização da produção,
em virtude das revoluções tecnológicas, com a complexificação das ati-
vidades de apoio e preparação à produção de mercadorias, diminui-se
o trabalho produtivo que produz mais-valia e aumenta-se o trabalho
não-produtivo e improdutivo nas bordas do sistema, abrindo um cam-
po de valorização problemática).

Nova divisão internacional do trabalho

Ofensiva do capital na produção


(precarização e precariedade)

Nova morfologia social do trabalho vivo


(valorização problemática)

Finalmente, o filme “Pão e Rosas”, de Ken Loach nos coloca diante


do problema da representação sindical que complementa o circulo da
instabilidade laboral nos vínculos territoriais, no emprego e no direito
de representação. Eis o traço da nova precariedade salarial que marca
o capitalismo global.
A precarização se expressa também como insegurança de repre-
sentação e não apenas de emprego e salário. Mas o processo de pre-
carização possui em si e para si, um processo de resistência laboral. É

388
O mundo do trabalho através do cinema

no bojo da luta social pela representação sindical – a luta originária


no sentido da consciência contingente de classe – que apreendemos
os elementos de construção de uma consciencia de classe que articula
elementos de gênero e etnia e que ocorre na instância da luta pelos
direitos (a luta pelo reconhecimento – o que explica o foco de um au-
tor como Axel Honeth). É uma luta primordial que se coloca em pleno
século XXI, o que demonstra o caráter de regressividade histórica do
sistema do capital em sua fase de globalização.
O filme “Pão e Rosas” (Bread and Roses), de Ken Loach (2000)
possui um narrativa singela: as irmãs Maya (interpretada por Pilar Pa-
dilla) e Rosa (Elpidia Carrillo), são trabalhadoras imigrantes, de ori-
gem mexicana, em situação ilegal, empregadas da Angel, a companhia
prestadora de serviço de limpeza de um prédio comercial no centro da
cidade de Los Angeles (EUA). O destinou colocou Sam Shapiro (Adrien
Brody), jovem ativista sindical do Service Employees International
Union (SEIU), no caminho de Maya. Ele convence a jovem de Tijuana a
apoiar e participar da campanha de organização sindical dos faxineiros
contra a exploração dos patrões. Os trabalhadores faxineiros recebem
salários miseráveis, não têm assistência médica, nenhuma proteção
trabalhista e ainda suportam um patrão abusivo.
O tema do filme de Ken Loach é a luta contra a precarização do
estatuto salarial do contingente de trabalhadores subcontratados do
setor de limpeza dos prédios de condomínios de negócios capitalistas.
Nas últimas décadas, cresceu bastante nos EUA e nos demais países
capitalistas, os proletários do setor de serviços de baixa qualificação
(como os faxineiros), trabalhadores assalariados sem tradição de or-
ganização sindical, constituídos, em sua maioria, por proletários imi-
grantes, muitos deles ilegais, sem direitos, e disponíveis para a superex-
ploração do capital.
Devido a situação de espoliação de direitos, a luta sindical dos
proletários de serviços de baixa qualificação tende a incorporar a ban-
deira da justiça social e visa constituir um patamar mínimo de direitos
trabalhistas capazes de dar-lhes um lastro moral para as lutas sociais e
políticas de maior envergadura. Na verdade, a bandeira da justiça sa-

389
Trabalho e Cinema • Volume 3

larial tende a ser adequada ao nível de consciência de classe contin-


gente destes proletários, homens e mulheres castigados pela miséria
da precariedade extrema e imersos em expectativas, sinos e utopias de
mercado. A luta por justiça salarial não põem em questão o sistema da
relação-capital, expressando, portanto, os limites (e alcances) da luta
dos proletários precários em situação extrema.
Na abertura do filme “Pão e Rosas”, temos cenas da fronteira en-
tre o México e os EUA. O filme trata de trabalhadores imigrantes que
cruzam a fronteira entre o México e os EUA de forma ilegal, visando
usufruir de oportunidades de emprego e perspectivas de vida digna.
Deste modo, a ultrapassagem da fronteira é o principio de novas pers-
pectivas de vida numa terra estrangeira. O ato de ultrapassar a fronteira
de forma ilegal é carregado de intensa dramaticidade. A abertura do
filme, com imagens da paisagem fronteiriça, com suas montanhas ín-
gremes e arbustos escassos, oculta a verdadeira natureza social que irá
desafiar homens e mulheres proletários que almejam serem explorados
no centro orgânico e núcleo dinâmico do capitalismo global (os EUA):
a natureza do capital.
A personagem heróica da narrativa do filme, Maya, jovem pro-
letária de Tijuana, imigrante mexicana que olha pela janela da van, a
paisagem urbana de Los Angeles (L.A.), metrópole capitalista da costa
oeste dos EUA. Com certeza, ela divaga, com seu olhar distante, sobre
as oportunidades, riscos e desafios contidos na sua nova etapa de vida
pessoal e profissional.
Pela janela, Maya observa, circunspecta, os arranha-céus do cen-
tro comercial e financeiro de L.A. Essa paisagem urbana se contrasta, é
claro, com a cena de abertura, onde a ultrapassagem da fronteira ocor-
ria no meio da natureza natural, agreste e inóspita. Ora, o seio da civi-
lização do capital é prenhe de promessas e sonhos de uma vida digna
na perspectiva de trabalhadores assalariados que, vivendo em condi-
ção de precariedade extrema, almejam tão-somente, como sonho mais
caro, vender, com vantagens, a única mercadoria que possuem: a força
de trabalho. A meta de proletários imigrantes é o emprego assalariado
digno que têm dificuldades de encontrar no seu país de origem. É a ex-

390
O mundo do trabalho através do cinema

pectativa (e utopia) contingente da realização salarial que move muitos


dos imigrantes proletários.
A personagem heróica da narrativa do filme “Pão e Rosas” é
Maya, jovem proletária imigrante mexicana que olha pela janela da van
a paisagem urbana de Los Angeles, metrópole capitalista. Com certeza,
ela divaga, com seu olhar distante, sobre as oportunidades, riscos e de-
safios contidos na sua nova etapa de vida pessoal e profissional.
O controle rígido da imigração de proletários pobres pelas fron-
teiras dos EUA contribui para o surgimento de negócios escusos da
imigração ilegal transfronteira. Verdadeiras máfias facilitam a ultra-
passagem da fronteira em troca de dinheiro. Os empreendimentos ma-
fiosos, como parasitas do capital, vivem à custa da miséria proletária e
da irracionalidade capitalista, que prega a livre circulação de mercado-
rias, menos para a mercadoria força de trabalho. A jovem Maya chega
em L.A. num comboio destes pequenos mafiosos da imigração ilegal.
A gang dos negócios da imigração ilegal visam apenas fazer dinheiro
e incorporam em si, a truculência, desrespeito e preconceito para com
homens e mulheres proletários imigrados.
Maya vem para L.A. para morar com a irmã Rosa que está há anos
nos EUA, trabalhando e enviando algum dinheiro para parentes no Mé-
xico. A remessa de dólares por imigrantes mexicanos nos EUA é uma im-
portante fonte de receita da economia do México e de muitos países que
“exportam” força de trabalho pobre. Na verdade, nas últimas décadas, o
México (e países da América Central) têm como uma das mais impor-
tante “indústria”, a exportação de força de trabalho pobre para os EUA. É
uma das indústrias mais prósperas do capitalismo global.
Os trabalhadores imigrantes – em sua maior parte, ilegais – ser-
vem como exercito industrial de reserva de baixa qualificação e baixo
custo para a exploração dos negócios capitalistas no país central. Por
outro lado, os proletários imigrantes enviam todo ano, para seus países
de origens, milhões de dólares, sendo, portanto, importante fonte de
renda para as famílias daquele país.
Rosa não pagou o serviço prestado pela máfia da imigração ile-
gal, que trouxe sua irmã, Maya. Revoltados, eles não a entregam para a

