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Trabalho e Cinema

O mundo do trabalho através do cinema

Volume 4
Projeto Editorial Praxis
A Condição de Proletariedade: A precariedade do SÉRIE TELA CRÍTICA
trabalho no capitalismo global
Giovanni Alves Tempos Modernos
Charles Chaplin (1936)
Dilemas da globalização: O Brasil e a
mundialização do capital Metrópolis
Francisco Luiz Corsi (Org.) Fritz Lang (1927)

Dimensões da Crise do Capitalismo Global Nós a Liberdade


Giovanni Alves (Org.) René Clair (1931)

Dimensões da reestruturação produtiva: Ensaios de A Terra Treme


sociologia do trabalho Luchino Visconti (1948)
Giovanni Alves
Ladrões de Bicicleta
Economia, Sociedade e Relações Internacionais: Vittorio De Sica (1948)
Perspectivas do Capitalismo Global
Salário do Medo
Giovanni Alves (Org.)
Henri-Georges Clouzout (1953)
Lukács e o Século XXI: Trabalho, Estranhamento e
Beleza Americana
Capitalismo Manipulatório
Sam Mendes (1999)
Giovanni Alves
Segunda-Feira ao Sol
Tela crítica - A Metodologia
Fernando Léon de Aranoa (2002)
Giovanni Alves
Pão e Rosas
Teoria da Dependência e Desenvolvimento do
Ken Loach (2000)
Capitalismo na América Latina
Adrián Sotelo Valencia Eles não usam black-tie
Leon Hirzsman (1981)
Trabalho e cinema: O mundo do trabalho através do
cinema vol 1, 2 e 3 O Corte
Giovanni Alves Costa-Gavras (2004)
Trabalho e Capitalismo Global - O Mundo do O que você faria?
Trabalho Através do Cinema de Animação Marcelo Piñeyro (2005)
Cláudio Pinto
A classe operária vai ao paraíso
Trabalho, Educação e Reprodução Social Elio Petri (1971)
Eraldo Leme Batista e Henrique Novaes
2001 - Uma Odisséia no Espaço
Dimensões da precarização do trabalho: ensaios de Stanley Kubrick (1968)
sociologia do trabalho
Giovanni Alves A agenda
Laurent Cantet (2001)
Trabalho e gestão através do cinema
Bruno Chapadeiro Vinhas da Ira
John Ford (1940)
Sindicalismo e reestruturação produtiva no Brasil:
desafios da ação sindical dos metalúrgicos de Laranja Mecânica
Caxias do Sul/RS Stanley Kubrick (1971)
Paulo Roberto Wünsch
Meu Tio
O trabalho do juiz: Análise crítica do vídeo Jacques Tati (1958)
documentário O Trabalho do Juiz
Giovanni Alves (org) Morte de um caixeiro-viajante
Volker Schlondorff (1985)
“Trabalho e Neodesenvolvimentismo: choque de
capitalismo e nova degradação do trabalho no O adversário
Brasil” Nicole Garcia (2002)
Giovanni Alves O Invasor
Trabalho, Educação e Formação Profissional: um Beto Brandt (2001)
debate do Serviço Social O Sucesso a qualquer preço
Araré de Carvalho Júnior, Maria Cristina Piana e James Foley (1992)
Maria Jose de Oliveira Lima (orgs)

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Giovanni Alves

Trabalho e Cinema
O mundo do trabalho através do cinema

Volume 4

Projeto Editorial Praxis

1ª edição 2014
Bauru, SP
Copyright do Autor, 2014

Coordenador do Projeto Editorial Praxis


Prof. Dr. Giovanni Alves

Conselho Editorial
Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior – UNESP
Prof. Dr. Ariovaldo de Oliveira Santos – UEL
Prof. Dr. Francisco Luis Corsi – UNESP
Prof. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzáles – UNISO
Prof. Dr. Jorge Machado – USP
Prof. Dr. José Meneleu Neto – UECE

A474t Alves, Giovanni.


Trabalho e cinema: o mundo do trabalho através do cinema - Vo-
lume 4 / Giovanni Alves — Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2014.

286 p. ; 23cm. (Projeto Editorial Praxis)

ISBN 978-85-7917-276-2

1. Trabalho. 2.Cinema. 3.Fordismo. I. Giovanni Alves. II. Título.

 CDD 338

Projeto Editorial Praxis


Free Press is Underground Press
www.canal6editora.com.br

Impresso no Brasil/Printed in Brazil


2014
Apresentação

O livro “Trabalho e Cinema – Volume 4” prossegue o esforço analítico de discu-


tir o mundo do trabalho através do cinema. Os ensaios do livro são produtos
da terceira edição do curso de extensão universitária “A precariedade do trabalho
no capitalismo global”, realizado em 2012. Utilizando a metodologia do projeto Tela
Crítica, fizemos a análise crítica de importantes filmes do cinema internacional e
do cinema brasileiro. Cada filme constituiu um laboratório sociológico virtual para
apreendermos elementos categoriais do mundo do trabalho nas condições históri-
cas do capitalismo global. Mas, discutir o mundo do trabalho é também discutir o
mundo do capital. Por isso, empreendemos reflexões criticas sobre a natureza critica
da civilização do capital no interior da qual se insere o mundo social do trabalho. Da
pré-história à condição histórica do capitalismo global, elaboramos um conjunto de
reflexões criticas sobre variados temas.
Por exemplo, a análise critica do filme “Guerra do Fogo”, de Jean-Jacques An-
noud, nos propiciou, por exemplo, a discussão do tema “processo de hominização/
humanização”. É a partir do eixo analítico apreendido no filme que tratamos de uma
série de questões que dizem respeito ao devir humano dos homens. Numa perspec-
tiva sócio-ontológica, o homem é um animal que se fez homem através do trabalho.
Deste modo, discutimos, num primeiro momento, o conceito histórico-ontológico
de trabalho e, por conseguinte, tratamos do conceito de técnica como importante
elemento categorial para apreendermos a natureza do processo civilizatório humano-
genérico. A discussão do filme de Annoud torna-se importante no século XXI tendo
em vista a agudização do estranhamento social que afeta de negação, o processo ci-
vilizatório humano-genérico. Na era da barbárie social, torna-se importante resgatar,
mais do que nunca, o que nos distingue dos animais. Talvez o filme “A Guerra do
Fogo”, de Jean-Jacques Annoud, cumpra a função heurística de nos fazer lembrar o
que somos como espécie humana.

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Da pré-história somos projetados para a condição histórica do capitalismo glo-
bal com a análise crítica dos filmes “Amor sem escalas”, de Jason Reitman; e “Beleza
Americana”, de Sam Mendes. No filme “Amor sem escalas”, põe-se a problemática
da relação trabalho e vida pessoal, um dos temas candentes que emerge com o ca-
pitalismo global, tendo em vista que, sob as condições da crise estrutural do capital,
tempo de vida tende a estar cada vez mais reduzido a tempo de trabalho. Deste modo,
a precarização do trabalho oculta outra dimensão da precarização laboral: a preca-
rização do homem-que-trabalha. Esta é uma das dimensões da barbárie social que
caracteriza o capitalismo do século XXI.
No filme “Beleza Americana”, de Sam Mendes, buscamos apreender a natureza
da crise estrutural do capital através da crise da família burguesa. Discutimos o tema
do fetichismo da mercadoria e suas implicações da sociabilidade humana. Na socie-
dade das imagens-fetiche, a precarização do trabalho se manifesta como precariza-
ção existencial. Prosseguimos a discussão da crise orgânica do capital como modo
de controle estranhado da vida social, tratando o fascinante tema do estranhamento
social no filme “De olhos bem fechados”, de Stanley Kubrick. Discutir a precarização
das condições de existência do homem-que-trabalha, é discutir a precarização do
trabalho. “Beleza Americana” e “De olhos bem fechados” são exemplos magistrais
da Sétima Arte refletindo os impasses humano-genericos na era da barbárie social.
Concluímos o volume 4 do livro “Trabalho e Cinema”, analisando o filme clássico
soviético “A Greve”, de Serguei Eisenstein (1926); e o filme brasileiro “O homem que
virou suco”, de João Batista de Andrade (1981). No caso de “A greve”, discutimos a
formação da consciência de classe como processo social articula a dialética da con-
tingencia e da necessidade histórica. Finalmente, o filme “O homem que virou suco”
possui como tema central, as formas da precarização do trabalho nas condições do
capitalismo brasileiro. Num primeiro momento, o filme expõe, de modo realista, o
cotidiano de miséria da classe operária pobre da metrópole paulistana expostos à
precariedade salarial extrema no auge do “milagre brasileiro” (1968-1979). “O ho-
mem que virou suco” é um filme que trata das várias nuances da superexploração da
força de trabalho que caracteriza o capitalismo brasileiro. Ao mesmo tempo, expõe
a opressão e exploração capitalista que desefetiva o ser genérico do homem, isto é,
enlouquece o homem-que-trabalha. Deste modo, o filme de João Batista de Andrade
vincula superexploração da força de trabalho como característica ontogenética do ca-
pitalismo hipertardio brasileiro e adoecimento do trabalhador assalariado (o homem
que virou suco), como um modo de desefetivação humano-genérica ou loucura do
homem-que-trabalha.
Marília, 12 de junho de 2014

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Sumário

9 Introdução
O conceito de trabalho - A perspectiva histórico-ontológica

41 Capitulo 1
A guerra do fogo, de Jean-Jacques Annoud

73 Capitulo 2
Amor sem escalas, de Jason Reitman

107 Capitulo 3
Beleza americana, de Sam Mendes

139 Capitulo 4
De olhos bem fechados, de Stanley Kubrick

171 Capitulo 5
A greve, de Serguei Eisenstein

217 Capitulo 6
O homem que virou suco, de João Batista de Andrade

279 Bibliografia

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Introdução

O conceito de trabalho
A perspectiva histórico-ontológica

A categoria trabalho é uma das mais complexas categorias da teoria social


crítica, possuindo múltiplas significações, de acordo com o grau de abstração
que utilizemos. Interessa-nos destacar duas significações da categoria trabalho:
primeiro, trabalho como categoria histórico-ontológica; e depois, trabalho como
categoria sócio-histórica que assume diversas formas sociais de acordo com os
modos de produção historicamente determinados. Das formas sócio-históricas
do trabalho humano, salientaremos o trabalho capitalista, a forma social de tra-
balho humano hegemônico sob a civilização do capital.
O trabalho como categoria historico-ontologica significa o trabalho como in-
tercâmbio orgânico entre o homem e a Natureza; ou como diria Karl Marx em
“O Capital”, “um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o
homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a
Natureza”. Nesse caso, Natureza é a matéria natural como força natural. Por exem-
plo, a própria corporalidade viva - braços e pernas, cabeça e mãos do homem, isto
é, o homem em-si e para-si - pertencem às forças naturais que o homem tem que
por em movimento a fim de apropriar-se da materia natural numa forma útil para
sua própria vida.
Nos “Manuscritos econômico-filosófico” de 1844, Karl Marx observou: “O
homem vive da natureza, significa: a natureza é o seu corpo, com o qual tem que
permanecer em constante processo para não morrer. Que a vida física e mental
do homem está interligada com a natureza não tem outro sentido senão que a
natureza está interligada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza.”.

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Trabalho e Cinema • Volume 4

Portanto, ao dizer que o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza,


Marx quer nos dizer que o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza
externa a ele como matéria natural, isto é, o objeto e seus meios de trabalho; e en-
tre o homem e a Natureza interna a ele, a natureza que o constitui como homem,
sua vida física e mental que permitem que ele exerça uma atividade orientada a
um fim; tendo em vista que o homem é um animal social, a vida física e mental
do homem implica, por conseguinte, um processo metabólico entre o homem e si
mesmo, isto é, o homem e outros homens; e o homem consigo mesmo - o que ex-
põe, deste modo, o caráter sociometabólico do trabalho como atividade vital. Em
“O Capital”, Marx diz: “Ao atuar, por meio desse movimento sobre a Natureza ex-
terna a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza
[o jovem Marx diria: “sua vida fisica e mental”-GA]. Ele desenvolve as potências
nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio dominio”.
Deste modo, a categoria trabalho não diz respeito apenas à produção propria-
mente dita, o local de trabalho propriamente dito, mas implica também o territó-
rio da própria atividade vital ou processo entre o homem e a Natureza: a (1) maté-
ria natural que ele se apropria para dar-lhe uma forma útil para sua própria vida;
e a (2) sua própria vida física e mental (corporalidade viva, braços e pernas, ca-
beça e mãos), elementos postos não apenas no interior do território da produção
propriamente dita, mas também nas instâncias da reprodução social. O trabalho
como processo entre o homem e a Natureza é um traço ineliminável - pressuposto
estrutural (e estruturante) - da atividade humano-social. O trabalho como catego-
ria histórico-ontológica é o princípio constitutivo do próprio ser social.

Trabalho como categoria histórico-ontológica

Apenas a espécie homo sapiens trabalha. Apenas o animal homem tornou-


-se capaz de constituir um intercâmbio orgânico com a Natureza, no sentido da
atividade vital capaz de mudar as formas da matéria natural em sua busca pela
satisfação das necessidades e carecimentos vitais, constituindo, deste modo, ob-
jetivações sociais que aparecem como uma “segunda natureza”. Como observou o
filósofo Georg Lukács, o homem é um animal que se fez homem através do traba-
lho. Apesar de outros animais superiores, como chimpanzés e gorilas, por exem-
plo, exercerem atividades instrumentais, inclusive fabricação de ferramentas ru-
dimentares, para atingir determinados fins (com alguns antropólogos sugerindo
a transmissão cultural), eles não conseguiram ir além desta instrumentalidade

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O mundo do trabalho através do cinema

tosca. Na verdade, talvez nem possamos caracterizar tais atividades instrumentais


como trabalho propriamente dito. Apenas a espécie humana conseguiu evoluir e
desenvolver a cultura e a linguagem (mediações simbólicas) por meio do trabalho,
que deixou de ser meramente atividade instrumental, tornando-se, deste modo,
meio de socialização e desenvolvimento das forças produtivas sociais.
Alguns traços morfológicos primordiais como, por exemplo, o bipedalismo,
que liberou as mãos para atividades laborativas; e o cérebro avantajado da espé-
cie homem, garantiram seu sucesso evolutivo. A seleção natural aprimorou tais
disposições morfológicas, e o trabalho de luta pela sobrevivência desenvolveu as
potencialidades contidas em seu aparato humano constitutivo originário. O que
noutras espécies de macacos era mera potência limitada pela morfologia animal,
na espécie humana tornou-se ato desenvolvido, capaz de dar um salto ontológico
diante do mundo natural. Este salto ontológico, que ocorreu durante milhares e
milhares de anos e que instaurou o ser social, foi provocado pelo trabalho, “um
processo entre o homem e a Natureza” (Marx), uma específica atividade de inter-
câmbio orgânico com a Natureza que impulsionou o desenvolvimento da potência
morfológica da espécie homo sapiens.
O trabalho como intercâmbio orgânico entre o homem e a Natureza possui as
seguintes caracteristicas:
1. É um intercâmbio consciente prenhe de racionalidade com respeito aos fins
e aos meios. A consciência é a determinação reflexiva da categoria trabalho, pois
sem ela não haveria trabalho humano. A consciência como prévia-ideação pres-
supõe, por outro lado, um complexo lingüístico que habilita a espécie homem
a desenvolver a capacidade de abstração e, portanto, de comunicação complexa,
articulando fala, signos lingüísticos e estruturas sintático-gramaticais inerentes.
Devido a sua constituição morfo-anatômica peculiar, o animal homem conseguiu
articular sons através da fala, surgindo as múltiplas línguas. São tais qualidades
humanas que tendem, no decorrer do processo evolutivo, a nos afastar da Nature-
za e dos nossos parceiros antropóides e hominídeos, que não conseguiram ir além
da mera instrumentalidade natural. Ao se abstrair do cerco imediato da Natureza,
o homem conseguiu projetar seu devir humano-genérico, constituindo formas
técnicas de virtualização de si e do mundo social. Projetou não apenas instrumen-
tos de trabalho adequados para uma intervenção prático-social na Natureza, mas
elaborou formas complexas de consciência do mundo e de si próprio. Surgiram
os mitos que traduzem, em si, o medo primordial do homem diante da Natureza
inculta, potência todo-poderosa diante de um ser social ainda limitado no de-

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Trabalho e Cinema • Volume 4

senvolvimento das suas forças produtivas. Surgiu também, com as sociedades de


classe, a ideologia como modo específico de consciencia social capaz de exercer
uma ação instrumental sobre outros homens e sobre si mesmo.
2. É intercâmbio técnico, ou seja, intercâmbio mediado por objetos de tra-
balho, meios de produção da vida social ou formas de objetivação social que, tal
como outra Natureza, se impõe sobre os homens, pois exigem, para sua plena
manipulação, a observância de determinadas habilidades prático-cognitivas. Se
outros animais superiores, como macacos e chipanzés, chegaram a elaborar, com
um grão de consciência animal, instrumentos de trabalho rudimentares, o ho-
mem, não apenas os elaborou, mas os constituiu como objetos técnicos, objeti-
vações sociais constitutivas da hominidade e meios de desenvolvimento de sua
própria humanidade. Eis, portanto, o traço distintivo da prática instrumental do
homem: ela é incisivamente técnica e mais tarde, científico-tecnológica, pois o
homo sapiens, como animal-que-conhece, irá desenvolver sua ciência da Natureza
para lidar e intervir melhor sobre o mundo natural, buscando não apenas uma
melhor adaptação a ele, mas criando seu próprio mundo social e cultural à sua
imagem e semelhança. Com as sociedades de classe, ao desenvolver a técnica-
-como-tecnologia, o homo sapiens imprimiu uma marca social sobre a técnica,
instrumentalizando-a segundo interesses de classe. Deste modo, a tecnologia apa-
rece para servir à dominação da Natureza pelo capital, posto historicamente como
modo de controle estranhado do metabolismo social.
3. É interação social, o que significa que, a gênese e desenvolvimento da cons-
ciência e da técnica pressupõem, como complexo de determinações reflexivas do
trabalho, a interação social, isto é, a socialidade, a relação do homem com outros
homens e a relação do homem consigo mesmo mesmo, ou seja, o processo de in-
dividuação humana; em síntese, a cooperação social, que no decorrer da história
do homem adquiriu várias formas sócio-históricas, determinada pelos modos de
apropriação social e graus de desenvolvimento das forças produtivas sociais. A
atividade do trabalho humano é intrinsecamente atividade social e coletiva. O tra-
balho humano surgiu no seio da “comunidade primitiva” (horda ou tribo primiti-
va). O espécime homo sapiens emergiu com a constituição da socialidade reflexiva
capaz de dar origem à identidade humana que o distinguiu das demais espécies
hominídeas. Ao caçar e coletar alimentos da Natureza, a espécie homem agia em
bandos, o que significava que as atividades de trabalho eram verdadeiros rituais
de socialização e cooperação social. A atividade em bando era quase uma exigên-
cia natural, tendo em vista as dificuldades de lidar com a escassez e com um mun-

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O mundo do trabalho através do cinema

do natural hostil. O animal homem nasceu carente e frágil diante da Natureza, por
isso a cooperação social se impõe como uma necessidade primordial no processo
de evolução da espécie. A cooperação social assumiu a forma de interação social,
onde a consciência, e com ela, a linguagem e a técnica, retro-alimentaram a nova
forma de ser: o ser social. Deste modo, o ser social surgiu como pressuposto da
atividade do trabalho humano e, ao mesmo tempo, como produto desta própria
atividade vital. Portanto, o trabalho humano, como modo de intercâmbio orgâ-
nico entre o homem e Natureza, é mediado pela consciência, técnica e interação
social. A mediação é o complexo constitutivo da própria forma do ser social que
se distinguiu do mundo natural propriamente dito (o ser orgânico e inorgânico).
Deste modo, o animal homem é um tipo peculiar de macaco que conseguiu, por
meio da atividade vital do trabalho, se distinguir das demais espécies e vencer a
luta pela sobrevivência diante de uma Natureza primordial inculta e indomável.
O processo de hominização/humanização ocorreu num período de cerca de
2 a 3 milhões de anos. Entretanto, ele ainda é um tempo ínfimo, comparado com
a evolução da natureza inorgânica e orgânica (só para lembrar, os dinossauros
habitaram a Terra há cerca de 300 milhões de anos!). A espécie humana conseguiu
vencer o tempo-espaço e reduzir a escassez primordial por meio da atividade vital
do trabalho, identificado com a luta primordial pela existência. No processo de
hominização/humanização e desenvolvimento das forças produtivas do trabalho
social, o homo sapiens se distinguiu da natureza inóspita e se impôs sobre outras
espécies animais. A redução dos limites das barreiras naturais significou efeti-
vamente a superação da escassez primordial. Entretanto, com o surgimento das
sociedades de classes, surgiu historicamente, outra forma de escassez - a escassez
social, isto é, o capital, um modo de controle estranhado do metabolismo social
que tendeu a obstaculizar o desenvolvimento humano-genérico.

Trabalho como categoria sócio-histórica

O trabalho como categoria sócio-histórica assumiu diversas formas societais,


de acordo com os modos de produção historicamente determinados; ou modos de
cooperação social e apropriação do produto social da atividade vital do trabalho,
correspondente a um determinado grau de desenvolvimento das forças produti-
vas do trabalho social. (trabalho antigo, trabalho feudal e trabalho capitalista).
Num primeiro momento, iremos salientar as formas históricas do trabalho
pré-capitalista: o trabalho primitivo, o trabalho antigo e o trabalho feudal. En-

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Trabalho e Cinema • Volume 4

tretanto, a rigor, antes do modo de produção capitalista, existiam formas socie-


tais do trabalho (no plural), isto é, múltiplas atividades prático-instrumentais de
luta pela sobrevivencia do homem. Elas não estavam integradas, como hoje, a um
metabolismo sistêmico de produção e reprodução social. Pode-se, deste modo,
falar, no caso das sociedades pré-capitalistas, de mundos do trabalho (no plural).
Os trabalhos pré-capitalistas (os trabalhos primitivos, os trabalhos antigos e os
trabalhos feudais, etc.) assumiam formas sociais múltiplas e heteróclitas em-si e
para-si. Portanto, não existia propriamente um mundo do trabalho, mas sim múl-
tiplos mundos do trabalho. É apenas com o capitalismo que se constitui efetiva-
mente o mundo do trabalho propriamente dito (no singular), isto é, a forma social
do trabalho sob a vigência do trabalho abstrato. Foi com o trabalho capitalista e
com o modo de produção capitalista, que ocorreu a unicidade das atividades de
luta pela existência, surgindo o trabalho abstrato, forma social hegemonica do
trabalho social que envolve todas as demais atividades prático-instrumentais no
processo sistêmico de acumulação de valor.
Num primeiro momento, as atividades vitais dos trabalhos primitivos eram
meramente predatórias. O homem era caçador, coletor/extrator e pescador, usu-
fruindo, por meio do desenvolvimento das rudimentares técnicas pré-históricas,
daquilo que a Natureza primordial oferecia a ele. É com a invenção da agricultura
que o homem torna-se produtor social propriamente dito. É claro que a atividade
vital dos trabalhos de caça, coleta, pesca e extração mineral pressupunham um
processo de trabalho social e coletivo. Entretanto, o trabalho social da agricultura,
que surgiu mais tarde no processo de evolução histórica da espécie humana, im-
põe novas formas de relação com a Natureza e novas formas de socialidade – rela-
ção do homem com outros homens; e relação do homem consigo mesmo. É com
a agricultura que surgiram as primeiras civilizações humanas (Mesopotâmia,
Egípcia e Chinesa), as aglomerações urbanas, ainda esparsas, e um complexo de
socialidade e organização social e política de novo tipo, às margens dos afluentes
férteis dos grandes rios (Tigre/Eufrates, Nilo, Amarelo). Esta primeira Revolução
Urbana, ocorrida há cerca de 10.000 anos, que acompanha a invenção da agricul-
tura, foi um notável salto no desenvolvimento das forças produtivas sociais.
O desenvolvimento da produção de utensílios, artefatos, ferramentas e obje-
tos técnicos, por meio do trabalho artesanal, ocorreu pari passu ao próprio desen-
volvimento do homo sapiens. O homem é um animal social, produtor de objetos
úteis (utensílios). Os elementos fundamentais (e fundantes) da atividade artesa-
nal são o trabalho vivo (força de trabalho), meio de trabalho (técnica/ferramenta)

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O mundo do trabalho através do cinema

e objeto da natureza (matéria-prima). Eles constituem o processo de trabalho. O


desenvolvimento dos meios de trabalho alteraram a forma de ser do trabalho arte-
sanal, que sobrevive até os dias de hoje, muito embora, ao estar imersa na relação-
-capital, o trabalho artesanal tende a assumir outro conteúdo histórico-social.
Na Antiguidade, o processo de trabalho do artesão não representava trabalho
estranhado, tendo em vista que o processo de trabalho ainda estava sob o contro-
le do trabalho vivo dos mestres-artesãos e seus oficiais. O processo de trabalho
pré-capitalista constituía uma dimensão de autonomia dos homens livres e dos
artesãos pré-capitalistas. O trabalhador-artesão dominava o processo de trabalho
e seus elementos - meio de trabalho e seu objetos; além disso, é claro, era possuidor
de um savoir-faire, ou seja, um conjunto de habilidades técnico-pessoais adquiri-
das. Enfim, o artesão pré-capitalista era a representação plena do homem autôno-
mo, capaz de transformar a Natureza por meio do desenvolvimento das técnicas e
de sua ciência particular, tendo o domínio de seu ofício. É contra tal forma de ser
de trabalho autonomo que o modo de produção capitalista lutou nos primeiros sé-
culos da civilização do capital, buscando expropriar o homem trabalhador de seus
objetos, instrumentos de trabalho e por fim, de suas habilidades profissionais.
Entretanto, é importante destacar que, embora homens livres e artesãos tives-
sem o domínio de suas atividades de trabalho, eles não possuíam autonomia na
vida política e social. Como classes subalternas, estavam subordinados às classes
dominantes e ao Estado político do capital. Deste modo, os mundos do trabalho
livre na Antiguidade estavam imersos num modo de alienação/estranhamento de
caráter societal, subordinados à divisão hierárquica do trabalho social (socieda-
de de classes); e ao poder político do capital (Estado); ou ainda, uma alienação/
estranhamento de caráter natural, submissos às barreiras naturais impostas pela
Natureza indomável em virtude do baixo desenvolvimento das forças produtivas
do trabalho social. Portanto, a alienação/estranhamento dos trabalhadores livres
das sociedades pre-capitalistas tinha um caráter meramente formal.
Foi com as sociedades burguesas que se desenvolvem com o capitalismo his-
tórico, que o sociometabolismo estranhado assumiu um caráter efetivamente real.
Além de preservar (e ampliar) as determinações das sociedades de classe, com sua
divisão hierárquica do trabalho e as determinações do Estado político do capital
com seu poder social estranhado, a sociedade burguesa, a forma histórica mais
desenvolvida das sociedades de classes, aboliu, com a predominancia do trabalho
capitalista (ou trabalho assalariado), o controle efetivo que o artesão ou o campo-
nês tinham sobre o processo de trabalho.

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Trabalho e Cinema • Volume 4

Na Antiguidade, a atividade artesanal caracterizou não apenas a atividade


manufatureira, mas a atividade agrícola do camponês que trabalhava, com a fa-
mília ou em grupos, a gleba de terra, desenvolvendo técnicas de plantio, irriga-
ção e colheita. Nesse caso, o processo de trabalho do camponês tem os mesmos
elementos compositivos do trabalho artesanal: trabalho vivo do homem, meios
de trabalho e objeto de trabalho (no caso, a terra), com o camponês possuindo
o domínio do processo de trabalho. Por exemplo, no feudalismo, embora o servo
da gleba não fosse proprietário das terras, possuía a posse dos meios de produção,
tendo pleno domínio do processo de trabalho. O que era “alienado” dele era parte
do produto do trabalho (a corvéia). Entretanto, o servo da gleba era “senhor” do
processo de trabalho. Inclusive, nas horas livres, era também artesão e dominava
seu ofício. Mais tarde, quando o artesão buscou trabalho nas cidades (burgos),
fugindo do domínio dos senhores das terras, ainda mantinha o domínio dos ins-
trumentos e habilidades de ofício. É claro que, com o desenvolvimento do modo
de produção capitalista, o mestre-artesão tenderia a perder o domínio do objeto
de trabalho (a matéria-prima), fornecido pelo capitalista-comerciante.
Enfim, o desenvolvimento do processo de produção capitalista é o processo de
alienação do homem dos elementos do processo de trabalho, alienação dos objetos
de trabalho (matéria-prima), meios de trabalho (ferramentas) e inclusive do pró-
prio trabalho vivo (o artífice e suas habilidades profissionais). O processo de de-
senvolvimento do capital é o processo de degradação do trabalho vivo como agente
social capaz de controlar o processo de trabalho como atividade vital. É isto que ob-
servamos no Ocidente desde o século XV, um processo histórico de largo espectro
da civilização do capital. Por fim, o surgimento do sistema de máquina no século
XIX com o capitalismo industrial significou a negação do processo de trabalho
propriamente dito.

O trabalho capitalista

O fato histórico da mais alta importância é a transformação social da forçca


de trabalho em mercadoria. É a instituição social da força de trabalho como mer-
cadoria que contribuiu para que a forma-mercadoria se tornasse a matriz crucial
da sociabilidade moderna. Por isso, Karl Marx começa o “O Capital – Crítica da
Economia Política”, com o capítulo intitulado “A Mercadoria”. Na verdade, é a for-
ma-mercadoria que estrutura as relações sociais de produção (e de reprodução)
da vida de homens e mulheres no mundo burgues.

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O mundo do trabalho através do cinema

Na Antiguidade, o produto-mercadoria não possuía tanta proeminência no


metabolismo social como possui hoje. Apenas nas sociedades burguesas que se
desenvolveram no Ocidente a partir do século XVI, mercadoria e dinheiro (como
a mercadoria das mercadorias) se tornaram representações efetivas da lógica so-
cial, determinando, deste modo, trajetórias pessoais e expectativas de vida dos
agentes humanos. Os próprios elementos compositivos do processo de trabalho -
objeto de trabalho (matéria-prima), meios de trabalho (ferramentas) e inclusive,
o próprio trabalho vivo (o artífice e suas habilidades profissionais) - tornaram-
-se mercadorias. O processo de mercantilização universal se aprofundou com a
constituição do mercado mundial no século XIX. A grande indústria e o sistema
de máquinas consolidaram a vigência do trabalho capitalista ou trabalho assala-
riado como modo hegemonico de intercambio sociometabolico do homem com
a Natureza.

Dimensões do Trabalho

Dimensão histórico-ontológica
Intercâmbio orgânico Homem e Natureza

Dimensão histórico-concreta
Formas societais de Trabalho
Mundos do Trabalho

Forma histórica do Trabalho Capitalista


Trabalho Abstrato
Mundo do Trabalho

O trabalho assalariado (ou trabalho capitalista) é uma forma histórica do tra-


balho humano que se consolidou sob o modo de produção capitalista. Na socie-
dade burguesa, o trabalho assumiu sua forma categorial mais desenvolvida, atin-
gindo o ápice do seu desenvolvimento sócio-histórico. Apenas numa sociedade
humana em que a categoria trabalho assumiu sua forma social mais desenvolvida
e complexa, é que ele – o trabalho - pode aparecer como trabalho em geral e não
mais apenas em suas formas particulares (trabalho industrial, trabalho comercial
ou ainda trabalho agrícola). Acima de tais formas particulares da atividade do
trabalho, é que podemos conceber o trabalho em geral, que, no caso do modo de

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Trabalho e Cinema • Volume 4

produção capitalista, aparece como trabalho abstrato, a forma desenvolvida de


trabalho no modo de produção capitalista. O trabalho abstrato é a forma social do
trabalho em geral e da atividade de produção do capital, perpassando as múltiplas
atividades sociais particulares.
Na ótica do capital, o “sujeito” da produção de mercadorias, o trabalho huma-
no aparece apenas como trabalho abstrato, fonte da mais-valia. O que lhe interessa
é que a atividade vital do trabalho produza mais-valia, não importando o tipo de
trabalho concreto. Assim, por exemplo, o trabalho de um professor numa escola
privada e o trabalho de um metalúrgico na linha de produção de uma montadora
de automóveis, são expressões do trabalho abstrato, muito embora haja diferen-
ças particulares em suas atividades concretas. Enquanto formas do trabalho hu-
mano, as atividades do professor e do metalúrgico aparecem, em seu conteúdo
concreto, como diferentes um do outro. Entretanto, enquanto trabalho abstrato,
elas se igualam, pois produzem mais-valia e incrementam um quantum de di-
nheiro investido na produção de mercadoria (nesse caso, na ótica do capital, tanto
a intangível educação, quanto o tangível automóvel, aparecem tão-somente como
mercadorias).
O trabalho abstrato enquanto elemento categorial de organização da produ-
ção social, surgiu com o modo de produção capitalista. Ele é a fonte do valor e
elemento constitutivo do mundo no trabalho na modernidade do capital. Se na
Antiguidade, existiram os mundos do trabalho (no plural), tendo em vista que o
trabalho concreto predominava em sua forma contingente, na sociedade burgue-
sa, com a vigência do trabalho abstrato, surgiu efetivamente o mundo do trabalho
(no singular).
O trabalho abstrato se impõe como categoria social porque o modo de pro-
dução capitalista é o primeiro modo de produção da história da espécie homem
baseado na lógica do mercado. O modo de produção capitalista é o sistema mun-
dial produtor de mercadoria. A economia capitalista é a economia mercantil mais
complexa que já existiu. Sob o capitalismo, o mercado como palco da circulação
de mercadorias, tende a dominar a dinâmica social, imprimindo sua marca na
totalidade das relações sociais. A vendabilidade universal apresenta-se como o
espírito contingente da produção e reprodução social capitalista.
É claro que mercado e trocas mercantis existiram antes do capitalismo. En-
tretanto, foi apenas com o modo de produção capitalista que a troca e a circulação
de mercadorias tornaram-se predominantes, determinado a dinâmica social. Por
exemplo, na Antiguidade havia mercados e inclusive produção e circulação de

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O mundo do trabalho através do cinema

mercadorias. Mas foi apenas com o capitalismo que a lógica da vendabilidade


universal adquiriu um estatuto sócio-ontológico capaz de determinar a vida social
(na medida em que a força de trabalho humana tornou-se mercadoria, tudo – in-
clusive a terra - tornou-se passível de compra-e-venda).
A civilização do capital surgiu como o império do dinheiro, o vil metal, tendo
em vista que a forma-dinheiro é a mediação suprema da troca-e-circulação de
mercadorias. O dinheiro não apenas aparece como meio de circulação, mas como
reserva de valor, a partir da qual irá se representar a medida da riqueza capitalista
como riqueza abstrata. Se no feudalismo, a propriedade de terra era o signo da
riqueza do homem, sob o capitalismo, o signo da riqueza do homem é o quantum
de riqueza abstrata (o capital-dinheiro) investido em sua reprodução ampliada na
produção de mercadorias ou no mercado financeiro.
No mundo social do capital, o destino de homens e mulheres é, cada vez mais,
determinado pela dinâmica dos “mercados” (mercado de trabalho, mercado fi-
nanceiro, mercado de casamentos, etc). Este é o segredo do fetichismo da merca-
doria que impregna de reificação, a vida social. O mercado de trabalho é o deus
ex machina que confere a cada um de nós, identidade social, tendo em vista que,
numa sociedade capitalista, a sociedade do trabalho abstrato, ela – a identidade
social - é dada pela nossa posição estrutural na divisão social do trabalho.
Como salientamos acima, é com a modernidade do capital que, pela primeira
vez na história humana, a força de trabalho humana torna-se mercadoria e cons-
titui-se um trabalhador de novo tipo, o “trabalhador livre”, ou seja, o trabalhador
assalariado, integrado ao regime do salariato. Estamos diante de uma construção
sócio-historica, tendo em vista que o surgimento do trabalho capitalista, ou do
trabalhador livre ou assalariado e, portanto, do regime salarial, ocorreu a partir de
complexas (e particulares) transformações histórico-sociais, políticas e culturais
das sociedades européias, principalmente a partir do século XV.
O capital é um modo de controle do metabolismo social que instaura formas
históricas de intercâmbio produtivo dos seres humanos com a natureza e entre
si qualitativamente novas, radicalmente incomparáveis com outros antecedentes
históricos de controle sociometabólico. O modo de operação do sistema do ca-
pital que constituiu o “Ocidente” como a primeira civilização planetária, alterou
não apenas a relação dos homens entre si, ou do homem com a natureza, mas do
homem com sua própria atividade sócio-produtiva, o trabalho. É com o modo de
produção capitalista que o processo de trabalho tornou-se pressuposto negado, em
si e para si, do processo de valorização do valor. É nessa perspectiva que, um dos

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Trabalho e Cinema • Volume 4

grandes legados científicos de Karl Marx não foi apenas descobrir e desenvolver
em sua obra clássica “O Capital - Crítica da Economia Política”, uma teoria da
exploração, com a apresentação, por exemplo, da categoria mais-valia e dos me-
canismos de produção do capital, mas, principalmente, indicar, no corpus teórico
deste empreitada critica, a teoria do estranhamento, base fundamental da produ-
ção do capital.
As alterações que o capital promoveu no processo de trabalho, principalmen-
te a partir da maquinaria e da grande indústria, colocaram, pela primeira vez na
historia da espécie homo sapiens, novas determinações no intercâmbio sócio-me-
tabólico do homem com a natureza através do trabalho, ou seja, desta atividade
humano-prática, base do processo de hominização/humanização. As determina-
ções sociais de novo tipo inscritas na teoria do estranhamento, são da mais alta
relevância historico-ontológica. Elas alteram não apenas a forma de ser, mas a
própria natureza do processo do trabalho e das múltiplas significações vinculadas
originalmente a ele (por exemplo, a questão da qualificação profissional, o proble-
ma da ciência e da tecnologia, etc). Assim, poderíamos dizer que, sob o modo de
produção capitalista propriamente dito, com a vigência do sistema de máquinas
instaurando a grande indústria, o trabalho perdeu, pela primeira vez, o seu lugar
como agente social ativo do processo de produção. De termo inicial, o trabalho
vivo torna-se mero termo intermediário subsumido à máquina. É, com certeza,
um momento inédito de inflexão civilizacional com múltiplos impactos nas for-
mas de sociabilidade da civilização humana. Eis, portanto, o sentido radical do
estranhamento na ordem do metabolismo social do capital.

Processo de trabalho e processo de valorização do capital

A mercadoria, célula-mater da sociedade burguesa, é resultado do processo


produtivo capitalista, caracterizado pela unidade ineliminável entre processo de
trabalho e processo de valorização. Ao falarmos então em processo de trabalho no
capitalismo não podemos esquecer que ele é, acima de tudo, processo de valoriza-
ção, processo de produção de mais-valia e produção de capital. Esta sobredeter-
minação particular-concreta do processo de trabalho é importantíssima, tendo
em vista que altera sua própria natureza e as relações entre seus elementos com-
positivos.
O processo de trabalho no capitalismo se distingue do processo de trabalho
em outras formas societárias pré-capitalistas. É uma distinção de grau e espécie,

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O mundo do trabalho através do cinema

isto é, não apenas a sociedade burguesa como sociedade produtora de mercado-


rias, é a sociedade do trabalho - e vale salientar, trabalho abstrato, aquele que pro-
duz valor - mas nela, o processo de trabalho é de outra espécie. O que significa
que, primeiro, o “processo de trabalho” se constitui como processo de produção de
valor de troca; mas, segundo - e eis o ponto crucial - a partir do modo de produção
especificamente capitalista, ao incorporar a máquina e o sistema de máquinas, o
processo de trabalho tende a se negar enquanto processo de trabalho.
Assim, destacamos dois momentos cruciais.
Primeiro, o processo de trabalho que se constitui com o modo de produção
capitalista, não se volta à produção de objetos que satisfaçam a necessidades hu-
manas (valores de uso), mas sim a produção de valores de troca e, mais especifi-
camente, mais-valia.
Segundo, no interior do processo de trabalho capitalista ocorrem mudanças
significativas, por conta do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho
social, que alteram sua natureza intrínseca.
A cooperação simples e a divisão manufatureira do trabalho contribuem para
o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, que aparecem como
forças produtivas do capital. Entretanto, é a introdução das máquinas e do sistema
de máquinas, a partir da grande indústria, que tende a negar (e dar novas signifi-
cações) aos elementos do processo de trabalho originalmente posto.
Podemos discernir as seguintes categorias sociais:
Primeiro, o processo de trabalho enquanto processo humano-genérico, intrín-
seco a toda forma societária de desenvolvimento da espécie homo sapiens, de-
terminação sócio-ontológica natural do processo de hominização/ humanização,
assume a forma de atividade dirigida com o fim de criar valores-de-uso, ou seja,
processo de apropriação dos elementos naturais capazes de satisfazer às necessi-
dades humanas. O processo de trabalho é, como disse Marx, “a condição neces-
sária do intercambio material entre o homem e a natureza; é a condição natural
eterna da vida humana.”
Segundo, o processso de trabalho como processo de trabalho capitalista. Como
salientamos acima, com o modo de produção capitalista, o processo de trabalho
adquire novas determinações sociais que alteram sua natureza intrínseca. Deste
modo, o processo de trabalho torna-se processo de valorização; isto é, tornar-se
processo de trabalho voltado para a produção de mercadorias, valores de troca,
visando a acumulação de mais-valia, a auto-valorização do capital.

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Trabalho e Cinema • Volume 4

O processo de trabalho capitalista se apropria dos elementos do processo de


trabalho em sua determinação natural, alterando suas relações formais, instau-
rando, por exemplo, a cooperação simples e a divisão manufatureira do trabalho,
mas sem alterar ainda suas relações materiais; o que significa que, apesar da sub-
sunção formal do trabalho ao capital, o trabalho vivo ainda é o termo inicial (ou
ativo) da produção de valor.
Finalmente, sob a grande indústria, com a introdução do sistema de máqui-
nas na produção do capital, o processo de trabalho propriamente dito nega a si
próprio como processo de trabalho sob a direção consciente do trabalho vivo. O
processo de trabalho torna-se efetivamente processo de produção do capital con-
duzido pelo trabalho morto. O que significa que, neste caso, o trabalho vivo ou
o homem, é deslocado do processo de trabalho, deixando de ser elemento ativo
e torna-se meramente elemento passivo, mero suporte do sistema de máquinas.
É o que Marx denomina de passagem da subsunção formal para a subsunção real
do trabalho ao capital. Na perspectiva histórica, a passagem sócio-ontológica da
subsunção formal à subsunção real do trabalho ao capital caracteriza a própria
dinâmica de desenvovlimento do capitalismo histórico, sendo constantemente
reiterada no bojo dos surtos de modernização do capital no decorrer do século
XX e inclusive século XXI. O que significa que a dinâmica sistêmica do capital
implica não apenas a reiteração da dita “acumulação primitiva”, mas a reposição
constante no interior da temporalidade fechada do capital, da passagem da sub-
sunção formal para a subsunção real do trabalho ao capital. Deste modo, todo o
século XX e inclusive século XXI, se caracteriza pelo processo de modernização
que é, em sua forma sintética, o processo de passagem da subsunção formal para a
subsunção real do trabalho ao capital.
Portanto, o que antes era mera subsunção formal torna-se, com a nova base
técnica (o sistema de máquinas), subsunção real do trabalho ao capital. Com esta
passagem, altera-se radicalmente a própria natureza da atividade do trabalho, ne-
gada em-si e para-si, na medida em que se instaura o sistema de controle sociome-
tabólico do capital propriamente dito.

22
O mundo do trabalho através do cinema

Processo de Trabalho

Valor de Uso
Trabalhos Concretos

Homem – Instrumento – Natureza

Natureza
Objetivação/Exteriorização

Processo de Trabalho Capitalista

Valor de Troca
Trabalho Abstrato
Cooperação Simples
Divisão do Trabalho
Subsunção formal

Homem – Instrumento – Natureza

Natureza x Sociedade
Estranhamento

Processo de Produção do Capital

Valor de troca
Trabalho Abstrato
Maquinaria e Grande Indústria
Subsunção real

Ferramenta – Homem – Natureza

Sociedade
Fetichismo social

Um detalhe: embora negado, o processo de trabalho e seus elementos compo-


sitivos, em sua forma natural, como atividade dirigida com o fim de criar valores-
-de-uso, tende é ser conservado, no sentido de intercâmbio socio-metabólico entre o

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Trabalho e Cinema • Volume 4

homem e a natureza. O que se altera são as mediações de segunda ordem, que assu-
mem, deste modo, um conteúdo e forma estranhada e fetichizada (Mészáros, 2006).
Ao ser negado, o processo de trabalho sob a direção consciente do trabalho
vivo, em virtude das mediações estranhadas – que no caso específico do modo
de produção capitalista, seriam o trabalho assalariado, divisão hierárquica do tra-
balho, troca mercantil e propriedade privada - deixa de ser o que é, e transfigura-
-se, aparecendo como outra coisa; isto é, num primeiro momento, aparece como
processo de trabalho capitalista; e depois, mero processo de produção do capital.
Mas não podemos esquecer que o movimento real é intrinsecamente dialético e a
categoria de negação (Aufhebung) significa tanto superação/conservação num pa-
tamar superior; como pressuposição negada (que não deixa de ser efetiva, no sen-
tido de representar, de forma contraditória, a verdade do ser do real em processo).
Para compreendermos o significado destas mudanças sócio-técnicas de im-
pacto decisivo na produção (e reprodução) social, vejamos o que significa, origi-
nariamente, o processo de trabalho.

Unidade/Cisão/Negação do Processo de Trabalho

O processo de trabalho, em sua dimensão natural, é constituído, essencial-


mente, pelos seguintes elementos compositivos: o sujeito da atividade laborativa
(trabalho vivo), o instrumento de trabalho e o objeto de trabalho (a Natureza).
Toda atividade de objetivação e de produção de valores-de-uso que visa satisfa-
zer necessidades humanas é constituído por tais elementos. O que representa, de um
lado, o homem; e de outro, os meios de produção. Eis os nexos essenciais da produção
material no interior da qual a espécie humana evoluiu. Estas são quase determina-
ções naturais da atividade humano-genérica do trabalho propriamente dito.
Diz-nos Marx: “No processo de trabalho efetivo, o operário consome os meios
de trabalho como veículo de sua atividade, e o objeto de trabalho como matéria
na qual seu trabalho se apresenta” (Marx, 1996). Como salientamos acima, mes-
mo negados, tais elementos compositivos em si, estão pressupostos (como pressu-
postos negados), tanto no processo de trabalho capitalista, como no processo de
produção do capital.
No processo de trabalho capitalista ocorre uma cisão nesta relação natural
originária. Com a propriedade privada/divisão hierárquica do trabalho, o produ-
tor tende a perder a propriedade (e o controle) dos meios de produção. Com a

24
O mundo do trabalho através do cinema

civilização do capital emerge um trabalho de novo tipo - o trabalho assalariado


(ou o que Marx considera o trabalho estranhado), isto é, o regime de salariato.
Ocorre assim, a separação entre as condições subjetivas e as condições objetivas
do processo de trabalho. De um lado, o homem; e de outro, os meios de produção.
Como diria Marx, de um lado, a concha; e de outro, o caracol. É claro que, antes do
modo de produção capitalista, existia, no modo de produção escravista, a cisão da
relação natural homem-meio de produção. No trabalho escravo, o produtor, além
de não ser dono dos meios de produção, não era dono de si próprio e de sua força
de trabalho; ou seja, o escravo não era sujeito de direitos. O que significava que o
trabalho escravo possuía um estatuto sócio-histórico específico.
Diferentemente do trabalhador assalariado, o escravo não era reconhecido
como membro do corpo social. Era efetivamente um pária societal, não reconhe-
cido inclusive como membro da humanidade. Apesar de existir escravatura na
Antiguidade, o escravismo era, de certo modo, exterior ao sociometabolismo das
sociedades antigas (o que não ocorre com o regime do salariato). Além disso, a
exploração do trabalho e o estranhamento social intrínsecos ao modo de produ-
ção escravista, não tinham um caráter fetichizado, isto é, a relação de exploração e
dominação do capital possui plena translucidez para os agentes sociais. O escravo
sabia que era escravo de um senhor (o que não ocorre no regime do salariato,
onde o trabalhador assalariado acredita, no plano da consciência contingente, que
é trabalhador livre).
A exterioridade social do trabalho escravo na Antiguidade fez com que o mo-
delo de atividade humana fosse atribuído não ao trabalho escravo, mas sim, ao
trabalho artesanal, o oficio; ou ainda o trabalho do pequeno produtor agrícola,
onde produtor e meios de produção possuíam a intimidade intrínseca do cara-
col e sua concha. Assim, ao dizermos trabalho, no sentido histórico-ontológico (e
moral), pressupomos a unidade natural entre homem e meios de produção da vida,
cujo principal exemplo é a atividade artesanal ou ainda a atividade do pequeno
produtor agrícola. Portanto, o artesão ou o pequeno produtor aparecem como o
sujeito humano que, utilizando seu instrumento de trabalho como extensão de
si, atua sobre a natureza exterior, produzindo, deste modo, valores de uso para
satisfazer suas necessidades humanas.
É a forma histórica de trabalho capitalista, ou o regime de salariato, que pro-
moverá a cisão – formal e efetiva - da unidade natural entre homem e meios de
produção (ou entre o homem e si mesmo), instaurando uma nova unidade social,
o processo-de-trabalho-como-processo-de-valorização. Estamos deste modo, no

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Trabalho e Cinema • Volume 4

interior do processo de estranhamento/alienação social. Ao serem separados do


sujeito-que-trabalha, os meios de produção, sob a mediação estranhada do capital
(propriedade privada/divisão hierárquica do trabalho), a se erguer diante dele –
e contra ele. Nesse caso, a separação entre o sujeito-que-trabalha e os meios de
produção da sua vida social representa efetivamente o fato histórico da alienação/
expropriação. Trata-se, nesse caso, da alienação como perda. O trabalhador assa-
lariado em-si e para-si, está alienado das condições objetivas do trabalho social (o
que significa que perdeu o controle sobre a produção de sua vida material). Está
imerso, deste modo, numa relação social de subalternidade estrutural, ou seja,
relação social de produção capitalista. Inclusive, podemos dizer que, a rigor, todos
os que estão alienados dos meios de produção da sua vida material, são “trabalha-
dores assalariados” – no sentido ideal. Na verdade, todos os que estão imersos em
algum tipo de relação de subalternidade estrutural diante das mediações estra-
nhadas do capital (salariato/propriedade privada/divisão hierárquica do trabalho/
troca mercantil) podem ser considerados trabalhadores assalariados (ou, segundo
a acepção clássica, proletários, onde etimologicamente, “proletariado” significa
“aqueles que possuem apenas sua prole”).
No regime do salariato, os meios de produção, que incluem os objetos de tra-
balho e depois, os meios de trabalho, tornaram-se propriedade alheia (ou proprie-
dade privada do Outro). O surgimento histórico do trabalhador assalariado vin-
culou-se ao processo de despossessão primordial ou expropriação histórica que
caracteriza a dita “acumulação primitiva”, posta e reposta no próprio desenvolvi-
mento histórico do capital como fenômeno mundial. A “separação do caracol e
sua concha” tornou-se um modo de operação sociometabólica que se disseminou
com a modernidade do capital. Foi apenas com o modo de produção capitalista
que a separação entre homem e meios de produção se disseminou, assumindo
diversas formas sócio-históricas. Mais uma vez, é importante destacar: o trabalho
assalariado, ou o regime do salariato é uma “invenção” da modernidade do capital.
A separação entre o produtor e seus meios de produção da vida social ocorreu no
Ocidente, através de meios extra-econômicos de violência material, como atesta, a
partir do século XV, a história do capitalismo colonial. Durante séculos ocorreu a
constituição do sistema de controle sociometabólico do capital por meio da expro-
priação de pequenos produtores, possibilitando, deste modo, a criação das bases
materiais (e sociais) para o desenvolvimento do modo de produção capitalista.
Foi nessas condições históricas específicas, que surgiu, “com as mãos banhadas
de sangue”, a figura do capitalista, e com ele, a figura do trabalhador assalariado.

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O mundo do trabalho através do cinema

É interessante acompanhar a fenomenologia do trabalho assalariado ou sua


forma histórica de ser, até nossos dias. A condição de trabalhador assalariado
tornou-se uma “condição humana” da modernidade do capital, sendo elemento
compositivo da normalidade social. Entretanto, ao surgir, em sociedades agrá-
rias de atividade manufatureira-industrial de forma incipiente, o trabalho assa-
lariado possuía o estigma da escravidão, tendo em vista que, os trabalhadores
assalariados, vulgo proletários ou plebe andrajosa, eram não apenas despossui-
dos dos meios de produção, mas de quaisquer direitos de cidadania. Os traba-
lhadores assalaroados ou classe social do proletariado compunham uma “classe
negativa” cujo movimento social tendia a “negar” a ordem burguesa. Entretanto,
os trabalhadores assalariados ou proletários modernos, ao contrário dos escra-
vos da Antiguidade, eram, na ótica da economia política liberal do século XVIII,
trabalhadores livres, muito embora, naquela época, os proletários não tivessem
ainda conquistado direitos de cidadania. Em nossos dias, a ideologia do trabalho
livre tende a ser mais plenamente efetiva por conta da era dos direitos. ocultando
a condição sócio-ontológica de trabalho estranhado que perpassa a natureza do
trabalho assalariado.

A perda de sentido do trabalho

No processo de trabalho capitalista sob a subsunção formal, o trabalhador


assalariado só formalmente pertence ao capital, pois ainda tem algum controle
material sobre os meios de produção, no sentido de habilidades técnicas e profis-
sionais. Embora ele não seja proprietário dos meios de produção - meios e objetos
de trabalho, ele - o operário - utiliza os meios de produção, numa relação que,
malgrado o capital, mantém seu caráter natural. Na época do capitalismo manufa-
tureiro, sob a primeira modernidade do capital, o processo de trabalho capitalista
ainda aparecia como processo de trabalho.
Entretanto, é importante salientar que, do ponto de vista do processo de va-
lorização, as coisas se apresentam diferentemente. Como nos diz Marx, “não é
o operário quem utiliza os meios de produção: são os meios de produção que
utilizam o operário”. E Marx prossegue, caracterizando o processo do trabalho
capitalista:
“Não é o trabalho vivo que se realiza no trabalho objetivo como em seu órgão
objetivo; é o trabalho objetivo que se conserva e aumenta pela absorção de tra-
balho vivo, graças ao qual se converte em um valor que se valoriza, em capital, e

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Trabalho e Cinema • Volume 4

como tal funciona. Os meios de produção aparecem unicamente como absorven-


tes da maior quantidade possível de trabalho vivo. Este se apresenta apenas como
meio de valorização de valores existentes e, por conseguinte, de sua capitalização”
(Marx, 1996).
O que Marx está nos descrevendo é uma magistral inversão ocorrida com o
processo de trabalho capitalista, pois ele se torna, em sua essência, processo de
valorização. Eis a determinação crucial da alienação ou estranhamento que Marx
denunciou, com vigor, em seus escritos. Para ele, em síntese, a base material da
desefetivação do ser genérico do homem (ou estranhamento social) do trabalho
vivo, estava no modo de produção da vida social, cujo processo de trabalho como
processo de valorização baseava-se na propriedade privada, a separação entre pro-
dutor e meios de produção; e na divisão hierárquica do trabalho, onde os meios de
produção se erguiam diante do trabalho como uma força social estranha.
Nessa dialética do trabalho estranhado, a atividade do trabalho como ativi-
dade humano-genérica sofreu uma alteração qualitativamente nova. No processo
de trabalho como processo de valorização, o trabalho tornou-se trabalho abstrato.
Eis um dado crucial, ponto de inflexão decisivo na nova lógica societária pos-
ta pelo capital. O trabalho como atividade humano-genérica tornou-se trabalho
como “atividade exclusiva”, trabalho estranhado como mero meio de valorização
do valor; isto é, o trabalho é abstraído do homem. O trabalho não é mais um atri-
buto do homem.
Na verdade, na medida em que o trabalho é abstraído do homem, o homem
enquanto trabalhador assalariado serve apenas como personificação do trabalho
ou força de trabalho como mercadoria, isto é, conta apenas na medida em que for-
nece a condição subjetiva da explicitação do trabalho abstrato, produtor de valor.
Portanto, o homem como trabalhador assalariado é tão-somente trabalho per-
sonificado. E diremos: personificação estranhada, porquanto é trabalho abstrato.
Deste modo, com o processo de trabalho capitalista, temos o trabalho às aves-
sas: o trabalho é separado do homem, tornando-se outra coisa, isto é, trabalho
abstrato. Seguindo os passos da teoria do estranhamento de Marx, o trabalho
como atividade vital é assimilado à coisa na condição de capital, a qual, precisa-
mente por força dessa assimilação, domina o homem; e o produto que domina
o produtor tem, ele próprio, uma personificação na figura do capitalista, que é a
personificação da coisa.
Pela teoria do estranhamento, o produto domina o produtor, ocorrendo a
conversão do sujeito em objeto e vice-versa. Isto ocorre porque, com a separação

28
O mundo do trabalho através do cinema

entre o homem/produtor e meios de produção, os meios de produção estão sob


a propriedade (e o controle) alheio, isto é, privado; assim, os meios de produção
da vida aparecem e se defrontam com trabalho vivo na qualidade de modo de
existência do capital como coisa que se ergue diante do trabalho, não apenas no
sentido de que, quanto à propriedade, não estão em mãos dos trabalhadores assa-
lariados, mas, sim, de outros; como também, em grau iminente, no sentido de que
subordina a si o trabalho, pondo de cabeça para baixo uma relação natural (como
já salientamos, o “caracol se separou da concha”; e os meios de produção da vida,
na medida em que se intervertem em capital, tornam-se meios de produção da
desefetivação humano-genérica).
Com o processo de trabalho capitalista, os produtores, não apenas não pos-
suem a propriedade dos meios de produção, como não possuem seu controle ma-
terial, no sentido de gestão do processo de trabalho. O que significa que a impli-
cação estranhada se explica não apenas pela propriedade privada, mas também
pela divisão hierárquica do trabalho (os produtores são dominados pela lógica
do produto, isto é, pelo movimento da coisa, estando, deste modo, subsumidos
a ela). O trabalho do produtor se interverte em valorização do capital, e a força
do homem, torna-se a força da coisa. Existe assim, não apenas uma separação do
produtor e dos meios de produção, mas uma subordinação, ou melhor, subsunção,
ainda formal - no caso da manufatura - do trabalho vivo ao capital. Embora seja
formal, ainda é subsunção do trabalho ao capital, pois o capitalista exerce um
domínio sobre o trabalhador assalariado, ditando a lógica (e o modo de operação)
da produção de mercadorias.
Estivemos tratando até agora, do processo de trabalho capitalista, apresentan-
do a subsunção formal do trabalho ao capital. No caso da manufatura, embora o
trabalhador assalariado não tenha a propriedade dos meios de produção, nem seu
controle material, no sentido de gestão do processo de trabalho, ele ainda exerce
suas habilidades técnicas sobre o instrumento de trabalho. Apesar disso, embora
garanta ainda suas prerrogativas de habilidade técnica, por estar imerso no sala-
riato, não deixa de estar assimilado à coisa. Por isso, é precisamente subsunção, e
não apenas subordinação, tendo em vista que subsunção traduz, de certo modo,
a idéia de subordinação incorporada, assimilada à própria coisa ou modo de exis-
tência do capital.
Como observou Marx, enquanto criador de valor, o trabalho do trabalhador
assalariado não é atividade pessoal, nem poderia ser, tendo em vista que, como
trabalhador assalariado está alienado dos meios de produção e do trabalho como

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Trabalho e Cinema • Volume 4

atividade humano-genérica. Seu trabalho é processo de objetivação de valor. Logo


que ingressa no processo de produção, torna-se ele, enquanto capital variável, um
modo de existência do capital, a este incorporado. É Marx que nos diz, com vigor:
“Essa força conservadora do valor e criadora de novo valor [isto é, o trabalho do
trabalhador assalariado – G.A] é, em conseqüência, a força do capital, e tal pro-
cesso se apresenta como processo de autovalorização do capital e, muito mais, de
pauperização do operário, a qual, criando um valor, cria-o ao mesmo tempo como
um valor que lhe é alheio.”
Como vimos então, o que ocorre não é apenas uma mera subordinação formal
do trabalho ao capital, mas, sim, subsunção formal do trabalho ao capital, no sen-
tido de que, além do capital se defrontar como força alheia diante do trabalho, o
próprio trabalho está a este incorporado (ou assimilado) como trabalho abstrato.

Movimentos da abstração do trabalho: da subsunção formal à


subsunção real

Tratamos até agora do processo de trabalho capitalista em sua subsunção


formal do trabalho ao capital, um dos momentos primordiais da alienação/es-
tranhamento do trabalho vivo diante das condições objetivas de produção so-
cial. É importante salientar que o primeiro momento primordial da alienação/
estranhamento ocorreu com o processo de expropriação/despossesão do trabalho
vivo dos meios de produção da vida social, pressuposto material da subsunção
formal do trabalho ao capital, o segundo momento primordial da alienação/estra-
nhamento do trabalho vivo. Ao ocorrer a instauração estranhada da produção da
vida material, alterou-se o próprio sentido do trabalho, isto é, o trabalho humano
tornou-se trabalho abstrato, incorporado e, portanto, subsumido ao processo de
auto-valorização do capital. A perda do sentido do trabalho ocorreu com a vigên-
cia do trabalho abstrato no processo de produção da vida social. A partir daí, o
processo de trabalho deixou de expressar a força do homem para expressar, num
grau iminente, a força da coisa e a valorização do capital (embora o trabalho vivo
ainda mantenha o domínio sobre os instrumentos de trabalho e o trabalhador
assalariado seja pólo ativo da produção de valor).
Ao ocorrer a cisão da unidade natural entre homem e meios de produção, o
novo ordenamento sociometabólico do capital constituiu os pressupostos mate-
riais, não apenas da subsunção formal do trabalho ao capital, mas da subsunção
real do homem aos desígnios da coisa. É o que ocorreu quando o capital instaurou

30
O mundo do trabalho através do cinema

a metamorfose do meio de trabalho: o instrumento de trabalho se interverteu em


ferramenta de trabalho, constituindo, deste modo, o sistema automatizado de má-
quinas. O surgimento da máquina ou do sistema de máquinas expressou a forma
material adequada da lógica do trabalho abstrato em desenvolvimento desde a
etapa pretérita da subsunção formal. Nesse caso, o capital, descontente com a es-
trutura técnica da produção social que encontrou no período da primeira moder-
nidade do capital, provoca a transformação da estrutura técnica da produção de
mercadorias em algo homogêneo a si. Com o sistema de máquinas que surge no
período da segunda modernidade do capital, temos a homogeneização da forma
técnica do capital.
A introdução da máquina-ferramenta instaurou o que Marx denominou de
modo de produção especificamente capitalista. Ela marca o surgimento do que
consideramos a segunda modernidade do capital e de seu processo de moderniza-
ção. É como se, a partir da Revolução Industrial - a Revolução das Máquinas - nos
primórdios do século XIX, o capital como modo estranhado de controle socio-
metabólico, tivesse se constituido como sistema social, alterando, deste modo, as
múltiplas determinações sociais que ainda conservavam resíduos de incrustações
naturais. O processo de modernização, que marca a longa temporalidade histórica
da segunda modernidade do capital, caracterizada pela transição das sociedades
agrário-manufatureiras para sociedades urbano-industriais, ou sociedades tradi-
cionais para sociedades modernas, permeia a última metade do século XIX e a
totalidade histórica do século XX e século XXI. O processo de modernização do
capital que ocorreu no bojo da expansão do mercado mundial nos últimos du-
zentos anos, atingiu as sociedades ocidentais de forma desigual e combinada (por
exemplo, nos primórdios do século XXI, a China e o Sudeste Asiático – e quiça a
África – podem ser considerados a última fronteira da modernização do capital
em sua forma primordial).
Essa transição complexa da subsunção formal para a subsunção real do traba-
lho ao capital, a passagem da manufatura para a grande indústria, a transição do
instrumento para a ferramenta como sistema de máquinas, é um dos momentos
histórico-ontológico de mais alta significação. Diríamos: depois da posição do sis-
tema de máquinas, a civilização do capital tornou-se plenamente a civilização do
capital. Enfim, a vigência do sistema de máquina é a plena posição e a elevação
para um nível superior, de uma série de determinações estranhadas pressupostas
na forma social (e histórica) anterior. Com o sistema de máquina, a coisa ganhou
um corpo material, alheio e estranho, trabalho morto que se contrapõe a trabalho

31
Trabalho e Cinema • Volume 4

vivo. Enfim, alterou-se, de forma radical, os termos da equação civilizatória ho-


mem/instrumento/natureza.
Vejamos o seguinte:
Antes, com a manufatura, o meio de trabalho sofreu apenas uma mudança
formal, no sentido de que se tornou, com o processo de trabalho capitalista, um
modo particular de existência do capital, determinado pelo seu processo global,
como capital fixo. O capital alterou apenas a relação formal entre os agentes pro-
dutivos, não alterando a forma material dos elementos do processo de trabalho.
O capital se apropriou de formas societário-produtivas anteriores ao capitalismo,
mas não conseguiu ainda alterar sua forma material. Por isso, homens e mulheres
proletários, meios de trabalho e até objetos de trabalho do período histórico pré-
-grande indústria ainda preservavam traços de natureza de tradição social e de
visão de mundo agrário-comunitária.
No período de vigência da manufatura, como salientamos acima, a subsun-
ção do trabalho à lógica do capital era meramente formal, no sentido de que se
instaurou o regime do salariato, isto é, surgiu o trabalho assalariado baseado na
cooperação como expressão do trabalho social. Com a manufatura, ocorreu o
desenvolvimento das forças produtivas sociais do capital, com a cooperação e a
divisão manufatureira do trabalho criando o trabalhador coletivo do capital. Deste
modo, temos a acumulação ampliada de capital e o processo de trabalho como
processo de valorização.
Entretanto, sob a subsunção formal, o meio de trabalho ainda é meio de tra-
balho propriamente dito, mediação entre o homem e a natureza, instrumento de
trabalho como termo intermediário, prolongamento dos órgãos que o operário
possui naturalmente em seu próprio corpo. Deste modo, o trabalho vivo aparece
como agente ativo da produção, termo inicial do processo de trabalho, elemento
de subjetividade portador de habilidades tácitas, herdadas de modos de produção
anteriores ao capitalismo. O artesanato, e inclusive, a manufatura capitalista, ain-
da preservam traços de naturalidade, com a presença de qualificações do trabalho
provenientes da subjetividade do produtor.
Entretanto, o movimento do capital, como contradição viva, explicita, no pla-
no sócio-histórico e nas condições da subsunção formal do trabalho ao capital, a
contradição social candente entre tradição e modernidade, posta como a forma
social do capital.
Por um lado, a tradição se apresenta no processo de trabalho, por meio da
conservação de traços de naturalidade, tanto no tocante aos meios (e objetos)

32
O mundo do trabalho através do cinema

de trabalho; quanto no tocante aos próprios agentes da produção (o trabalho


vivo), que preservam suas qualificações tácitas, mantendo, na dimensão sócio-
-reprodutiva, um modo de vida baseado em valores e práticas culturais de ca-
riz comunitário. Por outro lado, a modernidade se apresenta na forma social do
capital que se impõe como força histórica que dissemina as relações sociais de
produção capitalista baseadas na vigência da lei do valor e do trabalho abstrato e
cujo primeiro movimento do processo de abstração, faz o trabalho se destacar de
toda naturalidade possível e, nesse sentido, reduzir-se realmente à mera explicita-
ção de energia laborativa humano-genérica (trabalho abstrato). A disseminação
da forma-mercadoria na totalidade social é um traço orgânico da modernidade
que dissolve a solidez da tradição, criando as condições sócio-reprodutivas para
o modo de produção especificamente capitalista. Eis um processo histórico con-
traditório de longa duração, que atingiu seu ápice na passagem da primeira para
a segunda modernidade do capital, com a “idade da máquina”, na virada do século
XVIII para o século XIX, mas que prossegue de modo voraz, no decorrer da pró-
pria segunda modernidade do capital que percorreu o século XX.
Com a subsunção formal, o trabalho humano é trabalho abstrato, mas o pro-
cesso de abstração do trabalho assume naquele momento, uma forma específica,
ainda não plenamente efetiva, o que só vai ocorrer, por exemplo, com a vigência
do sistema de máquinas, isto é, com a subsunção real do trabalho ao capital. No
momento da subsunção formal do trabalho ao capital, o trabalho vivo ainda apa-
rece como agente ativo da produção e elemento de subjetividade e de habilidades
tácitas, herdadas de modos de produção anteriores ao capitalismo. Entretanto, na
ótica do novo sistema de produção social que produz mercadorias, o que conta é o
trabalho abstrato. Mesmo sob o novo modo de produção capitalista em constitui-
ção, o trabalho humano não conta pelas qualidades que o tornam capaz de produ-
zir valores de uso, mas sim por ser explicitação de energia laborativa humana que
produz valores de troca, mercadorias destinadas ao mercado. Na medida em que
as trocas mercantis se ampliam e se impõe a necessidade de incremento da acu-
mulação de valor, os elementos de naturalidade do trabalho vivo, suas qualidades
e habilidades tácitas, inclusive de controle da produção e do processo de trabalho,
tornam-se obstáculos para o movimento do capital, sedento de mais-valia e de
sobreacumulação.
O trabalho abstrato se efetivou plenamente quando instaurou os pressupostos
materiais para abolir tendencialmente da produção de mercadorias, o elemento do
trabalho vivo, eliminando, deste modo, as qualificações provenientes da subjetivi-

33
Trabalho e Cinema • Volume 4

dade do trabalho. É o que ocorre com a nova base técnica (e tecnológica) dada pelo
surgimento do sistema de máquinas. É importante destacar o seguinte: de fato, o
trabalho vivo não é, e não pode ser abolido absolutamente. Estamos diante de um
dos limites do capital que anseia (ou carece) pela abolição absoluta do trabalho
vivo como força de trabalho, mas não consegue efetiva-la pois isso significaria ne-
gar a si próprio. O que significa que a abolição do trabalho vivo é meramente ideal
(ou virtual), ou seja, projeta-se como mera possibilidade ideal-concreta a partir do
desenvolvimento da nova base técnica. Deste modo, a passagem para a subsunção
real do trabalho ao capital, com o surgimento da nova base técnica do capital,
com sua forma tecnológica voraz, abole apenas tendencialmente o trabalho vivo.
Ela se expressa, por exemplo, pela substituição, no interior da indústria (e dos
serviços) capitalista, do trabalho vivo pelo trabalho morto (um dos componentes
do crescente desemprego estrutural). Assim, o que se desenvolve na segunda mo-
dernidade do capital - século XIX e século XX - e assume dimensões lancinantes
na terceira modernidade do capital, na virada do século XX para o século XXI, é a
exacerbação de tendências contraditórias inscritas na ordem sociometabólica do
capital. A principal delas é o caráter destrutivo da expansão do segundo movimen-
to de abstração do trabalho, que se dá com a subsunção real do trabalho ao capital.

O Sistema de Máquina Capitalista

Se no primeiro movimento de abstração do trabalho, como salientamos acima,


o trabalho abstrato é posta como princípio organizador da produção de mercado-
rias, mas ainda sem a base técnica-material adequada (o que limitava seu desen-
volvimento efetivo); no segundo movimento de abstração do trabalho, não apenas
o trabalho abstrato está posto, mas se põe de forma real, assumindo uma corpo-
ralidade técnica, ou melhor, tecnológica; o que significa que, tende não apenas a
separar o trabalho vivo dos meios de produção, mas sim a negar a subjetividade da
força de trabalho e suas qualidades/habilitantes técnicas de controle da produção
e do processo de trabalho. Essas qualidades se perderam inteiramente, inclusive
do ponto de vista material, precisamente porque o trabalho não está posto no
início do processo técnico, mas apenas inserido num lugar intermediário desse
processo.
Se antes, o trabalho era o termo ativo inicial, agora é meramente o termo
intermediário. No caso de ter qualificações e especificidades, o trabalho recebe es-
sas qualificações e essas especificidades não de si mesmo, mas precisamente da

34
O mundo do trabalho através do cinema

máquina. Deste modo, no segundo movimento de abstração do trabalho, quando


ocorre a exacerbação do estranhamento que aparece como fetichismo da merca-
doria, a máquina imprime sobre a atividade do trabalhador assalariado suas qua-
lificações, que não são mais provenientes da subjetividade do trabalho, mas sim
das exigências da estrutura e necessidades alienadas da coisa que é a máquina,
que se põe agora no inicio do processo produtivo.
A especificação do trabalho vivo, negado tendencialmente em-si e para-si, é
a especificação feita inteiramente em função de uma coisa, isto é, especificação
do instrumento tornado ferramenta, o qual tendo-se elevado ao nível do sistema
de máquinas, está, como salientamos, no início do processo técnico e não mais
num seu ponto intermediário. Neste caso, o segundo movimento de abstração do
trabalho, que ocorre com o surgimento do sistema de máquinas, significa a in-
tensificação ampliada das formas estranhadas do capital e do fetichismo social.
Enfim, constitui-se a segunda modernidade do capital ou modernidade propria-
mente dita.
É claro que, sob a subsunção formal do trabalho ao capital, modos de inversão
(ou de fetichismo social) se manifestavam, por exemplo, através da cooperação
simples e da divisão manufatureira do trabalho e seu subproduto, o trabalhador
coletivo do capital. O desenvolvimento da força produtiva social do trabalho, em
virtude da cooperação simples e da divisão manufatureira do trabalho, por exem-
plo, aparecia não como força produtiva do trabalho social, mas sim como força
produtiva do capital. Naquelas circunstâncias históricas, o capital se apropriava
do desenvolvimento da produtividade do trabalho, intervertendo-a em produti-
vidade do capital. É o que Marx e Engels salientavam como sendo o sentido do
estranhamento social: o poder social aparecia como poder social estranhado/alie-
nado. Ao imprimir sua marca estranhada naquilo que era produto da atividade
do trabalho social, o capital aparecia como sujeito usurpador da natureza social
(o que é um dos traços de seu controle sóciometabólico). Entretanto, a usurpação
do capital tinha um sentido “progressista” – ou caráter civilizatório - na medida
em que significava o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social
e o recuo das barreiras naturais, instigado (e limitado) pelas relações sociais de
produção capitalista. Este era o caráter contraditório da civilização do capital. O
capital não apenas se apropriava das forças vivas de sociabilidade liberada por ele
em seu movimento progressivo (como observou Lukács, a sociedade burguesa é a
sociedade mais social que existiu), como, num processo intrinsecamente contra-

35
Trabalho e Cinema • Volume 4

ditório, ao se apropriar da civilização, frustrava, invertia e pervertia, ao mesmo


tempo, suas promessas civilizatorias.
Como “contradição viva”, o capital é, ao mesmo tempo, exploração e civiliza-
ção, no sentido de criar os pressupostos materiais para o desenvolvimento social
do ser genérico do homem. Entretanto, em seu movimento perpétuo de valoriza-
ção, sob a terceira modernidade do capital onde se explicita o sociometabolismo
da barbárie social, o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho como
forças produtivas do capital tende, cada vez mais, a se interverter em produção
destrutiva da civilização humana, dessocialização e estranhamento e fetichismo
social em sua forma exacerbada. Sob a subsunção real do trabalho ao capital, com
a vigência do sistema de máquina, não é apenas a produtividade do trabalho social
que aparece como produtividade do capital; ou as forças produtivas do trabalho
social como forças produtivas do capital; mas é a própria especificação readqui-
rida do trabalho vivo, ou ainda, as qualificações polivalentes da força de trabalho
que aparecem como especificações feitas em função de uma coisa, da máquina, ou
ainda, qualificações que não são mais provenientes da subjetividade do trabalho,
mas sim, oriundas da natureza do sistema de máquinas (por exemplo, sob a forma
de rede informacional).
O que significa que o sistema de máquina capitalista tende a inverter politec-
nica em polivalência, que aparece como forma de qualificação estranhada posta
no processo produtivo; ou seja, apesar do sistema de máquinas na era da redes
informacionais conter a promessa da politecnia, as relações de produção capita-
lista obstaculizam o desenvolvimento concreto da potentia técnica, intervertendo
politecnia em polivalência (o que significa a intensificação da exploração do ca-
pital, com o trabalhador assalariado sendo obrigado a vigiar múltiplas máquinas
alheias a si). Portanto, a passagem da subsunção formal para a subsunção real do
trabalho ao capital, altera a relação da ciência e sua extensão, a técnica como tec-
nologia, com o processo produtivo. Deste modo, temos outro importante aspecto
do estranhamento e do fetichismo social.