391
Trabalho e Cinema • Volume 3

irmã, que clama para que eles não a levem embora. Entretanto, Maya é
levada à força por eles. Um dos mafiosos captura Maya para seduzi-la.
Com a astúcia da mulher jovem proletária, Maya consegue fugir das
garras do mafioso.
Ora, no mundo do capital, onde a palavra dos donos do Poder,
é a lei, que fazem sempre o que querem, a jovem mulher proletária,
do suposto “sexo frágil” é obrigada a usar, com graça e agilidade, seus
dotes naturais para seduzir e contornar, com astúcia e esperteza, as ar-
timanhas canalhas das personas perversas do capital.
Em terras estrangeiras, os proletários imigrantes cultivam sau-
dades da terra de origem. Maya leva várias fotografias de família para
mostrar a irmã. As fotografias, como imagens de referência afetiva, con-
tribuem para uma aproximação virtual entre parentes distantes. Rosa
e sua família comentam as fotos trazidas por Maya: “Olhe ela com seu
vestido de festas”. E diz: “Este é o vestido que lhe mandamos”. E revêem
pelas fotografias, Valéria com seu vestido de festas e o tio Quique.
O capitalismo global ao desenvolver novas tecnologias de infor-
mação e comunicação, como Internet, aproximou mais ainda, imi-
grantes proletários que estão em terras estrangeiras, contribuindo para
ativar memórias de família e saudades da terra natal. Com a mundia-
lização do capital, intensificaram-se os fluxos de migração laboral, na
mesma medida em que, surgiram novos instrumentos de comunicação
à distância que aproximam, mais do que nunca, homens, mulheres e
famílias que estão em países distantes.
Ao chegar em L.A., Maya almeja conseguir um emprego. A irmã
Rosa diz: “Conheço alguém que tem um bar. Arrumo emprego pra você lá”.
Mas Maya observa: “Quero trabalhar com você limpando escritórios.”
O setor de serviços das metrópoles capitalistas tende a absorver
o imenso contingentes de imigrantes proletários dispostos a trabalhar
a qualquer custo. De serviços em bares às atividades de faxinas, sur-
gem muitas oportunidades de empregos precários para trabalhadores
imigrantes ilegais. Maya vai trabalhar num barzinho, mas reage contra
o assédio de clientes, imigrantes latinos (da Guatemala). Insatisfeita,
abandona o emprego (ou é despedida) e vai trabalhar com a irmã Rosa

392
O mundo do trabalho através do cinema

como faxineira de escritórios de prédios de condomínios no centro co-


mercial de L.A.
Numa das cenas do filme, a jovem Maya está diante do imenso
prédio de escritórios comerciais (onde trabalha sua irmã), procuran-
do emprego de faxineira. Não pode entrar no prédio, nem permanecer
no hall de entrada. Ela está ocupando um espaço privado que está sob
a vigilância de agentes de segurança particular do condomínio capi-
talista. Um empregado vigilante negro diz: “Ela não pode ficar aqui”.
Maya conversa com alguns trabalhadores terceirizados do prédio. O
trabalhador vigilante – que é negro - apenas cumpre ordens. Um dos
faxineiros que conversa com Maya observa para o amigo: “Ele tá no
papel dele. É um cara legal”.
Ora, no mundo do capital, cada trabalhador assalariado cumpre
tão-somente um papel que não se confunde com sua personalidade. Na
verdade, o vigilante negro é um “cara legal”, embora, enquanto empre-
gado (ou persona) do capital - tanto quanto o capitalista – apenas exer-
ce um papel social: executar as ordens do patrão.
Maya é contratada como trabalhadora assalariada terceirizada da
Angels, empresa de subcontratação de faxineiros de prédios de condomí-
nios comerciais do centro de L.A. Demonstra estar satisfeita por conse-
guir um emprego. “Vou trabalhar duro”, diz ela. Agradece ao gerente da
Angels naquele prédio: “Obrigado por me dar esta chance, Sr. Perez”.
De fato, a proletária Maya, isto é, a jovem mulher que almeja,
para sobreviver, vender sua força de trabalho com dignidade salarial,
se realiza enquanto individualidade de classe. Talvez seja para Maya, o
primeiro emprego assalariado. A venda da força de trabalho permite a
ela, sob as condições de vida numa sociedade monetária, ter acesso a
bens e serviços como mercadorias capazes de satisfazer necessidades e
carecimentos humanos dela enquanto individualidade pessoal.
Ao inserir-se no espaço do trabalho assalariado, sob a vigilância
(e controle) do capital, Maya deve adequar-se às normas prescritas. Aos
poucos, a realização salarial irá interverter-se em desrealização pessoal.
É a sina do capital. A aparência pessoal de Maya naquele ambiente de
trabalho deve ser moldada de acordo com as prescrições do processo

393
Trabalho e Cinema • Volume 3

de trabalho. Deve-se educar o modo de ser e aparecer da individualida-


de pessoal como individualidade de classe.
“Pode-se virar para eu ver?”, diz o gerente Perez. E observa: “Sei lá,
o seu cabelo, acho que não é…Devia ser mais apertado.” E prescreve que
ela prenda o cabelo, supostamente para evitar acidentes de trabalho. “É
muito perigoso, por causa das máquinas.” Perez intervém também no uso
do uniforme da empregada: “O uniforme é grande demais. Pode apertá-
lo, pra eu ver?”. Enfim, a chefia exerce seu papel de agente do capital ao
moldar o corpo físico (e mental) dos empregados para adequá-los (ou
equalizá-los) de acordo com a natureza abstrata do trabalho alienado.
As relações sociais instrumentais que permeiam o metabolismo so-
cial do capital são caracterizadas pelo desrespeito (e preconceito) cotidiano
para com a “classe subalterna”. Em vários momentos do filme, os proletá-
rios imigrantes são tratados de forma desrespeitosa e preconceituosa.
Primeiro, o preconceito decorre da xenofobia que crassa na so-
ciedade do capital contra estrangeiros pobres, supostos fracassados
sociais que buscam um lugar na “sociedade afluente” de mercadorias.
Em época de crise, acirra-se a xenofobia social e com ela, o preconceito
contra imigrantes proletários.
Segundo, o desrespeito é atitude intrínseca à sociedade alienada,
onde a “classe” proletária, os despossuidos da terra, são meras coisas
descartáveis, não reconhecidos como pessoa humana. Na medida em
que, sob o capitalismo, o homem é apenas meio para a realização de
fins egoístas (a valorização do capital), instaura-se a ordem do desres-
peito à pessoa humana.
Ora, preconceito e desrespeito são traços do metabolismo social
que envolve não apenas dirigentes da ordem burguesa, mas inclusive
homens e mulheres proletários que incorporam o “espírito animal” da
ordem da concorrência alienada. Sob a ordem do capital, as relações
sociais humanas se intervertem em relações sociais instrumentais ma-
nipulatórias, marcadas no cotidiano, pelo preconceito e desrespeito à
pessoa humana.
Ao contratar Maya, o gerente Perez não fez nenhum ato de ge-
nerosidade humana. A atitude amigável dele oculta o mero interesse

394
O mundo do trabalho através do cinema

mesquinho em auferir vantagens monetárias. Diz ele que, ao contratá-


la, fez um favor para Rosa. Além disso, diz que Maya é uma mulher
de sorte – conseguiu um emprego. E promete conseguir documentos
legais para ela, cobrando apenas uma comissão: “O seu primeiro salá-
rio.” Mas não deixa de expressar sua hipócrita generosidade – comum
ao homem burguês: “Podemos dividi-lo em 2 meses”.
Na verdade, Perez comete um ato de espoliação. Temos, assim,
um empregado gerente espoliando empregados subalternos a si. Perez
enquanto gerente, persona do capital, explicita com plenitude, ser o que
é (ou o que representa): persona do capital, que, como relação social fe-
tichizada de poder, articula, como Jano bifronte, as faces da espoliação
e exploração.
Naquele papel social, Perez aliena-se de si como empregado assa-
lariado, incorporando, com efetividade, a figura do Outro capitalista.
Na verdade, a dimensão da alienação do gerente explicita-se no trans-
formismo – meramente virtual, diga-se de passagem - do trabalhador
assalariado em capitalista. Isto é, o empregado assalariado (com posi-
ção de gerente) é efetivamente capitalista, na medida em que organi-
za em si e para si, a exploração e a espoliação dos outros empregados
subalternos a si. É a figura “persona” – no sentido de mascarado - par
excellence. A máscara do poder outorgado pelo capitalista transfigura
sua alma subalterna numa virtualidade autocrática. O gerente do capi-
tal é um espectro terreno do Outro capitalista.
A jovem Maya é uma aprendiz de faxineira. O trabalho da faxina
exige habilidades no uso dos equipamentos (ou tecnologias) de limpe-
za. Logo aparece uma colega de trabalho mais experiente no trabalho
de faxina para ensiná-la. Nesse caso, a empregada mais experiente trei-
na a menos experiente no próprio local (e ato) do trabalho.
O processo de trabalho de faxina co o atividade de prestação de
serviço, é composto em seus elementos básicos, pelo sujeito que tra-
balha (o empregado assalariado, em sua maioria mulheres), o objeto
de trabalho (o ambiente que deve ser limpo – o piso e móveis, por
exemplo) e como meio (ou instrumentos) de trabalho, os equipamentos
tecnológicos (aspiradores de pó, por exemplo). Trata-se de um traba-

395
Trabalho e Cinema • Volume 3

lho que exige alguma habilidade humana no manejo do instrumento


de trabalho, o que significa que a máquina de limpeza por si só, não
executa um bom serviço. Nesse caso, o trabalho vivo ainda é bastante
requerido no trabalho de faxina (é o que ocorre em geral, nos trabalhos
do setor de serviços – embora tenha ocorrido, nas ultimas décadas, a
automatização de uma série de atividades do setor).
Como salientamos acima, o sujeito do trabalho de faxina é com-
posto em sua maioria por mulheres. Temos, portanto, uma clivagem
de gênero. Talvez a utilização predominantemente de mulheres tenha a
ver com práticas culturais domésticas – a mulher historicamente sem-
pre foi trabalhadora doméstica, executando a faxina do lar. O capital
incorpora tradições culturais do passado e as utiliza no metabolismo
social de sua modernidade alienada.
Ao dar dicas para o manejo do aspirador de pó, a colega de tra-
balho de Maya, re-significa o instrumento de trabalho. Como artesã da
limpeza, a empregada da faxina o “transforma” – aos olhos de Maya,
como um passe de mágica – num parceiro de uma dança imaginária.
Este é um claro exemplo de como, mesmo sob condições de alienação, o
trabalhador assalariado é capaz de re-significar aquele meio de trabalho
estranhado, projetando nele imagens do mundo da vida. Diz ela: “Dê
passada largas, rebole o bumbum, e depois pro lado. Faça de conta que
está dançando.” E arremata: “Esse é o seu homem. Trate-o bem e ele a
recompensará.” Maya se intriga que um aspirador possa ser o homem
dela. Outros empregados da Angel orientam Maya sobre procedimen-
tos de limpeza. Nesse tipo de atividade menos qualificada (mas que
exige habilidades humanas específicas), o treinamento tende a se dar
pelos próprios colegas de trabalho e no próprio local de trabalho.
Na sociedade do preconceito e desrespeito humano, os proletá-
rios subalternos são homens e mulheres invisíveis no sentido que não
são vistos como individualidades pessoais, mas sim como meras coisas.
Aliás, a invisibilidade é um traço existencial da condição de proletarie-
dade. Na medida e que estão alienados do produto de sua atividade e
do processo de trabalho, além de estarem alienados de si e dos outros,
os proletários se invisibilizam – são invisíveis para os outros e inclusi-

396
O mundo do trabalho através do cinema

ve para si. Eles não se vêm como pessoas humanas, mas como meras
projeções fetichizadas do capital – imagens- fetiches de força viva de
trabalho como mercadoria.
É por isso que, numa cena do filme, Luiz, um colega de trabalho
de Maya observa: “Já lhe contei minha teoria sobre uniformes? Ele nos
tornam invisíveis.” Na verdade, os uniformes não produzem a invisibi-
lidade; eles apenas sacramentam – no sentido de compor um ritual – a
invisibilidade proletária em si e para si.
Ao tornar-se empregada da Angel, a jovem Maya preserva o es-
pírito irreverente e transgressor. Em seu íntimo, ela quer provocar o
outro mundo social – o mundo dos burgueses. Numa cena do filme, ela
apertou todos os botões do elevador para fazer aqueles executivos dos
escritórios que estavam saindo de uma reunião de negócio, descerem
lentamente, andar por andar. Como uma menina travessa, neste pe-
queno ato malcriado, ela quer quebrar a pseudo-concreticidade da vida
cotidiana daqueles empregados burgueses.
É curioso o trecho de conversa daqueles executivos inquilinos do
prédio. Um deles diz: “Se não funcionar, você vai ficar com as ações
podres até o pescoço.” Ora, a miséria do capital atinge, de outro modo,
empregados burgueses obrigados a aceitarem como forma de paga-
mento salarial, ações da empresa em que trabalham. É o lado perverso
do capitalismo global, que implica as vítimas com os interesses de seus
carrascos. Foi o que aconteceu com a crise da globalização: a “nova eco-
nomia” não funcionou, a bolha financeira estourou, e muitos executi-
vos ficaram com as ações podres – sem nenhum valor – até o pescoço.
Sam Shapiro é um organizador profissional do Sindicato dos Fa-
xineiros (o Service Employees International Union (SEIU), cuja campa-
nha nacional “Justiça para os Faxineiros”, visa organizar os empregados
na luta por melhores salários e benefícios sociais, como o plano de saú-
de. Sam consegue acessar o prédio, driblando os vigilantes.
A luta pela organização sindical é uma luta árdua na medida em
que algumas empresas nos EUA adotam políticas anti-sindicais. Além
disso, a sociedade burguesa tardia tende a constituir seu metabolismo
social emulando o espírito do individualismo, verdadeiro obstáculo do