Ciencia e tecnologia na era do sistema de máquinas do capital

Destacamos as múltiplas determinações do estranhamento e do fetichismo


social, tanto em sua dimensão objetiva (relação entre trabalho vivo, meios de tra-
balho e objeto de trabalho), quanto em sua dimensão subjetiva (relação do traba-
lho vivo com sua atividade produtiva e com os resultados da produção social). No

36
O mundo do trabalho através do cinema

tocante a ciência e tecnologia, a vigência do sistema de máquinas altera a relação


do trabalho vivo com um dos elementos inelimináveis do processo de trabalho: o
conhecimento científico, atributo intrínseco do pólo ativo primordial do processo
de trabalho, o trabalho vivo.
Na situação pré-capitalista, a ação que leva o produtor a utilizar o instrumen-
to enquanto instrumento é uma ação que parte de uma consciência ou ciência que
o sujeito possui acerca do processo produtivo e de suas características. O trabalho
vivo é o agente social daquilo que Lukács denominou de intentio recta. Na situa-
ção capitalista, a partir da subsunção real do trabalho ao capital, a ciência é colo-
cada no sistema de máquinas e está assim fora da consciência do trabalho vivo.
A posição do sistema de máquina significa, deste modo, não apenas a separação
entre trabalhador assalariado e instrumento que se fez ferramenta ou sistema de
máquina, mas a inversão da relação natural entre trabalho vivo e instrumento
do trabalho, isto é, a separação entre trabalho vivo e conhecimento, isto é, ciên-
cia. Este detalhe significa que se aprofunda efetivamente o nexo estranhado do
sociometabolismo do capital. A inversão da relação natural entre trabalho vivo
e instrumento do trabalho ou a separação entre trabalho vivo e conhecimento
constitui, no plano da subjetividade do trabalho vivo, a base material para novas
implicações estranhadas. O trabalho contido nos meios de produção subordina a
si o trabalho vivo, tendo em vista que o trabalho vivo, como se salienta acima, não
tem outro sentido além de ser fator de valorização do trabalho objetivado.
É importante observar que não é a mera separação entre trabalho vivo e co-
nhecimento, isto é, ciência objetivada como tecnologia, que origina a implicação
estranhada do agente social. O trabalho contido nos meios de produção como tra-
balho objetivado, isto é, trabalho morto, oprime o trabalho vivo apenas na medida
em que é determinado pela relação social de produção capitalista. O sistema de
máquinas é alheio ao trabalho vivo não porque é exterior (ou separado) dele, no
sentido material, pois o corpo da técnica, em si, não ocasiona alienação (e auto-
-alienação) dos produtores sociais, mas sim, sua forma social estranhada, isto é,
forma social do capital impressa na base técnica (a tecnologia). Identificar exte-
rioridade com negatividade é atribuir à técnica um poder de dominação que ele
não possui.
Com a grande indústria e a maquinaria, põe-se outra determinação funda-
mental: a subsunção do trabalho vivo ao capital não se dá apenas na forma - não
se trata mais simplesmente do fato de que um processo de trabalho ainda dotado
de características naturais foi posto a serviço de um processo social de valoriza-

37
Trabalho e Cinema • Volume 4

ção. Com a grande indústria, o próprio processo de trabalho perdeu suas caracte-
rísticas naturais e adquiriu características técnicas (ou tecnológicas). A subordina-
ção (ou subsunção) do processo de trabalho ao processo de valorização tornou-se
subordinação (ou subsunção) material do trabalho ao próprio instrumento torna-
do ferramenta de trabalho ou sistema de máquinas. Na verdade, há uma transfor-
mação do próprio processo técnico do capital que tende a assimilar, deste modo,
todo o metabolismo social. Enfim, a racionalidade capitalista tende a tornar-se,
cada vez mais, racionalidade tecnológica. A racionalidade instrumental do capital
torna-se racionalidade tecnológica que permeia não apenas a produção de valor,
base originário desta implicação estranhada, mas a totalidade social.
O estranhamento do sistema de máquinas capitalista decorre não apenas da
separação entre trabalho vivo e instrumento de trabalho (que se tornou ferramen-
ta complexa ou sistema de máquina), mas do fato de que o sistema de máquinas
tendem a negar, inclusive no plano material, o trabalho vivo. Por isso, é o domínio
do trabalho morto sobre o trabalho vivo, que perde não apenas sua posição obje-
tiva, de termo inicial ou ativo do trabalho, mas posição subjetiva: o trabalho se
tornou mera ação mecânica; e a ciência se colocou fora da subjetividade negada de
quem trabalha. Na verdade, a ciência foi pensada e constituída em outro local: nos
grandes laboratórios das corporações industriais (é a separação entre execução e
concepção, concebida pela Organização Científica do Trabalho, de F.W. Taylor); e
no processo de trabalho, a ciência encontra-se presente não em quem trabalha,
mas dentro de uma coisa – objetivada na máquina ou no sistema de máquina.
A negação processual da posição - objetiva e subjetiva - do trabalho vivo cons-
titui o processo de modernização do capital, ou seja, marca o desenvolvimento
da modernidade do capital propriamente dita (consideradas como modernidade-
-máquina). A civilização do capital torna-se, deste modo, civilização da técnica,
ou melhor, civilização da tecnologia como forma técnica estranhada, pois o conhe-
cimento - e, portanto, o controle social do objeto técnico - não está mais em quem
trabalha, mas fora dele. A exterioridade estranhada não é, diga-se de passagem, o
objeto técnico propriamente dito, mas sim a relação social capitalista, o fetiche do
capital. Diante de quem trabalha, encontra-se incorporado na coisa ou no sistema
de máquina, relações sociais de poder e dominação de classe. Por isso, a ciência
e sua extensão estranhada, a tecnologia, tende a dominar o trabalho vivo, inver-
tendo, pela primeira vez na história da civilização, não apenas a relação entre o
homem e seu instrumento de trabalho, mas entre o homem e o produto/processo
de sua atividade produtiva (auto-alienação).

38
O mundo do trabalho através do cinema

Com o sistema de máquina, o conhecimento e a atividade consciente não


estão mais no sujeito-que-trabalha, mas na atividade complexa do instrumento
como ferramenta utilizado a serviço da valorização do capital (as novas máqui-
nas informacionais em rede alteram de forma qualitativamente nova a dimensão
de mecanicidade da atividade da ferramenta). Mesmo que o sujeito-que-trabalha
seja portador de traços residuais de saber-fazer tácito, intrínseco à natureza do
trabalho vivo persistente, o processo de valorização implica em contínua expro-
priação/apropriação pelo sistema de máquinas do savoir-faire do sujeito-que-tra-
balha (com as novas tecnologias informacionais em rede a alienação/fetichização
do trabalho vivo assume dimensões candentes) . Como disse Marx: “Dar à pro-
dução, caráter cientifico, é a tendência do capital”. E diríamos mais, caráter cien-
tífico e tecnológico, pois a racionalidade da Modernidade-Máquina é, cada vez, a
racionalidade tecnológica. Por isso o capital desenvolve à exaustão, a ciência, pois
é ela que permite o desenvolvimento tecnológico capaz de conquistar o mundo;
uma ciência e, portanto, uma tecnologia que nada mais tem a ver com o trabalho.
Importante observar que, o que se contrapõe ao trabalho vivo não é a máqui-
na em geral, mas a máquina que é colocada no interior do processo de produção
capitalista (o sistema de máquinas). Neste caso, inscreve-se mais um traço da con-
tradição viva do capital: o desenvolvimento da máquina por meio da ciência e da
tecnologia, contém em-si, possibilidades concretas de emancipação do homem.
Mas na medida em que tal processo social ocorre no interior de relações capita-
listas de produção, ele se interverte, aprofundando a subsunção do trabalho vivo
às forças sociais estranhadas. As máquinas capitalistas contêm, impressas, em si
e para si, signos da dominação do capital. O próprio corpo do instrumento, sua
própria estrutura material tem a marca da subsunção do trabalho vivo ao capital.
Por isso, a máquina a ser utilizada no comunismo é uma máquina diversa daquela
que é utilizada no modo capitalista. As máquinas que conhecemos são produto
de uma tecnologia (e também de uma ciência) que foi toda pensada sobre a base
do pressuposto do trabalho humano estranhado. A emancipação envolve, deste
modo, alterar o próprio processo de conhecimento e de realização técnica.

39
CAPÍTULO 1

A guerra do fogo

Jean-Jacques Annoud
(1981)

O filme “A guerra do fogo” ou La Guerre du Feu (título original em francês) de


Jean-Jacques Annoud, é uma narrativa ficcional sobre o alvorecer da espécie
humana. O filme é baseado no romance do escritor de ficção-científica, J.H. Rosny
Aîné, pseudônimo de Joseph Henri Honoré Boex (17 de fevereiro de 1856 – 11
de fevereiro de 1940). O romance La Guerre du Feu foi publicado em 1909. Ele se
inicia há cerca de 80 mil anos, na era cenozóica, período quaternário, época pré-
-histórica entre o Pleistoceno superior (150 mil anos) e o heloceno (10 mil anos),
provavelmente no continente africano. Naquela época, havia grande pluviosidade
e vegetação rasteira nas savanas africanas. Muitas espécies de animais foram ex-
tintas naquela época devido a mudanças climáticas e divisões tectônicas.
No filme de Jean-Jacques Annoud, percebemos, no cenário inóspito da pré-
-história, quando as barreiras naturais se impunham de forma vigorosa, a plena
atuação da “seleção natural”, com os mais fortes sobrevivendo e os mais fracos
perecendo. O filme “A Guerra do Fogo” foi produzido em 1981, época de disse-
minação primordial das ideias neoliberais que impõem às sociedades humanas
tardias, a “seleção natural” do mercado. A idéia básica da ideologia neoliberal que
incorpora, no plano da política e economia, o “darwinismo social”, é a seguinte:
“Quer gostemos ou não, o mundo é uma selva capitalista. Na sociedade do sé-
culo XXI, só vencerá quem souber ser competitivo. Os melhores sobreviverão, os
fracassados ficarão para trás. Por isso os governos não devem gastar dinheiro com
assistência social nem devem melhorar a distribuição de renda. Afinal, tirar dos
ricos para dar aos pobres não é premiar os fracassados e punir os competentes?”.
É importante salientar que o darwinismo social é a teoria da evolução das
espécies aplicada à sociedade humana que surgiu após a Revolução Industrial
no século XIX, sendo adotado depois por ideólogos liberais-conservadores no sé-
culo XX. O dito darwinismo social sugere que os pobres, vítimas do processo de

41
Trabalho e Cinema • Volume 4

desenvolvimento capitalista industrial, são indivíduos menos aptos e, portanto,


tendem a desaparecer. Entretanto, deve-se salientar que “luta pela sobrevivên-
cia” ou “direito do mais forte” jamais foram palavras de Charles Darwin, mas sim
conceitos manipulados por outros. Não foi Charles Darwin, mas sim o sociólogo
inglês Herbert Spencer (1820-1903), que aplicou as leis da evolução à sociedade
humana. É dele que parte a noção de survival of the fittest – sobrevivência do mais
bem adaptado. Deste modo, o darwinismo social deveria se chamar – se é que
precisamos fazê-lo – de ‘spencerismo’, tendo em vista que não tem absolutamente
nada a ver com Darwin. Spencer concluiu que algumas pessoas foram destinados
para a riqueza e o poder, porque eles eram naturalmente mais forte. A pobreza
sempre existirá, Spencer concluiu, porque os membros mais fortes da sociedade,
triunfariam sobre os membros mais fracos. Suas conclusões o levaram a defender
a primazia do indivíduo perante a sociedade e o Estado, e a natureza como fonte
da verdade, incluindo a verdade moral (os ideólogos neoliberais diriam: “onde lê-
-se “natureza” deve-se ler “mercado”).
O darwinismo social (ou spencerismo social), contido na ética neoliberal, é
uma ideologia historicamente reacionária, tendo em vista que o desenvolvimen-
to do processo civilizatório hoje, permite que as sociedades humanas consigam
ir além da escassez originária, em virtude do alto nível de desenvolvimento das
forças produtivas sociais do trabalho; o que não era o caso, por exemplo, das so-
ciedades primitivas durante a pré-história da espécie humana, subsumidas à Na-
tureza inculta, potência todo-poderosa, diante de um ser social ainda limitado
no desenvolvimento das suas forças produtivas. Deste modo, o limitado recuo
das barreiras naturais, constituiu na pré-história, a escassez como condição da
hominidade primordial. O que explica a luta permanente dos hominídeos pela
sobrevivência no estado natural da Terra primitiva.
Adotamos como tema da análise crítica do filme “A guerra do fogo”, de Jean-
-Jacques Annoud, a discussão sobre o “processo de hominização/humanização”.
Consideramos importante fazer a distinção entre hominização e humanização.
A primeira - hominização - é o processo evolutivo que conduziu, a partir de um
primata ainda desconhecido, à forma atual do homem, quer física, quer intelec-
tualmente; isto é, a hominização é o processo evolutivo de mudanças essenciais
na organização física do homem que permitiu – no caso da espécie sapiens – se
destacar não apenas dos animais, mas também das demais espécies de hominíde-
os, tendo em vista suas vantagens físico-morfológicas e culturais, Por exemplo, o
tamanho do cérebro permitiu ao desenvolvimento do homem obedecer às leis só-

42
O mundo do trabalho através do cinema

cio-históricas e acelerar o processo de evolução cultural da humanidade (o córtex


do cérebro humano, com os seus 15 bilhões de células nervosas, se tornou, num
grau bem mais elevado que nos animais superiores, um órgão capaz de formar
órgãos funcionais). A hominização, isto é, a evolução física da população humana
terminou há cerca de 20 mil anos. A partir desta altura, começa o processo de
humanização, identificado com a evolução das ideias e das técnicas humanas, isto
é, a evolução cultural da espécie humana. Deste modo, como observa Leontiev:
“A hominização, enquanto mudanças essenciais na organização física do homem,
termina com o surgimento da história social da humanidade. A partir daí, começa
o processo de humanização”.
No começo do filme, observamos a cena da horda de neanderthais recolhidos
numa caverna sob o abrigo do fogo. Os Homo neanderthalensis foram uma espécie
de hominídeos que viviam em cavernas ou abrigos rochosos e que usavam fogo
para se aquecer, iluminar e cozinhar. Para os neanderthais, a caça e coleta eram
fontes de sua sobrevivência. O Homo neanderthalensis, que alguns consideravam
Homo sapiens neanderthalensis, foi uma espécie extinta do gênero Homo que ha-
bitou a Europa e partes do oeste da Ásia, de cerca de 300 000 anos até aproxima-
damente 29 000 anos atrás (Paleolítico Médio e Paleolítico Inferior, no Pleisto-
ceno), tendo coexistido com os Homo sapiens sapiens ou apenas Homo sapiens.
O termo “homem-de-neandertal” foi criado em 1863 pelo anatomista irlandês
William King. Na verdade, por muitos anos, houve um vigoroso debate cientí-
fico quanto à sua classificação: Homo neanderthalensis ou Homo sapiens nean-
derthalensis. Alguns cientistas colocavam os neanderthais como uma subespécie
do Homo sapiens, ou seja, eles pertenciam a linhagem humana, passando, deste
modo, a ser uma segunda raça de humanos, ao lado do Homo sapiens sapiens.
Deste modo, eram denominados Homo sapiens neanderthalensis. Era aceito que
tanto os neanderthais como o Homo sapiens, evoluíram de um ancestral comum,
com a classificação dos neanderthais dependendo de quando, na linha do tempo,
ocorreu essa separação. Entretanto, recentes evidências de estudos com DNA mi-
tocondrial indicam que os neanderthais não pertenceram à linhagem humana.
A teoria de que os neanderthais careciam de uma linguagem complexa foi di-
fundida até 1983, quando um osso hióide de neanderthal foi encontrado na caver-
na Kebara em Israel. O osso encontrado é praticamente idêntico ao dos humanos
modernos (o hióide é um pequeno osso que segura a raiz da língua no lugar, um
requisito para a fala humana e, dessa forma, sua presença nos neanderthais impli-
ca alguma habilidade para a fala). Muitos acreditam que, mesmo sem a evidência

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Trabalho e Cinema • Volume 4

do osso hióide, é óbvio que ferramentas avançadas como as da cultura musterien-


se, atribuídas aos neanderthais, não poderiam ser desenvolvidas sem habilidades
cognitivas, incluindo algum tipo de linguagem falada. Assim, pesquisadores iden-
tificaram genes extraídos de fósseis que comprovariam que os neanderthais pos-
suíam capacidade de falar. A base da língua do neanderthal era posicionada mais
acima na garganta, deixando a boca mais cheia. Como resultado, é bem provável
que a fala dos neanderthais tenha sido lenta, compassada e nasalizada.
Os sítios arqueológicos compostos por jazidas com ocupações dos Homo
neanderthalensis do Paleolítico Médio, altura em que os neanderthais terão atin-
gido o auge do seu domínio, mostram um conjunto de ferramentas menores e
menos flexíveis, em comparação com os sítios do Paleolítico Superior, ocupados
pelos Homo sapiens que os substituíram. Esta cultura técnica atribuída aos nean-
derthais, designada como cultura musteriense, consistia na produção de ferra-
mentas de pedra lascada produzidas por meio do desbastamento em leque de um
bloco lítico inicial (ou núcleo), de que se formavam lascas a partir das quais se
encadeava a produção de instrumentos diversos, como machados manuais para
tarefas específicas, bifaces, raspadeiras, furadores e lanças. Muitas dessas ferra-
mentas eram bastante afiadas. Devido aos indicios da cultura musteriense, alguns
autores lhe atribuem a origem de muitas das preocupações estéticas e espirituais
do homem moderno, como se poderá entender a partir das características das
suas sepulturas. No Paleolítico Superior, os Homo neanderthalensis terão desen-
volvido uma cultura material mais evoluída a nível da tecnologia de talhe da pe-
dra, designada de cultura chatelperronense, caracterizada pelo desdobramento do
núcleo lítico em peças menores e mais manuseáveis. Há pequenas evidências de
que os neanderthais usavam chifres, conchas e outros materiais ósseos para fazer
ferramentas: sua indústria óssea era relativamente simples, ainda que inclua, tar-
diamente, objectos de adorno em osso e pedra que alguns autores referem tratar-
se de imitação das técnicas do Homo sapiens, enquanto que outros autores lhe
atribuem uma autoria autónoma.
Mesmo tendo armas, o Homo neanderthalensis não as arremessava. Possuíam
lanças que consistiam de grandes eixos de madeira com uma seta em uma das
extremidades firmemente presa, mas as lanças fabricadas para serem lançadas fo-
ram usadas primeiramente pelo Homo sapiens (o que contesta, por exemplo, uma
das cenas finais do filme em que os neanderthais Noah, Gaw e Amoukar derro-
tam seus rivais, arremessando lanças contra eles. Talvez Noah, Gaw e Amoukar
tenham aprendido a técnica do arremesso de lança com a jovem Homo sapiens Ika

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O mundo do trabalho através do cinema

– isto é, além de terem aprendido o cultivo do fogo e a habilidade do riso, a jovem


Ika os ensinou a arremesarem lanças contra neanderthais rivais).
Portanto, os neanderthais realizavam um conjunto sofisticado de tarefas nor-
malmente associados apenas aos Homo sapiens, como a construção de abrigos
complexos, o controle do fogo e a remoção da pele dos animais. Particularmente
intrigante é um fêmur de urso encontrado em uma escavação com quatro furos
numa escala diatônica, feitos deliberadamente nele. Essa flauta pré-histórica foi
encontrada na Eslovênia em 1995, próximo a uma fogueira do período musterien-
se, usada pelos neanderthais, mas seu significado ainda é controverso.
A extinção do Homo neanderthalensis ainda não está esclarecida, mas persis-
tem várias hipóteses, todas elas baseando-se no pressuposto de que houve com-
petição com o Homo sapiens, que se mostrou mais adaptado, tendo em vista a
sobrevivência da espécie. Alguns autores consideram que o fato dos neanderthais
não terem evoluído durante cerca de 200 000 anos em termos de cultura material,
faz supor uma inteligência prática baixa, apesar de o seu cérebro ter sido maior
que o do homem moderno (de fato, nada se sabe quanto à organização fisiológica
e neurológica dos neanderthais).
Outra hipótese centra-se na baixa mobilidade das suas populações, atestada
pela reduzida área geográfica onde se estabeleceram, bem como pela sua consti-
tuição óssea de secção circular, adaptada ao esforço, mas pouco adequada a uma
locomoção ágil, como acontece no caso do Homo sapiens com ossos de secção
oval. Esta reduzida mobilidade terá mantido as populações num certo estado de
inércia devido à falta de estímulos proporcionada por um nicho ecológico que
garantia as necessidades básicas de sobrevivência, sem grandes alterações climá-
ticas. Outros autores se referem à falta de variedade genética, que teria decorrido
da consanguinidade, devido ao crescente isolamento social e comunitário, talvez
como reação a contatos hostis com o homem moderno. Além disso, alguns auto-
res sustentam a hipótese de o tempo de gestação ser maior no caso dos neander-
thais (talvez 12 meses em vez dos 9 no caso do Homo sapiens), o que explicaria a
maior dificuldade em reproduzir-se.
O cientista Colin Tudge propõe outra hipótese: o Homo sapiens estaria mais
adaptado devido a um comportamento prospectivo em relação à gestão dos recur-
sos naturais, que este autor designa como proto-agricultura, isto é, eles teriam um
comportamento recoletor sustentável que incluiria a caça apoiada na manutenção
das populações que caçava e na recoleção de produtos vegetais como complemen-
to alimentar, para não ficar tão dependente da caça. Os neanderthais teriam sido,

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Trabalho e Cinema • Volume 4

segundo esta hipótese, um caçador puro que teria depredado os seus recursos, o
que teria implicado na sua extinção.
Finalmente, outra hipótese diz que a extinção dos neanderthais pode ter sido
causada por humanos. Em escavações no fim da década de 1950 na região onde
hoje é o Iraque, cientistas americanos encontraram quatro esqueletos de nean-
derthais. Eles haviam sido sepultados na caverna entre 50 e 75 mil anos atrás.
Um desses esqueletos, conhecido como Shanidar 3, foi morto por um ferimento
no peito, causado, ou por um acidente, ou por outro neanderthal. Entretanto, no-
vas pesquisas publicadas no Journal of Human Evolution em 2009, sugerem que
o ferimento foi causado por um Homo sapiens, um humano como nós. A nova
hipótese, levantada por Steve Churchill, professor de antropologia evolutiva na
Universidade de Duke, nos Estados Unidos, que pesquisou o esqueleto de Shani-
dar 3 utilizando técnicas modernas de investigação criminal, concluiu que o ne-
andertal foi atingido por uma lança de arremesso, uma arma que, naquela época,
apenas os humanos haviam desenvolvido enquanto adaptavam suas técnicas de
caça às planícies africanas (os neanderthais caçavam em florestas e usavam lanças
de combate corpo a corpo). No começo de 2009, Fernando Rozzi, um antropólogo
do Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris, descobriu o maxilar
de um neanderthal com cortes iguais aos que humanos faziam em animais na
pré-história. Segundo Rozzi, os humanos cortaram e comeram a língua do nean-
derthal, e usaram sues dentes para fazer um colar. Entretanto, os pesquisadores
acreditam que o contato entre humanos e neanderthais foi diferente de região
para região, e que foram diversos os fatores que os levaram à extinção, não apenas
a violência humana. Shanidar 3 teve o azar de se encontrar com humanos dados
ao confronto, mais do que à cooperação.

Diz o letreiro de abertura do filme “A Guerra do Fogo”:


“Há 80.000 anos atrás, a sobrevivência do homem numa terra desconhecida
dependia da posse do fogo. Para aqueles homens primitivos, fogo era um objeto de
grande mistério, desde que ninguém havia dominado sua criação. Roubavam o fogo
da natureza e o mantinham vivo, o resguardavam do vento e da chuva e o prote-
giam de tribos rivais. O fogo era um símbolo de poder e um meio de sobrevivência.
A tribo que possuía o fogo, possuía a vida”
O romance “A Guerra do Fogo”, de J.H. Rosny Aínê (17 de fevereiro de 1856
– 11 de fevereiro de 1940), começa com o capítulo intitulado “A morte do fogo”.
O fogo representava para a tribo de hominídeos, vida e capacidade de transcen-

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O mundo do trabalho através do cinema

dência diante da natureza inóspita. Diz ele: “A sua face poderosa afugentava o leão
negro e o leão amarelo, o urso das cavernas e o urso cinzento, o mamute, o tigre e
o leopardo e, com os seus dentes vermelhos, protegia o homem contra a vastidão
do mundo”. A extinção do fogo era para eles como uma verdadeira catástrofe.
Na cena de abertura do filme, temos o panorama de um vale inóspito com
uma pequena chama distante na escuridão da noite pré-histórica. É o sinal do
fogo cultivado pela tribo de hominídeos neanderthais recolhidos numa caverna.
O fogo é símbolo da “proteção social”. A fogueira afugenta animais selvagens que
rondam a pequena tribo de neanderthais. Um dos hominídeos faz a vigília notur-
na do fogo. Na verdade, a horda primordial de neanderthais possui uma divisão
social do trabalho onde a função de “guardião do fogo” é atribuída a um sacerdote
que cultivava e preservava o fogo de extinção. Eles ainda não sabiam produzir o
fogo. Pelo contrário, o fogo é recolhido da natureza e preservado como dádiva
natural. Em torno da pequena chama acessa, concentrava-se o núcleo de líderes
tribais responsáveis pela sobrevivência da horda primitiva.
No interior da caverna, eles dormem aconchegados uns sobre os outros. É
o aconchego primordial da horda primitiva. Talvez possamos considera-la como
sendo a gemeinschaft (comunidade originária) da tribo pré-histórica. Ao alvore-
cer do dia, a tribo neanderthal desperta para a atividade vital. Em torno da foguei-
ra, os hominídeos cuidam de si e dos outros. É a forma rústica de afetividade pelo
tato, que une aquela tribo pré-histórica. A horda primitiva é um todo orgânico.
Como não existe propriedade privada, a sensibilidade e a percepção de si e dos
outros dos hominídeos é radicalmente diversa daquela que temos hoje. Enfim,
o comunismo primitivo é uma constelação societária incompreensível para nós
hoje, Homo sapiens do século XXI.
Próximo dali, a beira de um riacho, fêmeas neanderthais são pegas pelas cos-
tas por machos sedentos de desejo. Trata-se do desejo primordial, instinto sel-
vagem ainda marcado, em sua constituição, pela pulsão meramente sexual. É a
pulsão de vida que se impõe no alvorecer do dia. É o ato sexual animalesco, mas
radicalmente natural, na medida em que se tratam ainda de animais, meros esbo-
ços de homens (os neanderthais pertencem ao gênero Homo, mas não a espécie
humana). Talvez a “pegada” por trás do Homo neanderthalensis seja a única po-
sição conhecida do ato sexual primitivo, com o macho submetendo a fêmea de
modo vigoroso (mais tarde, veremos que a jovem Homo sapiens irá ensinar aos
neanderthais uma posição inovadora de “ fazer amor”). Além disso, a “pegada”
dos neanderthais não se trata absolutamente de estupro. A “pegada” pelas cos-

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Trabalho e Cinema • Volume 4

tas das fêmeas, o modo primitivo e posição originária do intercurso sexual entre
hominídeos, é quase uma tarefa da reprodução biológica que festeja a pulsão de
vida. Enfim, após as trevas da noite, o alvorecer festeja a vida num mundo natural
prenhe de desafios de morte. O fogo foi recolhido numa pequena chama a ser
preservada para a noite seguinte.
Portanto, num primeiro momento, o filme de Jean-Jacques Annoud apresenta
pequenos aspectos da “vida cotidiana” da horda primitiva cercada pelos perigos
da natureza inóspita: primeiro, a escuridão que oculta animais selvagens como o
lobo pré-histórico e, depois, como veremos a seguir, logo ao alvorecer, o ataque de
hominídeos rivais que atacam a tribo de neanderthais. Deste modo, a narrativa de
“A Guerra do Fogo”, começa com a derrota da tribo neanderthal e a extinção do
fogo, obrigando-os a procurar desesperadamente o fogo como condição indispen-
sável da própria sobrevivência tribal.
O mundo pré-histórico é um mundo de disputas terríveis entre espécies ani-
mais, inclusive entre espécies de hominídeos – tanto lutas ferozes de hominídeos
de espécies diferentes (por exemplo, Homo erectus atacando Homo neandertha-
lensis); quanto lutas entre hominídeos da mesma espécie, como neanderthais ata-
cando neanderthais, disputando recursos escassos. Esta é a vigência do “estado
selvagem” ou “estado natural” onde uma tribo de hominídeos está sempre sob
espreita de outras tribos de hominídeos. Diria Thomas Hobbes: Homo homini lú-
pus, que é uma sentença latina que significa o homem é o lobo do homem. Esta ex-
pressão foi criada por Plauto (254-184) em sua obra “Asinaria”. No texto originário
se diz “Lupus est Homo homini non Homo”. Foi bem mais tarde popularizada por
Thomas Hobbes, filósofo inglês do século XVIII.
Um detalhe: o filme “A Guerra do Fogo” não apresenta Homo sapiens ata-
cando Homo sapiens. O cenário primitivo da guerra é outro. A “concorrência” ou
guerra que observamos no filme, não ocorre no interior de uma tribo primiti-
va (como hoje, com humanos devorando humanos). O que o filme ressalta são
disputas ferozes entre espécies hominídeas (por exemplo, Homo neanderthalen-
sis versus Homo erectus) e espécies pré-hominideas (australopitecos), instigados
pelo instinto de sobrevivência num cenário de escassez radical. Todos eles estão
subordinados ao círculo da natureza. Devido o estado de escassez radical, decor-
rente do baixíssimo nível – ou mesmo, inexistência – de desenvolvimento das for-
ças produtivas sociais do trabalho, disputam-se vorazmente territórios e recursos
naturais indispensáveis para a sobrevivência biológica da espécie. A evolução das
espécies de hominídeos ocorreu num cenário de disputa selvagem onde os mais

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O mundo do trabalho através do cinema

fracos - os que não conseguiram vencer as espécies rivais pela força da guerra e
os que não conseguiram se adaptar às intempéries da natureza - eram extintos.
Portanto, nada comparável à concorrência entre os próprios homens no seio das
sociedades de classes sociais, organizadas em torno da propriedade privada e divi-
são hierárquica do trabalho. O homem como lobo que ataca outro homem, como
constataram Plauto e Hobbes, é o homem burguês, um homem social impregnado
do individualismo possessivo, nada comparável ao lobo. É interessante o que Ge-
org Lukács observou:
“Muitas vezes dizemos que a crueldade humana é “animalesca”, esquecendo
totalmente que animais nunca são cruéis. Sua existência permanece totalmente
submetida ao círculo das necessidades biológicas de sua autopreservação e repro-
dução do gênero. Quando o tigre caça e devora um antílope, faz, no interior da sua
reprodução prescrita pela natureza, o mesmo que a vaca ao pastar. Ele é tão pouco
cruel com o antílope quanto a vaca em relação ao capim. Só quando o homem
primitivo começa a torturar seu prisioneiro de guerra é que surge – como produto
causal do devir humano – a crueldade com todas as suas conseqüências futuras,
cada vez mais refinadas.” (LUKÁCS, Georg. “Prolegomênos para uma Ontologia
do Ser Social”)
Depois de ser derrotada pela tribo de australopitecos, a tribo de neanderthais
é obrigada a migrar. Os pré-hominídeos (australopithecus) que atacaram a tribo
neanderthal, buscavam a posse do fogo, além de seqüestrar mulheres e apropriar-
-se de alimentos. Eles andavam lentamente, parecendo ter dificuldade em andar;
os australopithecus se alimentavam de sobras fáceis de carne, como observamos
na cena em que procuram sobras na fogueira, pois tinham dificuldade na caça.
Assemelhavam-se a macacos, tendo o corpo completamente coberto por pelos,
ao contrário do Homo neandertalis, que se utilizava de peles de outros animais
para aquecer-se. Os australopitecos (Australopithecus, em latim australis “do sul”,
Grego pithekos, “macaco”) constituem um género de diversos hominídeos extin-
tos, bastante próximos aos do género Homo e, dentre eles, o A. afarensis e o A.
africanus são os mais famosos (por exemplo, o A. africanus, viveu há cerca de 2,5
a 2,9 milhões de anos e foi considerado durante muito tempo o ancestral direto do
género Homo (em especial da espécie Homo erectus).
O ataque dos australopitecos quase os dizimou. Derrotados, feridos e desam-
parados os neanderthais fogem do ataque dos lobos selvagens que devoram os ca-
dáveres dos hominídeos mortos e atacam os feridos que exalam cheiro do sangue

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Trabalho e Cinema • Volume 4

fresco.. Os neanderthais fogem para a região do pântanos, fugindo dos animais


selvagens.
Os australopitecos furtaram o fogo. Entretanto, o sacerdote neanderthal con-
seguira guardar uma chama acessa. Mas, no pântano, a pequena chama do fogo
acesso se extingue, para desespero dos neanderthais. A morte do fogo significa
uma catástrofe para a tribo de hominídeos. Por isso, coloca-se a questão: quem
reconquistará o fogo?

Noah, Gaw e Amoukar são destacados pelo ancião da horda primitiva para a
jornada que visa trazer para a tribo, uma nova chama de fogo. Percebe-se uma dis-
puta “política” entre os guerreiros neanderthais. No romance de J.H. Rosny Aîne,
a disputa pelo poder na tribo teria como prêmio a posse da filha do chefe Faouhm:
Gammla. Quem trouxesse o fogo, ficaria com ela. Exclama o chefe: “Entre as filhas
dos homens, haverá alguma que seja melhor? Pode carregar uma corça no seu
ombro, caminhar sem desfalecer desde o sol da manhã até ao sol do crepúsculo,
suportar a fome e a sede, preparar as peles dos animais, atravessar um lago a nado.
Ela dará filhos indestrutíveis”. E disse: “Se Naoh trouxer o Fogo, virá buscá-la, sem
ter de dar machados, conchas ou peles, em troca!”. Mas Aghoo, filho do Auro-
que, o mais peludo dos Oulhamr, quer disputar a posse de Gammla. Ele exclama:
“Aghoo quer conquistar o Fogo”. Entretanto, no filme de Jean-Jacques Annour, a
disputa entre Noah e Aghoo não é em torno de Gammla. Os dois guerreiros ne-
anderthais não disputam a posse da filha do chefe, mas sim, lutam apenas pelo
prestigio e poder que a conquista do fogo daria ao vencedor.
A narrativa fílmica de “A Guerra do Fogo”, como um “road movie” pré-histó-
rico, detém-se na longa jornada do trio de guerreiros neanderthais - Noah, Gaw e
Amoukar - em busca do fogo perdido. No trajeto de precariedade, eles enfrentam
os perigos da natureza primitiva inóspita, como animais ferozes e tribos de homi-
nídeos hostis. Apenas no final do filme, Noah Noah, Gaw e Amoukar enfrentarão,
no duelo final, Aghoo e seus parceiros rivais.
Num primeiro momento, Noah, Gaw e Amoukar, avançam por uma imensa
planície. De repente, sentem cheiro da aproximação de feras primitivas. O odor
de leões selvagens despertou o senso de perigo deles. Os guerreiros neanderthais
possuíam um senso olfativo apurado. Talvez seja um traço de aprimoramento dos
sentidos ou das habilidades sensoriais desenvolvidos pelos guerreiros – caçadores
e coletores - visando a auto-preservação da espécie num mundo natural hostil.
Como alguns animais superiores, os hominídeos utilizam-se dos sentidos – no

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O mundo do trabalho através do cinema

caso, o olfato – para “mapear” o território como espaço de luta. Diríamos que é
uma “técnica sensorial” primitiva que os alertava sobre a possível aproximação de
animais selvagens perigosos. O olfato e a audição dos hominídeos, como “radares”
orgânico, eram capazes de alertar os hominídeos sobre riscos iminentes. O habitat
primitivo dos hominídeos – como salientamos acima - era um mundo natural de
riscos terríveis, tendo em vista o baixíssimo desenvolvimento das forças produti-
vas sociais do trabalho. O que se impunha era a “seleção natural” sob a vigência
da sobrevivência dos mais fortes. Portanto, tendo em vista a fragilidade dos ho-
minídeos, colocava-se a necessidade do desenvolvimento de técnicas, como, por
exemplo, nesse caso, a utilização de “técnica orgânica”, isto é, habilidades sen-
soriais e perceptivas desenvolvidas socialmente como meio de sobrevivência da
espécie. Ao lado do desenvolvimento das “técnicas orgânicas” como habilidades
sensório-perceptivas ou habilidades físico-motoras desenvolvidas socialmente no
curso da evolução das espécies, o homem como animal que se fez homem através
do trabalho, desenvolveu também técnicas inorgânicas, ou seja, técnicas mate-
riais (instrumentos) e técnicas imateriais (os signos e a linguagem), capazes de
habilitá-lo a enfrentar com sucesso, o mundo natural de riscos da Terra primitiva.
A “técnica” é uma categoria sócio-ontológica que não está na natureza, mas
sim, no ser social; o que significa que, a rigor, o que designamos como “técnica
orgânica” não é a técnica propriamente dita, embora represente um meio orgâ-
nico desenvolvido socialmente, utilizado no processo de luta pela sobrevivência
na selva primitiva. Apenas o animal homem é capaz de desenvolver técnicas, isto
é, meios utilizados para a produção e reprodução da vida social. O surgimento (e
desenvolvimento) da técnica como meio (orgânico e inorgânico) entre o homem e
a natureza, pressupõe, mesmo que de modo rudimentar, um modo de práxis so-
cial, capaz de dar sentido à ação dos hominídeos ou homens em processo de devir
humano. É o que Noah, Gaw e Amoukar demonstraram no decorrer do filme: a
capacidade de enfrentar os riscos iminentes da natureza hostil. Por exemplo, ao
perceberem, pelo olfato, a aproximação dos leões primitivos, animais ferozes su-
periores a eles, correm em disparada pela planície e sobem numa árvore. A fuga
veloz e a habilidade em subir em árvores, habilidade que leões não têm, os salvou
de serem devorados. Noah, Gaw e Amoukar ficam horas (e talvez dias) recolhidos
no alto da árvore no meio da planície sob a espreita dos leões selvagens. Comba-
tem a fome, alimentando-se dos ovos de pássaros que recolhem nos ninhos das
árvores. É uma luta surda vencida pelo cansaço da fera primitiva. Esta é a pri-
meira batalha vencida por Noah, Gaw e Amoukar: conseguiram vencer o inimigo

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Trabalho e Cinema • Volume 4

selvagem pelo cansaço, utilizando-se meramente de suas habilidades sensório-


-perceptivas e físico-motoras.

Trabalho (pôr teleológico)

  Técnicas (meios)
 

Homem – Natureza

Orgânicas Inorgânicas

(habilidades fisico-motoras, Materiais Imateriais


sensório-perceptivas e (ferramentas, artefa- (recursos lingüísticos e
psico-comportamentais) tos, ferramentas, etc simbólicos)

Mais tarde, Noah, Gaw e Amoukar observam, de longe, indícios de fumaça.


Onde há fumaça, há fogo – diz o senso comum primitivo. Descobrem que um
pequeno grupo de hominídeos (H. erectus) têm a posse do fogo. Acompanham
a horda primitiva de longe, calculando o momento certo para se apossarem do
fogo alheio. O Homo erectus aparece associado à pedra e armas, caçava e mata-
va animais de grande porte (mamutes, rinocerontes, búfalos etc.) e pode ter-se
valido de tochas de fogo e armadilhas, para caçá-los. Eles apresentam uma ca-
racterística distinta do Australopitecus e do Homo neanderthalensis: são canibais,
isto é, alimentam-se de carne humana. Talvez por falta de carne, os Homo erectus
adaptaram seu gosto para sobreviverem. No encontro com o grupo de Homo erec-
tus, Noah, Gaw e Amoukar percebem que eles carregam consigo, como presas,
algumas espécimes de H. sapiens, que devem servir de alimento para eles.
Noah, Gaw e Amoukar utilizam – mais uma vez – um ardil inteligente para
distraírem a pequena tribo de Homo erectus e roubar-lhes o fogo. Noah luta contra
eles, fere-se, mas acaba derrotando-os. Ao mesmo tempo, a fêmea humana conse-
gue libertar-se. Após conseguirem roubar o fogo dos Homo erectus, Noah, Gaw e

52
O mundo do trabalho através do cinema

Amoukar seguem viagem, sendo acompanhados à distância, pela fêmea humana


libertada. É a presença de Ika que alterará a dinâmica narrativa do filme. A jovem
humana cativará, aos poucos, Noah. Primeiro, Ika cuida dos ferimentos dele, de-
monstrando possuir a técnica das ervas medicinais. Ela conhece as propriedades
medicinais das plantas. A partir daí, ela se integra no grupo neanderthal.
Como iremos verificar, os Homo sapiens primitivos se destacavam das demais
tribos de hominídeos (Homo neanderthalensis e Homo erectus). Eles possuíam
tecnologia material avançada (como a cerâmica) e demonstram ser intelectual-
mente criativos. Enquanto os hominídeos se comunicavam basicamente por ges-
tos, os H. sapiens possuíam o poder da linguagem, manuseavam ervas medicinais,
fabricavam o fogo, e possuíam ritos de acasalamento onde as mulheres gordas
eram responsáveis pela procriação. Os humanos construíam também seu próprio
habitat.
O H. sapiens foi o pioneiro nas artes, iniciando com as pinturas rupestres,
estátuas, conchas trabalhadas, trabalhos em ocre, pingentes e estatuetas. Esse
pioneirismo sugere que o H. sapiens teve uma maior capacidade de pensamento
abstrato, simbólico. Com base na anatomia da parte superior da coluna vertebral
e estruturas associadas, também é altamente provável que o H. sapiens tenho sido
a primeira espécie de hominídeo a ser capaz de utilizar a linguagem falada. Esses
comportamentos tem início na África há cerca de 150 mil anos atrás, evoluindo
lentamente com o passar dos anos, já na Europa eles aparecem rapidamente, su-
gerindo que ao chegarem lá, já os possuíam.
O Homo sapiens cujo nome Homo significa “humano”; e sapiens que significa
“saber” - pois “eles já sabiam” - surgiu há aproximadamente 200 a 150 mil anos
atrás, no leste da África, como resultado de adaptações do Homo heidelbergensis
ao meio ambiente em transição em que viviam. Desde então o Homo sapiens veio
evoluindo e espalhando-se por toda África, substituíndo as populações de H. hei-
delbergensis. As principais evoluções presentes no Homo sapiens estão no crânio,
sendo um dos maiores que já existiu, com capacidade média aproximada de 1300
centímetros cúbicos, que mesmo sendo pouco menor do que os dos Homo nean-
derthalensis, eram maior em relação ao tamanho do corpo. O crânio do H. sapiens
em si é muito mais alto do que as outras espécies de hominídeos; as laterais do
crânio são quase verticais, porém não é reforçado como nas outras espécies; estão
ausentes as grandes arcadas superciliares e proeminências ósseas vistas em H.
neanderthalensis e H. heidelbergensis.

53
Trabalho e Cinema • Volume 4

Os primeiros H. sapiens mantinham uma aparência bastante robusta, sendo


as arcadas superciliares de H. sapiens primitivos bastante grandes, mas diferiam
na forma dos de H. neanderthalensis e H. heidelbergensis. A face ficava totalmente
abaixo da caixa craniana. Os dentes e as mandíbulas eram menores do que as das
espécies anteriores de hominídeos e a mandíbula tinha uma proeminência que
nunca foi vista em qualquer outra espécie de hominídeo, o queixo. O esqueleto é
levemente constituído em relação à espécies anteriores e não tem as adaptações a
ambientes frios encontrados em H. neanderthalensis, pois evoluiu em ambientes
tropicais africanos antes de migrar para o resto do globo. Nestes ambientes tropi-
cais, as proporções do corpo alto e magro eram favoráveis porque maximizava a
área superfícial, melhorando a dissipação de calor, com a mesma massa corporal.
As características mais intrigantes encontrados em H. sapiens eram os traços
comportamentais. Essas características representam estratégias que não são vis-
tas em qualquer outra espécie de hominídeo; entre elas estão, por exemplo, estra-
tégias de caça que lhes permitia caçar animais de pequeno, médio e grande porte,
bem como peixes e mariscos. As ferramentas que eram confeccionadas pelo H.
sapiens refletem essa variedade; entre elas então inclusas lâminas (um artefato
raramente visto em conjuntos líticos associados com o H. neanderthalensis), fer-
ramentas feitas de ossos e ferramentas compostas por outras ferramentas.
Aos poucos, a jovem H. sapiens Ika tenta se comunicar com os neanderthais.
Ela demonstra habilidade em integrar-se com os H. neanderthalensis. Enfim, o
H. sapiens é um zoon politikon, isto é, um animal político. É o que Ika demonstra
neste primeiro contato/interação com Noah, Gaw e Amoukar. A jovem humana
demonstra também capacidade de saber-fazer. Por exemplo, ao produzir o fogo e
ensinar os neanderthais a utilizarem a lança à distancia, ela transmite para eles,
habilidades técnicas da espécie H. sapiens. Além disso, Ika transmitiu novas ha-
bilidades comportamentais para os neanderthais, como o riso diante de situações
extraordinárias e a posição sexual frontal que implica noutro modo de afetividade
durante o coito. Enfim, a jovem Ika, que poderia chamar-se Eva, foi a mulher que
ensinou os machos neanderthais, o segredo do conhecimento da vida, tal como
Eva na mitologia hebraica foi aquela mulher que fez o homem Adão, comer do
fruto da árvore do conhecimento que está no meio do jardim do Éden.
No percurso de volta, Noah, Gaw, Amoukar e Ika encontram-se na planície
com a tribo de H. erectus, dispostos a vingar-se dos ladrões do fogo. Entretanto,
mais uma vez, utilizando-se de um ardil inteligente, Noah consegue cativar o “lí-
der” de uma manada de mastodontes, oferecendo-lhe alimento. A aproximação

54
O mundo do trabalho através do cinema

de Noah do “líder” dos mastodontes, assustou os guerreiros rivais. Foi um ato de


coragem de Noah que soube calcular as alternativas, riscos e perigos da situação-
-limite em que se encontravam. A atitude de Noah representou também um ato
de comunhão com a natureza hostil. Ele soube domar e cativar o animal selvagem
com notável habilidade comportamental. Mais uma vez, demonstrou ousadia em
inovar diante das situações de risco e perigo.
Esta foi a terceira vez que os neanderthais utilizaram o que denominamos
de “técnicas orgânicas”, isto é, habilidades físico-motoras, habilidades sensório-
-perceptivas ou ainda, habilidades comportamentais, visando contornar situações
de perigo da natureza inóspita. De acordo com nossa acepção, “técnicas orgâni-
cas” são meios de intervenção na natureza, utilizando meramente capacidades do
organismo vivo desenvolvidas socialmente. Eles não se utilizam de ferramentas,
mas tão-somente de habilidades psico-fisicas de natureza comportamental. Por
exemplo, Noah, Gaw e Amoukar conseguiram sentir a aproximação de leões sel-
vagens e fugiram; depois, mais tarde, com inteligência, conseguiram distrair os H.
erectus para roubar-lhes o fogo; e, neste caso, com ousadia e coragem, cativaram
os mastodontes, oferecendo-lhes alimento.
Numa cena do cotidiano primitivo, enquanto Noah, Gaw, Amoukar e Ika des-
cansavam da longa caminhada, sentados à sombra de uma árvore na encosta de
uma montanha, uma pequena pedra cai na cabeça de Gaw. A jovem Ika esponta-
neamente, ri da situação inaudita. O riso é uma expressão facial decorrente da fle-
xão dos músculos das extremidades da boca, sendo uma parte do comportamento
humano regulado pelo cérebro. É um traço humano característico que provê um
contexto emocional para a comunicação. A queda da pedra na cabeça de Gaw
reconhecido pela jovem Ika como uma situação de humor, provocou nela um riso
involuntário. Apesar do riso ser uma reação biológica, o humor não deixa de ser
uma expressão cultural adquirida pela espécie humana. Talvez os neanderthais
não tenham conhecido o humor, embora tenham tido a capacidade biológica para
expressar o riso – é o que sugere o filme. Nesse caso, o jovem Ika ensinou-os a
terem senso de humor diante das intempéries da vida cotidiana.
A cena do riso de Ika demonstra uma atitude cultural lastreada numa ca-
pacidade biológica; uma atitude caracteristicamente humana ou, mais uma vez,
“técnica” espontânea que cria um contexto emocional para a comunicação. É um
elemento da interação social que caracteriza a espécie humana.
O filósofo francês Henri Bérgson dedicou um livro ao riso. Diz ele em seu
livro “O Riso”:

55
Trabalho e Cinema • Volume 4

“Não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano. Uma paisa-


gem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; nunca será risível.
Rimos de um animal, mas por termos surpreendido nele uma atitude humana ou
uma expressão humana. Rimos de um chapéu; mas então não estamos gracejando
com o pedaço de feltro ou de palha, mas com a forma que os homens lhe deram,
com o capricho humano que lhe serviu de molde. Como um fato tão importante,
em sua simplicidade, não chamou mais a atenção dos filósofos? Vários definiram
o homem como “um animal que sabe rir”. Poderiam também tê-lo definido como
um animal que faz rir, pois, se algum outro animal ou um objeto inanimado con-
segue fazer rir, é devido a uma semelhança com o homem, à marca que o homem
lhe imprime ou ao uso que o homem lhe dá.”
Ao dizer que “não há comicidade fora daquilo que é propriamente huma-
no”, Henri Bérgson salienta o caráter cultural – não meramente biológico – da
expressão cômica. Ao rir, Ika reafirmava uma dimensão radicalmente humana
que é dar sentido às coisas da natureza. Nesse caso, ela expressa um sentido de
humor. Coisas sublimes ou insignificantes podem adquirir um sentido de humor.
Deste modo, pode-se considerar o riso, um pôr teleológico secundário – como diria
Lukács - no sentido de expressar a ressignificação pelo sujeito, de uma situação
cotidiana. Por outro lado, Ika não apenas riu, mas fez Noah, Gaw e Amoukar ri-
rem. Deste modo, o homem é, não apenas um animal que ri, mas um animal que
faz rir, o que demonstra o valor comunicacional – no sentido de ativar a interação
social – do riso. Enfim, a jovem H. sapiens ensinou Noah, Gaw e Amoukar a rirem
inclusive em situações de dor e sofrimento. Enquanto para a jovem Ika, o riso foi
uma reação biológica involuntária a situações apreendidas culturalmente como
situações de humor, para os neanderthais o riso tornou-se objeto de imitação. O
que significa que os neanderthais, embora tenham aprendido a rir, não consegui-
ram faze-lo espontaneamente. Eles apenas imitam os H. sapiens.
Noutra cena cotidiana do filme, a noite, um dos neanderthais pega a pequena
Ika para acasalar, de quatro, com ela. Age com força, submetendo-a para a satisfa-
ção do desejo do macho. Como fêmea H. sapiens, Ika reage. No caso dos neander-
thais, temos a mera pulsão sexual atuando no macho vigoroso que se impõe pela
força física sobre a fêmea. Entretanto, no caso dos humanos, ocorreu um pequeno
recuo das barreiras naturais. Para os H. sapiens, o intercurso sexual não é mera-
mente um ato instintivo – alguns diriam, animalesco -, mas possui um complexo
de mediações culturais que precisam ser levadas em consideração pelos parceiros
no intercurso sexual. Entre o desejo e seu objeto existe a mediação da cultura.

56
O mundo do trabalho através do cinema

Entertanto, não queremos dizer que Gaw, ao tentar pega-la, tenha cometido
estupro. Ele agiu de acordo com a natureza neanderthal. Trata-se de acasalamento
entre espécies diferentes de hominídeos. No começo do filme “A Guerra do Fogo”,
observamos a prática corriqueira dos neanderthais pegarem as fêmeas por trás. É
a posição usual dos hominídeos. Entretanto, mais adiante, a jovem Ika irá mostrar
para Noah que existe um modo alternativo de “fazer sexo”: deitada de frente para
ele, com ela fazendo o movimento pélvico, mexendo o quadril durante a penetra-
ção. Com as pernas abertas, ela pode estimular o clitóris, enquanto é penetrada.
Tudo acompanhado por beijos no peito do parceiro e no seu também. Enfim, esta
é a posição clássica “papai-e-mamãe” que implica uma nova dimensão de sensi-
bilidade afetiva do casal. É claro que não se trata de excluir a posição de quatro,
mas de acrescentar uma variação que contribui para o enriquecimento humano-
-afetivo no ato sexual.
Mais uma vez, a jovem Ika ensinou aos neanderthais, traços da humanidade
vinculados ao desenvolvimento de habilidades lingüísticas. O que Ika ensinou a
Noah foram novas formas de linguagem capazes de expor a riqueza das possibili-
dades contidas na relação amorosa. Na verdade, não é a linguagem que é natural
ao homem, mas a faculdade de construir uma língua, vale dizer: um sistema de
signos distintos correspondentes a idéias distintas. Nesse caso, apenas o H. sa-
piens foi capaz de construir a diversidade humana expressa nas múltiplas formas
culturais.
Nos primórdios da evolução humana, a diversidade linguística expressa na
variedade cultural, eram manifestações das múltiplas possibilidades de ser huma-
no. Ela expressava com vigor, a capacidade humana de construir uma língua como
afirmação de sua própria hominidade humana. Portanto, no principio, tínhamos
a explosão de expressões humanas distintas por meio da multiplicidade cultural
que elaborava, em-si e para-si, a linguagem humana no sentido humano-genérico.

De repente, a jovem Ika foge, indo em busca da sua tribo de origem. Eis um
importante ponto de inflexão na narrativa do filme “A Guerra do Fogo”, tendo
em vista que a fuga de Ika expõe os sentimentos de Noah, que sente a sua falta e
decide ir buscá-la a qualquer preço. Ao procurar por ela desesperadamente, Noah
conhece a tribo de Homo sapiens. Ao sentir a falta de Ika, o neanderthal Noah
expressa uma manifestação de afeto pela jovem humana. Talvez a manifestação de
afeto neanderthal signifique, no plano do roteiro do filme “A Guerra do Fogo”, um
puro anacronismo (é comum ocorrer isso nos casos de filmes sobre a pré-história

57
Trabalho e Cinema • Volume 4

humana, onde sempre nos projetamos como homens do século XX nas carac-
terizações de hominídeos ou humanos pré-históricos). Noah é um neanderthal
apaixonado, expressando um afeto intrinsecamente humano. Entretanto, pode-se
especular que a atitude de Noah não significa um sentimento de amor romântico
- como nós poderíamos supor. Talvez possamos dizer que o sentimento de afetivi-
dade de Noah por Ika é o mesmo que liga os animais de estimação aos seus donos.
Talvez - e estamos no plano da pura especulação - Noah sinta por Ika, o que um
animal de estimação sentiria quando o dono o abandona. Neste plano de argu-
mentação, o neanderthal Noahn é o “animal de estimação” que perdeu seu dono.
No plano evolutivo, embora Noah seja incapaz de expressar amor romântico,
modo de afetividade amorosa concebível apenas entre homens da mesma espécie
– e numa determinada temporalidade histórica (a modernidade burguesa), Noah
poderia manifestar outro modo de laço afetivo. A incongruência narrativa seria
supor amor romântico na pré-histórica, quando sabemos que o amor romântico é
uma construção histórica da modernidade do capital. Portanto, talvez o que exista
ali seja outro tipo de manifestação amorosa.
A fuga de Ika faz com que Noah, ao buscá-la, entre em contato com a tribo de
Homo sapiens. Num primeiro momento, Noah encontra uma cabana rudimentar,
expressão do trabalho humano. Ao invés de morar em cavernas, o H. sapiens cons-
trói sua própria habitação. Deste modo, Noah percebe os rudimentos de cultura
humana, tais com seus utensílios de cerâmica que expressam a desenvolvida capa-
cidade da espécie humana para a produção de utensílios. Nas mais diversas ferra-
mentas e utensílios encontrados por Noah na tribo de H. sapiens, encontramos a
expressão singela do processo de trabalho e a manifestação concreta da habilidade
manual, que só a espécie humana tem para a produção de argila e seu manuseio
na elaboração de artefatos culturais, onde os traços com signos expressam uma
visão de mundo. Um detalhe: percebe-se no vaso de cerâmica, o desenho de um
animal de caça. Ao lado da expressão material do utensílio de cerâmica, temos a
expressão artística rudimentar, rica em significações, vinculada ao cotidiano do
trabalho humano. Deste modo, nos primórdios da evolução humana, arte, ciência
e trabalho constituíam um só momento de afirmação do ser genérico do homem.
Por exemplo, a ciência, em sua forma primordial, se expressava no conheci-
mento que o artesão primitivo tinha das propriedades físico-químicas dos mate-
riais utilizados no processo de trabalho; e no domínio e habilidade técnica neces-
sária para manipulá-los tendo em vista a consecução de determinadas finalidades
prático-sensíveis (a intentio recta, como diria Lukács). Enfim, eles fazem, mas

58
O mundo do trabalho através do cinema

não o sabem – eis a dimensão ontológica do processo social do trabalho do arte-


são primitivo. Embora não dominasse a ciência da química ou a ciência da física,
eles conheciam ontologicamente, a propriedade natural dos meios de trabalho
utilizados no processo de trabalho (matérias-primas e materiais auxiliares). Além
disso, os homens primitivos imprimiam nos seus utensílios e artefatos culturais,
elementos de sua cosmovisão. Por exemplo, a figura do animal de caça, elaborado
de forma rudimentar na cerâmica encontrada por Noah na cabana humana, ex-
pressa o vínculo entre arte e trabalho, ou melhor, arte e vida, tendo em vista que,
a atividade do trabalho como luta pela sobrevivência num mundo de escassez,
assumia dimensões cruciais – quase religiosas - para os homens primitivos.
Apesar do trabalho não ocupar por inteiro, o tempo de vida do homem pri-
mitivo, a luta pela sobrevivência, isto é, o trabalho humano nas condições da na-
tureza pródiga e selvagem, era árduo e extenuante, tendo em vista o baixíssimo
nível de desenvolvimento das forças produtivas sociais. Diferentemente do ho-
mem burguês, sempre preocupado em acumular riqueza (dinheiro e mercado-
ria), o homem primitivo precisava apenas ter o necessário para a sobrevivência
da coletividade humana. Talvez possamos dizer que, apesar do baixíssimo nível
de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, o homem primitivo,
tinha mais “tempo livre” que o homem moderno. Enfim, o tempo de vida não se
reduzia ao tempo de trabalho, embora, tendo em vista o nível de redução das bar-
reiras naturais, a expectativa de vida humana na pré-história era bastante reduzi-
da por conta da escassez social. Na verdade, para o homem primitivo, o sistema de
necessidades humanas que o constrangia era bastante rudimentar. Apesar disso,
o imaginário do trabalho tinha uma presença central na cosmovisão primitiva,
como expressou, por exemplo, a arte pré-histórica, que retratava cenas cotidianas
do trabalho da caça. A arte pré-histórica tinha uma função ritual: celebrar o tra-
balho humano por meio de sua expressão pictórica.
Noah está procurando desesperadamente a jovem Ika. Faz uma longa cami-
nhada sozinho. Gaw e Amoukar estão distantes. Eles deixam o guerreiro Noah
cuidar da busca de sua jovem amada. De repente, Noah vê-se preso num pân-
tano de areia movediça. Na verdade, não é um mero pântano de área movediça,
mas sim uma armadilha natural utilizada pela tribo de homens primitivos para se
proteger da natureza inóspita que os cerca. Os predadores, ao caírem na área mo-
vediça, tornam-se imobilizados. Os Homo sapiens – “aqueles que sabem” – como
animais técnicos, têm a inteligência prática superior que utiliza a natureza inor-
gânica (ou orgânica), como meio para defender-se dos riscos e perigos do mundo

59
Trabalho e Cinema • Volume 4

natural hostil que os cerca. Trata-se de uma habilidade técnica utilizada também
pelo neanderthal Noah quando, numa situação de risco e perigo, aproximou-se
do mastodonte, oferecendo-lhe alimento, e deste modo, utilizando-se da manada
de mastodontes como meio para afugentar os Homo erectus rivais que os perse-
guiam.
À beira da morte no pântano de areia movediça, Noah é resgatado pelos
guerreiros humanos. Fora preso, como um troféu, pela tribo de Homo sapiens.
Percebe-se o notável desenvolvimento técnico-cultural da tribo humana em
comparação com outras espécies de hominídeos. Os humanos pintam o corpo
e usam adornos. Eles têm uma organização hierárquica com um xamã da tribo
que organiza a cultura e os rituais humanos (o xamã se distingue dos demais pela
longa barba branca e altivez de seus adornos); além disso, com respeito a cultura
material, manejam lanças e possuem habitações – cabanas - construídas por eles
mesmos. Os H. sapiens utilizam Noah num ritual de acasalamento com as mulhe-
res mais opulentas da tribo, oferecidas para o guerreiro neanderthal como gesto
de hospitalidade. Mais uma vez, o filme sugere a hibridização de neanderthais e
Homo sapiens (alguns cientistas defendem que ocorreu encontros amorosos entre
neanderthais e sapiens. Dizem eles que, ao deixar a África e colonizar a Europa,
os H. sapiens não exterminaram os antigos habitantes do continente - os neander-
thais - mas, em maior ou menor grau, misturou seus genes aos deles).
Impressionado com o mundo social dos H. sapiens, Noah acomoda-se em
sua cabana (ou cela), quase esquecendo o motivo de estar ali: rever e resgatar a
jovem Ika. Provavelmente, Noah deleita-se com as oferendas da tribo humana.
Torna-se perceptível que a prática humana e o conjunto de artefatos, utensílios
e adornos utilizados pelos H. sapiens é permeada de ricos significados culturais.
Os rituais que envolvem o neanderthal Noah naquele universo cultural primitivo
dos sapiens, possuem uma excepcional riqueza simbólica. Na verdade, eis o ponto
flagrante de diferença entre as espécies de hominídeos e os Homo sapiens: os sa-
piens estão imersos em rituais mágicos e práticas simbólicas, ricas de significados
culturais.
Na medida em que o H. sapiens é um animal que se fez homem através do
trabalho; e o trabalho significa, na acepção lukácsiana, o pôr teleológico que
impulsiona séries causais; constituiu-se, em torno do homem, um complexo de
objetivações materiais e imateriais denso em significados simbólicos (Ernst Cas-
sirer considerava o homem um “animal simbólico”). O H. sapiens que surgiu há
aproximadamente 200 a 150 mil anos atrás, no leste da África (como resultado de

60
O mundo do trabalho através do cinema

adaptações do Homo heidelbergensis), veio evoluindo e espalhando-se por todo


o planeta Terra, construindo um mundo de artefatos, utensílios e ferramentas,
por um lado; e um mundo complexo de práticas culturais organizadas, criadas
pelo próprio homem, e no interior da qual ele se fez homem como ser humano-
-genérico, por outro lado. Por isso, o filme “A guerra do fogo” demonstra a riqueza
do universo simbólico humano em comparação, por exemplo, com a tribo ne-
anderthal e as hordas de outros hominídeos. Um detalhe: a tribo humana pri-
mitiva apropriou-se de modo diferenciado do espaço territorial, distinguindo-se,
por exemplo, das tribos de outros hominídeos. Embora durante muito tempo as
tribos humanas tenham sido nômades, elas desenvolveram técnicas de apropria-
ção do território que contribuíram, mais tarde, para a sua permanência por mais
tempo naqueles locais. Por exemplo: ao construírem aglomerações de cabanas,
elas demarcam a posse do território e constroem uma infra-estrutura que facilita
a sua incursão na circunvizinhança. Deste modo, o domínio da natureza significa,
não apenas a produção de objetos materiais e objetivações imateriais (símbolos);
mas significa também a apropriação e (re-significação) do espaço-tempo territo-
rial como campo de desenvolvimento humano. Primeiro, os H. sapiens primitivos
são caçadores e coletores (por exemplo, os homens primitivos oferecem a Noah,
frutos e frutas coletados por eles). Mas depois, mais tarde, na medida em que se
apropriam de modo efetivo do espaço território, tornam-se agricultores, surgin-
do, a partir daí, as civilizações históricas.
Como hóspede privilegiado da tribo humana, Noah começa a interagir com
eles. O fato que mais o surpreendeu (e o assustou), foi ver Ika produzir fogo com
suas próprias mãos, acendendo uma fogueira. Para Noah, até então, o fogo era
algo divino, vindo dos céus. De repente, ele tornou-se criação do próprio homem.
Com habilidade manual, o H. sapiens conseguiu produzir fogo por meio da fricção
de uma vareta com uma tábua de madeira. A expressão de Noah é a expressão do
espanto. Mais uma vez, temos a técnica propriamente dita como elemento com-
positivo do processo de humanização do homem. Mesmo a técnica rudimentar de
produção do fogo, utilizando gravetos de madeira, exige uma notável habilidade
manual de quem opera, um procedimento incomparável hoje, por exemplo, com
o mero uso do fósforo ou isqueiro. Noah ficou intrigado com a desmitificação do
fogo. Ele tem uma expressão de espanto.
Embora não seja H. sapiens, Noah, com o espanto, exprimiu a primeira atitu-
de filosófica. Talvez ele não possa ter desenvolvido como autoconsciência, o pen-
samento filosófico devido os limites da sua própria condição de espécie, mas, em

61
Trabalho e Cinema • Volume 4

si, ele expressou o espanto diante de algo incompreensível, vulgar e extraordinário


Na verdade, Aristóteles afirmava que a filosofia tinha a sua origem no espanto, na
estranheza e perplexidade que os homens sentem diante dos enigmas do universo
e da vida. No caso do neanderthal Noah, o espanto originou-se do vislumbramen-
to da técnica humana.
É o espanto que leva o H. sapiens mais desenvolvido a formular perguntas e
os conduz à procura das respectivas soluções. Na Metafísica, Aristóteles explica
a origem da filosofia e o objetivo que ele persegue: “O que na origem levou os
homens às pesquisas filosóficas foi, tal como hoje, o espanto”. Aristóteles retoma o
ensinamento de Platão que escreveu no Teeteto: “É absolutamente próprio de um
filósofo esse sentimento: o espanto. A filosofia não tem outra origem...”.
Enfim, o espanto, para os gregos, é a verdadeira origem da pesquisa filosó-
fica. A sensação de se conhecer aquilo que se vê geralmente não passa de ilusão.
O espanto sentido pelo filósofo é, antes de tudo, a admiração diante da natureza;
e a admissão de sua incompreensão diante de seus mecanismos. Diz Aristóteles:
“Perceber uma dificuldade e se espantar é reconhecer a própria ignorância (...)
e foi, portanto, para fugir à ignorância que os primeiros filósofos se dedicaram
à filosofia”. Assim, filosofia não tem outro propósito senão o de tentar explicar o
mundo. Mas como salientamos acima, o pensamento filosófico é uma capacidade
desenvolvida da espécie humana, que emerge sob certas condições do processo fi-
losófico. É claro que o homem não nasce filósofo, mas sob certas condições, pode
vir a sê-lo.
Portanto, o espanto de Noah diante da produção do fogo não significava que
ele tenha se tornado um filósofo – e nem o poderia, tendo em vista a sua condi-
ção da espécie. Os outros hominídeos tinham capacidades cerebrais limitadas.
No plano biológico, eram becos-sem-saída do desenvolvimento cognitivo. Talvez
o espanto de Noah significasse a sua impossibilidade em formular as perguntas
corretas capazes de propiciar as respostas adequadas, no plano do pensamento,
àquele fato metafísico: a produção do fogo. Numa passagem de sua conferencia
intitulada “As bases ontológicas da atividade e do pensamento do homem”, Georg
Lukács observou:
“Com efeito, é inegável que toda atividade laborativa surge como solução de
resposta ao carecimento que a provoca. Todavia, o núcleo da questão se perderia
caso se tomasse aqui, como pressuposto, uma relação imediata. Ao contrário, o
homem torna-se um ser que dá respostas precisamente na medida em que - pa-
ralelamente ao desenvolvimento social e em proporção crescente - ele generaliza,

62
O mundo do trabalho através do cinema

transformando em perguntas seus próprios carecimentos e suas possibilidades


de satisfazê-los; e quando, em sua resposta ao carecimento que a provoca, funda
e enriquece a própria atividade com tais mediações, freqüentemente bastante ar-
ticuladas”.
A atividade laborativa surge como resposta ao carecimento do homem. Entre-
tanto, o homem só se torna um ser que dá respostas, apenas na medida em que ele
conseguir “generalizar e transformar em perguntas seus próprios carecimentos
e suas possibilidades de satisfazê-los”. Talvez a origem da filosofia tenha ocorri-
do neste ato de generalizar e transformar em perguntas, os carecimentos do ho-
mem; um ato prévio à resposta efetiva do homem no processo laborativo. Lukács
ressaltou não apenas o generalizar e transformar em perguntas os carecimentos,
mas também, o generalizar e transformar em perguntas suas possibilidades em
satisfazê-los, isto é, elaborar o pensamento utópico capaz de projetar no plano da
prévia-ideação as possibilidades da realização humana. Deste modo, a filosofia
nasceu com a utopia como pensamento antecipador das possibilidades efetivas de
satisfação dos carecimentos humanos.
Esta generalização e transformação em perguntas dos carecimentos huma-
nos e as possibilidades de satisfazê-los, implicando, deste modo, o domínio de re-
cursos conceituais e raciocínio lógico, segundo Lukács, fundaria e enriqueceria a
atividade laborativa do homem com mediações – lingüísticas e simbólicas – bas-
tante articuladas. Talvez apenas o H. sapiens tivesse a capacidade de desenvolver
as mediações capazes de fundar e enriquecer sua atividade laborativa, permitindo
ir além do mero dado. Deste modo, o espanto de Noah não conseguiu ir além do
mero espanto. Prosseguindo sua reflexão ontológica, Lukács observa:
“De modo que não apenas a resposta, mas também a pergunta é um produto
imediato da consciência que guia a atividade; todavia, isso não anula o fato de
que o ato de responder é o elemento ontologicamente primário nesse complexo
dinâmico.”
Nesse caso, Lukács destaca a dialética entre perguntas e respostas como sen-
do produto imediato da consciência que guia a atividade laborativa. Mas é o ato
de responder que é o elemento ontológico primário no complexo do trabalho. O
mero espanto de Noah - e mesmo suas perguntas “filosóficas”, caso ele pudesse
formula-las - só teriam sentido efetivo se se traduzissem – diríamos nós – num
ato de responder, isto é, se pusessem em movimentos séries causais capazes de
constituir o complexo dinâmico do trabalho. Eis o sentido da práxis humana que
Lukács tenta dissecar. Diz ainda ele:

63
Trabalho e Cinema • Volume 4

“Tão-somente o carecimento material, enquanto motor do processo de re-


produção individual ou social, põe efetivamente em movimento o complexo do
trabalho; e todas as mediações existem ontologicamente apenas em função da sua
satisfação. O que não desmente o fato de que tal satisfação só possa ter lugar com
a ajuda de uma cadeia de mediações, as quais transformam ininterruptamente
tanto a natureza que circunda a sociedade, quanto os homens que nela atuam, as
suas relações recíprocas etc.; e isso porque elas tornam praticamente eficientes
forças, relações, qualidades etc., da natureza que, de outro modo, não poderiam
exercer essa ação, ao mesmo tempo em que o homem liberando e dominando es-
sas forças - põe em ser um processo de desenvolvimento das próprias capacidades
no sentido de níveis mais altos”.
Nesta preciosa passagem do texto lukácsiano, temos alguns princípios ontoló-
gicos do devir humano dos homens:
Primeiro, é o carecimento material que põem em movimento o complexo do
trabalho. É o que observamos no decorrer do filme – a luta pela sobrevivência, a
luta contra a natureza selvagem constituída pelas tribos hominídeas rivais e pelos
animais ferozes, é a luta pela satisfação de carecimentos materiais da espécie. A
própria busca do fogo perdido, foi impulsionado pelo carecimento do fogo como
elemento indispensável para a sobrevivência daqueles hominídeos num mundo
inóspito.
Segundo, é em função da satisfação destes carecimentos materiais que se
constituem as cadeias de mediações, meios técnicos materiais e imateriais (como
os recursos lingüísticos e simbólicos), que, segundo Lukács, “transformam inin-
terruptamente tanto a natureza que circunda a sociedade, quanto os homens que
nela atuam, as suas relações recíprocas etc.”. Isto é, no devir humano dos homens,
a técnica criada e desenvolvida pelos homens transformam tanto a natureza que
circunda a sociedade, quanto os próprios homens que a utilizam.
Deve-se entender a técnica como sendo constituída pelo instrumento e pelo
signo (como diria Lev Vygostky). O instrumento e o signo são os dois elementos
cruciais do processo de desenvolvimento humano do homem como Homo sapiens
sapiens. Essa distinção é feita pelo psicólogo soviético Lev Vygostky. A partir da
ideia de instrumento material, Vygotsky constrói uma analogia para chegar ao
conceito de instrumento psicológico ou signo, procurando mostrar em que eles se
distinguem. Diz ele:
“A diferença mais essencial entre signo e instrumento, e a base da divergência
real entre as duas linhas, consiste nas diferentes maneiras com que eles orientam

64
O mundo do trabalho através do cinema

o comportamento humano. A função do instrumento é servir como um condutor


da influência humana sobre o objeto da atividade; ele é orientado externamente,
deve necessariamente levar a mudanças nos objetos. Constitui um meio pelo qual
a atividade humana externa é dirigida para o controle e o domínio da natureza.
O signo, por outro lado, não modifica em nada o objeto da operação psicológica.
Constitui um meio da atividade interna dirigida para o controle do próprio indiví-
duo; o signo é orientado internamente. Essas atividades são tão diferentes uma da
outra, que a natureza dos meios por elas utilizados não pode ser a mesma”.
Talvez, no caso dos H. sapiens, a interação dialética entre homem e natureza
por meio da técnica, seja um traço essencial da particularidade da espécie hu-
mana em comparação com as outras espécies hominídeas, onde era impossível
a dialética do devir humano dos homens. A interação dialética entre homem e
natureza por meio da técnica, segundo Lukács tornou “praticamente eficientes
forças, relações, qualidades etc., da natureza que, de outro modo, não poderiam
exercer essa ação” – isto é, o H. sapiens conseguiu dominar a natureza no sentido
de utilizá-la a seu favor.
Terceiro, Lukács expõe os elementos ontológicos do processo civilizatório do
homem, tendo em vista que a descrição acima do metabolismo social homem-na-
tureza por meio da técnica, é elemento compositivo do processo de devir humano
dos homens, quando “o homem liberando e dominando as forças da natureza, põe
em ser, um processo de desenvolvimento das próprias capacidades no sentido de
níveis mais altos”. Mais uma vez, eis o traço particular da essencialidade humano-
-genérica que distingue, não apenas o homem dos animais, mas o homem de ou-
tras espécies hominídeos que possuíam, de forma rudimentar, tais capacidades
aprimoradas pelo processo dinamico-estruturante do trabalho.
Mais tarde, os neanderthais Gaw e Amoukar são capturados também pela
tribo de H. sapiens. Entretanto, logo conseguem fugir e levam Noah, quase à for-
ça, com eles, tendo em vista o envolvimento de Noah com os sapiens. A jovem
Ika acompanha os neanderthais, demonstrando assim, lealdade e afeto para com
Noah Num primeiro momento, Noah tomou a iniciativa de ir procurá-la após a
sua fuga; depois, a jovem Ika toma a iniciativa de acompanhar Noah e seus amigos
quando eles decidem escapar da tribo de H. sapiens (como se trata de espécies
diferentes – H. sapiens e neanderthais - a natureza e significado dos laços de afe-
tividade entre Noah e Ika podem ser bastante diferenciados).
Na volta para sua tribo, os neanderthais Noah, Gaw e Amoukar apresentam
novas características culturais transmitidas pelo jovem sapiens Ika. Por exemplo,

65
Trabalho e Cinema • Volume 4

os neanderthais aprenderam a rir; Ika ensinou a Noah uma nova posição sexual
e depois, a descoberta principal: a jovem humana ensinou Noah a produzir fogo.
A produção do fogo tem seu significado no processo do devir humano dos
homens. Como verificamos, a tribo sapiens dominava o savoir-faire da produção
do fogo. Foi por isso que Ika conseguiu transmitir para Noah, a técnica de produ-
ção do fogo. Entretanto, as outras tribos hominídeas, incapazes de desenvolver as
habilidades técnicas (como os H. sapiens), não dominavam a produção do fogo.
Como não sabiam como produzir fogo, obtinham o fogo espoliando outras tri-
bos hominídeos, que guardava acessa a chama primordial (por exemplo, na cena
inicial do filme, após atacar a tribo neanderthal, um espécime de Austrolopitecus
aparece furtando o fogo); mas podia-se obter o fogo também coletando-o dos
incêndios das matas atingidas por raios durante as tempestades primitivas. Após
“coletar” o fogo, criavam-se técnicas e rituais de conservação do fogo natural, in-
clusive atribuindo a alguém a função de guardião do fogo (como era o caso dos
neanderthais do filme “A Guerra do Fogo”).
A produção do fogo significava a criação de condições infra-estruturais para
a produção da vida social. O fogo era a fonte de energia capaz de propiciar, por
exemplo, o cozimento da carne com impactos no metabolismo orgânico da espé-
cie; permitiu também ser utilizado como arma na luta contra animais selvagens.
Enfim, o domínio do fogo significava, no plano simbólico, a primeira forma de
domínio das forças da Natureza inóspita e selvagem.
A produção do fogo implicou todo um processo de trabalho ocorrido após o
domínio do instrumento como ferramenta pelos hominídeos. Na verdade, o gê-
nero Homo se distinguiu dos demais animais ao descobrir o instrumento, meio
de trabalho indispensável para a produção da vida social. É a “descoberta” do ins-
trumento que inaugura o salto ontológico para a transformação do macaco em
homem. Embora os H. sapiens tenham sido a espécie hominídea mais hábil na
utilização da ferramenta, outras espécies do gênero Homo – como o Homo erectus
ou H. neanderthalensis – também utilizavam a ferramenta (por exemplo, os H.
erectus ou neanderthais utilizavam vestimentas de pele ou clavas, objetos de ador-
no e uso pessoal, produtos de um processo de trabalho que implicava o manejo de
determinadas técnicas de produção artesanal).
Obviamente a utilização da ferramenta operou efetivamente a transformação
ontológica do macaco em homem, com os H. sapiens sendo a espécie hominídea
superior capaz de utiliza-la com maestria, desenvolvendo, deste modo, o processo

66
O mundo do trabalho através do cinema

de trabalho com notável habilidade técnica. A técnica tornou-se o corpo inorgâ-


nico do H. sapiens.
O homem é o animal técnico por natureza. O desenvolvimento da consciên-
cia – a prévia ideação e o pôr teleológico – dos H. sapiens os tornaram distintos
dos demais hominídeos, habilitando-os, inclusive na utilização das capacidades
físico-motoras, sensório-perceptivas e psico-comportamentais, a se adaptarem de
modo ativo às mudanças ambientais da Terra primitiva. Na seleção das espécies,
os sapiens se destacaram das outras espécies hominídeas que se extinguiram.
Na cena magistral de abertura do filme “2001 – A Odisséia no Espaço”, um
macaco superior, o ancestral de todas as espécies hominídeas, consegue utilizar
um pedaço de osso como ferramenta. O diretor Stanley Kubrick resgata o ato pri-
mordial precursor do trabalho humano: o pôr teleológico expresso simbolicamen-
te no monólito negro. O que o diretor Stanley Kubrick celebra no seu filme “2001
– Uma Odisséia no Espaço” é a afirmação primordial do pôr teleológica – a “cons-
ciência antecipadora” – em sua forma originária. O macaco superior do filme de
Kubrick é o ancestral de todas as outras espécies de hominídeos que aparecem no
filme “A guerra do fogo”.
No filme “A Guerra do Fogo”, de Jean-Jacques Annoud, o trabalho assume
uma dimensão técnica propriamente dita, pois, nesse caso, os hominídeos, in-
clusive os mais primitivos, são obrigados a dominarem técnicas rudimentares ou
desenvolvidas para sobreviverem no mundo selvagem. O trabalho se desenvolve
como processo de trabalho. Os sapiens, hominídeos mais desenvolvidos em pro-
cesso de devir humano, dominam de forma sofisticadas várias técnicas, sendo
hábeis na manipulação do mundo natural. A própria cultura é um traço da mani-
pulação complexa das forças da natureza.
A jovem Ika, representante primorosa da espécie H. sapiens, que transmite
uma série de técnicas – inclusive comportamentais – é o exemplo-mor da espécie
humana enriquecida pela técnica. Ika é a mulher educadora que humaniza os ne-
anderthais. Aliás, está é a verdadeira função ontológica da educação: a formação
humana. A mulher Ika é a pedagogo primordial.
A produção do fogo ocorreu numa etapa desenvolvida do processo de traba-
lho humano. Exigiu o manejo hábil de ferramentas e habilidades físico-motora ca-
pazes de operar as matérias-primas e ferramentas indispensáveis para a produção
artificial da chama. A técnica de produção do fogo propiciou maior capacidade
de adaptações às intempéries do ecossistema primitivo, contribuindo para a pro-
dução de novas condições da vida social. É com o domínio do fogo que a horda