397
Trabalho e Cinema • Volume 3

sindicalismo moderno. Como organizador profissional, Sam Shapiro


busca conhecer o terreno da luta, buscando conhecer cada emprega-
do e empregada, acompanhando sua rotina e coletando informações
sobre a categoria. Por isso, Maya se surpreende que ele saiba o nome
dela. Embora Sam Shapiro venha de fora da categoria assalariada dos
faxineiros - ele é um organizador sindical profissional – Sam busca
identificar-se com os faxineiros e faxineiras.
O sindicalismo tem como arqui-inimigo, o espírito do indivi-
dualismo. Aliás, a cultura neoliberal, que se disseminou nas últimas
décadas, é intrinsecamente anti-sindical, propagando, de forma sob-
reptícia, valores do individualismo exacerbado. que contribuem para
desconstruir o coletivo do trabalho.
Ao visitar a residência de Rosa e Maya, Sam Shapiro, o organiza-
dor sindical profissional do Sindicato dos Faxineiros, apresenta-se como
“Sam Shapiro, da campanha “Justiça para os faxineiros”. Rosa, irmã mais
velha de Maya, diz: “Eu sou Rosa, da campanha Justiça para Rosa.”
A tarefa primordial do organizador sindical é erradicar, dos cora-
ções e mentes de empregadas e empregados, o impulso individualista
que reduz cada individualidade pessoal de classe aos seus interesses par-
ticularistas. Esta é a dimensão crucial do estranhamento: a constituição
de personalidades cada vez mais particularistas, que renegam, em si e
para si, quaisquer laços sociais no sentido de vínculos com o coletivo
do trabalho.
Na verdade, a campanha “Justiça para Rosa” – figura de ironia re-
tórica da irmã de Maya em sua polêmica com Sam - é uma mera abstra-
ção alienada. Não existe uma “Justiça para Rosa”. Na verdade, enquanto
relação social estranhada, o capital como fetiche, oculta sua origem no
poder social que não se reconhece como coletividade humano-genérica
organizada a partir do trabalho. Na medida em que homens e mulheres
proletárias não se reconhecem como partes orgânicas do coletivo hu-
mano que se faz homem através do trabalho, instauram, sem o saber,
o capital (que é em si e para si, o poder social estranhado). A alienação
(como não-reconhecimento do ser genérico do homem no coletivo de
trabalho) abre um campo ideológico composto por fantasias perversas

398
O mundo do trabalho através do cinema

– como, por exemplo, a ideologia do individualismo que promove a


auto-suficiência do homem burguês – que irremediavelmente ilude (e
frustra) as individualidades pessoais de classe.
Rosa, irmã mais velha de Maya, é uma mulher trabalhadora castiga-
da pela vida dura da proletariedade extrema. Tornou-se uma pessoa dura,
imersa em si própria. Diz ela: “Não confio em ninguém”. Observa para
Sam Shapiro: “Nunca diga nós. Não acredito em nada, em ninguém.”
Eis um traço da singularidade do homem singular – Rosa tem
uma história de vida que a tornou assim. É claro que outras mulhe-
res (e homens) proletários podem ter uma trajetória pessoal de vida
dura, não se tornando, entretanto, apáticas à sociabilidade coletiva. Na
medida em que o homem é um ser que dá resposta (como observou o
velho Lukács), a resposta de Rosa – resposta única - constitui a sua sin-
gularidade pessoal que, na medida em que adere a valores sistêmicos
(como, por exemplo, o espírito do individualismo com seus derivados
– desconfiança e descrença política), tende a vincular-se à ideologia da
classe dominante: a ideologia neoliberal.
Na medida em que não acredita em nada e em ninguém, Rosa
possui uma atitude pessoal adequada à temporalidade neoliberal to-
talmente recalcitrante à luta coletiva ou luta sindical. O neoliberalismo
é também um sistema de valores. Ele se baseia na desconfiança social,
descrença política e corrosão da solidariedade humana. A prática sin-
dical pressupõe que tenhamos a capacidade pessoal em acreditar (e ser
solidário) aos outros e, pelo menos, acreditar que é possível mudar a
condição salarial. Estamos diante de atitudes morais indispensáveis à
formação do sujeito humano-genérico capaz de constituir a classe so-
cial do proletariado.
A atitude moral de Rosa não é uma falha de personalidade. Ela
não apresenta um problema psicológico que possa ser explicado tão-
somente pela sua historia de vida pessoal. Pelo contrário, a sua atitude
moral possui um dimensão ideológica de natureza intrinsecamente
social. Estamos diante de uma personalidade típica da miséria burgue-
sa. Podemos dizer que Rosa é uma mulher proletária normal. Ela vive
imersa em medos construídos socialmente. Diz ela: “Faz idéia do que

399
Trabalho e Cinema • Volume 3

são esses canalhas. Um erro e estou na lista negra.” Na medida em que


faz parte de uma categoria assalariada sem representação sindical e co-
letivo organizado, Rosa está objetivamente presa no fetiche do capital.
Sente em si, a impotência proletária. Ela só vislumbra a contingencia
da proletariedade. Como pessoa humana, está paralisada pela insegu-
rança visceral que marca sua trajetória de vida.
É interessante que a resposta humana dada pela sua irmã mais
nova, Maya, é outra. Talvez por não ter nada a perder, e possuir a co-
ragem da juventude, Maya observa, replicando a irmã, diante de Sam
Shapiro: “Nos despedem de qualquer jeito”. Rosa a contesta: “3 meses
aqui e ela já sabe tudo.”. Enfim, existe entre Rosa e Maya, diferenças
geracionais e experiências de vida diversas que constituem a mediação
concreta que determina a resposta humana dada.
Sam Shapiro visita Rosa e Maya para tentar convencê-las a apoiar
a campanha “Justiça para os Faxineiros”. Seu argumento é incisivo: a
categoria dos trabalhadores faxineiros sofreu, na década de 1980, um
processo contundente de precarização de salários e direitos que apenas
a luta (e organização sindical) pode reverter.
Aliás, degradação salarial e perda de direitos trabalhistas estão
intimamente vinculados à perda da representação sindical. Por isso,
reconstruir o sindicalismo dos faxineiros é condição sine qua non para
conquistar a dignidade salarial. Trata-se de uma demanda política de
caráter meramente sindical, resgatando, para aqueles trabalhadores as-
salariados, a capacidade mínima de vender melhor sua força de trabalho
como mercadoria. É claro que eles não lutam contra a relação-capital, em
si, mas sim, buscam resgatar um patamar de dignidade coletiva capaz,
talvez, de fazê-los avançar em lutas futuras por uma sociedade melhor.
Sam leva um contracheque de uma faxineira datada de 22 de de-
zembro de 1982. Como diz ele: “Há 17 anos”. E ele prossegue observando
que, naquela época, a faxineira ganhava 8,50 dólares a hora e tinha se-
guro saúde, auxílio-doença, férias pagas, E Sam observa: “Nos últimos
20 anos, eles tiraram bilhões de dólares dos mais pobres.” E prossegue:
“Hoje em Los Angeles, em 1999, sem um acordo salarial, a gente ganha
5,75”.. Eis o retrato da precarização do trabalho dos faxineiros que o jo-