67
Trabalho e Cinema • Volume 4

primitiva criou a base material efetiva para se impor sobre o meio-ambiente sel-
vagem. Fogo é o símbolo do poder. Tal como a descoberta e uso da ferramenta
por um macaco superior no filme “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, significou
(tal como Kubrick nos mostra na cena da batalha dos macacos pela posse de um
recurso escasso como a água), a origem e afirmação primordial do Poder sobre
outras espécies de macacos, a produção e uso do fogo significaram, do mesmo
modo, um acréscimo de Poder na luta pela sobrevivência humana no mundo hos-
til da pré-história, onde tribos de hominídeos se digladiavam disputando recursos
escassos. Portanto, o domínio da técnica de produção do fogo significava o domí-
nio da técnica de Poder.
Ao transmitir a técnica de produção do fogo para os neanderthais, a jovem
Ika obviamente não tinha noção dos riscos inerentes na transmissão desta pode-
rosíssima técnica de Mais-Poder (nas condições do estado selvagem em que se
vivia, eram constantes as disputa pelo território entre tribos hominídeas). Entre-
tanto, a tribo sapiens não demonstrava ser uma tribo guerreira, utilizando suas
armas apenas para se defender. A jovem Ika vivia numa tribo pré-histórica onde
vigorava o comunismo primitivo. O que significava que ela não incorporou o ego-
ísmo possessivo que os H. sapiens desenvolveram mais tarde, com o surgimento
e desenvolvimento histórico das mediações de segunda ordem do ser social, que
originaram a forma-capital (propriedade privada, divisão hierárquica do traba-
lho, classes sociais, ideologia e Estado político).
Mas o domínio da técnica de produção do fogo significou também mudanças
criticas na alimentação humana. O cozimento foi claramente uma inovação que
melhorou substancialmente a qualidade da alimentação humana, contribuindo,
portanto, para a evolução da raça humana. Ao dominar a produção do fogo, o
H. sapiens utilizou com mais frequência o cozimento de alimentos (é claro que
outras espécies de hominídeos – como os H. erectus do filme “A Guerra do Fogo”,
por exemplo - utilizavam o fogo, o que não significava que dominassem a técnica
de sua produção).
Cientistas da Universidade de Harvard demonstraram que cozinhar não só
faz com que os vegetais fiquem mais macios e fáceis de mastigar, como aumenta
substancialmente o conteúdo energético disponível, particularmente em tubér-
culos feculosos como a batata e a mandioca. Quando crus, as féculas não são
imediatamente quebradas pelas enzimas do corpo humano. Quando aquecidos,
porém, esses carboidratos complexos tornam-se mais digestíveis e, portanto, li-
beram mais calorias. O pesquisador Richard Wrangham e sua equipe propuse-

68
O mundo do trabalho através do cinema

ram que o H. erectus foi, provavelmente, o primeiro hominídeo a usar o fogo para
cozinhar há, talvez, 1,8 milhão de anos (os hominídeos antropófagos do filme
“A Guerra do Fogo” são da espécie H. erectus). Eles sustentam que, por exemplo,
o cozido de vegetais (especialmente tubérculos) permitiu à espécie desenvolver
dentes pequenos e cérebros maiores que seus antecessores. Além disso, as calorias
extras permitiram ao H. erectus começar a caçar - uma atividade energeticamente
dispendiosa - com maior frequência. Sob uma perspectiva energética, essa é uma
linha suficientemente lógica de raciocínio.
A equipe de Wrangham cita os sítios do leste africano, Koobi Fora e Cheso-
wanja, datados em torno de 1,6 e 1,4 milhão de anos, respectivamente, para indi-
car o controle do fogo pelo H. erectus. Esses locais, realmente, mostram evidências
de fogueiras, mas se hominídeos foram os responsáveis por essas fogueiras é um
assunto a ser debatido. A mais antiga e inequívoca manifestação do uso do fogo
- fornos de pedra e ossos de animais queimados em sítios na Europa - datam so-
mente de cerca de 200 mil anos.
Nas cenas finais do filme “A Guerra do Fogo”, assistimos mais uma vez, a pre-
sença de ameaças selvagens que atacam os neanderthais e sua companheira sa-
piens. Primeiro, Noah, ao fugir da perseguição dos seus rivais neanderthal, é ata-
cado por um urso selvagem. Ao invadir inadvertidamente, a caverna do animal,
o neanderthal é atacado furiosamente por ele, enfrentando-o numa luta de vida e
morte. Depois, pouco antes de chegar no seu destino (a tribo neanderthal), Noah,
Gaw, Amoukar e Ika, são cercados pelos neanderthais rivais de Noah. Quem con-
seguisse levar o fogo para a tribo, tornar-se-ia um homem poderoso. Noah conse-
guiu resgatar o fogo, mas seus rivais o aguardavam para furtá-lo.
A pequena batalha entre Noah e seus inimigos tribais é rápida. Mais uma vez,
o domínio da técnica tornou-se decisivo. Noah, Gaw e Amoukar dominaram a
técnica de utilização de lanças ou dardos à distancia transmitida por Ika. Apenas
os sapiens dominavam esta técnica que permitiu matar um oponente sem precisar
ter com ele um enfrentamento corpo-a-corpo, bastando ter habilidade no lança-
mento do dardo mortal. Em poucos segundos, Noah elimina seus oponentes.
Portanto, o filme “A Guerra do Fogo” é uma narrativa constituído pela dia-
lética entre homem e natureza com suas ameaças cotidianas no inóspito mundo
natural da Terra primitiva. No estado natural, a vida das espécies hominídeas (in-
cluso os H. sapiens) reduzia-se a luta pela sobrevivência, o que colocava o primado
da utilização (e aprendizado) da técnica como recurso de Poder (por exemplo, a
jovem sapiens Ika transmitiu uma série de técnicas para o neanderthal Noah: o

69
Trabalho e Cinema • Volume 4

riso, posição sexual, lançamento de dardo e principalmente, a técnica de produ-


ção do fogo. Por outro lado, os próprios neanderthais demonstraram dominar
uma série de técnicas de sobrevivência no inóspito mundo primitivo).
Finalmente, Noah, Gaw e Amoukar (e a jovem sapiens Ika) voltam para a
tribo neanderthal, levando consigo o fogo perdido. Eles são festejados como he-
róis da tribo. Mas, eles entregam o fogo para o desastrado sacerdote tribal que, ao
atravessar a borda do rio, deixa – mais uma vez - o receptáculo com o fogo cair
na água, apagando-o. O desespero e a tristeza abalam a tribo neanderthal Entre-
tanto, Noah não se desespera. Ele sabe que a jovem Ika lhe ensinara a produzir
o fogo por meio da fricção de gravetos num pedaço de madeira. Eis a técnica de
produção do fogo. Esta é a oportunidade para os neanderthais demonstrarem a
descoberta revolucionária que aprenderam com a jovem H. sapiens.
Primeiro, Noah tenta produzir o fogo, tal como ensinara Ika. Entretanto, o
neanderthal não demonstrou ser suficientemente hábil no manejo das ferramen-
tas de trabalho para a produção do fogo. Talvez a espécie neanderthal não tenha
as capacidades físico-motoras necessárias para o manejo dos gravetos na fricção
com o pedaço de madeira. É nesse momento que a jovem Ika tomou o lugar de
Noah e produziu o fogo desejado pela tribo neanderthal. Enfim, em poucos mi-
nutos, ocorreu a produção do fogo. Não foi preciso enfrentar uma odisséia no
mundo selvagem para obter o fogo. Utilizando-se as ferramentas e técnicas ade-
quadas, os neanderthais conseguiram produzir o fogo, objetivação primordial in-
dispensável capaz de permitir a sobrevivência da horda primitiva nas condições
do mundo natural inóspito.
A produção do fogo, diferentemente da produção de ferramentas que os
neanderthais, como as outras espécies de hominídeos, dominavam, ainda que
toscamente, representava a produção das condições materiais para a própria re-
produção social. Deste modo, a busca do fogo é a busca das condições sociome-
tabólicas indispensáveis para a produção da vida social. Este é um tema candente
da temporalidade histórica do capitalismo global hoje que provoca o cataclisma
ecológico, ameaçando a própria reprodução social da Humanidade. Deste modo,
o filme “A Guerra do Fogo” aparece como uma metáfora da luta ecológica contra o
mundo do capital que ameaça de extinção, o “fogo” da espécie humana.
A cena final do filme “A Guerra do Fogo” mostra o casal pré-histórico – Noah
e Ika - contemplando a lua cheia na noite profunda. A jovem Ika está grávida.
O hibridismo entre espécies hominídeas tem o sentido metafórico da comunhão
entre os pólos mais desenvolvidos do devir do animal Homo (sapiens e neander-

70
O mundo do trabalho através do cinema

thais). Ao mesmo tempo, a contemplação da lua significa, primeiro, uma atitude


de reverência ao cosmo desconhecido e fascinante que está acima de todos nós;
e depois, a projeção no tempo futuro com a presença do pequeno ser em gesta-
ção na barriga de Ika. Como na cena final de “2001-Uma Odisséia no espaço”,
de Stanley Kubrick, o diretor Jean-Jacques Annoud utiliza, não a imagem de um
feto na barriga da Mãe-natureza, como fez Kubrick, mas tão-somente a imagem
discreta da gravidez da jovem sapiens Ika e a contemplação do luar pelo casal pré-
-histórico. Eis a verdadeira expressão do devir humano dos homens. Talvez a cena
final do filme “A Guerra do Fogo” seja uma das mais controversas e curiosas cenas
da história do cinema do século XX: ela sugere o sentimento de amor romântico
entre o casal Noah e Ika em plena pré-história - e pior: entre espécies diferentes
de hominídeos.
O amor romântico como utopia amorosa é a forma humana mais plena de
laço afetivo que emergiu na modernidade burguesa com o avançado processo de
individuação da espécie humana. É improvável que nos primórdios da evolução
humana, quando o processo de individuação ainda estava pouco desenvolvido,
nossos ancestrais primitivos (e principalmente, os neanderthais) tenham tido a
capacidade de expressar tal sentimento de amor romântico. Assistindo o filme
hoje, interpretamos a cena final como uma cena romântica. Entretanto, talvez
aquela expressão afetiva entre Noah e Ika tenha outro conteúdo sensível, isto é,
talvez ela expresse outra forma de amor, desconhecido para nós, homens e mu-
lheres do século XXI.
Por outro lado, os traços supostamente anacrônicos do filme “A Guerra do
Fogo” servem para indicar que, um filme é apenas um filme; e que a grande obra
de arte tem a prerrogativa estética de criar novas percepções do tempo passado a
partir de valores cultivados no tempo presente. Talvez a idéia do amor romântico
na pré-história tenha sido a forma do diretor Jean-Jacques Annoud e do roteiris-
ta Gérard Brach, expressar o laço de afetividade radical entre espécies diferentes
de hominídeos, sugerindo, deste modo, não apenas o hibridismo entre neander-
thais e Homo sapiens, mas, principalmente, a celebração/afirmação da unidade
do gênero Homo num patamar superior. Enfim, mesmo entre espécies diferentes
podem-se construir laços de afetividade que, objetivamente, contribuíram para o
avanço do processo civilizatório humano-genérico.
O filme “A Guerra do Fogo”, de Jean-Jacques Arnoud, foi lançado em 1981,
portanto, nos primórdios da globalização da economia capitalista. Deve-se apre-
ender a globalização não apenas como mundialização do capital, mas também

71
Trabalho e Cinema • Volume 4

como processo civilizatório humano-genérico que aparece como pressuposto ne-


gado (o que demonstra, portanto, o lastro intrinsecamente contraditório do fenô-
meno da globalização nas condições da decadência histórica do capital). Talvez
possamos inferir que Noah e Ika sejam símbolos da “globalização” pré-histórica,
onde o contato (e o enlaçamento entre culturas hominídeas) propiciou o desen-
volvimento do devir humano dos homens.
No filme “A Guerra do Fogo” percebemos o encontro entre neanderthais e
sapiens no cenário pré-histórico adversa da luta constante pela sobrevivência;
luta não apenas dos hominídeos contra outras espécies de animais selvagens, mas
também, luta entre as várias espécies de hominídeos em diferentes fases de de-
senvolvimento evolutivo. Deste modo, o titulo do filme em português e o título
original (La guerre du feu), diz respeito a um estado natural de guerra constante
pela sobrevivência dos nossos ancestrais pré-históricos (o título em inglês – Quest
for Fire dá-nos outra significação: em busca do fogo).
É claro que o filme “A Guerra do Fogo” possui um sentido ontológico que
merece ser resgatado para além das sugestões antropológicas. Existem elementos
que podem nos propiciar refletir sobre o devir humano dos humanos numa ótica
da ontologia do ser social. Enfim, numa época de barbárie social como a nossa,
marcado pelo neoliberalismo e capitalismo global – e 1981, ano de lançamento do
filme, é o principio da disseminação ampla do neoliberalismo como modo de de-
senvolvimento do capitalismo global, é importante resgatar, mais do que nunca, o
que está se perdendo: o devir humano dos homens.

72
CAPÍTULO 2

Amor sem escalas

Jason Reitman
(2009)

O filme “Amor sem escalas”, de Jason Reitman possui como eixo temático, a
problemática da relação trabalho e vida pessoal, um dos temas candentes
que emerge com o capitalismo global, tendo em vista que, com a crise estrutural
do capital, o tempo de vida está cada vez mais reduzido a tempo de trabalho. Deste
modo, a precarização do trabalho oculta outra dimensão da precarização laboral:
a precarização do homem-que-trabalha. Neste caso, como iremos tratar adiante,
corrói-se os laços pessoais do homem como ser genérico, isto é, a relação do ho-
mem consigo mesmo e do homem com outros homens.
O filme é baseado no romance homônimo do escritor Walter Kirn, novelis-
ta norte-americano, crítico literário, e ensaísta, nascido em 1961. O romance foi
lançado nos EUA em 2001. Ele trata de uma temática candente da época de crises
financeiras, quando as grandes empresas tiveram que reestruturar-se, enxugando
seus quadros de pessoal. Submetidas à lógica do capital financeiro, os downsizing
tornaram-se freqüentes diante da instabilidade sistêmica. Foi no contexto históri-
co do capitalismo global que emergem empresas dedicadas tão-somente a mediar
o processo de demissão em massa nas corporações industriais. Num certo mo-
mento, o gerente da empresa diz: “Os varejistas enfrentam um prejuízo de 20%.
A indústria automotiva está mal. O mercado imobiliário está apático. É um dos
piores momentos já registrados nos EUA. Este é o nosso momento.”
Demitir alguém torna-se uma arte da manipulação. Na verdade, trata-se de
uma forma de perversidade social pois, nesse caso, o consultor motivacional deve
preparar o empregado para sua “desmontagem” pessoal: o desemprego desmonta
a vida pessoal do homem-que-trabalha. O filme expõe o capitalismo global como
uma máquina de “desmontar” pessoas humanas. Em “Up in the Air”, título ori-
ginal do filme, não apenas as vítimas de desemprego são desmontadas, mas o
próprio personagem principal – Ryan Bingham - possui uma “vida liquida” que
flui, tendo poucos laços humanos e nenhum compromisso afetivo. Bingham é

73
Trabalho e Cinema • Volume 4

o forasteiro pós-moderno, herói solitário do capitalismo inglório, que, com alta


dose de cinismo e técnicas motivacionais, busca legitimar a perversidade da de-
missão laboral.
Ryan Bingham (interpretado pelo ator George Clooney) tem por função, de-
mitir pessoas. Ele trata em seu cotidiano com o desespero e a angústia alheios.
Ryan naturalizou o ato de demitir ou comunicar a demissão buscando reconfor-
tar as pessoas. Faz aquilo com habilidade emocional, possuindo uma psicologia
adequada para lidar com o choque da demissão. Ryan parece aceitar seu trabalho
como ele é. Ele aceita a sua vida como ela é. Talvez despreze seu trabalho, mas
não o demonstra. Pelo contrário, aquilo tornou-se uma rotina perversa que ele
cumpre com frieza e habilidade profissional. Aquele “Mundo do Ar” lhe é acolhe-
dor: o deslocamento pelos Estados Unidos da América “nas nuvens”, acumulando
pontos no cartão de fidelidade da empresa aérea e buscando bater um record ex-
traordinário de pontos por milhas aéreas lhe dão uma estranha satisfação pessoal.
No filme, Ryan Bingham sempre usa terno e carrega uma maleta, viajando
para diversos cantos do País. Talvez possamos comparar Ryan Bingham com um
agente funerário de esperanças e perspectivas de carreiras, que executa seu tra-
balho com a frieza e habilidade profissional do coveiro; ou ainda compará-lo com
aqueles pistoleiros solitários do velho Oeste, “matadores de aluguel” do capita-
lismo flexível, isto é, matadores de sonhos e anseios profissionais, carismáticos
exterminadores do futuro.
Entretanto, Ryan Bingham é um personagem complexo. Primeiro, ele apenas
cumpre os desígnios do capital. É mero executor da lei do valor que se impõe
como entidade abstrata, a homens e mulheres que trabalham. Ele se recusa – nem
tem pretensão – de ser um herói anti-sistema. Pelo contrário, ele se adaptou e
cumpre sua função sistêmica com disciplina e responsabilidade pessoal: comu-
nicar às pessoas que elas foram demitidas e reconfortá-las com o trágico destino.
Ele quer fazê-las dar uma resposta individual propositiva à tragédia da demissão.
Diante do desígnio tão abstrato quanto inevitável, posto pelo capitalismo global,
a tarefa digna de Ryan Bingham é tentar, com sua técnica motivacional, evitar
que a demissão e o desemprego signifiquem a morte efetiva para aqueles homens
e mulheres que trabalham (é interessante observar que, em nenhum momento
do filme, aparece a marca da empresa que demite, marca tão abstrata quanto o
capital que domina, oprime e explora).
Ryan Bingham criou um mote de consolo para dizer àqueles que comunica a
demissão. Diz ele: “Quem construiu impérios e mudou o mundo passou por isso.

74
O mundo do trabalho através do cinema

E por ter passado por isso obteve sucesso. Essa é a verdade. Crie uma nova rotina
e logo estará de pé de novo.” Esta frase de Bingham é deveras interessante, pois
expõe a ideologia do convencimento perverso que o capital opera hoje no plano
lingüístico-locucional: fracasso é sucesso; morte é vida ou ainda, sofrimento é
redenção. Enfim, estamos diante da ideologia da auto-flagelação. Face ao inevi-
tável só nos resta adaptar-se ativamente, visando reinserir-se com atitudes pró-
-ativas, sempre individualmente, na “roda vida” do sistema; ou melhor ainda: é
importante – e decisivo – ver o lado positivo da negatividade do capital. Como
tratamos com destinos individuais, o consultor motivacional deve ter perspicácia
para verificar as possibilidades positivas contidas na tragédia da demissão e do
desemprego. Talvez Ryan Bingham exerça o papel de ilusionista social. Ele deve
ter a habilidade profissional para fazer as pessoas demitidas acreditarem que ou-
tra vida é possível; ou melhor, fazê-las acreditar na positividade do estranhamento.
Numa das suas entrevistas, Ryan Bingham demonstra, com genialidade, a arte
de transformação do fracasso profissional em realização pessoal. Um homem de-
mitido está inquieto: não sabe o que dizer para mulher e filhos. Nesse momento,
Bingham é acompanhado pela jovem Natalie Keener, colega de trabalho que quer
aprender (e exercitar) a arte de demitir pessoas, reconfortando-as e instigando-as
a adotarem atitudes pró-ativas na superação do desemprego.
Num primeiro, momento, é a jovem Natalie Keener quem o entrevista. Ela
pergunta: “Subestima o efeito positivo dessa transformação sobre seus filhos?”.
A resposta do homem demitido é ironicamente contundente. Diz ele: “Efeito po-
sitivo? Ganho 90 mil por ano. O seguro-desemprego dá 250 dólares por semana,
É um efeito positivo? Ficaremos mais aconchegados sem pagar a prestação da
casa, porque nos mudaremos para um apartamento de quarto e sala. E sem os
benefícios poderei abraçar minha filha, que sofre de asma, já que não poderei
pagar a medicação.” Indiferente ao drama humano, Natalie utiliza um argumento
tipicamente tecnocrático para legitimar a desgraça pessoal do demitido. Diz ela:
“Os testes mostram que crianças sob trauma moderada, tendem a se empenhar
academicamente como forma de colaborarem.” Indignado com a argumentação
dela, o homem demitido exclama: “Vá à merda. É o que meus filhos pensarão.”
Ryan Bingham percebe que a linha tecnocrática de argumentação utilizada
por Nathalie não funciona. É preciso utilizar outra linha de convencimento. Ele
questiona o homem demitido: “A admiração de seus filhos é importante?”. Eis o
ponto nevrálgico da estratégia do convencimento a ser utilizada por Ryan: deve-se
manipular a percepção (e auto-percepção) que o homem demitido tem de seus

75
Trabalho e Cinema • Volume 4

filhos e de sua família. É um elemento importante da construção do self. Bingham


observa: “Duvido que o admirassem”. O homem demitido fica intrigado com a
observação, pois, segundo ele, Ryan devia consolá-lo e não questioná-lo. “Não sou
terapeuta, só vou alertá-lo”, diz Ryan.
A atitude calculada de Ryan Bingham é mais um elemento da estratégia de
convencimento: o distanciamento desinteressado como meio para legitimar o argu-
mento. Bingham só quer alertá-lo – e nada mais. Ele interroga o homem demitido:
“Por que crianças amam atletas?”. E ele mesmo responde: “Crianças amam atletas
porque perseguem seus sonhos”. Eis a questão: o homem demitido deve perseguir
seus sonhos se quiser que seus filhos o admirem. De modo hábil, Ryan sabia que
o homem demitido tinha sido, há tempo, especialista em cozinha francesa. Muito
provavelmente, o sonho dele era ser cozinheiro profissional. Entretanto, em al-
gum momento, depois da faculdade, abandonara o sonho, vindo a trabalhar na
empresa que hoje o demite. Ryan pergunta: “Quanto pagaram para desistir do seu
sonho?”. E arremata: “E quanto pretendia pagar para fazer o que gosta?”.
O homem demitido, pondera e exclama: “Boa pergunta!”. E Ryan Bingham
conclui com sua lição de vida: “Vejo pessoas trabalhando na mesma empresa a
vida toda, como você. Chegando e saindo todo dia. E não têm um momento de
alegria. Então é a sua oportunidade, Bob! Isto é uma renascimento. Se não fizer
por você, faça por seus filhos!”. Enfim, eis o sentido magistral da argumentação
de Ryan – no caso de Bob, o desemprego é uma oportunidade de renascimento
pessoal. Ao perseguir seus sonhos, Bob, o homem demitido, poderia reconquistar
a admiração dos filhos. Nesta cena, estamos diante do filme como representação
ideológica. Na verdade, a ideologia contida na narrativa fílmica de “Up in the Air”
aparece, em todo seu esplendor, nas últimas cenas do filme, por meio dos singelos
depoimentos de homens e mulheres demitidos. Como exige a operação ideológica
que legitima o desemprego como fato natural, expõe-se o desemprego como tra-
gédia irremediável e portanto, natural - do ciclo da vida econômica. Por exemplo,
uma mulher demitida – e há muitos depoimentos de mulheres demitidas no de-
correr do filme ! - diz: “Há muita gente desempregada. Realmente não sei quando
haverá luz no fim do túnel.”. Mas há também muitos depoimentos de homens ne-
gros demitidos no filme (é curioso que seja um homem negro demitido que ex-
presse a ideologia do filme. Diz ele: “Não sei dizer do que me orgulho. Me orgulho
dos meus filhos!”). A linha ideológica de reconforto pessoal dos desempregados
por meio do reconhecimento da sua vida familiar, predomina nos depoimentos
que constam no final do filme.

76
O mundo do trabalho através do cinema

Num primeiro momento, temos a auto-percepção da redundância do trabalho


vivo (“há muita gente desempregada!); e da irremediável contingência da força de
trabalho (“Acho que a raiva vem do fato de que eu não era mais necessário!”). De-
pois, num segundo momento, homens e mulheres demitidos são obrigados a reco-
nhecer o valor da família e dos amigos no reconforto do fracasso profissional. Um
homem negro demitido observa: “Diria que sem meus amigos e minha família, não
teria conseguido”. Um homem branco observa: “Seria bem mais difícil se eu estives-
se sozinho”. A seguir, outro homem demitido diz: “Quando acordo de manhã, olho
em volta e vejo minha mulher. Aí sim, consigo ver sentido nas coisas.”

Afetos do desempregado
inferioridade
Rancor
Ódio
Luto
perplexidade
culpa
Injustiça pessoal
frustração
decepção
preocupação
medo
Auto-flagelação

Os dois últimos depoimentos de demitidos na cena final do filme são de uma


mulher e de um homem negro (os dois maiores contingentes de gênero e etnia
atingidos pela onda de demissões nos EUA). Diz a mulher: “O dinheiro mantém
você quentinho; ele paga a conta da calefação; ele compra o cobertor; mas ele não
esquenta como o abraço do meu marido”. E o homem negro conclui, afirmando:
“É o que me permite levantar, sair e procurar alguma coisa: meus filhos são o
sentido da minha vida. Minha família.” Deste modo, percebemos como opera a
ideologia legitimadora do desemprego.

77
Trabalho e Cinema • Volume 4

É importante observar que o desemprego em massa tornou-se, sob o capi-


talismo global, um problema estrutural que descontrói o homem-que-trabalha.
Devido a lógica da financerização, os downsizing tornaram-se práticas corpora-
tivas constantes. O capitalismo global tornou-se máquina de destruir carreiras
profissional. Por isso, tornou-se necessário elaborar, de forma sofisticada, um
memorando íntimo capaz de auto-legitimar o desmonte pessoal do homem-que-
-trabalha.
O filme “Up in the Air” contém uma série de depoimentos de homens e
mulheres demitidos, brancos e negros, a maioria na faixa etária da meia-idade,
que ilustram o drama humano exposto no filme. Trata-se de homens e mulheres
condenados à exclusão social, pois muitos deles, devido a idade, terão imensas
dificuldades de recolocação profissional. Eles expõem, nas suas falas narrativas,
a deriva pessoal que se origina da mescla de sentimentos de decepção, frustração
e injustiça pessoal. No seu íntimo, os demitidos ou desligados, exclamam: “Não é
justo!”. Por exemplo, um deles, o primeiro depoente do filme, um homem negro,
diz: “É isso que eu ganho em troca de 30 anos de serviço?”. A seguir, uma mulher
branca, observa: “Tem muito peito em demitir a melhor funcionária daqui.” Outra
diz: “É ridículo. Tenho sido uma boa funcionária há mais de 10 anos, e é assim que
você me trata?”. Mais adiante, a mulher demitida assevera: “Não estava esperando
por isso...”. E outra observa: “Estou frustrada. Dediquei a minha vida...”. Ou ainda:
“Não é justo”. Ao lado da mescla de sentimentos de decepção, frustração e injus-
tiça pessoal, temos também, ali e acolá, sentimentos de culpa e perplexidade. Um
homem branco demitido exclama: “Fiz algo errado? Posso fazer de forma diferen-
te?”. Ryan Bingham tenta consolá-lo com argumentos obviamente inverídicos. Diz
ele: “Não foi uma avaliação da sua produtividade. Não é nada pessoal!”.
É claro que o ato de demissão não teve um caráter pessoal. Mas é improvável
que a empresa não tenha utilizado uma avaliação de produtividade como critério
de demissão. Talvez o conceito de produtividade utilizado tenha sido outro to-
talmente diverso daquele conceito convencional de produtividade. Na época do
capitalismo global, o conceito de produtividade é tão fictício, quanto o próprio
capitalismo. É produtivo aquilo que é adequado à valorização do capital fictício.
O que significa que a produtividade não se mede pelo esforço e dedicação pessoal
dos empregados e operários. Por isso, a indignação e perplexidade de homens e
mulheres demitidos que se dedicaram de corpo e alma à empresa há anos e que,
de repente, são demitidos.

78
O mundo do trabalho através do cinema

Num primeiro momento, como expressa alguns depoimentos de demitidos,


emerge o sentimento de culpa, afinal a culpabilização das vítimas é um mecanis-
mo ideológico recorrente no capitalismo global. Diante da perplexidade íntima de
deriva pessoal, exclamam: “Por que eu? O que farei agora?”. É expressão suprema
de insegurança pessoal decorrente da situação-limite – o desemprego – que equi-
vale à morte social.
Na sociedade capitalista, o homem-que-trabalha só possui como meio de
subsistência pessoal, a venda da sua força de trabalho. É por meio do trabalho as-
salariado que as individualidades pessoais de classe constroem sua identidade so-
cial e pessoal. Como diz a canção, “sem o seu trabalho, um homem não tem honra
e sem a sua honra, se morre, se mata”. No caso da sociedade mercantil complexa,
como é o caso da sociedade capitalista, o emprego estável contribui para o equilí-
brio pessoal de homens e mulheres assalariadas. Emprego e salário na sociedade
do trabalho abstrato são mediações inelimináveis para a afirmação da identidade
social, principalmente entre trabalhadores de “colarinho branco”, implicados com
o consumo e o fetichismo da mercadoria (eles compõem a maioria dos homens e
mulheres demitidas do filme).
Como observou um homem demitido, o sentimento da demissão é como um
sentimento de morte em família – fenecimento de um laço vital que compõe a pes-
soa humana de classe, o laço vital da força de trabalho como mercadoria. Enfim,
o sentimento de demissão é um sentimento de luto. Diz ele: “Dizem que perder
o emprego causa o mesmo estresse que morte na família. Mas, particularmente,
sinto que as pessoas com quem trabalhava eram a minha família, e eu morri.”
Na verdade, o homem demitido se estressa pela morte de (uma parte de) si pró-
prio. Deste modo, o desligamento do local de trabalho enquanto desligamento
da “comunidade salarial” é o desligamento da fonte que mantém efetivamente
vivo o homem burguês. No seio das individualidades pessoais de classe, existe
uma candente contradição entre a parte de si, representada pelo trabalho vivo, e
a parte de si representada pela força de trabalho como mercadoria. Além disso,
mesmo imerso no trabalho estranhado, o homem-que-trabalha encontra espaços
de sociabilidade humana no interior das relações sociais instrumentais que pre-
dominam nos locais de trabalho.
Como mediador do processo de desligamentos, Ryan Bingham é alvo imedia-
to da fúria dos homens e mulheres demitidos. Este é, com certeza, um elemento
de insalubridade emocional na profissão de Bingham. Ele executa o trabalho sujo
da lógica da acumulação capitalista. Talvez ele se sinta (e deve se sentir), co-autor

79
Trabalho e Cinema • Volume 4

das demissões em massa. Bingham torna-se, de fato, “testa-de-ferro” das misé-


rias do capital. Por isso, como persona do capital, e sendo, ele próprio, do mesmo
modo, oprimido pelo capital, ele representa, em si e para si, a contradição viva que
permeia a pessoa humana de classe.
Para quem vive nestas “localizações contraditórias de classe”, como diria o
sociólogo marxista Erik Olin Wright, os conflitos íntimos são intensos, muitos
deles deslocados pelos mecanismos de defesa do ego. Por isso, talvez as atitudes
de Ryan Bingham com respeito a sua vida afetiva – seu radical descompromisso
em assumir laços afetivos – sejam mecanismos de defesa do ego. Ele não quer se
comprometer, e justifica seu desinteresse em comprometer-se, como uma forma
de evitar sofrimento psicológico em decorrência da função profissional que exer-
ce. Ele precisa negar para si, aquilo que é intimado a desconstruir nos outros.
Entretanto, o curioso é que, mesmo assim, Ryan Bingham reencontra irremedia-
velmente aquilo que nega para si: os laços familiares como último refúgio contra o
desmonte pessoal do mundo do capital.
Devido o seu papel de “testa-de-ferro” do capital em processo, Ryan Bingham
é obrigado cotidianamente a enfrentar ódios e rancores voltados contra si. Não é
a toa que um homem demitido exclama: “Como consegue dormir à noite, cara?
Como vai a sua família? Eles dormem bem? Sua luz não foi cortada? Tem calefa-
ção? A geladeira está cheia de comida?” Talvez por isso, Ryan Bingham, homem
solitário, que resiste a constituir laços afetivos, seja o homem ideal para sua pro-
fissão. É conveniente para si, que ele não conceba, nem sequer no plano da ideali-
zação possível, o desmonte de sua vida familiar. Ele precisa estar suficientemente
leve para se mover diante das turbulências da vida liquida do capitalismo global.
Na verdade, Ryan Bingham nasceu literalmente para a sua profissão.
As reações das pessoas demitidas e desligadas do emprego no filme expres-
sam um grau de consciência contingente da classe. Diante do desígnio abstrato da
demissão injustificável – provavelmente, as demissões do filme sejam “demissões
imotivadas” - homens e mulheres demitidos revoltam-se individualmente, não
contra a empresa, visto que ela aparece como ente abstrato (“sociedade anôni-
ma”); mas sim, contra o profissional que comunica a demissão e pior, procura
reconfortá-las. Um dos demitidos exclama: “Mandam um idiota como você para
me dizer que perdi o emprego? Deviam tirar você do seu emprego.”. Logo a seguir,
outra observa: “Você vai pra casa com muito mais dinheiro e eu vou sem o meu
salário. Vá a merda!”; ou ainda: “Não sei como consegue viver consigo mesmo,
mas dará um jeito, enquanto nós sofremos”. Deste modo, trata-se da reação de es-

80
O mundo do trabalho através do cinema

pontaneidade da consciência contingente de classe, que impede a constituição da


consciência necessária, na medida em que transfere a indignação imediata para
uma pessoa humana que funciona como “bode expiatório”. A massa indignada
não consegue ir além da miséria econômico-corporativa, descarregando seu ódio
e rancor contra uma pessoa imediata ou mesmo uma empresa em particular. Tor-
nam-se incapazes de constituir, por si só, no plano da percepção e entendimento,
as mediações ético-politicas do processo de critica social capaz de apreender a
verdadeira natureza da sua condição existencial de proletariedade.
Ryan Bingham e Natalie Keener, tanto quanto os homens e mulheres demi-
tidos, são vítimas oprimidas pelo sistema sociometabolico do capital. Tanto eles,
como os outros, estão irremediavelmente subsumidos à condição existencial de
proletariedade, isto é, vivem numa situação de estranhamento social no senti-
do de terem diante de si, obstáculos sociais (e institucionais) ao pleno desenvol-
vimento pessoal como ser genérico. Na verdade, a categoria “capital” entendida
como modo de controle estranhado do metabolismo social, é uma categoria teóri-
ca indispensável para a construção da perspectiva científico-radical de critica da
condição existencial de proletariedade.
Bertold Brecht observou: “Creio que não percebe quão difícil é para os opri-
midos tornarem-se unidos. A sua miséria une-os (...). Mas, por outro lado a sua
miséria é capaz de separá-los uns dos outros, pois são forçados a arrancar as po-
bres migalhas das bocas uns dos outros”. Deste modo, é ilusão acreditar que es-
pontaneamente os oprimidos diante de sua deriva pessoal possam unir-se e dar
uma resposta coletiva às misérias humanas provocadas pelo mundo do capital.
Pelo contrário, a miséria do capital é tão contraditória quanto o próprio capital –
aquilo que une os oprimidos, também é capaz de separá-los na medida em que
não conseguem ir além da consciência contingente de classe.
Na mesma direção, o educador Paulo Freire salientou: “À força de ouvirem de
si próprios que são indolentes, que são improdutivos, que nada sabem, os oprimi-
dos se persuadem da inferioridade de sua classe. Não se estranha, por isso, que os
trabalhadores que se tornam capatazes de seus antigos camaradas, tomem uma
posição ainda mais opressora do que a que o opressor teria: o sonho do oprimido,
quando sua educação política é muito baixa, não é libertar, nem mesmo libertar-
-se: seu sonho, sua utopia necrófila, é um dia poder oprimir.”
O que significa que a miséria do capital possui a capacidade intrínseca de
reiterar, em si e para si, a alienação de homens e mulheres oprimidos, na medida
em que ela, de modo perversamente pedagógico, desconstrói a auto-estima das

81
Trabalho e Cinema • Volume 4

individualidades pessoais de classe. Deste modo, o processo de culpabilização das


vítimas – o mais sofisticado processo ideológico vigente no capitalismo global - é
um modo de desconstruir a capacidade íntima das pessoas reagirem, de forma
radical, à miséria do capital. Para libertar-se e libertar os outros, é preciso acredi-
tar em si e não cultivar sentimentos de inferioridade de classe. Caso contrário, os
oprimidos encontrarão como resposta contingente a sua opressão, a opressão de
si mesmos, cultivando o que Freire denominou “utopia necrófila” (é interessante
que o psicanalista marxista Erich Fromm salientou, na mesma direção, que o ca-
pitalismo tardio tende a disseminar, segundo ele, o sentimento de necrofilia, isto é,
uma vez na sociedade capitalista alienadora, o homem perde o espontâneo amor
à vida que se transforma alternativamente, em terrível amor à morte).
Nos depoimentos de homens e mulheres demitidos, existe o sentimento de
preocupação com o futuro danificado. Esta é uma pré-ocupação incisiva que pa-
ralisa as pessoas demitidas. O homem é um animal utópico, isto é, nossa práxis
cotidiana é mediada não apenas pelas experiências vividas no tempo-passado
e tempo-presente, mas também pelas experiências expectantes, experiências do
tempo futuro no sentido de expectativas socialmente construídas.
A modernidade do capital desligou homens e mulheres dos laços de comuni-
dade, jogando-os no mercado de trabalho. O capitalismo histórico, ao destruir os
laços tradicionais da comunidade humana, afirmou o estado de desamparo efetivo
de homens e mulheres. O desamparo é um dos traços da condição existencial de pro-
letariedade. Os existencialistas apreenderam com vigor, este traço da condição de
proletariedade, mas transformaram o desamparo numa condição metafísica – con-
dição humana - e não numa condição histórica determinada pelas relações sociais
do mundo do capital. Para os existencialistas – que se mantém, portanto, no ponto
de vista da economia política, isto é, não têm uma visão histórica da miséria social
do homem - o homem é um ser jogado no mundo, destinado a morte.
Sob o capitalismo histórico, o emprego assalariado com benefícios de seguri-
dade social ou a carreira profissional fordista-keynesiana (a idéia de carreira vita-
lícia), tornou-se uma construção histórica da época do capitalismo ascendentes,
laço social possível capaz de garantir as pequenas utopias pessoais na preservação
da família e no atendimento às necessidades necessárias (como pagar a prestação
de uma casa). Por exemplo, uma mulher negra demitida assevera: “Não posso
ficar desempregada. Tenho prestações da casa e filhos.” Um homem exclama:
“Como vou explicar à minha mulher que perdi o emprego?”. Enfim, a demissão é
a desconstrução das experiências expectantes e a dissolução dos elos possíveis de

82
O mundo do trabalho através do cinema

identidade pessoal. O que significa que, sem a providência de segurança do empre-


go, não há utopia salarial possível.
Na verdade, a indignação das pessoas demitidas ocorre devido a “captura”
das utopias pessoais vinculadas às relações humanas essenciais inscritas no corpo
familiar. Embora a ideologia da narrativa fílmica de “Up in the Air” apele para a
família como último refúgio da pessoa humana demitida, numa situação de de-
semprego de longa duração e precarização do trabalho, a família danifica-se irre-
mediavelmente, não escapando intacta da implosão das experiências expectan-
tes vinculadas à carreira profissional. Talvez, num primeiro momento, ela possa
constituir efetivamente o lar aconchegante capaz de amortecer a deriva pessoal.
Entretanto, na medida em que o desemprego se torne de longa duração, ocorrem
abalos estruturais nos laços familiares. A força do mercado se impõe com vigor.
A maioria dos homens e mulheres demitidos no filme são de meia-idade, o
que significa que devem encontrar dificuldades de encontrar novos empregos,
pelo menos com o mesmo padrão salarial. O espectro da exclusão social os per-
segue. Por isso, uma das mulheres negras demitidas só encontra na perspectiva
da morte, sua redenção pessoal. Ela opta pelo suicídio. Em seu depoimento, ela
demonstra firmeza de atitude, agindo assim, de forma racional. Nada questiona
com a jovem Natalie que a interroga. Não recusa-se ser reconfortada. A demissão
é quase um desígnio inexorável dos deuses. Diz: “Vou ser demitida, certo?”. E de-
pois exclama: “Não precisa aliviar. Conheço o procedimento.” Apesar disso, ainda
pergunta: “O que me oferecem?”. É no depoimento desta mulher negra que conhe-
cemos as indenizações oferecidas aos empregados demitidos. Diz Natalie Keener,
tentando, sem sucesso, aliviá-la. “É muito boa. 3 meses de salário. 6 de assistência
médica. E 1 ano de serviços de recolocação no mercado.” A mulher negra demi-
tida ironiza o serviço de recolocação oferecido: “Serviço de recolocação. É bem
generoso”. Mas sabe que as chances de encontrar outro emprego são diminutas.
Entretanto, a mulher negra demitida tem outros planos. Diz ela: “Tem uma bela
ponte perto de casa. Vou pular dela.”
Trata-se de uma atitude de desespero racionalmente calculada. Natalie trans-
torna-se com o plano de suicídio da pobre mulher. Não se sente bem diante de
alguém que decidiu renunciar a própria vida. Na verdade, Natalie sente co-autora
da demissão suicida. Ryan tenta acalenta-la dizendo: “Eles nunca fazem isso”.
Mais adiante, iremos ver que Ryan se enganou ao subestimar o que o desespero
provoca em certas personalidades singulares.

83
Trabalho e Cinema • Volume 4

Um dos recursos psicológicos de defesa do ego que alguns demitidos mobi-


lizam para aceitar o inaceitável é conformar-se, isto é, resignar-se, afirmando: “eu
não sou o único”. É preciso fazê-los se conformar com a demissão como destino.
Por isso, um dos homens demitidos observa: “Devia me sentir melhor por não ser
o único?”. A idéia de compartilhar um destino coletivo é tranqüilizadora. Entre-
tanto, os mecanismos de defesa do ego não agem de forma perene, como supõe o
freudismo. Por exemplo, eles encontram resistências interiores na pré-consciencia
lastreada em sonhos expectantes que não deixam de reconhecer a candente injusti-
ça cometida pelo capital em processo. Muitos dos demitidos sabem que não foram
os únicos a serem demitidos. Embora isto contribua para reduzir o sentimento
de culpa, por outro lado, não reduz a frustração e decepção com o establishment.
Ryan e Natalie tentam convencer homens e mulheres demitidos que, não exis-
tem caminhos de flores para o sucesso. Os transtornos do desemprego devem ser
encarados como etapas necessárias para a realização pessoal e sucesso profissio-
nal futuro. Diz Natalie, num certo momento, que o trabalho dela – e de Bingham
– deve ser “um processo que culmina com você se realizando num novo emprego.”
Os homens e mulheres de sucesso também passaram por dificuldades. Assim, o
discurso ideológica de Ryan e Natalie expressa um modo de convencimento espú-
rio utilizado pela ideologia do capital que incorpora o apelo para a auto-flagelação
como meio da redenção pessoal. Auto-flagelação e atitude pró-ativa na busca de
um novo emprego – eis o apelo de Ryan e Natalie. É uma prática ideológica que,
ao lado da culpabilização das vítimas, visa legitimar, em última instância, o ilusio-
nismo social. É uma mera peça ideológica que não visa convencer ninguém, mas
apenas afirmar a farsa como modo estranhado de metabolismo social do capital.
Por exemplo, ao demitir o Sr. Samuels, de 57 anos – demissão à distancia por
meio da tela do computador – Natalie tenta convencê-lo de que melhores oportu-
nidades o aguardam. Samuels trabalhou 17 anos para a empresa e agora, diz ele,
“mandam uma estudante me despedir?”. E exclama: “Que merda é essa?”. Como
“testas-de-ferro” do capital, Natalie e Ryan nada podem dizer a não ser repetir o
script do convencimento espúrio: “Quem construiu impérios e mudou o mundo
passou por isso. E por ter passado por isso, obteve sucesso.”
É interessante que a psicologia do convencimento espúrio utilizado pelo capital
em sua prática ideológica, incorpora um conjunto de sentimentos perversos de
manipulação da alma humana que foram utilizados, em tempos pretéritos, pela
religião católica. Por exemplo, a exploração do sentimento de culpa para cerce-
ar os carecimentos radicais; e a auto-flagelação como recurso para obtenção do

84
O mundo do trabalho através do cinema

sucesso como redenção pessoal. Na verdade, trata-se de um modo de esmagar a


auto-estima pessoal e paralisar a capacidade humana de dar respostas radicais à
opressão do capital. O capital manipula hoje, de forma intensa, tais sentimentos
de medo, culpa e auto-flagelação como recursos de dissuação dos sujeitos huma-
nos indignados com sua condição existencial de proletariedade.
Além da análise dos depoimentos de homens e mulheres demitidas (os de-
poimentos que aparecem no filme “Up in the Air” não constam no romance
homônimo de Walter Kirn), seria interessante analisar no filme, o discurso de
Ryan Bingham em suas palestras motivacionais. É uma notável peça discursiva
que contém a ideologia do personagem Ryan Bingham, “testa-de-ferro” do capital
como contradição viva em pessoa.
A idéia do homem solitário, pioneiro desbravador desvinculado de laços afe-
tivos capazes de impedir sua missão civilizatória, é parte do mito heróico norte-
-americano. Ela está presente, por exemplo, no cinema de Hollywood, com os
clássicos do gênero Western - John Wayne (como Ethan Edwards) em “Rastros de
Ódio” ou Alan Ladd (como Shane) em “Os Brutos \também Amam”. A figura do
herói solitário é exemplo do herói pioneiro da open road (a estrada está aberta).
Por exemplo, o velho Oeste nos EUA do século XIX era uma estrada aberta para os
pioneiros desbravarem a fronteira da civilização e buscarem o sonho da pequena
propriedade (the farm). É claro que, por trás do ideal histórico da conquista do
Oeste, havia a tragédia da expulsão (e massacre) dos povos indígenas de suas ter-
ras. De certo modo, Ryan Bingham, como homem desvinculado de laços afetivos,
representa, de forma tardia, o mito do “herói solitário”. Na medida em que é uma
representação tardia, possui uma intensa carga ideológica, pois oculta que não
existem mais heróis pioneiros e desbravadores na sociedade do capital monopo-
lista. Enfim, the road is closed (a estrada está fechada).
Como epigrafe do seu romance “Up in the Air”, Walter Kirn faz uma longa
citação de um poema de Walt Whitman, poeta norte-americano do século XIX,
que celebra o herói desvinculado. O poema faz parte do livro The Songs of the
Open Road. Diz ele:

“Estes são os dias que lhe devem acontecer:


Não amontoará aquilo a que se chama riquezas.
Espalhará com mão generosa tudo o que
ganhar ou conseguir,
Mal chega à cidade a que se destina,

85
Trabalho e Cinema • Volume 4

nem chega a instalar-se com satisfação


antes de ser solicitado
por um irresistível apelo à partida,
Terá de lidar com os sorrisos irônicos
e a troça dos que ficam atrás de si,
Sejam quais forem os sinais de amor que receber,
só responderá com beijos apaixonados de separação,
Não permitirá o controle
daqueles que lhes estendem as mãos”.

Deste modo, Ryan Bingham é o homem desvinculado dos afetos que pesam.
Ele quer ser demasiadamente leve para poder se mover nas highway da civilização
do capital. Como diz o poema: “Sejam quais forem os sinais de amor que rece-
ber, só responderá com beijos apaixonados de separação”. E mais: “Não permitirá
o controle daqueles que lhe estendem as mãos.” Entretanto, a ideologia da open
road é uma ideologia retrograda, no sentido de que não existem mais territórios
a serem desbravados no mundo histórico do capital monopolista: the road is clo-
sed. O pioneiro desbravador do Oeste norte-americano, a individualidade heroica
tão cultivada pelo cinema de Hollywood, tornou-se o mito ideológico utilizado
pelo capital para ocultar a farsa da liberdade individual sob a ordem burguesa
oligopolizada. No mundo social da corporação industrial, o individuo moderno é
apenas aquilo que o sociólogo Max Weber descreveu no século XX com estas pa-
lavras: “...é horrível pensar que um dia o mundo será ocupado somente por estas
pequenas peças, por pequenos homens que se agarram a pequenos empregos e
procuram obter outros maiores – uma situação que...tem um papel crescente no
espírito de nosso sistema administrativo presente...Esta paixão pela burocracia é
suficiente para pôr-nos em desespero...A grande questão não é saber como pro-
mover e estimular esta evolução, mas como se opor a esta máquina para manter
uma parte da humanidade livre desse desmembramento da alma, desta suprema
dominação do modo burocrático de vida.” [o grifo é nosso]. Ao invés das imensas
planícies do Velho Oeste, Ryan Bingham flutua nas nuvens que lhe dá a sensação
de desvinculação com o território do capital. Entretanto, é um homem cercado
pelas grandes corporações que organizam seu trajeto profissional e de vida. Ele
é mais uma das “pequenas peças” que compõem a engrenagem do capitalismo
monopolista, submetido a “dominação do modo burocrático de vida”.

86
O mundo do trabalho através do cinema

Deste modo, Bingham, além de ser um herói farsesco, é também, um pós-herói


problemático. É o avesso do Carlitos, de “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin.
Ele está na máquina do capital corporativo irremediavelmente adaptado à ordem
sistêmica com seu modo burocrático de vida. Bingham nada contesta, apenas se
adapta. Inclusive, recusa inovações organizacionais, como aquelas propostas pela
jovem Natalie Keener, porque aquilo iria desequilibra-lo intimamente. A idéia de
Natalie de demitir pessoas pela Internet o assusta. Diz ela: “O nosso global tem
que se tornar local”. Ryan Bingham discorda da reestruturação organizacional
proposta por Natalie Keener, não apenas porque o impede de viajar e quebra sua
rotina profissional, mas porque é...desumana. Apesar de adaptado à máquina do
sistema desumano do capital, Bingham acredita que podemos dar às pessoas uma
“execução” digna, isto é, pelo menos demiti-las pessoalmente.
É curiosa (e cômica) a cena em que Natalie se transtorna porque o namorado
acabou o relacionamento afetivo utilizando um SMS (torpedo) de celular. Brian,
o namorado de Natalie, apenas disse: “É hora de sair com outras pessoas”. Enfim,
além de utilizar o meio virtual, que é frio por natureza, ele não foi nada direto com
ela. Bingham aproveita para retrucar, de forma irônica: “É igual demitir alguém
pela Internet”.
Em suas palestras motivacionais, é curioso que Ryan Bingham trate da vida
refletindo sobre o trabalho (e vice-versa). Na verdade, o filme “Up in the Air” dá-
-nos uma lição de vida ao invés de uma lição de organização empresarial, embora
o discurso do personagem no filme esteja dirigido a empresários. Ryan Bingham
faz o mesmo que os gurus de administração de empresa fazem, incluindo Taiichi
Ohno no seu livro clássico “O Sistema Toyota de Produção”: pensam o mundo da
produção utilizando exemplos da vida prática. Além do pragmatismo convencio-
nal, existe a percepção de que hoje, mais do que nunca, a sabedoria da vida está
imiscuída pela sabedoria do trabalho.
No mundo do capitalismo flexível, a vida reduziu-se ao trabalho; e o trabalho
tornou-se o ethos da vida. A produção do capital interverteu-se em totalidade so-
cial. Portanto, ao contrário do que dizem alguns autores, como Jurgem Habermas,
André Gorz e Claus Offe, o “paradigma da produção” se impõe hoje a cada um de
nós, transcendendo os muros das empresas. Por isso, a literatura de auto-ajuda se
confunde com o discurso dos gurus da administração de empresas (e vice-versa).
Eis a prova cabal da centralidade do trabalho no tempo histórico da mundializa-
ção do capital.

87
Trabalho e Cinema • Volume 4

Ryan Bingham começa interrogando a platéia de executivos de grandes em-


presas: “Quanto pesa a sua vida?”. E prossegue, transpondo a idéia da lean produc-
tion (produção enxuta) para a idéia do que podemos denominar lean life (vida
enxuta). Talvez esta seja o mesmo que a idéia de “vida líquida” (Bauman). Diz
Ryan Bingham:
“Imagine-se por um segundo carregando uma mochila. Quero que sintam
as alças nos ombros. Está sentindo? Quero que a encham com tudo o que têm
em suas vidas. Comecem com as coisas pequenas das prateleiras e gavetas. Bugi-
gangas e coleções. Sintam o peso aumentar. Acrescentem coisas maiores. Roupas,
louças, abajures, roupa de cama. Sua TV. Está ficando pesada. Coisas maiores ain-
da. Seu sofá, sua cama, sua mesa da cozinha. Coloquem tudo aí dentro. Seu carro,
coloquem-no aí. Sua casa, seja um quitinete ou uma casa de 2 quartos. Quero que
coloquem tudo dentro dessa mochila. Agora tentem andar. É meio difícil, não?
É isso o que fazemos diariamente. Nos enchemos de peso até não podermos nos
mover e podem estar certos: mover-se é viver.”
E depois, Bingham, sugere a saída: “Agora vou jogar a mochila no fogo. O
que vocês tirariam? Fotos? Fotos são para pessoas que não conseguem lembrar.
Tomem gingko biloba e deixem as fotos. Na verdade, deixem queimar tudo e se
imaginem acordando amanhã sem nada. É bem estimulante, não?”. A frase cru-
cial é a afirmação de Bingham: “É isso o que fazemos diariamente. Nos enchemos
de peso até não podermos nos mover e podem estar certos: mover-se é viver”.
Para ele, mover-se é viver; portanto, quanto menos vínculos e compromis-
sos tivermos, mais leves seremos e nos moveremos com mais facilidade. Ryan
Bingham prega, portanto, a idéia de um homem-desvinculado-que-flui – como o
capital – de um lugar para o outro. É um homem desterritorializado, pois o terri-
tório é o vínculo primordial de homens e mulheres. Num primeiro momento, ele
trata de coisas materiais - coisas pequenas e coisas maiores, como ele diz, - mas,
ele utiliza da “metáfora das coisas” para falar de pessoas. Enfim, sem o saber, ele
expõe o fetichismo das mercadorias que permeia a vida social: falamos das pes-
soas humanas como se falássemos de coisas; e tratamos as coisas como se fossem
pessoas humanas. Diz ele, noutra palestra, quando prossegue com seu discurso
motivacional:
“Vocês têm uma mochila nova. Só que desta vez, quero que a encham com
pessoas. Comecem com os conhecidos, amigos de amigos, colegas de trabalho,
aqueles a quem confiam seus segredos. Seus primos, tias e tios, seus irmãos, ir-
mãs, pais. E finalmente, seu marido, mulher, namorado ou namorada. Ponham-

88
O mundo do trabalho através do cinema

-nos nessa mochila. Não se preocupem, não pedirei para queima-la. Sintam o
peso dessa bolsa.” E conclui com sua filosofia de vida (“lean life”). Diz ele: “Saibam
que seus relacionamentos são os componentes mais pesados. Sentem as alças cor-
tando seus ombros? Todas as negociações, argumentos, segredos e compromis-
sos. Não precisam carregar todo esse peso. Por que não largam essa bolsa?”.
A sugestão de Bingham é absolutamente contrária àquela dada por homens
e mulheres demitidas que, nos depoimentos do final do filme, concluem que, fi-
lhos e cônjuge, isto é, a família; ou ainda, pessoas e amigos, é que dão sentido às
coisas. Enfim, o que dá sentido à vida no mundo sem sentido e desumanizador
do capital são os relacionamentos humanos. Como salientamos acima, uma das
mulheres demitidas observou: “O dinheiro mantém você quentinho. Ele paga a
conta da calefação. Ele compra o cobertor. Mas ele não esquenta como o abraço
de meu marido.”
A filosofia da lean life de Ryan Bingham é uma visão de mundo adequada à
voracidade do mundo social do capital. É a ideologia da globalização neoliberal
que incute a idéia de que, como nenhum outro mundo é possível, além do mundo
dos mercados, então só nos resta adaptar-se a ele, no sentido de preserva-se no
oceano profundo do capital. Essa adaptação à nova ordem sociometabolica do
capital tem um preço humano: a dessolidarização social.
A ruptura de laços de solidariedade social é um dos traços do capitalismo ne-
oliberal. De certo modo, por exemplo, a crise do Estado-Providência decorre das
políticas de desmonte do solidarismo social. Destroem-se coletivos do trabalho e
disseminam-se os valores do individualismo possessivo. Por isso, Bingham con-
clui sua fala dizendo: “Certos animais carregam uns aos outros e vivem simbio-
ticamente. Amantes sem sorte, cisnes monogâmicos. Não somos assim. Quanto
mais lento nos movemos, mais rápido morremos. Não somos cisnes. Somos tuba-
rões.” Nesse caso, a frase crucial é: “Quanto mais lento nos movemos, mais rápido
morremos. Não somos cisnes. Somos tubarões”. Eis o culto da ética da velocidade
que dilacera laços de solidariedade social e laços humanos.
Este é o cenário da barbárie social que expõem, como traço característico, a
desefetivação dos laços humanos em virtude da vigência do mercado. Nesse caso,
ocorre um processo de corrosão do ser genérico do homem, com consequências
desumanas no plano civilizacional. A destruição dos coletivos de trabalho, o culto
da fragmentação e da fluidez, o novo individualismo possessivo – não a posse da
propriedade particular, mas sim das coisas e da carreira profissional – compõem
o sociometabolismo da barbárie.

89
Trabalho e Cinema • Volume 4

Por exemplo, no filme “O que você faria?”, de Marcelo Pineyro (de 2004), te-
mos também a temática da dessolidarização social como um dos traços do socio-
metabolismo da barbárie. Neste filme, um dos personagens que concorre com os
demais a um cargo de executivo numa grande empresa, utiliza como lição moral,
o conto “A Lei da Vida”, de Jack London, que escreveu sobre uma tribo de esqui-
mós que migra sazonalmente. É a história de um ancião cansado, quase cego, que
sente que não pode acompanhar a tribo e então, todo o grupo pára e se despede
dele, um por um; seus filhos também, e simplesmente o deixam ali com um pouco
de lenha. O ancião senta-se na neve, tranqüilo, se lembrando do que foi sua vida. E
quando acaba a lenha, morre congelado; isto é, o ancião cansado iria pesar muito,
impedindo o deslocamento ágil da tribo nômade. Por isso, eles o deixam ali com
um pouco de lenha para morrer em paz. Como diria Ryan Bingham, “quanto mais
lento nos movemos, mais rápido morremos”.
Esta é a “lei da vida” no capitalismo neoliberal; o que explica, deste modo, a
interversão linguistico-locucional onde Morte é Vida; Liberdade é Escravidão; Paz
é Guerra. Esta corrosão lingüístico-locucional foi salientada por Herbert Marcuse,
em seu livro “A ideologia da sociedade industrial”, de 1965 (em inglês, no original,
intitula-se “The One Unidimensional Man”). Neste livro, ao observar a vigência
do homem unidimensional, Marcuse vislumbrava, sem o saber, as conseqüências
humanas do capitalismo flexivel (Marcuse, falecido em 1979, não viveu para ver
a era da globalização). Talvez Ryan Bingham seja expressão do homem unidi-
mensional marcuseano, nômade pós-moderno, homem-tubarão do capitalismo
neoliberal, homem flexível e desvinculado, inclusive de si, embora imerso num
profundo intimismo auto-centrado e particularismo narcísico, um dos sintomas
candentes do estranhamento (traços da personalidade particularista estão pre-
sentes, por exemplo, em Alex, no filme “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick).
Mas talvez Bingham seja também o herói burguês do tempo histórico do ca-
pital em sua fase de crise estrutural. Tal como aqueles homens e mulheres que
demite, Bingham está, a seu modo, numa deriva pessoal. Ele possui uma ide-
ologia pessoal: a ideologia do “tubarão”, névoa ideológica que oculta de si, sua
lenta e gradual desefetivação pessoal. Por isso, a necessidade que Bingham tem
de circular intensamente: ele gira, como o capital, que acelera, sob a crise, sua
taxa de rotação. Ele é - ele próprio - o exemplo de fluidez. É o homem liquido:
evita relacionamentos afetivos que possam comprometer sua leveza. No mundo
convulsivo do capital, flexibilidade (ou descompromisso) torna-se uma virtude
pessoal. Diante do mundo do capital que aparece como uma máquina capaz de

90
O mundo do trabalho através do cinema

triturar relacionamentos, sejam eles familiares ou relacionamentos de carreira


profissional, não convém objetivamente comprometer-se. Entretanto, não é o que
acontece. As pessoas estão, a todo momento, construindo laços sociais e afetivos
com pessoas, famílias ou empresas, buscando a felicidade, apesar de viverem no
mundo da infidelidade organizada. É a contradição candente que torna o filme,
uma narrativa interessante.
Apesar do movimento sistêmico do capital em processo, constituem-se, no
plano das sociabilidades, pequenos movimentos internos contrários à lógica abs-
trata do dinheiro que desterritorializa homens e mulheres, sugando-lhes a vida
pessoal – ou como diria Max Weber, “desmembrando a alma”. Enfim, o que deve
ser salientado não é apenas a miséria humana provocada pelo turbocapitalismo,
mas sim, as intensas (e ampliadas) contradições sociais que perpassam as indi-
vidualidades pessoais de classes. Intensifica-se a tensão candente entre a pessoa
humana e a condição existencial de proletariedade da “classe”-que-vive-da-ven-
da-da-força-de-trabalho. As contradições subjetivas que impregnam as relações
sociais humanas no mundo da instrumentalidade do capital, permeiam a narrati-
va fílmica. Por exemplo: a vida descompromissada de Ryan não o impede conhe-
cer, sem compromisso, Alex Goran. Entretanto, aos poucos, ele se envolve afeti-
vamente com ela, transgredindo seus princípios de descompromisso perpetuo.
No mundo do descompromisso fluido que caracteriza o capitalismo flexível,
corremos sempre o risco de nos comprometermos com alguém, ou ainda com
valores caros a genericidade humana. Esta é a candente dialética entre “relações
sociais instrumentais”, caracterizadas pelo descompromisso pessoal, onde os ou-
tros são apenas meios para os fins egoístas dos agentes sociais; e “relações sociais
humanas”, que implicam irremediavelmente laços interpessoais. Na verdade, uma
das características do sociometabolismo do capital é a intensa contradição entre
“relações sociais humanas” e “relações sociais instrumentais”. Elas se perpassam e
se confundem entre si nas várias instâncias da vida social.
Na modernidade do capital, estamos envolvidos, a todo momento, com re-
lações sociais instrumentais e relações sociais humanas. A vida moderna implica
irremediavelmente uma e outra, em maior ou menor proporção. A questão é que,
sob o capitalismo flexível, com a vigência do mercado desregulado, o mundo da
instrumentalidade se impõe com vigor inaudito, reduzindo o espaço-tempo para
os laços sociais humanos. Deste modo, na era da manipulação do capital, a di-
mensão do humano tende a perder-se irremediavelmente – ou melhor, a precari-
zar-se - se quisermos utilizar o conceito de precarização do homem-que-trabalha,

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Trabalho e Cinema • Volume 4

embora a dimensão do homem como ser genérico, não deixe de se manifestar,


como pressuposto negado, nos interstícios da vida social.

Mundo sistêmico do Capital

Relações sociais instrumentais Relações sociais humanas


[posição] [pressuposição]

Num primeiro momento, expusemos a dimensão do trabalho de Ryan Bin-


gham, deslocando-se pelo País, demitindo e dando conferências motivacionais.
Este é o movimento normal de sua rotina profissional, sempre no ar, nas cabines
de pressurização dos aviões e nos hotéis desconhecidos. No decorrer do filme,
Ryan circula por várias cidades norte-americanas. Num certo momento diz: “No
ano passado passei 322 dias viajando, o que significa que precisei passar 43 dias
infelizes em casa”. Para ele, cada cidade reduz-se ao aeroporto, hotel e local de tra-
balho (a empresa onde deve demitir). Ele não é um turista, mas um profissional
que circula, com seus espaços de deslocamentos reduzidos, tanto quanto a sua
vida. Aeroportos, hotéis e carros alugados são não-lugares. A modernidade do
capital constrói não-lugares. Na verdade, Ryan Bingham é um homem sem lugar.
Ryan parece não ter sonhos ou utopias, mas apenas ambições e desejos reduzidos.
Não ousa, mas curte apenas o acomodamento veloz. Ele possui pequenos desejos,
desejos reduzidos como, por exemplo, alcançar a marca de 100 milhões de milhas
no cartão de fidelidade da empresa aérea. A única fidelidade que Ryan mantém
é a fidelidade à marca das empresas que produzem seu espaço de vida reduzido
a trabalho (a empresa aérea American Airlines, a locadora de automóvel Hertz, o
hotel em que se hospeda, etc). Mas a principal é a empresa aérea; afinal, é ela que
o conduz de um lugar para o outro.
Mas a narrativa fílmica de “Up in the Air” é marcada não apenas por rela-
ções sociais instrumentais, mas por relações sociais humanas que se desdobram e
abrem novos espaços de sociabilidade que ameaçam – pelo menos potencialmen-
te – a rotina mecânica de Ryan Bingham. Por exemplo, num de seus trajetos, ele
conhece e envolve-se com a executiva Alex Goran. Bingham conhece Alex num
barzinho de hotel. Cultiva o “amor liquido”, descompromissado e fugaz. No mun-
do do descompromisso perpétuo, eles se conhecem sem compromisso.

92
O mundo do trabalho através do cinema

Mais tarde, o chefe de Ryan contrata a jovem Natalie Keener (interpretada por
Anna Kendrick), para promover inovações no trabalho da empresa: desenvolver
um sistema de videoconferência onde as pessoas poderão ser demitidas, sem que
seja necessário deixar o escritório. Diz ela: “Esta Companhia mantém 23 pessoas
viajando 250 dias por ano. É caro e ineficaz. Quando mostrei isso ao Craig há 3
meses, ele disse que só é um problema se houver solução.” Este sistema, caso seja
implementado, põe em risco a rotina de trabalho de Ryan. Diz Natalie Keener
que, com a reestruturação organizacional, o “inflado orçamento de viagem” da
empresa será reduzido em 85%. Diz ela: “E mais importante, para vocês que via-
jam, chega de Natal num hotel em Tulsa atrasados por causa do tempo. Poderão
ir para casa.”.
A última observação de Natalie aterrorizou Ryan Bingham, tendo em vista
que ele não tem um lar. Como retornar para um lugar que não existe? Na verdade,
a rotina de trabalho de Bingham é seu “lar de ferro” (como diria Max Weber a
respeito da modernidade). Por isso, ele sente uma estranha (e perversa) satisfação
nestas viagens de trabalho. Finalmente, Natalie Keener é destacada para acompa-
nhá-lo para conhecer a rotina do trabalho de Ryan. Ela viaja com ele por várias
cidades norte-americanas. Mas a preocupação de Ryan Bingham diz respeito a
percepção da irrelevância do humano, mesmo no trabalho desumano de demitir
pessoas. Diz ele para Craig: “Sou o único a ver que isto nos torna irrelevantes?”. Ir-
relevância, não apenas do trabalho vivo, substituído pela tecnologia e pelo manual
impresso que contém todas as respostas; mas irrelevância do fator humano ou das
relações sociais humanas no mundo instrumental do capital. Craig diz: “Não me
culpe. Culpe o combustível, o premio do seguro, a tecnologia”. E alerta Bingham:
“Cuidado, já está pensando como dinossauro.”
Um detalhe: existe uma sutil diferença de atitude diante do trabalho entre
Ryan Bingham, homem experiente de meia-idade; e a jovem Natalie Keener, re-
cém-contratada pela empresa. Por um lado, Natalie quer implantar a rotina da
demissão on-line via videoconferência para reduzir custos da empresa. Ela possui
uma atitude fria e mecânica na comunicação da demissão. Ela diz para o demitido
via videoconferência: “Analise o manual à sua frente. As respostas que procura
estão aí.” E conclui: “Antes que perceba, estará a caminho de novas oportunidades.
Pânico não ajuda a ninguém.”. Por outro lado, Ryan Bingham se insurge contra
o novo método de trabalho virtual sugerido por Natalie Keener. Diz ele: “O que
fazemos é brutal, arrasa as pessoas, mas há, dignidade na forma que faço.” E Craig
Gregory, chefe de Bingham retruca: “Apunhalá-las no peito em vez de nas costas?”.

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Trabalho e Cinema • Volume 4

Bingham insiste que Natalie não sabe nada da realidade do negócio dele: “Sabe
preparar um iChat, mas não sabe como as pessoas pensam.” Noutro momento ele
diz: “O MySpace não qualifica ninguém a reorganizar uma empresa.” Por isso quer
que ela o acompanhe na rotina do trabalho dos despedimentos (como ele diz,
nunca diga demitido, mas sim dispensado). Diz ele: “Antes de tentar revolucionar
o meu trabalho, gostaria que realmente conhecesse o meu trabalho”.
Na verdade, existe um contraste geracional entre Natalie Keener e Ryan Bin-
gham, o “dinossauro”. Natalie pertence a geração Z, que considera como um valor,
o trabalho virtual e as redes sociais. Por isso busca utilizá-las como ferramentas
indispensáveis de trabalho, reestruturando a rotina de trabalho da empresa e in-
corporando, deste modo, a demissão via vídeo conferencia como modo de reduzir
custos – o que atrai Craig Gregory, preocupado com os custos de produção. Na-
talie Keener não pensa no “fator humano”, mas apenas na tecnologia como meio
de racionalização do trabalho em termos de custos de produção. O uso das novas
tecnologias informacionais na rotina do trabalho de demissão, torna o Outro-a-
-ser-demitido, numa mera abstração. Além disso, ela pensa o processo de traba-
lho de demissão em termos abstrato-formal, reduzindo-o a gráficos de fluxos.
Quando Bingham pergunta o que ela acha que eles fazem, ela diz: “Preparar
desempregados para achar emprego e reduzir os processos”. Ele retruca: “Isso é
o que vendemos, não é o que fazemos.” Para Bingham, a sua tarefa primordial é
“tornar o limbo tolerável” para as pessoas demitidas. E prossegue: “Para trans-
portar pessoas feridas pelo rio do medo até a esperança se tornar vagamente vi-
sível. Depois os jogamos na água e os fazemos nadar.” Enfim, apesar de exercer
uma tarefa ingrata (e desumana), existe na atitude de Bingham, um resquício de
humanismo residual (o que não existe, por exemplo, na atitude de Natalie, mais
tecnocrática e indiferente às pessoas, talvez por ser incapaz de se por no lugar de-
las). Bingham quer tornar leve o pesado fardo da ordem do capital; e talvez Natalie
Keener represente o espírito de sua geração, que se (de)formou na temporalida-
de histórica do capitalismo manipulatório, caracterizada pelo intenso fetichismo
da mercadoria e pelos valores neoliberais, que destroem a percepção moral do
Outro-como-próximo; e a capacidade humana de vicariedade, isto é, colocar-se
no lugar do Outro.
Como narrativa paralela, uma das irmãs de Ryan, entra em contato com ele
para dizer que a irmã mais nova vai casar-se e ela quer um favor do irmão. É o
mundo da família que se intromete na rotina profissional do trabalho de Ryan.
A família de Ryan reduz-se a suas duas irmãs – Kara, a irmã separada, que se

94
O mundo do trabalho através do cinema

preocupa com os irmãos (segundo Bingham, “que vigia tudo”); e Julie, prestes
a se casar. É Kara que, preocupada com Ryan, diz, num certo momento: “Você
vive muito isolado”. Ele retruca: “Estou cercado de gente”. De fato, Bingham é o
homem solitário na multidão. Kara pede a Ryan que tire fotos de locais de cada
cidade em que ele está, ao lado da maquete do casal Julie e Jim. É como se o ca-
sal, embora não tivesse visitado o local, conseguisse estar – mesmo que de modo
virtual – numa foto daquela paisagem distante. Ryan se interroga por que a irmã
iria querer lembranças de lugares em que não esteve. Ao encontrar Julie, ela fala
por que pensou nesta interessante idéia: “O Jim investiu nosso pé-de-meia num
negócio imobiliário, um investimento imobiliário. É animador, mas ao analisar-
mos as finanças, uma lua de mel a esta altura do campeonato não é possível. Então
pensamos que, o fato de não podermos viajar não nos impede de ter fotos.”
A metáfora de Julie e Jim expõe o problema da virtualidade na modernidade
do capital. Estar ou não-estar presente; ou ainda, ser ou não-ser – eis a questão.
Entretanto, com o mundo da virtualidade, substitui-se o “ou” pelo “e”, e pode-
-se estar e não-estar, ao mesmo tempo (ou ainda ser e não-ser). É a vigência da
aparência como modo de efetividade. O virtual é uma nova dimensão do real,
aliás, um modo de contornar o real interditado: “O fato de não podermos viajar
não nos impede de ter fotos.”. Este tema surge também no diálogo virtual via chat
de celular, entre Bingham e Alex, quando ele diz estar deitado e com insônia; e
Alex sugere que ele batesse uma. Ele agradece o conselho e diz: “Só se você fizesse
também”; e ela diz: “Já fiz há tempo”; Bingham exclama: “Meu Deus! Me ligue na
próxima para eu ouvir”; e ela diz: “Sonhe comigo”.
Todo o diálogo ocorre via chat virtual, onde o que se coloca em questão é o
fato de pessoas solitárias poderem se relacionar mesmo não estando presentes.
O ciberespaço e as fantasias permitem romper o interdito da distancia. Não estar
presente é estar presente virtualmente, tal como Jim e Julie – não estar presente é
estar presente virtualmente por meio de fotos do casal em lugares distantes. Tal-
vez a lógica dialética da virtualidade que aparece no filme “Up in the Air” esteja
presente também no drama de homens e mulheres demitidos: eles estão e não
estão incluídos na ordem burguesa; ou ainda, são (e não são) individualidades
pessoais.
A virtualidade é uma temporalidade de desefetivação que se põe, como efe-
tividade plena, na dimensão do imaginário, fantasia ou desejo. Ela resgata a di-
mensão cotidiana do sonho num plano meramente instrumental. Por exemplo, ao
“bater uma” – e Bingham diria: “se você bater também” – põe-se no plano da vir-

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Trabalho e Cinema • Volume 4

tualidade, o que não está posto efetivamente: a presença do casal em intercurso.


Mas a presença da virtualidade nas cenas do filme “Up in the Air”, principalmente
a idéia do casal Julie e Jim ao querer lembranças de lugares em que não esteve,
expõe que o mundo do capital nas condições do capitalismo tardio é o mundo da
interpassividade, isto é, o mundo do fetiche.
O conceito de interpassividade diz respeito a uma inversão na ordem das coi-
sas, o que é próprio do conceito de fetichismo da mercadoria. O real virtual –
como o Simbólico em Jacques Lacan - substitui o real efetivo (o Real). É aquilo que
Slavov Zizek denomina “sujeito-suposto-gozar”, onde o Outro toma a seu cargo o
meu gozo. A satisfação de visitar lugares agradáveis e ter lembranças por meio de
fotografias é transferida para o Outro, embora, ao mesmo tempo, seja objeto de
gozo. A interpassividade implica gozar através do Outro, isto é, de ser aliviado do
próprio gozo através do Outro. Nesse caso, existe positividade tendo em vista que
o sujeito alivia-se dos transtornos possíveis de deslocar-se até o lugar.
A idéia de interpassividade ressignifica o sujeito humano, não pela mera pas-
sividade, nem pelo atividade autônoma, mas, precisamente, pela interpassivida-
de. Ela não significa que o Outro age no meu lugar; e portanto, eu sou tão-somente
passivo; mas sim, sou passivo através do outro, isto é, cedo ao outro a dimensão
passiva do meu ser (gozo), enquanto continuo ativamente implicado noutra coisa
(o casal Julie e Jim pode continuar a trabalhar enquanto Ryan registra lembranças
de lugares que eles não conhecem). Na verdade, trata-se de uma “falsa atividade”,
pois o verdadeiro gozo (e fruição vital) está encarnado no fetiche, isto é, no Outro.
Por exemplo, o sexo virtual contém traços flagrantes de interpassividade, pois,
nesse caso, sou ativo através do outro. Por isso, Ryan consegue “bater uma”, se Alex
“bater também”. Zizek observa que “a matriz fundamental da interpassividade de-
corre do próprio conceito de sujeito, enquanto pura atividade de (se) colocar (a si
mesmo) como fluidez do puro Devir, esvaziado de qualquer positividade ontoló-
gica possível.” E observa: “Se eu desejo funcionar como pura atividade, tenho de
posicionar no exterior (“externalizar”) o meu Ser (passivo) e a minha única possi-
bilidade consiste em tornar-me passivo através do outro” (Slavov Zizek, “O sujeito
interpassivo” In “A subjetividade por vir”, Ed. Relógio DÁgua, 2006).
O que o filme “Up in the Air” sugere, em termos critico-reflexivos, é que, no
mundo do capital em sua fase tardia de desenvolvimento civilizatório, com a pre-
dominância do fetichismo da mercadoria, que impregna as atividades humanas, e
com a presença de novas tecnologias informacionais, que constituem a “sociedade
da informação”, a interpassividade opera em várias situações da vida cotidiana.

96
O mundo do trabalho através do cinema

Zizek observa que Adorno, num certo momento, se interrogava se seria possível
para o sujeito, ser passivo em relação ao mundo dos objetos, reconhecer a “pri-
mazia do objeto”, sem cair no fetichismo. A preocupação de Adorno com a Angs-
tlose Passivitat – “passividade sem angústia” – é um tema cadente, tanto para ele,
quanto para Horkheimer, desde o livro “Dialética do Esclarecimento”. Entretanto,
tal tema encontra-se originalmente no Georg Lukács de “História e Consciência
de Classe”, quando Lukács caracterizou que o mundo da reificação como sendo
constituído por homens e mulheres contemplativos.
A presença de novas tecnologias informacionais contribui para a propaga-
ção da interpassividade, uma inversão reflexiva que altera o registro humano do
processo civilizatório. Por exemplo, numa reportagem de 14 de julho de 2011,
a Revista Veja observava: “‘Efeito Google’ reduz a memória”. Segundo pesquisa
divulgada na revista Science, os computadores e os motores de busca online se
transformaram em uma espécie de sistema de “memória externa”. De acordo com
a descoberta, as pessoas perdem a memória retentiva de dados, mas ganham ha-
bilidades de procura. O estudo Google Effects on Memory: Cognitive Consequences
of Having Information at Our Fingertips sugere que a população começou a usar
a internet como seu banco pessoal de dados. Para chegar aos resultados, foram
realizados experimentos com mais de 100 estudantes de Harvard para examinar
a relação entre a memória humana, a retentiva de dados e a internet. Os pesqui-
sadores descobriram que, se os estudantes sabiam que as informações poderiam
estar disponíveis em outro momento ou que poderiam voltar a buscá-la com a
mesma facilidade, não lembravam tão bem a resposta como quando achavam que
os dados não estariam disponíveis.
Enfim, o que se observa é que, no mundo da interpassividade, com impactos
na memória humana retentiva de dados, ocorre um inversão reflexiva que não se
confunde com a mera passividade (por exemplo, “o Outro faz isso por mim, em
vez de mim, no meu lugar”). O que ocorre, nesse caso, é o surgimento de uma
subjetividade minimal - “eu faço isso através do Outro”. Zizek ao falar da condição
mínima da subjetividade salienta que a atitude que constitui a subjetividade hu-
mana não é mais “eu sou o agente ativo e autônomo que está a fazer isso”, mas sim,
“enquanto um faz isso por mim, faço-o através dele”.
Na sociedade do capital, com o fetichismo da técnica como meio ineliminável
da atividade humano-genérica, a interversão da reflexão determinante (como di-
ria Hegel), em determinação reflexiva, tornou-se candente. Na verdade, não é que
o Outro é ativo, e eu me limito apenas a observá-lo passivamente; mas sim, eu pos-

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Trabalho e Cinema • Volume 4

tulo uma identidade direta entre a atividade do Outro e a minha, quando concebo
a mim próprio como uma parte atuante, como aquele que age através do Outro (a
atividade do Outro não é só determinada pela minha reflexão, como é também a
resultante direta da minha determinação refletida). Portanto, não é que o Google,
como mecanismo de busca, se se torna o pólo ativo da relação e substitui a ativida-
de da memória humana, com os usuários se limitando a observa-lo passivamen-
te. Na verdade, os usuários dos mecanismos de busca sentem-se atuantes, agindo
através do Outro – no caso, a rede ou o meio técnico, postulado como resultante
direto da determinação refletida dos usuários.
O mesmo ocorre – como já salientamos – com o casal Julie e Jim: não é que
Ryan esteve apenas naqueles lugares, ao invés de Julie e Jim; mas sim que Julie e
Jim estiveram naqueles lugares através de Ryan; isto é, “Julie e Jim gozam atra-
vés de Ryan”. Trata-se, portanto, de uma nova condição subjetiva constituída no
mundo do capital como mundo da interpassividade. É a subjetividade minimal
que abre uma série de possibilidades contraditórias para o processo civilizatório
humano-genérico.
Ryan Bingham é incumbido pela sua irmã Kara, a persuadir Jim, noivo de sua
irmã Julie, a não abandonar seu compromisso matrimonial às vésperas do casa-
mento. Jim se acovardou e estava decidido a abandonar a cerimônia de casamen-
to. É pura ironia Ryan Bingham, o solteirão, ter que convencer o noivo da irmã a
casar-se. Entretanto, esta pequena cena é curiosa em sugestões criticas. Primeiro,
ao chegar no quarto para conversar com Jim, encontra ele folheando o livro infan-
til “The Valveteen Rabbit”. Ele pergunta a Ryan: “Já leu este livro?” e Ryan respon-
de, talvez com certa ironia: “Sim, é muito profundo”. Jim concorda com ele. O livro
infantil em apreço – “The Velveteen Rabbit” (“O coelho de pelúcia”), de Mergery
Williams, escrito em 1922, possui como subtítulo “Como os Brinquedos se Tor-
nam Reais”. Na verdade, “The Valveteen Rabit” é um dos clássicos da literatura
infantil norte-americana, possuindo ricas sugestões de análise para tratarmos da
ideologia do filme “Up in the Air”.
“The Valveteen Rabit” conta a fábula de um brinquedo, um coelho de pelúcia,
que um dia pergunta: “O que é Real?”. Os brinquedos são realidades virtuais para
as crianças. Os brinquedos mecânicos, como o trenzinho de ferro, eram muito
convencidos e se vangloriavam de serem reais. Certo dia, o velho e sábio Cava-
lo de Pele, um brinquedo que tinha vivido por muito mais tempo no quarto de
criança do que qualquer um dos outros, disse: “Real não é como você é fabricado.
É algo que acontece com você”. E salientou: “Quando uma criança o ama por um

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O mundo do trabalho através do cinema

longo, longo tempo, não apenas para brincar com você, mas realmente ama você,
então você se torna Real.” O coelho de pelúcia pergunta: “Isto machuca?”. O cavalo
de pele diz: “Hummmmm...às vezes. Quando você é Real, você não se preocupa
em ser machucado.” E o sábio brinquedo diz para o coelho de pelúcia como os
brinquedos se tornam reais: “Isso não acontece de repente...Você se torna pouco
a pouco. Demora um longo tempo. Por isso não acontece freqüentemente para os
brinquedos que se quebram facilmente; ou que têm bordas afiadas; ou que têm
que ser guardadas com cuidado. Geralmente, quando você se torna Real, a maior
parte de seu cabelo foi arrancada, e seus olhos caem e você se torna frouxo nas
juntas e mais surrado. Mas estas coisas não importam, porque, uma vez que você
é Real, você não pode ser feio, exceto para pessoas que não compreendem.” E mais
adiante ele observa: “...uma vez que você é Real, você não pode tornar-se irreal
outra vez. Isso dura para sempre.” A partir daí o coelho de pelúcia passou a ansiar
tornar-se Real. Diz o conto: “A idéia de ficar surrado e de perder os olhos e bigodes
era demasiado triste. Ele desejava que pudesse se transformar (em Real), sem que
estas coisas incômodas e desconfortáveis acontecessem com ele.”
A fábula infantil de Mergerie Williams expressa o que outras fábulas infan-
tis, como “O Pequeno Príncipe”, de Antoine Saint-Exupery e “Pinóquio”, de Carlo
Calodi, também expressam: a idéia de que, só o amor torna efetivamente reais as
pessoas. O tema do amor remete a questão do reconhecimento do Outro e dos la-
ços humanos criados por meio da atribuição de sentido ao Outro. O tema do amor
é um tema filosófico crucial na critica da modernidade do capital, onde o fetiche
da mercadoria se impõe, coisificando homens e mulheres e os descartando como
brinquedos inúteis, diluindo e extirpando laços humanos, desefetivando, deste
modo, o ser genérico do homem. As fábulas infantis, como “The Valvetteen Rab-
bit”, são elaboradas, utilizando-se significantes reversos para desconstruir signifi-
cações fetichizadas. Por exemplo, critica-se a coisificação de homens e mulheres
a partir de coisas humanizadas (como os brinquedos vivos). A crítica radical do
fetichismo social possui uma dimensão intrinsecamente moral.
O tema do amor, ou das relações de seres humanos uns com os outros, base-
adas na mútua afeição, como o amor entre os sexos, a amizade, a compaixão, o
sacrifício, etc, é um tema caro à filosofia de Ludwing Feuerbach. Para ele, como
observou Friedrich Engels, “o essencial não é que essas relações puramente hu-
manas existam, e sim que sejam concebidas como a nova e verdadeira religião. Só
adquirem plena legitimidade quando ostentam o selo religioso. A palavra religião
vem de “religare” e, por sua origem, significa união. Toda união de dois seres hu-

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Trabalho e Cinema • Volume 4

manos é, pois, uma religião”. Engels critica o idealismo de Feuerbach e sua reli-
gião do amor, dizendo: “A possibilidade de experimentar sentimentos puramente
humanos em nossas relações com outros seres humanos acha-se já hoje, bastante
atrofiada pela sociedade erigida sobre os antagonismos e o regime de classe em
que nos vemos obrigados a mover-nos; não há razão alguma para que nós mes-
mos a atrofiemos ainda mais, sacramentando esses sentimentos em uma religião.
E a compreensão das grandes lutas históricas de classe já está bastante obscure-
cida pelos historiadores habituais, sobretudo na Alemanha, sem que acabemos
de torná-la inteiramente impossível, transformando esta história de lutas num
simples apêndice da história eclesiástica.” Deste modo, Engels critica Feuerbach
e sua “religião do amor” porque ela não exerce a crítica do capital; pelo contrário,
constrói uma utopia do amor, sem desvelar – e criticar – a sociedade burguesa
erigida sobre a alienação do trabalho e os antagonismos de classe. Esta percepção
idealista do Amor obscurece e oculta a luta de classes.
Num primeiro momento, é importante salientar que a crítica de Engels a Feu-
erbach ocorreu no período de ascensão histórica do capital. As fábulas do Amor
possuem uma inadequação histórico-ontológica. Perguntemos, parafraseando
Theodor Adorno: como é possível fazer poesia após Auschwitz; ou ainda, como é
possível amar e ser amado pertencendo ao mundo social da luta de classes, isto é,
o mundo social do capital erigido sobre o trabalho estranhado e o estranhamento?
Portanto, coloca-se como principio histórico-ontológico fundamental, a critica do
capital, sob pena de que a idéia de Amor torne-se apenas “ideologia” no sentido
negativo, contribuindo para obscurecer e ocultar a luta de classes e a exploração e
dominação de classe da burguesia.
Entretanto, num segundo momento, devemos reconhecer que, nas condições
da decadência histórica do capital, isto é, sob o estado de barbárie social,, carac-
terizado pela dessubjetivação de classe, ou ainda, pela “captura” da subjetividade
do homem-que-trabalha e desefetivação do ser genérico do homem, o tema do
Amor, na medida em que é colocado numa perspectiva critica, expondo o capital
como metabolismo social estranhado erigido sob o processo histórico de promes-
sas e frustrações irremediáveis do processo civilizatório, torna-se crucial para a
crítica do capital e sua sociabilidade fetichizada. Deste modo, não podemos des-
cartar meramente, como fez Engels, a crítica da sociedade burguesa sob a ótica
moral. Nas condições históricas do estado de barbárie social, a critica moral do
capital, no sentido de crítica da desumanização humano-genérica, na medida em
que se baseia na apreensão verdadeira da ontologia do ser social e critica da eco-

100
O mundo do trabalho através do cinema

nomia política, torna-se indispensável para a crítica radical do mundo burguês.


Deste modo, podemos retirar da “casca mística” ou involucro religioso das fábulas
infantis (como “The Valveteen Rabbit”), e inclusive, da própria ideologia do filme
“Up in the Air”, um “ nódulo racional” de crítica radical do mundo burguês.
O conto infantil “The Valveteen Rabbit”, que Jim folheia, cabisbaixo, põe, mais
uma vez, na narrativa fílmica de “Up in the Air”, a questão Real Virtual versus Real
Efetivo. Talvez o filme esteja sugerindo que, demissões e desemprego das pessoas
que trabalha, tema-chave do filme, são modos de desefetivação do ser genérico do
homem; ou ainda, no mundo do capital, somos apenas brinquedos, usados e logo
descartados como inservíveis. A questão é, como brinquedos se tornam reais. A
solução dada pela fábula de Mergery Williams é a mesma dada pela ideologia do
filme que salientamos acima.
Conversando com Ryan, Jim confessa que não conseguirá se casar. Relata que
não conseguiu dormir a noite passada, transtornado por pensamentos cruéis. Diz
ele: “Comecei a pensar no casamento e que vamos comprar uma casa, morar jun-
tos, ter um filho, depois outro e depois vem o Natal, Ação de Graças, férias, iremos
aos jogos de futebol e, de repente, eles se formam, trabalham, casam, eu viro avô,
me aposento, perco o cabelo, engordo e logo estarei morto.” E observa: “E não
consigo parar de perguntar: qual o propósito?”. Ou ainda: “O que estou iniciando
aqui?”. Num primeiro momento, Bingham tenta convence-lo fazendo uma afir-
mação de lugar comum. Diz ele: “Jim, é o casamento. É uma das coisas mais bo-
nitas da Terra. É o que as pessoas desejam.” Esta é uma asserção ideológica, quase
irônica, que apenas reafirma a ideologia do casamento na ótica burguesa. Entre-
tanto, Jim não se convence, principalmente porque aquele que faz a afirmação de
que o casamento é a coisa mais bonita da Terra, nunca se casou. Ryan Bingham é
a contradição em pessoa. O louvor ao casamento vindo de Ryan, que nunca tentou
se casar, soa como radical ironia. Além disso, Jim diz que Ryan parece mais feliz
que os amigos dele que estão casados.
Diante do contra-senso, Ryan adotou outra estratégia de convencimento: o
distanciamento desinteressado como meio para legitimar o argumento. Tal como
fizera ao entrevistar Bob, um demitido que não conseguia ver positividade na
ruptura profissional. Com Bob, Bingham apelou para os valores humanos, procu-
rando mostrar que ele – o homem demitido - deve perseguir seus sonhos se quiser
que seus filhos o admirem (por exemplo, a demissão poderia ser a oportunidade
dele resgatar seu sonho de ser cozinheiro profissional). E outro coisa: a demissão
poderia permitir que ele pudesse ter mais tempo para a família. Por isso ele disse:

101
Trabalho e Cinema • Volume 4

“Vejo pessoas trabalhando na mesma empresa a vida toda, como você. Chegando
e saindo todo dia. E não têm um momento de alegria. Então é a sua oportunidade,
Bob! Isto é uma renascimento. Se não fizer por você, faça por seus filhos!”. Enfim,
eis o sentido magistral da argumentação de Ryan. No caso de Bob, o desemprego é
uma oportunidade de renascimento pessoal. Ao perseguir seus sonhos, Bob, o ho-
mem demitido, poderia reconquistar a admiração dos filhos. Com Jim, Bingham,
primeiro, reconhece que casamento pode ser um saco. Enfim, é preciso recuar
na argumentação, para abrir espaços de convencimento. Diz Ryan: “Jim, não vou
mentir. Casamento pode ser um saco. E tem razão. Tudo isso que falou o acompa-
nha até a morte. Todos nós somos como relógios que não podem ser parados. E
vamos para o mesmo lugar. Não há um propósito. Não há. É o que estou dizendo.”
E pondera: “Sabe, não sou o cara certo para conversar sobre isso.” E arremata com
o verdadeiro argumento capaz de convencer Jim: “Se pensar nas suas lembranças
favoritas, nos seus momentos mais importantes, estava sozinho?”. Eis a questão!
Foi por estar sozinho e solitário ontem à noite que Jim pensou “toda essa bestei-
ra”. E Ryan Bingham diz a frase crucial: “A vida é melhor com companhia. Todos
precisam de co-piloto”. Percebemos que Bingham não diz: “A vida é melhor se nos
casarmos”, pois não se trata em salientar a dimensão da instituição casamento,
necessária, mas insuficiente; mas sim, Ryan salienta a idéia do Outro como pessoa
humana companheira, isto é, todos nós, pessoas humanas temos o carecimento
radical de sermos efetivamente reais, o que exige a presença (e reconhecimento)
do Outro companheiro, isto é, aquele que nos reconhece efetivamente (esta é a
mesma mensagem da fábula infantil de Mergery Williams).
Ryan Bingham é um homem descompromissado, cercado de mulheres por
todos os lados. Elas o provocam, questionando-o sobre seu modo de vida. Ryan
está em tensão constante. Por exemplo, numa cena do filme, a jovem Natalie o
provoca, criticando sua disposição e medo de não comprometer-se. “Não quer
se casar nunca?” – interroga ela; ou ainda: “Nunca vai querer filhos?”. Ryan Bir-
gham afirma que não, sem chance. Diz: “Não vejo o valor disso”; e desafia: “Tudo
bem. Me convença!. Me convença a casar”. Enfim, Natalie deve exercer a força do
argumento. O filme “Up in the Air” é um exercício de práticas argumentativas de
cariz ideológico. Do trabalho de Ryan Bingham aos diálogos dos personagens com
seus dramas humanos, apreendemos um complexo de práticas dialógicas que vi-
sam convencer o outro com argumentos. Ryan quer ser convencido de que vale
a pena casar e ter filhos. Num plano contingente, ele questiona a instituição do
casamento e da família, instituições fundamentais da sociedade burguesa. Não se

102
O mundo do trabalho através do cinema

trata de idiossincrassia de Ryan Bingham, mas, pelo contrário, é um traço da sua


honestidade de caráter. O ritmo e estilo de trabalho impedem ele de se dedicar a
ambos. Existe um realismo candente na atitude de Ryan.
Os argumentos utilizados por Natalie não o convencem. Pelo contrário, ele
tem para cada argumento, uma resposta contundente. Por exemplo, Natalie sa-
lienta, em prol do casamento, a importância do amor e da estabilidade, isto é, ter
alguém para conversar e viver a vida juntos (por ironia, o argumento utilizado
por Ryan para convencer Jim a casar-se). Bingham contra-argumenta: “Conhece
algum casamento estável?”; e depois, diz: “Estou cercado de gente para conversar”.
Natalie observa: “Que tal não apenas não morar sozinho?”. Mas Ryan relata uma
experiência pessoal: “Quando eu tinha 12 anos, levamos meus avôs para um asilo.
Meus pais seguiram o mesmo caminho”. E conclui: “Todos nós morremos sozi-
nhos”; e observa: “Os membros daquele culto em San Diego que beberam Koo-
-Aid, não morreram sozinhos.” (Ryan faz referência, nesse caso, à seita Templo
do Povo, do Reverendo Jim Jones que, em 1978, levou 914 pessoas a cometerem
suicídio coletivo ingerindo uma bebida com sabor uva contendo potássio, cloreto
de cianeto e substâncias sedativas - frequentemente identificado erroneamente
como Kool-Aid). Finalmente, Ryan Bingham concluiu dizendo: “Só estou dizendo
que há opções”. Noutro momento do filme, ele observou que, isolamento e viagens
é uma questão de “opção de vida”. Natalie discorda: “É um casulo de auto-exílio”; e
retruca: “Definiu um estilo de vida que inviabiliza relações humanas.”
O que se coloca no filme “Amor sem escalas” é o problema dos laços humanos
e a questão candente do sentido da vida (por exemplo, a referência ao suicídio
coletivo em Jonestown em 1978 não foi acidental). Na medida em que o mundo
social do capital é incapaz de dar uma vida plena de sentido, as respostas huma-
nas às questões existenciais (como a morte), assumem um caráter estranhado.
As próprias relações humanas se intervertem em relações coisificadas; e a mor-
te – condição existencial irremediável – é esvaziada de sentido, tal como a vida
(Ryan Bingham, na tentativa de convencer Jim a casar, não deixou de salientar,
ao mesmo tempo, a impossibilidade de sentido da vida no interior do mundo do
capital. Disse ele: “Todos nós somos como relógios que não podem ser parados; e
vamos para o mesmo lugar. Não há propósito. Não há. É o que estou dizendo.”). O
sociólogo Max Weber na conferencia “A ciência como Vocação”, de 1919, salien-
tou o esvaziamento do sentido da morte no capitalismo moderno. Disse ele que
os antigos morriam velhos e saciados. Entretanto, os modernos morrem sempre
insatisfeitos, pois a vida lhes parece inacabada em alguma coisa - no caso, o ina-

103
Trabalho e Cinema • Volume 4

cabamento do conhecimento científico, contínuo e inesgotável. O problema do


sentido da vida é uma problemática moderna. Os antigos – como observou Weber
– não tinham essa problemática existencial. No mundo da burguesia, não há limi-
tes, mas sim, apenas barreiras a serem ultrapassadas. A modernidade, como um
relógio, não pode ser parada. A metáfora do relógio utilizada por Ryan Bingham
é sugestiva, pois indica a abstração do tempo. Ao invés do tempo da natureza, o
tempo do relógio é tão abstrato quanto a rotina da vida moderna. A idéia de vazio
existencial decorre da nossa condição de homens-relógios. O problema do sentido
da vida no capitalismo histórico é que, embora uma parte de nós, como força de
trabalho, sejamos mercadorias, a outra parte, o trabalho vivo, não é apenas mer-
cadoria; o que significa que, não somos efetivamente homens-relógios, embora
pareçamos ser. A sociedade burguesa agudiza o conflito íntimo entre força de tra-
balho e trabalho vivo. Na verdade, o sistema do capital reduz trabalho vivo a força
de trabalho – o que significa que nos reduzir a “relógios”. Deste modo, coloca-se a
problemática moderna do sentido da vida (ou sentido da morte).
O carecimento radical comum ao homem moderno faz com que ele seja ins-
tigado a buscar uma resposta humana àquilo imposto pela condição moderna.
Ao invés de Natalie, que indicou o casamento e a família como propósitos para
uma vida plena de sentido e saída para o desamparo humano (como diria Freud),
Ryan optou por uma resposta individualista no estilo do “amor liquido” adequado
à condição pós-moderna. Deste modo, na medida em que as pessoas se dedicam
mais às suas carreiras e organizam seu tempo em função da vida profissional, ca-
samento e família passam ao segundo plano. Por isso, a opção existencial de Ryan
é mais adequada á nova lógica do capitalismo flexível. Como ele disse, morre-se
como se vive: “Todos nós morremos sozinhos”.
Ryan Bingham vive com Alex, momentos de cumplicidade e afeição. Aos pou-
cos, ele envolve-se afetivamente com ela. Num momento, de modo abrupto, de-
cidiu renunciar aos princípios de “tubarão solitário” e, de modo abrupto, decide
visitá-la para propor uma compromisso sério. Ele voa para Chicago, abandonando
no meio, uma palestra motivacional. Entretanto, ele se decepciona: ela é uma mu-
lher casada e com filhos. Ironicamente, quando retorna da sua decepcionante via-
gem a Chicago, Ryan é homenageado, em pleno vivo, pela companhia aérea. Ele
conseguiu atingir o máximo de pontuação no Cartão de Fidelidade da empresa
aérea (a única fidelidade plenamente recompensável era a fidelidade de mercado).
Logo a seguir, Ryan Bingham tomou conhecimento que a jovem Natalie pediu de-
missão, frustrada e assustada com a profissão de consultora de demissões. Talvez

104
O mundo do trabalho através do cinema

o suicídio da mulher negra, que ela entrevistara, tenha sido a gota d´água que a
fizera desistir da profissão. Ao mesmo tempo, o chefe de Ryan Bingham decidiu
não mais reorganizar o sistema de trabalho da empresa (o processo de demissão
seria operado via online). Deste modo, evitou-se reduzir drasticamente as viagens
dos consultores de demissões.
A série de acontecimentos diruptivos que ocorrem no final do filme “Amor
sem escalas” repõem a mecânica da vida pessoal (e profissional) de Ryan Bin-
gham. Ao alcançar a pontuação máxima com o cartão de fidelidade da American
Airlines (10 milhões de milhas!), Bingham deve voltar retornar ao seu ponto de
partida. Deve começar quase do zero, acumulando pontos com as novas milha-
gens. Entretanto, ele decidiu transferir seus pontos da milhagem para a irmã e o
marido recém-casados, fazerem uma viagem de volta ao mundo. Este é um modo
de afirmar o mundo real ao invés de aceitar a interpassividade da vida cotidiana.
Ao mesmo tempo, o gesto de Ryan Bingham é um gesto supremo de generosidade
e renúncia pessoal. A desilusão com Alex e o afastamento de Natalie – que plei-
teava a reorganização do trabalho da empresa - colocam Bingham novamente na
rotina solitária “up in the air”. Na cena final, a imagem de Ryan Bingham olhando
para o painel eletrônico do Aeroporto indicando seu próximo vôo. Como presidiá-
rio-de-si, em seu casulo de auto-exilio (como diria Natalie), Ryan Bingham parece
continuar no seu Mundo do Ar.

105
CAPÍTULO 3

Beleza americana

Sam Mendes
(1999)

L ester Burham é um empregado da Indústria de Propaganda, homem de meia-


-idade, que possui uma vida familiar medíocre e insatisfatória (o que ele diria
a stupid litlle life). Certa noite, fascinado por uma jovem adolescente, amiga de sua
filha Jane, tem sua vida convulsionada por sonhos, desejos e fantasias. A partir
daí, Lester, atingido por uma crise de adolescência tardia, é levado a romper com
seu estilo de vida burguês, mudando sua forma de ser na família, no trabalho e na
relação consigo mesmo. Seu comportamento diruptivo irá levá-lo a uma tragédia.
O filme “Beleza Americana”, de Sam Mendes, trata de uma das dimensões da
crise estrutural do capital: a crise da família, uma das mais importantes institui-
ções sociais que contribui para a reprodução social da sociedade burguesa. Nossa
hipótese é que a sociabilidade mercantil, que se ampliou e intensificou-se sob o
capitalismo global nas condições de crise estrutural do capital, dissolveu a família
como instância sócio-comunitária. A crise da família, deve-se salientar, é um dos
elementos da crise estrutural do capital, tendo em vista que a família burguesa é
elemento compositivo do capital como modo de controle estranhado do metabo-
lismo social da ordem burguesa.
Crise estrutural do capital significa crise estrutural das instituições sociais do
mundo histórico do capital que, como categoria social, é um modo de controle do
metabolismo social composto por um complexo de instituições sociais estranha-
das que organizam a ordem burguesa. A Família, ao lado de outras instituições
sociais como a Escola, a Empresa, o Estado e inclusive as Igrejas, compõem o
complexo sócio-institucional do capital como modo de controle estranhado do
metabolismo homem e Natureza.
A categoria “trabalho” é um modo de metabolismo social entre o homem e a
Natureza, forma fundamental (e fundante) do ser social, que tem na Empresa, o
lócus de operação do processo de trabalho como processo de valorização. A Em-

107
Trabalho e Cinema • Volume 4

presa é a instituição da produção social, enquanto a Família, a Escola, a Igreja e


inclusive o Estado, são instituições da Reprodução Social. Produção e Reprodução
Social compõem o metabolismo social da ordem burguesa.
Na medida em que a sociedade burguesa é a sociedade monetária hipertar-
dia, o fetichismo da mercadoria não apenas assume dimensões intensas e amplia-
das, mas o estranhamento social assume formas fetichizadas. A crise estrutural
do capital, que possui como causalidade crucial, a crise estrutural de valorização
do valor, convulsiona a reprodução social, na medida em que exacerba as formas
fetichizadas e estranhadas das objetivações sociais, características da sociedade
burguesa. A ampliação e intensificação das relações sociais fetichizadas e estra-
nhadas, que ocorre no bojo da crise estrutural do capital, transfigura instituições
de origem comunitária, como a Família, o que demonstra que a crise estrutural
do capital não é apenas uma crise da produção social de valor, mas também uma
crise de reprodução da ordem social baseada na produção de mercadorias e valo-
rização do valor. É a expressão suprema das contradições do capital como sujeito
da modernização capitalista.
É nos EUA, “núcleo orgânico” e “centro dinâmico” da civilização do capital,
que o drama da crise da família assumiu sua dimensão típica. Por exemplo, desde
meados da década de 1970, o cinema mundial exibiu uma série de filmes que
tratam do tema da crise da família burguesa (o cinema norte-americano tem tra-
tado também, recorrentemente, da crise de outra importante instituição social
burguesa: a Escola). Na análise crítica do filme “Beleza Americana”, iremos expor
algumas teses:

Tese 1

A família como instância sócio-reprodutiva e instituição de origem comu-


nitária, é um locus de sociabilidade primordial da espécie homem, onde persis-
te uma dimensão natural-comunitária. É o espaço de socialização primordial e
formação originária da personalidade humana. É o que observa, por exemplo, o
antropólogo Claude Lévi-Strauss:
“A vida familiar apresenta-se em praticamente todas as sociedades humanas,
mesmo naquelas cujos hábitos sexuais e educativos são muito distantes dos nos-
sos. Depois de terem afirmado, durante aproximadamente cinqüenta anos, que a
família, tal como a conhecem as sociedades modernas, não podia ser senão um
desenvolvimento recente, resultado de longa e lenta evolução, os antropólogos

108
O mundo do trabalho através do cinema

inclinam-se agora para a convicção oposta, isto é, que a família, ao repousar sobre
a união mais ou menos duradoura e socialmente aprovada de um homem, de uma
mulher e de seus filhos, é um fenômeno universal, presente em todos os tipos de
sociedades”.
A sociabilidade mercantil tardia, própria do capitalismo mais desenvolvido,
com suas formas sociais fetichizadas e estranhadas, reduz e dissolve a dimensão
comunitária da família, tranfigurando suas relações sociais humanas em relações
sociais instrumentais. Deste modo, a crise da família burguesa é a crise da institui-
ção social primordial da ordem burguesa que preserva traços originários da vida
comunitária. No “Manifesto Comunista” de 1848, Karl Marx e Friedrich Engels
salientaram a capacidade dissolvente da forma-mercadoria, na medida em que ela
tornou-se nexo estruturante da ordem social burguesa. Dizem eles: “A burguesia
rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as
a simples relações monetárias.”
Mais adiante, Marx e Engels descreveram, com genialidade, os traços essen-
ciais do processo de modernização capitalista:
“A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente
os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com
isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de pro-
dução constituía, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as
classes industriais anteriores. Essa subversão continua da produção, esse abalo
constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de se-
gurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se to-
das as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de
idéias secularmente veneradas, as relações que as substituem tornam-se antiqua-
das antes mesmo de ossificar-se”.
Logo a seguir, Marx e Engels sintetizam, de modo epigramático, a natureza
crítica do movimento do capital: “Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo
o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar
com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas” (percebe-
-se que a idéia de “crise estrutural” está contida irremediavelmente no próprio
movimento histórico do capital). Podemos dizer que, com a idéia de proletariado,
temos a pré-figuração da crise da família burguesa. Marx e Engels observaram:
“Nas condições de existência do proletariado já estão destruídas as da velha socie-
dade. O proletariado não tem propriedade; suas relações com a mulher e os filhos
nada tem de comum com as relações familiares burguesas”.

109
Trabalho e Cinema • Volume 4

Portanto, a crise da família burguesa ou a crise das relações familiares bur-


guesas decorreu, não apenas da crise estrutural do capital, como salientamos aci-
ma, mas também, sintoma da ampliação da condição existencial de proletariedade,
que ocorreu inexoravelmente com o desenvolvimento histórico do capital.
Na primeira frase da obra-prima de Karl Marx, “O Capital”, temos a apresen-
tação do capitalismo como sociedade mercantil complexa. A sociedade capitalista
é uma sociedade monetária complexa, isto é, sociedade humana onde a forma-
-dinheiro assumiu dimensões complexas. O intercâmbio humano é mediado cada
vez mais pelo dinheiro como meio de troca e meio de circulação de mercadorias.
Mas, o domínio do dinheiro na vida social decorreu da vigência da forma-mer-
cadoria.
O dinheiro é a mercadoria das mercadorias. É o espelho de todas as outras
mercadorias. É o dinheiro que permite a circulação (e venda) das mercadorias. A
forma-dinheiro se desenvolveu na medida em a forma-mercadoria se disseminou
na vida social; e o mundo das mercadorias assumiu uma dimensão global. A so-
ciedade burguesa tornou-se “uma imensa coleção de mercadorias”. Deste modo,
o capitalismo é uma sociedade monetária complexa porque a sociedade burguesa
é, antes de mais nada, uma sociedade mercantil desenvolvida, isto é, sociedade
humana baseada na produção de mercadorias. Entretanto, a sociedade burguesa é
a sociedade humana baseada na produção de mercadoria, porque é a forma-mer-
cadoria que permite a valorização do valor. A sociedade burguesa é a sociedade
produtora de mercadorias, porque é a sociedade produtora de capital, ou seja, a
sociedade do processo de trabalho como processo de valorização. A mercadoria
é o próprio veículo de produção do capital (o que explica porque Marx inicia sua
obra-prima, “O Capital” com o Capítulo 1 do Livro 1 intitulando-se “A mercado-
ria”). É por meio da produção-e-venda da mercadoria que se realiza a mais-valia,
fulcro essencial da ordem burguesa. O modo de produção capitalista existe em
função da produção e realização da mais-valia (o que explica a importância do
veículo da produção e realização da mais-valia: a mercadoria e o dinheiro, título,
aliás, da Seção I do Livro I de “O Capital”).
Para Marx, a mercadoria (e não o dinheiro) aparece como “célula econômica”
da sociedade burguesa (o dinheiro é “apenas” a mercadoria das mercadorias). Diz
ele: “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista
aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual
como sua forma elementar”. Entretanto, perguntemos: o que é mercadoria? Diz
Marx: “A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas

110
O mundo do trabalho através do cinema

suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza


dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera
nada na coisa. Aqui também não se trata de como meio de subsistência, isto é,
objeto de consumo, ou se indiretamente, como meio de produção”.
A forma-mercadoria impregna a vida social. Ela está presente nas instâncias
da produção e nas instâncias da reprodução social. A forma-mercadoria impreg-
na, com seus atributos ontológicos, as relações sociais, inclusive aqueleas não per-
tencem efetivamente às instâncias de produção e consumo. O fetichismo da mer-
cadoria se desdobra, não apenas no fetichismo do dinheiro, mas aparece também,
por exemplo, no fetichismo do Estado ou ainda no fetichismo da Tecnologia, que
incorporam a forma-mercadoria. O fetichismo da mercadoria impregna toda for-
ma de objetivação social, incorporando, com seus atributos ontológicos, os pro-
duto da práxis humana. O fetichismo da mercadoria está presente, como forma
derivada, na Família, Estado, Escola e inclusive, Igreja. É a forma-mercadoria que
interverte relações sociais humanas em relações sociais instrumentais. Em sua ex-
posição sobre a mercadoria, Marx tratou do fetichismo da mercadoria. O fetiche
da mercadoria e seu segredo é uma das descobertas cruciais de Karl Marx, que,
naquela época, percebeu que a forma-mercadoria é uma forma social ou forma de
metabolismo social que, nas condições da sociedade produtora de capital - onde
a mercadoria é o veículo da produção e realização da mais-valia – dissemina-se
na vida social de modo totalizante, totalizador e totalitário. Na medida em que a
mercadoria é uma coisa que satisfaz necessidades humanas sociais e instrumen-
tais (consumo e produção), ela aparece como coisa perene, natural e necessária no
plano da consciência social. Portanto, a mercadoria como coisa, oculta as relações
sociais de trabalho humano que a constituem efetivamente como produto-coisa.
A forma-mercadoria projeta, na imediaticidade de sua forma de ser, as necesi-
dades sociais - humanas ou instrumentais -, aparecendo, deste modo, de forma
mística, como coisa natural coletada pelo homem (consumo).
Talvez possamos dizer que, a mercadoria rememora, no plano inconsciente,
uma etapa primitiva da atividade humana em que o homem era mero coletor da
Natureza, embora a própria atividade primitiva de coleta implicasse trabalho ou
metabolismo entre o homem e a Natureza, o que não ocorre, por exemplo, no
ato de consumo de mercadoria, onde se suprime a dimensão de atividade vital.
Enfim, o consumidor não é um coletor propriamente dito, embora encontre à dis-
posição para consumo, a coisa pronta e acabada (a mercadoria) que satisfaz suas
necessidades do estomago ou da fantasia – como disse Marx. O homem primitivo

111
Trabalho e Cinema • Volume 4

via a coisa pronta e acabada como elemento da Natureza, cujo conteúdo místico
provinha do desconhecimento que ele tinha do ser natural da Natureza externa; o
homem moderno, imerso na pseudo-concreticidade da vida cotidiana, vê a coisa-
-mercadoria consumida, pronta e acabada. Esta percepção ingênua, oculta, na
plano da imediaticidade, a dimensão da atividade produtora de mercadorias; e
opera, no plano subconsciente, o misticismo primitivo da coleta natural. Nesse
caso, ocorre o mesmo na elaboração conceitual de Deus como projeção aliena-
da das capacidades humanas. A coisa é uma dádiva de Deus – o que explica, no
plano do pensamento, a interversão do misticismo da coisa pelo misticismo da
divindade.
A questão que se coloca para Marx é a seguinte: por que esta produção de
mercadorias engendra uma ambiência mística que envolve os produtos do traba-
lho e impede o seu reconhecimento como produtos e formas sociais? Diz Marx:
“Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias provém do caráter social pecu-
liar do trabalho que produz mercadorias”. O caráter social peculiar do trabalho
que produz mercadoria é o trabalho abstrato, categoria social crucial para expli-
car, tanto o segredo do fetichismo da mercadoria, quanto a própria produção do
capital, objetivo de Marx em sua obra-prima “O capital – crítica da economia
política”. A categoria de trabalho abstrato, categoria social antitética do trabalho
concreto, é a categoria social que explica o caráter místico da mercadoria como
produto-coisa e o segredo do fetichismo social.
Trabalho abstrato é trabalho indiferente à forma concreta da atividade so-
cial. Ele assume dimensão plena com o trabalho capitalista propriamente dito,
trabalho produtor de mercadoria, veículo do processo de valorização do valor;
caracterizando-se, deste modo, mais pela forma social do que pela forma material
(tanto o trabalho do metalúrgico, quanto o trabalho do professor, podem assumir
a forma social de trabalho abstrato).
Deste modo, trabalho abstrato é trabalho assalariado no sentido do trabalho
capaz de valorizar capital. Na perspectiva do capitalista, o tipo de trabalho que lhe
interessa efetivamente é trabalho abstrato, tendo em vista que só o trabalho abs-
trato produz valor, uma das determinidades da mercadoria (mercadoria é valor
de uso e valor, onde a categoria valor tem como suporte material, a categoria de
valor de troca; o que significa que o valor só se manifesta no proceso de troca).
Quando o capitalista contrata força de trabalho-como-mercadoria, ele contrata
a capacidade do operário (ou empregado) em produzir, num determinado tem-
po de trabalho socialmente necessário, algo além do valor efetivo de sua força

112
O mundo do trabalho através do cinema

de trabalho (isto é, produzir um excedente – a mais-valia – apropriada por ele).


Esta capacidade “mística”, que só a força de trabalho-como-mercadoria possui, de
produzir além de seu valor de reprodução, não diz respeito a um tipo específico
de trabalho humano - por exemplo, o trabalho do metalúrgico ou o trabalho do
professor. Ela não diz respeito a um trabalho concreto, mas sim, diz respeito a
um tipo específico de relação social de produção baseada no trabalho abstrato: a
relação social de produção capitalista.
Por exemplo, imaginemos que, devido alguma razão misteriosa, o trabalho
humano só fosse capaz de produzir efetivamente o valor de reprodução de sua
força de trabalho. Caso isso ocorresse, o modo de produção capitalista não seria
efetivamente possível. Imaginemos ainda que os trabalhadores assalariados orga-
nizados se revoltassem, e decidissem que só iriam trabalhar o tempo necessário
equivalente à produção do valor das mercadorias necessárias à reprodução de sua
força de trabalho, o capitalismo e suas relações sociais de produção, cairiam por
terra. Portanto, interessa ao capitalista extrair do processo de trabalho como pro-
cesso de valorização, a dita mais-valia. O que significa organizar a produção de
mercadorias de modo a que a jornada de trabalho tenha um tempo de trabalho
excedente além daquele tempo de trabalho necessário, tempo de trabalho exceden-
te onde o trabalhador assalariado produz mais do que lhe é pago efetivamente; e
que o capitalista, por direito, se aproprie daquilo que é produzido como excedente.
Para o capitalista, não importa o que a força de trabalho como trabalhador co-
letivo do capital produza – calçados, salsichas ou diplomas universitários – isto
é, o trabalho concreto; mas sim, interessa ao capitalista, fazer mais dinheiro por
meio do processo de trabalho como processo de valorização, onde uma mercado-
ria especial – a força de trabalho-como-trabalhador coletivo do capital – consiga
produzir mais do que aquilo que recebeu como salário (em termos de valor). O
trabalho que produz a mais-valia é o trabalho abstrato. É deste modo que o capi-
talista consegue valorizar a massa de capital-dinheiro investido.
Deste modo, a sociedade produtora de mercadoria ou sociedade produtora
do capital é a sociedade do trabalho abstrato, cuja lógica de valorização organiza
a produção social total. Cada capitalista se apropria de um percentual da massa
de mais-valia social na proporção da sua capacidade de promover efetivamente a
troca de suas mercadorias, isto é, vendê-las (valor pressupõe valor se troca). Na
verdade, é a concorrência que definirá a parcela que cada capitalista terá do bolo
da mais-valia social. Um capitalista que não consegue vender suas mercadorias,
não consegue realizar a mais-valia contida nelas. Na medida em que o capitalis-

113
Trabalho e Cinema • Volume 4

ta consegue trocar suas mercadorias por dinheiro, isto é, vendê-las, ele realiza a
mais-valia, credenciando-se para um novo circuito de valorização e acumulação
de capital.
É a lei do valor operada por meio da concorrência no mercado capitalista que
organiza a troca de mercadorias, impondo, deste modo, suas regras aos produto-
res privados. Diz Marx: “...os trabalhos privados só atuam, de fato, como mem-
bros do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os
produtos do trabalho e, por meio dos mesmos, entre os produtores. Por isso, [aos
produtores] aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como o
que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus pró-
prios trabalhos, senão como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais
entre as coisas”. A lei do valor opera com força objetiva às costas dos produtores de
mercadorias, impondo-lhes regras às quais eles têm que se submeter, mesmo que
não a conheçam efetivamente. Eles fazem, mas não o sabem.
A regra 1 diz: só trabalho abstrato produz valor; regra 2: o valor só se realiza
por meio da venda da mercadoria; regra 3: cada produtor de mercadoria apropria-
-se-a de um percentual da massa de mais-valia social, na medida do seu sucesso
na concorrência e no quantum de sua participação do mercado. Para a lei do valor,
o sucesso do capitalista na concorrência depende da sua capacidade em reduzir o
tempo de trabalho socialmente necessário para a produção da força de trabalho,
exigindo do capitalista, deste modo, o aumento da produtividade média do traba-
lho social (o que explica, por exemplo, a necessidade exacerbada de crescimento
da produtividade do trabalho nas condições da crise estrutural de valorização). É
a lógica do valor que tende a condicionar a ação humana na sociedade produtora
de mercadorias. É o valor que impregna as relações sociais humanas com sua “te-
leologia” instrumental e cêga, ocultando para os agentes humanos, o caráter social
do trabalho. Eis o sentido do fetichismo da mercadoria.
O conceito de fetichismo da mercadoria diz respeito à consciência social que
homens e mulheres têm do mundo do capital. Nesse caso, ao tratar do fetiche da
mercadoria e seu segredo, Marx quer tratar do modo de aparição da objetividade
social. O que descrevemos acima é o modo de objetividade social do mundo his-
tórico burguês que, como observamos, é uma objetividade social constituída por
relações sociais de produção da vida social, organizadas em torno da lógica do
trabalho abstrato. A questão é saber, como a vida social aparece para os homens;
ou como os homens a vêem efetivamente na sua vida cotidiana. Marx observa
que os homens a vêem como movimento de coisas. Na verdade, o movimento dos

114
O mundo do trabalho através do cinema

homens aparece como movimento de coisas – ou factualidades irremediáveis que


se impõem a eles como força natural. O que faz com que um trabalhador assala-
riado produza mais do que ele vale, não é a natureza da força de trabalho, mas
sim o modo como se organiza a produção da vida social. Só que esta dimensão
social do trabalho humano não aparece como tal. O excedente não é perceptível
como mais-valia. O mundo das coisas que se impõe ao mundo dos homens é o
mundo da intransparencia social. A mais-valia não aparece para o trabalhador
assalariado como a corvéia aparecia, por exemplo, para o servo feudal. O capi-
talista acumula, de modo “misterioso”, mais do que ele investiu na produção. Na
fórmula geral do capital, D – M – D´, onde D é dinheiro, M é mercadoria e D´é
o mais-dinheiro, o D´ é efetivamente, na ótica do capitalista, um fato misterioso
que ele explica pelas propriedades do capital engendrar mais riqueza abstrata. O
capital parece ter propriedades mágicas de fazer florescer a riqueza; oculta-se,
deste modo, o trabalho humano como produtor de riqueza, ocultando o homem
como sujeito da produção.
O fetichismo da mercadoria é um modo de desumanização do homem no pla-
no cognitivo. A objetividade social na sociedade das mercadorias aparece como
coisa, tal como a mercadoria coletada no consumo – coisa no sentido de modo
objetivo, externo e impositivo recalcitrante ao controle dos produtores sociais.
Por isso, o fetichismo da mercadoria, que córroi as relações sociais humanas no
seio das instituições socioreprodutivas do capital, é descrito por Marx do seguinte
modo: “Seu próprio movimento social possui para eles a forma de um movimento
de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de controlá-las.” Nas condições
da sociedade monetária complexa, o dinheiro reforça o fetichismo da mercado-
ria, tendo em vista que o dinheiro é a mercadoria das mercadorias. Diz Marx: “É
exatamente essa forma acabada – a forma dinheiro – do mundo das mercadorias
que objetivamente vela, em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos privados
e, portanto, as relações sociais entre os produtores privados”. Entretanto, a forma-
-mercadoria está imersa numa contradição suprema. No mesmo processo em que
se revela o caráter social do trabalho, a produção mercantil dominante reveste,
com um envoltório a-social, o seu produto. Diz Marx: “...esse conteúdo assume
aquela forma, porque [...] o trabalho se representa pelo valor e a medida do tra-
balho, por meio de sua duração, pela grandeza do valor do produto de trabalho.”
Na sociedade do capital, o fetichismo da mercadoria tende a aderir à prá-
tica cotidiana no interior das várias instâncias sócio-reprodutivas. Na verdade,
o fetichismo da mercadoria é apenas a forma simples do fetichismo social, que

115
Trabalho e Cinema • Volume 4

impregna as relações sociais na sociedade burguesa complexa. O fetichismo so-


cial é um modo de aparição da objetividade imediata do ser social que o inverte:
fá-lo aparecer como factualidade (o que é relação social se mostra como relação
objetual). A relação social assume a forma fantasmagórica de uma relação entre
coisas. O objetivo de Marx é exercer a Crítica da Economia Política, isto é, penetrar
a factualidade que o fetichismo social põe. Entretanto, para que isso possa ocorrer,
a teoria deve recuperar a processualidade histórica real. O que significa fazer a
crítica do fetichismo social.
Um das características do fetichismo social é a presença da factualidade de
valores. Os valores morais – aqueles que operam a mediação das escolhas cotidia-
nas - assumem uma forma fetichizada. Os valores-fetiches incorporam a forma-
-mercadoria. Como observou Marx, “a mercadoria é, antes de tudo, um objeto ex-
terno, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de
qualquer espécie...” (Karl Marx). Como coisas, os valores capitalistas vinculados a
lógica da podução do capital se impõem a homens e mulheres, elaborando na in-
terioridade humana, as escolhas morais e os consentimentos espúrios. A vigência
do fetichismo social na sociedade do capital alterou a natureza do estranhamento
na sociedade burguesa complexa. Por exemplo, é assim que Karl Marx no capítulo
1 do Livro 1 de “O Capital”, caracterizou o estranhamento na Idade Média. Diz ele:
“Em vez do homem independente, encontramos aqui todos dependentes –
servos e senhores feudais, vassalos e suseranos, leigos e clérigos. A dependência
pessoal caracteriza tanto as condições sociais da produção material quanto às es-
feras de vida estruturadas sobre ela”. E prossegue observando: “Mas, justamente
porque relações de dependência pessoal constituem a base social dada, os traba-
lhos e produtos não precisam adquirir forma fantástica, diferente de sua realida-
de. [...] como quer que se julguem as máscaras que os homens, ao se defrontarem
aqui, vestem, as relações sociais entre as pessoas em seus trabalhos aparecem em
qualquer caso como suas próprias relações pessoais, e não são disfarçadas em rela-
ções sociais das coisas, dos produtos de trabalho.”
Portanto, nas sociedades pré-capitalistas, o estranhamento assumia uma for-
ma transparente. Diz ele:
“Aqueles antigos organismos sociais de produção são extraordinariamente
mais simples e transparentes que o organismo burguês, mas eles baseiam-se na
imaturidade do homem individual, que não se desprendeu do cordão umbilical da
ligação natural aos outros do mesmo gênero, ou em relações diretas de domínio
e servidão [...] Eles são condicionados por um baixo nível de desenvolvimento

116
O mundo do trabalho através do cinema

das forças produtivas do trabalho e relações correspondentemente limitadas dos


homens dentro do processo material da produção da sua vida, portanto, entre si e
com a natureza”. E conclui: “Essa restrição real se reflete idealmente nos cultos da
Natureza e nas religiões populares da Antiguidade. O reflexo religioso do mundo
real somente pode desaparecer quando as circunstâncias cotidianas, da vida prá-
tica, representarem para os homens relações transparentes e racionais entre si e
com a natureza”.
Portanto, enquanto nas sociedades pré-capitalistas o estranhamento social
assumia uma forma transparente, na sociedade burguesa, o estranhamento social
fetichiza-se, isto é, impregna-se da forma-mercadoria, tornando-se intranspa-
rente. Deste modo, o fetichismo social é o modo histórico do estranhamento social
manifestar-se nas sociedades produtoras de mercadorias como veículos da valori-
zação do valor. A sociedade burguesa é a sociedade do fetiche, sendo constituida
por múltiplas formas de fetiches ou coisas que provicam a desefetivação humano-
-genérica. A principal característica do fetiche como forma social é desefetivar
o homem-que-trabalha, tanto na dimensão cognitiva (fetichismo é ocultação),
dimensão subjetiva (fetichismo é esquecimento ou corrosão da memória coletiva
e projeção utópica) ou ainda, dimensão praxiológica (fetichismo é impotência e
descontrole).,

As operações do fetichismo social


Modalidades de desefetivação humano-genérica
Dimensão cognitiva
(ocultação)
Dimensão subjetiva
(esquecimento ou corrosão da memória coletiva e projeção utópica)
Dimensão praxiológica
(impotência e descontrole)

Numa passagem do Capítulo 1 do Livro 1 de “O Capital”, onde Marx discute o


fetiche da mercadoria e seu segredo, ele aborda de modo interessante como seria
o metabolismo social da sociedade emancipada do capital, a sociedade socialista.
Diz ele: “A figura do processo social da vida, isto é, do processo da produção mate-
rial, apenas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando, como produto de
homens livremente socializados, ela ficar sob seu controle consciente e planejado”.

117
Trabalho e Cinema • Volume 4

O homem livra-se do fetichismo social assumindo o controle das coisas. Eis o


sentido da emancipação do homem. Diz Marx: “...fórmulas que não deixam lugar
a dúvidas de que pertencem a uma formação social em que o processo de produção
domina os homens, e ainda não o homem o processo de produção...” Entretanto
salienta: “Para tanto, porém, se requer uma base material da sociedade ou uma
série de condições materiais de existência, que, por sua vez, são o produto natural
de uma evolução histórica longa e penosa.”

Tese 2

A crise da família burguesa é a materialização, numa instância sócio-repro-


dutiva, da crise estrutural do capital, que se constitui a partir de meados da déca-
da de 1970. Com a crise estrutural do capital se exacerbam o estranhamento e o
fetichismo da mercadoria em suas múltiplas manifestações na reprodução social.
Numa situação de crise estrutural, o fetichismo possui função axial. Diz José Pau-
lo Netto:
“A reificação tem uma função axial: a manutenção e reprodução do capitalis-
mo tardio. Numa situação de crise estrutural, a reificação tende a se aprofundar,
pois as contradições são dilacerantes, além de virem a tona elementos de força. A
reprodução articularia elementos de força e elementos sistêmicos, com a reificação
tendo um papel central.”
É com a crise estrutural do capital, entramos numa nova temporalidade his-
tórica caracterizada pela vigência do neoliberalismo e políticas de mercado que
exacerbam a concorrência social. Acirram-se as contradições da vida social e a
crise das instâncias sócio-reprodutivas. Ao mesmo, aprofunda-se o estranhamen-
to e o fetichismo social, que provocam um salto qualitativamente novo na crise
das instâncias da reprodução social como a família.

Tese 3

É nos EUA do século XX, a sociedade do complexo industrial-militar, expres-


são mais desenvolvida da civilização do capital, que o drama da crise da família
burguesa irá assumir sua dimensão típica. O filme “Beleza Americana”, de Sam
mendes, retrata com vigor dimensões da crise da família burguesa vinculada a
crise estrutural do capital. Ao expor a presença exacerbada do fetichismo social

118
O mundo do trabalho através do cinema

no cotidiano da sociedade burguesa mais desenvolvida, o filme de Sam Mendes


contribui para uma reflexão sobre o significado da crise estrutural no plano sócio-
-reprodutivo.
Podemos distinguir no filme “Beleza Americana”, de Sam Mendes, o que po-
deríamos denominar de fenomenologia do estranhamento, representados por al-
guns personagens. O estranhamento social, como salientamos acima, diz respeito
às relações sociais de opressão e dominação expostas com transparência. É um
traço ontológico da relação social de poder que caracteriza as sociedades de clas-
ses pré-capitalistas, relação de poder do capital que sobrevive na modernidade
burguesa, principalmente nas instâncias de produção (Empresa), loci de acumu-
lação de capital; e instâncias da reprodução social voltadas para a manutenção
coercitiva da ordem burguesa (Estado político do capital).
Por exemplo, o estranhamento social aparece como Poder na representação
do Complexo Militar. O rude fuzileiro naval Frank Fitts, personalidade autoritá-
ria, é a própria expressão das formas agudas de estranhamento social em “Beleza
Americana”. Ele trata de manter a mulher em estado catatônico e reprimir qual-
quer passo do filho. Numa certa passagem do filme, Frank Fitts agride violenta-
mente o filho quando descobre que ele entrou, sem permissão, em seu escritório.
Diz: “Não tem respeito pelas coisas dos outros, nem pela autoridade. Não pode
sair por aí fazendo tudo o que quer. Não pode! Há regras na vida! Precisa de es-
trutura! E de disciplina!”. Ao afirmar que o filho “não tem respeito pelas coisas
dos outros”, isto é, pela propriedade privada, “nem pela autoridade”, base moral
do Estado político, Frank Fitts aparece como guardião dos valores estranhados
da ordem burguesa. Outra expressão da ordem burguesa estranhada é a Lei que
limita que qualquer um possa fazer tudo o que quer. Mas a Lei não é para Todos.
Na verdade, ela oculta que, sob a ordem do capital, só a burguesia e seus agentes
políticos e militares podem fazer o que querem. Estrutura e disciplina são outros
valores estranhados da ordem do capital. Por ser militar, Fitts conseguiu incor-
porar com vigor os valores fundamentais da ordem burguesa, utilizando-os para
oprimir seus entes familiares. O microcosmo familiar de Frank Fitts é a represen-
tação sintética da ordem estranhada do capital.
Frank Fitts representa a direita radical dos EUA, insatisfeita com os rumos do
imperialismo norte-americano no Oriente Médio. O fiasco americano na I Guer-
ra do Golfo, que não conseguiu destituir Saddam Hussein; e a perda de merca-
dos para a União Européia e Sudeste Asiático, incluindo a China; além da maior
presença de hispânicos na população dos EUA, criaram um caldo de insatisfação

119
Trabalho e Cinema • Volume 4

nos segmentos de direita dos EUA. A eleição de Bush em 2000 foi à reação con-
servadora à crise de hegemonia dos EUA. É perceptível no escritório de Frank
Fitts, ícones do poder imperialista dos EUA e do seu complexo militar, tais como
bandeiras dos Estados Unidos e do Estado da União; um globo antigo (da época
do colonialismo) e uma coleção de armas de fogo.
Certa vez, o casal de gays Jim e Jim, batem à porta da casa dos Fitts para co-
nhecer os novos vizinhos. Frank Fitts abre a porta e recebe, como presente, um
conjunto de flores. Exclama, de imediato: “Vamos ao que interessa! O que estão
vendendo?”. Na ótica capitalista, o que de fato interessa é o que tem valor de troca.
Deste modo, o Coronel Fitts expressa tal lógica do capital, ao medir qualquer gesto
de aproximação cordial segundo tais critérios fetichistas.
A fenomenologia do estranhamento social aparece não apenas na representa-
ção do Complexo Militar, na figura do coronel Frank Fitts, mas também na repre-
sentação do Complexo Industrial. A lógica do capital-dinheiro aparece na prática
da reengenharia das corporações capitalistas. Por exemplo, a atitude do gerente de
Lester, ao despedi-lo, após anos e anos de serviços prestados à empresa, expressa a
prática impessoal e hipócrita das corporações capitalistas que adotaram, de forma
diruptiva, no decorrer da década de 1990, um processo de reengenharia de em-
pregos que significou a extinção de milhões de postos de trabalho nos EUA. Um
dado curioso: o quadro de arte abstrata na sala do gerente da corporação capita-
lista expressa que, no mundo concreto da barbárie social, a arte torna-se abstrata.
Ao encontrar-se numa situação de pressão gerencial, Lester passa a enxer-
gar aspectos significativos da lógica capitalista, que busca criar situações factuais
(ou de conveniência), que tornem propicia a exploração da força de trabalho. Ao
mesmo tempo, torna-se perceptível que a fenomenologia do estranhamento social
convive com a fenomenologia do fetichismo da mercadoria, que iremos tratar mais
adiante Na verdade, na sociedade burguesa mais desenvolvvida, estranhamento
e fetichismo social articulam-se na composição do sociometabolismo do capital.
O filme “Beleza Americana” expõe com clareza a vigência da estética da mer-
cadoria na sociedade burguesa complexa. A mercadoria torna-se imagem. Diz
Guy Debord: “A forma última da reificação mercantil na sociedade contemporâ-
nea é precisamente a própria imagem.” É a partir da estética da mercadoria que
podemos expor os personagens que representam a fenomenologia do fetichismo
da mercadoria no filme “Beleza Americana”. Por exemplo, Carolyn Burham, a
mulher de Lester, representa a fenomenologia do fetichismo da mercadoria. Ela
aparece fascinada pelo fetiche. É o que sugere seu gosto pela American Beauty,

120
O mundo do trabalho através do cinema

um tipo de rosa vermelha, comum nos EUA. Carolyn cultiva, com dedicação, em
seu jardim, as American Beauties. O fascinio de Carolyn pela American Beauty ex-
pressa seu fascínio pelo fetiche que aparece como imagem. A própria Carolyn em
seu modo de ser, expõe a simetria do fetiche. Seu fascínio está menos na coisa em
si, do que em sua forma imagética; ou seja, vale mais pelo que representa, do que
pelo que é. Carolyn vive o Mundo das Aparências. Na sociedade do fetichismo da
mercadoria, a aparência torna-se a forma de ser das relações sociais. Como a mer-
cadoria é uma coisa exterior, ela se impõe pela sua aparência imediata. Na medida
em que as relações humanas tornam-se relações coisificadas, elas se estruturam
em função da imagem ou da forma da aparição social. Na verdade, a aparição
social apenas expressa valores vigentes na ordem do capital.
Na sociedade do fetiche, permeada de múltiplas (e complexas) relações so-
ciais, cada vez mais intensas, a imagem torna-se mercadoria e objeto de trabalho.
A imagem constitui a sociabilidade, por isso ela torna-se objeto de trabalho para
os profissionais que manipulam sonhos, desejos e fantasias. É o caso, por exemplo,
dos trabalhadores assalariados dos serviços que prestam atendimento ao público.
Na medida em que a ânsia do capitalismo global é vender mercadorias, tendo em
vista a necessidade de realizar mais-valia, a totalidade viva do trabalho está im-
plicada com atividades de venda, utilizando para isso, a manipulação dos sonhos,
desejos e fantasias dos clientes. Esta manipulação do mercado consumidor ocorre
por meio de Imagens. Não apenas a mercadoria é uma Imagem, mas o próprio
vendedor torna-se Imagem. Temos, nesse caso, o que denominamos alhures de
proletário-mascate, o trabalhador assalariado envolvido na compra-e-venda de
mercadorias. Todos nós nos tornamos vendedores de Imagens, ou nos tornamos
Imagens, no mundo do capitalismo manipulatório, tendo em vista que a manipu-
lação que impregna a vida social é permeada de Imagens. Ao viver a imagem, Ca-
rolyn confessa viver o fetiche. Na medida em que a imagem constitui a vida social,
a vida social torna-se um simulacro, onde o que é significativo no trato humano é
a forma de aparição social. Deste modo, as coisas se impõem aos homens.
A Imagem no filme “Beleza Americana” aparece, por exemplo, na marca da
indústria de fast food. O nome da empresa é Mr. Smile, sugerindo uma crítica
sarcástica ao American way of labour. O mote de “Beleza Americana” poderia ser
“Pareça Feliz!”, demonstrando que a sociedade burguesa é a sociedade da hipocri-
sia. Mr. Smile é a Imagem da sociedade do capitalismo manipulatório, onde todos
devem parecer felizes, mesmo que não o sejam. A sociedade da hipocrisia é a
sociedade do adoecimento humano, pois todos devem parecer felizes, mesmo que

121
Trabalho e Cinema • Volume 4

estejam sob pressão do fetichismo da produção, sendo obrigados, deste modo, a


cumprir metas e alcançar resultados, caso queiram preservar emprego e salários
condizentes com o padrão de vida para o consumo. Na verdade, se não quisermos
adoecer, temos que expressar e falar de nossos sentimentos e emoções que são
escondidos e reprimidos e acabam por produzir doenças físicas ou mentais.
Na medida em que o metabolismo social do capital corroí espaços de auto-ex-
pressão pessoal do homem-que-trabalha, ele contribui para situações de adoeci-
mentos humano. Eis o significado da precarização do homem-que-trabalha, a cor-
rosão do equilibrio metabólico homem-Natureza, provocado, por um lado, pela
pressão do fetiche da produção de capital; e, por outro lado, pelo esvaziamento
dos espaços de auto-expressão pessoal capazes de expor o sofrimento psiquico de
homens e mulheres dilacerados pelo estranhamento e fetichismo da mercadoria.
Deste modo, o estranhamento social opera não apenas o mecanismo da re-
dução do tempo de vida a tempo de trabalho, mas instaura também a vigência do
esvaziamento dos espaços-tempo de auto-expressão pessoal das individualidades
pessoais de classe. Por exemplo, Carolyn nunca chora, ela sempre tenta esconder
suas lágrimas, para que seu rosto sempre mostre um sorriso, uma expressão de
felicidade. Na verdade, trata-se de um auto-dominio estranhado, pois ela sofre
com esta imposição fetichizada dos valores burgueses - sofre, mas os aceita plena-
mente. Enfim, ela deve sempre parecer feliz, pois assim exige seu trabalho. O que
demonstra, de certo modo, a centralidade do trabalho na vida moderna tardia.
Seria interessante fazermos a análise critica do trabalho de Carolyn e Buddy:
o trabalho dos Negócios Imobiliários, trabalho típico no capitalismo manipulató-
rio, onde todos tendem a tornar-se “proletários-mascates”, isto é, vendedores de
mercadorias e prestadores de serviços. Na medida em que a atividade de serviços
organiza-se em torno da compra-e-venda de mercadorias, a sua lógica fetichizada
permeia todas as relações humanas (por exemplo, a imagem de Buddy Kane é a
marca do negócio). Por outro lado, a obsessão cotidiana de Carolyn em seu traba-
lho é vender uma mercadoria que ela não produziu. Para isso ela compromete sua
subjetividade. Seu gesto torna-se parte de si. O trabalho de corretor de imóveis a
obriga a lidar com pessoas humanas e a manipular desejos e afetos pessoais dos
clientes, buscando realizar seu objetivo: a venda do imóvel.
No seu trabalho de corretagem imobiliária, Carolyn trata com os mais diver-
sos tipos de clientes buscando vender o imóvel. Numa das cenas do filme, Carolyn
atende um casal de imigrantes chineses (no detalhe da camisete do homem, a foto
de Mao Tse-tung). Logo a seguir, ela atende também no filme, um casal de lésbi-

122
O mundo do trabalho através do cinema

cas e um casal de negros, grupos sociais minoritários nos EUA que avançaram
na década de 1990. Ao expor o trabalho da corretagem de imóveis, o filme “Bele-
za Americana”, retrata o começo da bolha imobiliária que iria estourar em 2008,
provocando uma das maiores crises financeiras do capitalismo global. O filme de
Sam Mendes é um filme visionário, pois contém elementos cruciais da nova dinâ-
mica do capitalismo imperial dos EUA que iriam estourar na década de 2000. Por
exemplo, como salientamos acima, quando Frank Fitts, lendo o jornal no break-
fast, exclama “Este país está indo direto para o Inferno”, ele prenuncia a ascensão
da nova direita republicana, responsável pela invasão do Iraque e ocupação do
Afeganistão, legitimado pelo pretexto do ataque terrorista em 11 de setembro de
2001 ao World Trade Center; e a presença do trabalho de Negócios Imobiliários
no filme expõe na segunda metade da década de 1990, a ascensão da bolha imo-
biliária nos EUA que iria estourar em 2008 com a crise hipotecária da subprime.
Por outro lado, é interessante a análise crítica do trabalho de Lester: o traba-
lho na Agência de publicidade. Este detalhe do roteiro do filme “Beleza America-
ca” também representa uma tendência marcante da nova dinâmica do capitalismo
global, baseado do trabalho dos infoproletários. Lester era um infoproletário que,
no seu trabalho de telemarketing na revista Midia Mensal, utiliza a Imagem como
matéria-prima, demonstrando que, tanto Carolyn quanto ele, estão imersos no
mundo do fetichismo, onde a Imagem como mercadoria é seu nexo estrutural.
O trabalho de Lester é o trabalho dos Negócios Virtuais. A atividade cotidiana de
Lester implica um processo de trabalho onde ele utiliza atendimento virtual. Ele
passa o dia tratando com pessoas virtuais, tão abstratas quanto a sua vida estra-
nhada. De fato, o trabalho de Lester é tão estranhado quanto a sua vida pessoal – e
vice-versa. Poderíamos perguntar: “Lester existe?”. Um detalhe curioso: em sua
baia no local de trabalho, existe um pequeno cartaz com o mote publicitário do
filme “Beleza America” – “Look closer”, que significa “Olhe bem de perto”.
O fetichismo social que caracteriza o capitalismo global, promove defor-
mações na auto-percepção pessoal. Vejamos o caso, por exemplo, de Jane e a
(Auto)-Imagem. O sonho dela é aumentar os seios, buscando possuir uma (auto)-
-imagem de acordo com o padrão vigente de beleza da mulher na sociedade do
capital. Na verdade, este é um sintoma de sua baixa auto-estima e da insegurança
típica da adolescência nas condições do capitalismo flexivel. Mas seriam os seios
de Jane tão pequenos? Estamos diante de uma (auto)-imagem estranhada e falsa,
sintoma de incapacidade da auto-referência pessoal na sociedade do fetiche. O que
é perceptível é apenas a imagem da mercadoria e suas imposições sistêmicas.

123
Trabalho e Cinema • Volume 4

Outro exemplo de perda de auto-referência pessoal e esvaziamento de sentido


de realidade, em virtude da sua imersão na vida estranhada, é a mãe de Rick, mu-
lher do coronel Frank Fitts. Diante de Jane, ela se desculpa pela bagunça da casa.
Entretanto, o que observamos a seguir é que, a casa está totalmente arrumada.
Percebe-se, deste modo, que o fetichismo social, como modo intransparente do
estranhamento na sociedade complexa do capital, altera o sentido de realidade.
De certo modo, podemos considerar a perda de auto-referencia pessoal um meca-
nismo de defesa do ego, sintoma de reação psiquica à deformação da personalida-
de provocada pelo processo de estranhamento social. Na verdade, a sociedade do
fetiche oblitera relações sociais humanas com o Outro-como-Próximo, capazes de
permitir a auto-percepção pessoal autêntica. Na medida em que se corrói espaços
de auto-expressão pessoal que permitam o desenvolvimento das relações sociais
humanas com o Outro-como-Próximo, obstaculiza-se efetivamente o processo
equilibrado de formação do ego humano.
Nos “Manuscritos de Paris”, de 1844, Karl Marx tratou o estranhamento hu-
mano decorrente do trabalho capitalista, como sendo um processo de desefeti-
vação humano-genérico caracterizado pela perda do sentido de realidade (eis o
significado do termo “desefetivado” em alemão – Entwirklicht, que significa lite-
ralmente “privado de realidade e/ou de efetividade”). Para Marx, no capitalismo,
o trabalhador é desfetivado, isto é, “privado de realidade”. È isto que explica, por
exemplo, as deformações de auto-referencia pessoal que corroem a capacidade
humana de percepção do sentido de realidade efetiva (esta desefetivação huma-
no-genérica é provocada tanto pelas deformações psiquicas de personalidade hu-
manas singulares, como pelo uso de drogas dos mais diversos tipos). O estranha-
mento humano pela perda do sentido de realidade possui uma função sistêmica
de reprodução social da ordem burguesa perversa. Uma pessoa humana privada
de realidade é incapaz de dar resposta radical às imposições da ordem burguesa.
Oblitera-se a capacidade humana de fazer história. Por isso, sob o capitalismo
manipulatório, a alienação por meio de perda de realidade e/ou efetividade é uma
das formas cruciais de estranhamento humano.
Na sociedade do capital, o corpo torna-se uma imagem a ser consumida. O
culto do corpo torna-se expressão deste corpo como imagem na sociedade das mer-
cadorias. É o que explica o desejo de Jane em aumentar os seios e a obsessão de
Lester em recuperar a forma física para seduzir Angêla. O mesmo acontece com
o sexo, que se torna apenas Imagem. Por exemplo, ao transar com Buddy Kane,
Carolyn está transando com uma Imagem, isto é, com aquilo que ele parece ser - o

124
O mundo do trabalho através do cinema

“Rei dos Imóveis” (por exemplo, a disseminação do sexo virtual deriva da con-
junção das tecnologias informacionais de comunicação com a vigência do corpo
como imagem).
O filme “Beleza Americana” expõe também a fenomenologia social da era
da corpolatria. Corpolatria é uma espécie de “patologia da modernidade burgue-
sa” caracterizada pela preocupação e cuidado extremos com o próprio corpo, não
exatamente no sentido da saúde (ou presumida falta dela, como no caso da hipo-
condria), mas particularmente no sentido narcisístico de sua aparência ou embe-
lezamento físico. Para o corpólatra, a própria imagem refletida no espelho se tor-
na obsedante, incapaz de satisfazer-se com ela, sempre achando que pode e deve
aperfeiçoá-la; sendo assim, a corpolatria se manifesta como exagero no recurso às
cirurgias plásticas, gastos excessivos com roupas e tratamentos estéticos, abuso do
fisiculturismo (musculação, uso de anabolizantes, etc). A corpolatria é sintoma
social da perda de sentido de realidade e/ou de efetividade humano-genérica.
Por outro lado, a corpolatria, como fenômeno psico-social, aparentemente
está relacionada com as mudanças no campo do trabalho produtivo ocorridas no
final do século XX, a saber, desde que a distinção entre produção e reprodução
social perdeu nitidez, confundindo-se assim, tempo de vida com tempo de traba-
lho (a passagem do capitalismo industrial para o capitalismo de serviços explica
a mudança sociometabólica). Desde então, em muitas profissões e ocupações, a
aparência corporal e o vigor físico passaram a ser uma espécie de segunda força
produtiva ao lado da força de trabalho propriamente dita, com o tempo livre ten-
dendo a se tornar um segundo turno do trabalho produtivo. O corpo tornou-se
Imagem, Imagem-como-mercadoria inserida no processo de compra-e-venda,
isto é, processo de realização do capital. Na medida em que trabalho vivo reduziu-
-se a força de trabalho, o corporalidade viva do homem-que-trabalha, sua força
de trabalho vital, adquiriu proeminencia no processo de metabolismo entre o ho-
mem e a Natureza. Entretanto, a corporalidade viva – corpo e mente – reduziu-se
a sua dimensão instrumental adequada à reprodução sistêmica da ordem bur-
guesa. Surgiu tanto o fetichismo do corpo – a corpolatria, quanto o fetichismo da
mente – que vai das filosofias de Auto-Ajuda às filosofias da Nova Era (New Age)
que proliferam sob o capitalismo global.
A Imagem como mercadoria na sociedade capitalista, significa que ela – a
Imagem – permeia as múltiplas relações sociais, constituindo, deste modo, for-
mas de auto-representação pessoal. O mundo social do filme “Beleza Americana”
é o mundo das Imagens. Por exemplo, a presença de Imagens (no caso, Imagens

125
Trabalho e Cinema • Volume 4

como fotografias) é um dado constante, sendo constitutiva da própria vida social.


Nesse caso, as fotografias servem as vezes, como forma referente do tempo pas-
sado cativo da presentificação crônica. Entretanto, a sociedade capitalista está
imersa num dilúvio de Imagens. Muitas delas sem significado referente com o
tempo passado ou mesmo com o tempo presente, expressando apenas valores fe-
tichiazados. Por exemplo, o detalhe do quarto de Angela é a própria expressão
do caos de Imagens-simulacros que preenchem a modernidade tardia do capital.
Outro personagem do filme “Beleza Americana” que representa a fenomeno-
logia do fetichismo da Mercadoria é a Angela Hayes. A jovem Angela Hayes é uma
menina insegura que passa todo o tempo encenando comportamentos calculados
para fugir da trivialidade. Ela esta imersa no mundo do fetichismo, incorporando
as factualidades da forma-mercadoria. Ela busca o sucesso a qualquer preço. Tal-
vez Angela Hayes seja a representação adolescente de Carolyn, buscando o suces-
so através da incorporação ativa dos valores-fetiches da ordem burguesa.

Tese 4

O filme “Beleza Americana” expõe situações de farsa e situações de tragédia.


Trata-se de situações intrínsecas à estrutura do cotidiano burguês e à lógica das
narrativas de “alienação” no capitalismo tardio. Os personagens, em si e por si,
não conseguem ir além da estrutura crítica de sociabilidade instaurada pela re-
produção sistêmica do capital. Por exemplo, como personagem representativo da
Farsa, temos o corretor imobiliário Buddy Kane. Diz ele: “Para se ter sucesso é ne-
cessário manter uma aparência de sucesso a qualquer custo.” Buddy Kane, o “Rei
dos Imóveis”, especulador de sucesso no mercado imobiliário, é a representação
plena da personalidade-simulacro que permeia o mundo do capital. A aparência
é tudo. O sucesso decorre desta forma ficticia de ser. Inclusive, é uma forma de
personalidade homologa à dinâmica predominante do capital financeiro, baseado
na valorização exacerbada do capital fictício. Carolyn torna-se uma fiel discipula
de Buddy Kane, aparecendo como a típica personalidade estranhada, imersa na
sua introversão e em seus valores-fetichizados de sucesso. Na verdade, o que vale
é o que sei e o que sinto, não o que é de fato.
No mundo social de “Beleza Americana” torna-se visível o vínculo entre feti-
che e agressividade. Diante da fluidez e precariedade das expectativas da sociedade
da financeirização, sob a hegemonia do capital ficticio, a frustração e o estresse
tornam-se uma ameaça constante. Para combater o estresse, a personalidade-si-

126
O mundo do trabalho através do cinema

mulacro busca o exercicio da agressividade simulada. Mais uma vez, o que existe
é mera simulação – nesse caso, a simulação de agressividade no Clube de Tiro é
parte do ritual das personalidade-simulacros que permeiam a sociabilidade da
sociedade do capital. Ele serve como “válvula de escape” para o estresse cotidia-
no. É uma “droga” que alimenta a perda de sentido de realidade, pois apesar de
estarem imersos (e impotentes) diante da contingência e do acaso do mercado,
consideram-se (ou se sentem) poderosos. Um detalhe curioso é a imagem da arma
ao lado do cassete de auto-ajuda. Esta imagem de “Beleza Americana” é deveras
significativa, expressando a afinidade eletiva entre Agressividade e Auto-Ajuda.
São duas formas de ser de personalidades-simulacros, estranhadas e imersas em
sua introversão abstrata.
Ao lado das situações de farsa, convive-se com situações de tragédia. O desen-
volvimento complexo do fetichismo da mercadoria constitui o metabolismo social
do capital como sistema. Mesmo os personagens problemáticos têm dificuldades,
no plano subjetivo, de ir além do fetiche. Na verdade, eles estão imersos na contin-
gência. Eis a forma que assume a tragédia. Como personagens que representam
as situações de tragédia, temos, por exemplo, Lester/Rick/Jane. No filme “Beleza
Americana”, Rick, tal como Lester, é um personagem problemático, que enfrenta
uma situação de estranhamento: a opressão paterna. Buscando sobreviver, de-
senvolveu um agudo senso de pragmatismo condescendente (certa vez afirmou:
“Gosto de todo tipo de música”). Além disso, diante do sistema do fetiche, adota
uma atitude contemplativa, cultivando uma estética da coisificação. Rick não se
indigna com as desgraças do mundo, mas adota uma introversão escapista.
A relação de Ricky com o pai - e, portanto, com o mundo - é ambígua. Na ver-
dade, Rick não consegue odiar o pai - não o considera mal, mas apenas triste; ou
seja, apesar de expressar tanto poder (e força) diante dele e da mãe, o pai de Ricky
é um impotente. É curioso que Rick pede a mãe para tomar conta do pai, apesar
dela ser a própria personificação da impotência e da incapacidade pessoal. O que
Ricky tem de excesso em sua família – autoridade, disciplina e estrutura, Jane tem
de falta. Eles representam extremos perversos de uma forma de sociabilidae sem
o justo-termo – a sociabilidade do capital.
Existe uma estética do fetichismo social no filme “Beleza Americana”. É através
da câmera de vídeo – Imagens Audiovisuais - que Rick expõe fragmentos coisifi-
cados do mundo do capital, buscando, por meio da contemplação dos fragmentos
à deriva, um sentido de vida. É o que ele considera a “beleza do mundo”: um pás-
saro morto, um mendigo morrendo de frio, um saco plástico ao vento… Com o

127
Trabalho e Cinema • Volume 4

registro audiovisual de sua câmera de video, Rick retrata inclusive, a vida trágico-
-catatônica da mãe. Na verdade, Rick busca através da contemplação do próprio
fetiche, um sentido para a vida. Busca a vida “por trás das coisas” – como ele diz.
Rick sugere uma estética do fetichismo, propondo a estetização do fragmento, ati-
tude típica do pensamento pós-modernista. Talvez, a atitude estética de Rick seja
apenas expressão da renúncia à transcendência do estranhamento e aceitação do
fetichismo da mercadoria. Talvez a estética de Rick seja uma forma de introversão
conformista e escapista. No plano ético, Rick evita confrontar a ordem burguesa,
procurando, a seu modo, adaptar-se à sociabilidade fetichizada. Por isso, diante
do pai opressor, ele foge (com Jane) e busca um lugar ao sol.

Figuras do sociometabolismo da ordem burguesa

Farsa Tragédia Ironia

Entretanto, a tragédia que transparece no filme “Beleza Americana” possui


um claro sentido de ironia. Ironia é uma figura linguistica com que se diz o con-
trário do que as palavras significam. Por exemplo, não é ironia acreditar que a
beleza se encontra nas situações de bárbarie? Certa vez Lester disse: “É difícil ficar
zangado quando há tanta beleza no mundo”. Mas, perguntamos: De onde provém
a sensação de ironia que transparece no filme “Beleza Americana”?