400
O mundo do trabalho através do cinema

vem organizador sindical demonstra com acuidade. Ele precisa demons-


trar com provas concretas a precarização salarial dos faxineiros para
mover a consciência contingente destes trabalhadores assalariados. Não
bastam palavras, mas evidências comparativas no tempo histórico.
Presa à pseudo-concreticidade da vida cotidiana, a consciência in-
gênua é incapaz de apreender o desenvolvimento histórico da coisa. Na
sociedade do fetichismo, o dado imediato – o salário, por exemplo – é
quase um dado natural, pois não se consegue apreende-lo em termos
de valor, no decorrer da temporalidade histórica; e nem apreender os
vínculos concretos dele – o salário - com as determinações histórico-
sociais (como por exemplo, vincular a queda dos salários e perda de
direitos sociais à perda da representação sindical).
Aliás, esta é a “textura” do fetichismo social: supressão da histo-
ricidade da coisa (que é coisa na medida em que perdeu sua dimensão
histórica) e perda de vínculos da coisa com as determinações histórico-
sociais. A coisa – como por exemplo, meu salário ou minha condição
salarial, ou então, minha vida – torna-se mera abstração. Aliás, a indi-
vidualidade pessoal se abstrai de si e dos outros no sentido de perder a
capacidade de intervenção prático-sensível no mundo social.

Textura do fetichismo social

supressão da historicidade da coisa

perda de vínculos da coisa com determinações histórico-sociais

O fetichismo social adere à coisa e absorve a pessoa humana,


paralisando-a em seus interesses particularistas. O homem ou mulher
tornam-se individualidades meramente particulares, submersas em
sua singularidade abstrata. Ao expor com dados concretos, a precari-
zação do trabalho, Sam Shapiro busca resgatar a consciência critica em
seu patamar mínimo. Enfim, desfetichizar a percepção da precariza-
ção do trabalho, expondo-a como fato histórico e portanto, produto

401
Trabalho e Cinema • Volume 3

do mundo dos homens e não um destino terrível que se abate sobre


homens e mulheres proletários.
Ora, o objetivo de Sam Shapiro é conquistar a adesão de Rosa
e Maya para a campanha “Justiça para os Faxineiros”. Faz uma vista
domiciliar para cativá-las para a causa sindical. Após desfetichizar a
percepção da precarização do trabalho dos faxineiros, demonstrando
suas perdas salariais nos últimos 17 anos, Sam trata de um tema cru-
cial para os trabalhadores assalariados precários: o problema da saúde.
No mundo estranhado do capital, mundo social constituído pela dese-
fetivação humano-genérica do sujeito que trabalha, o seguro-saúde e
auxílio-doença são tão importantes quanto o valor em si dos salários
diretos. Enfim, ter um plano de saúde é ter a garantia da preservação
da capacidade de venda da força de trabalho.
Rosa tem um marido doente. A filha dela observa: “O papai está
doente. Precisa de cirurgia senão vai piorar.”. O marido de Rosa tem
diabetes que está atacando sua visão. Como não tem seguro-saúde,
Rosa não pode comprar insulina para o marido. Sam exclama: “Os
safados lá da Angel que não querem pagar o seguro saúde...” E logo
observa: “Nos prédios sindicalizados do centro todos têm seguro saú-
de e tratamento dentário.” Enfim, Sam Shapiro procura ponderar com
elas a vantagem de lutar pela sindicalização das faxineiras na medida
em que elas passam a ter poder de barganha para negociar não apenas
melhores salários, mas direitos trabalhistas, como o seguro saúde e tra-
tamento dentário.
No filme “Pão e Rosas”, Ken Loach busca resgatar o valor do sin-
dicalismo como baluarte na conquista e preservação dos direitos traba-
lhistas. A luta (e preservação) pelos direitos sociais do trabalho não sig-
nificam, em si, abolir a relação-capital. Aliás, o filme não trata da luta
pelo socialismo, mas sim, do resgate de uma capacidade primordial (e
originária) de homens e mulheres proletárias constituírem o “em si” da
classe social, capazes, portanto, de construírem – nos limites de uma
economia de mercado - a dignidade salarial.
Sam Shapiro salienta: “Nos prédios sindicalizados do centro to-
dos têm seguro saúde”. A luta pelo socialismo é uma luta avançada da

402
O mundo do trabalho através do cinema

classe do proletariado que exige – como condição pressuposta – uma


dignidade moral de homens e mulheres proletárias. É preciso que eles
acreditem na sua capacidade de lutar, pelo menos pelos seus direitos
trabalhistas mínimos. Por isso, deve-se salientar o valor moral do sin-
dicalismo em constituir os elementos pressupostos da luta para além
do capital. É claro que não existe uma relação necessária entre luta sin-
dical e luta socialista. Uma não impica necessariamente a outra, O sin-
dicalismo tem uma dinâmica social própria que, em si, pode mante-lo
no interior do “circulo de ferro” da relação-capital (como ocorreu, por
exemplo, com o sindicalismo hegemônico no século XX, o sindicalismo
de negócios, que em sua maioria, buscou apenas negociar a dignidade
salarial de homens e mulheres proletários organizados em sua corpo-
ração profissional, ou no limite, a conquista de direitos sociais para o
trabalho, não colocando a necessidade da luta política pelo socialis-
mo). Mas apesar de seus limites estruturais, o sindicalismo, na medida
em que vai além da luta meramente economicista, contribuindo para
a formação da consciência de classe “para si” – a consciência política
no sentido da construção do socialismo (o que implica a luta contra a
relação-capital) - ele possui um inestimável valor moral, afinal não se
constrói uma sociedade socialista com homens e mulheres degradados
– moral, física e psicologicamente - pela exploração do capital. A luta
sindical por melhores salários e direitos trabalhistas, em si e para si, é
importante para resgatar a dignidade humana.
A personalidade de Rosa está marcada não apenas pelo medo e in-
segurança existencial, mas pelo preconceito disseminado pelo metabolis-
mo social do capital. Estamos diante de verdadeiros ingredientes do me-
tabolismo social da relação-capital que contaminam as atitudes morais
de homens e mulheres proletários: medo, insegurança e preconceito. Na
verdade, eles compõem a estrutura da vida cotidiana de homens e mulhe-
res imersos na condição de proletariedade. A sociedade do capital destila
no seu dia-a-dia, medo, insegurança e preconceitos, principalmente nos
seus contingentes assalariados submetidos à precariedade extrema.
Num certo momento, Rosa se dirige a Sam Shapiro e exclama:
“Você e seu sindicato, de caras brancos e gordos, universitários.” É claro