Tese 5

Podemos dizer que a ironia é o modo de expressão estético-discursiva das


contradições dilacerantes do sistema sociometabólico do capital sob as condições
de sua crise estrutural. Muitas vezes, a tragédia cotidiana aparece como ironia do
destino. Por exemplo, no “Manifesto Comunista” a ideia de crise do capitalismo
como expressão de ironia está presente nesta passagem de Marx e Engels: “As
relações burguesas de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a
sociedade burguesa moderna, que fez surgir gigantescos meios de produção e de
troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar as forças internas que
pôs em movimento com suas palavras mágicas”.
Um detalhe: é interessante salientar que a figura do feiticeiro que não pode
controlar as forças internas que pôs em movimento com suas palavras mágicas,

128
O mundo do trabalho através do cinema

nos remete, por exemplo, ao desenho animado Fantasia, longa-metragem dos es-
túdios Walt Disney, onde Mickey interpretou o aprendiz atrapalhado. O episodio
“Aprendiz de Feiticeiro”, baseado em poema de Goethe que inspirou o francês Paul
Dukas a compor sua sinfonia homônima, conta a história de um incauto aluno das
artes mágicas que, aproveitando a ausência do mestre, resolve aplicar um feitiço
às escondidas. Faz com que uma vassoura crie pernas e braços, pegue um balde e
vá buscar água no rio. Tudo corre bem até que o aprendiz percebe que não sabe as
palavras mágicas para fazer com que a vassoura pare. A cada momento, mais água
ela traz para casa. Tentando evitar uma inundação, o rapaz tem a infeliz idéia de
destruir a vassoura com um machado, e parte-a ao meio. Agora as duas metades
vão buscar água, duplicando a quantidade trazida. No último momento, o mestre
reaparece e resolve a situação, que, bem ao gosto de Goethe, serve como lição
moral para o aprendiz. Vejamos como a descrição da natureza da crise capitalista
no “Manifesto Comunista” feita por Marx e Engels expõe as dimensões irônicas da
contradição visceral do mundo do capital. Dizem eles:
“Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a
história da revolta das forças produtivas modernas contra as atuais relações de pro-
dução e de propriedade que condicionam a existência da burguesa e seu domínio.
Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, amea-
çam cada vez mais a existência da sociedade burguesia”.
E prosseguem:
“Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos já
fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já de-
senvolvidas. Uma epidemia, que em qualquer outra época teria parecido um pa-
radoxo, desaba sobre a sociedade - a epidemia da superprodução”.
Ou ainda:
“Subitamente, a sociedade vê-se, reconduzida a um estado de barbaria mo-
mentânea, dir-se-ia que a fome ou uma guerra de extermínio cortaram-lhe todos
os meios de subsistência; a indústria e o comércio parecem aniquilados. E por
quê? Porque a sociedade possui demasiada civilização, demasiados meios de sub-
sistência, demasiada indústria, demasiado comércio”.
Eis a suprema contradição do capital:
“As forças produtivas de quê dispõe não mais favorecem o desenvolvimento
das relações de propriedade burguesa; pelo contrário, tornaram-se por demais
poderosas para essas condições, que passam a entravá-las; e todas as vezes que as

129
Trabalho e Cinema • Volume 4

forças produtivas sociais se libertam desses entraves, precipitam na desordem a


sociedade inteira e ameaçam a existência da propriedade burguesa”.
Marx e Engels afirmam o caráter ontológico da crise do capitalismo: “O siste-
ma burguês tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu
seio”. Portanto, eis o caráter trágico e irônico da crise do capitalismo: “Porque a
sociedade possui demasiada civilização...”. Finalmente, eles expõem a saída que o
capital encontra para a sua ironia trágica: “De que maneira consegue a burguesia
vencer essas crises? De um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de
forças produtivas; de outro lado, pela conquista de novos mercados e pela explora-
ção mais intensa dos antigos. A que leva isso? Ao preparo de crises mais extensas
e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evitá-las”.
É claro que Marx e Engels não previram o imenso poder do fetichismo da
mercadoria no decorrer do século XX e a capacidade do sistema mundial do ca-
pital coordenar mecanismos de controle e meios capazes, não de evitar as cri-
ses, mas impedir que elas se tornem “mais extensas e mais destruidoras” (como
aconteceu com a crise de 1929). Entretanto, o caráter irônico das crises do capi-
talismo tornou-se cada vez mais explicito. Está cada vez mais claro que o sistema
mundial do capital padece de “excesso de civilização”, exprimindo a contradição
irremediável que caracteriza o fenomeno do estranhamento – por um lado, o de-
senvolvimento das forças produtivas do trabalho social e, portanto, o desenvolvi-
mento das capacidades humanas; e por outro lado, a desfiguiração e aviltamento
da personalidade humana por conta do desenvolvimento ampliado e intenso da
manipulação e fetichismo da mercadoria nas condições históricas da crise do ca-
pitalismo global.
A ironia trágica presente em “Beleza Americana”, pode ser sintetizada na fra-
se: “Viver de morte, morrer de vida” (Heráclito de Éfeso). Na verdade, no filme,
Rick, “vive de morte”, pois para ele a beleza da vida se esconde por trás de acon-
tecimentos tristes - um pássaro morto, um mendigo morrendo de frio, um saco
plástico ao vento... Ao mesmo tempo, Lester, uma cópia de meia-idade de Ricky,
“morre de vida”. Ao “morrer de vida”, Lester Burham é a representação antropo-
morfizada do próprio capitalismo tardio e suas candentes contradições internas.
Um traço candente do filme “Beleza Americana” é a presença do sentimento
de necrofilia num dos personagens jovem – Rick Fitts. Necrofilia é a perversão
sexual que leva certos indivíduos a saciar os seus instintos sexuais em cadáveres.
Erich Fromm destacava que o capitalismo tardio tende a desenvolver estruturas
subjetivas obscecadas pela morte. Na sociedade capitalista, imerso em formas so-

130
O mundo do trabalho através do cinema

ciais estranhadas, o homem perde o espontâneo amor à vida que se transforma


alternativamente em terrível amor à morte. A necrofilia prolifera com a dissemi-
nação da agressividade em suas múltiplas formas.
Os EUA, o Império do Capital, caracteriza-se por ser a sociedade da agres-
sividade, com a posse da arma de fogo sendo algo comum entre os cidadãos. Os
personagens problemáticos do filme “Beleza Americana” absorvem, por exemplo,
características do ser necrófilo. Deste modo, o sentimento de necrofilia, comparti-
lhado por Rick e Lester, se expressa no interesse comum pelo filme Re-Animator,
de Stuart Gordon (1985), cujo titulo no Brasil foi A Hora dos Mortos-Vivos. A
sinopse do filme é a seguinte: Herbert West é um cientista louco obssecado com
a morte. Em suas pesquisas, ele descobre um elixir que é capaz de trazer à vida,
seres mortos ou até mesmo partes do corpo desmembrados. Quando seu profes-
sor Dr. Hill tenta roubar sua descoberta, uma sucessão de assassinatos tem inicio.
O filme “Beleza Americana” nos apresenta dimensões da Vida e da Morte.
Deste modo, Lester renasce, para logo depois morrer. Ele renasce para a vida
quando busca se reafirmar como sujeito de si próprio. Ele se recusa a ser tratado
como se não existisse, ou seja, ser tratado como uma coisa. Procura re-afirmar a
legitimidade do desejo, sonho e fantasia como direitos do sujeito humano. Esse
“renascer” de Lester é apenas o inicio de sua morte, anunciada por ele mesmo no
começo do filme. Esta é a tragédia de Lester Burham. Entretanto, toda tragédia
possui uma dimensão catártica. Lester ao redescobrir o que havia esquecido, des-
cobre a si mesmo. Na verdade, a luta contra o fetichismo é a luta contra o esqueci-
mento, dizia Adorno – esquecimento do que nós fomos e do que somos e esque-
cimento do nosso poder-fazer. Ao agir como forma referente do tempo passado, a
Imagem-como-fotografia pode contribuir para o processo de reminiscência. Deste
modo, a cena final do filme, que mostra Lester apreciando uma foto familiar que
remete a lembranças da felicidade conjugal do tempo passado, contém elementos
de catarse, isto é, purificação e limpeza (catarse é o efeito salutar provocado pela
conscientização de uma lembrança fortemente emocional e/ou traumatizante, até
então reprimida).
Num primeiro momento, a re-afirmação da Vida de Lester se dá através do
objeto do desejo fetichizado. É importante salientar que o objeto-fetiche é in-
trinsecamente contraditório. O próprio capital como representação suprema do
objeto-fetiche é, como observou Marx, a “contradição viva”. O objeto do desejo
de Lester era uma Imagem-Fantasia, representada pela ninfeta Angela Hayes, ex-
pressão da negação fetichizada da sua stupid little life. A jovem Angela, enquanto

131
Trabalho e Cinema • Volume 4

objeto-Imagem do desejo de Lester tinha a força dissolvente e diruptiva do sonho


e da fantasia na vida pessoal. Para ele, Angela era a representação onirica da nin-
feta devassa, sendo a personificação das dimensões antitéticas da Vida e da Morte.
Na fantasia de Lester, Angela era quase um Anjo do Pecado, jovem, bela e suja. Era
a contraditoriedade do fetiche. Por isso, ela o atraia tanto.
Num primeiro momento do filme “Beleza Americana”, Lester está submisso
às injunções fetichizidas de sua stupid little life. Ele se submete à Carolyn, sua
mulher, e seu estilo de vida permeado de fetiches, isto é, valores-coisas que se
impõem à vida conjugal. Carolyn é uma típica mulher de “classe média”, moral-
mente mediocre, conformada com os valores burgueses. Lester é o pólo passivo da
relação conjugal insatisfatória. Ele evita confrontá-la e se submete à superfluidade
cotidiana. Entretanto, para renovar seu estilo de vida envelhecido, Lester teve de
se perder numa adolescência tardia, despertada por Angela.
Num noite chuvosa, Angela deixa-se seduzir por Lester. Entretanto, ao re-
alizar sua fantasia, Lester se frustra. Ao invés da ninfeta devassa, ele encontra
uma jovem frágil, inexperiente e insegura. Naquele momento, Lester caiu em si,
desfazendo a fantasia-fetiche que o conduzia. Após a catarse, isto é, a purificação
que se seguiu ao seu sacrificio, e após a dissolução da projeção imagética de An-
gela Hayes como uma ninfeta devassa, Lester expressa a perenidade do reencon-
tro pessoal consigo mesmo, isto é, reencontro íntimo com aquilo que perdera há
tempos. Foi contemplando a fotografia da família que ele se reencontrou com o
tempo passado esquecido. A atitude de Lester é um ato pleno de reminiscência, ou
seja, um ato de desfetichização de si. Sua expressão é de alguém que descobriu um
valor esquecido, soterrado nos escombros da pseudo-concretividade da vida con-
jugal. Na última cena de Lester Burham, torna-se perceptivel o contraste marcante
entre a fotografia da familia como forma referente de um passado esquecido; e o
buquê de Belezas Americanas como Imagem vazia de sentido de vida e fetiche-
-mor da ordem burguesa.
O filme “Beleza Americana” contém elementos da crise do trabalho. Por trás
das vidas danificadas de “Beleza Americana”, tanto a tragédia de Lester, como a
tragédia de Carolyn, ou mesmo de Rick, está vinculada à auto-alienação do tra-
balho. Na verdade, ela é a base material do estranhamento e fetichismo social
que perpassa o cotidiano de todos eles. A década de 1990 foi à década da Rees-
truturação Produtiva no capitalismo tardio. A maioria das empresas tiveram que
promover processos de downsizing, enxugando postos de trabalho, adequando-se
à concorrência global. A percepção sensível que Lester teve da ofensiva do capital

132
O mundo do trabalho através do cinema

na produção e a natureza fascista da lógica capitalista tornou-se parte de sua ca-


tarse, que, num primeiro momento, assumiu a forma de rebeldia individual. De
certo modo, a crise pessoal de Lester é reverberação da crise do capitalismo glo-
bal. Existe uma homologia estrutural perversa entre a crise pessoal da singulari-
dade do homem singular (Lester Burham) e a explicitação da crise do capitalismo
global em sua dimensão estrutural.
O filme “Beleza Americana” nos apresenta, no bom estilo hollywoodiano, o
drama do herói problemático e da sua luta heróica contra o mundo corporativo.
Mas a atitude individual contra o mundo do capital é inglória. É o que aconte-
ce com Lester, que, como um Carlito tardio, só consegue vociferar (e disfarçar o
desprezo) contra os “babacas no poder”. Com sua atitude rebelde, Lester expõe a
monotonia e a rotina do trabalho. Tal como sua vida conjugal, seu trabalho estra-
nhado e sua auto-alienação no trabalho, o levaram a se masturbar no banheiro,
imaginado “uma vida que não se pareça tanto com o inferno”. Para Lester, a mas-
turbação é a via de escape às situações de estranhamento social. É sintoma de uma
profunda insatisfação cotidiana. Apesar de rebelde sem causa, a atitude de Lester
é uma atitude meramente escapista: o desenlace irá ocorrer com sua demissão
sumária.
Ao sair da empresa de publicidade, Lester irá se refugiar num emprego de ser-
viços de fast-food, assumindo uma função com um mínimo de responsabilidade
possivel. Ele se recusa a servir (e a colaborar) com o capital e a se deixar “captu-
rar” pelos contrangimentos subjetivos postos pelas funções mais qualificadas e
polivalentes, que exigem mais responsabilidade em troca de maior desempenho e
produtividade. De certo modo, tal atitude de Lester é uma crítica à lógica toyotista
vigente nas grandes empresas capitalistas. É quase uma fuga inglória do trabalho
capitalista. A atitude rebelde de Lester é a saída possivel na perspectiva individual
do herói problemático.
Foi a partir de 1973, com a grande recessão mundial, que ocorreu uma in-
flexão histórica no desenvolvimento do capitalismo mundial. Ocorreu a crise
capitalista que impulsionou mudanças significativas na dinâmica do sistema do
capital, constituindo-se uma nova forma de acumulação capitalista (a acumulação
flexível), que mudou o modo de ser da produçào de valor e alterou a dinâmica
da socioreprodutibilidade do capitalismo. O novo regime de acumulação flexível
alterou a vida cotidiana de homens e mulheres. Por isso, o contraste geracional
entre Lester e Rick é deveras flagrante. Lester pertence à geração do capitalismo
em sua fase de ascenção histórica; o outro – Rick – pertence à geração do capi-

133
Trabalho e Cinema • Volume 4

talismo em sua fase de crise estrutural. As perspectivas de vida e de trabalho de


Lester e Rick são diversas. Por exemplo, para Lester, a concepção de emprego é
totalmente diversa da concepção de Rick. Para o primeiro, educado na perspectiva
da carreira profissional, o emprego é emprego de longo prazo, possuindo um valor
moral; para o segundo, o emprego é apenas um bico, sem garantias de carreira e
significado de vida. Enfim, Rick não está disposto a perder a vida para ganhá-la.
No filme “Beleza Americana”, todos estão imersos numa vida de aparências. O
emprego precário de Rick é apenas um bico que encobre suas atividades de tráfico
de drogas. Esta é sua verdadeira fonte de rendas. Rick finge ser “um cidadão com
um emprego respeitável”. Na verdade, a simulação é uma forma de sobreviver no
mundo do capital. No mundo do fetichismo da mercadoria, a vida social tornou-
-se um jogo de espelhos. Faz-nos lembrar, por exemplo, o “mirror maze” que aco-
lhe Carlitos ao perseguido por um policial no filme “O Circo”, de Charles Chaplin
(1928). Fugindo da policia, Carlitos refugia-se numa das atrações de um parque
de diversões: o labirinto de espelhos. A memóravel cena do “labirinto de espelhos”
no filme de Chaplin, é um pouco a representação metafórica da cotidianeidade de
aparencias do mundo social da proletariedade. Na medida em que o fetichismo da
mercadoria se dissmina pela vida social, o fetiche, como um labirinto de espelhos,
constitui uma teia de simulações cotidianas que envolvem as individualidades de
classe. Cada um de nós experimenta um pouco os transtornos de Carlitos na cena
do “labirinto de espelhos”.

134
O mundo do trabalho através do cinema

É interessante observar que o contraste geracional no filme “Beleza America-


na” é perceptível, não apenas entre Lester e Rick, mas também entre Carolyn e sua
filha, Jane. A geração de Jane, filha de familia de “classe média”, herdou de seus
pais, um melhor padrão de vida. Entretanto, faltam-lhe as perspectivas de vida e
as expectativas de inserção profissional que seus pais tinham. Na verdade, tanto
Jane, quanto Rick, cresceram sob a nova temporalidade histórica do capitalismo
global, caracterizada pela crise estrutural do capital. De certo modo, o filme “Be-
leza Americana” explicita o surgimento da nova camada social do proletariado – o
precariado - constituido por jovens adultos altamente escolarizados, mas inseri-
dos em relações de trabalho precárias e sem perspectivas de carreira profissional.
Jane Burham e Rick Fitts são representações do precariado em “Beleza Ameri-
cana”, a camada social do proletariado que representa no plano da estrutura de
classes as candentes contradições da ordem irônica do capitalismo global. É uma
ironia insana, jovens tão escolarizados e cheios de vida, estarem frustrados com
suas carreiras profissionais e sem perspectivas de futuro. Eis a miséria existencial
do precariado.
No filme “Beleza Americana”, os personagens possuem simetrias reflexivas.
Podemos distinguir, por exemplo, simetrias auto-reflexivas entre os personagens
Carolyn-Angela (auto-reflexo estranhado); e Lester-Ricky (auto-reflexo positivo).
Carolyn e Angela expressam um auto-reflexo estranhado na medida em que elas
são expressões geracionais de personalidades-simulacros que aceitam de modo
compassivo, os valores-fetiches da ordem burguesa. Lester e Rick expressam um
auto-reflexo positivo na medida em que eles representam personalidades rebeldes
que se insurgem contra o statu quo familiar, buscando auto-afirmar-se no interior
da ordem fetichista do capital.
Finalmente, podemos observar alguns detalhes no filme “Beleza America-
na”. Por exemplo, existe uma relação entre espaço urbano e sociabilidade. O típi-
co bairro de subúrbio norte-americano, aparece no filme arquitetado de forma
minuciosa, com ruas paralelas e árvores podadas uniformemente. É o bairro de
“classe media”, constituida num período de ascensão histórica do capitalismo. Na
verdade, o filme “Beleza Americana” sugere a homologia significativa entre espa-
ço urbano e estilo de vida ou biografia pessoal.
Outra coisa: a imagem da casa dos Burham no filme é a própria imagem da
Arquitetura do Sistema. A casa é pintada com as cores da bandeira americana. O
que demonstra que o filme de Sam Mendes é uma critica mordaz do American
way of life. Ao mesmo tempo, é importante observar que “Beleza Americana” é

135
Trabalho e Cinema • Volume 4

um filme que expõe a estética do Sistema, representada pela American Beauty, um


tipo de rosa, cultivada nos Estados Unidos, que não tem espinho nem perfume…
É a própria metáfora do simulacro e da beleza sem conteúdo. Ao estar imersa num
oceano de American beauty, Angela Hayes aparece, deste modo, como a própria
representação pessoal daquilo que Beleza Americana significa: uma beleza vazia
e inócua. American beauty vale pelo que parece ser e não pelo que é. Ela própria
representa os valores fetichizados do mundo burguês. Carolyn cultiva as Belezas
Americanas que aparecem ao lado de fotografias da familia Burham.
Existem elementos claros da desordem da familia burguesa no filme “Beleza
Americana”. Por exemplo, o único casal aparentemente feliz da vizinhança é o
formado pelos gays Jim e Jim, que almejam construir juntos, um novo padrão
de familia, totalmente incapaz, em si, de servir como nexo socioreprodutivo da
civilização do capital. Na verdade, a crise da familia burguesa decorre da falta de
comunicação que reforça a sociabilidade estranhada da familia Burham. A apatia,
desinteresse e falta de comunicação entre pai, mãe e filha são sintomas cruciais
da crise da familia burguesa. Ao mesmo tempo, não existe também comunicação
entre os membros da familia Fitts. O que se observa são relações sociais instru-
mentais, permeados de linguagem dissimulativa. O pai – Frank Fitts - possui uma
atitude impositiva, dificultando a verdadeira comunicaçào. Na verdade, a familia
Burham e a familia Fitts são microcosmos do sistema do capital, onde o problema
da falta comunicação, apatia e desinteresse pelo Outro-como-próximo tornam-se
traços recorrentes da sociabilidade fetichizada.
O filme “Beleza Americana”, de Sam Mendes, possui um sentido pedagógico.
Por exemplo, os personagens do auto-reflexo positivo – Lester e Rick - dão-nos
uma lição de vida. Ao assistir com Jane o vídeo que produzira, Rick expõe sua filo-
sofia de vida. Por um lado, temos a estetização do fragmento, atitude típica do pen-
samento pós-moderno que, imerso na pseudo-concreticidade da vida cotidiana,
renunciou à transcendência do estranhamento e do fetichismo da mercadoria. Na
verdade, trata-se de uma forma de introversão conformista e escapista ou modo
de ensimesmamento. Por outro lado, a estetização do fragmento é uma reação
possivel à falta de uma vida plena de sentido na modernidade tardia do capital.
Constatamos também no filme, a lição de Lester: após ser assassinado, Lester
Burham repassa, num segundo, verdadeiro “oceano de tempo”, momentos de sua
vida. Ele rememora pequenos detalhes da sua infância, adolescência e vida familiar
com Jane e Carolyn. O que Lester salienta é a importância de recuperarmos momen-
tos preciosos da vida, atentando para detalhes ocultos, únicos e fugazes, que escon-

136
O mundo do trabalho através do cinema

dem a beleza no mundo. Lester diz ser grato por todos esses “momentos de minha
vida idiota”. O que é importante destacar é que, Lester, como Rick, busca através
de sua “filosofia minimalista”, dar algum sentido à vida no sistema fetichizado do
capital. Na verdade, tanto Lester, quanto Rick, são expressões do fenomeno radical
do estranhamento social que coloca para as individualidades de classes, o problema
candente da vida plena de sentido. É este carecimento radical que move na vida
cotidiana, cada vez mais, homens e mulheres que vivem do trabalho.

137
CAPÍTULO 4

De olhos
bem fechados
Stanley Kubrick
(1999)

O filme “De olhos bem fechados” (Eyes Wide Shut), de Stanley Kubrick, foi o
último filme do magistral cineasta norte-americano falecido em 1999. O ci-
nema de Kubrick é uma radiografia profunda do espírito da civilização do capital
no século XX, a partir do seu pólo hegemônico mais desenvolvido: os Estados
Unidos da América. Stanley Kubrick tratou em seus filmes de temas cruciais do
século XX como, por exemplo, o estranhamento da técnica, no filme “2001 – Uma
Odisséia no Espaço”; e o irracionalismo da guerra, nos filmes “Glória feita de San-
gue” (1957), “Dr. Strangelove” (1964) e “Nascido para Matar” (1987). Abordou
também o tema do estranhamento e arrivismo social nos filmes “O Grande Golpe”
(1956) e “Barry Lyndon”; e o tema da barbarie social e manipulação, em “Laranja
Mecânica” (1971). Finalmente, ele tratou do tema do estranhamento, terror e fe-
tichismo social no filme “Lolita” (1962), “O Iluminado” (1980) e “De olhos bem
fechados” (1999). Portanto, Kubrick experimentou os vários gêneros do cinema:
drama social, guerra, suspense, ficção científica e terror. Foi um cineasta perfec-
cionista que em 46 anos de carreira cinematográfica dirigiu apenas 13 filmes. (o
primeiro longa-metragem foi “Fear and Desire”, de 1953).
O filme “De olhos bem fechados” (1999), de Stanley Kubrick foi baseado no
romance “Breve romance de sonho” (em alemão, Traumnovelle), de Arthur Sch-
nitzler (1926). A narrativa de Arthur Schnitzler foi adaptada por Stanley Kubrick
e Frederic Raphael para o cenário de Nova Iorque de 1999, período de crise do
capitalismo global. O diretor norte-americano vai buscar na literatura de Arthur
Schnitzler (1862-1931), escritor austriaco das primeiras décadas do século XX,
período da primeira crise organica do capitalismo mundial, elementos narrativos
para abordar o drama social da pós-modernidade burguesa. Na verdade, existem
homologias estruturais entre a Viena de 1926 e a Nova Iorque de 1999.
Arthur Schnitzler foi o dramaturgo do decadente Império Austro-hungaro;
e Stanley Kubrick foi o cineasta do decadente Imperío norte-americano. Schnitz-

139
Trabalho e Cinema • Volume 4

ler presenciou a primeira crise orgânica do capitalismo do século XX; e Kubrick,


as primeiras décadas da crise estrutural do capital. O cineasta norte-americano
inspirou-se em Arthur Schnitzler para abordar um traço estrutural do sociometa-
bolismo do capital em sua etapa de crise orgânica: o estranhamento e fetichismo
social, expressados na dissolução do Eu, perda do sentido de realidade e imersão
íntima na fantasia e perversidade social (temas que Kubrick abordou noutros fil-
mes, como, por exemplo, “Lolita” e “O Iluminado”).
No romance Traumnnovelle, de Arthur Schnitzler, certa noite, durante uma tro-
ca de confidências, uma mulher provoca (ou desconcerta) o marido, ao lhe contar
uma fantasia sexual que teve no passado. Transtornado pelo ciúme, o marido, um
jovem médico, sai no meio da noite para atender ao chamado de um paciente à
beira da morte e se vê enredado, a partir daí, numa aventura mórbida e erótica,
onde a sua vida sempre estará por um fio. Stanley Kubrick definiu o romance “Breve
romance de sonho” como uma história sobre o medo: medo da perda. Na verdade,
o enredo da novela de Schnitzler trata da odisséia no espaço estranhado da fantasia
do homem pequeno-burguês, transtornado e amedrontado pelo ciúme da mulher.
O filme de Kubrick expõe as verdades do inconsciente do homem pequeno-burgues
- homem de “classe média” – imerso no fetichismo social.
Arthur Schnitzler (1862-1931) foi um escritor e médico austriaco, admirado
por Sigmund Freud, que se dedicou, em seus contos e romances, a tratar da vida
cotidiana da Viena fin-de-siécle. Nos seus dramas e novelas, usando a técnica do
“monólogo íntimo”, Schnitzler mostra drasticamente o subconsciente dos seus
protagonistas. As semelhanças entre Sigmund Freud e Arthur Schnitzler são in-
discutíveis. Ambos viveram, cada um ao seu modo, intensamente a psicanálise.
Em uma carta destinada a Schnitzler, datada de 14 de maio de 1922, Sigmund
Freud faz algumas observações sobre a obra do escritor e confessa ter evitado,
durante muito tempo, ser apresentado a ele, pois, ao ler seus textos, acreditava que
se tratava de seu “duplo”, isto é, alguém que, como ele, era “explorador das profun-
dezas da alma humana”, mostrando “as verdades do inconsciente”. Diz Freud em
sua carta a Schnitzler:
“Sempre que me deixo absorver profundamente por suas belas criações, pare-
ce-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os
interesses e conclusões que reconheço como meus próprios. Ficou-me a impres-
são de que o senhor sabe por intuição – realmente, a partir de uma fina auto-ob-
servação – tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso

140
O mundo do trabalho através do cinema

trabalho. Creio que, no íntimo de seu ser, o senhor é um profundo investigador


da alma, tão honestamente imparcial e intrépido como nenhum outro jamais foi.”
Schnitzler teve acesso privilegiado à mentalidade da “classe média” de seu
tempo, à de seus contemporaneos e à sua própria. Entretanto, como não poderia
deixar de ser, ele despe seus personagens de toda preocupação material e deter-
minação individual ou social, levando-os para um terreno onde estão à disposi-
ção daquilo que constitui o tema do autor: o interior do ser humano, ou melhor,
a interioridade do homem burguês. O escritor e médico austriaco que inspirou
Stanley Kubrick em “De olhos bem fechados”, mergulha nos abismos que estão
por trás da consciencia, ali onde não há mais nenhum controle social, nenhuma
responsabilidade, nem escrúpulo. Como observa Wolfgangf Bader, “ele [Schnitz-
ler] tenta sondar profundezas que se instalam entre a verdade e a mentira, o jogo
e a seriedade, o sonho e a realidade, denunciando a superficie da sociedade em
sua total aparencia”. Como Kubrick, o escritor austriaco elaborou, sem o saber,
uma crítica radical do sociometabolismo da modernidade burguesa em sua etapa
de crise orgânica.
Nos seus contos, romances e peças teatrais, Schnitzler é um “sondador da
alma”, ou ainda, um investigar da enfermidade instintivo-moral da alma do in-
dividuo burgues, onde se entrelaça amor e morte, Eros e Thanatos, tema que re-
torna em vários escritores da Viena fin-de-siecle. Mas Schnitzler não é um autor
moralista. Ele visa apenas mostrar a fragilidade do dominio moral do homem
burguês em reprimir seus instintos vitais, mesmo nos individuos mais resolvidos
e dispostos a levar uma vida social ordenada, ética e dotada de finalidade (como é
a vida social do Dr. William Harford, personagem central do filme “De olhos bem
fexchados”, de Stanley Kubrick). Como Freud, Schnitzler expunha as candentes
antinomias da alma burguesa. Por um lado, ele contesta a tradição moralista, por
ela ser incapaz de entender a dimensão instintiva do homem; e por outro lado,
mostra também a crueldade inevitável para o eu e para os outros, implicita na sa-
tisfação voraz dos instintos. Eis a tensão conflituosa que persegue os personagens
de Schnitzler, e que Freud traduziu nos dilemas íntimos do mal-estar da civiliza-
ção. Enfim, Arthur Schnitzler conseguiu, de forma perspicaz, apreender a cultura
de “classe média” e o sociometabolismo da vida burguesa dos primórdios do sé-
culo XX. A Viena de fin-de-siecle era um terreno social fertil para se apreender os
traços da modernidade burguesa dilacerada pelas suas contradições orgânicas.
Na passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista,
ocorrida nas últimas décadas do século XIX para as primeiras décadas do sécu-

141
Trabalho e Cinema • Volume 4

lo XX, tivemos a crise orgânica da ordem burguesa em expansão, com a tensão


provocada, por um lado, pela persistência do Antigo Regime (Ancien Régime) na
Europa Central (Alemanha e Império Austro-húngaro); e, por outro lado, pela
expansão do modo de produção capitalista com a disseminação do fetichismo da
mercadoria (o Antigo Regime era caracterizado, no plano político, pela persistên-
cia de monarquias constitucionais e, no plano da organização social, por socieda-
des burguesas com traços estamentais). Foi nos países capitalistas da Europa Cen-
tral nos primórdios do século XX que explicitaram-se, com vigor, as contradições
sociais da ordem burguesa hegemônica. A Modernidade Vienese dos primórdios
do século XX, território existencial do médico e escritor Arthur Schnitzler, era um
lugar privilegiado para se observar os traços europeus da modernidade tardia do
capital, clivada de ambivalencias e contradições orgânicas. Por isso, as reflexões de
artistas e sociológos alemães (como por exemplo, os pais da sociologia alemã: Fer-
dinand Tonnies, Max Weber e Georg Simmel) são marcadas por uma percepção
ambivalente da modernidade burguesa.
Wolfgang Bader salientou que a Modernidade Vienense - sob este aspecto,
segundo ele, precursora de toda a Modernidade - teve uma profunda desconfian-
ça face a todo gênero de unidade, completude e totalidade. Podemos dizer que a
Modernidade Vienense, aquela que se desenvolveu em torno do Império Austro-
-hungaro, é a expressão típica da modernidade do capital sob o dominio do capital
financeiro. Por exemplo, foi nesta época – 1910 - que o economista austriaco mar-
xista Rudolf Hilferding publicou o livro clássico “O Capital financeiro” (um pouco
antes, em 1906, o economista heterodoxo inglês, John A. Hobson, tinha publicado
“A evolução do capitalismo moderno”). Na concepção de Hilferding, o capital fi-
nanceiro surge quando há uma integração entre o capital bancário e o industrial
com a dominância dos banqueiros sobre os industriais. Na visão de Hobson, “a
estrutura do capitalismo moderno tende a lançar um poder cada vez maior nas
mãos dos homens que manejam o mecanismo monetário das comunidades in-
dustriais - a classe dos financistas.” Enfim, a Modernidade Vienense foi marcada
pela expansão do capitalismo financeiro, expansão capitalista que não poderia
deixar de produzir reflexos no plano da objetividade social com reverberações na
vida cotidiana. Tal como o tempo histórico de Arthur Schnitzler, o tempo históri-
co de Stanley Kubrick é um tempo histórico de predominio do capital financeiro.
Entretanto, a tensão profunda da temporalidade histórica da Modernidade
Vienense não se devia apenas às contradições íntimas do desenvolvimento capi-
talista industrial em sua forma financeira, com o avassalamento da vida social ao

142
O mundo do trabalho através do cinema

fetichismo da mercadoria. Não se pode desprezar, como salientou Arno J. Mayer,


principalmente no caso da Europa Central, a força da Tradição, isto é, a persiten-
cia do Antigo Regime com suas forças de inércia e resistência que retardaram o
declínio da antiga ordem. Houve uma tendência marcante a negligenciar, subesti-
mar e desvalorizar a resistência de velhas forças e idéias e o seu astucioso talento
para assimilar, retardar, neutralizar e subjugar a modernização capitalista, in-
cluindo a industrialização. Portanto, a tensão cultural ambivalente e contraditória
que caracterizou a Modernidade Vienense expressou-se, por um lado, na tensão
dilacerante entre o desenvolvimento expansivo do fetichismo da mercadoria na
vida social, devido o avanço do capitalismo industrial; e, por outro lado, na força
da Tradição que se impunha na ordem do capital. Por exemplo, nas grandes po-
tências continentais - com exceção da França - as elites agrárias estavam intactas,
a agricultura se mantinha como uma atividade social fundamental, e as fronteiras
inseguras justificavam a presunção militar de reis e nobres. Inclusive, segundo
Arno J. Mayer, a Grande Guerra de 1914, foi uma conseqüência da remobiliza-
ção contemporânea dos anciens regimes (antigo regime) da Europa continental.
Embora perdendo terreno para as forças do capitalismo industrial, as forças da
antiga ordem ainda estavam suficientemente dispostas e poderosas para resistir
e retardar o curso da história, se necessário recorrendo à violência. Para Mayer, a
Grande Guerra de 1914 foi antes a expressão da decadência e queda da antiga or-
dem, lutando para prolongar sua vida, do que meramente o explosivo crescimento
do capitalismo industrial, resolvido a impor sua primazia.
Para Wolfgang Bader, a Modernidade Vienense, universo cultural no interior
da qual viveu Arthur Schnitzler, desenvolveu a consciencia de que, toda moder-
nidade é feita, no fundo, de uma multiplicidade de elementos heterogeneos que
se opõem uns aos outros numa contradição inconciliável. A visão de mundo da
“classe média” do Império Austro-húngaro, cultivada pela burguesia e intelectuais
pequeno-burgueses, sensíveis ao sociometabiolismo fetichizado da forma-merca-
doria, submetia os fundamentos da Tradição do pensamento europeu (substancia
e sujeito), a uma crítica radical, exercendo uma ruptura com todos os laços tra-
dicionais. Diz Bader: “ ‘Secessão’ era um conceito muito apreciado da época.” Na
verdade, a tensão provocada pela expansão do fetichismo da mercadoria, e ainda,
a persistencia no plano do imaginário social, das forças da Tradição, provocaram
o rompimento dos laços do Eu com o mundo social. Eis a natureza do fetichismo
da mercadoria: ocultar e seccionar o laço do Eu, no plano cognitivo, com o mundo
do trabalho social. Por isso, observou Bader: “O laço do Eu a si mesmo, que é cons-

143
Trabalho e Cinema • Volume 4

titutivo da identidade, é anulado, por exemplo, no filósofo austriaco Ernst Mach,


que despedaça o Eu num conglomerado de sensações; ou em Sigmund Freud, que
dissolve o individuo numa complexa estrutura de pulsões; ou ainda em Robert
Musil, que faz questão de ressaltar seu Homem sem qualidades como qualidades
sem homem.”
Naquela situação histórica da Europa central em crise no começo do século
XX, a modernidade do capital explicitou com vigor seus traços culturais tipicos.
Não foi a toa que Stanley Kubrick, de modo intuitivo, buscou no romance de Ar-
thur Schnitzler, elementos narrativos para expor as misérias da hipermoderni-
dade burguesa em fins do século XX. Na verdade, a atualidade da Modernidade
Vienense se reverbera na temporalidade historica do capitalismo global com sua
cultura pós-moderna e a crise da Razão histórica. Pode-se dizer que hoje, o globo
tornou-se um imenso Imperío Austro-Hungaro clivado de contradições e ambi-
valencias. O projeto literário da Modernidade Vienense exposto, por exemplo, nas
peças teatrais, romances e contos de Arthur Schnitzler, contêm, em si e para si, os
traços da subjetividade burguesa em expansão sob o involucro crítico da persis-
tencia do Antigo Regime.
Como salientamos acima, Arthur Schnitzler presenciou a primeira crise orgâ-
nica do capitalismo do século XX; e Stanley Kubrick, assistiu as primeiras décadas
da crise estrutural do capital. Na verdade, a crise estrutural do capital que se de-
senvolveu a partir de meados da década de 1970, é a etapa tardia da crise orgânica
do capitalismo que percorreu o século XX. A crise organica do capital é uma crise
de crescimento da ordem burguesa. Entretanto, como observam Marx e Engels,
“a burguesia produz sobretudo, seus próprios coveiros”. Como contradição viva, o
capitalismo cresce e expande-se por meio de crises orgânicas, que contém, em si
e para si, elementos de sua própria decadência histórica. Ao crescer e expandir-
-se, o modo de controle estranhado do capital afirma, no plano da possibilidade
histórica, sua própria negação.
A crise orgânica do capital na primeira metade do século XX, pelo menos até
a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), assumiu uma dimensão formal na me-
dida em que a força da expansão capitalista digladiava-se com forças persistentes
da Tradição. Na verdade, as duas guerras mundial do século XX tiveram a função
histórica de “limpar” ou “clarear”, pelo menos no cenário europeu, o terreno histó-
rico para a expansão da forma-mercadoria e afirmar o poder do capital moderno
como modo de controle sociometaboico. A expansão do capitalismo do pós-guer-
ra (1945-1973), sob a hegemonia norte-americana, abriu efetivamente, uma nova

144
O mundo do trabalho através do cinema

etapa da crise orgânica do capital, explicitando, deste modo, a crise orgânica como
crise estrutural do capital. Ela – a crise estrutural do capital - inaugurou a tempo-
ralidade histórica do capitalismo global. É o que István Mészáros iria considerar o
periodo de decadencia histórica do capital.
O traço categorial distintivo do mundo burgues moderno é a presença do feti-
chismo da mercadoria na vida social (Georg Lukács denominaria este fenomeno,
em “História e Consciência de Classe” (1921), de fenomeno da reificação). Com
a dissolução dos laços entre o Eu e o mundo social por conta do fetichismo da
mercadoria (o que Karl Marx nos Manuscritos filósoficos de 1844 denominaria
como sendo o fenomeno do estranhamento ou desefetivação humano-genérica,
isto é, a perda do sentido de realidade), as objetivações sociais assumiriam formas
estranhas. Estava-se diante não apenas do fenomeno do estranhamento, mas sim,
de um modo histórico de estranhamento social: o fetichismo social com suas for-
mas estranhadas – imagens-fetiches ou valores-fetiches, por exemplo – que per-
meiam a vida social. O fetichismo da mercadoria é apenas a forma mais simples
(e paradigmática) do fetichismo social que permeia o mundo burguês. Na medida
em que os individuos não conseguem discernir a natureza histórico-social das
objetivações estranhadas, elas tornam-se fetiches propriamente ditos, isto é, ima-
gens, valores, idéias-forças que conduzem peremptoriamente os agentes sociais.
Por exemplo, os “fantasmas” do psiquismo que permeiam a psicanálise, apare-
cem para os psicanalistas como traços da alma humana e não como expressões da
alma burguesa. Na verdade, o fetichismo oculta a origem de classe e a dimensão
histórica das fenomenologias esranhadas do psiquismo humano, reduzindo-os a
traços ontológicos do homem.
Podemos dizer que o fetichismo social é a forma de ser do estranhamento
caracteristico do capitalismo histórico em sua etapa desenvolvida. Na medida em
que se desenvolve a sociedade mercantil complexa, o estranhamento intrinseco à
ordem do capital, fetichiza-se, adquirindo, deste modo, um caráter místico (como
a própria coisa-mercadoria). Com a predominância do fetiche da mercadoria, o
estranhamento, adquire uma dimensão naturalizada, quase fantasmagorica, que
se projeta no plano do imaginário social. O desenvolvimento capitalista faz proli-
ferar a consciencia social ingenua adversa à consciencia critica. Sob o capitalismo
manipulatório, dissemina-se a consciencia ingenua, com as individualidades pes-
soais de classe perdendo a dimensão da historicidade dos objetos humanos, que
se intervertem em coisas sociais (como diria Marx a respeito das mercadorias,
“coisas fisicamente metafisicas”).

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Trabalho e Cinema • Volume 4

O mal-estar da Modernidade Vienense antecipou a barbarie política das Guer-


ras Mundiais e do nazi-fascismo na primeira metade do século XX. Arthur Sch-
nitzler, que inspirou Stanley Kubrick no filme “De olhos bem fechados”, expressou
em suas peças teatrais, contos e romances, o flerte da Morte com a Civilização. De
fato, a cultura do Imperio Austro-Hungaro como formação civilizatória em crise
no começo do século XX, expôs as visceras do mundo burgues em constituição:
o mundo social da mercadoria, fetichizado, se digladiando ainda com as forças
da tradição e com suas próprias contradições organicas. Por isso, Kubrick, ao ba-
sear a narrativa do filme “De olhos bem fechados” no conto “Breve romance de
sonho” de Arthur Schnitzler, vislumbra, de modo intuitivo, a atualidade candente
das percepções radicais do escritor austriaco como analista da alma burguesa na
etapa de crise estrutural do capital.
Ao desenvolver-se em sua etapa imperialista, o sistema do capital explicitou,
com amplitude e intensidade, suas contradições orgânicas no plano mundial. O
capitalismo histórico em sua etapa monopolista, - isto é, o capitalismo mundial
- se desenvolveu por meio de crises e contradições que percorreram todo o secu-
lo XX (o século da expansão orgânica do capitalismo mundial). Por exemplo, o
capitalismo mundial no século XX foi marcado pela I Guerra Mundial em 1914,
resultado da primeira onda de expansão capitalista: o período do imperialismo
que caracterizou a etapa superior de desenvolvimenmto capitalista. Após a Pri-
meira Guerra Mundial, o pólo hegemonico da economia mundial deslocou-se da
Inglaterra para os EUA, que viveu, na década de 1920, uma euforia financeira
que conduziria o mundo capitalista para a crise de 1929. A Grande Depressão e
as contradições imperialistas conduziram a civilização do capital para mais uma
guerra mundial na primeira metade do século XX: a II Guerra Mundial. A derrota
do nazi-fascismo em 1945 afirmou o poder hegemonico norte-americano no ce-
nário da “guerra fria” (EUA versus URSS). No capitalismo do pós-guerra temos a
segunda onda de expansão capitalista no século XX: a etapa fordista-keynesiana.
De 1945 a 1975 temos os ditos “trinta anos gloriosos” do capitalismo fordista-
-keynesiano que marcaram mais um salto de expansão capitalista no século XX.
Entretanto, como o desenvolvimento capitalista contém, em si, a intensificação e
ampliação de suas contradições organicas, o periodo do capitalismo fordista-key-
nesiano conduziu o mundo capitalista à crise de 1973-1975, a primeira recessão
mundial do pós-guerra. Como resposta à grande crise, tivemos a terceira onda de
expansão capitalista no século XX: a globalização.

146
O mundo do trabalho através do cinema

O capitalismo global que se desenvolve a partir de 1980, caracterizou-se como


sendo a etapa superior do capitalismo tardio, o capitalismo do pos-II Guerra
Mundial. A nova temporalidade histórica do capital foi caracterizado pela domi-
nância do capital financeiro. Entretanto, diferentemente do capitalismo financei-
ro das primeiras décadas do século XX, analisado por John A. Hobson e Rudolf
Hilferding, o capital financeiro do capitalismo global, no decorrer dos “trinta anos
perversos” (1980-2010) criou um arcabouço institucional ou bloco histórico que
permitiu a sua reprodução social e política. O capital financeiro do começo do
século XX, como não constituiu um arcabouço institucional, perdeu a sua do-
minancia politica após a crise de 1929, o que não ocorreu, por exemplo, com o
capital financeiro da era do capitalismo global, que mesmo com sucessivas crises
financeiras, como a crise de 2008, mantém-se incrustados no sistema de poder
decisório do capitalismo mundial.
Na medida em que o século XX é o seculo de expansão do sistema mundial
do capital, ele é o século das crises orgânicas e suas derivações sociometabolicas.
A partir de meados da decada de 1970, a crise orgânica do capital interverte-se
em crise estrutural. A ascensão histórica do capital e suas contradições encontram
seus próprios limites, que iriam se desdobrar numa nova temporalidade histórica:
a temporalidade historica da crise estrutural do capital.
A crise estrutural do capital é a crise de civilização: a crise da civilização do
capital que se constituiu e ampliou-se, numa dimensão planetária, no século XX.
Um aspecto crucial da crise de civilização do capital é ser crise da familia burgue-
sa, isto é, crise da mais importante instancia da socioreprodutibilidade do capital.
A crise da familia burguesa adquiriu dimensão crucial no pós-guerra, principal-
mente a partir da crise estrutural do capital. Por exemplo, de certo modo, o filme
“De olhos bem fechados” ressaltou uma dimensão da crise da familia pequeno-
-burguesa com a posição das mulheres como genero afirmativo em contraposição
a opressão do genero masculino (a questão de genero está subsumida à questão de
classe, embora tenha uma legalidade específica).
Nossa hipótese é que, no filme de Stanley Kubrick, temos o desconcerto do
homem perante a confissão do desejo feminino. Eis um elemento de crise (e con-
testação) do poder de gênero do Capital (o poder masculino), que excluia as mu-
lheres de serem sujeitos de desejo.
A primeira cena do filme “De olhos bem fechados”, de Stanley Kubrick, nos
apresenta William e Alice Harford preparando-se para ir a festa de natal ofercida
pelo milionário Victor Ziegler. Depois de se despedir da filha Helena e de fazer

147
Trabalho e Cinema • Volume 4

as últimas recomendações à babysitter, o casal elegantemente vestido sai rumo a


mansão dos Ziegler. A familia Harford (William, Alice e Helena), família da alta
“classe média” que vive à sombra da elite do capitalismo financeiro. William Har-
ford é médico com carreira de sucesso, possuindo clientes na high society de Nova
Iorque. Alice Harford não trabalha. É mulher-mãe, desempregada que torna-se
dona-de-casa. A mansão dos Ziegler é uma mansão de luxo e luz. A construção
das imagens filmicas em Stanley Kubrick é perfeita e significativa. O diretor nor-
te-americano elabora, como verdadeiro artesão da Sétima Arte, cada detalhe de
seus filmes. O luxo e a luz da mansão dos Ziegler, onde ocorre a festa natalina,
contrasta-se com o luxo e a luxúria onde, mais tarde, ocorreria o baile orgiástico,
a festa privada (frequentada por Victor Ziegler). Como representação do homem
burguês, Victor Ziegler é o homem-anfibio (Erich Fromm diria: um homem esqui-
zóide). Ele vive, ao mesmo tempo, na luz e na escuridão.
Na festa da mansão dos Ziegler, William Harford reconhece o pianista: Nick
Nightgale, seu colega de universidade que interrompeu os estudos. Enquanto Bill
cumprimenta Nick, Alice afasta-se e dirige-se ao banheiro. Bill Harford contrasta-
-se com seu velho amigo de Faculdade de Medicina, Nick Nightgale, que seguiu
outra carreira profissional, tornando-se um músico proletário. Nick Nigthgale é
representação da precariedade salarial de “classe media”. Nick Nigthgale (“O canto
da noite”) é um personagem importante na trama narrativa do filme, tendo em
vista que, é ele que irá introduzir, mais tarde, William Hartford no ritual orgiásti-
co, representação alegórica do decadentismo da burguesia financeira global.
Nos primeiros minutos de cenas do baile clássico no filme “De olhos bem
fechados”, percebemos detalhes que fazem referencia ao precário mundo do tra-
balho. Na verdade, o mundo burguês é o mundo da precariedado do trabalho.
Primeiro, a presença de Nick Nightgale, o pianista proletário que exerce uma
atividade laboral intermitente, executando seu trabalho por conta-própria (por
exemplo, em Nova York, Nick toca numa boate); mas Nick toca piano também nas
festas burguesas. Como iremos verificar, o proletário Nick circula pelo mundo (e
submundo) da alta burguesia: ele toca tanto na festa natalina de Victor Ziegler,
quanto em festas privadas, como o baile orgiástico frequentado por altas figuras
da high-society nova-iorquina. Depois, outra referência ao mundo do trabalho nas
primeiras cenas do filme “De olhos bem fechados”, é a fala de Alice, mulher-mãe
de “classe média” que está desempregada e procurando emprego – como ela mes-
ma disse: “Eu administrava uma galeria de arte no Soho”.

148
O mundo do trabalho através do cinema

Deste modo, o casal Harford é um casal pequeno-burgues que circula em tor-


no das camadas da alta burguesia nova-iorquina. O médico Bill Harford tem aces-
so aos circulos burgueses, pelo menos os circulos públicos (ele não teria acesso,
por exemplo, à festa privada, o baile orgiástico). Torna-se, como médico, servidor
da burguesia e seus prepostos politicos (como iremos ver, ao atender a solicitação
de Ziegler para cuidar da jovem prostituta Mandy, que teve um colapso por exces-
so de consumo de drogas no piso superior da mansão, Bill promete manter sigilo).
Bill Harford é um trabalhador de “classe média”, médico clinico-geral que tra-
balha dia e noite, atendendo a clientela burguesa. Talvez Bill trabalhe em demasia,
não tendo, por exemplo, tempo para cuidar de sua esposa Alice e sua filha Helena
(a redução do tempo de vida a tempo de trabalho é um importante aspecto da pre-
carização do homem-que-trabalha). Inclusive, podemos considerar os devaneios
eróticos de Alice como sintoma de carências provocadas pela situação de precarie-
dade laboral do casal que, imersos no trabalho estranhado, não tem tempo-para-
-si. Trata-se de uma dimensão do sociometabolismo do capital que, nas condições
de sua crise estrutural, provoca nas individualidades pessoais de classe, situações
de deriva pessoal (como aconteceu, por exemplo, com o casal Harford).
Na festa dos Ziegler, Alice é abordada por um hungaro de meia-idade Sandor
Szavost que a corteja descaradamente, aproveitando-se do estado de embriaguez
da mulher. O burguês decadente apela, em sua arte de sedução, para motivos anti-
gos e clássicos. Por exemplo, pergunta a Alice se ela leu os poemas de Ovidio sobre
a arte de amar. Ovidio (43 a.C.-18 d.C) foi um poeta romano que é mais conhecido
como o autor de Heroides, Amores, e Ars Amatoria, três grandes coleções de poe-
sia erótica. Mas Alice retruca: “Ele não acabou sozinho, chorando até não poder
mais em algum lugar com um clima muito ruim?”. Szavost persiste: “Mas ele se
divertiu bastante antes”. Eis o ideal antigo cultivado por Sandor Szavost: “Coma-
mos e bebemos porque amanhã morreremos”. Um detalhe curioso: o bon-vivant
hungaro quer “trepar” com Alice Harford na sala da mansão, onde Victor Ziegler
tem uma maravilhosa coleção de bronze renascentistas. Stanley Kubrick contras-
ta, de forma genial, motivos clássicos oriundos da fase de ascensão histórica da
burguesia (bronze renascentistas), com atitudes de filisteísmo burgues da fase de
decadência histórica do capital (a caçada sedutora do velho burgues hungaro).
O filme de Kubrick está permeado de referencias à arte burguesa clássica. Por
exemplo, a senha Fidelio e o Verona Restaurant são imagens que se contrastam,
de forma ironica, com o ambiente decadente do capital em sua etapa de crise
estrutural. Nesse caso, ao querer “trepar” com Alice na sala da maravilhosa cole-

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Trabalho e Cinema • Volume 4

ção de bronze renascentista, o velho burgues apropria-se da arte classica apenas


como meio para satisfazer seus fins hedonistas. O que interessava obviamente a
Szavost não era contemplar a coleção de arte de Victor, mas sim possuir a adorá-
vel Alice Harford, que tinha bebido champagne demasiadamente (nem o próprio
Victor Ziegler, como burguês, possuia a maravihosa coleção de arte por amor aos
motivos clássicos, mas sim, provavelmente, pelo valor de troca dos maravilhosos
artefatos renascentistas).
O sedutor hungaro cultiva um tipo de hedonismo burguês que vê no prazer
erótico, o próprio sentido da vida. Mas não se trata de um motivo filosófico. Ele
se apropria de Ovidio da mesma forma que se apropria da coleção de bronzes re-
nascentistas: a arte antiga e arte clássica para o burguês é apenas um instrumento
para a satisfação de seus fins hedonistas (seduzir mulheres ou acumular valor).
Ao mesmo tempo, Sandor Szavost tem uma opinião cínica sobre o casamento bur-
guês. Diz ele que o casamento torna o fingimento uma necessidade para ambas as
partes. Eis a caracteristica do mundo burguês que o filme “De Olhos bem fecha-
dos” expõe: fingir para manter as aparências da ordem burguesa. Portanto, reduzir
o real à sua aparência, não se trata apenas de um ideal epistemológico do positi-
vismo burgues, mas sim, um dever moral. O fingimento (como atitude farsesca)
é uma necessidade para a reprodução sistemica da ordem burguesa. O casamento
burguês é uma instituição social cara à preservação da ordem burguesa que é in-
compativel com a dimensão instintiva e pulsional do homem. Por isso, em nome
da preservação da ordem burguesa, cultua-se o fingimento – dissimulação, hipo-
crisia, simulacro - como necessidade de ambas as partes (homem e mulher). Eis a
moral da burguesia expressa pelo bon-vivant Sandor Szavost. Na verdade, o pro-
blema do fingimento irá percorrer a narrativa do filme “De olhos bem fechados”.
O filme é uma narrativa da corrosão dos ideais burgueses, expondo a dimensão
da crise orgânica do capital. Farsa e fingimento tornam-se atitudes positivas e
necessárias. O que acontece quando decidimos, não mais fingir, mas sim, expor,
para o cônjuge, nossas fantasias e desejos? É o que Alice faz com Bill, provocando
nele, homem pequeno-burgues, representante da ordem burguesa patriarcal, uma
profunda crise íntima. No fundo, trata-se de crise do poder patriarcal, ameaçado
em suas representações perenes sobre a figura feminina identificada com a figura
da mãe.
Alice é a mulher-mãe, verdadeira madona desempregada, que cuida da filha
pequena e dos afazeres domésticos. Mas o filme de Kubrick desmonta, de imedia-
to, a imagem da madona burguesa, pois a primeirissima cena do filme “De olhos

150
O mundo do trabalho através do cinema

bem fechados” é a imagem de Alice, de costas muito atraentes, despindo o vestido,


deixando-o cair a seus pés e ficando completamente nua. Alice inspira desejo, não
apenas do marido, mas dos homens. Mas ela não apenas inspira desejo sexual,
mas ela sente desejo sexual e tem fantasias de traição, como irá confessar, mais
adiante. Portanto, a crise do poder patriarcal – o poder burguês – está contido, de
imediato, na primeira cena do filme de Kubrick.
Ao mesmo tempo que Alice esta sendo cortejada descaradamente pelo hun-
garo Sandor Szevost, seu marido, Bill, sem saber que está sendo observado pela
mulher, namorisca com duas modelos. Elas tentam seduzi-lo. O diálogo entre Bill
e as duas modelos prossegue num crescendo de sedução. É interessante o contras-
te entre o modo de agir de Bill diante das modelos e o modo de agir de Alice diante
do hungaro Sandro Szevost. Enquanto Bill se deixa levar pela sedução das jovens
modelos que querem conduzi-lo aonde o arco-iris termina, Alice, mesmo sob o
efeito do alcool, é peremptória: eu sou uma mulher casada.
De repente, Ziegler, o anfitrião, manda chamar Bill ao piso superior. Ele inter-
rompe a cena de sedução de Bill pelas modelos. O filme “De olhos bem-fechados”
é um filme de cenas interrompidas por acontecimentos contingentes, que proje-
tam o personagem Bill Harford para outras sequencias narrativas. Toda a cons-
trução narrativa tem apenas um personagem: Bill Harford (interpretado por Tom
Cruise). O filme todo desdobra-se em torno dele. Apesar da imagem de abertura
do filme ser a imagem de Alice de costas, completamente despida, a narrativa é
conduzida pelas ações desencadeadas por Bill Harford – sob provocação de Alice.
Na verdade, a imagem de Alice é a imagem-fantasma que conduz Bill na sua odis-
séia estranhada. Por outro lado, Bill é o homem pequeno-burguês desconcertado.
Como iremos verificar, Bill é um homem à deriva pelas contingencias que lhe
assaltam.
Victor Ziegler recolheu-se da festa para transar com uma esplendida mulher,
Mandy, que se sentiu mal devido o excessivo consumo de drogas. Por isso, ele
chamara Bill, com urgencia, para tratar da prostituta. Eis a ironia mordaz do fil-
me: em plena festa natalina, o burguês Victor Ziegler transa, às escondidas no seu
quarto, com uma linda mulher exuberante, que ele mal sabe o nome. Minutos
atrás, o casal Bill e Alice eram recepcionados na festa natalina pelo casal Ziegler.
Eis a natureza oculta do casamento burguês: puro fingimento, como diria Sandor
Szevost. Enfim, manter as aparências! Por isso, Bill garante sigilo a Ziegler sobre
o acontecido.

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Trabalho e Cinema • Volume 4

Nas cenas do baile clássico na mansão de Ziegler, as duas mulheres – Alice,


mulher-mãe e Mandy, mulher-prostituta, são vistos pelos homens (Sandor e Vic-
tor) como mulheres-objeto. Por outro lado, as duas modelos que seduzem Bill
Harford fogem do padrão reificado de representação feminina, mas deixam Bill à
vontade para afirmar as prerrogativas do macho burguês.
A cena do baile clássico, promovido por Victor Ziegler, é um ato preparatório
para a trama narrativa do filme. O casal Harford – Bill e Alice – são alvos de se-
duções do mundo social estranhado, que visam por a prova, a fidelidade do casal.
Trata-se de provações do desejo que põem em questão, a familia Harford. Por
força de vontade, Alice consegue com habilidade desvencilhar-se do assédio do
hungaro Sandor Szavost. Enquanto isso, Bill é salvo das provocações das mode-
los, pela contingencia de ser solicitado com urgencia no piso superior por Victor
Ziegler.
A festa de Natal dos Ziegler é um ambiente de luxo e luz, permeado de de-
sejo e sedução e, portanto, luxuria. As mulheres são objetos de desejo – seja Alice
cortejada pelo hungaro Szavost; ou ainda, a prostituta Mandy, mulher exuberante
seduzida pelo anfitrião Victor Ziegler. Mas as mulheres também são sujeitos do
desejo, como é o caso das duas modelos que cortejam Bill Harford.
A festa natalina do casal Ziegler é um ambiente de tráfico explícito ou dissi-
mulado de instintos sexuais e luta pela conquista amorosa (o cortejo descarado de
Sandor Szavost sobre Alice e o intercurso sexual oculto de Victor Ziegler no piso
superior são exemplos de luta de desejo e sedução, que é o baile burgues). Mas a
percepção do mundo burgues no cinema de Stanley Kubrick é a percepção de um
mundo de luta – não apenas luta de classes, mas luta pulsional entre os próprios
homens pelo poder; entre homem e mulher pela afirmação do desejo; e entre o
homem e si mesmo contra seus medos primordiais (medo da solidão e medo da
despossessão). Como cineasta do mundo burgues em seu pólo mais desenvolvido
(os EUA), Stanley Kubrick investiga a alma do burguês filisteu, o burguês da fase
de decadencia histórica do capital. Frederic Rapahel, o co-argumentista do filme
“De olhos bem fechados”, de Stanley Kubrick, disse a respeito do cineasta norte-
-americano: “Os seus filmes são feitos de instintos e violência; a ‘história de amor’
de Schnitzler culmina com uma espécie de desafio em que, no lance final, Frido-
lim e Albertine [o casal Bill e Alice no romance “Breve romace do sonho”, de Ar-
thur Schnitzler] descem ao que os marines americanos chamavam golpes baixos.
Na Grécia antiga (e não só), o sexo e a guerra partilhavam o mesmo vocabulário”.

152
O mundo do trabalho através do cinema

Portanto, sexo e guerra, amor e morte, vencedores e vencidos: o filão temático


sublinhado por Raphael é uma constante kubrickiana. As relações entre os ho-
mens, em Kubrick, são inseparavéis da dinâmica de poder – poder do capital que
encontra sua expressão sintética na divisão hierarquica do trabalho. Nos filmes de
Kubrick – e “De olhos bem fechados” não é exceção – percebemos com clareza, a
dinãmica sociometabolica do capital nas relações entre homens e mulheres, rela-
ções de genero como relações entre classes. Está presente no filme, como ressaltou
Enrico Ghezzi, o conflito incessante do ser humano – diriamos, homem burgues
– entre o desejo de posse e o medo da perda. Por isso, Emiliano Morreale salienta
que, o filme “De olhos bem fechados” é o mais político dos filmes de Kubrick.
Talvez porque a dimensão da crise organica como crise estrutural do capital esteja
exposta em sua densidade sociometabolica.
No filme “De olhos bem fechados”, o instintivo (desejos e fantasias) se mes-
cla irremediavelmente com o social e o politico (a precariedade do trabalho, a
condição de proletariedade, a divisão hierarquica e o poder). Diz Morreale: “Eyes
Wide Shut é um filme povoado de criados, camareiros, subalternos: a babysitter
porto-riquenha; a criada filipina dos Nathansons; o mordomo idoso que entrega
a mensagem; os gorilas e os acompanhantes do castelo. E quase todas as relações
são relações entre servos e senhores: a secretária do médico, o pianista Nighgale,
o taxista, a prostituta, são de algum modo sempre pagos pelo protagonista ou
seus comparsas. O personagem de Cruise é, antes de mais nada, um sujeito de
poder. Assim sendo, a figura da mulher (que não trabalha, fica em casa, não faz
nada), reveste também inevitavelmente este aspecto. ‘Eyes Wide Shut’ é um filme
de ficção científica e de filosofia da história, mas é também e acima de tudo um
grande filme, uma hipótese de filme definitivo, sobre a burguesia, partindo de
uma perspectiva excentrica como a sexualidade.”
No dia seguinte, a noite, depois de ambos terem posto a filha Helena na cama,
o casal Harford conversa no quarto. Esta é a cena magistral do filme que projeta
Bill Harford numa zona “twilight” – ou seja, para além da imaginação. Enquanto
fumam cigarro de maconha, guardada sugestivamente pelos Harford numa caixa de
band-aid, Alice pergunta ao marido se teve relações sexuais com as duas garotas que
estavam com ele na festa (é interessante que cenas do filme com falas significativas
dos personagens sempre ocorrem mediadas pelo alcool ou pela maconha).
Um detalhe: é Alice que começou a interrogar Bill se teve ou não, relações
sexuais com as duas garotas. Na verdade, ela ficara um pouco perturbada por esta
cena; ela pergunta se ele transou com aquelas garotas que “ele estava paquerando

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Trabalho e Cinema • Volume 4

tão descaradamente”; e Bill quer saber do homem que a cortejava: “Quem era
aquele cara dançando com voce?”. As percepções de Alice e Bill são visivelmente
díspares: estava Bill paquerando descaradamente as duas jovens modelos? O cara
que estava com Alice estava apenas dançando com ela?
Na verdade, como têm uma relação estável de casal, Bill e Alice cobram com
naturalidade, fidelidade um do outro. Deixam-se levar pela conversa e acabam
por falar de sexo e traição. Bill observa que o cara que ele viu dançando com
a mulher dele, “só queria comer minha mulher”. E arremata: “Bem, acho que é
compreensivel”. É compreensicel para ele, porque ela considera Alice, uma mulher
bonita. Nesse momento, Alice pula – literalmente. Fica indignada com o marido.
Esta é a cena mais importante do filme, pois é a partir dela que surge a pro-
blemática narrativa. Alice irrita-se com Bill, pois ele expressou demasiada segu-
rança sobre a fidelidade dela. Diz ela: “A única razão pela qual os homens que-
rem falar comigo é porque querem me comer. É isso que voce está dizendo?”.
Bill fica desconcertado (é o primeiro desconcerto entre muitos – de Bill Harford
no filme): “Bem, acho que a resposta não é tão simples assim; mas imagino que
ambos sabemos como os homens são”. Na ótica masculina de Bill, homens falam
com mulheres bonitas porque querem come-las (nesse momento, Alice retruca
Bill afirmando: “devo concluir que voce queria comer aquelas duas modelos”).
Para Bill, homens desejam naturalmente mulheres bonitas e fantasiam come-las,
pois isto trata-se de um traço natural do genero masculino, o que significa que
Bill não concebe que as mulheres possam ser assim. Na verdade, Bill, homem
pequeno-burgues, herdeiro da tradição patriarcal do capital, tem um ideal de
mulher (mulher-mãe?) como incapaz de ser sujeito de direito de fantasias sexuais.
Bill se considera exceção à regra que diz que “homens falam com mulheres
bonitas porque querem come-las”. Ele argumenta com Alice que, como ele a ama,
e é casado com ela, ele nunca mentiria para ela e nunca a magoaria. Mas Alice
interroga Bill: “Voce se dá conta do que está dizendo - que só não comeu aquelas
duas modelos por ter consuideração comigo? Não porque realmente não qui-
sesse”. Esta é a questão crucial: o problema do conflito entre desejo e convenção.
Na verdade, Bill oculta de Alice que ele (e apenas ele como macho burgues), é
o sujeito de desejos capaz de fantasias sexuais. Ele oculta este detalhe dela por-
que o seu poder-de-genero baseia-se ideologicamente, na ocultação da alienação
sofrida por ela, como mulher, do poder-do-desejo, que se tornou, deste modo,
prerrogativa masculina. Alice contesta – de forma ironica: “Digamos, por exem-
plo, que uma mulher deslumbrante esteja nua no seu consultório e voce esteja

154
O mundo do trabalho através do cinema

apalpando os peitos dela. O que eu quero saber é o que voce pensa enquanto
apalpa os peitos dela”.
Bill apela para a convenção profissional: “Alice, lembre-se de que sou médico.
É tudo muito impessoal; e voce sabe que há sempre uma enfermeira presente.”
E Alice retruca: “Então, quando voce apalpa peitos, é só o seu profissionalismo?
É isso?”. E Bill diz: “Exatamente isso. Sexo é a última coisa na qual penso quan-
do estou com uma paciente.”. Mas Alice insite em ir para além das convenções
ético-profissionais. Pergunta ela, sempre interrogando Bill: “Bem, quando ela está
sentindo voce apertando seus peitinhos, acha que ela tem alguma fantasia sobre
como o pintinho do lindo Dr. Bill pode estar?”. E Bill re-afirma: “Vamos lá, posso
ganratir que sexo é a última coisa que passa pela cabeça dessa porra da paciente
hipotética!” (Kubrick, sempre genial, em cena anterior, nos mostrou que a “porra
da paciente hipotética” não é tão hipotética assim). Mas Alice quer conduzir Bill
para o ponto fulcral ao perguntar: “E o que faz voce ter tanta certeza?”. Bill apela,
mais uma vez, para as convenções – na sua dimensão do fingimento. Diz ele: “No
mínimo, o medo que ela tem que eu possa lhe dizer”. Enfim, Bill expõe um pre-
conceito contra as mulheres que oculta, em ultima instancia, uma pressuposição
alienada (a alienação do poder-do-desejo). Na verdade, Alice quer dizer-lhe algo a
respeito das mulheres que Bill se recusa a ver: elas são como os homens! –. Mas diz
Bill: “As mulheres não pensam desta maneira”. Alice se irrita e exclama: “Milhões
de anos de evolução, certo? Os homens precisam enfiar os deles em tudo quanto é
lugar, mas para as mulheres, só o que importa é a segurança, o compromisso e sei
lá que porra mais!”. E depois, diz, num desabafo: “Se voces, homens, soubessem!”.
O homem burgues construiu o seu imaginario de poder a partir do par anti-
tético desejo e convenção. A convenção provoca o fingimento, que oculta o desejo
e a fantasia; e inclusive, a sua realização assumida como meramente contingen-
cial. Trata-se de uma construção sociometabolica que equilibra o concerto íntimo
do macho burgues. Ao mesmo tempo, põe-se a pressuposição de que a mulher
– mulher-mãe, objeto de amor - está numa posição subalterna na relação de ge-
nero, representando apenas o pólo da convenção, sendo alienada, deste modo, do
pólo do desejo e da fantasia sexual. Esta pressuposição mental de Bill Harford é
implodida pela confissão de Alice, que desmascara o falsa exclusividade de genero
pressuposta no argumento do marido. Enfim, o que Alice vai dizer é que, ela – a
mulher – é capaz sim, de desejo e fantasia sexual com outros homens. Ela contesta
o desejo de posse de Bill e provoca nele o medo de perda.

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Trabalho e Cinema • Volume 4

Bill diz que não tem ciúmes dela, que nunca sentiu ciumes de Alice, mas a
afirmação dele é apenas a tranquilidade perene do sono dogmático do macho bur-
guês. Como diz Alice, “Ah, se os homens soubessem”. Alice pergunta por que ele
nunca sentiu ciúmes dela; e ele confessa com tranquilidade: “Bem, não sei Alice!
Talvez por voce ser minha esposa. Talvez por voce ser a mãe de minha filha; e por-
que sei que voce nunca me trairia.” E de modo peremptorio exclama: “Eu confio
em voce!”.
Bill apega-se às convenções e pressupostos alienados que lhe impedem de ver
Alice como sujeito de desejo, capaz de fantasias sexuais. Na verdade, sob a ordem
burguesa, desejo e fantasia sexual atentam contra a lógica da possessividade que
permeia o sociometabolismo do capital. Eis o ponto fulcral: o homem burgues
afirma-se com o desejo da posse e atormenta-se com o medo da perda. Finalmen-
te, Alice confessa-lhe que no verão passado em Cape Cod (balneário no Estado de
Massachusetts, nos EUA), sentira uma atração irresistivel por um jovem oficial da
Marinha. Bill não se lembra de ter visto o oficial da Marinha no saguão do hotel,
onde Alice o vira pela primeira vez. Mas ela lembrava-se perfeitamente do en-
contro casual. Diz ela: “Ele olhou para mim de relance ao passar. Foi só um olhar.
Nada mais. Mal eu consegui me mexer.” Prossegue ela: “Naquela tarde Helena
foi ao cinema com uma amiga e eu fiz amor com voce. Nós fizemos planos sobre
nosso futuro e falamos de Helena. Mesmo assim, em nenhum momento, eu deixei
de pensar nele.” Ao confessar seus pensamentos sobre o jovem oficial da Marinha,
Alice deixa Bill estupefato. Ele ouve atentamente a confissão dela; e prossegue:
“E pensei que, se ele me quissesse, mesmo que fosse só por uma noite, eu estaria
pronta a abandonar tudo – Helena, todo meu futuro. No entanto, foi estranho por-
que ao mesmo tempo, voce foi mais precioso para mim do que nunca. E naquele
momento o meu amor por voce, era ao mesmo tempo, terno e triste. Eu mal dormi
naquela noite, e acordei em pânico na manhã seguinte. Não sabia se tinha medo
de que ele tivesse partido, ou de que ainda estivesse lá. Mas no jantar percebi que
ele tinha ido embora e fiquei aliviada.”
A confissão de Alice é o “golpe baixo” na guerra entre os sexos. Bill fica visi-
velmente transtornado com a declaração da mulher. Ela demonstrara que era per-
feitamente um sujeito do desejo, capaz de fantasias sexuais. Talvez não se tratasse
de carecimento afetivo pela falta de relações sexuais com o marido. Ela diz que
naquela tarde chegara a ter em Cape Cod, amor com Bill; e inclusive conversaram
sobre o futuro. Aparentemente, a relação do casal estava bem. Portanto, o desejo
de Alice pelo jovem oficial da Marinha não se vinculava exatamente a fantasias

156
O mundo do trabalho através do cinema

compensatórias à monotonia e rotina da vida conjugal – Bill e Alice estão casados


há cerca de nove anos. O desejo e fantasia sexual de Alice – puro sonho sexual
lascivo – diz respeito ao pleno exercicio do direito cassado pelo poder do macho
burguês: o direito a ser sujeito do desejo e da fantasia sexual.
No discurso de Alice percebemos, por um lado, a afirmação peremptória do
desejo e fantasia sexual – pensou no objeto sexual o tempo todo, inclusive quando
fez amor com o marido. O jovem oficial da Marinha era um homem virtual, pre-
sente na relação do casal. Ao fazer amor com Bill, ele estava entre eles. Na verdade,
o ato de amor do casal era um menage-a-trois oculto. Por outro lado, o discurso
de Alice sobre a sua fantasia sexual pelo jovem oficial da Marinha era permeado
de medo, pois, ao mesmo tempo que o amante virtual (a imagem do jovem oficial
da Marinha) habitava seus pensamentos, ela pensava no marido, reconhecendo,
mais do que nunca, quão precioso Bill era para ela. Alice disse: “E naquele mo-
mento o meu amor por voce, era ao mesmo tempo, terno e triste.” Ternura e tris-
teza: eis a percepção feminina do casamento burgues. Bill conseguiu vislumbrar
um território oculto no espírito da mulher. Aquilo que parecia perene e seguro era
revolto e incerto. Enfim, familiarmente estranho.
Diante do território do desejo e das fantasias sexuais, território proibido para
as mulheres, Alice sentira medo e ambivalencia. A emancipação da mulher não
é apenas ato pessoal de individualidades femininas insurgentes contra o macho
burguês, mas sim um processo histórico-cultural de ruptura com o sociometa-
bolismo do capital baseado na propriedade privada. Na medida em que a ordem
burguesa é a ordem social da propriedade privada, ela perverte os sentidos fisi-
cos e espirituais do homem, enfim, suas qualidades humanas que incorporam
a estética da possessividade. Como observou Marx nos Manuscritos de 1844, “a
propriedade privada tornou-nos tão estúpidos e unilaterais que um objeto só é
nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando é imedia-
tamente possuído, comido, bebido, vestido, habitado, em resumo, utilizado por
nós.” Marx faz uma crítica radical do sentido do ter como sendo a alienação de
todos os sentidos.
Na sociedade burguesa impõe-se o sentido do ter, inclusive nas relações afe-
tivas. Na medida em que o casamento burgues é um contrato civil ele se reduz a
uma relação de posse. O terror do homem burgues é que a posse contratual da
mulher não implica necessariamente a sua posse espiritual. Durante século, a mu-
lher era um objeto utilizado pelo homem vinculada a ele por laços de convenção.
Por isso, o macho burgues reduz uma coisa a outra. Quando Bill coloca a conven-

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Trabalho e Cinema • Volume 4

ção como referente pressuposto do desejo – ele diz que nunca sentiu ciumes dela
por ela ser esposa e mãe; e que acredita que, por isso, ela nunca vai trai-lo - Bill
adota uma perspectiva ideológica da ordem burguesa. Pelo menos, ele imagina
que ela nunca vai trai-lo. É isso que Alice questiona.
Entretanto, a atitude de Alice foi deveras ambivalente. Ela ficou aliviada
quando o oficial da Marinha partiu, pois ele era objeto de desejo e fantasias sexu-
ais que, não apenas incomodavam, mas subvertiam materialmente o seu precioso
estilo de vida pequeno-burgues. Nesse ponto de vista, a mulher pequeno-burgue-
sa – talvez mais do que o homem – pondera numa perpectiva intrinsecamente
pragmática. Embora Alice tenha se afirmado como sujeito do desejo capaz de
fantasias sexuais, ela sabe que, ao invés de Bill, que viveu aventuras reais, ela teria
tão-somente aventuras sonhadas. Ao ouvir a “confissão” da mulher, Bill Harford é
envolvido pela sensação de “estranhamento”. Ele sente-se incomodado, ou melhor,
desconcertado pela aventura imaginada de Alice. Ao imaginar fazendo amor com
o jovem oficial da Marinha, ou mesmo, construindo projetos de vida com ele, teria
Alice traido Bill, como ele jamais imaginou que pudesse ocorrer, afinal ela era sua
dedicada mulher e mãe zelosa de sua filha? Como conceber que ela seria capaz de
sentir desejo e ter fantasias sexuais com outros homens? Bill deixa-se fascinar pela
sua própria imaginação: ele se transtorna com suas fantasias sobre a fantasia de
traição de sua mulher Alice. Como observa Enrico Ghezzi, “ele perde o controle da
situação, e acaba primeiro por percorrer e depois, por reiterar, passo a passo, uma
peregrinação confusa no mundo mágico das imagens.”
O estranhamento pode assumir a forma de imagens-fetiches que nos conduzem
em nossas odisséias cotidianas. Alain Masson diz-nos, por exemplo, que o verdadei-
ro motor da trama de Stanley Kubrick é precisamente uma imagem. Diz ele:
“Independentemente das possiveis motivações psicológicas, é um enqua-
dramento a preto e branco da sua mulher fazendo amor com outro homem que
desencadeia os ímpetos do marido em relação a outras mulheres misteriosas e
lascivas. Ora o preto e branco declara a imagem enquanto tal: é uma imagem de
uma imagem. Mais ainda, é uma imagem de nada: não só este adultério nunca
foi descoberto pelo marido mas, melhor ainda, nunca teve lugar, não existe senão
como fantasma da jovem mulher que não o descreveu especificamente nem se-
quer o desfrutou visualmente. A coisa torna-se verdadeiramente estranha: a ima-
gem filmica da imagem quimérica que um homem faz da imagem irreal e infiel
de um fantasma feminino. Uma imagem de pura imaginação.”