403
Trabalho e Cinema • Volume 3

que, como toda ideologia, o preconceito social possui um lastro de ver-


dade: o sindicalismo norte-americano sempre foi historicamente um
sindicalismo de homens brancos de “classe média”, que excluía prole-
tários pobres como negros e imigrantes, além de ter, é claro, um viés
sexista que caracterizava o sindicalismo fordista (por exemplo, sindi-
catos de indústria não incorporavam mulheres operárias e as mulheres
assalariadas inseridas em empregos de serviços precários não tinham
organização sindical). Além disso, os jovens universitários, brancos de
“classe média” (como Sam Shapiro), historicamente sempre foram uma
“elite intelectual” avessa aos movimentos operários (a academia norte-
americana sempre foi muito recalcitrante a vínculos com movimentos
sociais subalternos).
Entretanto, o filme “Pão e Rosas”, de Ken Loach expõe uma sig-
nificativa mudança política no movimento sindical norte-americano,
pelo menos desde a segunda metade da década de 1980: primeiro, a
sindicalização dos serviços – incluindo, deste modo, trabalhadores
imigrantes, negros e mulheres; e segundo, a presença de jovens univer-
sitários militantes de esquerda como ativistas sindicais organizadores
Como é o caso de Sam Shapiro). O surgimento do que Michael Buroway
denomina de “sociologia pública”, por exemplo, reflete a nova relação
política entre intelectuais liberais e de esquerda, comprometidos com
valores democrático-radicais e o movimento sindical mais avançado
que busca inovar em suas práticas de organização da classe trabalhado-
ra, principalmente atuando no setor de serviços privados.
Aliás, o jovem Sam Shapiro é um ativista sindical, organizador
profissional do Sindicato das Faxineiras tem nítidas simpatias libertá-
rias. Tanto que em seu apartamento, na sala de estar, possui um grande
pôster retrato de Frederick Douglass, intelectual negro, reformador so-
cial, que acreditava na igualdade de todas as pessoas.
Os EUA se constituíram como nação capitalista sob o signo da
desigualdade de raça entre brancos e negros. O viés da raça marcou o
modo de exploração da força de trabalho nos EUA. É uma sociedade do
capital marcada pela explicita segregação racial e clivagem social entre
norte-americano natos e imigrantes, isso apesar da sociedade norte-

404
O mundo do trabalho através do cinema

americana ter sido formada, em sua origem, por imigrantes europeus.


Na verdade, o preconceito contra imigrantes nos EUA ocorre contra
ondas imigratórias vindo da Ásia e principalmente América Latina,
tendo em vista que são, em geral, imigrantes proletários pobres. A luta
pela igualdade de direitos, embora tendo um caráter reformista, apare-
ce como uma luta política crucial na dinâmica da luta de classes.

Frederick Douglass (nascido Frederico Au-


gustus Washington Bailey - nascido c. 1818 e
falecido em 20 de fevereiro de 1895), foi um
negro norte-americano ex-escravo, militante
abolicionista, sufragista das mulheres, editor,
orador, autor, estadista e reformador. Douglass
é uma das figuras afro-descendentes mais pro-
eminentes da história social dos EUA. Ele
acreditava firmemente na igualdade de todas as pessoas, indepen-
dentemente de cor, sexo e etnia, inclusive acreditando que norte-
americanos natos e imigrantes deveriam ter os mesmos direitos.
Ele gostava de dizer, “eu não me uniria com qualquer um para
fazer o certo, nem com ninguém para fazer mal.”

Sam Shapiro é um organizador sindical profissional do Sindicato


das Faxineiras, representante, naquele prédio comercial no centro de
L.A. da campanha “Justiça para os Faxineiros”. O sindicato atribui a
ele a tarefa de conduzir a campanha naquele condomínio. É um traba-
lho de organização sindical quase solitário. Ele busca informações para
se aproximar das empregadas de faxina, visita as famílias, como a de
Rosa, visando se aproximar para conquistar apoio entre as faxineiras e
efetuar por dentro o trabalho de organização e luta. O trabalho de Sam
é um trabalho árduo que exige persistência e dedicação militante.
A chegada da jovem Maya abre-lhe uma porta para arregimentar
para a causa da “Justice for Janitors”, trabalhadoras faxineiras daquele
prédio. Sam procura abrir um canal de confiança com a jovem imi-
grante, por isso dá-lhe um cartão de apresentação, Diz ele: “Ligue para
mim…”. Uma parte importante do sindicalismo norte-americano hoje,

405
Trabalho e Cinema • Volume 3

apesar de seus limites economicistas, é um sindicalismo militante que,


mais do que nunca, exige um ousado e criativo trabalho de arregimen-
tação , principalmente em setores de fraca sindicalização, como os de
serviços. A crise do sindicalismo norte-americano que se arrasta a lon-
go tempo, exigiu das novas lideranças sindicais criatividade e ousadia
nas estratégias de organização e luta – é claro, mantendo-se nos limites
do economicismo.
Na verdade, os EUA, a nação-mor do capital, o sindicalismo sem-
pre teve historicamente dificuldades em organizar o mundo do traba-
lho – mesmo em sua forma reformista. O que vigora no metabolismo
social da sociedade norte-americana é a ideologia (e a prática) indivi-
dualista. Num país capitalista que teve em sua origem colonizadores
apegados a pequena propriedade agrária (the farmers) e industriais de
espírito protestante, o ideal coletivista sempre teve imensas dificuldades
de prosperar (por exemplo, não é à toa que a ideologia de Hollywood
é a ideologia da individualidade heróica – a ideologia do man made
himself). O american way of life (o modo de vida americano) baseia-se
na iniciativa privada. Os EUA nunca tiveram uma central sindical de
cariz classista – com exceção da IWW no começo do século XX e a CIO
entre as décadas de 1930/1940 – ou um partido socialista de massa
capaz de mobilizar a opinião pública, apesar de ser a nação capitalista
mais dinâmica em termos de exploração da força de trabalho e acumu-
lação de valor. E no caso de trabalhadores assalariados dos serviços,
constituídos em sua maioria, por imigrantes – principalmente a partir
da década de 1980 - os obstáculos politico-ideológicos (e culturais) são
imensos, exigindo deste sindicalismo, uma militância organizativa ou-
sada e criativa capaz de instituir um new unionism.
O filme “Pão e Rosas”, de Ken Loach mostra, por um lado, a luta
pela organização coletiva dos trabalhadores assalariados da faxina de
um dos prédios do centro comercail de L.A.. É a tentativa árdua de dar-
lhes uma representação sindical capaz de melhorar salários e dar-lhes
direitos trabalhistas, principalmente no tocante ao auxilio-doença. É a
luta organizada de um coletivo de trabalho assalariado. Por outro lado,
como subnarrativa do filme, temos o caso do jovem empregado assa-

406
O mundo do trabalho através do cinema

lariado, Luiz, amigo de Maya, que, apesar de ser imigrante mexicano


nos EUA, empenha-se no estudo nas horas vagas, e almeja tornar-se
bacharel em direito e advogado. É a representação de outro espírito de
luta – a luta individual no estilo do american way of life.
Assim, por um lado, a luta pela ascensão coletiva enquanto traba-
lhadores assalariados – no plano sindical-corporativo; por outro lado,
os sonhos e expectativas de ascensão social individual através do estu-
do. Por um lado, a ideologia do sindicalismo e, por outro, a ideologia da
educação. Tanto num caso, como no outro, tende-se a permanecer no
interior da relação-capital. Entretanto, tanto num caso, como no outro,
abrem-se espaços possiveis de realização pessoal capazes de propiciar
uma base moral para a inserção daquelas individualidades pessoais de
classe em lutas emancipatorias.
É interessante obsrevar que, no interior da categoria assalariada,
há uma diversidade de sonhos, expectativas e ambições pessoais. En-
quanto uns buscam esforço no estudo (inclusive, por exemplo, copian-
do o livro todo, como é caso de Luiz), outros se acomodam e vêem
apenas o caminho mais fácil (se estivessem no lugar do colega, tirariam
a cópia do livro, ao invés de transcrevê-lo).
O jovem Luiz tem como sonho e utopia pessoal ir para a univer-
sidade fazer Direito (é curioso a escolha do curso de Law, salientado-
se, no filme, a preocupação crucial de imigrantes proletários com os
problemas dos direitos sociais alienados). Aliás, o filme “Pão e Rosas”
coloca no centro da luta de classes, o problema da luta pelo reconhe-
cimento (dos imigrantes) como sujeitos de direitos. A inclusão num
curso de ensino superior significa um modo de ascensão social que se
colocou, para o jovem imigrante Luiz, como um objetivo de vida.
Na verdade, o jovem imigrante de talento, o verdadeiro man made
himself, o imigrante pioneiro do século XXI que almeja realizar o ame-
rican dream, vê o seu vinculo empregatício como empregado subcon-
tratado da Angel como um vinculo meramente temporário. Ele sabe
que, um dia, irá sair desta condição de precariedade salarial, inclusive
talvez sonhe em ter seu próprio escritório de advocacia e ser trabalha-
dor por conta própria, um profissional qualificado de “classe média”

407
Trabalho e Cinema • Volume 3

(como se identifica – no plano da consciência contingente de classe - a


maior parte dos norte-americanos). Eis o espírito da ideologia do em-
preendedorismo. Talvez os sonhos e utopias pessoais de Luiz o ajudem
a suportar a miséria cotidiana do trabalho alienado. Para realizar seu
sonho pessoal, Luiz poupa há anos. Tenta uma bolsa de estudos, tendo
em vista que a universidade é paga. Como é mexicano, tem dificulda-
des de conseguir bolsa de estudos nos EUA. Apela para empresas e
para uma fundação particular “de dois irmãos mexicanos muito ricos”.
Diz Luiz: “Eu pago 20% e eles, 80%”.
O local de trabalho, enquanto constituída pelo trabalho vivo, é
irremediavelmente um local de controle da força de trabalho pelo capi-
tal. Eis um dos princípios do modo de produção capitalista. Na verda-
de, o trabalho vivo está sob o constante olhar disciplinador do capital.
Não é a força de trabalho em si, que requer incisivamente o controle
disciplinador do capataz capitalista, mas sim o trabalho vivo, como ex-
pressão incontrolável do núcleo humano recalcitrante à lógica abstrata
do processo de trabalho como processo de valorização. O homem que
trabalha é um ser resistente à exploração abstrata do capital.
No caso da Angel, grande empresa de subcontratação que organi-
za homens e mulheres (em sua grande maioria) na prestação de servi-
ços de faxina em prédios comerciais nos EUA, o controle disciplinar é
bastante intensivo, tendo em vista o processo de trabalho ser organiza-
do intensivamente em torno de trabalho vivo. O capataz capitalista de
empresas de subcontratação é intolerante com o trabalho vivo indis-
ciplinado. Nesse caso, o olhar disciplinador se mescla com preconcei-
tos arraigados com imigrantes e mulheres, no caso, mulheres de idade
avançada que ainda trabalham, e o desrespeito para com o trabalho
vivo reduzido à mera força de trabalho como mercadoria.
A arrogância de Perez, o capataz capitalista da Angel – pelo so-
brenome latino, ele é, côo os demais, imigrante - expressa uma mes-
cla de sentimentos discriminatórios que o envolvem como gerente ou
persona do capital. Como salientamos, explicita-se no filme uma série
de preconceito contra imigrantes e mulheres, principalmente as mais
velhas e no caso, portadoras de deficiência visual.

408
O mundo do trabalho através do cinema

O espaço-tempo do capital – que é o espaço do trabalho estranhado


– só há lugar para homens e mulheres produtivos, disciplinados e efi-
cientes. Ao chegar com atraso e explicitar sua deficiência visual (como
diz o gerente, “se não vê, não trabalha), a empregada idosa expõe-se a
ser descartada daquele espaço-tempo salarial. A natureza do capital é in-
timamente discriminatória. O arcabouço historicamente constituído de
direitos trabalhistas – e inclusive dos direitos humanos – colocam obstá-
culos politicos à plena vigência da barbárie do capital. Caso não houvesse
tais obstáculos politico-legais, o trabalho vivo seria degradado fisico e
moralmente`até sua completa exaustão e descartabilidade.
O espaço do capital como local do trabalho estranhado, tende a
ser marcado como campo de controle disciplinar e discriminatório. No
caso da Angel, empresa de subcontratação que trata, em sua maioria,
com mulheres (algumas delas de idade avançada) e imigrantes pobres,
prevalece, no trato da chefia autocrática, o preconceito, desrespeito e
humilhação (ou assédio moral).
Ora, Perez, o gerente da Angel é quase um velho “capitão de in-
dústria” da Revolução Industrial ou mesmo, capataz das senzalas de
escravos. No filme “Pão e Rosas”, Ken Loach caprichou na estilização da
chefia autocrática, abusiva, arrogante e boçal. Ao chamar a empregada
de mais idade de “velha e cega”, a chefia autocrática se coloca como
figura típica do déspota capitalista. Ele exclama: “Isto aqui é u negócio,
não um asilo para paralíticos”.
O filme “Pão e Rosas” é marcado por inflexões significativas em sua
narrativa. Por exemplo, um ponto de inflexão da narrativa ocorre com
o encontro casual entre Maya e Sam no local de trabalho da Angel – o
sindicalista e a jovem proletária imigrante são os dois personagens prin-
cipais que vão conduzir a narrativa filmica. Depois, a cena de humilha-
ção da empregada idosa que chegou com atraso no trabalho e deixou os
óculos em casa, sendo, portanto, despedida, promove outra inflexão nar-
rativa: a atitude da chefia autocrática, causou comoção moral naqueles
empregados que assistiram a cena. Tornou-se, portanto, perceptível para
eles a necessidade de uma resposta política (ou sindical) à truculência ge-
rencial. A expressão de cada empregado da Angel que presenciou a cena