158
O mundo do trabalho através do cinema

Portanto, o estranhamento de Bill Harford é constituido por imagens-fetiches


que o conduzem. Na verdade, trata-se de imagens-fantasias especulativas, homo-
lógas, por exemplo, ao capital fictício, pois aquilo que Bill imagina, nunca acon-
teceu, mas existe apenas em sua imaginação de macho burguês desconcertado,
impressionado com a afirmação da mulher como sujeito de fantasias sexuais. As
imagens em preto e branco no filme representam na imaginação de Bill um adul-
tério que nunca aconteceu sendo pura imaginação – é a imaginação da mulher, a
imagem irreal e infiel do fantasma de Alice, que o transtorna mais que a possibili-
dade em si da mulher trai-lo. Outra coisa: é a imagem-fetiche que desencadeia os
ímpetos de Bill em relação a outras mulheres lascivas e misteriosas; é a imagem-
-fetiche que o conduz na odisséia do estranhamento pela madrugada da metro-
pole, levando-o a correr riscos ao envolver-se com prostitutas e o baile orgiático.
Bill perde o controle de si sendo levado pelas imagens-fetiches que o perseguem
no decorrer do filme.
O capitalismo global é o mundo das imagens-fetiches ou valores-fetiche que
nos conduzem em situações de risco ou situações constrangendoras por conta de
consenstimentos espúrios. No mundo do fetichismo da mercadoria (e nos lem-
bremos que, a mercadoria é imagem!) somos projetados na vida cotidiana num
mundo de imagens. Mas o capitalismo global também é o capitalismo da finan-
ceirização da riqueza burguesa. O fetichismo da mercadoria assume, com maior
densidade sociometabólica, uma dimensão virtual. O que se impõe não é apenas
a estética da mercadoria, mas sim a estética do dinheiro como sendo a mercado-
ria das mercadorias. No plano sociometabólico, ela implica a disseminação da
psicologia da financeirização, onde as relações sociais humanas ou instrumentais
são permeadas pelos registros da forma-dinheiro: a mercadoria liquida, inodora
e abstrata. Com a modernidade do capital, o dinheiro impregna cada vez mais a
vida social. A forma-dinheiro, tal como aparece no imaginário social dos primor-
dios do século XX, é a forma contingente do capital financeiro hegemonico. Por
exemplo, o sociólogo Georg Simmel escreveu o livro “A Filosofia do Dinheiro”
(1900) para caracterizar a modernidade burguesa (ele observou que, como meio
de troca e meio de circulação, o dinheiro aproxima e distancia as pessoas). Por-
tanto, um dos pais da sociologia alemã nos primordios do século XX sentiu-se
fascinado pela circulação do dinheiro e seu fetichismo.
Na verdade, o poder do dinheiro aparece não apenas como meio de circulação
e meio de troca, como constatou Simmel, mas também, e principalmente como
meio de pagamento e dinheiro mundial, como salientou Marx. Este poder do di-

159
Trabalho e Cinema • Volume 4

nheiro como mercadoria complexa desenvolveu-se principalmente com o capi-


talismo financeiro no inicio do século XX. A constituição plena da sociabilidade
mercantil no decorrer do século XX, um processo mundial lento e contraditório,
que significou duas guerras mundiais e várias revoluções tecnológicas, constituiu
relações sociais na metropole burguesa adequadas à forma de ser do dinheiro
como mercadoria das mercadorias. Desde modo, é importante salientar que o
filme “De olhos bem fechados” retrata o sociometabolismo do capitalismo global
com seu regime de acumulação predominantemente financeirizado. O século XX
é o século da dominancia do capital financeiro. Num primeiro momento, capital
financeiro na acepção de Rudolf Hilferding, como fusão do capital industrial com
o capital bancário. Depois, capital financeiro na acepção clássica de Karl Marx,
como capital ficticio que assume, com a crise estrutural do capital, uma dimensão
especulativo-parasitária. A financeirização da riqueza capitalista e o predomínio
do capital financeiro acirraram formas de fetichismo sociais ampliadas na vida
cotidiana. Diz François Chesnais: “O triunfo do fetichismo financeiro provocou
um salto do fetichismo da mercadoria.”
O desenvolvimento do capitalismo global constitui-se não apenas a objeti-
vidade predominante do capital financeiro, mas também a subjetividade da fi-
nanceirização, cujo modo de ser é a subjetividade de “classe média”. Devido a
sua imersão contraditória no interior das relações fetichizadas da sociabilidade
mercantil ampliada, a “classe média” tende a expressar, de forma típica, a crise
estrutural da subjetividade humana presa de imagens-fetiches.
O filme “De Olhos Bem Fechados” apresenta a subjetividade complexa de
“classe média” imersa em relações sociais fetichizadas, instrumentalizadas e flui-
dificadas. É a sociedade do ter e não a sociedade do ser. Com a dominancia do
capital financeiro na forma do capital especulativo-parasitário, dissemina-se a
psicologia da financeirização que é a psicologia de homens e mulheres fluidos
em seus sentimentos e valores, conduzidos por imagens-fetiches que os levam a
situações estranhadas de risco e irracionalidade.
A idéia de imagens-fetiches é a idéia de fantasmas que permeiam nossa re-
lação social com o mundo – seja os outros ou nós mesmos. Na medida em que
estamos dentro do mundo de imagens, a presença de fantasmas ou imagens-fe-
tiches são recorrentes no sociometabolismo. A psicanálise como economia poli-
tica da subjetividade burguesa, constituiu-se no interior da sociedade capitalista
como sociedade mercantil complexa. A ciencia psicanálitica trata de fantasmas
inconscientes (ou imagens-fetiches) que “capturam” a subjetividade de homens e

160
O mundo do trabalho através do cinema

mulheres. Com o capitalismo manipulatório e a financeirização da riqueza capi-


talista, ampliou-se o campo de imersão das individualidade pessoais de classe em
situações estranhadas.
A subjetividade burguesa é a subjetividade humana, corpo e mente transtor-
nados pelas mudanças civilizatórias com o avanço da industrialização e urbani-
zação capitalista. Por exemplo, na mesma medida em que a economia política
clássica irrompeu com o desenvolvimento do capitalismo industrial na passagem
do século XVIII para o século XIX; o irromper da psicanálise é o irromper da
economia política da subjetividade complexa ou subjetividade burguesa na pas-
sagem do século XIX para o século XX. Marx observou na Introdução a “Crítica
da Filosofia do Direito de Hegel: “A miséria religiosa é, de um lado, a expressão
da miséria real e, de outro, o protesto contra a miséria real.” De certo modo, a
psicánalise de Freud, tal como a miséria religiosa, não deixa de ser a expressão da
miséria real da subjetividade humana complexa nas condições do desenvolvimen-
to civilizatario tardio sob o mundo social estranhado do capital. Como constatou
Mikhail Bakhtim, “como a maioria das construções da psicologia subjetiva, a teo-
ria de Freud é uma projeção de certas relações objetivas do mundo exterior para
o psiquismo.”
Bill fica surpreendido pela inesperada revelação de Alice, mas não tem tempo
de replicar, pois a conversa do casal é interrompida por uma ligação que solicita a
presença de Bill à cabeceira de um paciente que acabara de falecer.
É curioso que Bill Harford, sempre quando sob a tentação de mulheres lasci-
vas ou misteriosas, é interrompido por alguém que convoca seus serviços profis-
sionais. Por exemplo, na festa de Ziegler, enquanto era cortejado pelas duas garo-
tas, foi chamado para ir no piso superior; e no quarto, enquanto conversava com
Alice, foi interrompido por um telefonema para prestar atendimento profissional
urgente. Bill Harford é um personagem que se deixa levar pelas circunstâncias
inesperadas. Ele é conduzido pelas circunstâncias contingentes para situações de
estranhamento. Além disso, é um homem cercado por mulheres que o provocam
(as duas garotas que lhe cortejam no baile, a mulher Alice que lhe confessa fanta-
sias de traição, Marion Nothason que declara seu amor, a prostituta Domino que
lhe assedia na rua, etc).
Enquanto se dirige para o local da consulta, Bill sente-se atormentado pelo
pensamento da mulher fazendo amor com o oficial da Marinha. Marion, a filha
do defundo, surpreende Bill revelando-lhe seu amor no leito de morte do pai, uma
declaração repentinamente interrompida pela chegada do namorado desta. Nem

161
Trabalho e Cinema • Volume 4

mesmo após viver esta situação inusitada, Bill se recompõe. É meia-noite, mas ele
não regressa para casa e passeia pelas ruas noturnas obcecasdo com a idéia da
traição virtual da mulher.
Ao ser provocado pelas fantasias de sua mulher, vive uma forma particular de
estranhamento e crise de identidade: a identidade do homem burgues possessivo,
macho dominador, representação do opressor de gênero. No seu íntimo, Bill tem
medo da traição e medo da perda. Bill não reconhece Alice como sujeito de dese-
jo. Indignada (e insatisfeita) diante do não-reconhecimento pelo marido, dos seus
direitos de fantasia do desejo, Alice confessa a fantasia de sua própria traição. Ela
abala as pretensões de poder e dominação masculina do marido, representante do
poder-de-gênero do capital. Deste modo, além das relações de classe, a dominação
do capital tende a ser mediada pelas relações de gênero (homem versus mulher), a
base primordial do poder hierarquico do capital, com o homem assumindo o papel
de pólo dominante da sociabilidade estranhada. Portanto, o drama do Dr. William
Harford é o drama da sociabilidade estranhada, que, ao estranhar a mulher (o seu
outro-do-desejo, o outro reflexivo que lhe é familiar), ele estranha a si mesmo.
Ao ouvir a “confissão” da mulher, Bill é envolvido pela sensação do “estranho”,
que representa, na dimensão subjetiva, a forma contingente da autoconsciência
critica da modernidade burguesa. É através da relação com o Outro, que se desen-
volve a auto-consciência. Na medida em que a mulher, o Outro-do-desejo, reivin-
dica tornar-se, como subjetividade complexa, sujeito de desejo - o que signfica ter,
pelo menos, o direito de fantasiar a traição - ela desencadeia no psiquismo mascu-
lino, medo e insegurança. Alice se irrita com a segurança dele sobre a fidelidade
dela. No íntimo de Bill, Alice não deveria (ou não poderia) desejar outro homem.
A confissão do desejo de Alice desconcertou Bill, projetando-o num universo es-
tranhado. Ele sentiu aquilo que Freud denomina “Estranho (Unheimich)”. Diz ele:
“O estranho é aquela categoria que remete ao que é conhecido, de velho, e há mui-
to familiar […] o familiar pode tornar-se estranho e assustador.”. Como observa
o psicanalista Sérgio Telles, “esse estranhamento profundo, esse desencadear da
vivência de algo estranhamente familiar, algo familiar e estranho, é uma sensação
que acompanha a emergência do desejo inconsciente, da fantasia reprimida. Apa-
rece quando algo que devia permanecer oculto, vem à luz.”
Deste modo, eis um tema recorrente na crise da modernidade burguesa: o
que devia permanecer oculto vem a luz. Com a crise orgânica do capital, o siste-
ma da exploração expõe à luz suas idiossincracias perversas. Não apenas “tudo
que é sólido se desmancha no ar”, como observou Marx e Engels; mas no mundo

162
O mundo do trabalho através do cinema

do capital, cedo ou tarde, tudo o que está oculto vem a luz. Eis um traço da alta
modernidade do capital. Em seu desenvolvimento contraditório, o capital produz
recorrentemente máscaras sociais que ocultam, de forma hipocrita (como no baile
orgiástico), a face dos agentes sociais das perversidades burgueses. Entretanto, a
situação de crise orgânica oferece momentos de desvelamentos criticos e auto-
-consciencia social. É claro que sob o imperio da manipulação, procura-se re-
-ocultar recorrentemente as tramas complexas da dominação e poder espúrio da
ordem bureguesa. Mas, mais do que nunca, se põe e repõem a centralidade da
política contra-hegemonica no mundo do capital.
No filme “De olhos bem fechados”, a dialética entre o que está oculto e o que é
desvelado, é quase permanente. O intercurso sexual de Victor Ziegler com a exu-
berante mulher no recôndito do quarto no piso superior da mansão, que deveria
permenecer oculto, veio à luz com o consumo excessivo de droga pela prostituta;
as fantasias de traição da Alice, que deveriam permanecer ocultas, foram desve-
lados no calor da conversa entre Bill e Alice sob o efeito da maconha; no leito de
morte de seu pai, Marian confessa a Bill que o ama; Nick Nightgale confessa a Bill
a senha de acesso ao baile orgiástico, etc.
Como salientamos acima, o Dr. William Harford é conduzido pela imagem
da fantasia de traição de sua mulher. Trata-se apenas da projeção especulativa,
quase homóloga do capital financeiro. Nem ele, nem ela traíram, de fato, um ao
outro; mas algo realmente aconteceu. Bill é perseguido por fantasmas de sua men-
te, oriundos do “terreno de possibilidades” ou mesmo do velho e traiçoeiro “se..”.
É a pura especulação que conduz o estranhamento do personagem. Mas a sensa-
ção de estranhamento diz-nos que “há algo de podre no reino da Dinamarca…”
(como diria Horácio em Hamlet, de William Shakespeare). Nesse caso, o reino da
Dinamarca é o casamento burgues de Bill e Alice Harford. Do mesmo modo, a
financeirização da riqueza burguesa e o dominio do capital especulativo-parasitá-
rio diz-nos que há uma crise estrutural de valorização do capital.
É nas instâncias do desejo (e do sexo) onde ocorre a negociação dos afetos en-
tre homens e mulheres, sendo o mêdo a “moeda de troca” das relações estranhadas
e fetichizadas das subjetividades complexas. É por serem mediadas pelo mêdo, a
“moeda de troca” dos afetos da alma humana subsumida às relações heteronomas
do capital, que o sexo tende a ser representado, no romance de Schnitzler, como
um flerte com a morte. Como observou Bernardo Carvalho, “em Schnitzler , o
sexo está diretamente ligado à morte e não é por acaso que o pesadelo sexual em
que o protagonista vai se embrenhar põe em risco a sua própria vida”. Conduzidos

163
Trabalho e Cinema • Volume 4

pelos seus tormentos íntimos, o Dr. William Hartford submerge numa odisséia
do estranhamento onde vislumbra, através da sua autoconsciência estranhada, a
natureza crítica da sociabilidade burguesa decadente.
O filme “De olhos bem fechados” nos permite uma reflexão sobre a moder-
nidade burguesa hipertardia como sendo uma modernidade estranhamente fami-
liar. Freud estava com a razão: não mandamos nem mesmo na nossa própria casa.
Bill Harford desconhecia o que Alice fantasiava. Eis a razão do medo: desconhecer
irremediavelmente o que está oculto. Como diziam Vinicio de Moraes e Toqui-
nho: “Você, por exemplo, está aí com a boneca do seu lado/linda e chiquérrima,
crente que é o amo e senhor do material/É, amigo, mas ela anda longe, perdida
num mundo lírico e confuso, cheio de canções, aventura e magia. E você nem
sequer toca a sua alma. É, as mulheres são muito estranhas, muito estranhas.”
Após atender a consulta, Bill Harford perambula pelas ruas noturnas de Nova
Iorque transtornado pela idéia da possivel traição da mulher. Em “Breve romance
de sonho”, Arthur Schnitzler descreve o que Fridolin – o Bill Harford de Schnitzler
– sentiu com as declarações de Albertine: “Sentia-se atabalhoado, desamparado,
tudo lhe escorria por entre os dedos; tudo se tornava irreal, até mesmpo seu lar,
sua esposa, sua filha, sua profissão, e até ele próprio, caminhando mecanicamente
pelas ruyas noturnas, os pensamentos divagando sem rumos”.
De repente, na rua, Bill depara-se com Domino, uma vistosa prostituta que
o convence a segui-lo até sua casa. Mais uma vez, Bill Harford é conduzido por
uma mulher. Ele sente-se visivelmente incomodado. Quando recebe uma ligação
de Alice vai embora sem nada fazer, mas insiste em pagar pelo serviço sexual não
realizado. No seu percurso de volta, entretanto, Bill se dispersa mais uma vez.
Depara-se com o bar onde trabalha Nick Nightgale – “Sonata Café” e entra. Deste
vez, ele tem mais tempo para conversar com o velho amigo de faculdade. Nick,
o pianista proletário, diz ter quatro filhos que moram em Seattle. É um músico
precário que trabalha por conta própria. Nick diz que toca com qualquer um, em
qualquer lugar; e confessa ter outro trabalho a noite, onde toca vendado. Foi a
conversa sobre o trabalho que o levou a contar a Bill sobre a sua experiencia estra-
nha de tocar vendado numa misteriosa festa privada que só se pode entrar com
máscara e conhecendo a senha: o baile orgiástico.
Inadvertidamente, Bill fica fascinado em conhecer o estranho mundo descri-
to por Nick. É a situação de risco perfeita. Consegue arrancar de Nick, a senha que
lhe permite acesso ao baile orgiástico: “Fidelio” (o nome de uma ópera de Ludwig
von Beethoven). Mais uma vez a genialidade de Kubrick, que mescla temas clássi-

164
O mundo do trabalho através do cinema

cos com a miséria estranhada do mundo burgues hipertardio. Ao utilizar o nome


da ópera “Fidelio” como senha de acesso para o baile orgiástico, Kubrick sugere
o apodrecimento dos ideais humanistas da burguesia clássica. Temos em Stan-
ley Kubrick, mais uma vez, o contraste entre o clássico (como ideal burguês) e o
(pós-)moderno (como mundo desencantado – e decadente). Para entrar na festa
privada (o baile orgiástico), Bill Harford precisava de um terno e uma mascara.
Ele vai aluga-los na loja “Rainbow Fashions”. É atendido pelo Sr. Milich que por
dinheiro, aceita atende-lo aquela hora da madrugada. De repente, o dono da loja,
ao procurar a indumentária para Bill, descobre sua filha adolescente seminua com
dois japoneses: ameaçando denuncia-los à policia, fecha-os provisoriamente num
camarim. Na verdade, a loja “Rainbow Fashions” é uma representação alegóri-
ca da modernidade do capital. As vitrines com modelos e máscaras, a presença
de coisas estranhas e ocultas (O Sr. Milich, observando os modelos nas vitrines:
“parecem vivos, não?”). Mais adiante, iremos verificar que o dono da loja aceita a
promiscuidade da filha como fonte de negócio, oferecendo-a para Bill, que recusa.
O pai agencia a própria filha que consente a relação de promiscuidade.
Esta é a terceira situação inusitada que Bill Barford encontra naquela madru-
gada (a declaração de amor de Marion, a prostituta Domino; e agora, o Sr. Milich,
que encontra a sua filha adolescente com japoneses na loja). Mas Bill não recua
em sua odisseia estranhada, e está decidido a ir à festa privada. A névoa de auto-
-estranhamento que lhe atormenta (a fantasia da fantasia da traição de sua mulher)
impulsiona-lhe para ações de riscos. Ele deixa-se levar pelo desconhecido inusitado.
Finalmente, ele chega a festa privada, descobrindo ser um baile orgiástico.
O baile orgiástico é a representação alegórica da essência da sociedade bur-
guesa decadente, com suas “máscaras” sociais, seu voyeurismo e seus rituais ex-
travagantes. É a representação do baile em sua forma estranha. Ao invés do baile
classico que ocorre na mansão de Victor Ziegler, permeado de luz e luxo, o baile
orgiástico é permeado de máscaras e luxuria ritualistica. Naquele ambiente de lu-
zes e sombras, máscaras e corpos despidos, Bill vive um ambiente onirico. Na festa
privada, uma mulher misteriosa, que parece conhece-lo, exorta-lhe a ir embora
pois ele corre risco de vida. Um individuo mascarado faz-lhe uma saudação como
se o tivesse reconhecido. De repente, Bill é cercado e obrigado a tirar a máscara;
depois, ordenam-lhe que se dispa, mas a mulher misteriosa intervém, oferecen-
do-se em sacrificio no lugar dele.
Após escapar do misterioso baile orgiástico, Bill retorna para casa e encon-
tra Alice dormindo e rindo com satisfação. Entretanto, trata-se de um estranho

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Trabalho e Cinema • Volume 4

pesadelo. O sonho de Alice é o reverso onírico dos fantasmas de Bill. Enquan-


to Bill experimentou sua odisséia estranhada, acordado, sendo conduzido pela
imagem-fetiche da sua fantasia sobre a fantasia de traição de Alice; sua mulher
experimentou sua própria odisséia estranhada, sonhando, sendo conduzida pelo
seu desejo reprimido. Por isso, o sonho de Alice é o reverso onírico dos fantasmas
de Bill, assim como a perambulação noturna de Bill por um mundo distante e
estranho é o reverso vivido dos fantasmas de Alice. Existe uma simetria estranha
e sinistra entre sonho e a realidade. Alice conta-lhe o sonho de que estava a fazer
amor com muitos desconhecidos, consciente de que ele estava a olhar para ela, e
entretanto ria na cara dele para o ridicularizar. A mulher abraça-o e chora. Bill
está visivelmente transtornado.
Mais tarde, numa cena do lar dos Harford, Bill observa, ao longe, Alice ensi-
nando a filha Helena a fazer um dever escolar. Em sua mente, Bill recorda o que
Alice lhe contara de seu pesadelo na noite passada: “Aí apareceram muitas pessoas
ao nosso redor. E aí comecei a trepar com outros homens.” Naquele momento,
perturba-lhe profundamente a imagem da mulher-mãe e a imagem da mulher
devassa. Bill estava intrigado com a idéia de que aquela mulher, sua esposa, mãe
de sua filha, possa ser capaz de trair, enganar e mentir e que toda aquela harmonia
e segurança em sua vida não significava senão aparência e mentira. O homem
pequeno-burguês incomoda-se com a própria possibilidade de perder a posse da
mulher amada. Apesar de admitir para si, como homem, a possibilidade de uma
espécie de vida dupla, oculta pelo fingimento, seria inadmissivel para ele que a
mulher-esposa, mãe de sua filha pudesse confessar pecados com sorridente frieza.
Na manha seguinte, Bill procura reencontrar Nick, mas não o encontra nem
no bar onde toca, nem no hotel. Teme que algo possa ter acontecido com o amigo.
Dirige-se a “Rainbow Fashion” para devolver o terno alugado, e o proprietário (Sr.
Milich) lembra-lhe que faltou a máscara. Bill vai para seu consultório médico,
mas sente-se cada vez mais atormentado pelo seu ciúme em relação a mulher.
No seu íntimo, agitava-lhe forças inconscientes de medo da traição e medo da
perda. Estava abalado em seu papel de macho dominador. Cancela todas as suas
consultas e dirige-se ao local do baile orgiástico. Não consegue entrar na mansão.
Recebe uma carta intimando-o a suspender investigações. Bill procura retomar
contato com os personagens inusitados da noite passada. Telefona para Marion,
a mulher que lhe declarara amor, mas quando responde o namorado desliga sem
falar. Dirige-se a casa de Domino, mas encontra lá apenas a amiga Sally que lhe
revela que a prostituta descobrira que era soropositiva e fora embora. Ao ler um

166
O mundo do trabalho através do cinema

jornal num bar, Bill é atraido pela noticia de uma modelo que foi parar no hospital
devido a overdose. Dirige-se ao hospital e é informado que a mulher falecera. Ao
ver o cadáver no necrotério, reconhece a misteriosa mulher da festa que se ofere-
cera em sacrificio no seu lugar.
Entretanto, logo a seguir, Bill recebe um telefonema de Victor Ziegler. O ami-
go milionário confessa-lhe que o seguiu e estava presente na orgia. Conta-lhe que
o suposto sacrificio da mulher era apenas uma encenação para o assustar; e que
a morte dela se deve apenas ao vicio de droga. Para dissipar todas as dúvidas,
reconforta-lhe com a notícia que o pianista está bem e se encontra na casa com
a mulher. Portanto, a odisséia de Bill Harford nada alterara na fenomenologia do
mundo. Ele correu riscos, mas no final, o amigo Victor Ziegler o tranquiliza, pe-
dindo para deixar as coisas como estão, pois nada aconteceu. Bill retorna para a
familia, transtornado pelos acontecimentos estranhos da noite passada.
Ao voltar para casa, Bill encontra Alice dormindo tendo ao seu lado a máscara
que ele julgava ter perdido. Desata em chovo convulsivo e promete contar tudo a
mulher. Os dois conversam até de manhã e depois levam a filha Helena para es-
colher os presentes de Natal. A cena final é rica em significados sociológicos. Na
loja de Departamentos, cheia de brinquedos e clientes envoltos nas festividades
natalinas, o casal está acompanhado pela filha Helena que fascina-se com os brin-
quedos de Natal. O carrinho de bebe e o grande urso de pelúcia e depois a boneca
Barbie expressam o cultivo dos sentidos do desejo para imagens da conservação
dos ideais de amor romantico, casamento burgues e familia burguesa. Ao fundo, a
música de Natal cria um clima de consumo e fantasia de final de ano.
Bill, cabisbaixo e abatido ao lado de Alice, pergunta a mulher o que é que
hão de fazer agora. Diz ele: “O que acha que devemos fazer?”. O homem burguês
encontra-se desarmado depois da odisséia estranhada. Alice diz: “O que eu acho.
Não sei...” Ela está decepcionada com a reação do marido. Na verdade, ao con-
tar sua odisséia estranhada, Bill confessara para Alice sua fraqueza humana. Ele
se dispira de quaisquer veleidades de firmeza. Como representação exemplar do
macho burguês, Bill demonstrará ter um calcanhar-de-aquiles. O homem burgues
finge ser um forte. A odisseia estranhada, como a dinâmica da crise orgânica do
sistema do capital, têm uma função heuristica: expor a farsa do poder burguês.
Depois, Alice responde-lhe que, antes de mais nada, “talvez eu ache que de-
veriamos ficar gratos, por termos conseguido sobreviver a todas as nossas aven-
turas, tanto as reais, quantos as sonhadas”. Bill pergunta: “Tem certeza disso?”.
Abalado pelos últimos acontecimentos, que implodiram sua visão de mundo fe-

167
Trabalho e Cinema • Volume 4

minino, Bill busca certezas. Mas Alice aparentando inquietação e cansaço, não de-
seja dar-lhe certezas. Fala compassadamente. Interroga Bill: “Se tenho certeza?”.
E diz: “Tenho a mesma certeza de que a realidade de uma noite, para não dizer de
uma vida inteira, pode ser toda a verdade.” O que significa que a certeza que Bill
anseia não é um a priori, mas sim um a posteriori. Diria Engels: a prova do pudim
está em come-lo. Bill arremata, num tirada freudiana: “E nenhum sonho jamais é
apenas um sonho”. Ele sabe que o sonho é a realização de um desejo.
Alice pensativa diz: “O importante é que estamos acordados agora, e espera-
mos continuar assim por muito tempo.” Bill exclama: “Para sempre”. Alice retruca:
“Para sempre?”. Bill reafirma: “Para sempre”. Bill mais uma vez almeja a certeza e a
eternidade. Mas Alice possui a sabedoria da miséria humana no mundo burgues.
Talvez os ideais caros do mundo burgues sejam meramente uma farsa. Apesar de
adota-los, com seu espírito pragmático, talvez ela não acredita neles como deve-
ria acreditar. Ao contrário, os teme, pois significam correntes que aprisionam a
subjetividade humana (corpo e mente). Ela diz: “É melhor não dizer isso, sabe?
Me assusta. Mas, eu amo voce; e sabe, há uma coisa muito importante que pre-
cisamos fazer o mais rápido possivel ”. Bill pergunta: “O que?”. Alice responde
decidida: “Trepar”.
O filme “De olhos bem fechados” possui um conjunto de personagens femini-
nas, proletárias do desejo, a maior parte delas com a função narrativa de provocar
o Dr. William Harford. Por exemplo, as prostitutas – Domino e Mandy - repre-
sentam as mulheres proletárias do desejo que compõem a odisséia estranhada de
William Harford. Elas são mulheres lascivas e misteriosas que fazem o contrapon-
to ao ideal de mulher-mãe (Alice) cultivado por Bill. As prostitutas, damas da noi-
te, são mulheres insurgentes que provocam e desconcertam o homem pequeno-
-burguês. Ele as possui no sentido fisico por algum tempo – o tempo do valor de
troca - mas não as possui no sentido espiritual. Talvez por isso elas o fascinam.
Pergunta-se: pode-se considerar o filme “De Olhos Bem Fechados”, de Stanley
Kubrick, um manifesto feminista? Talvez sim. Certa vez, Eric Hobsbawn obsrevou
que “a maior revolução social ocorrida no ‘curto’ século XX foi a das mulheres”.
É curioso que a revolução social das muheres tenha ocorrido no século da crise
orgânica dp capital, isto é, a temporalidade histórica em que o capital expos suas
candentes contradições sociometabólicas.
Na sua odisséia do estranhamento, Bill Harford escapa de situações de risco
de vida. Eis o nexo entre estranhamento e risco. A sociedade do capital é uma
sociedade do risco. Na medida em que se perdeu de si, imerso nas fantasias de

168
O mundo do trabalho através do cinema

fantasia, o médico vê-se envolvido com prostitutas e festas privadas (o baile or-
giástico), correndo risco de vida. Bill desce às profundezas da miséria humana e
perversidade burguesa. Mas por mera contigencia, ele escapa por pouco (como
diz sugestivamente a manchete do jornal em letras grandes – “Lucky to be alive”
– sorte por estar vivo).
As imagens dos filmes de Stanley Kubrick são imagens densas de significados
que ocultam o sentido da sua narrativa filmica. Num certo momento, ao peram-
bular a noite, Bill percebe que está sendo seguido. Apressa o passo procurando fu-
gir daquele que o persegue. Num momento, a cena mostra o perseguidor atraves-
sando a rua, olhando fixamente Bill Harford. No fundo, o letreiro luminoso de um
restaurante: Verona Restaurant diz-nos algo. Verona é um dos locais onde se passa
a história da peça “Romeu e Julieta”, escrita por William Shakespeare. No centro
da cidade existe uma vila onde, pelo que conta a história, Julieta morava. Este é
um grande marco da cidade, que recebe a fama de cidade dos namorados, atrain-
do centenas de turistas. A trama narrativa do filme “De olhos bem fechados” é a
contraposição dos ideais de amor romântico que funda a modernidade burguesa.
A filha de Bill e Alice Harford, Helena é uma criança imersa no mundo das
mercadorias. Como núcleo reprodutivo do sistema do capital, a família pequeno-
-burguesa submerge a filha no mundo das mercadorias com seus valores factuais
fetichizados. A imagem da pequena Helena mostrando a boneca Barbie expõe,
por um lado, a trama perversa do envolvimento da filha, pequena mulher com as
representações alienados do desejo e papeis sociais subalternizados à ordem do
macho burguês. Por outro lado, mostra a continuidade da ordem sociometabolica
do capital para além de possiveis transtornos pessoais que possam ocorrer.

169
CAPÍTULO 5

A greve

Serguei Eisenstein
(1925)

O filme “A Greve”, de Serguei Eisenstein é um clássico da história do cinema.


Ele expõe o processo dialético de constituição do “em-si” da classe por meio
da luta grevista nas condições da autocracia burguesa: o regime czarista na Rússia
do começo do século XX. Neste filme de Eisenstein, o personagem principal é o
próprio sujeito coletivo de operários e operárias em luta por suas reivindicações
salariais. Não existem heróis que conduzem a trama da greve, mas sim perso-
nagens operários e operárias anônimas, que se organizam e resistem à ofensiva
patronal e policial.
É flagrante no filme “A greve” a presença candente do aparato repressor do
Estado burguês autocrático: espiões da polícia política e a força policial. Diferen-
temente dos filmes de Hollywod, onde o herói individual se sobresai na trama
filmica, o cineasta soviético Serguei Eisenstein colocou no filme “A greve”, o co-
letivo-em-movimento como personagem principal. Por isso, o filme de Eisenstein
é interessante para discutir a formação da consciência de classe contingente, e
a classe em-si que se organiza para lutar e luta para se organizar, nas condições
adversas do regime político autocrático (o regime czarista), visando à obtenção de
reivindicações econômico-corporativa.
O filme “A greve” (1925), primeiro filme do cineasta soviético Serguei Eisens-
tein, foi um enorme sucesso na récem-criada União Soviética revolucionária. Ei-
senstein projetou fazer outros filmes que expussessem com maestria e inovação
técnica, os pilares sociais da Revolução Russa de 1917. “A greve” (1925) expunha
o proletariado industrial; “Encouraçado Potemkim” (1925), os marinheiros; “Ou-
tubro” (1927), os bolcheviques; e “Linha Geral” (1929), o campesinato. Podemos
considera-las a quadrilogia eisensteiniana da Revolução Russa.
Em 1934, no artigo “Do teatro ao cinema”, Eisenstein faz uma dura autocrítica
do seu primeiro opus cinematográfico - o filme “A greve” (de 1925). É importante

171
Trabalho e Cinema • Volume 4

salientar que Eisenstein começou sua atividade artística no teatro, indo depois
para o cinema. Disse ele que o filme “A greve”, obra cinematográfica que o torna-
ria famoso como cineasta na Rússia daquela época, “patinhava nos restos de uma
rançosa teatralidade que se tornava estranha a ele”. Deste modo, quase 10 anos
depois, Eisenstein, no auge da carreira, elaborou uma autocrítica sobre seus pri-
meiros filmes (“A greve”, “Outubro”, “Encouraçado Potemkim” e “Linha Geral”). E
prossegue dizendo neste artigo:
“Ao mesmo tempo, a ruptura com o teatro, a princípio, foi tão forte que em
minha ‘revolta contra o teatro’, afastei-me de um elemento muito vital do teatro –
o argumento. Na época isto pareceu natural. Levamos a ação coletiva e de massa
para a tela, em contraste com o individualismo e o drama do ‘tringulo’ do cinema
burguês. Eliminando a concepção individualista do herói burguês, nossos filmes
daqueles períodos fizeram um desvio abrupto – insistindo em uma compreensão
da massa como herói.” [o grifo é nosso]
E observa:
“Nenhum cinema refletira antes uma imagem da ação coletiva. Agora a con-
cepção de ‘coletividade’ deveria ser retratada. Mas nosso entusiasmo produziu
uma representação unilateral da massa e do coletivo; unilateral porque coletivis-
mo significa o desenvolvimento máximo do indivíduo dentro do coletivo, uma con-
cepção irremediavelmente oposta ao individualismo burguês. Nossos primeiros
filmes de massa omitiram este significado mais profundo.” [o grifo é nosso]
Portanto, Eisenstein reconhece que nos primeiros filmes de sua quadrilogia
revolucionária, ele eliminara da narrativa fílmica, a individualidade, quase redu-
zindo-a à representação unilateral da massa e do coletivo. Deste modo, perdera
aquele tertium datur importantissimo entre indivíduo e massa, ou seja, entre in-
dividualidade pessoal e classe social. Como ele salientou: “...coletivismo significa
o desenvolvimento máximo do indivíduo dentro do coletivo”. Esta seria a meta
crucial do cinema coletivista de Eisenstein. Para ele, coletivismo não é a redu-
ção do indivíduo à massa ou coletivo, mas sim a expressão do desenvolvimento
da individualidade pessoal no interior do coletivo. Talvez nos filmes seguintes à
quadrilogia revolucionária – “Alexandre Nevski” (1938) e “Ivan, o Terrível” (1944-
1945) - Eisenstein tenha conseguido expressar, por meio das personalidades his-
tóricas grandiosas de Alexandre Nevski e Ivan da Rússia, o desenvolvimento de
individualidades pessoais no interior do coletivo historicamente determinado da
classe social (ou a “individualidade dentro do coletivo”, como ele mesmo diz). As-

172
O mundo do trabalho através do cinema

sim, não temos mais como herói, a massa e o coletivo, mas sim, individualidades
históricas densamente construídas no interior da processualidade histórica.
Entretanto, no artigo “Do teatro ao cinema”, de 1934, Eisenstein pondera sua
autocritica salientando que o “desvio abrupto” que ele cometera na “infância” de
sua carreira cinematográfica “foi não apenas natural, mas necessário”. E conclui:
“Era importante que o cinema fosse primeiro penetrado pela imagem geral, o co-
letivo unido e impulsionado por uma única vontade. ‘A individualidade dentro do
coletivo’, o significado mais profundo, exigido do cinema hoje, dificilmente teria
aceitação se o caminho não tivesse sido aberto pelo conceito geral.”
O filme “A greve” foi concebido para ser o primeiro de uma série de filmes a
ser realizado no Proletkult1. Diz o letreiro de apresentação: “Um ciclo de filmes
sobre o movimento dos operários na Rússia”. O subtítulo do filme era “Em direção
à Ditadura”. O tema axial do filme “A greve”, de Serguei Eisenstein, é trabalho,
classe e consciência de classe. Na medida em que se organiza e luta, a massa de
operários - a massa do povo, como diria Lenin - se constitui como classe social do
proletariado, sujeito histórico coletivo posto como coletivo-em-movimento, que
põe reivindicações salariais para o patronato capitalista, explorador e opressor.
Ao reconhecer a sua força material na organização e luta, o proletariado industrial
elabora suas reivindicações salariais. Operários e operárias percebem seu poder
social e se insurgem contra a exploração e opressão. Por isso, a frase de abertura
do filme de V.I. Lênin (1907): “A força da classe operária reside na organização.
Sem a organização das massas, o proletariado é nada. Uma vez organizado – ele é
tudo. A organização quer dizer a unidade das ações, a unidade da atividade práti-
ca”. O filme “A greve” divide-se em seis partes que retratam os passos de ascensão
e queda do coletivo-em-movimento, isto é, a efetivação e desefetivação da classe
social do proletariado em sua forma “em-si”. Eis as partes do filme:
Primeira Parte: Na Fábrica, Tudo Está Tranqüilo.
Seguna Parte: O Motivo da Greve
Terceira Parte: A Fábrica Parou
Quarta Parte: A Greve Prolonga-se
Quinta Parte: A Provocação para o Desastre
Sexta Parte: A Liquidação

1 Proletkult é um neologismo proveniente da junção de cultura proletária. Foi um movimento


literário surgido na Rússia em 1917. Entre seus criadores estão o teórico Alexander Bogdanov
e o poeta Mikhail Gerasimov.

173
Trabalho e Cinema • Volume 4

O filme “A greve” de Serguei Eisenstein inovou nas técnicas de montagem


utilizadas pelo cineasta soviético para expressar suas idéias. Ele elaborou uma
série de reflexões sobre a dramaturgia da forma do filme, analisando a montagem.
Na verdade, Eisenstein especializou-se como um mestre da montagem no cinema,
não só aprimorando esta técnica fundamental e exclusiva da arte cinematográfica,
mas, sobretudo, teorizando e sistematizando os seus conceitos gerais. Por exem-
plo, no filme “A greve”, Eisenstein comenta o que ele denomina de dinamização
emocional. Diz ele: “A montagem do assassinato dos trabalhadores é na realidade
uma montagem paralela desta carnificina com a matança de um touro num aba-
tedouro. Apesar dos temas serem diferentes, a ‘matança’ é o elo associativo. Isto
criou uma poderosa intensificação emocional da cena”.
A dinamização emocional ocorreu com a justaposição de imagens que, se-
gundo ele próprio, no filme “A greve”, adquiria uma forma “ainda grosseira e ar-
tesanal”. Diz ele noutro momento: “[o filme] ‘A greve’ contou com um excesso de
‘tentativas’ nesta direção nova e independente. O fuzilamento em massa de mani-
festantes no final entrelaçado com as cenas sangrentas do matadouro municipal
se transformou (para aquela ‘infancia’ do nosso cinema, isto parecia totalmente
convincente e causou uma grande impressão!) numa metáfora cinematográfica
de ‘um matadouro humano’, absorvendo as lembranças das repressões sangrentas
por parte da autocracia”.
Na verdade, o filme “A greve” foi planejado para provocar o máximo de im-
pacto social e emocional possível no público. Por isso, o filme apresentou-se reple-
to de abordagens caricaturais e imitações burlescas permeado de fortes metáforas
e justaposições. Por exemplo, as imagens grotescas da metamorfose dos espiões
da polícia, metamorfoseados em animais como macacos, buldogues, raposas ou
corujas; o “lumpen” saindo de barris, assumindo a semelhança de demônios sain-
do do inferno; ou mesmo a visão teatral, longe do real e beirando uma estética
quase gótica de bizarros anões, fechando a composição burlesca do filme. Entre-
tanto, longe de ser tão-somente um recurso formal, a utilização do burlesco e bi-
zarro nas imagens do filme “A greve” possui uma função ideológica: os agentes da
ordem burguesa (espiões, policiais e capitalistas) expressam na sua forma de ser,
seus caracteres de portadores da exploração e opressão do capital. Deste modo,
na “infância” do cinema de Eisenstein, a forma tende a reproduzir intensamente o
sentido ideológico do conteúdo do filme.
A montagem soviética e a estética de Eisenstein no filme “A greve” possuia um
candente contéudo ideológico. É importante dizer que, ideologia não se põe aqui

174
O mundo do trabalho através do cinema

no sentido de “falsa consciência”, mas sim, no sentido ontológico, isto é, “ideolo-


gia” como aquela forma ideal de elaboração da realidade que serve para tornar a
prática social dos homens consciente e operativa” (Lukács). A forma ideológica
eisensteiniana contribuiu para tornar a prática social do público consciente do
que é o mundo do capital, mundo de exploração e dominação de classe; e contri-
buiu para operar, no plano estético, a formação da consciência de classe por meio
da experiência catártica.
O drama trágico de “A greve”, de Serguei Eisenstein, expressou uma experi-
ência “catártica” da classe operária. Existe, nesse caso, um elo ontológico entre
tragédia e catarse. Por exemplo, segundo Aristóteles, a “catarse” refere-se à purifi-
cação das almas por meio da descarga emocional provocada por um drama – um
drama trágico. Para ele, é preciso que o herói trágico passe da “Felicidade” para
a “Infelicidade” por alguma desmedida sua, para atingir a “catarse”. Por exemplo,
temos o herói trágico Édipo Rei, que começa a história como rei de Tebas, e no
fim, se cega e se exila; ou, ainda uma história mais próxima de todos, Romeu e
Julieta, numa releitura que Shakespeare faz da tragédia, onde os dois eram filhos
de importante gente da cidade e acabam mortos pela desmedida do amor. No
filme “A greve”, o herói trágico é a própria classe operária, que começa o filme
adquirindo consciência de classe em-si e no fim, é liquidada pela repressão ca-
pitalista. A tragédia da classe operária no filme torna-se experiencia catártica,
isto é, experiencia de liberdade e consciência, na medida em que se transforma
em consciência de classe necessária capaz de perceber a necessidade da luta po-
lítica revolucionária contra o regime autocrático burguês – indo além, portanto,
da mera consciência econômico-corporativa. De acordo com Antonio Gramsci
ocorre a catarse quando temos a passagem da dimensão econômico-corporativa
para a dimensão ético-política (o que implica a passagem da consciência de classe
contingente imersa no “em-si” da classe, para a consciência de classe necessária
ou consciência de classe “para-si”).
A catarse pode ocorrer na política e também na arte. Por exemplo, no cinema,
ao assistir uma cena, ou mesmo, no final de um filme que provoque “descargas de
sentidos e emoções”, por exemplo, pode ser verificado, em algumas pessoas, a ca-
tarse; também, no teatro, em programas de auditório com forte apelo emocional,
etc. Na verdade, a “dinamização emocional”, que Eisenstein buscava por meio do
cinema, possuia um caráter politico-ideológico: promover a experiencia catártica
visando à percepção e entendimento radical da luta de classes e a necessidade da
revolução social.

175
Trabalho e Cinema • Volume 4

Como salientamos acima, o filme “A greve” foi planejado para provocar o má-
ximo de impacto social e emocional possivel no público. Para Eisenstein, a arte
– e o cinema para Eisenstein era a arte das artes – tinha uma função radicalmente
ideológica. Era um instrumento fundamental (e fundante) do devir humano dos
homens, cuja função mediadora era promover a humanização radical dos ho-
mens. Utilizando a linguagem de Vygostki poderiamos dizer que, para Eisenstein,
o cinema, como toda a arte, era elemento mediador da atividade humana, isto é,
meio criado pelo homem no decorrer do processo de humanização que se carac-
teriza por representar, em si, algo diferente de si mesmo. Deste modo, a arte opera
como um signo cuja função é regular as ações sobre o psiquismo das pessoas.
Deste modo, o cinema como arte, é um instrumento psicológico que tem a função
de auxiliar o homem nas suas atividades psíquicas, portanto, internas ao indivíduo.
Diz Vygostki: a “invenção e o uso de signos auxiliares para solucionar um dado
problema psicológico (lembrar, com parar coisas, relatar, escolher, etc.) são análo-
gos à invenção e uso de instrumentos, só que agora no campo psicológico. O signo
age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel
de um instrumento no trabalho”.
Portanto, a preocupação de Eisenstein com a gramática da montagem origi-
nou-se da compreensão de que, é por meio da montagem, que a arte como signo,
cumpriria efetivamente a sua função de regular as ações sobre o psiquismo das pes-
soas. O cinema, como a arte das artes, era a representação plena do signo na acep-
ção de Vygostski. Para o educador soviético, com o auxílio dos signos, o homem
pode controlar voluntariamente sua atividade psicológica e ampliar sua capaci-
dade de atenção, memória e acúmulo de informações, como, por exemplo, pode
se utilizar de um sorteio para tomar uma decisão, amarrar um barbante no dedo
para não esquecer um encontro, anotar um comportamento na agenda, escrever
um diário para não esquecer detalhes vividos, consultar um atlas para localizar
um país etc. Mas o cinema como arte era um signo superior a quaisquer outros
signos criado pelo homem.
Como construtivista, Eisenstein defendia uma arte funcional, que deve aten-
der às necessidades do povo, pois para ele, era justamente na atividade de “cons-
truir” que estava a característica básica do trabalho artístico. Eisenstein era, por-
tanto, crítico da arte pura ou arte pela arte. Era também contrário a idéia de que a
arte deve imitar a vida; ou que ela deve ser “réplica fiel da realidade”. A realidade
para o cineasta deveria ser “matéria útil” nas mãos do diretor. Os objetos da re-
alidade podiam ser recompostos de acordo com os desejos formais do diretor. Na

176
O mundo do trabalho através do cinema

verdade, os objetos construtivistas não são orgânicos, mas sim feitos de fragmen-
tos justapostos, pedaços do mundo que compõem um novo objeto. Esta é a idéia
eisensteiniana do artista-engenheiro.
Portanto, o cineasta soviético colocará o cinema como a arte-signo por exce-
lência, arte técnica que não deve visar “reproduzir” a realidade com uma enorme
fidelidade, mas sim, exercer efetivamente a sua prerrogativa estética de regular –
no sentido ideológico – as ações do psiquismo das pessoas.
Lukács, em sua “Estética”, irá caracterizar o reflexo estético, em contraste com
o reflexo científico, como sendo eminentemente antropomorfizador. Embora a
realidade seja sempre a mesma, enquanto o cientista tem o propósito de reprodu-
zir a realidade “em si”, o artista figura essa mesma realidade, mas se orienta ide-
ologicamente em relação ao mundo plasmado pelos homens. No caso do reflexo
científico, o cientista busca a realidade em sua máxima desantropomorfização; no
caso da arte, o artista reflete a realidade antropomorfizada, isto é, plasmada pela
ideologia que visa regular as ações humanas. Por esta razão, para Lukács a arte é a
autoconsciência da humanidade. Arte e ciência são, deste modo, formas distintas
de recepção e reprodução da realidade.
A construção do artista-engenheiro para Eisenstein é, acima de tudo, uma
construção ideológica, na medida em que a arte em si e para si, como signo, é
sempre um modo de organizar os objetos da realidade. Só que o artista-enge-
nheiro não alimenta a veleidade da arte como “réplica fiel da realidade”. Pelo con-
trário, Eisenstein defendia uma arte voltada ao futuro, a um novo ser humano, a
emancipação da classe-que-vive-do-trabalho, salientando, deste modo, que, como
signo supremo da Humanidade – ou como disse Lukács, “a autoconsciencia da
humanidade”, deveria atender às necessidades do povo.
Por isso, os conceitos idealizados pelo cineasta russo procuram colocar as pre-
missas de um cinema discursivo e político, oposto ao cinema narrativo burguês. A
gramática da montagem de Eisenstein indica, de modo metódico e teórico, recur-
sos e alternativas para o ilusionismo do cinema norte-americano. Ele procurava
um cinema em que a montagem passasse, de modo deliberativo violento, de uma
atração a outra, ou seja, de um movimento forte e espetacular, relativamente au-
tônomo, a outro, em vez de procurar a fluidez e a continuidade narrativa (como
nos filmes de Hollywood).
Eisenstein sugeriu uma maneira de composição narrativa através da monta-
gem. Seu estilo de montagem, que mais tarde ficou conhecida como montagem
intelectual, rompe completamente com a finalidade ilusionista, a qual propõe o

177
Trabalho e Cinema • Volume 4

conflito-justaposicão de planos significativos paralelos. Fundamenta-se, princi-


palmente, na idéia de que “dois pedaços de filme de qualquer tipo, colocados jun-
tos, inevitavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade, que surge da
justaposição”, afirma Eisenstein no livro O sentido do filme.
Eisenstein utilizou o termo montagem de atrações, que foi utilizado primei-
ramente no teatro e depois no cinema. Ele tomou o teatro como instrumento de
agitação política. Seria justamente isso que o arrastaria à inquietação com essa
mente do espectador e com as probabilidades artísticas de instituir um resultado
sobre o pensamento. A justaposição de planos conflitantes, isto é, planos que con-
tenham elementos organizados de forma radicalmente irregulares, acabariam por
gerar um novo sentido no espectador, ou seja, Eisenstein tinha a intenção de criar
na plateia uma sensação, não de alienação, mas de participação ativa ao trazê-la
para dentro do filme. Com Eisenstein o público não é tão-somente espectador. Ao
obrigar o espectador a criar a imagem, reunindo todas as relações entre atrações,
Eisenstein dá ao espectador não a imagem completa, mas a experiência de com-
pletar a imagem. Desta forma, a organização de um conceito não é produzida a
priori ou ajustada de modo indiscutível, como incide no modelo griffitiniano (de
D.W. Griffith, criador do estilo hollywoodiano de cinema). A organização de um
conceito é revelada ao espectador, e é este que irá atingir a ação-síntese das infor-
mações e, a partir disso, atingir seu próprio entendimento.
Desta forma, o interesse de Eisenstein era muito mais pela interpretação do
conteúdo relativo ao filme, do que pelo aspecto material de tal conteúdo. O público
era sujeito ativo da construção estética (o que desdobrava o próprio sentido de
antropomorfização exigido pelo reflexo estético). Portanto, como já salientamos,
o filme não tem como tarefa reproduzir o real sem intervir sobre ele, mas, ao
contrário, deve refletir esse real, atribuindo a ele, ao mesmo tempo, um certo juízo
ideológico.
A montagem era para Eisenstein, a chave, tanto para o domínio estético como
ideológico. Por isso, ele afirma que, o cinema era, antes de tudo, “transformador”,
uma vez que, era pela “prática social”, e não pelo seu espetáculo de beleza, ao
“submeter o espectador a um choque de consciência com relação aos problemas
cotidianos”, que ele teria sua “forma ideal”.
A cena final do filme “A greve” com o massacre dos operários e operárias,
utilizando como meio de dinamização emocional, as imagens justaposta do abate
do gado no matadouro, significou efetivamente um choque emocional capaz de
provocar – não necessariamente – uma experiencia catártica no público. Entre-

178
O mundo do trabalho através do cinema

tanto, a experiencia catártica da arte não conduz necessariamente à consciência


de classe do público como sujeito-receptor. A percepção e entendimento da luta
de classes por meio da experiencia catártica, na ótica leninista, pressupõe neces-
sariamente a presença do partido de vanguarda capaz de operar a percepção e
entendimento radical da situação concreta na perspectiva da luta de classes vol-
tada para uma política revolucionária (o que significa que a experiencia catártica
não é inevitável, mas depende de um jogo de circunstâncias políticas, culturais e
pessoais).
A tragédia do filme “A greve” decorreu, não apenas dos limites da greve em
si e para si, mas dos próprios limites da ação grevista no interior de um regime
autocrático-burgues. A greve operária no filme de Eisenstein ocorreu nas con-
dições de repressão política e policial à organização sindical do proletariado. A
Rússia czarista era um regime político autocrático que não permitia a organização
sindical do proletariado. No filme, o coletivo-em-movimento que deflagra a greve,
apresentando-se como “classe em-si”, foi provocado e derrotado (ou liquidado)
pelas forças autocráticas do regime czarista. Deste modo, o filme soviético retrata
os alcances e limites do sindicalismo nas condições da autocracia burguesa.
O filme “A greve” de Serguei Eisenstein sugere que, a experiencia catártica
implica um processo mnemônico ou processo de memória coletiva. Por exemplo,
logo após a cena do massagre de operários e operárias pelas forças da repressão
czarista a mando dos capitalistas, surge na tela do filme os dizeres: “E como ci-
catrizes sangrentas inolvidáveis do proletariado, jazem as feridas de Lena, Talka,
Zlastoust, Yaro, Slavl, Tsaritsin e Kosteroma.” E depois, em letras garrafais: “Lem-
brem-se disso! Proletários!”. Na verdade, o letreiro final do filme atua como o par-
tido de vanguarda que ativa a percepção e entendimento da massa de operários
sobre o verdadeiro significado dos acontecimentos trágicos. É preciso rememo-
rar as situações passadas e presentes de opressão e repressão capitalista contra a
classe operária para que possamos compreender e entender a natureza de classe
do Estado político do capital. Não se deve esquecer, mas sim se deve sempre ter
presente que, sem derrotar a autocracia burguesa, a classe operária não conse-
guirá alcançar suas reivindicações salariais. Esta é a lição da história que a classe
operária tem que aprender sob pena de repeti-la irremediavelmente.
No filme “A greve”, de Serguei Eisenstein, a idéia da classe em-si é posta como
sujeito-coletivo-em-movimento. Classe social pressupõe coletivo-em-movimento.
Por isso, afirma-se inelutavelmente no plano da forma do filme, a presença da
massa e do coletivo como elemento estruturante da narrativa filmica. O em-si da

179
Trabalho e Cinema • Volume 4

classe em processo de formação, por meio da constituição do sujeito coletivo, é


o personagem do filme, onde os operários-organizadores são apenas órgãos do
coletivo-em-movimento. Nada sabemos sobre a vida pessoal e a individualida-
de pessoal – inclusive nomes – dos operários-organizadores do filme “A greve”.
Eles são tão impessoais – ou até mais impessoais – que o personagem de Charles
Chaplin em “Tempos Modernos”. Podemos considera-los na perspectiva do cine-
ma, como anti-personagens, no sentido do herói burguês que surge nos filmes
de Hollywood. O coletivo-em-movimento é um organismo com unidade de ação
e unidade da atividade prática. Coletivo é movimento. Movimento é coletivo. A
classe social do proletariado se expressa como coletivo-em-movimento. Esta é a
percepção leninista do processo de luta de classe.
Num pequeno artigo intitulado “A greve”, V.I. Lenin expressou em 1898,
numa conjuntura de crescimento das greves operárias na Rússia, uma interessan-
te fenomenologia da greve. O artigo de Lenin pode contribuir para entendermos
a formação do em-si da classe exposta no filme “A greve” de Serguei Eisenstein.
Primeiro, Lenin explica o nascimento e a difussão das greves na Rússia de 1898.
Naquela época, a Rússia era um país capitalista em franco desenvolvimento indus-
trial, sob regime político autocrático. As greves operárias se expandiram com o cres-
cimento da grande indústria. No seu artigo, logo de inicio, Lenin faz a correlação
entre greves e crescimento das fábricas onde se concentram a massa de operários e
operárias. A greve é um fenômeno de massas operárias que pressupõe a multidão, o
coletivo-massa, o coletivo serial (como diria Jean-Paul Sartre). Diz Lenin:
“As greves surgem e se expandem onde aparecem e se expandem as grandes
fábricas. Das fábricas mais importantes, onde trabalham centenas (e, às vezes, mi-
lhares) de operários, di­ficilmente se encontrará uma em que não tenha havido gre-
ves. Quando eram poucas as grandes fábricas na Rússia, rareavam as greves; mas
visto que elas crescem com rapidez, tanto nas antigas localidades fabris como nas
novas cida­des e aldeias industriais, as greves tornam-se cada vez mais freqüentes”
[o grifo é nosso]
Como observou Lenin, na fábrica capitalista, “trabalham centenas (e, às ve-
zes, milhares) de operários”. Deste modo, na fábrica capitalista não encontramos
aquela multidão das praças ou a multidão das ruas das metrópoles (como aquela
que aparece numa cena de “Matrix”, de 1999), mas sim a multidão-que-trabalha.
Eis o novo coletivo serial, tensionado em-si e para-si pela própria natureza do pro-
cesso capitalista de produção de mercadorias que surge com a grande indústria
(o cinema do século XX nos mostrou cenas da multidão-que-trabalha em filmes

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O mundo do trabalho através do cinema

como “Metropólis”, de Fritz Lang, de 1926; “Tempos Modernos”, de Charles Cha-


plin, de 1936; ou ainda “A classe operária vai ao Paraíso”, de Elio Petri, de 1971). A
multidão-que-trabalha – as grandes aglomerações de operários e operárias - é um
coletivo-de-classe (com a classe social sendo o elemento pressuposto); por isso,
“as greves tornam-se cada dia mais frequentes”.
Ao mesmo tempo em que Lenin observou que as greves se vinculam às gran-
des aglomerações de operários e operárias, ele parte de outro pressuposto funda-
mental: o capitalismo leva necessariamente à luta dos operários contra os patrões,
e quando a produção se transforma numa produção em grande escala, essa luta
se converte necessariamente em luta grevista. Este princípio fundamental - o ca-
pitalismo leva necessariamente à luta de classes – luta dos operários contra os
patrões - é o princípio vigente da explicação lenineana para as greves. Mas o que
se coloca é, por que o capitalismo leva necessariamnete à luta grevista no caso da
produção em grande escala? Ele procura explicar de modo didático, qual a natu-
reza do modo de produção capitalista, visando, deste modo, buscar, na natureza
do próprio sistema produtor de mercdorias, as razões essenciais da existência das
greves operárias:
“Denomina-se capitalismo, a organização da sociedade em que a terra, as fá-
bricas, os instrumentos de produção, etc, pertencem a um pequeno número de
latifundiários e capi­talistas, enquanto a massa do povo não possui nenhuma ou
quase nenhuma propriedade e deve, por isso, alugar sua força de trabalho. Os la-
tifundiários e os industriais contra­tam os operários, obrigando-os a produzir tais
ou quais ar­tigos, que eles vendem no mercado. Os patrões pagam aos operários
exclusivamente o salário imprescindível para que estes e sua família mal possam
subsistir, e tudo que o ope­rário produz acima dessa quantidade de produtos neces­
sária para a sua manutenção o patrão embolsa; isso cons­titui seu lucro. Portanto,
na economia capitalista, a massa do povo trabalha para outros, não trabalha para
si, mas para os patrões, e o faz por um salário.”
Em poucas linhas, compreende-se didaticamente, a natureza do salariato: pa-
ga-se aos operários exclusivamente o salário imprescindível para ele e sua família
possam subsistir. O excedente que o operário produz acima do valor equivalente
ao seu salário é embolsado pelos patrões.
Na verdade, os patrões buscam acumular, mais e mais, o que explica, segundo
Lenin, porque os patrões tratem sempre de reduzir o salário. Quanto me­nos pa-
gam aos operários, mais lucro lhes sobra. Ao mesmo tempo, como trabalho vivo,
os operários resistem e tratam de receber o maior salário pos­sível, para, como diz

181
Trabalho e Cinema • Volume 4

Lenin, “poder sustentar a sua família com uma alimen­tação abundante e sadia,
viver numa boa casa e não se ves­tir como mendigos, mas como se veste todo mun-
do.” Por­tanto, de acordo com o revolucionário russo, há uma luta antagônica de
interesses entre patrões e operários, uma constante luta pelo salário baseado em
direitos iguais (como observou Marx, onde se disputa direitos iguais, o que decide
é a força). Por um lado, o patrão tem liberdade de contratar o operário que qui-
ser, pelo que procura o mais barato. Por outro lado, o operário tem li­berdade de
alugar-se ao patrão que quiser, e procura o mais caro, o que paga mais. Diz Lenin
“Trabalhe o operário na cidade ou no campo, alugue seus braços a um latifundi-
ário, a um fazendeiro rico, a um contratista ou a um industrial, sem­pre regateia
com o patrão, lutando contra ele pelo salário”.
Deste modo, a greve é a luta constante e necessária do operário pelo salário. É
uma luta que se coloca no interior da lógica do sistema produtor de mercadorias,
onde o operário é força de trabalho como mercadoria que busca melhor preço
para sua força de trabalho. Mas o operário não é apenas força de trabalho como
mercadoria. Ele é trabalho vivo que diz não à exploração e espoliação do capita-
lista, homem e mulher que resiste e luta contra a exploração e tem a liberdade de
procurar o que paga mais e luta para ter melhores salários.
A questão que se coloca é se o operário pode, por si só, sustentar a luta por sa-
lário. Coloca-se, deste modo, a necessidade da luta coletiva e organizada da greve
operária, que se torna tão necessária quanto à própia necessidade da luta grevista
no capitalismo. Diz ele categoricamente: “É impossível para o operário lutar sozi-
nho contra o patrão”.
O capital tem o poder social alienado a seu favor na sociedade produtora de
mercadorias. Por isso, se o operário exige melhor salário, ou não aceita o rebaixa-
mento de salário, o patrão responde: vá para outro lugar, são muitos os fa­mintos
que esperam à porta da fábrica e ficarão contentes em trabalhar, mesmo que por
um salário baixo. Na verdade, a necessidade da ação coletiva é uma necessidade
histórico-moral, o que significa que ela pode não ocorrer sob pena de desvalori-
zação irremediavel daquela força de trabalho. Como se trata de ação histórico-
-moral, a greve e a ação coletiva dos operários e operárias, implica as escolhas
das individualidades pessoais de classe. As condições de miséria e ruína do povo
contribuem para que operários e operárias façam escolhas morais espúrias. Lenin
diz: “Quando a ruína do povo chega a tal ponto que nas cidades e nas aldeias
há sempre massas de desempregados, quan­do os patrões amealham enormes
fortunas e os pequenos proprietários são substituídos pelos milionários, então o

182
O mundo do trabalho através do cinema

ope­rário isolado transforma-se num homem absolutamente des­valido diante do


capitalista”. O operário isolado – representação trágica da solidão do homem no
mundo do capital - é o próprio homem anulado em sua ação moral. O operário
isolado é o homem desmoralizado ou desvalido condenado a sua própria desefe-
tivação humano-genérica.
Lenin prossegue expondo as consequências pessoais da condição de operário
isolado, isto é, o operário que se recusa ou que se encontra incapaz de engendrar
a ação coletiva. Diz ele: “O capitalista obtém a possibi­lidade de esmagar por com-
pleto o operário, de condená-lo à morte num trabalho de forçados, e não só ele,
como tam­bém sua mulher e seus filhos”.
Existem provas empíricas de que a ação coletiva ou ação grevista dos operá-
rios ou ainda a ação coletiva inscrita na lei trabalhista, implicam em melhoria das
condições de trabalho e salários dos operários. Diz ele:
“[...] vejam as indús­trias em que os operários ainda não conseguiram ficar
amparados pela lei e não podem oferecer resistência aos capi­talistas e comprova-
rão que a jornada de trabalho é incrivel­mente longa, até de 17 e 19 horas; que cria-
turas de cinco ou seis anos executam um trabalho extenuante e que os operários
passam fome constantemente, condenados a uma morte lenta. Exemplo disso é o
caso dos operários que tra­balham a domicílio para os capitalistas; mas, qualquer
ope­rário se lembrará de muitos outros exemplos!”
E Lenin arremata, fazendo, pela primeira vez, a correlação entre trabalho as-
salariado e regime da escravidão/servidão. Diz ele: “Nem mesmo na escravidão e
sob o regime de servidão existiu uma opres­são tão terrível do povo trabalhador
como a que sofrem os operários quando não podem opor resistência aos capitalis­
tas nem conquistar leis que limitem a arbitrariedade pa­tronal.”
Portanto, a luta grevista é uma necesidade histórico-moral que os operários tra-
vam para evitar que eles não sejam reduzidos a situação extrema de penúria. A luta
grevista é uma luta necessária que exige uma consciência social imposta pela rea-
lidade prático-sensível, tratando-se da percepção imediata de que, cada um deles,
por si só, é absolutamente impotente e vive sob a ameaça de perecer sob o jugo do
capital. O que significa que, ou os operários começam a erguer-se juntos, contra seus
patrões, ou serão condenados a morrer de fome. Eles são obrigados a escolher, sob
pena de irem à ruina, a luta coletiva da greve. Dão início às greves operárias.
Ao expor os primeiros passos da consciência operária em sua afirmação cole-
tiva, Lenin reproduz, de modo sintético e com perspicácia política, o raciocínio de
Friedrich Engels nos capítulos “Os movimentos operários” do seu magistral livro

183
Trabalho e Cinema • Volume 4

“A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, de 1842. Diz Lenin: “A princípio,


é comum que os operários não tenham nem se­quer uma idéia clara do que pro-
curam conseguir, não com­preendem porque atuam assim: simplesmente quebram
as máquinas e destroem as fábricas. A única coisa que dese­jam é fazer sentir aos
patrões a sua indignação; experi­mentam suas forças mancomunadas para sair de
uma si­tuação insuportável, sem saber ainda porque sua situação é tão desespera-
da e quais devem ser suas aspirações”.
Lenin vê o primeiro passo primordial da ação operária conduzido pelo sen-
timento de indignação que, num primeiro momento, sem a organização traba-
lhista institucionalizada na sociedade civil, começa “com distúr­bios isolados, com
motins, como dizem em nosso país a po­lícia e os patrões”. Na época de Lenin,
em vários paises capitalistas mais industrializados, os sindicatos operários eram
politicamente reconhecidos. Havia liberdade de organização sindical na França,
Alemanha e Inglaterra. Apenas na Rússia czarista, o movimento operário era con-
siderado caso de polícia; e as manifestações grevistas davam origem a distúrbios
e motins. Observa Lenin: “Em todos os países, estes distúrbios de­ram lugar, de
um lado, a greves mais ou menos pacíficas e, de outro, a uma luta multifacética
da classe operária por sua emancipação.” Mais adiante ele observa: “A necessida-
de das greves na sociedade capitalista está tão reconhecida por todos nos países
europeus, que lá a lei não proibe a decla­ração de greves; somente na Rússia sub-
sistiram leis selva­gens contra as greves [...]”. Lenin ressalta que, se num primeiro
momento a ação coletiva da greve começa com distúrbios e motins, num segundo
momento, podem levar a greves de massa pacíficas e mais tarde, a “luta multifacé-
tica da classe operária por sua emancipação” – a luta política e luta revolucionária.
Depois de explicar a necessidade das greves operárias, Lenin procurou des-
velar o significado das greves na luta da classe operária. Ele faz uma síntese das
suas conclusões a respeito da importancia da ação coletiva na luta pelo salário,
salientando que, isoladamente e individualmente, os operários e operárias são
impotentes. Diz ele:
“Se o sa­lário do operário se determina — como vimos — por um convênio
entre o patrão e o operário, e se cada operário por si só é de todo impotente,
torna-se claro que os operários devem necessariamente defender juntos as suas
reivindica­ções, devem necessariamente declarar-se em greve para im­pedir que
os patrões baixem os salários, ou para conseguir um salário mais alto. E, efetiva-
mente, não existe nenhum país capitalista em que não sejam deflagradas greves
ope­rárias. Em todos os países europeus e na América, os operá­rios se sentem, em

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O mundo do trabalho através do cinema

toda parte, impotentes quando atuam individualmente e só podem opor resis-


tência aos patrões se estiverem unidos, quer declarando-se em greve, quer amea­
çando com a greve.”
Lenin obseva que a ação coletiva da greve operária deriva, não apenas da
reação da classe operária contra a lógica da exploração capitalista, mas deriva
também da concentração e centralização do capital, sendo, deste modo, parte do
desenvolvimento do próprio modo de produção capitalista. Este desenvolvimen-
to decorre não apenas da luta do capital contra o trabalho, mas também da luta
intra-capitalista, a competição que obriga cada capitalista a reduzir preço de suas
mercadorias, inclusive da força de trabalho. As contradições da acumulação le-
vam a oscilações e crises capitalistas. Enfim, a natureza do desenvolvimento da
acumulação capitalista aguça o desemprego e acirra a luta operária indignada
contra a degradação da vida social. Diz ele:
“E quanto mais se desenvolve o capitalis­mo, quanto maior é a rapidez com
que crescem as grandes fábricas, quanto mais se vêem deslocados os pequenos
pe­los grandes capitalistas, mais imperiosa é a necessidade de uma resistência con-
junta dos operários, porque se agrava o desemprego, aguça-se a competição entre
os capitalistas, que procuram produzir mercadorias de modo mais barato possível
(para o que é preciso pagar aos operários o me­nos possível), e acentuam-se as
oscilações da indústria e as crises.”
Por outro lado, Lenin salientou a avidez e ganância dos capitalistas que, ao
obterem lucros nos momentos de prosperidade, não repartem entre os operários.
Diz ele: “Quando a indústria prospera, os patrões obtêm grandes lucros e não
pensam em reparti-los com os operá­rios; mas durante a crise os patrões tratam de
despejar so­bre os ombros dos operários os prejuízos”.
Em síntese: Lenin reconhece que as greves emergem necessariamente na so-
ciedade capitalista, ou como ele diz, as greves emanam da própria natureza da
sociedade capitalista – seja devido à lei da exploração ou extração da mais-valia,
desvelada por Karl Marx; seja devido à lei do desenvolvimento capitalista com a
concorrencia intracapitalista e as crises capitalistas. As greves operárias possuem
a dimensão da necessidade histórica, num modo de produção baseado na luta pelo
salário; e modo de produção que concentra operários e operárias num local de
trabalho (operário-massa). Depois, Lenin reconhece que as greves “significam o
começo da luta da classe operária contra esta estrutura da sociedade”. O que sig-
nifica que as greves operárias, na perspectiva de Lenin, podem contribuir para

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Trabalho e Cinema • Volume 4

o desenvolvimento da consciência de classe necessaria, capaz de conduzir a luta


contra a sociedade capitalista.
Lenin demonstra uma confiança inabalável na classe operária como sujeito
revolucionário. Agir individualmente contra o poder capitalista, mesmo despoja-
damente, é afirmar-se como escravo. É uma luta inglória e condenada ao fracasso,
isto é, como ele diz, “à completa escravização dos operários” à lógica do capital.
Entretanto, a coisa muda quando os operários despojados se unem. A união é a
força. Esta é a percepção clássica do marxismo, que desde a I Associação Interna-
cional dos Trabalhadores (AIT), salientou a importância da união dos operários
na luta contra o capital. Na Resolução da AIT sobre os Sindicatos, Marx e Engels
observam:
“A única potencia social que os operários possuem é seu número. Mas a
quantidade é anulada pela desunião. Esta desunião dos operários se engendra e
perpetua por uma concorrencia inevitável. Os sindicatos nasceram dos esforços
espontâneos dos operários ao lutar contra as ordens despóticas do capital, para
impedir, ou ao menos atenuar, os efeitos dessa concorrência, modificando os ter-
mos do contrato, de forma a se colocarem acima da condição de simples escravos.”
(ou como diriam os cartistas, “escravos assalariados”). Noutro documento da AIT,
Marx e Engels observaram: “Os operários se unem para se colocarem em igualda-
de de condições com o capitalista para o contrato de venda de seu trabalho. Esta é
a razão (a base lógica) dos sindicatos.” Naquela época, Marx e Engels salientaram
como funções dos sindicatos ser a reação contra as manobras do capital e ser cen-
tro de organização da classe operária – eis a sua grande missão histórica.
Quando a quantidade de greves operárias se disseminou em 1865, o Congres-
so da AIT observou: “Que as greves não são um meio de emnacipar completamen-
te o trabalhador, mas uma necessidade na situação atual de luta entre o trabalho
e o capital”. Naquela conjuntura, Marx e Engels evitavam sobrevalorizar o alcance
das greves operárias, apesar de reconhecer seu valor como luta pelo salário. Mais
tarde, eles salientaram que, o grande dever da classe operária é de conquistar o
poder político; e observaram o renascimento do movimento operário na Alema-
nha, França e Itália: “Um elemento de seu êxito é o número. No entanto, o número
não pesa na balança quando não unido à associação e dirigida por uma consciência
clara.” Eis o espírito da frase de Lenin que abre o filme “A greve”: “A força da classe
operária reside na organização. Sem organização o proletariado é nada. Uma vez
organizado – ele é tudo”. E destaca: “A organização quer dizer a unidade da ação,

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O mundo do trabalho através do cinema

a unidade da atividade prática”. Organização é associação (unidade das ações) +


consciência clara (unidade da atividade prática).
Noutro documento do Conselho Geral da AIT, Marx e Engels fazem uma ob-
servação interessantíssima sobre os sindicatos como elementos para a conquista
da individualidade pessoal (Lenin diria: a passagem do escravo para o homem
como pessoa humana). Dizem Marx e Engels: “Frente à força humana individu-
al desapareceu o operário e o operário nada mais é do que uma engrenagem da
máquina nas fábricas. Para conquistar sua individualidade, os operários devem se
unir e constituir sindicatos para defender seu salário e sua vida”.
E mais adiante:
“É fácil prever qual seria o destino da população trabalhadora, se cada uma
de suas ações continuasse isolada e submetida à iniciativa individual. Se não fra-
cassasse, a implacável lei da oferta e da procura reduziria os produtores de toda ri-
queza a um nível de extrema escassez, porque, nas condições atuais da sociedade,
toda melhora das forças produtivas e toda redução do trabalho operário só tende
a baixar os salários e a aumentar as horas de trabalho. Entretanto, é certo que os
pobres que trabalham e produzem toda a riqueza tem uma pretensão humana
imediata e natural acerca dos frutos de seu próprio trabalho, mas esta reivindica-
ção só pode ser realizada e afirmada pela união de todos. Os esforços fragmenta-
dos são um débil auxílio e todo exito parcial é efêmero”. E concluem: “Só a união
de toda a massa trabalhadora de todos os paises pode dar uma solução satisfatória
ao problema do trabalho”.
Muito mais tarde, em 1885, Friedrich Engels publicaria no Labour Standard,
o jornal das trade-unions, uma série de artigos sobre os sindicatos. Ele voltou a
salientar a posição clássica dos marxistas: a importancia da organização do prole-
tariado em sua luta sindical. Diz ele: “Com efeito, bem organizado, os operários de
todos os ramos da indústria podem receber, ao menos aproximadamente. o justo
valor da força de trabalho que alugam e, com a ajuda da legislação do estado, fixar
o tempo de trabalho para que não exceda sua duração máxima, passada a qual
essa se esgota prematuramente.”
Entretanto, nestes artigos, Engels salientou os limites do sindicalismo e a
necessidade da luta entre as duas grandes classes da sociedade, se convertesse,
necessariamente, em uma luta política. É o que observou Lenin em 1898, em seu
artigo, quando afirmou que as greves significam apenas o “começo da luta” da
classe operária contra a sociedade capitalista.

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Trabalho e Cinema • Volume 4

Mas interessou a Lenin, naquele momento de agitação operária na Rússia na


virada para o século XX, salientar o valor imediato das greves operárias como luta
pelo salário no sentido de luta pela afirmação da pessoa humana contra o despo-
tismo do capital. Diz ele:
“Quando enfrentam sozinhos os patrões, continuam sendo verdadei­ros es-
cravos, que trabalham eternamente para um estranho, por um pedaço de pão,
como assalariados eternamente sub­missos e silenciosos. Mas quando os operários
levantam jun­tos suas reivindicações, e se negam a submeter-se a quem tem a bol-
sa de ouro, deixam então de ser escravos, conver­tem-se em homens e começam
a exigir que seu trabalho não sirva somente para enriquecer a um punhado de
parasitas, mas que permita aos trabalhadores viver como pessoas”.
No capítulo intitulado “Os movimentos operários” do livro “A situação da
classe trabalhadora na Inglaterra”, Friedrich Engels, em 1842 salientou, numa
perspectiva humanista revolucionária, a necessidade da luta operária por melho-
res salários, para que “um homem, ou uma classe inteira, tenha possibilidade de
pensar, sentir e viver humanamente”. E conclui: “Os operários devem, portanto,
tentar se libertar desta situação que os coloca ao nível dos animais, para criarem
para si próprios uma existência melhor, mais humana, e só podem fazer entrando
em luta contra os interesses da burguesia enquanto tal, interesses que residem
precisamente na exploração dos operários”.
Noutro momento, o jovem Engels diria: “[...] o operário já não pode valorizar
as suas qualidades humanas senão opondo-se ao conjunto das suas condições de
vida, é natural que seja precisamente nesta oposição que os operários se mostrem
mais simpáticos, mais nobres e mais humanos” [o grifo é nosso]. Na medida em
que não se opunha ao conjunto das suas condições de vida, resignando-se em
aceitar o salário pago pelo capitalista, o operário isolado desvalorizaria suas quali-
dades humanas. Ocorreria a perda de si mesmo – ele se desumanizaria.
Mais tarde, em 1844, Karl Marx nos seus “Manuscritos de Paris”, iria traduzir
as impressões de Engels sobre a condição operária na genial teoria da alienação ou
teoria da desumanização do trabalhador. Naqueles manuscritos juvenis, Marx ob-
servou: “[...] o homem (o trabalhador) se sente livremente ativo só ainda em suas
funções animais, comer, beber e procriar, no máximo ainda moradia, ornamen-
tos, etc., e em suas funções humanas só sente ainda como animal. O que é animal
se torna humano e o que é humano se torna animal.” Deste modo, a alienação ou
perda de si mesmo, é auto-alienação ou aceitação passiva da perda-de-s- mesmo.
Na perspectiva de Engels (1842) e Lenin (1898), o modo de produção capitalista

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O mundo do trabalho através do cinema

coloca o operário ou a classe operária ao nível dos animais (Engels) ou dos escra-
vos (Lenin). Mas deve ser salientado que, colocar-se ao nível dos animais ou dos
escravos, é uma escolha moral dos operários e operárias, que aceitam a perda de si
mesmo, e recusam-se a lutar contra o capital ou suas condições de vida alienadas.
Em seu artigo de 1898, Lenin faz um resgate do sentido humanizador das gre-
ves operárias, capaz de dar auto-estima aos operários, fazê-los ver o poder social
que tem e que foi alienado pelos capitalistas. Diz ele: “Os escravos [os operários
– GA] começam a apresentar a reivindicação de se trans­formar em donos: traba-
lhar, e viver não como queiram os latifundiários e capitalistas, mas como queiram
os próprios trabalhadores. As greves infundem sempre tal espanto aos capitalistas
porque começam a fazer vacilar seu domínio. ‘Todas as rodas detêm-se, se assim
o quer teu braço vigoro­so’, diz sobre a classe operária uma canção dos operários
alemães”.
Deste modo, as greves têm uma função pedagógica no sentido de dar-lhes
consciência, por um momento, do poder social da classe trabalhadora, a classe-
que-vive-do-trabalho que move a engrenagem do mundo social do capital. Diz
Lenin: “Toda esta engrenagem é movida pelo operá­rio, que cultiva a terra, extrai
o mineral, elabora as merca­dorias nas fábricas, constrói casas, oficinas e ferro-
vias. Quando os operários se negam a trabalhar, todo esse meca­nismo ameaça
paralisar-se”.
A pedagogia da greve possui uma função mnemônica – como Eisenstein de-
monstra no filme “A greve” (noutro sentido, é claro). Enfim, “Lembrai-vos!”.
Primeiro, a greve contribui, segundo Lenin, para lembrar aos capitalis­tas que
os verdadeiros donos não são eles, e sim os operários, que proclamam seus direi-
tos com força crescente.
Segundo, a greve faz lembrar aos operários que sua situação não é desespe-
rada e que não estão sós (Lenin observa a enorme influência que a greve exerce,
tanto sobre os grevistas, como sobre os operários das fábricas vizinhas ou próxi-
mas, ou das fábricas do mes­mo ramo industrial). Mais adiante ele observaria o
valor moral das greves, capaz de disseminar o espírito de solidariedade humana:
“Amiúde, basta que se declare em greve uma fábrica para que imediatamente
comece uma série de greves em muitas outras fábricas. Como é grande a influên-
cia moral das gre­ves, como é contagiante a influência que exerce nos operá­rios ver
seus companheiros, que, embora temporariamente, se transformam de escravos
em pessoas com os mesmos di­reitos dos ricos!”.