409
Trabalho e Cinema • Volume 3

é de notável espanto – um espanto criador que impulsiona atitudes de


“negação da negação”. Maya logo se dirige a um telefone público e busca
contactar Sam Shapiro, do Sindicato das Faxineiras.
A atitude autocrática do gerente da Angel, provocou o coletivo
de trabalho a assumir uma atitude auto-defensiva. Através de sua ação
despótica no processo de exploração, o capital tende a criar reações dos
explorados. No “Manifesto Comunista”( de 1848), Karl Marx observava
que a burguesia cria seus próprios coveiros. Na verdade, trata-se do
mesmo principio sócio-ontológico - como diz Lukács, o homem [que
trabalha] é um ser que dá respostas. Talvez o que se deve interrogar é
sobre a natureza da resposta – ela pode assumir desde uma dimensão
pré-contingente (ações meramente individuais de fuga, agressão ou
sabotagem), contingente (ação sindical-corporativa, como fizeram os
faxineiros da Angel) ou respostas necessárias (ações politicas no sen-
tido da formação da consciência de classe para si). Estas repostas do
homem que trabalha à condição de proletariedade não são exclusivas
– muitas ve4es, o coletivo de trabalho adota uma ou/e outra.
Conduzidos por Maya, os faxineiros da Angel marcam uma reu-
nião com Sam Shapiro visando saber como lutar contra a degradação
salarial e a autocracia gerencial. Eis a resposta daqueles imigrantes
proletários: organizar uma ação coletiva contra o capital. Deste modo,
abre-se um processo de conscientização de classe no plano do “em si”
da classe, dimensão contingente ineliminável da consciência social em
sua luta emancipatória.
De fato, a reunião com Sam Shapiro é o primeiro passo do pro-
cesso de conscientização sindical ou formação da classe “em si” em sua
dimensão contingente. Primeiro, Sam salienta, sob a presença atenta
das faxineiras, a importância da luta delas pela dignidade salarial. Diz
ele: “Este prédio é dos edifícios mais importantes de Los Angeles no
momento.” Ao mesmo tempo, observa que a Angel “é uma das maiores
fornecedoras de serviços de limpeza no País”. Mas por trás do suces-
so e riqueza capitalista, existe a miséria proletária – a Angel cresceu
desbancando as companhias sindicalizadas, “cortando nossos salários,

410
O mundo do trabalho através do cinema

não pagam seguro saúde”. Eis as condições objetivas que colocam a ne-
cessidade histórica da luta proletária contra o capital.
Sam Shapiro, como organizador (e estrategista) da luta sindical
esboça para as empregadas faxineiras o esquema de funcionamento
do sistema de produção do capital naquela “indústria de serviços de
limpeza”. Diz ele: “Tem os donos; depois vocês têm as contratadoras de
serviços; e depois têm os inquilinos.” E prossegue: “Os inquilinos têm
muitas coisas: corretoras, grandes bancos, alguns dos maiores bancos
do país operam neste edificio; esses caras têm tremenda reputação…”.
Ora, Sam sabe que, a luta de classes, como toda luta social que se
preza (e a luta sindical é uma dimensão contingente da luta de classes),
exige, acima de tudo, estratégia de ação que implica, como pressuposto
necessário, um conhecimento claro e objetivo do terreno da luta (por
exemplo, como se organiza o campo da produção do capital naquele
setor especifico). Os empregados faxineiros precisam ter uma visão
clara da totalidade concreta daquele terreno do capital, não apenas
para saber como agir, mas onde intervir estrategicamente visando fazer
avançar a luta pela dignidade salarial (nesse caso, trata-se de luta por
melhores salários e direitos trabalhistas). Enfim, como temos salienta-
do, não se coloca, nesse caso, em questão, a relação-capital, mas apenas
o modo de regulação salarial.
Após esboçar o esquema do sistema de produção do capital na-
quele determinado prédio, local de trabalho das empregadas faxineiras
subcontratdas pela Angel, Sam Shapiro avança mais um pouco suge-
rindo o primeiro passo. Diz ele: “O que temos de fazer é pressionar es-
tes caras [os inquilinos] a contratarem companhias sindicalizadas.”
É interessante que, nesse caso, a luta sindical deve incidir não
contra a empresa contratadora de serviço – no caso, a Angel – mas, sim,
sobre os inquilinos. Enfim, deve-se pressioná-los a contratar apenas em-
presas sindicalizadas que possam garantir dignidade salarial para seus
empregados. Os inquilinos têm o poder de pressionar as companhias
contratadas a se adequarem a um novo modo de regulação salarial.
A questão é como pressionar os inquilinos do prédio comercial,
constituído por corretoras e importantes bancos norte-americanos (é

411
Trabalho e Cinema • Volume 3

interessante que, naquele prédio, estão as representações da burguesia


financeira, fração da burguesia hegemônica sob o capitalismo global).
Sam Shapiro já salientara que os grandes bancos que operam na-
quele edifício “têm tremenda reputação”. Portanto, eles devem se sentir
incomodados com a luta sindical entre a Angel, a companhia contra-
tada, e seus empregados de faxina. Esta é a estratégia de luta de Sam
Shapiro – dar visibilidade àqueles proletários assalariados da faxina
daquele prédio. Na verdade, é através da luta sindical que se pode dar
visibilidade plena ao mundo do trabalho organizado. É um momento
de romper com a pseudo-concreticidade da vida cotidiana que invisi-
biliza homens e mulheres proletárias. Enfim, a visibilidade proletária
se constitui na medida em que aquela pequena “interrupção” cotidiana
abre um espaço para uma ação pedagógico-prática sobre as demandas
proletárias e seus vinculos com as demandas humano-genéricas uni-
versais – e não apenas corporativo-profissionais.
A luta das faxineiras era por um salário decente (a imagem de que
caras de reputação, como banqueiros, contratam empresas que pagam
salários indecentes é algo que incomodaria a opinião pública). Sam ob-
serva: “É só fechar alguns sinais de trânsito na hora do rush. Imagine
quantos advogados, secretarias, contadores, negociantes e banqueiros…
quanta gente será afetada por isso ? Já imaginaram o efeito que isso terá
nessa gente? Sai mais barato nos pagarem um salário decente…”.
Na verdade, são múltiplos os modos de pressão sindical organi-
zada sobre os inquilinos (no esquema rabiscado por Sam Shapiro, os
inquilinos podem ser pressionados, por exemplo,pela mídia, por inter-
venções no espaço público ou constrangimentos criados pelos próprios
faxineiros visando dar visibilidade às suas demandas trabalhistas). A
ação sindical dos trabalhadores da faxina é, portanto, uma ação estraté-
gica ousada e criativa, embora exija – como verificamos no decorrer do
filme – atitudes de perseverança na luta e resistência coletiva à reação
patronal – e inclusive dos inquilinos – contra o movimento de proletá-
rios imigrantes pobres no coração da afluência da riqueza capitalista.

412
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