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Trabalho e Cinema • Volume 4

Portanto, a greve contribui para o levantamento da auto-estima dos operários


que, de forma coletiva, como observa Lenin: “Proclamam em voz alta suas reivin-
dicações; lembra aos patrões todos os atropelos de que tem sido vítima; procla­ma
seus direitos, não pensa apenas em si, ou no seu salário, mas pensa também em
todos os seus companheiros que abandonaram o trabalho junto com ele, e que
defendem a causa operária sem medo das provações.”
O artigo de Lenin é um manifesto humanista que proclama a afirmação da
pessoa humana por meio da ação coletiva da greve operária. Mas ele reconhece
também as imensas dificuldades e privações acarretadas pela greve ao operário.
Nas condições históricas da autocracia tzarista, a greve é uma calamidade que se-
gundo Lenin, “tão terríveis que só se podem comparar com as calamidades da
guerra: fome na família, perda do salário, freqüentes de­tenções, expulsão da ci-
dade em que residia e onde traba­lhava”. Entretanto, Lenin vangloria, e quase mi-
tifica, o espirito heróico do operário, ao dizer que eles não se deixam curvar pela
calamidade acarretada pela greve:
“E apesar de todas essas calamidades, os operários des­prezam os que se afas-
tam de seus companheiros e entram em conchavos com o patrão. Malgrado as
calamidades da greve, os operários das fábricas próximas sentem entusiasmo
sempre que vêem que seus companheiros iniciaram a luta”.
Existe uma admiração pela coragem heróica do coletivo operário (e não pelo
operário individual!) capaz de “quebrar a for­ça de toda a burguesia” (Lenin cita
Engels). Mas a admiração marxista pela humanidade operária encontra suas pri-
meiras manifestações no jovem Engels, quando ele observou que os operários que
se opunham às suas condições de vida – isto é, os operários que lutavam coletiva-
mente contra o capital - se mostravam “mais simpáticos, mais nobres e mais hu-
manos”. Eis o espírito radical que influenciou, de certa forma, o caráter coletivista
dos primeiros filmes de Serguei Eisenstein.
Finalmente, Lenin extraiu o valor poíitico das greves. Elas são uma escola de
socialismo, pois a idéia de socialimso resgata a percepção e o entendimento do
poder social do coletivo – os “produtores associados” – e infunde o espírito de
soldariedade de classe. Diz Lenin: “Toda greve infunde vigorosamente nos ope­
rários a idéia do socialismo: a idéia da luta de toda a classe operária por sua eman-
cipação do jugo do capital. É muito freqüente que, antes de uma grande greve, os
operários de uma fábrica, uma indústria ou uma cidade qualquer não conheçam
sequer o socialismo, nem pensem nele, mas que depois da greve difundam-se

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O mundo do trabalho através do cinema

entre eles, cada vez mais, os círculos e as associações e seja maior o número dos
operá­rios que se tornam socialistas”.
O revolucionário russo aproveita o fato social da greve como nessidade irre-
mediavel da afirmação da pessoa humana nas condições da sociedade capitalis-
ta, para extrair dele a idéia de socialismo. Trata-se da passagem da consciência
sindicalista ou consciência de classe contingente, para a consciência política ou
consciência de classe necessaria, que exige que os operários pensem não apenas
em seu patrão e em seus companheiros próximos, mas sim, “em todos os patrões,
em toda a classe capitalista e em toda a classe operária”.
A consciência de classe necessaria exige a percepção e entendimento da tota-
lidade social da sociedade capitalista dividida em classes sociais estruturalmente
antagonicas. Enfim, a percepçao do anatgonsimo entre capital e trabalho como
o antagonismo essencial da sociedade capitalista. É importante deste modo que,
cada operário possa ver, como diz Lenin, “com clareza que toda a classe capitalista
é inimiga de toda a classe operária e que os operários só podem confiar em si
mesmos e em sua união”.
No plano imediato, alguns patrões, segundo ele, podem enganar os operários,
apresentando-se “como um benfeitor que encobre a exploração de seus operários
com uma dádiva insignificante qualquer, com qualquer pro­messa falaz”. Mas Le-
nin observa: “Cada greve sempre destrói de imediato este en­gano, mostrando aos
operários que seu ‘benfeitor’ é um lobo com pele de cordeiro”. O que significa que,
as greves tem uma função heurística, desvelando o engano ou mistificação da clas-
se burguesa que encobre a exploração e sua falácias de classe dominante. Para ele,
a greve abre os olhos dos operários não só quanto aos capitalistas, mas também
no que se refere ao governo e às leis. Eis o sentido de conscientização política dos
operários. Diz Lenin: “Do mesmo modo que os patrões se esforçam para aparecer
como benfeitores dos operários, os funcionários e seus lacaios se esforçam para
convencer os operários de que o tzar e o governo tzarista se preocupam com os
patrões e os operários na mesma medida, com espírito de justiça”.
A greve como função heurística, ou função de esclarecimento social, desvela
as mistificações dos capitalistas e do Estado burgues, com suas leis que faz com
que os operários dêem créditos a eles. A greve (e os movimentos sociais) desmis-
tifica o caráter das leis na qual se baseia o Estado capitalista:
“O operário não conhece as leis e não convive com os fun­cionários, em par-
ticular os altos funcionários, razão pela qual dá, freqüentemente, crédito a tudo
isso. Eclode, porém, uma greve, apresentam-se na fábrica o fiscal, o inspetor fa­

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Trabalho e Cinema • Volume 4

bril, a polícia e, não raro, tropas, e então os operários per­cebem que infringiram
a lei: a lei permite aos donos de fábricas reunir-se e tratar abertamente sobre a
maneira de reduzir o salário dos operários, ao passo que os operários são tachados
de delinqüentes ao se colocarem todos de acordo! Despejam os operários de suas
casas, a polícia fecha os ar­mazéns em que os operários poderiam adquirir co-
mestíveis a crédito e pretende-se instigar os soldados contra os ope­rários, mesmo
quando estes mantêm uma atitude serena e pacífica. Dá-se inclusive aos soldados
ordem de abrir fogo contra os operários, e quando matam trabalhadores indefe­
sos, atirando-lhes pelas costas, o próprio tzar manifesta a sua gratidão às tropas
(assim fez com os soldados que mata­ram grevistas em Iaroslavl, em 1895).”
E prossegue fazendo referência ao regime autocrático do czarismo, forma de
Estado burgues que aparece como “comitê executivo da classe dominante” (Marx-
-Engels):
“Torna-se claro para to­do operário que o governo tzarista é um inimigo jura-
do, que defende os capitalistas e ata de pés e mãos os operários. O operário começa
a entender que as leis são ditadas em bene­fício exclusivo dos ricos, que também
os funcionários defen­dem os interesses dos ricos, que se tapa a boca do povo tra­
balhador e não se permite que ele exprima suas necessida­des e que a classe operá-
ria deve necessariamente arrancar o direito de greve, o direito de participar numa
assembléia popular representativa encarregada de promulgar as leis e de velar por
seu cumprimento.” [o grifo é nosso].
“Tornar claro...” ou “...começa a entender” expressam a função pedagogica
das greves. É por meio dela – atividade prático-sensível – que os operários são
educados sobre a natureza de classe do Estado político do capital. A formação da
consciência de classe faz-se, deste modo, na perspectiva materialista, por meio
da experiência de luta de classe, adquirindo um caráter de desilusionismo com as
representações fetichizadas da ordem burguesa (a Lei e o Estado político).
Lenin observa que, por sua vez, o governo com­preende muito bem que “as
greves abrem os olhos dos operá­rios, razão por que tanto as teme e se esforça a
todo custo para sufocá-las quanto antes possível”. Segundo ele, portanto, o go-
verno visa sufocar as greves, não apenas por mero dever de preservar a ordem
pública ou os interesses dos capitalistas individuais. O governo teme que as greves
“abram os olhos dos operários”. Lenin se utiliza de um exemplo do ministro do
In­terior alemão – ele não diz o nome - que ficou famoso por suas ferozes persegui­
ções contra os socialistas e os operários conscientes. Tal ministro alemão, decla­

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O mundo do trabalho através do cinema

rou uma ocasião, não sem motivo, perante os representan­tes do povo: “Por trás de
cada greve aflora a hidra da revo­lução”.
Portanto, o sentido pedagógico-político das greves é muito claro para Lenin.
Para ele, durante cada greve cresce e desenvolve-se nos operá­rios “a consciência
de que o governo é seu inimigo” e de que a classe operária deve preparar-se para
“lutar contra ele pelos direitos do povo”. A luta operária se coloca no plano da
luta pelo “direito do povo” a uma vida e trabalho digna. A consciência de classe
necessária desenvolve-se a partir da luta sindical que torna claro quais os inimigos
de classe dos operários (o governo autocrático-burguês como representante da
classe dos capitalistas). A greve torna-se, como dizem os socialistas, uma “escola
de guerra” (guerra de classes), ensinando os operários a unirem-se e que, como
observa ele, “somente unidos podem agüentar a luta contra os capitalistas”; ou
ainda, “as greves ensinam os operários a pensarem na luta de toda a classe operá-
ria contra toda a classe patronal e contra o governo autocrático e policial”.
Entretanto, a posição dos marxistas, expressa por Lenin, não é superestimar
o valor das greves operárias; ou mesmo da greve geral dos trabalhadores assa-
lariados contra o poder do capital. Depois de salientar a importância da união
dos operários em sua luta contra os capitalistas, Lenin critica a posição política
daqueles que pensam que a classe operária pode limitar-se às greves e às caixas
ou socieda­des de resistência; que apenas com as greves, a classe ope­rária pode
conseguir uma grande melhora em sua situação e até sua própria emancipação.
Como marxista, Lenin conhece os limites das greves. Diz o revolucionário russo:
“As greves são um dos meios de luta da classe operária por sua emancipação, mas
não o único, e se os operários não prestam atenção a outros meios de luta, atrasam
o desenvolvimento e os êxitos da classe operária” [o grifo é nosso]. Pode-se dizer
que, o final do filme “A greve”, possui um caráter marxista-leninista.
Primeiro, Lenin trata dos limites das greves operárias no capitalismo de for-
ma concreta, utilizando o exemplo da luta de classes na Rússia autocrática em
1898. Ele pondera: “Para que as greves tenham êxito são necessá­rias as caixas de
resistência, a fim de manter os operários enquanto dure o conflito. Os operários
(comumente os de cada indústria, cada ofício ou cada oficina) organizam essas
caixas em todos os países, mas na Rússia isso é extrema­mente difícil, porque a
polícia as persegue, apodera-se do dinheiro e prende os operários”. Entretanto,
o regime autocrático-burguês na Rússia czarista age de forma truculenta com as
caixas de resistência, impedindo a sua eficácia, limitando – na prática - portanto o
direito dos trabalhadores assalariados à greve; e Lenin prossegue dizendo:

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Trabalho e Cinema • Volume 4

“Naturalmente, os operários sabem resguardar-se da polícia; naturalmente,


a organiza­ção dessas caixas é útil, e não queremos dissuadir os operá­rios de se
ocuparem disso. Mas não se deve confiar em que, estando proibidas por lei, as cai-
xas operárias possam con­tar com muitos membros; e sendo escasso o número de
cotizantes, essas caixas não terão grande utilidade”. Enfim, em paises capitalistas
de regime autocrático, paises capitalistas que não reconhecem o direito de greve
e o direito das caixas de resistência, o instrumento da greve torna-se bastante li-
mitado – mais limitado do que comumente é, como instrumento de luta de massa
contra o poder do capital.
Mas Lenin não quer argumentar sobre os limites das greves utilizando apenas
o exemplo do caso russo. As greves são limitadas, não apenas em países capita-
listas de regime político autocrático. Até nos países em que existem livremente
as associa­ções operárias, e onde são muito fortes as caixas, diz Lênin, até neles a
classe operária de modo algum pode limitar-se às greves em sua luta. E diz: “Basta
que sobrevenham dificuldades na in­dústria (uma crise, como a que agora se apro-
xima da Rús­sia, por exemplo), para que os patrões premeditadamente provoquem
greves, porque às vezes lhes convém suspender temporariamente o trabalho e lhes
é útil que as caixas ope­rárias esgotem seus fundos”. O que significa que, mesmo
que tenham direito de greve, ou mesmo direito às caixas de resistências, os ope-
rários, numa situação de crise da economia capitalista, crise cíclica que acomete o
modo de produção de mercadorias, nada podem fazer, tendo em vista que os capi-
talistas, sabendo a importancia das caixas de resistência, procura esvazia-las para
deixarem os operários à mercê da sorte. Por isso ele conclui: “Daí não poderem
os operários limitar-se, de modo algum, às greves e às sociedades de re­sistência”.
Em segundo lugar, Lenin argumenta que, “as greves só são vitoriosas quan­do
os operários já possuem bastante consciência, quando sabem escolher o momento
para desencadeá-las, quando sa­bem apresentar reivindicações, quando mantêm
contato com os socialistas para receber volantes e folhetos”. Enfim, as greves pres-
supõem - para sua eficácia político-sindical - um nível elevado de consciência de
classe, capaz de articular a dimensão estratégico-instrumental e a dimensão polí-
tica. Entretanto, mais uma vez, ele reconhece os limites postos pelo “atraso russo”.
Diz ele: “Mas ope­rários assim ainda há muito poucos na Rússia, e é necessá­rio
fazer todos os esforços para aumentar seu número, tor­nar conhecida nas massas
operárias a causa operária, fazé-las conhecer o socialismo e a luta operária. Esta é
a mis­são que devem cumprir os socialistas e os operários consci­entes, formando,
para isso, o partido operário socialista”. Enfim, os socialistas marxistas na Rússia

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O mundo do trabalho através do cinema

tinham um trabalho pela frente de organização e formação das massas operárias,


educando-as e faze-las conhecer o socialismo e a luta operária. A eficácia das gre-
ves depende, deste modo, do nível de organização política dos operários.
Em terceiro lugar, Lenin conclui salientando a função heurístico-politica das
greves, que é mostrar aos operários que “o governo é seu inimigo e que é preciso
lutar con­tra ele”; e diz que, “as greves ensinaram gradualmente à classe operária,
em todos os países, a lutar contra os gover­nos pelos direitos dos operários e pe-
los direitos de todo o povo” (o grifo é nosso). A idéia de que as greves ensinam
gradualmente mostra o sentido processual da formação da consciencia de classe
em-si e para-si. É preciso respeitar a dinâmica do processo de formação do em-si
e para-si da classe. Mas ela não ocorre espontaneamente. Por isso, Lenin conclui
seu primoroso artigo de 1898, dizendo: “Como já dissemos, esta luta só pode ser
levada a cabo pelo partido operário socialista, através da difusão entre os operários
das justas idéias sobre o governo e sobre a cau­sa operária” [o grifo é nosso].
O partido político do proletariado, de acordo com Lenin, é o mestre da “es-
cola de guerra”, que são as greves operárias. Mas como ele observa, uma “escola
de guerra” não é a própria guerra, o que significa que, segundo ele, “as gre­ves
são apenas um dos meios de luta, uma das formas do movimento operário”. A
conclusão do artigo “Sobre as greves”, escrito em fins de 1899, é quase apoteótico,
contendo ditames categóricos sobre o desenvolvimento da luta de clases na Rús-
sia. Diz ele:
“Das greves isoladas os operários podem e devem passar, e passam realmente,
em todos os países, à luta de toda a classe operária pela emancipação de todos os
trabalhadores. Quando todos os operários conscientes se tornam socialistas, isto
é, quando tendem para esta eman­cipação, quando se unem em todo o país para
propagar en­tre os operários o socialismo e ensinar-lhes todos os meios de luta contra
seus inimigos, quando formam o partido operário socialista, que luta para libertar
todo o povo da opressão do governo e para emancipar todos os trabalha­dores do
jugo do capital, só então a classe operária se in­corpora plenamente ao grande mo-
vimento dos operários de todos os países, que agrupa todos os operários, e hasteia a
bandeira vermelha em que estão inscritas estas palavras: “Proletários de todos os
países, uni-vos!” [os grifos são nossos].
Torna-se visível o sentido progressivo da ação revolucionária nas condições
da luta de classes não apenas na Rússia, mas em outros paises (Lenin a todo mo-
mento salienta a importante da sincronia histórica entre o movimento operário na
Russia com o movimento operário de outros paises, compreendendo a necesidade

195
Trabalho e Cinema • Volume 4

do internacionalismo operário). A ênfase categórica na dinâmica processual da


luta de classes é firme e segura (das lutas operárias isoladas passa-se à luta geral):
luta de toda a classe operária visando à emancipação de todos os trabalhadores.
Naquela época, a ênfase de Lênin na passagem das lutas operárias isoladas
para a luta geral de toda classe operária visando à emancipação de todos os tra-
balhadores, não se trata de um imperativo categórico kantiano, ou seja, um mero
“dever ser” do proletariado a ser proclamado in abstracto, mas sim, a percepção e
entendimento do movimento efetivo do processo histórico no interior da qual se
movimentava as greves operárias. Na verdade, a passagem do século XIX para o
século XX, presenciou na Rússia e nos vários países capitalistas industrializados,
a ascensão do movimento operário (ocorreu um acúmulo de forças sociais que
desembocaria na Revolução Russa de 1905). Por isso, a conclamação de Lênin em
1898 não se tratava de mero “dever ser” kantiano, mas sim a percepção e enten-
dimento do modo de ser da processualidade histórica da luta de classes com suas
possibilidades concretas e candentes de “negação da negação”.
Entretanto, Lenin explicitou o pressuposto político-ideológico da processuali-
dade histórica capaz de engendrar o movimento efetivo de “negação da negação”.
A ontologia da processualidade histórica impunha uma pré-condição material
para que isto possa ocorrer: todos os operários conscientes se tornam socialistas.
Desde que todos eles se unam em todo o país para propagar en­tre os operários
o socialismo e ensinar-lhes todos os meios de luta contra seus inimigos, quando
formam o partido operário socialista, o movimento efetivo do processo histórico,
não apenas na Rússia, mas em todos os paises, tornar-se-á “a luta de toda a classe
operária pela emancipação de todos os trabalhadores.” Por isso, a conclamação
política fundamental de Marx, citada por Lenin no final de seu artigo: “Proletá-
rios de todos os países, uni-vos!”.
O filme “A greve”, de Sergei Eisenstein, o primeiro filme do cineasta soviético,
incorpora na forma fílmica, o sentido revolucionário das idéias de Lenin sobre a
greve. Primeiro, no filme, Eisenstein utilizou, como salientamos acima, o coletivo-
-em-movimento como personagem principal. Depois, a dimensão processual da
formação do em-si da classe que alcançou o cume com a greve; e finalmente, o
desdobramento trágico da greve nas condições da autocracia burguesa da Rússia
de 1898. Na verdade, o filme de Eisenstein serviu como uma lição sobre o valor e
limites da ação grevista, exortando o proletariado para aprender com suas tragé-
dias históricas.

196
O mundo do trabalho através do cinema

A Primeira Parte do filme “A greve” intitulou-se “Na Fábrica tudo está tran-
quilo”. Antes de ser um intertítulo da primeira parte do filme, trata-se de uma
observação que se dá no plano da imediaticidade fenomênica da coisa. Num pri-
meiro momento, nada percebemos de movimento da coisa em si e para si. A cha-
miné da fábrica, a expressão de bonança do diretor e o funcionamento febril dos
escritórios da administração expressam a percepção imediata de que tudo está em
calma na fábrica. Mas aquela percepção é tão-somente a pseudo-concreticidade
da vida cotidiana. Para o filosófo Karel Kosik, a pseudo-concreticidade da vida
cotidiana é constituída pelo “complexo dos fenômenos que povoa o ambiente co-
tidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, ime-
diatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo
um aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcerticidade”.
Kosik discrimina os elementos compositivos do mundo da pseudoconcreticidade
da vida cotidiana. São eles:
• o mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à superfície dos
processos realmente essenciais;
• o mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da praxis fetichizada dos
homens (a qual não coincide com a praxis crítica revolucionária da hu-
manidade);
• o mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos
externos na consciência dos homens, produto da praxis fetichizada, for-
mas ideológicas de seu movimento;
• o mundo dos objetos fixados, que dão a impressão de ser condições natu-
rais e não são imediatamente reconhecíveis como resultados da atividade
social dos homens.
Deste modo, o filme “A greve”, de Serguei Eisenstein, nos apresenta, num
primeiro momento, o mundo da pseudo-concreticidade da vida cotidiana onde
tudo parece estar tranquilo. Entretanto, como iremos verificar, logo a seguir, exis-
te um movimento oculto de intranquilidade e inquietação operária na fábrica.
Na verdade, a intranquilidade operária é um processo realmente essencial, oculto
pela estrutura da pseudo-concreticidade da vida cotidiana fetichizada. A raiz da
intranquilidade operária origina-se na exploração da força de trabalho que torna
as condiçõs de vida dos operários desumanas e indignas. Foi o que V.I. Lenin
salientou no artigo comentado acima. Como a exploração da força de trabalho
na situação da Rússia czarista assumiu grandes proporções por conta do desen-

197
Trabalho e Cinema • Volume 4

volvimento da grande indústria, a inquietação operária tornou-se latente, dando


origem a uma série de greves operárias na virada do século XIX para o século XX.
Entretanto, de modo dialético, a exposição do filme de Eisenstein nega, logo
a seguir, a percepção de tudo está em calma na fábrica. Diz os intertítulos: “Tudo
está em calma, mas...”. A palavra “mas”, em russo (ho) dá um giro de 90 graus e a
letra “o” torna-se a roda do mecanismo da fábrica. Em ação, a criatividade de S.
Eisenstein. Na verdade, diz o intertítulo seguinte: “Há um conflito incubando-se”
– pode-se traduzir por “latente” ou “em gestação” (a versão portuguesa de Portu-
gal diz literalmente: “Os rapazes arrumaram um banzé”). Em inglês, o intertítulo
diz “trouble is brewing”. Enfim, as imagens do filme mostram operários sussu-
rando e conspirando, conversando às escondidas sob a espia do capataz inquieto.
Ele – o capataz – sabe que nada está tranquilo. Como personificação do capital, os
capatazes desconfiam que algo está ocorrendo. (o intertítulo da versão portuguesa
de Portugal diz: “Começaram a mexer-se”).

Finalmente, os capatazes avisam à direção da empresa – o diretor – que os


operários tramam algo: “Informam do acontecido”. O diretor começa a praguejar,
vocifera furiosamente; e diz o título: “Agitaram-se todas as instâncias” ou “Através
da hierarquia...”. Põem-se em movimento a cadeia de comando do poder do capi-
tal. O diretor da fábrica avisa o proprietário da fábrica – o capitalista – que, por
conseguinte, avisa o Chefe de polícia, que se comunica com o Inspetor de polícia,
que movimenta sua estratégia de investigação: “Traga-me os arquivos do distrito
fabril”. Ele quer ativar “agentes privados” da polícia política para acompanhar o
movimento operário.
Deste modo, a mera movimentação operária intranquiliza a organização do po-
der do capital (capatazes, gerente, diretor, capitalista, Chefe de polícia, inspetor de

198
O mundo do trabalho através do cinema

polícia e seus investigadores “espiões”). O capital é um sistema de controle social que


possui expressões objetivas nos aparatos de poder gerencial, administrativo, policial,
político e militar. Eis a dimensão da exterioridade que controla o movimento social.
A inquietação do poder do capital obriga-o a mobilizar seus agentes de con-
trole exterior (os espiões), que buscam identificar os operários organizadores do
movimento grevista. Eisenstein apresenta os agentes espiões do poder do capi-
tal com nome de animais pitorescos. Ele se utiliza de metáforas para abordar, de
modo satírico, a similaridade dos espiões com animais. Aparece uma lista de espi-
ões a serviço da burguesia: “O macaco, o Calado, o Patriarca, o Civil, Zoya, o Bul-
dogue, a Raposa, o Alfaiate, o Pastor, o Mocho, o Provisório”. Trata-se de apelidos
– não codinomes - que remetem a animais. Destacam-se a Raposa, que se travesti
de cego; o “Mocho”, o “Macaco”, o “Buldogue”.
A primeira parte do filme é a preparação para uma guerra anunciada. Por um
lado, o poder do capital articula seus informantes que se travestem para espionar
o movimento operário na fábrica. De outro, os operários, o grupo de ativistas se
encontram às escondidas, fazendo seus preparativos para a greve.
Existem debates internos no grupo de ativistas. Uns ainda duvidam se deve-
riam ou não ir à greve. Diz o intertítulo: “Seria melhor se não fôssemos à greve”.
Um operário diz: “estamos encurralados, então, há que fazer greve”; mas outro
observa: “A nossa gente não presta para isso; um outro discorda: não vai haver
uma oportunidade de greve melhor”. Enfim, há que declarar greve! A decisão de
ir à luta é firme.
Os ativistas procuram agitar em todas as direções. Atuam em massa. Envol-
vem-se com atividades culturais dos operários, trabalhando também no seio das
massas populares com seus pic-nics e bailes. Fazem panfletagem e chamamentos
na clandestinidade. Procuram manter em sigilo os preparativos, apesar de que nos
bastidores os espiões também atuam. Nos preparativos, salienta-se a importancia
da propaganda. Eles sabem que são alvo de espioões. Mas prosseguem com reu-
niões clandestinas. Finalmente, exclamam: “Chega de aguentar! À greve! À luta!”.
A Primeira parte do filme encerra-se com a plena negação da afirmação inicial
de que tudo está em calma na fábrica. Eis a dialética do movimento operário: da
pseudo-concreticidade à praxis social que nega o estado de coisas existente.
A ação de propaganda caracteriza-se pela panfletagem nas fábricas: “Chega!
Não se pode suportar mais. À greve, camaradas, à luta!”. No auge dos preparativos
da greve operária, a afirmação ideológica da organização e luta dos proletários.
Diz um intertítulo: “Proletários de todos os países, uni-vos!”. Depois, ouve-se a

199
Trabalho e Cinema • Volume 4

convocação do PSDR (Partido Social-Democrata Russo) bolchevique: “À luta, ca-


maradas! E a exclamação: “Camaradas, a vida do homem trabalhador é pesada!
À greve, camaradas! À luta! São os dizeres de panfletos assinado pelo PSDR dos
bolcheviques. É o partido político dando a direção política da insatisfação operá-
ria. Diz o intertítulo: “Os rapazes estão a atuar”.
A segunda parte do filme intitula-se “O motivo da greve”. Num primeiro
momento, a greve aparece como uma necessidade histórica para os operários e
operárias da fábrica. Eles fazem agitação e propaganda conclamando à greve.
Fazem-se preparativos. Mas quando ocorrerá a deflagração da greve ? É preciso
que surja um motivo capaz de impulsionar (e disparar) o movimento de rebeldia
operária. A inquietação operária e a propaganda sindical e política não são atos
auto-suficientes para deflagrar o movimento grevista. Nas condições da greve
operária em regimes autocrático-burgueses, o ato contingente capaz de irromper
a rebeldia operária torna-se um ato necessário. Portanto, é preciso que ocorra, no
plano da vida cotidiana, o momento certo, ou seja, o ato contingente deflagrador
capaz de provocar a dirupção operária.
O ato disparador da greve operária foi o roubo do micrometro que levou ao
suicídio de um operário no local de trabalho. Trata-se de um choque emocional
de amplas proporções para o coletivo operário. O roubo do micrometro pôs em
movimento uma série causal de acontecimentos imprevisíveis que culminou no
suicídio do operário no local de trabalho e a indignação e revolta operária que
se dissemina por toda a fábrica. Portanto, temos um complexo de causalidades
imediatas da greve que irrompeu a partir de um ato contingente: o suicídio de um
operário no local de trabalho. Não se trata apenas de um suicídio de um operário,
mas sim, o suicídio daquele operário no local de trabalho.
O micrômetro é um instrumento de medição que visa a aferir as dimensões
de um objeto - espessura, altura, largura, profundidade, e tem grande uso na in-
dústria mecânica, medindo toda a espécie de objetos, como peças de máquinas.
Diz o intertítulo: “O micrometro vale 25 rublos”. Logo a seguir, temos a tradução
real do valor do micrometro: “3 semanas de trabalho para pagá-lo” (o intertítulo
em português diz: “Serão 3 semanas de trabalho no interesse do Czar”).
Ao constatar o furto do micrometro, o operário desespera-se. Dirige-se a con-
tadoria para denunciar a perda. Os capatazes exclama: “Até agora, não havíamos
tido ladrões”. Eles desconfiam do operário. O gerente da fábrica imputa-lhe a au-
toria do furto. Diz o intertítulo: “O ladrão é ele. LADRÃO!”. O operário desespera-
-se com a falsa imputação que denigre a sua honra pessoal. Talvez a acusação de

200
O mundo do trabalho através do cinema

ladrão dói-lhe mais que a obrigação de ter que pagar os 25 rublos, sacrificando
deste modo, 3 semanas de trabalho. Desesperadao, o operário comete suicídio na
própria fábrica.
O suicídio do operário foi um ato biopolítico que se tornou estopim para a
rebeldia operária que conduziu à greve na fábrica. Em si, o suicídio do operário no
local de trabalho, expressou a alienação em sua dimensão radical: a morte. O tra-
balhador assalariado é desefetivado a ponto de morrer; mas não apenas morrer,
mas sim, cometer suicídio. Ele renunciou à vida diante da violência moral que lhe
foi imposta pela gerencia da fábrica. Yakov Strongen foi humilhado, injustamente
acusado por um ato que não cometeu, sendo, portanto, vítima de “assédio moral”.
O operário suicida deixou o seguinte bilhete para seus companheiros de fábri-
ca: “Camaradas! O chefe acusou-me de roubo. Não sou culpado, mas não posso
prová-lo. Não posso deixar a fábrica com o estigma de ladrão. Por isso, decidi
suicidar-me. Adeus e lembrem-se de que não sou culpado. Iakov Strongen” (o in-
tertítulo em portugues de Portugal diz: “Lembrai para sempre que sou inocente”).
O assédio moral e a humilhação são hoje atos comuns nos locais de trabalho
das grandes empresas capitalistas submetidas à concorrência mundial. É intrínse-
co às novas formas de gestão capitalista sob o espírito do toyotismo, as práticas de
pressão pessoal para cumprimentos de metas e resultados, que levam, no limite,
à humilhação de empregados e operários. É claro que nem toda violência moral
leva ao suicídio, como ocorreu com Yakov Strudine. Embora possamos dizer que,
nos últimos dez anos, o número de suicídios evidentemente relacionados ao tra-
balho cresceu enormemente, tendo em vista a nova lógica de produção capitalista
baseada na superexploração do trabalho. Entretanto, oculta-se o fato social da
sociedade. Na verdade, o assédio moral e a humilhação são modos de precari-
zação do homem-que-trabalha, corroendo a auto-estima de homens e mulheres
trabalhadoras e no limite, anulando sua dimensão humano-genérica. No caso, de
Yakov Strudine, a violência moral cometida numa sociedade de laços comunitá-
rios, onde o valor da honra pessoal é incomensurável, significou a própria morte
do homem-que-trabalha. O estigma de ladrão tornou-se um fardo imenso para
Yakov Strongen, levando-lhe a renunciar a própria vida.
A humilhação é um sentimento de ser ofendido/a, menosprezado/a,
rebaixado/a, inferiorizado/a, submetido/a, vexado/a, constrangido/a e ultrajado/a
pelo outro/a. É sentir-se um ninguém, sem valor, inútil. Magoado/a, revoltado/a,
perturbado/a, mortificado/a, traído/a, envergonhado/a, indignado/a e com raiva.
A humilhação causa dor, tristeza e sofrimento.

201
Trabalho e Cinema • Volume 4

Assédio moral pode ser definido como sendo a exposição dos trabalhadores e
trabalhadoras a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas
durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções, sendo mais comuns
em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, em que predominam condu-
tas negativas, relações desumanas e aéticas de longa duração, de um ou mais chefes
dirigida a um ou mais subordinado(s), desestabilizando a relação da vítima com o
ambiente de trabalho e a organização, forçando-o a desistir do emprego.
Mas Yakov Strongen escolheu tirar a própria vida no local de trabalho. Por isso,
seu suicídio tornou-se um ato biopolítico, pois expressou, em sua insanidade, a ra-
zão contestatória do homem explorado e oprimido pelo capital. O local de trabalho
não é um local qualquer, mas sim é o local supremo da exploração, onde se extrai
a mais-valia que alimenta a acumulação de capital. Ao cometer suicídio no local de
trabalho, Yakov Strongen cometeu uma blasfêmia contra a ordem burguesa, que
oculta às misérias da exploração e espoliação que lhe são inerentes. Por isso, o sui-
cídio no local de trabalho tornou-se o ato deflagrador da greve operária anunciada.
É interessante salientar a frase final contida no bilhete deixado pelo operá-
rio que repete a derradeira exortação do filme: “Lembrai para sempre” (de acor-
do com o intertítulo em português de Portugal). No final do filme, como iremos
analisar mais adiante, após a cena do massacre de operários e operárias em gre-
ve pelas forças policiais do Czar, sangrados como o boi no matadouro, o último
intertítulo do filme exorta os operários, a lembrar-se das cicatrizes sangrentas e
incuráveis no corpo do proletariado.
Indignados com o suicídio do camarada Yakov Strongen no local de trabalho,
os operários exclamam: “Basta de trabalhar!”. E exigem que o Chefe se apresente
para esclarecer a situação. Na verdade, a cena do suicídio do operário na fábrica
é a cena de inflexão da trama filmica. É o momento contingente – o “acidente” –
que provoca um salto qualitativamente novo no desenrolar da narrativa filmica.
Os operários indignados agitam-se pela oficina de montagem. Fazem assembléias
repentinas para decidir pela greve operária. Chegou o momento da paralisação
da fábrica capitalista que começa pelo chão-de-fábrica. Diz o intertítulo em por-
tuguês de Portugal: “A velha oficina de fundição obstinou-se”. Os operários excla-
mam: “Rapazes, vamos destituí-los!”. Depois dizem: “Ao escritório, camaradas!”. E
ainda: “Não abram as portas. Não deixem ninguém entrar, nem sair.” A massa de
operários agita-se no interior da fábrica.
O assalto ao escritório é o assalto ao local do controle operário. Ao invés do
chão-de-fábrica, o escritório é o local onde se administra a exploração e espo-

202
O mundo do trabalho através do cinema

liação da força de trabalho. Por isso, a cena do local do escritório desolado é a


própria cena de paralisia da exploração capitalista.
A indignação em massa torna os operários e operárias auto-confiantes do
seu poder social. Por um lapso de tempo, durante a greve, os operários se re-
-apropriam daquilo que lhe foi alienado: o controle da produção. Entretanto,
trata-se de uma re-apropriação negativa, pois eles se re-apropriam da produção,
paralisando-a. Na verdade, querem afirmar o poder do trabalhador coletivo do
capital que se volta contra as relações sociais de produção capitalista. Exclamam:
“Sem nós, as máquinas pararão... a fábrica perecerá...! Teremos o poder se nos
unirmos na luta contra o capital!” (o intertítulo em português de Portugal diz
ainda: “Temos força, somos uma força quando unidos na luta contra o capital”).
O deflagar da greve operária é um dos momentos brilhantes do filme de Ei-
senstein. Trata-se de preciosas imagens do coletivo-em-movimento: homens,
mulheres, e inclusive crianças, ocupando espaços da produção, alienados de si,
afirmando seu poder social. A greve não é uma festa, mas sim uma catarse coletiva
que conduz as massas de homens e mulheres que trabalham a ocupar espaços,
irrrompendo-se como uma enxurrada pelas vias do complexo industrial. Por um
lapso de tempo, o trabalho vivo desperta, rompendo os diques da pseudo-concre-
ticidade da vida cotidiana. Implode-se a cotidianidade alienada e estilhaça-se o
fetichismo social. Nunca o cinema mundial expressou as massas em movimento
diruptivo como no filme “A greve” de S. Eisenstein.
A montagem da cena final da segunda parte do filme representa a afirma-
ção do poder social do trabalhador coletivo em movimento contra o capital. Num
primeiro momento, a imagem da máquina em movimento. Depois, sobreposto
a ela, a imagem de três operários altivos que, olhando fixamente para o público,
cruzam os braços; aos poucos, a máquina desacelera e pára sob a pressão do olhar
altivo dos operários; finalmente, a imagem da máquina paralisada, desaparece; e
impõem-se, de vez, a imagem dos três operários, com braços cruzados, altivos e
orgulhosos símbolos do poder operário.
Os operários rebelam-se contra a administração da fábrica, jogando o Chefe
e seu capataz, na lama. Estupefato com a reação operária, o Chefe exclama: “Por
que não me informaram disto antes?”. Na verdade, o suicídio do operário e a onda
de indignação e revolta dos companheiros operários de Iakov Strongen, foi um
fato imprevisível, um “acidente” na processualidades dos acontecimentos de in-
quietação operária.

203
Trabalho e Cinema • Volume 4

No movimento da dialética histórica, os “acidentes” tem um papel crucial.


Como observou Marx a Kugelmann, “a história mundial seria na verdade muito
fácil de fazer-se, se a luta fosse empreendida apenas nas condições nas quais as
possibilidades fossem infalivelmente favoráveis.” E prossegue: “Seria, por outro
lado, coisa muito mística se os “acidentes” não desempenhassem papel algum.
Esses acidentes mesmos caem naturalmente no curso geral do desenvolvimento
e são compensados outra vez por novos acidentes. Mas a aceleração e a demora
são muito dependentes de tais “acidentes”, que incluem o “acidente” do caráter
daqueles que de início ficam à frente do movimento” (MARX, 1986). Portanto,
ao lado das circunstâncias objetivas, legadas e transmitidas pelo passado; com as
causalidades necessárias dadas pela dinâmica da acumulação de capital; e com as
contradições inerentes ao sistema produtor de mercadorias, existem os “acidentes”
intrínsecos ao curso geral do desenvolvimento histórico – “acidentes”, compensa-
dos por novos “acidentes”; e –reconhece Marx o papel do individuo na história
– “acidentes” de caráter das lideranças dos movimentos, que aceleram ou atrasam
o processo de desenvovlvimento histórico.
A terceira parte do filme intitula-se “A fábrica parou completamente”. Ei-
senstein começa com imagens de animais de estimação da comunidade operária:
patinhos, gatinhos e porquinhos imersos na fruição natural da vida. Entre eles,
crianças pequenas... Depois da febril agitação operária que paralisou a fábrica
completamente, temos cenas da nova cotidianidade operária. O local é o bairro
operário. Trata-se de um espaço comunitário que preserva amplamente traços
agrários. Depois do vendaval, a doce ressaca do não-trabalho. Ao quebra-se a
pseudo-concretividade da vida cotidina, impõe-se a concreticidade do cotidiano
do não-trabalho. Não se trata de tempo livre ou tempo disponível, mas sim do
não-tempo do não-trabalho onde se rompe com a lógica do trabalho abstrato.
Pela manhã, o filho pequeno insiste com o pai operário, sem saber que ele está
em greve: “Levante-se! Está na hora de ir trabalhar!”. A greve suspende a rotina
cotidiana na qual está imerso não apenas o operário, mas a sua família – mulher e
filhos. Devido à paralisação da fábrica, o pai dorme até tarde, acorda e brinca com
o filho pequeno na cama. Enfim, ele frui o tempo para si e seus entes queridos.
O filme mostra cenas da fábrica paralisada, com pombos descansando nas
engrenagens das máquinas paradas e pássaros aninhados na sirene da fábrica. A
cena da fábrica parada é desoladora. Em contraste, imagens de crianças, filhos e
filhas de operários, brincando de fazer greve. É a socialização pelo exemplo da
luta dos pais. Diz o intertítulo: “Imitando os pais”. No lugar do Chefe no carrinho

204
O mundo do trabalho através do cinema

de mão, as crianças utilizam uma cabra. Na brincadeira infantil, personas do ca-


pital aparecem como figuras de animais.
Na aldeia operária, o novo cotidiano se arrasta para homens e mulheres so-
cializados para a jornada de trabalho. A paralisia da fábrica é também a paralisia
da força de trabalho, suspensão do trabalho morto e supremacia do trabalho vivo.
Mais uma vez, as crianças assumem a cena do filme, brincando de trabalho do-
méstico. Na verdade, com a greve, impõem as cenas familiares ocultas pela rotina
da exploração capitalista: a cena da felicidade no banho do filho pequeno; a crian-
ça engraxando a bota do pai; a cena da família reunida à mesa. Cenas de vida ir-
rompem, ao suspender-se a rotina da vida desumanizada pelo trabalho alienado.
Enquanto isso, os operários permanecem à espera dos desdobramentos da greve,
observando o desenrolar do novo cotidiano – o cotidiano entre parêntese ou coti-
diano extraordinário do não-tempo de não-trabalho. Entretanto, não são apenas
os operários que estão à espera do próximo elo que compõem a processualidade da
greve. Após expor o cotidiano dos operários em suas moradias humildes, Eisens-
tein nos mostra o diretor da fábrica inquieto, sentado na sua varanda, tomando
sua taça de vinho, fumando seu charuto, à espera do desenrolar da greve. Ele não
tem família. É um homem solitário que divaga em seus raciocínios instrumentais.
A persona do capitalista esta preocupado com a paralisia da produção. Diz o in-
tertítulo: “Estão a chegar novas encomendas”. Entretanto, a fábrica está parada.
O diretor da fábrica revolta-se, pois está tendo prejuízos. Está furioso com a
greve operária. Ele atormenta-se com a percepção de que a fábrica não funciona
sem operários e operárias. Diz o intertítulo: “Tudo o que sustenta seus tronos, é
criado pelos operários...” Logo a seguir, temos a cena na floresta descampada com
operários reunidos em assembléia. O coletivo-em-movimento atua como um cor-
po só. Enquanto o burguês (e o operário isolado) é um homem solitário; o homem
proletário organizado é um homem coletivo.
Após a cena da assembléia de operários e operárias na floresta descampada,
em contraste, aparecem, logo a seguir, os corredores do setor administrativo da
fábrica totalmente esvaziado, apenas um gato circulando a esmo no meio de pa-
péis espalhados pelo chão (o cinema de Eisenstein utiliza imagens de contraste e
imagens de metáfora). É a fábrica desolada como um velho cemitério abandonado.
Ao mesmo tempo, em sua sala, o diretor da fábrica está angustiado com a parali-
sia completa da produção. Como homem burguês, ele está em completa solidão.
Ninguém lhe cerca. Transtornado, nem a máquina de escrever lhe obedece. Não
consegue escrever nela. Exclama: “Estás também em greve?”.

205
Trabalho e Cinema • Volume 4

Enquanto isso, reunidos na clareira da floresta, operários e operárias estão a


formular suas reivindicações. Diz o intertítulo: “Exigimos a jornada de trabalho
de 8 horas”; e depois: “Exigimos tratamento com respeito por parte da adminis-
tração” – uma reivindicação elaborada pelas mulheres operárias, vítimas de assé-
dio sexual; e depois: “Exigimos o aumento de 30% dos salários para todos”.
As cenas da discussão operária elaborando suas reivindicações são mescladas
com cenas da fábrica esvaziada, o transtorno do capitalista em seu escritório, cir-
culando pelos corredores vazios da fábrica, as máquinas paradas e logo a seguir,
numa passagem, a cena do batalhão policial limpando as boinas, talvez se prepa-
rando para entrar em ação. Esta é a dialética do movimento coletivo que nega o
estado de coisas existente: a contra-revolução nasce no seio da própria revolução.
No bojo da rebeldia operária, engendra-se, na mesma medida - e com maior in-
tensidade - a reação policial a serviço do capital. A paralisia da produção do capi-
tal põe em alerta as forças da repressão policial. É questão de tempo a intervenção
da força bruta.
Após elaborarem as reivindicações, as lideranças operárias saem em grupos,
dispostas a comunicar a todos a sua pauta de reivindicação: “Não há covardes,
nem traidores, entre nós”; e depois exclamam: “Defenderemos nossas exigências
até o final”. É a intransigência do poder operário que luta pela justiça salarial. As
reivindicações operárias são reivindicações econômicas que visam dar minima-
nete vida digna às famílias operárias. Não se reivindica o controle operário da
produção, nem se atenta contra a propriedade privada e a divisão hierárquica do
trabalho. A luta operária reivindica apenas redução da jornada de trabalho, me-
lhores salários e respeito no local de trabalho.
Logo a seguir, reunidos numa ampla sala da rica mansão, os acionistas da
fábrica – um pequeno grupo de quatro capitalistas bonachões, membros do alto
círculo de poder industrial na Rússia, reunidos em torno da mesa, degustando
avidamente seus charutos, avaliam a pauta de reivindicações dos operários: “Uma
jornada de trabalho de 6 horas diárias para menores”. Eles observam: “Exigem
que o salário seja subido 30%!”. Ficam inquietos com a pauta de reivindicações.
Ponderam com baforadas de charuto. Um deles exclama: “Isso é monstruoso! Ma-
nifestações políticas na fábrica!”. Outro capitalista vocifera: “Isso é abominável!”
(o intertítulo da versão portuguesa de Portugal diz: “Que descarados!”).
Os capitalistas – acionistas proprietários da fábrica – não aceitam as reivin-
dicações operárias. Como representantes do capital financeiro que controla a pro-
dução industrial (os acionistas é que détem o poder industrial!) são insensíveis

206
O mundo do trabalho através do cinema

às reivindicações operárias. Não é o diretor da fábrica que decide, mas sim os


acionistas, personificações supremas do capital na etapa do imperialismo, estágio
superior do capitalismo.
Enquanto os capitalistas apreciam as reivindicações operárias, entra em ação
a força policial. Temos um corte rápido para a cena dramática da cavalaria do
Czar invadindo a aldeia operária. Enquanto isso, os capitalistas, após recolherem
a pauta de reivindicações, fazem uma rodada de bebida. Exclama o capitalista
anfitrião: “E agora, senhores...” Este é o momento em que Eisenstein exerce seu
talento de cineasta da montagem intelectual. Enquanto numa cena, o capitalista
anfitrião abre a mesa de bebidas para seus parceiros convidados; noutra cena, o
batalhão de choque da cavalaria do Czar surge no horizonte, preparando-se para
dispersar a pequena multidão operária reunida em assembléia. A fruição burgue-
sa se contrasta com a repressão policial aos operários reunidos em assembléia na
floresta descampada. Esta é a primeira cena do filme que a força policial entra
em ação contra os operários. Operários e operárias se desesperam e correm pelo
descampado, perseguidos pela cavalaria policial. A multidão se dispersa em con-
vulsão. Um dos operários grita: “Sentai-vos”. A força de choque da polícia a cavalo
cerca a multidão de operários e operárias sentados. Enquanto isso, noutra cena, os
capitalistas se deleitam com charutos e bebidas.
Eisenstein quer contrastar, de um lado, a repressão policial ao movimento ope-
rário; e, por outro lado – ao mesmo tempo – a fruição burguesa cultivando a po-
sitividade da condição alienada. Um dos acionistas diz: “Oh, isto não é tudo...”. Ele
prepara batida de vodka com limão. O outro diz: “Você espreme forte e... obtém o
suco”. Enquanto isso, temos a cena de operários e operárias acuados, sentados ao
chão no descampado, constrangidos – e espremidos! - pela cavalaria policial.
A manipulação da imagem por meio da montagem intelectual provoca o má-
ximo de impacto emocional possível. Nesta importante cena do filme, Eisenstein
exercita com vigor seus recursos de manipulação de imagens que expressam con-
trastes, metáforas e ironias densamente permeadas pela perspectiva de classe social
em luta: os capitalistas espremem o limão na batida de vodka e os policiais a cava-
lo operários repreendem operários e operárias em greve.
Logo a seguir, o desprezo e a indiferença dos capitalistas pelas reivindicações
operárias é mostrada, a seguir, quando uma rodela de limão cai no sapato de um
dos capitalistas e o outro oferece a folha de papel com a pauta de reivindicações
operária para que ele possa limpar o sapato. Diz o intertítulo com ironia: “A ad-
ministração após examinar atentamente as petições dos operários com suprema

207
Trabalho e Cinema • Volume 4

atenção...”. Depois, o capitalista anfitrião chama o mordomo para limpar o chão e


jogar fora a folha de papel suja. O mordomo desce a longa escadaria da mansão e
recolhe, com asco, a folha do documento. Mais adiante, ele lê o teor do documento
e exclama: “Bela resposta”.
A seguir aparece o intertítulo: “Cada família tem sua ovelha negra”. Aparece à
cena de operários fazendo jogatina na floresta descampada, local de encontro dos
operários e operárias em greve. Mesmo entre operários, a corrosão do caráter e o
vício por apostas. Depois, aparece a cena dos capitalistas ainda reunidos e a seguir
o intertitulo: “... até muito tarde, “eles estudaram” os interesses dos operários”.
Pura ironia.
Na verdade, na terceira parte do filme, a sorte da greve operária está selada.
A intransigência patronal, o descaso sarcástico pelas reivindicações operárias e
a utilização da represssão policial pelo capital visando dispersar a assembléia de
operários e operárias, pré-nunciam o desenrolar trágico dos acontecimentos.

Na quarta parte do filme, intitulado “A greve prolonga-se”, surgem os impas-


ses do movimento grevista. É o começo do fim. O prolongamento da greve causa
transtornos aos operários e suas famílias, pois as lojas do comércio local fecham
as portas para a venda de alimentação e mantimentos. Faltou aos operários e ope-
rárias uma “caixa de resistência”. Mulheres e crianças passam fome. A imagem da
criança chorando e o intertítulo: “Ele está faminto”. Um operário desalentado é
despertado pela mulher, que lhe cobra dinheiro para comprar alimento. O casal
discute e a mulher abandona o marido. É a dissolução da família operária.
De fato, o prolongamento da greve operária tornou-se uma calamidade neces-
sária que exige da classe operária capacidade de resistencia por meio de fundos
de greve – as “caixas de resistência”. Entretanto, greves e sociedades de resistencia
tem alcances e limites (o que Eisenstein mostrou neste filme). Diante das difi-
culdades financeiras, um casal decide desfazer-se das coisas: “Venderá tudo no
mercado”. O casal - marido e mulher - discutem diante da criança. Ele recolhe
pertences da família para vender no mercado. A mulher chora desesperada, pois
vai alienar pertences pessoais. Ela oferece ao marido jóia para ser vendida no mer-
cado. Noutra cena, um operário vê-se sem tabaco para alimentar o vício. A criança
chora; e ele, impaciente, a rejeita. Ela clama: “Quero meu jantar, papai!”. Desesera-
do, o pai nada pode fazer. A fome se abate sobre a comunidade operária em greve.
Após expor, com cenas dramáticas, a calamidade que atinge as famílias ope-
rárias em greve, a quarta parte do filme nos mostra que os agentes-espiões da

208
O mundo do trabalho através do cinema

ordem burguesa estão em ação, acompanhando e perseguindo os organizadores


da greve. Como modo de controle, o capital é incansável. O intertítulo diz: “Vaga-
bundeando” (o intertítulo em português de Portugal afirma: “Perseguindo a fera
vermelha”). Na verdade, observa-se cenas da cidade em que o espião Bufo perse-
gue dois agitadores operários (na versão portuguesa de Portugal tem o intertítulo
que diz: “O Bufo pode ver de dia e de noite.”). Logo a seguir, os agitadores operá-
rios encurralam o perseguidor.
No jornal mural da cidade, a administração da fábrica se manifesta sobre
as reivindicações operárias. Diz a mensagem: “A administração após examinar
atentamente as petições, considera-as inaceitáveis pelas seguintes razões: (1) A
jornada de trabalho de 8 horas é totalmente ilegal e não depende da vontade da
administração; (2) A subida dos salários...” E mais adiante: “(3) Recomenda-se
tratamento cortês da administração para com os operários somente se eles se sub-
meterem a ela incondicionalmente...”.
Uma liderança grevista lê com discrição a mensagem publicada no jornal mu-
ral e a arranca, sob a vigilância do espião, que, à distância, tira-lhe uma foto com
um relógio de algibeira que é máquina fotográfica (uma curiosa inovação tecno-
lógica em 1925 à disposição da espionagem do capital!). A liderança grevista leva
a mensagem do jornal com a posição da administração sobre as reivindicações
operárias para um lugar combinado onde outros líderes operários se encontram.
Lá eles tomam conhecimento da posição da administração capitalista.
Enquanto isso, o espião que registrou em foto a imagem da liderança grevista
lendo o jornal mural, revela em seu laboratório a fotografia e a entrega para o ins-
petor de polícia que designa um agente-espião para encontrar o jovem operário
da foto. Na noite chuvosa, o jovem operário é perseguido por agentes policiais.
Mais uma vez, Einsenstein se utiliza de imagens de contraste: enquanto os agen-
tes da polícia política perseguem na noite escura chuvosa, o jovem operário; no
interior da limusine de luxo, logo ao lado do rapaz, um oficial da polícia se diverte
com uma mulher da noite. Ao vê-lo, ela exclama para os agentes policiais que o
capturaram: “Dêem-lhe uma surra!”. A liderença operária é presa e espancado
pelos policiais na noite chuvosa. Alguns transeuntes da noite chuvosa observam
o espancamento e exclamam perversamente: “Batam nele!”. É a expressão da per-
versidade social disseminada na sociedade autocrática.
Na verdade, a greve dos operários da fábrica não conseguiu cativar a socie-
dade civil russa – sociedade civil subdesenvolvida e gelatinosa, onde parcelas de
camadas sociais da Rússia, que vivem à sombra da burguesia, cultivam sentimen-

209
Trabalho e Cinema • Volume 4

tos de barbárie social. O regime autocrático disseminou no seio do povo, o senti-


mento de indiferença e perversidade social. Não se indignam com a truculência
policial e a repressão ao movimento operário. O que significa que a greve operária
está isolada. Esta é a expressão do começo do fim. Ao mesmo tempo, a perversi-
dade social é a dimensão do irracional que se interpõe na luta de classes do lado
do capital.
Na noite seguinte, o jovem operário, líder grevista está preso e é interrogada
por um oficial de polícia que tenta convencê-lo a trair a causa grevista (nós des-
conhecemos o nome do jovem operário preso, pois no filme “A greve”, nenhum
operário militante tem nome, apenas o operário que cometeu suicício no local de
trabalho). O chefe de polícia oferece ao jovem líder operário as benesses da cola-
boração e o ameaça com a lei: “Artigo 102: 4-6 anos de trabalhos forçados...ou...”.
Tentam persuadi-lo a colaborar. Um detalhe grotesco: enquanto o jovem operário
é assediado pelo chefe de polícia, um casal de anões dançarinos bailam ao seu
lado, sob a pequena mesa regada com champagne, frutas e guloseimas. Final-
mente, o oficial de polícia oferece discretamente dinheiro ao jovem operário. Ele
vacila. Mas acaba aceitando. Após aceitar colaborar, o jovem operário e a chefia
de polícia saem de cena. Ficam apenas o casal de anões dançarinos se deliciando
com a farta mesa de champgne, frutas e guloseimas. No começo do fim, figuras
grotescas aparecem em cena.
A seguir, em sua sala mal-iluminada, pela manhã, o oficial de polícia e o jo-
vem operário se encontram, onde o policial tenta obter informações sobre o nú-
cleo dirigente da organização da greve. Policiais observam a cena. O intertítulo
diz: “Cuidaram dele” (na versão portuguesa de Portugal diz: “Persuadiram-no”). A
chefia de polícia apresenta-lhe uma série de fotos de ativistas operários. O jovem
operário traidor vacila e finalmente, entre elas uma foto e diz: “Temperamental...
e perigoso”.
Logo depois, temos uma transição de cena, animada pela fotografia do ati-
vista operário – “Temperamental... e perigoso” (Eisenstein utilizou várias vezes
a trucagem de fotografias animadas). Lideranças da greve operária estão exami-
nando a recusa das reivindicações operárias pelos patrões. O núcleo de lideranças
operárias, constituido por 1 mulher e 4 homens, reúne-se no cemitério da aldeia.
Um deles diz: “Quem esta a favor de continuar a greve?”. Três lideranças operárias
se manifestam a favor da continuidade da greve (incluindo a mulher). A seguir:
“Quem está contra?”. Dois se manifestam contra o prosseguimento da greve. Diz o
intertítulo: “Minoria a favor de voltar ao trabalho”. A minoria se submete à decisão

210
O mundo do trabalho através do cinema

da maioria. Após a votação no comitê organizador político da greve, eles voltam


ao trabalho de organização da greve.
Enquanto isso, o chefe de polícia expede ordens de captura para as lideran-
ças operárias identificadas (a versão portuguesa de Portugal tem um intertítulo
confuso que diz: “Deve ser prendido independentemente do resultado da busca”).
Logo a seguir, no cemitério, local de reuniões das lideranças operárias, a presença
de agentes da polícia política obrigam algumas das lideranças operárias a escon-
derem-se nas tumbas.

A quinta parte do filme intitula-se “A provocação para o desaastre”. Estamos


na exposição da crônica de um desastre anunciado. Com a delação do jovem ope-
rário preso, aumenta a repressão policial. O movimento operário se enfraquece no
plano organizacional. No filme “A greve”, é frequente a presença de espiões a ser-
viço do poder capitalista – eles ocupam a maior parte do filme – demonstrando
a capilaridade do controle repressivo do capital. O filme se trata de um percurso
sinuoso e bizarro de espionagem, repressão e provocação contra o movimento
operário. No plano da luta cinzenta do sindicalismo sob as condições da autocra-
cia burguesa, a luta operária é inglória, enfrentando situações bizarras.
Algumas cenas insólitas compõem a quinta parte do filme, dedicada ao ardil
da provocação como elemento terminal do desastre da greve operária. Por exem-
plo, a cena insólita de gatos mortos pendurados como sinal de aviso para os espi-
ões da polícia política. Diz o intertítulo: “A polícia czarista não tem sensibilidade”
(o intertítulo em português de Portugal diz: “Para a polícia política todos os meios
são bons”). Logo a seguir temos a cena de encontro do agente da polícia política
num local baldio de um prédio em ruínas, com um grupo de miseráveis liderados
por uma figura grotesca: “O Rei”. A polícia política do Czar vai propor para o “Rei”
um negócio sujo.
Na verdade, numa situação extrema de luta de classes, a burguesia e seus
aparatos de poder repressivo, utilizam os mais sórdidos recursos de provocação
visando liquidar o movimento operário. O “Rei” do lumpensinato exclama: “Meus
domínios são ilimitados”. O lumpen miserável colabora com as forças da reação
burguesa. A composição da cena adquire uma forma bizarra: anões entre sucatas
e prédios em ruínas. O “Rei” apresenta-lhe o “cemitério de barris” onde saem as
mais grotescas figuras da marginalia russa, verdadeiros zumbis à serviço da pro-
vocação social. Estamos no domínio do irracionalismo, cujo metabolismo social

211
Trabalho e Cinema • Volume 4

contribui para a reprodução sistêmica da ordem burguesa em sua etapa de crise


estrutural.
Apresentam-se “tipos duros”. O negociador da polícia política exclama: “Ne-
cessito de 5 homens inescrupulosos”. De dentro dos barris saem os tipos mise-
ráveis. “O Rei” vocifera: “Todos eles são!”. Forma-se o grupo de cinco homens
descarados – como diz o intertítulo em português de Portugal. Após a composição
dos provocadores, diz o intertítulo: “Mãos à obra!”. O negócio sujo deles é provocar
o movimento grevista para criar um pretexto final para a brutal repressão policial.
Enfim, após utilizarem espiões para quebrar, por dentro, o movimento operário
grevista, as forças represssivas do capital buscam criar pretextos para quebrar, por
fora, o vigor operário.
Enquanto isso, espiões da polícia política continuam agindo, perseguindo
lideranças operárias. Diz o intertítulo: “O Macaco – trabalho no atacado; o Mo-
cho, no varejo”. Perseguem-se lideranças operárias que fazem compras na cidade.
Ocorre, mais uma vez, a perseguição policial. É importante salientar que o filme
“A greve” dedica a maior parte da sua narrativa fílmica a expor a trama policial e
política de repressão ao movimento operário, tendo em vista que a luta e organi-
zação sindical agem na clandestinidade. Neste momento, a composição das ima-
gens nas tomadas de cenas é primorosa; um verdadeiro jogo de luzes e sombras
num equilíbrio simétrico de composição de cena.
Enquanto temos cenas de perseguição policial às lideranças operárias, o “Rei”
e seus 5 homens e mulheres inescruposos organizam a provocação à passeata ope-
rária. Após uma assembléia, a multidão de operários e operárias desfila pelas ruas
da cidade. Diz o intertítulo em português de Portugal: “A caminho de volta de um
comício”. Depois, referindo-se aos provocadores: “Estão fazendo o seu “negócio”.
Eles explodem um armazém de vinhos – Loja de bebidas do Estado no. 135 – local
de passagem da passeata com a multidão de operários e operárias. Querem criar
um pretexto para acusar os operários e operárias de saquear a loja de vinhos in-
cendiada. Diz o intertítulo: “Os sequazes do Rei atuam”.
Entretanto, confiantes, os operários não se desesperam e procuram verificar
o que ocorreu. Infiltrado na passeata, uma mulher grita: “Destruir tudo...”. É uma
das sequazes do “Rei” que incita os operários a depredar o prédio, incendiado e
usufruir do vinho a disposição. Alguém percebe e exclama: “É uma provocação.
Chamem os bombeiros”. Entretanto, os policiais que acompanham a passeata im-
pedem que se aperte o botão de chamada dos bombeiros, pois aquilo tudo, trata-
-se de trama planejada pela polícia política. Diz o intertítulo: “Parem de tagarelar

212
O mundo do trabalho através do cinema

e vigiem o alarme de incêndio, ou o plano fracassará” (a versão portuguesa diz:


“Não deixa ninguém dar o sinal; do contrário, irão frustrar o negócio.”).
Entretanto, uma mulher operária, corajosamente consegue apertar o alarme
e chamar os bombeiros. Uma liderança operária discursa e acalma a multidão
dizendo: “Estão tentando incitar-nos com vodka! Não se deixem provocar!”; e
depois: “Os provocadores estão trabalhando com a polícia! Voltemos para casa,
camarada!”. O perfil das lideranças operárias que conduzem na greve no filme
é um perfil heróico, expressando uma força moral que se contrasta com o perfil
caduco dos agentes do capital, figuras bizarras, alguns identificados com animais.
O plano da polícia política e seus agentes provocadores, fracassou. A multidão
de operários e operárias regressa pacificamente para suas casas. Os bombeiros
chegam para apagar o prédio em chamas. Entretanto, um agente da polícia polí-
tica conduz os bombeiros para jorrar água na passeata de operários, ao invés de
apagar o prédio em chamas. Embora o plano da polícia política tenha fracassado,
a provocação continua. Jatos d´água são atirados nos operários e operárias, que
se dispersam atordoados. Fortes jatos d´água os encurrala num beco sem saída.
“Luta para escapar”. “Conseguem sair”. Os intertítulos reforçam a força das ima-
gens em movimento. “Escape”. Diz o intertítulo: “‘Lavando’ os chefes de grupo”.
Um operário indignado com a repressão dos bombeiros exclama: “Canalhas! So-
mos sua própria gente!”. O operário, logo a seguir, é detido. “Pegaram-no”.

A última parte do filme – a sexta parte - intitula-se “A liquidação” e expõe


a derrota da greve operária com o massacre insano do corpo do proletariado in-
dustrial. É o resultado voraz das espionagens e provocações visando desmantelar
o movimento operário. As manchetes de jornais da cidade criam o pretexto mi-
diático necessário para o desenlace final da repressão policial-militar contra o
movimento operário. Os operários grevistas, isolados e acuados, lêem estupefatos
a notícia publicada no jornal local: “No distrito fabril, os grevistas destruíram,
saquearam e incendiaram uma loja de bebidas do estado. A multidão foi dissol-
vida com água. A situação no distrito é tensa. Por ordem governamental, foram
enviadas tropas no lugar”.
Diante do impasse nas negociações com os grevistas, os capitalistas apelam
para o aparato repressivo visando dissolver, de vez, o movimento operário. “O pri-
meiro choque”, diz o intertítulo. O batalhão de choque da cavalaria do Czar invade
o distrito industrial e encontra uma pequena aglomeração de operários e ope-
rárias. Exclama: “Dispersem-se”. Enquanto isso, uma criança pequena aproveita

213
Trabalho e Cinema • Volume 4

a desatenção da mãe e dirige-se para baixo dos cavalos dos policiais, correndo
perigo de ser esmagada pelas patas dos animais. A mãe operária se desespera e
vai pegar o filho. O policial a chicoteia. Ela grita por ajuda: “Camaradas, socorro!”.
Ocorre tumulto entre os operários. Mais uma vez, um fenômeno contingente –
um “acidente” - altera o rumo dos acontecimentos na narrativa fimica. Enquanto
a criança chora num canto da cena, após ser recolhida pela mãe, observamos, ao
fundo, operários e soldados se digladiando.
Depois, os policiais a cavalo perseguem a pequena multidão de operários e
operárias desesperados. Eles se dirigem para uma fábrica. Um operário clama:
“Para a forja, camaradas! Aos martelos de forja!”. A multidão de operários fo-
gem dos policiais a cavalo. Os policiais agridem operários e operárias, mulheres e
crianças com seus chicotes. Diz o intertítulo: “Entraram nas casas”. A multidão se
dirige para suas casas no distrito industrial.
Assistimos uma escalada de brutalidade e crueldade policial nunca mostrada
pelo cinema mundial. Apesar de estarem em suas casas, os policiais a cavalo per-
seguem a multidão de operários e operárias, invadindo o complexo de apartamen-
tos (num detalhe, Eisenstein mostra, no meio de tumulto, crianças brincando).
Diz o intertítulo sobre os policiais: “Comportam-se como animais selvagens enfu-
recidos”. Eles atacam cruelmente homens, mulheres e crianças. Eis a desmedida
da violência capitalista. A cena do policial agarrando uma criança pequena no alto
do prédio de apartamentos, e depois deixando-a cair é a marca da bestialidade da
autocracia burguesa. Estamos diante do massacre de famílias operárias pelas for-
ças policiais do regime autocrático do Czar a serviço dos capitalistas. Ao mesmo
tempo, como contraste, agentes policiais riem da situação cruel. É a expressão
suprema da perversidade que permeia o filme “A greve” de S. Eisenstein. Mas
não são animais selvagens enfurecidos, embora possamos caracteriza-los assim.
Trata-se de caricaturas de bestas humanas, homens insensíveis barbarizados pela
sociometabolismo do capital.
Temos um corte de cena para o operário preso que exclama para seus algozes:
“Não poderão prender todos. Nossos rapazes resistirão”. O oficial de polícia diz: “
Os rapazes?”. E mostra para ele no mapa o distrito industrial onde se concentra a
repressão policial: “Seu pequeno distrito já está...” E diz: “Mas voce, rapaz, poderia
juntar-se a nós.... Poderiamos ajuda-lo...que me diz?”. Mas o operário se recusa a
colaborar e agride o chefe de polícia. É levado de volta a cela.
A cena final do filme “A greve” de Serguei Eisenstein intitula-se “A matança”;
esta é a cena de desfecho dramático do filme. A tropa de policiais a cavalo perse-

214
O mundo do trabalho através do cinema

gue a multidão de operários e operárias que, buscando fugir, se dirige para uma
planicie descampada. A multidão de operários e operárias, homens e mulheres,
é massacrada como boi no matadouro. Esta cena é clássica, pois, mais uma vez,
Eisenstein utiliza-se de sua metafora visual. A cena da tropa de choque da polícia
czarista a cavalo massacrando a multidão é justaposta com a cena de abate de um
boi no matadouro. É uma cena de alto conteúdo emocional que visa provocar a
experiência catártica. Os intertitulos dizem: “A matança”. E a seguir: “A derrota”.
Finalmente os letreiros derradeiros do filme, após a cena catártica, salientam
o valor da memória coletiva para o proletariado em seu processo de formação
de classe social. Diz o intertítulo: “E como cicatrizes sangrentas inolvidáveis do
proletariado, jazem as feridas de Lena, Talka, Zlastoust, Yaro, Slavl, Tsaritsin e
Kosteroma.” E temos o intertítulo final como verdadeira exclamação: “Lembrai-
-vos!” (ou ainda: “Lembrem-se disso! Proletários!”).

215
CAPÍTULO 6

O homem que
virou suco
João Batista de Andrade
(1981)

O filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade, de 1981, pos-
sui como tema central, as formas da precarização do trabalho nas condições
do capitalismo brasileiro. Num primeiro momento, expõe, de modo realista, o
cotidiano de miséria da classe operária pobre da metrópole paulistana, exposta
à precariedade salarial extrema no auge do “milagre brasileiro” (1968-1979). É
um filme que trata das várias nuances da superexploração da força de trabalho
que caracteriza historicamente o capitalismo brasileiro. Ao mesmo tempo, expõe
a opressão e exploração capitalista que desefetiva o ser genérico do homem, isto
é, enlouquece o homem-que-trabalha. Deste modo, o filme “O homem que virou
suco”, vincula superexploração da força de trabalho como característica ontoge-
nética do capitalismo hipertardio brasileiro; e adoecimento do trabalhador assa-
lariado (o homem que virou suco), como um modo de desefetivação humano-
-genérica (ou loucura do homem-que-trabalha).
O filme nos permite refletir sobre um tema crucial para compreendermos a
persistência das desigualdades sociais no Brasil: o modo de objetivação histórica
do capitalismo no Brasil, capitalismo hipertardio, dependente, de formação colo-
nial-escravista. Os traços ontogenéticos do capitalismo brasileiro estão presentes
no filme através da exposição da desigualdade social historicamente crônica, ba-
seada na síndrome da superexploração estrutural da força de trabalho, caracteriza-
da pelo trabalho intenso, longas jornadas de trabalho, arrocho salarial, autocracia
oligárquico-burguesa e manipulação ideológica exacerbada.
A narrativa do filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade,
num primeiro momento, nos apresenta a via crucis de Deraldo (interpretado por
José Dumont)., homem nordestino, poeta popular e trabalhador de rua. Ao fugir
da policia, acusado injustamente de ter matado o patrão na solenidade de entrega
do Premio Operário-Padrão, Deraldo trabalha em várias ocupações salariais pre-
cárias. Dos serviços domésticos à indústria da construção civil, o poeta popular

217
Trabalho e Cinema • Volume 4

Deraldo vive o inferno da precariedade salarial extrema. A odisséia pessoal de De-


raldo é a odisséia da individualidade pessoal de classe, que percorreu as estações
da precariedade laboral no Brasil durante o crepúsculo do “milagre econômico”
da década de 1970. O filme de João batista de Andrade expõe o desamparo dos
desvalidos, imersos na condição existencial de proletariedade, a condição históri-
ca que fundou a civilização brasileira. Deraldo tornou-se o narrador da tragédia
proletária brasileira, projetando-se como individualidade de classe que, após per-
correr o inferno da precariedade salarial extrema, reconheceu o valor da luta do
“em-si” da classe como pressuposto da emancipação social do trabalho.
Num segundo momento do filme, liberto da via crucis da precariedade sa-
larial extrema, após provar sua inocência, o poeta popular Deraldo buscou co-
nhecer a história do sósia, o operário José Severino da Silva, que matou o patrão
na entrega do Premio Operário-Padrão. O operário metalúrgico José Severino da
Silva é o verdadeiro homem que virou suco. Ao transformar a história de Severino
em literatura de cordel, Deraldo tornou-se o narrador da desgraça do operário
metalúrgico que sonhou ascender na empresa, traindo companheiros de trabalho,
colaborando com o patrão. Ao furar a greve, Severino é marginalizado pelos com-
panheiros que se recusam a trabalhar com ele. O patrão o demite. Transtornado,
Severino decide matar o patrão e depois enlouquece.
Por um lado, o filme “O homem que virou suco” nos apresenta o mundo social
da precariedade salarial extrema, constituído por ocupações assalariadas informais,
onde os sujeitos-que-trabalham, estão expostos à exploração salarial e espoliação
indiscriminada à margem da legislação trabalhista. É o mundo social da “classe”
imersa na condição existencial de proletariedade, o mundo social da massa do
“povo” que, como disse Capistrano de Abreu, está “[...] há três séculos capado e re-
capado, sangrado e ressangrado”. Não existem organizações sindicais ou políticas
no mundo social da precariedade salarial extrema, estigma que caracteriza a prole-
tariedade “pobre” no Brasil. Ao percorrer as ocupações precárias, Deraldo, fugitivo
da policia, é um pária social. Na verdade, ele representa o povo brasileiro, composto
por “homens livres” que há séculos exercem o trabalho manual, povo oprimido e
explorado pelos donos do poder. Deraldo, o poeta popular, amante da liberdade,
não possui cidadania, pois é homem sem registro de identificação civil, sendo, des-
te modo, marginalizado pela ordem burguesa. Como trabalhador de origem nor-
destina, Deraldo busca encontrar um espaço de trabalho na metrópole paulistana,
vendendo livrinhos de literatura de cordel produzida por ele. Ele é trabalhador de
rua, poeta de cordel não reconhecido efetivamente como trabalhador, sendo, deste

218
O mundo do trabalho através do cinema

modo, discriminado, não apenas pela policia que o persegue, mas também pelos
próprios companheiros de bairro que não reconhecem o trabalho de artista do poeta
Deraldo como sendo efetivamente trabalho digno.
O filme “O homem que virou suco” expõe, num primeiro momento, a luta
cotidiana de Deraldo contra a opressão, preconceito e discriminação de classe
que caracterizou historicamente a ordem burguesa no Brasil. Na verdade, o estig-
ma da precariedade salarial extrema que persegue os proletários pobres, oculta
a superexploração estrutural da força de trabalho que caracteriza o capitalismo
histórico no Brasil. Existe um vínculo ontogenético entre opressão, preconceito e
discriminação contra os trabalhadores proletários pobres oriundos das regiões
mais atrasadas do País, principalmente a região nordeste, expulsos do campo pelo
latifúndio; e a superexploração da força de trabalho, padrão histórico de consumo
do trabalho vivo que caracteriza o capitalismo dependente.
Em nossa análise do filme “O homem que virou suco”, utilizaremos bastante
o conceito de superexploração da força de trabalho. Para o economista marxista
Ruy Mauro Marini, a superexploração da força de trabalho caracteriza os países
capitalistas dependentes. Para ele, a economia capitalista dependente se contrapõe
à transferência de valor (que ocorre por meio do intercâmbio desigual), por meio
de compensações no plano da produção interna. Na medida em que se vincula ao
mercado mundial, convertendo produção de valores de uso em valores de troca,
a economia dependente se insere no circuito do intercambio desigual entre cen-
tro e periferia. Para Marini, o intercambio desigual que caracteriza as relações
de dependência da economia mundial capitalista, tem o efeito de exacerbar nas
economias periféricas, o afã de lucro e a agudização dos métodos de extração do
trabalho excedente. Deste modo, para Ruy Mauro Marini, a superexploração da
força de trabalho se caracteriza pelo (1) aumento da intensidade do trabalho, com
o aumento da mais-valia obtido através da maior exploração do trabalhador assa-
lariado e não do incremento da sua capacidade produtiva; (2) prolongamento da
jornada de trabalho com o aumento da mais-valia absoluta em sua forma clássi-
ca, aumentando, deste modo, o tempo de trabalho excedente; e a (3) redução do
consumo do operário além do limite normal (como observou Karl Marx em “O
Capital”: “O fundo necessário de consumo do operário se converte, de fato, dentro
de certos limites, num fundo de acumulação de capital”).

219
Trabalho e Cinema • Volume 4

Elementos da superexploração da força de trabalho


(segundo Ruy Mauro Marini)

Aumento da intensidade do trabalho

Prolongamento da jornada de trabalho

Redução do fundo de consumo do trabalhador assalariado

Portanto, é a superexploração da força de trabalho que compensa a trans-


ferência de valor dos países dependentes para os países metropolitanos. É este
padrão histórico de consumo da força de trabalho no capitalismo dependente que
explica a presença historicamente ampliada da precariedade extrema em nosso
País. A superexploração da força de trabalho, que consideramos uma síndrome
social, posto que implica, não apenas determinações de ordem salarial, como o
trabalho intenso, jornada de trabalho longas e arrocho salarial, mas também de-
terminações ideológicas, políticas e culturais, como o preconceito étnico-racial,
autoritarismo político e manipulação ideológica exacerbada, tornou-se uma ne-
cessidade estrutural das formações capitalistas dependentes.
Ricardo Antunes em sua tese de doutorado “A Rebeldia do Trabalho – O con-
fronto operário no ABC paulista: as greves de 78/80) utilizou o conceito de “supe-
rexploração do trabalho”, considerado por ele como sendo “a articulação de uma
jornada prolongada de trabalho com uma intensidade extenuante do processo
produtivo”. Na perspectiva de Antunes, a superexploração do trabalho no Brasil
da década de 1970 ocorreu num cenário de persistente depreciação salarial, cons-
tante subtração do quantum referente a remuneração do trabalho em beneficio do
mais-valor apropriado pelo capital monopólio. Um detalhe: Antunes não vincula
a depreciação salarial (o arrocho salarial) à superexploração do trabalho, como o
faz Marini, que inclui a redução do fundo de consumo dos trabalhadores assala-
riados como um dos elementos compositivos da categoria de “superexploração da
força de trabalho” (Antunes fala em “superexploração do trabalho”).
A precariedade salarial extrema, que caracterizou o mundo do trabalho no
Brasil desde a Colônia, Império e República Velha, atinge hoje a vasta massa de
trabalhadores pobres informalizados que vivem à margem da legislação traba-
lhista. Ela se contrasta, por exemplo, com a precariedade salarial regulada, que
abrange os trabalhadores assalariados com direitos trabalhistas. No Brasil, a pre-
cariedade salarial regulada se caracteriza pelo acesso do trabalhador e trabalha-

220
O mundo do trabalho através do cinema

dora aos direitos inscritos na CLT (Consolidação das leis Trabalhistas), que, em
1940, quando foram criados, regulamentaram o trabalho urbano (O Brasil era um
país agrário e o trabalho rural não era coberto pela CLT quando ela foi criada,
deixando, naquela época, a maior parte dos trabalhadores brasileiros imersos na
precariedade salarial extrema).
Portanto, o mundo social do trabalho no Brasil, imerso na condição existencial
de proletariedade dividiu-se historicamente entre a precariedade salarial extrema
e a precariedade salarial regulada. Na primeira, a precariedade salarial extrema,
os trabalhadores assalariados, proletários pobres, não tem acesso aos direitos tra-
balhistas, não sendo, deste modo, sujeito de direitos. Na segunda, a precariedade
salarial regulada, os operários e empregados têm acesso aos direitos trabalhistas
inscritos na CLT, sendo divididos entre trabalhadores assalariados não-organizados,
constituindo a maioria dos formalizados, no sentido de não possuírem representa-
ções sindicais com poder de barganha e negociação coletiva; e trabalhadores assala-
riados organizados, os formalizados capazes de negociação coletiva.
Deste modo, o trabalhador assalariado formal com capacidade de negociação
coletiva, está no topo da pirâmide, isto é, o nível superior da precariedade salarial re-
gulada, representando o patamar mais elevado da cidadania salarial no País. Os tra-
balhadores assalariados formalizados, principalmente os organizados e com poder
de barganha sindical, têm a capacidade de resistir como classe em-si à superexplo-
ração da força de trabalho que caracteriza historicamente o capitalismo brasileiro.

Modos da precariedade salarial no Brasil

(organizados)
(não-organizados)
Precariedade regulada

Precariedade extrema
(não-organizados)

221
Trabalho e Cinema • Volume 4

A persistência da precariedade salarial extrema, que historicamente caracte-


rizou o mundo social do trabalho no Brasil, vinculou-se ao modo de entificação
do capitalismo brasileiro: capitalismo hipertardio de extração colonial-prussiana
com cariz escravista.
No filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade, o foco
principal está no proletário pobre de origem nordestina, egresso das regiões mais
atrasadas; e que, ao chegar na cidade grande, assume sua face autenticamente
proletária, de ser social moldado pelo mundo industrial. Ele é o “homem livre” ex-
pulso do campo pelo latifúndio, a grande propriedade fundiária que caracterizou
historicamente a ordem burguesa no Brasil. O Brasil industrializou-se sem fazer
uma reforma agrária, preservando a estrutura fundiária do campo nos moldes ar-
caicos. Deste modo, as cidades incharam com a presença do proletário de origem
rural, que conduzido pelo sonho de vida melhor, abandonou a vida de miséria no
campo. Deraldo - e a maioria dos personagens proletários do filme “O homem
que virou suco” - são proletários oriundos das regiões mais atrasadas do País (o
próprio diretor e autor do roteiro do filme “O homem que virou suco”, João Batista
de Andrade, foi um imigrante oriundo do interior de Minas Gerais).
A nova via de objetivação do capitalismo brasileiro de cariz hipertardio (via
colonial), caracterizou-se pela articulação entre o moderno (a indústria) e o ar-
caico (o latifúndio de origem escravista). Na verdade, o arcaico garantiu histo-
ricamente a materialidade social da superpexploração da força de trabalho, traço
estrutural do capitalismo dependente. Portanto, o filme “O homem que virou suco”
nos leva a refletir sobre a questão democrática, a questão social não-resolvida pelo
desenvolvimento capitalista no Brasil.
Deste modo, a concentração fundiária e o latifúndio, originariamente de base
escravista, expulsaram os proletários pobres do campo para a cidade, dando ori-
gem às ondas migratórias de trabalho vivo disponíveis para a superexploração da
força de trabalho nas cidades. A irresolução da questão democrática, devido a vi-
gência do latifúndio, e a herança escravista, que caracterizaram o desenvolvimento
capitalista no Brasil, contribuíram, por outro lado, para a afirmação do caráter de-
pendente do capitalismo brasileiro (o que levou a irresolução da questão nacional).
A expulsão do homem do campo criou a população excedente disponível para a
superexploração da força de trabalho, traço estrutural do capitalismo dependente.

222
O mundo do trabalho através do cinema

Formas de entificação do capitalismo brasileiro


Capitalismo hipertardio de extração colonial-prussiana com cariz escravista

“via colonial” “via prussiana”


capitalismo dependente latifúndio
(questão nacional) (questão democrática)
superexploração da força herança escravista
de trabalho

Portanto, na análise critica do filme “O homem que virou suco”, torna-se in-
teressante resgatar a discussão dos modos de entificação do capitalismo no Brasil,
tornando claro, por exemplo, o significado de “via colonial” e “via prussiana” de
desenvolvimento do capitalismo no Brasil. No caso do Brasil, a via de objetiva-
ção do capitalismo pode ser caracterizada como via colonial-prussiana de cariz
escravista. É esta categorização histórico-estrutural – capitalismo de via colonial-
-prussiana - que explica a persistência da superexploração da força de trabalho,
ou melhor, a síndrome histórica da superexploração da força de trabalho no Brasil,
baseada na desigualdade social, discriminação étnico-racial e autoritarismo nas
relações sociais da formação capitalista brasileira.
O filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade, ao expor o
drama do êxodo rural para a cidade grande (um elemento da questão democrática
não-resolvida), a superexploração da força de trabalho como traço estrutural do
capitalismo dependente (um traço da irresolução da questão nacional) e a discri-
minação étnico-racial e autoritarismo nas relações sociais no Brasil (um resultado
da herança escravista), condensou, em sua narrativa fílmica, a problemática da
via colonial-prussiana de cariz escravista que caracteriza a entificação do capitalis-
mo brasileiro. Primeiro, a superexploração da força de trabalho é uma derivação
estrutural da condição dependente do capitalismo histórico no Brasil. Depois, o
preconceito étnico-racial e o autoritarismo nas relações sociais no Brasil é uma
derivação estrutural da formação escravista do capitalismo brasileiro baseado na
grande propriedade (latifúndio).
Podemos assinalar três vias particulares de objetivação do capitalismo:
1. A “via clássica” é aquela em que o desenvolvimento da burguesia culmi-
nou com a supremacia do modo de produção capitalista por meio das revoluções
democrático-burguesas, em torno de propostas políticas, onde o historicamente

223
Trabalho e Cinema • Volume 4

novo suplantou o histori­camente velho, com movimentos nacionais, que traziam


no seu bojo, o caráter da partici­pação das massas populares e onde a maioria da
população participou na destruição da sociedade feudal, liderada pela burguesia,
que nesta época, trazia a marca de classe revolucionária. Por exemplo, Inglaterra e
França são países de via “clássica” de objetivação do capitalismo. Entretanto, exis-
tem especificidades ou nuances próprias na evolução capitalistas destes países.
Pode-se dizer que, de modo geral, a Inglaterra é o país típico do desenvolvimento
econômico da burguesia; e a França como país típico do desenvolvimento político
desta classe. No caso inglês, os antigos proprietários feudais, a partir do século
XVI (com a Reforma Anglicana), foram aburguesando-se, em função da mudan-
ça da estrutura rural inglesa, tendo em vista que a terra tornara-se um domínio
extremamente atraente para o investimento de capital. Sendo assim, o pacto re-
alizado deu-se a partir do “respeito” aos “troféus políticos” da aristocracia ingle-
sa, desde que defendessem os interesses da classe média financeira, industrial e
mercantil. E, cabe frisar, tais interesses econômicos eram já, na época, bastante
poderosos para em última análise determinar os rumos da política geral da nação.
Haveria muitas divergências sobre questões de pormenor, mas a oligarquia aris-
tocrática inglesa sabia bastante bem quanto a sua prosperidade econômica estava
irrevogavelmente unida à da burguesia industrial e comercial.
Todavia, se, no caso inglês, a revolução transformou a burguesia em parte
integrante, modesta, mas oficialmente reconhecida, das classes dominantes da
Inglaterra, compartilhando com as outras camadas da classe dominante, o inte-
resse de manter oprimida a grande massa operária da nação; no caso francês, a
revolução teve tonalidades mais vivas nas disputas das classes envolvidas. Frie-
drich Engels observou (no livro “Do socialismo utópico ao socialismo científico”)
que, “na França, a revolução rompeu completamente com as tradições do passa-
do, varreu os últimos vestígios do feudalismo...”. Essa peculiaridade da França, no
seu processo revolucio­nário, demonstra historicamente os “limites” do processo
político inglês, cuja diferença de desenvolvimento sempre esteve presente nos tex-
tos clássicos. É típico dos caminhos clássicos, nos seus movimentos nacionais, “a
incorpora­ção neles do campesinato como a camada da população mais numerosa
e mais ‘difícil de mover’ em relação com a luta pela liberdade política em geral e
pelos direitos da nacionalidade em particular”; e, ainda, sobre este aspecto, é im-
portante salientar que, nas três decisivas revoluções realizadas pela burguesia na
supressão do feudalismo (a reforma protestante, a revolução inglesa e a revolução
francesa), “tenha sido o campesinato a fornecer as tropas de combate e a ser pre-

224
O mundo do trabalho através do cinema

cisamente a classe que, depois de alcançar o triunfo, sai arruinada infalivelmente


pelas conseqüências econômicas desse triunfo”. Portanto, na “via clássica”, o histo-
ricamente novo suplantou o histori­camente velho, com movimentos nacionais, que
trazem no seu bojo o caráter da partici­pação das massas populares.
2. A “via prussiana”, que caracterizou o capitalismo tardio (Alemanha e Itá-
lia), vê nascer seus Estados nacionais, quando os países da “via clássica”, já estão
plenamente constituídos, conscientizados teórica e praticamente, do antagonismo
entre burguesia e proletariado. Enquanto a “via clássica” é o caso inglês e o caso
francês; a “via prussiana” é o caso alemão, onde o particularismo feudal existente
até quase final do século XIX, colocou na ordem do dia da revolução burguesa, a
problemática da unidade nacional, pois, não efetuando sua centralização territo-
rial, vive uma realidade de numerosos principados independentes, que obstacu-
lizam sua unificação. Temos, no caso alemão, diferença significativa do que ocor-
reu, especialmente com a França e Inglaterra, cujo processo de dissolução feudal
esteve acom­panhado da organização das monarquias nacionais, passo decisivo
para a unidade nacio­nal. É interessante salientar a longa (e necessária) observação
de Georg Lukács no livro “Goethe e sua época”, analisando o caráter retardatário
do processo de objetivação do capitalismo na Alemanha. Diz ele:
“A Alemanha entrou muito tardiamente pelo caminho da moderna transfor-
mação em sociedade burgue­sa, tanto no econômico, como no político e no cul-
tural. Já estão nascendo no Ocidente as primeiras grandes batalhas de classe do
proletariado ascendente quando, em 1848, apareceu pela primeira vez de forma
concreta para a Alemanha os problemas da revolução burguesa. Por certo que,
com exceção da Itália, somente na Alemanha se colocam esses problemas de tal
modo que a questão central da revolução burguesa resulta ser a da unidade na-
cional que ainda há que criar. A revolução inglesa do século XVII e a francesa do
século XVIII realizam-se já dentro de Estados discretamente constituídos, ainda
que somente a Revolução lhes dê sua figura definitiva e consumada; por isso, para
ambas as revoluções ocidentais, o que se encontra em primeiro plano é a liquida-
ção do feuda­lismo e, antes de tudo, a liberação da servidão camponesa jurídica e
factual. Esta peculia­ridade da revolução burguesa alemã é que possibilita antes de
tudo a semi-solução reacio­nária de 1870. Tudo isto tem como conse­qüência que
na Alemanha, o progresso social e a evolução nacional não se apóiem e empu­xem
mutuamente, como em França, mas ao contrário se encontrem em contraposição.
Por isso também o desenvolvimento do capitalismo não consegue produzir uma
classe burguesa capaz de fazer-se com a direção da nação” (os grifos são nossos)

225
Trabalho e Cinema • Volume 4

Deste modo, a frágil burguesia alemã, temendo ser encontrada pelo proleta-
riado revolucionário, abandonou covardemente suas tarefas políticas, realizando
só as tarefas econômicas. Portanto, a constituição do Estado alemão se põe através
da conciliação do historicamente novo (a industrialização e o progresso social)
com o historicamente velho (o latifúndio e a autocracia junker), em que o pri-
meiro paga alto tributo ao segundo. Esta forma particular de ser do capitalismo,
no que tange aos movimentos nacionais, desconhece a revolução democrático-
-burguesa. Como observou V. I. Lênin no texto “Sobre o Direito das Nações à
Autodeterminação”: “É típica da segunda época (do capitalismo), a ausência de
movimentos democrático-burgueses de massas, quando o capitalismo desenvol-
vido, aproximando e misturando cada vez mais as nações já plenamente incor-
poradas na circulação comercial, coloca em primeiro plano o antagonismo entre
o capital internacionalmente fundido e o movimento operário interna­cional” (o
parêntese é nosso).
No texto “A ‘Politização’ da ‘Totalidade’: Oposição e Discurso Econômico” (de
1977), José Chasin observou que, a via alemã ou o caminho prussiano, é “um ca-
minho histórico concreto que produziu certas especificidades que, em contraste,
por exemplo, com os casos francês e norte-americano, muito se aproxima de al-
gumas das que foram geradas no caso brasileiro”. De maneira que, para Chasin, o
caso brasileiro, “sob certos aspectos importantes, é conceitual­mente determinável
de forma próxima, ou assemelhável, àquela pela qual fora o caso alemão”, res-
saltando que, “de maneira alguma de forma idêntica”. Assim, salientou Chasin,
“irrecusavelmente, tanto no Brasil, quanto na Alemanha, a grande propriedade
rural é presença decisiva; de igual modo, o ‘reformismo pelo alto’ caracterizou
os processos de modernização de ambos, impondo-se, desde logo, uma solução
concilia­dora no plano político imediato, que exclui as rupturas superadoras, nas
quais as classes subordinadas influiriam, fazendo valer seu peso específico, o que
abriria a possibilidade de alterações mais harmônicas entre as distintas partes do
social”.
Também nos dois casos (Alemanha e Brasil), o desenvolvimento das forças
produtivas foi mais lento, e a implantação e progressão da grande indústria, isto é,
o desenvolvimento do ‘verdadeiro capitalismo’ ou modo de produção especifica-
mente capitalista, como distinguia Marx, é retardatária, tardia, sofrendo obstacu-
lizações e refreamentos decorrentes da resistência de forças contrárias e adversas.
Em síntese, num e noutro caso, conclui Chasin, verifica-se que “o novo paga alto
tributo ao velho”.

226
O mundo do trabalho através do cinema

Via prussiana de objetivação do capitalismo


(caso alemão)
preservação da grande propriedade rural

Reformismo pelo alto

Industrialização retardatária

José Chasin observou que, embora apresentem generalidades com um grau


razoável de semelhança, nas suas gêneses próprias, Alemanha e Brasil são distin-
tos, apresentando a tota­lidade concreta do caso alemão, singularidades diferentes
da totalidade concreta do caso brasileiro. Sendo assim, estas identidades abstra-
tamente tomadas, pertencentes a esses dois processos, os igualam em relação às
diferenças que ambos têm dos casos clássicos; mas não os tornam, efetivamente,
idênticos entre si. Diz Chasin:
“Desse modo, se dos dois casos convém o predicado abstrato, de que neles a
grande propriedade rural é presença decisiva, somente principiamos verdadei-
ramente a concreção ao atentar como ela se objetiva em cada uma das entidades
sociais consideradas, isto é, no momento em que se determina que, no caso ale-
mão, se está indicando uma grande propriedade rural proveniente da caracterís-
tica propriedade feudal, posta no quadro europeu; enquanto no Brasil, se aponta
para um latifúndio procedente de outra gênese histórica, posto, desde suas formas
originárias, no universo da economia mercantil pela empresa colonial” (diríamos
nós, colonial-escravista - GA).
Avançando mais nas diferenças dos dois casos, achamos importante frisar
(com Chasin) que, mesmo sendo o desenvolvimento das forças produtivas nas
duas vias, mais moroso que nos casos clássicos, “a industrialização alemã é das
últimas décadas do século XIX, e atinge, no processo, a partir de certo momen-
to, grande velocidade e expressão, a ponto da Ale­manha alcançar a configuração
imperialista; [enquanto] no Brasil, a industrialização principia a se realizar efe-
tivamente muito mais tarde, já num momento avançado da época das guerras
imperialistas, e sem nunca, com isto, romper sua condição de país subordinado
aos pólos hegemônicos da economia internacional. De sorte que o verdadeiro ca-
pitalismo alemão é tardio, se bem que autônomo; ao passo que o brasileiro, além
de hipertardio, é caudatário das economias centrais”. Deste modo, percebemos a

227
Trabalho e Cinema • Volume 4

existência de mais de uma via particular não-clássica de entificação do capitalis-


mo – é o que José Chasin vai denominar de “via colonial”.

Via colonial de objetivação do capitalismo


(caso brasileiro)
grande propriedade rural (latifúndio de origem colonial)

reformismo pelo alto

industrialização hipertardia (capitalismo dependente)

3. A “via colonial” é a via de objetivação do capitalismo próprio aos países,


ou pelo menos a alguns países (questão a ser concretamente verificada), de ex-
tração colonial. Como salientou José Chasin, “ficam distinguidos, neste universal
das formas não-clássicas - das formas que, no seu caminho lento e irregular para
o progresso histórico-social, pagam alto tributo ao atraso - dois particulares que,
conciliando ambos com o historicamente velho, conciliam, no en­tanto, com um
velho que não é, nem se põe como o mesmo” [grifo nosso]. O que significa que o
“historicamente velho” no caso brasileiro, não é o mesmo do caso alemão (por
exemplo, a grande propriedade rural na Alemanha, possuía origem feudal; e no
caso brasileiro, origem colonial). Portanto, a via colonial é a via particular do capi-
talismo brasileiro que nos informa como se põem, aqui, os movimentos nacionais.
Em primeiro lugar, a via colonial implicou a ausência de rupturas transfor-
madoras, levadas a cabo pelas massas populares, no processo de constituição do
capitalismo tardio e do capitalismo hipertardio, sendo, pois, próprio do universal
das formas não-clássicas de objetivação do capitalismo, a ausência da revolução
democrático­-burguesa. Diz José Chasin no seu livro “O Integralismo de Plínio Sal-
do: Formas de regressividade no Capitalismo Hipertardio” (1978):
“No Brasil, bem como na generalidade dos países coloniais ou dependentes, a
evolução do capitalismo não foi antecedida por uma época de ilusões humanistas
e de tentativas - mesmo utópicas - de realizar na prática o ‘cidadão’ e a comuni-
dade democrática. Os movimentos neste sentido, ocorridos no século passado e
no início deste século, foram sempre agitações superficiais, sem nenhum caráter
verdadeiramente nacional e popular. Aqui, a burguesia se ligou às antigas classes
dominantes, operou no interior da economia retrógrada e fragmentada. Quando

228
O mundo do trabalho através do cinema

as transformações políticas se tornavam necessárias, elas eram feitas ‘pelo alto’,


através de conciliações e concessões mútuas, sem que o povo participasse das de-
cisões e impusesse organicamente a sua vontade coletiva. Em suma, o capitalismo
brasileiro, ao invés de promover uma transformação social revolucionária - o que
implicaria, pelo menos momentaneamente, a criação de um ‘grande mundo’ de-
mocrático contribuiu, em muitos casos, para acentuar o isolamento e a solidão, a
restrição dos homens ao pequeno mundo de uma mesquinha vida privada”.
Deste modo, uma das características mais marcantes em nossa formação
histó­rica, são as medidas econômicas antinacionais e as políticas autocráticas.
Diz José Chasin:
“Ditaduras e ‘milagres’ traduzem o caráter essencial de nossa formação e es-
trutura coloniais. Estrutura que se vem conservando sob formas diferentes mais
ou menos complexas, ou mais ou menos sofisticadas, como eixo básico de nos-
sa existência social. Assim é, desde a empresa açucareira colonial, até a recente
tentativa de uma economia de exportação de manufatu­rados. Assim é, para só
falar da nossa história republicana, desde a máscara democrático­-liberal da Re-
pública Velha, até a ditadura explícita da última década e tanto.” E mais, “só para
relembrar os períodos dominantes e mais decisivos do nosso processo econô­
mico-social: sucessivamente tivemos o ‘milagre’ da cana-de-açúcar, o ‘milagre’ da
minera­ção, o ‘milagre’ do café, e finalmente, dentro do ‘milagre’ da industrializa-
ção subordinada ao imperialismo, o menor e mais curto de todos, o ‘milagre’ de
1968 a 1973”. E diga-se ainda que: “Este último (‘milagre’), baseado na dinâmica
econômica da indústria automobilística e produtos correlatos, os chamados bens
de consumo duráveis, destinados a uma absorção por segmento privilegiado do
mercado interno; ‘milagre’ também sustentado pelo ‘esforço’ exportador predomi-
nantemente, como sempre, de pro­dutos primários e matérias-primas, e, de modo
complementar, mais na aparência do que em termos efetivos, pela venda ao exte-
rior de manufaturas.” [o parênteses é nosso]2.
Depois, como observou Chasin, “a particularidade da via colonial, [...] engen-
drou uma burguesia que não é capaz de perspectivar, efetivamente, sua autonomia

2 Temos utilizado à exaustão, citações de José Chasin – citado por Maria Angélia B. Rodrigues
no seu texto “Particularidade e objetivação do Capitalismo” – por ele representar o intelectual
brasileiro que desenvolveu de forma brilhante, o conceito de “via colonial (em polêmica, por
exemplo, com outros intelectuais de esquerda, que trataram do tema das particularidades
de objetivação do capitalismo no Brasil, como Carlos Nelson Coutinho e Antonio Carlos
Mazzeo)..

229
Trabalho e Cinema • Volume 4

econômica, ou o faz de um modo demasiado débil, conformando-se, assim, em


permanecer nas condições de independência neo-colonial ou de subordinação
estrutural ao imperialismo. Em outros termos, as burguesias que se objetivaram
pela via colonial, não realizam sequer suas tarefas econômicas, ao contrário da
verdadeira burguesia prussiana, que deixa apenas, como indica Engels, de reali-
zar suas tarefas políticas. De modo que, se para a perspectiva de ambas, de fato, é
completamente estranha a efetivação de um regime político democrático-liberal;
por outro lado a burgue­sia prussiana realizou um caminho econômico autônomo,
centrado e dinamizado pelos seus próprios interesses, enquanto a burguesia pro-
duzida pela via colonial tendeu a não romper sua subordinação, permanecendo
atrelada aos pólos hegemônicos das economias centrais. Em síntese, a burguesia
prussiana é antidemocrática, porém autônoma, enquanto a burguesia colonial,
além de antidemocrática, é caudatária, sendo incapaz, por iniciativa e força pró-
prias, de romper com a subordinação ao imperialismo” [o grifo é nosso].
Ao longo da história brasileira, põe-se e repõe­-se a estrutura colonial, subor-
dinada aos centros hegemônicos do capital, traduzindo um “continuísmo histó-
rico”, vivido pelo país ao longo de sua existência. Essa existência é marcada por
uma história em que a miséria e a opressão acompa­nharam a vida da maioria
da população. Para Chasin (em 1977), o que se colocava como tarefa radical era
a democratização no país, entendida como democratização econô­mica, política,
social e cultural.

Formas de entificação do capitalismo

via clássica via prussiana via colonial


(França e Inglaterra) (Alemanha e Itália) (Brasil)

vias não-classicas

Portanto, a particularidade concreta da entificação do capitalismo no Brasil


exigiu conceituá-lo como sendo um capitalismo hipertardio de extração colonial-
-prussiana de cariz escravista.
José Chasin, Ricardo Antunes e Antonio Carlos Mazzeo - intelectuais que uti-
lizaram o conceito de via colonial (Chasin) ou via colonial-bonapartista (Mazzeo)
- salientam, em suas reflexões, a irresolução da questão nacional (capitalismo
dependente); e a irresolução da questão democrática (grande propriedade lati-

230
O mundo do trabalho através do cinema

fundiária ou Estado autocrátrico-burguês de cariz bonapartista), como elemen-


tos-chave da via colonial-prussiana. Entretanto, é importante salientar no bojo
desta reflexão sobre o modo de entificação do capitalismo brasileiro, a presença
da herança escravista (sem considerá-la, entanto, um novo modo de produção,
como queria Jacob Gorender). Por exemplo, ao tratar da particularidade da classe
operária brasileira, no livro “Classe operária, sindicatos e partido no Brasil”, An-
tunes salienta a pesada herança do latifúndio e da economia agrário-exportadora
(curiosamente ele não faz referencia ao escravismo), observando que a classe
operária do capitalismo hipertardio encontrou “um mundo onde a mecanização
e a divisão do trabalho apresentavam-se de forma plena”, o que significa que a
classe operária brasileira “já nasce, objetivamente, dentro daquelas condições que
caracterizaram a última fase do trabalhador europeu clássico (a grande indús-
tria).” E mais adiante observa: “Apesar de, em seu nascimento, não ter percorrido
as formas de produção anteriores, ela não pôde crescer normalmente, limitada
que foi por uma industrialização que pagou alto preço ao latifúndio para poder
desenvolver-se, ao mesmo tempo em que se encontrava nas condições de uma
industrialização subordinada” (segundo ele, a organização técnica da grande in-
dústria pesou mais na formação da classe operária do que a herança escravista).
O que observamos é que, Chasin, Antunes e Mazzeo fazem pouca referencia
à herança escravista que caracterizou o caso brasileiro. Na verdade, para eles, a
classe operária é interpretada na chave da imigração estrangeira que trabalha nas
grande indústria. Deixa-se de lado, o fato de que o lastro de preconceito étnico-
-racial e autoritarismo das relações sociais no Brasil, um dos elementos composi-
tivos da síndrome da superexploração da força de trabalho, provém historicamente
da formação escravista-colonial do capitalismo hipertardio. A ordem escravocrata
impregnou o ethos burguês no Brasil de uma sociabilidade autoritária, violenta e
hierárquica, que se perpetuou após a abolição da escravatura. A sociedade brasi-
leira pagou um alto preço pelo passado escravista: a estrutura social profunda-
mente hierárquica e rígida. Foi a formação escravista que impregnou a sociedade
brasileira do preconceito com o trabalho manual, disseminando discriminações
étnico-racial no interior do próprio mundo do trabalho. Após a libertação dos
escravos, a classe dominante relegou os trabalhadores negros para a precarieda-
de salarial extrema, utilizando, por outro lado, imigrantes brancos nas fábricas.
Como observou Emilia Viotti da Costa, “a abolição libertou os brancos do fardo da
escravidão, abandonando os ex-escravos à sua própria sorte”. O preconceito com
o trabalho manual impregnou o horizonte ideológico das “classes médias” no Bra-

231
Trabalho e Cinema • Volume 4

sil. Enfim, a escravidão foi uma mancha persistente na sociabilidade brasileira


(a maioria dos trabalhadores assalariados brasileiros que vivem em precariedade
salarial extrema hoje são afro-descendentes).
Deste modo, soa estranho que José Chasin, Ricardo Antunes e Antonio Carlos
Mazzeo, não tenham salientado a contento, como traço ontogenético da formação
do mundo social do trabalho ou da construção da sociedade do trabalho no Bra-
sil, o passado escravista, vinculado à grande propriedade latifundiária. Portanto,
deve-se salientar a presença e persistência da grande propriedade latifundiária no
processo de desenvolvimento do capitalismo histórico no Brasil, como ocorreu,
por exemplo, no caso alemão; e deve-se salientar também sua origem colonial ou
colonial-bonapartista, como diria Mazzeo (o que a distinguiria, por outro lado, do
caso alemão); entretanto, um traço particular-concreto deveras importante, foi a
formação escravista da grande propriedade latifundiária.
A formação colonial-escravista que caracterizou a objetivação do capitalismo
brasileiro contribuiu para a desigualdade social no Brasil, uma das maiores do
mundo ocidental; e para a discriminação salarial com recorte étnico (a maioria
da população trabalhadora imersa na precariedade extrema é afro-descendente).
De fato, a pobreza tem cor. Foi a precariedade salarial extrema ou precariedade
salarial cronicamente estrutural que criou a cultura da discriminação racial. O
que significa que a clivagem de classe social assumiu a forma de determinação
racial. Os negros e pardos são discriminados porque representam na consciência
coletiva brasileira - consciência social de extração escravista-colonial - a classe-
-que-vive-do-trabalho. Ao mesmo tempo, o próprio mundo do trabalho no Brasil
impregnou-se da cultura da opressão de classe oligárquico-burguesa de matriz
escravista-colonial (existe preconceito racial entre os próprios trabalhadores as-
salariados). Enfim, a ideologia do escravismo penetrou profundamente na alma
brasileira.
A precariedade salarial cronicamente estrutural que caracterizou a sociedade
brasileira desde as suas origens coloniais, ampliou-se com a exclusão do negro do
mercado de trabalho, logo após a abolição da escravatura, assumindo, deste modo,
clivagens étnico-raciais. Na verdade, com a abolição da escravatura ampliou-se a
classe social dos “homens livres sem posses”, sendo a maior parte deles, de cor
negra ou parda, relegada para ocupações precárias e intermitentes, discriminados
no mercado de trabalho urbano ou rural. O mundo do trabalho da precariedade
salarial cronicamente estrutural é elemento compositivo da modernidade arcaica
brasileira de gênese colonial e formação escravista.

232
O mundo do trabalho através do cinema

A multidão dos “homens livres” sem posse compunha um dos três segmen-
tos sociais da sociedade colonial (os outros eram os latifundiários e os escravos).
Como nos diz Robert Schwarz, “nem proprietários, nem proletários, seu acesso à
vida social e a seus bens dependem materialmente do favor, indireto ou direto, de
um grande. O agregado é a sua caricatura. O favor é portanto o mecanismo através
do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também
outra, a dos que tem. [...] Assim, com mil formas e nomes, o favor atravessou e
afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a relação produtiva de
base, esta assegurada pela força”.
Portanto, na medida em que não se resolveu a questão nacional (economia
dependente) e a questão democrática (o acesso a terra), e muito menos a questão
social, que surgiu com o problema da inclusão do negro na ordem competitiva bur-
guesa (o mercado de trabalho), a precariedade salarial extrema, caracterizada pela
flexibilidade estrutural da força de trabalho, tornou-se o fardo historicamente pe-
sado para amplas parcelas do mundo social do trabalho do Brasil, principalmente
para os homens livres negros e pardos afro-descendentes, proletários que sofreram
diretamente o tributo que o novo tem que pagar ao arcaico (o passado escravista).
Num primeiro momento, pode-se explicar a vigência da precariedade salarial
extrema no Brasil, pela oferta abundante de mão-de-obra, que faz cair o valor da
força de trabalho. Entretanto, a explicação demográfica não é, por si só, suficiente.
A oferta historicamente abundante de mão-de-obra no Brasil deve-se, em primei-
ro lugar, à concentração da propriedade fundiária, que obstaculizou o acesso a
terra e expulsou o trabalho vivo para a exploração da força de trabalho nas cidades
(a irresolução da questão democrática, isto é, a falta da Reforma Agrária). Depois,
com a industrialização brasileira, ocorrida na etapa do capitalismo monopolista, a
grande indústria instalou-se com um arcabouço técnico de capital intensivo. Des-
te modo, constituiu-se irremediavelmente no Brasil, uma superpopulação relativa
excedente às próprias necessidades de acumulação de capital.
Esta precariedade salarial cronicamente estrutural caracterizou-se pela alie-
nação dos direitos trabalhistas para amplas parcelas do mundo do trabalho no
Brasil, principalmente trabalhadores pobres do campo ou trabalhadores pobres
oriundos do campo que vivem nas grandes cidades. O mundo da precariedade
salarial cronicamente estrutural é o mundo do trabalho sem proteção social, de-
samparado das conquistas civilizatórias do século XX e que permeia a história
social do Brasil com seu povo pobre “capado e recapado, sangrado e ressangrado”
(como disse Capistrano de Abreu). O mundo da precariedade salarial cronica-

233
Trabalho e Cinema • Volume 4

mente estrutural é mundo social do povo espoliado e explorado pelos senhores da


casa-grande, industriais e financistas.

Formas da precariedade salarial no Brasil


(década de 2000)

Precariedade salarial extrema cronicamente estrutural


(trabalho desregulado)

Nova precariedade salarial


(trabalho flexível)

Um detalhe: a precariedade salarial cronicamente estrutural que caracterizou


historicamente o mundo do trabalho no Brasil distingue-se, por exemplo, da nova
precariedade salarial que disseminou-se no Brasil da década de 2000, com o de-
senvolvimento do capitalismo global. A nova precariedade salarial constituída
pela ofensiva do capital na produção, atingiu o contingente “moderno” do mundo
do trabalho no Brasil, isto é, as camadas sociais da precariedade salarial regulada
que conquistaram direitos trabalhistas por conta da organização sindical e nego-
ciação coletiva.
A reestruturação produtiva do capital que ocorreu a partir da década de 1990
no Brasil, sob a lógica do trabalho flexível, atingiu o núcleo “moderno” do mundo
do trabalho no Brasil. É o que Francisco de Oliveira denominou de “desmonte
do trabalho”, isto é, desmontou-se aquilo que era o arremedo de modernidade
salarial, e que se contrastava, por exemplo, com a modernidade arcaica do mundo
do trabalho imerso na precariedade salarial cronicamente estrutural. A crise do
capitalismo global promoveu uma ofensiva do capital às instituições de regulação
laboral de cariz fordista-keynesianas, constituídas no decorrer da “era dourada”
do capitalismo central, surgindo, deste modo, a “nova precariedade salarial”.
A nova precariedade salarial é, não apenas uma precariedade salarial regressi-
va, na medida em que atenta contra o acúmulo civilizatório de direitos sociais do
trabalho; mas é também uma precariedade salarial intrinsecamente contraditó-
ria, pois repõem a superexploração da força de trabnalho nas condições históricas
de desenvolvimento amplo das forças produtivas do trabalho social, inclusive nos
países capitalistas dependentes. A nova precariedade salarial significou a eleva-

234
O mundo do trabalho através do cinema

ção do estranhamento social num patamar superior. Pode-se dizer que existe um
estranhamento dos miseráveis imersos na precariedade salarial cronicamente es-
trutural, que caracterizou o mundo do trabalho no Brasil há séculos; e um estra-
nhamento dos formalizados da nova precariedade salarial, com suas experiências
vividas de precarização do trabalho.

Após uma longa digressão teórico-histórica sobre o modo de entificação do


capitalismo no Brasil e a natureza do sociometabolismo do trabalho nas condi-
ções do capitalismo hipertardio dependente de extração colonial-escravista, ire-
mos tratar da análise crítica do filme “O homem que virou suco”, de João Batista
de Andrade. O filme inicia-se com um ato de violência física, cometida ironica-
mente por um operário contra seu patrão, na cerimônia de entrega do Premio
Operário-símbolo de 1979. Os operários-símbolo ou operários-padrão, como diz
o locutor da cerimônia, são “os operários mais responsáveis, mais conscientes de
seu papel perante a nação...”. Diz o roteiro do filme, escrito por João Batista de
Andrade: “Solenidade pesada, numa salão da FIESP (Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo). O salão lembra um caixão visto por dentro. Nas cadeiras,
operários que disputam o título, com amigos e familiares. A frente, numa mesa
pomposa, autoridades; no meio, no centro, o presidente da FIESP: Teobaldo de
Nigris” (o roteirista observa que trata-se da festa real do operário-padrão, onde
estão “enfiados” os atores José Dumont, Renato Máster, Ruth Escobar). Diz o ro-
teirista: “Chega Mr. Joseph Losey (Renato Máster), importunado pelos repórteres
e protegido pelos seguranças.” O empresário norte-americano Joseph Losey é o
proprietário da empresa Ashby Losey do Brasil S/A. Teobaldo de Nigris, na época
presidente da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), diz na
abertura do filme: “Para sermos uma grande nação precisamos da vossa constante
dedicação ao trabalho, de vossa assiduidade, de vossa responsabilidade em rela-
ção à família. Do elevado grau de companheirismo, do respeito aos princípios e às
leis que regem o nosso país.”
Sob aplausos, José Severino da Silva, operário da Ashby Losey do Brasil, le-
vanta-se para receber o premio, sendo cumprimentado pelo seu empregador, Mr.
Joseph Losey. Um detalhe: José Severino da Silva, descrito pelo roteirista como
sendo “um homem de óculos, nordestino seco, fatalista...”, embora tenha sido in-
dicado para receber o Prêmio Operário Padrão de 1979, foi demitido há pouco,
por Mr. Joseph Losey. Severino se levanta, beija a mulher e vai à frente sob aplau-
sos. Seu patrão vai cumprimentá-lo; ele tira uma faca e o mata. Deste modo, a

235
Trabalho e Cinema • Volume 4

cena de abertura do filme “O homem que virou suco” é uma cena de violência
brutal que rompe, de modo diruptivo, com a solenidade ritualística de entrega do
Premio Operário-símbolo na FIESP.
A violência brutal cometida pelo operário José Severino da Silva contra o ca-
pitalista, na abertura do filme, representa tão-somente o ato sintético da violência
destilada que impregna toda a narrativa fílmica de João Batista de Andrade. Na
verdade, o filme “O homem que virou suco” é um filme de violência do capital
contra o mundo do trabalho em suas múltiplas formas, violência atroz que não se
encontra apenas no começo do filme, mas também no meio e inclusive, no fim do
filme. A violência condensada no gesto cruel de José Severino da Silva, o homem
que virou suco, é a expressão antípoda da violência diluída, violência simbólica
e física das classes dominantes contra as classes subalternas que percorre toda a
narrativa fílmica. Na verdade, o título do filme – “O homem que virou suco” – é
expressão da violência sistêmica que está diluída no modo de produção (e repro-
dução) do capitalismo histórico no Brasil, sociedade burguesa hipertardia de gê-
nese colonial e formação escravista.
A violência diluída – ou violência cotidiana - das classes dominantes contra
os proletários pobres que aparece no decorrer do filme, se expressa, primeiro, no
não-reconhecimento dos proletários pobres como “sujeitos de direito”. O precon-
ceito étnico-racial e a discriminação de classe, que marca a atitude cotidiana das
classes proprietárias (incluindo a “classe média”) contra os pobres - no caso, tra-
balhadores pobres de origem nordestina - são expressões da violência estrutural
do capital contra o trabalho que está na raiz do capitalismo brasileiro. Por isso, os
trabalhadores pobres são obrigados a trabalhar sem carteira assinada e, portanto,
sem acesso aos direitos sociais inscritos na CLT.
No ato cruel do operário-padrão José Severino da Silva, estava contido, em si,
o ressentimento secular das classes subalternas brasileiras contra a opressão e ex-
ploração capitalista. Ao mesmo tempo, existe um contraste dialético na expressão
do movimento da classe (contingente e necessário) exposto no filme: se, por um
lado, o operário José Severino da Silva, ao matar o patrão, deu uma resposta mera-
mente individual, radicalmente contingente e bizarra, àquilo que o capital fez con-
sigo; por outro lado, naquele ano de 1979, a classe operária brasileira organizada
como classe em-si, deu historicamente uma resposta coletiva e necessária contra a
exploração capitalista, nas greves operárias do ABC paulista (naquele ano, de 13
a 27 de março de 199, a classe operária metalúrgica do ABC organizou uma longa

236
O mundo do trabalho através do cinema

greve contra a superexploração do trabalho na indústria automobilística no ABC


paulista, o pólo mais desenvolvida da indústria brasileira).
Na verdade, o ato bizarro de Severino foi um ato antípoda à luta de classe
(como expressão do movimento coletivo do em-si da classe). Ao recusar-se a ade-
rir ao movimento sindical, o movimento do em-si da classe, Severino enlouque-
ceu. Mas a loucura de Severino é o contraponto grotesco da lucidez de Deraldo.
Na verdade, João Batista de Andrade organizou a narrativa fílmica em pólos anti-
téticos, que expõem a dialética do movimento da consciência de classe expresso,
por exemplo, no movimento da contingência grotesca à necessidade trágica, movi-
mento que caracteriza o próprio desenvolvimento do capitalismo hipertardio (os
limites do sindicalismo é a tragédia da modernidade do capital).

As simetrias antípodas da modernidade perversa


(filme “O homem que virou suco”)

Severino Deraldo
loucura luta de classe
grotesco trágico
contingente necessário

É importante contrapor o grotesco ao trágico na fenomenologia do filme “O


homem que virou suco”. Por exemplo, José Severino da Silva, não é uma figura trá-
gica, mas sim uma figura infeliz. Severino não age, limita-se a sofrer a exploração
e pior: adequar-se a ela, colaborando para que ela aumente. Severino é uma figura
perversa: sofre e goza com a exploração. Existe um conflito íntimo em Severino.
A colisão é interna. O sofrimento de Severino é interno e não externo. Externa-
mente, ele colabora com o patrão que lhe explora. Mas ele sofre a exploração e
vive seu conflito interno em sua subjetividade fechada. O conflito não é público
(como o de seus companheiros do chão-de-fábrica que organizam a greve): ocorre
na esfera privada mais íntima. Nada em Severino vai além da miséria das relações
humanas deformadas pelo isolamento e pelo anonimato massificador.
Severino é produto e vítima dessas relações; e nenhum movimento em sua
vida, ou em sua loucura, aponta para a superação do quadro em que surgiu. O
operário Severino não deixa transparecer nenhum poder capaz de romper o isola-
mento e contribuir para o embrião de uma nova comunidade humana. Ele recusa

237
Trabalho e Cinema • Volume 4

o sindicalismo e a greve como instrumento de luta. A própria vida de Severino o


encaminha para a morte. Severino não é um cidadão, mas um burguês (produtor
e consumidor). A origem da tragédia moderna está no conflito entre o burguês e o
cidadão. Mas em Severino não existe este conflito – pelo contrário, nele o homem,
como produtor e consumidor (como burguês), o operário que aspira a ascensão
social sacrificando seus laços de companheirismo no chão-de-fábrica, se sobre-
põe ao homem como cidadão com absoluta superioridade. O trágico em Severino
se torna ironia histórica e decepção: ele mata o patrão que tinha lhe indicado
como operário-símbolo do Brasil. Ao ser demitido, Severino se decepcionou com
o patrão. A loucura de Severino é expressão de sua infelicidade e sofrimento sem
saída. Ele comete um ato grotesco.
Na verdade, podemos dizer que o operário José Severino da Silva é o Gregor
Samsa (do conto “A metamorfose”, de Franz Kafka), aquele que, após uma noi-
te mal dormida, acordou transformado num “monstruoso inseto”; Severino é o
Gregor Samsa enlouquecido que cometeu seu ato grotesco: matar o patrão. Ao
trair companheiros e isolar-se em suas aspirações de ascensão profissional, cola-
borando com o patrão, Severino se metamorfoseou e passou a achar que a “nor-
malidade” é a banalidade, a superficialidade, a pequenez. Os sonhos e aspirações
de Severino se amesquinharam na medida em que renunciou a lutar por uma so-
ciedade mais justa. Severino é o oportunista que cedeu ao medo e se calou diante
do sistema, anônimo e onipotente – e pior, colaborou com o mal (a exploração).
Como seus companheiros de chão-de-fábrica, não teve a coragem de sustentar
uma convicção. Severino não tem mais disponibilidade ou vontade para sair dessa
situação degradante; nem a loucura tem força para arrancá-lo dela. Por isso, ao
decepcionar-se, enlouqueceu. Por isso, a loucura de Severino, ao matar o patrão,
o levou a expressar-se mais pelo grotesco e pela caricatura, do que pelo trágico.
O trágico significa disponibilidade ou vontade para se insurgir contra o sis-
tema, mesmo à custa da intranqüilidade e sacrifício pessoal. Ao matar o patrão,
Severino não fez um sacrifício pessoal. Ele não se insurgiu contra o sistema, mas
sim contra si mesmo, isto é, contra o bicho que ele se tornara, grotescamente de-
sumanizado, isolado das relações humanas, ser humano metamorfoseado, enlou-
quecido pela decepção com o sistema.
Após a abertura do filme, com o ato grotesco de assassinato do empresário
Joseph Losey pelo operário José Severino da Silva, na solenidade de entrega do
Premio Operário-Padrão 1979, e os letreiros iniciais do filme com a canção “Se
eu fosse um beija-flor” de Vital Brasil, as primeiras cenas do filme, nos mostram

238
O mundo do trabalho através do cinema

o local de moradia do poeta Deraldo, num lugar típico da periferia de São Paulo.
Maria, vizinha de Deraldo, põe roupa no varal; um Boeing passa por cima da
vila operária. Diz o roteiro: “Ali é o terraço de uma construção com quartos para
alugar. Embaixo, o armazém do Ceará, tipo miúdo, subdesenvolvido e que subiu
na vida em São Paulo.”
O barraco de Deraldo fica no terraço improvisado. Diz o roteiro: “um cubí-
culo de 2,5m x 2,5m atopetado de gravuras e instrumentos de trabalho, livros de
cordel com seu nome: Deraldo José da Silva.” Nesta primeira cena, quando Deral-
do sai para o trabalho, logo pela manhã, após empacotar alguns livros de cordel,
ele é provocado por Maria que pergunta se conseguiu emprego. O poeta popular
expressou, de imediato, sua repulsa pelo trabalho estranhado. Diz ele: “Se eu sou-
besse quem inventou o emprego, eu mandava fuzilar...”.
Como poeta popular, trabalhador autônomo, Deraldo se recusou a assumir o
trabalho estranhado, trabalho heterônomo que produz riqueza para o capitalista
e empobrece o trabalhador assalariado. Deste modo, Deraldo se apresenta como
crítico da ordem burguesa que se baseia no trabalho assalariado. O poeta popular
é totalmente avesso à divisão hierárquica do trabalho que caracteriza o trabalho
estranhado do capital. Deraldo, interpretado por José Dumont, é um personagem
rebelde por natureza, artista criativo que cultua a liberdade de expressão estética.
Mas a tragédia de Deraldo é que ele vive no mundo da escassez extrema. Maria re-
truca Deraldo: “Pensa que a vida é só cantar? A vida é dura, é agarrar no batente...”.
Para Dona Mariazinha, quem quer ganhar a vida, é obrigado a ter emprego assa-
lariado. Portanto, nesta primeira cena, temos a contestação da atividade criativa
do artista como trabalho. Primeiro, o poeta Deraldo não é reconhecido como tra-
balhador. Escrever poesia, imprimi-las em livros de cordel e vender no centro de
São Paulo, não é reconhecido como “emprego” (no sentido de trabalho digno). Diz
ele para Maria: “Na sua concepção isso aqui não é emprego, não?”. Ela assevera:
“Isso é diversão, seu Deraldo. Se o senhor fosse cego, vá lá, mas com uns olhinhos
desses tão vivos...Porque não faz igual a meu marido, que pega no batente desde
6 horas da manhã e só volta a noite?”. Deraldo não deixa de fazer sua observação
mordaz e irônica sobre o relacionamento conjugal de Maria: “Tai, descobri...Vocês
vivem tão bem é por isso, não é?”.
Mas Deraldo foi contestado em sua atividade de artista, não apenas por Ma-
ria, mas, também, logo a seguir, pelo dono do bar. O poeta popular entra no Bar
do Ceará que o olha com ar de hostilidade. Deraldo tem uma divida com o Cea-
rá. Diz que vai pagá-la. “Vai pagar com o quê?”, exclama Ceará. Deraldo afirma:

239
Trabalho e Cinema • Volume 4

“Poesia”. Indignado, Ceará retruca: “Poesia, seu Deraldo? O custo de vida subindo
todo dia...e o senhor vem me dizer que vai pagar com poesia? O senhor acha que
eu pago a mercadoria aqui com quê?”. Mais uma vez, percebemos a diferença ra-
dical entre a visão de mundo de Deraldo e a visão de mundo de Maria e Ceará.
Deraldo, com sua atitude atrevida, se recusa a aceitar como parâmetro de vida
e sociabilidade, o trabalho alienado, propriedade privada, divisão hierárquica do
trabalho e dinheiro, mediações estranhadas de segunda ordem do capital (como
diria I. Mészáros). Deraldo é uma individualidade pessoal exótica no mundo da
escassez, onde a atividade criativa, viver bem (no sentido humano) e as relações
de confiança, não são mediadas pelos parâmetros estranhados do capital. Maria
vive bem com seu marido, porque ele tem um emprego (“pega no batente desde 6
horas da manhã e só volta à noite”); o dono do bar Ceará só se dispõe a ser amigo
de Deraldo desde que ele pague as dividas. O mundo da escassez é o mundo social
fetichizado onde as coisas se interpõem entre os homens.
O trabalho de Deraldo não é reconhecido como trabalho digno no mundo
da indignidade humana. Ceará exclama para Deraldo: “Vai trabalhar, seu vaga-
bundo! Em vez de ficar pensando o dia todo em poesia”. Pensar o dia todo em
poesia não é trabalho, pois a concepção de trabalho como emprego assalariado é a
concepção de trabalho como atividade estranhada. O trabalho do artista popular
não é reconhecido como trabalho, por isso foi imputado a ele a pecha de vaga-
bundo. A ideologia do trabalho estranhado o desqualifica como homem digno.
Ceará expressa, primeiro, a ideologia do trabalho estranhado; e depois, a ideologia
do empreendedor que ascendeu na vida em São Paulo. Exclama ele para Deraldo:
“Seu Deraldo, vá trabalhar, seu vagabundo! Ta pensando que eu conseguiu isto
tudo com o quê? Foi com o suor do meu ganho. Veja isso aqui, veja tudo isso. Foi
trabalhando e muito, Foi muita fome que passei. Foi muita fome e muito trabalho.
Não foi com poesia, não senhor”.
O personagem Ceará é um homem livre sem posses que acumulou recursos
com sacrifício pessoal e montou seu próprio negócio. É o típico empreendedor
popular cujo sonho da ascensão social pelo empreendedorismo adensou nele, a
ideologia do trabalho. Para ele, o trabalho dignifica o homem. Ceará representa os
anseios dos proletários pobres da ordem burguesa hipertardia. É o empreendedor
que cultua a ideologia do trabalho como tripalium e o sacrifício pessoal como
expiação pelos “pecados” da exclusão social na qual estavam condenados escravos
e homens livres na ordem competitiva burguesa escravista.

240
O mundo do trabalho através do cinema

Mas o dia 6 de setembro de 1979 não era o dia de sorte de Deraldo. Após seu
trabalho não ser reconhecido por Maria e Ceará, nem como emprego, e muito me-
nos como trabalho, o poeta popular é abordado pelo fiscal da Prefeitura no centro
de São Paulo, quando vendia, em cima de uma toalha no chão, seus livrinhos de
cordel intitulados “O homem que trocou duas pernas por um pão”. O fiscal cobra
de Deraldo documentos. Ele diz: “Não, não tenho documentos”; e o fiscal exclama:
“Como não tem documento, rapaz? Então vamos jogar essa porra fora”. Deraldo
tenta convencê-lo a não jogar fora os livros de poesia. O fiscal diz: “Isto aqui é São
Paulo, não é Nordeste. Vamos conversar direito. Isto aqui é São Paulo, não é Nor-
deste. E digo mais...se você vai ficar fazendo baderna, isto não é Nicarágua. Vem
cá, menino, Aqui todo mundo tem documentos” (o fiscal chama um hippie para
mostrar que ele tem documentos).
O hippie, figura de “classe média” rebelde, deslocado no tempo e no espaço
- São Paulo não era EUA e a contracultura tinha-se se esgotado há tempos - era
o artesão “insurgente” contra os costumes burgueses... mas tinha documentos.
O hippie tira sua carteira de documentos (de dobrar) e deixa desdobrar, imensa,
cheia de documentos. O fiscal recolhe os livros de Deraldo, sempre afirmando:
“Isso aqui é São Paulo, entendeu?”. Enfim, sem lenço e sem documentos, como diz
a canção, Deraldo não era reconhecido como cidadão. O Estado burguês só reco-
nhece o sujeito como cidadão desde que ele esteja com documentos que provem
sua idoneidade civil. O “vagabundo” Deraldo não era sequer um sujeito de direitos
pois não possuía documentos, portanto não poderia exercer atividade comercial
nas ruas de S.Paulo.
Tal como discurso de Maria e Ceará, o discurso do fiscal da Prefeitura ex-
pressou a ideologia da ordem burguesa regressiva. A frase “isto aqui é S.Paulo”,
afirmado por ele, continha elementos de discriminação regional que caracteri-
zou historicamente o desenvolvimento do capitalismo hipertardio. O Estado de
S.Paulo, pólo do desenvolvimento capitalista no Brasil, atraiu migrantes de todo
o País, sendo, portanto, o Estado-mor da ordem burguesa. São Paulo não é Nor-
deste, região que exportava força de trabalho barata para o crescimento da indús-
tria paulista. O Brasil – diga-se de passagem, São Paulo – não é Nicarágua, onde
ocorreu naquela época uma revolução nacional-popular anti-imperialista. Enfim,
o discurso do fiscal era o discurso da ordem burguesa hipertardia, dependente,
colonial-prussiana de extração escravista.
Mas o dia 6 de setembro de 1979 ainda reservaria para o poeta Deraldo um
momento kafkiano. À noite, ao voltar para casa, Deraldo sobe as escadas rumo

241
Trabalho e Cinema • Volume 4

a seu barraco. Um menino pára ele, e diz que ele precisa fugir pois esfaqueou
um dono de fabrica. Deraldo exclama: “Eu? Tá todo mundo louco. Onde é que
tu ouviu essa conversa?”. O menino mostra o jornal onde Deraldo lê na primeira
página uma foto com sua cara. Diz a manchete: “Operário esfaqueia o patrão.” Na
verdade, Ceará viu a foto de Deraldo no jornal e chamou a policia. Ao chegar no
barraco, Deraldo lê a reportagem do jornal. A polícia chega com voz de prisão.
Deraldo insiste que o cara do jornal parece com ele, mas não é ele, pois o nome é
outro (José Severino da Silva). Exclama: “E meu nome é Deraldo José da Silva”. En-
tretanto, o policial retruca: “É, mas todos esses paus-de-arara é Silva. Documen-
tos. Não tem documentos?”. Deraldo, inquieto, diz: “Não, não tenho documentos.
Quando eu cheguei aqui não deu tempo de tirar documento.”. O policial, precon-
ceituoso e agressivo, exclama: “Ah, esses pau-de-arara sempre sem documentos.
Mas que onda é essa? Você é um descarado mesmo. Mexer com pé-de-chinelo é
foda. Como é, do Norte, e a identidade?”. Sentindo-se acuado, Deraldo aproveita
um descuido e foge.
A truculência autoritária dos agentes policiais e do fiscal da Prefeitura contra
o poeta popular Deraldo, que vimos nas primeiras cenas do filme “O homem que
virou suco”, são exemplos da violência diluída, perpetrada cotidianamente pelos
agentes sociais do Estado capitalista brasileiro, contra os trabalhadores pobres.
Ela permeia a vida cotidiana dos homens simples. Representa o traço da socia-
bilidade autoritária que caracteriza a formação social brasileira e o capitalismo
brasileiro de origem colonial-prussiana com extração escravista. O autoritarismo
dos agentes sociais do Estado contra os pobres, negros ou pardos, trabalhadores
simples oriundos do campo, é um elemento compositivo da síndrome da supe-
rexploração da força de trabalho no Brasil. Ela reforça (e perpetua) a lógica da
superexploração da força de trabalho.
A truculência autoritária contra os pobres no Brasil originou-se, como salien-
tamos acima, da formação social constituída historicamente na base do latifúndio
colonial-escravista. O latifúndio que caracteriza a formação social brasileira, além
da posse da terra, representa, no plano da sociabilidade, a perpetuação do status
quo opressor. Nele, uma minoria pensa, desenvolve, estabelece e decide regras de
comportamento e de direitos que se impõem a uma maioria amorfa e sem nenhu-
ma possibilidade de inverter ou subverter o processo.
A lógica social do latifúndio de origem colonial-escravista, que caracteriza a
formação do capitalismo brasileiro, concebe duas vertentes ideológicas: os “natural-
mente inferiores” e os “naturalmente superiores”. Deste modo, como salienta Paulo

242
O mundo do trabalho através do cinema

Freire (no livro “Extensão ou comunicação?”, Paz e Terra, 1992), a posse da terra não
é só um instrumento de poder e controle econômico, mas também uma legitimação
para o domínio até mesmo da alma e do futuro dos homens. Diz Freire: “A estrutura
latifundista, de caráter colonial, proporciona ao possuidor da terra, pela força e pres-
tigio que tem, a extensão de sua posse também até os homens”. Portanto, a trucu-
lência autoritária das personificações sociais do capital (fiscal da Prefeitura, agentes
policiais e, mais adiante, o Mestre de obras), reproduzem a lógica latifundista que
impregna a vida cotidiana e as relações sociais de trabalho no Brasil.

Síndrome da superexploração do trabalho no Brasil

Trabalho intenso (mais-valia relativa)

Longas jornadas de trabalho (mais-valia absoluta)

Arrocho salarial (Redução do Fundo de Consumo)

Autoritarismo das personas do capital

Redução do valor de reprodução da força de trabalho

Controle biopolítico do trabalho vivo

Riscos à saúde e acidentes de trabalho

Começa a odisséia de Deraldo José da Silva pelo mundo da precariedade sala-


rial cronicamente estrutural. Ao perseguirem Deraldo naquela noite, um holofote
ilumina os barracos enquanto policiais invadem tudo. É a expressão da trucu-
lência policial com o povo sofrido, truculência característica do Estado colonial-
-prussiano de extração escravista. Como diz o roteiro: “O foco de luz do refletor
vai revelando fachadas de casas pobres, becos, caras sofridas. O foco de luz, re-
pressor, passa a ser usado como revelação para quem asssiste (para a polícia, con-
tinua instrumento de repressão).”

A cena do holofote da polícia iluminando as caras sofridas do povo é acompa-


nhada pela música de Vital Farias - “Bate com o Pé o Xaxado” - que fala da Paraíba
e suas misérias. João Batista de Andrade fala em “foco de luz repressor”. Talvez o

243
Trabalho e Cinema • Volume 4

diretor-roteirista tenha em mente o foco de luz utilizado nos porões do DOPS nas
sessões de interrogatório policial. Mas o foco de luz não apenas reprime, mas expõe
para o público espectador, nos seus claro-escuros, a proletariedade impressa na mi-
serabilidade das habitações precárias e caras sofridas e intimidadas pelo aparato po-
licial. A montagem da cena segue a canção de Vital Farias que nos fala de lembranças
(“Que não sai da minha idéia/Que não sai da minha mente”), fome (“Eu vejo mesa
sem prato/Eu vejo prato sem ceia”) e sofrimento do proletário pobre oriundo da Para-
íba (“Bem curtida e bem pra frente/Esse suor que escorre no peito da nossa gente”).

Bate com o Pé o Xaxado


(Vital Farias, 1978)

[Refrão]
Bate com o pé xaxado [Refrão]
Bate com o pé rachado
Bate com o pé xaxado Taperoá, Paraíba
Bate com o pé rachado Na minha imaginação...
Paraíba hospitaleira,
Essa linda Filipéia, Que sublime, que besteira, ou que
Digo João Pessoalmente, torrão
Que não sai da minha idéia
Que não sai da minha mente.
[Refrão]

[Refrão]
Porto do Capim, existe
Sua sorte é meu desgosto
Essa Paraíba agora,
Ilha do Bispo
Bem curtida e bem pra frente
Esse suor que escorre no peito da Cimento deformando o nosso rosto
nossa gente
[Refrão]
[Refrão]
Essa antiga Guanabara...
Eu aqui no Baixo Roger, Centenas de edifícios nos subúrbios
Vejo uma luz de candeia coisa e tal
Eu vejo mesa sem prato Favelados e mocambos no centro da
Eu vejo prato sem ceia capital

244
O mundo do trabalho através do cinema

A cena impactante do holofote da polícia iluminando as caras sofridas do povo


é uma cena de ligação com a parte II do filme, que expõe as estações da precariedade
salarial cronicamente estrutural percorridas por Deraldo, o fugitivo. Na seqüência,
vemos Deraldo pela manhã, caminhando perdido entre a multidão que assiste a
Marcha Militar no desfile de 7 de setembro de 1979. Diz o roteirista que, Deraldo
não vê “o sentido de tudo aquilo”. A cena da Marcha Militar compõe a candente
temporalidade histórica do filme desvelando suas determinações sociais e políticas.
A odisséia de Deraldo ocorre no espaço-tempo da ditadura militar-bonapartista,
explicitando, em sua trajetória errática, as dimensões da precariedade salarial croni-
camente estrutural que caracteriza a modernidade conservadora do Brasil.
O ano do filme é 1979 é ano-chave de crise do Estado militar-bonapartista.
Neste ano, ocorreu a sucessão do general Ernesto Geisel que transmitiu o cargo
de Presidente da República para o General João Batista de Figueiredo. É o ano da
abertura política negociada. Em março de 1979 ocorreu a greve geral metalúrgica
de 15 dias que desafiou o novo governo militar. Na verdade, 1979 é um ano tu-
multuado com o aprofundamento da crise do “modelo econômico” e crise social
contra a política de arrocho salarial do regime militar. 1979 explicitou a face social
do “milagre brasileiro” baseado na superexploração do trabalho. Ao situar o filme
naquele ano, João Batista de Andrade expõe, com seu foco de luz desvelador, o
Brasil do “milagre econômico”.
A primeira estação de Deraldo é o trabalho pesado na zona cerealista de São
Paulo, carregando sacos para um caminhão. É o trabalho manual pesado e infor-
mal. Deraldo não agüenta o trabalho. Pede para sair. Diz ele: “É meio pesado para
mim”. O trabalho de carregador é trabalho similar à escravidão, tripalium que des-
gasta corpo e entorpece a mente. É insuportável para o poeta Deraldo passar horas
carregando sacos pesados de cereais para um caminhão. Na Zona Cerealista, o
trabalho de Deraldo é um trabalho avulso que presta serviço de curta duração.
Trabalhador avulso, diz a legislação trabalhista, “é o que presta serviços com
a intermediação da entidade de classe, que tem o seu pagamento feito sob a forma
de rateio”. Entretanto, não é o caso de Deraldo, que, no filme é trabalhador avulso
precário contratado sem intermediação de sindicato, não tendo deste modo, direi-
tos trabalhistas. O patrão exclama: “Você não precisa trabalhar?”. Deraldo retruca:
“Precisar eu preciso, mas não agüento”. O patrão lamenta que Deraldo abandone
o serviço pois tem necessidade de mão-de-obra. Na verdade, o lamento do patrão
é devido a perda da mão-de-obra barata de Deraldo, trabalhador avulso precário.

245
Trabalho e Cinema • Volume 4

A segunda estação do itinerário da “paixão de Deraldo”, é o trabalho num pré-


dio em construção. Deraldo chega ao prédio procurando emprego. Diz a placa:
“Precisa-se Guincheiro”. O termo técnico de “guincheiro”é operador de elevado-
res de obra. O número da ocupação de “operador de elevadores de obra” na CBO
(Classificação Brasileira de Ocupações) é 9-73.50. A descrição da ocupação de
Guincheiro (Construção civil) é a seguinte: “ Opera um equipamento de arrasto
e elevação, constituído de um cabo e um tambor de enrolamento, girando uma
manivela ou acionando um motor elétrico, para movimentar cargas diversas”; ou
ainda: “Verifica as condições do equipamento, examinando o estado do cabo, do
tambor, do freio e outros componentes, para garantir o bom funcionamento e
a segurança; passa o cabo pelas roldanas e engata suas extremidades ao peso a
ser removido, manipulando-o de acordo com a técnica requerida, para prender a
carga e possibilitar sua movimentação; opera o equipamento, acionando o motor
ou a manivela, controlando a velocidade de tração e frenando o movimento, para
arrastar ou levantar a carga ou plataforma até o local destinado. Pode operar uma
instalação elevatória de obra em construção.”
Logo ao chegar, Deraldo assiste a bronca do mestre-de-obras com um ope-
rário. Diz o mestre-de-obras: “Tá me sacaneando, rapaz? Não sabe que tem que
fazer hora extra? Não combinei com você? Tem que fazer hora extra todo dia.”. O
operário retruca: “Eu falei que ontem não podia.” Mas o mestre, com sua truculên-
cia autoritária, é incisivo: “Hoje, amanhã, ontem...qualquer dia tem que fazer. Isso
foi combinado, foi dito pra você. Tá me deixando mal com o engenheiro, rapaz.
Aqui não tem que esperar ninguém não. Você tem que fazer teu trabalho.”
De imediato, percebemos a lógica da superexploração da força de trabalho
na indústria da construção civil, um dos setores industriais afluentes durante o
“milagre brasileiro”. Intensificação e prolongamento da jornada de trabalho com
arrocho salarial – e mais ainda: relações de trabalho autoritárias. Eis a síndrome
da superexploração da força de trabalho que caracterizou o capitalismo dependen-
te no Brasil. É importante salientar que a indústria da construção civil, tal como
a indústria automobilística, produziu bens de consumo durável para a “classe mé-
dia”. Ao trabalhar como operário da construção civil, indústria que empregava,
em sua ampla maioria, proletários pobres de origem nordestina (como a indústria
automobilística), Deraldo se inseriu no âmago do mundo social da superexplora-
ção do trabalho no Brasil.
Construindo prédios de apartamento de luxo para a alta “classe média”, a in-
dústria da construção civil mobilizou, naquela época, milhares de operários po-

246
O mundo do trabalho através do cinema

bres oriundos das regiões mais atrasadas, mal organizados em sindicatos (o que os
distingue, por exemplo, dos operários da indústria metalúrgica do ABC). Apesar
de mal organizados em sindicatos, os operários da construção civil conseguiram
em 1979 se mobilizar em várias capitais e fazer greve contra o arrocho salarial.
O movimento dos operários da construção civil de 1979 inseriu-se na “onda
grevista” dos trabalhadores brasileiros que provocou uma reviravolta no mundo
do trabalho no triênio 1978-80. O núcleo dessa grande agitação iniciou-se na re-
gião paulista do ABC, espalhando-se posteriormente para o resto do país. Uma
das principais greves dos operários da construção civil ocorrida em 1979, foi a
greve dos trabalhadores da construção civil de Belo Horizonte, também conheci-
da como “A Rebelião dos Pedreiros”, que teve duração de quatro dias, mas colocou
a capital mineira em estado de convulsão social. A greve teve a participação de
mais de 30 mil trabalhadores e foi violentamente reprimida, causando a morte
de um operário e deixou mais de 50 feridos. Esta não foi apenas uma greve, mas
uma grande revolta operária que contribui para acentuar a crise do regime militar.
Os trabalhadores da construção civil são um dos setores do proletariado bra-
sileiro mais explorado. Em 1979, cerca de 80% tinham vindo do campo, sendo
que 70% ganhavam apenas um salário mínimo. Estes trabalhadores tinham as
piores condições de trabalho, trabalhando até 11 horas por dia, executando um
trabalho superpesado, com alto índice de acidentes e também muitos operários
que adquiriam doenças causadas pelo trabalho. Os operários da construção civil
eram submetidos a grande atraso cultural e grande parte era composta de traba-
lhadores analfabetos.
A truculência autoritária do mestre-de-obras era um elemento compositivo
do sistema da superexploração da força de trabalho no Brasil. Como persona do
capital de extração senhorial, o mestre-de-obras exercia o controle biopolítico
sobre o trabalho vivo, tendo em vista que proibia, por exemplo, os operários de
levarem mulher para o alojamento, e inclusive, de usar barba. Na verdade, nesse
caso, a superexploração da força de trabalho implicava visceralmente, o controle
do modo de vida do operário como trabalho vivo. O operário resiste, exclamando:
“E a barba empata meu serviço?”. Mas o autoritarismo vigente das relações de
trabalho, e o preconceito senhorial que impregna a mentalidade do supervisor
(que é um trabalhador assalariado exercendo função do capital), impede qualquer
diálogo entre operários e chefias autocráticas. Diz o mestre: “Não discute comigo.
Dou um pé no seu rabo e te mando embora. Essa barba aí me invoca. Tu é hippie?

247
Trabalho e Cinema • Volume 4

Se não é hippie, não amola. Tu é Jesus Cristo? Então tira essa porra dessa barba.
Vai trabalhar, vai embora.”
O mestre-de-obra interroga Deraldo sobre a sua qualificação para o trabalho
na construção civil: “Em que obra você já trabalhou? Em que edifício você traba-
lhou?”; ou ainda: “Você já trabalhou em alguma obra de edifício que nem essa?”;
e vocifera, arrogante: “Já misturou areia com cimento? Sabe fazer concreto? Sabe o
que é concreto armado? Sabe o que é vergalhão?”; e salienta a dureza do trabalho
na construção civil, preparando o espírito de Deraldo para a rotina da superex-
ploração do trabalho: “Olha, meu chapa, o trabalho aqui é dureza. Não é que nem
aquelas molezas que você tinha lá no Norte. Isso aqui é trabalho pra macho. Aqui
é salário mínimo. E você tem duas horas por obrigação de dar pra obra, por dia. Ai
você tem o salário e tem as duas horas em que você ganha por fora.”
Percebe-se que o mestre-de-obras não diz “hora-extra”, mas sim “horas por
obrigação para dar pra obra”. A mais-valia absoluta torna-se elemento crucial do
processo de extração de sobretrabalho. Ela se põe articulada com a mais-valia
relativa na medida em que temos a intensificação do trabalho no interior da jor-
nada laboral. Ao pagar um salário mínimo, institucionaliza-se o arrocho salarial
da categoria operária, efetuando a redução do fundo de consumo do trabalhador
assalariado abaixo do valor da força de trabalho. Eis o caráter da superexploração
da força de trabalho.
Deraldo reclama: “Mas só um [salário mínimo]?”. O mestre-de-obras argu-
menta salientando que existe um “salário indireto”: “Tu acha pouco? Um salário
só, não. É salário mínimo, mais as duas horas e mais que você pode morar aqui.
Se você fosse pagar aluguel, você ia pagar uma nota, Isto que você economiza
morando aqui é salário também.” Na verdade, o “salário indireto” oculta a própria
superexploração do trabalho, pois morar na obra, reduz (ou elimina) o tempo
“improdutivo” de trajeto do operário do local de moradia para o local de trabalho,
permitindo, além disso, o controle biopolítico do trabalho vivo (não pode trazer
mulher, etc.). Enfim, morar na obra reduz o valor de reprodução da força de tra-
balho (como ocorre, por exemplo, com o trabalho doméstico), permitindo deste
modo, maior apropriação do sobretrabalho pelo capital. Ao articular-se com a
“hora-extra” (o prolongamento da jornada de trabalho), o capital incrementa ain-
da mais a extração de trabalho excedente com o recurso da mais-valia absoluta.
Na verdade, a superexploração da força de trabalho é um elemento catego-
rial da vigência da extração da mais-valia relativa nas condições da forma social
da grande indústria, que mobiliza, em torno de si, um complexo de elementos

248
O mundo do trabalho através do cinema

de precarização da força de trabalho, tais como, o prolongamento da jornada de


trabalho, isto é, a extração da mais-valia absoluta (horas extras, trabalho não-pa-
go, etc); e mais ainda, redução do valor de reprodução da força de trabalho (por
exemplo, morar na obra ou ainda, o trabalho doméstico), controle biopolitico do
trabalho vivo e o controle autoritário do trabalho pelo capital (chefias autocráticas
e imposições de metas).
Aos poucos, Deraldo se insurge, de modo irreverente, contra o trabalho es-
tranhado: primeiro, logo na cena de entrada na obra do prédio em construção,
quando o Mestre, arrogante, fala sem parar, Deraldo por trás, zomba dele, fazendo
caretas. É a primeira manifestação da irreverência de Deraldo diante das personas
do capital de origem autocrático-colonial. Como vimos, Deraldo recusa o traba-
lho estranhado e não se adapta ao tripalium – não apenas na forma do trabalho
pesado do carregador de sacos na zona cerealista, mas também na forma do tra-
balho dominado pela superexploração da força de trabalho com gestão autocráti-
ca na obra de construção civil. Deraldo se recusa a “virar suco”.
Após Deraldo aceitar o emprego, um operário o ensina a monobrar o guincho.
O operário faz o elevador subir e descer. Diz o roteiro: “É visível a insegurança
daquilo”. Mais adiante, na cena em que o casal de “classe média”, acompanhado
do engenheiro civil, visita a obra, o próprio engenheiro fica temeroso de andar
no guincho (elevador da obra de construção civil). Ele chega a exclamar para o
mestre-de-obras: “Seu Manoel, isso aqui tá seguro mesmo?”.
Na verdade, os maiores índices de acidente de trabalho ocorrem na indústria
da construção civil. A construção civil é considerada uma das indústrias mais
perigosas em todo o mundo, liderando as taxas de acidentes de trabalho fatais,
não-fatais e anos de vida perdidos. A principal causa ocupacional de morte na
construção civil são os acidentes de trabalho. Dentre outras enfermidades de ris-
co elevado, entre esses trabalhadores, encontram-se os sintomas músculo-esque-
léticos, dermatites, intoxicações por chumbo e exposição a asbestos. As razões
apontadas para a ocorrência destes problemas de saúde na construção civil, são
o grande número de riscos ocupacionais, como o trabalho em grandes alturas, o
manejo de máquinas, equipamentos e ferramentas pérfuro-cortantes, instalações
elétricas, uso de veículos automotores, posturas antiergonômicas como a elevação
de objetos pesados, além de estresse devido a transitoriedade e a alta rotatividade.
Por exemplo, com dados de Comunicações de Acidentes de Trabalho (CAT), do
Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), estimou-se a incidência de acidentes
de trabalho fatais na construção civil, entre 1979-1989, em 59,77 por 100 mil tra-

249
Trabalho e Cinema • Volume 4

balhadores/ano, menor apenas do que a do ramo de “minerais não metálicos” (na


maioria das vezes, descumpre-se as normas de segurança em canteiros de obra,
descumprimento que se concentra, em especial, nas instalações de andaimes e
proteções periféricas).
Portanto, os riscos à saúde e acidentes de trabalho compõem o cenário do
trabalho dominado da indústria de construção civil no interior da qual se inse-
re Deraldo em sua odisséia pela precariedade salarial cronicamente estrutural. A
precarização do homem-que-trabalha – isto é, o adoecimento laboral - é um traço
compositivo candente da síndrome da superexploração da força de trabalho.
À noite, no alojamento dos operários da obra, um espaço de sociabilidade. O
roteirista descreve o barracão: “camas amontoadas, fotos de mulheres nas pare-
des, fogareiros, etc.” Analfabeto, um dos operários pergunta a Deraldo se ele sabe
ler. Pedrão recebeu uma carta da família, mas não sabe ler. Na época, a maioria
dos operários da construção civil vinham do campo, tendo origem nordestina.
Além disso, eram analfabetos em sua maioria. Apesar disso, um meio de comu-
nicação com os parentes distantes era a carta escrita. Muitos deles recorriam a
outras pessoas para ler e escrever a carta dos familiares. Deraldo diz que sabe ler e
escrever muito bem. Com os companheiros, homens simples, proletários migran-
tes nordestinos, como ele, Deraldo é afável e generoso. Pedrão pede a Deraldo
para ler a carta da sua noiva: “Deraldo pega a carta, seu rosto irradia camarada-
gem. Começa a ler”. O roteirista observa ainda: “Enquanto lê, todos os operários
escutam emocionados como se a carta fosse para cada um deles.”
A leitura da carta de Pedrão é um momento de efusiva sociabilidade entre
companheiros que, como proletários pobres, oriundos do campo, compartilham
a experiência do estranhamento na metrópole. A carta de Pedrão é a narrativa
comum a todos. Como diz João Batista de Andrade, “é como se a carta fosse para
cada um deles”. A leitura da carta de Pedrão é um momento de “experiência com-
partilhada” da saudade da família que arde no peito do migrante.
A experiência compartilhada da proletariedade - tal como a “experiência
expectante” - é um traço da experiência vivida das individualidades pessoais de
classe. A experiência compartilhada é a experiência vivida de proletários e pro-
letárias por meio da linguagem humana, experiência compartilhada capaz de
evocar sentimentos de reconhecimento mútuo e identidade de classe no sentido
de comunidade. Por exemplo, a leitura da carta de Pedrão, lida em voz alta por
Deraldo, evocou a cada um dos ouvintes, um sentimento de pertencimento àquela
comunidade de classe. A fala em grupo produziu a “experiência compartilhada”

250
O mundo do trabalho através do cinema

da condição existencial de proletariedade (o que não ocorreria se a carta fosse lida


apenas por Deraldo para Pedrão; ou lida apenas por Pedrão, recolhido na sua pri-
vacidade). Na medida em que a carta foi lida publicamente, o “público de classe”
(como disse Pedrão: “...quem quiser escutar, pode”), instaurou-se a “experiência
compartilhada” da condição existencial de proletariedade. O drama humano de
Pedrão era também o drama humano de cada um deles. Eles pertenciam à mesma
condição existencial de proletariedade.
Portanto, a leitura da carta é um exemplo de experiência compartilhada ca-
paz de evocar o pertencimento à condição existencial de proletariedade (outro
exemplo de experiência compartilhada de “classe” – uma dos mais candentes - é
a luta grevista, com tudo aquilo que ela implica: engajamento e participação em
assembléias, piquetes e atividades de grupo). Deste modo, a experiência vivida
como experiência compartilhada é sempre uma experiência humana coletiva,
experiência de interação social intensamente dialógica e identitária. Ao contrá-
rio da “experiência expectante”, experiência de sonhos, aspirações e anseios das
individualidades pessoais de classe, experiência vivida do individuo social em si
e para si; a “experiência compartilhada” é a experiência vivida do grupo social
(como “classe” do proletariado) compartilhada interativamente por meio da lin-
guagem humana (a fala, o gesto e a ação). Ao mesmo tempo, a ideologia (como
“experiência percebida”) perpassa as experiências vividas como experiência ex-
pectante/experiência compartilhada. A leitura da carta de Pedrão tornou-se uma
“experiência compartilhada” de “classe” – cada um dos operários se reconheceu
na fala de leitura de Deraldo. No silêncio da leitura de carta havia um espírito de
comunhão de “destino”: o destino da proletariedade.

Formas de experiência vivida da “classe”

Experiência expectante
(sonhos, aspirações, anseios)

Experiência compartilhada
(linguagem e interação social)

A carta de Pedrão contém elementos do “destino” de classe daqueles operá-


rios da construção civil. Ela descreve o drama humano do trabalhador migran-
te que sente saudade da família e provoca saudade nos familiares. A saudade, o

251
Trabalho e Cinema • Volume 4

sentimento que experimentamos pela ausência prolongada de entes queridos, é


expressa, por exemplo, nas preocupações e pesadelos de Mariazinha. Diz ela:
“Já faz mais de 4 meses que não recebo carta sua. E todo mundo aqui fica
preocupado quando você não escreve. Eu tenho sonhado muito com você. Outro
dia mesmo tive um sonho ruim. Você era perseguido por uma novilha preta. E
eu olhava e não conseguia me mexer, vendo você tentando se livrar. Chorei o dia
inteiro, mas minha madrinha Dagmar me disse que era bobagem. Sonho não é
nada, mas eu fiquei preocupada e só vou ficar alegre quando chegar carta sua
dizendo que está tudo bem”.
Na verdade, a “novilha preta” que persegue Pedrão no sonho de Mariazinha
é a metáfora da metrópole do capital, espaço urbano estranhado da modernidade
“automobilística” com sua desigualdade social extrema. É o que ela descreve logo
a seguir com seus temores da cidade grande. Diz Mariazinha: “A gente houve no-
tícias de São Paulo que assustam. Só crimes, assaltos, mortes. Tanto carro na rua.
Falam de tanta gente atropelada. Não deixe passar tanto tempo sem me escrever”.
A carta de Mariazinha expressa também o drama social do trabalhador sertanejo,
pequeno sitiante, agricultor pobre, pressionado pelos latifundiários nordestinos
(como o Dr. Armando) que utilizam a propriedade fundiária para especular. Diz
Mariazinha:
“Por aqui vai tudo muito bem. Só meu pai e meus irmãos que só falam de
abandonar tudo, vender a terra e ir pra São Paulo também, que aqui não tá dan-
do. A terra é pequena demais, só dá trabalho, no fim não rende nada e nem tem
dinheiro pra plantar mais, nem pra comprar um trator que a gente precisava. E o
Dr. Armando, que sempre prometeu vender mais um pedaço de terra pra gente,
agora só fala em comprar a nossa. Não sei o que esse homem quer fazer com tanta
terra. Quase tudo parada, sem plantar, sem nada”.
Talvez o Dr. Armando, o grande proprietário de terras, latifundiário, seja tam-
bém um coronel nordestino (no filme “O homem que virou suco” existe referên-
cias a dois coronéis nordestinos: o primeiro, o Dr. Armando da carta de Mariazi-
nha; e o segundo, o Coronel, que aparece, de bota e chapéu na casa da Madame,
onde Deraldo vai trabalhar como empregado doméstico).
Portanto, pressionado pela expansão do latifúndio, o pequeno agricultor
pobre, sem recursos técnicos e financeiros, como o pai e irmãos de Mariazinha,
pensam em migrar para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Na
verdade, a carta de Mariazinha expõe a candente questão agrária no Brasil. Ela
trata da sinistra simbiose entre as classes proprietárias no capitalismo hipertardio

252
O mundo do trabalho através do cinema

brasileiro, constituído ontogeneticamente pela conciliação entre o historicamente


novo e o historicamente velho: o velho coronel do Nordeste (o historicamente ar-
caico) “expulsa” os pequenos sitiantes para serem superexplorados pelo capitalista
industrial do Sul (o historicamente novo). Diz Mariazinha: “Por isso meus irmãos
Antonio e Wilson pedem pra você escrever, contando mais como é a vida aí em
São Paulo. Se dá pra arranjar emprego ganhando mais ou menos. Não precisa ser
muito... o bastante pra sustentar bem a família. Um pouco que cada um ganhe,
somos oito pessoas, dá pra viver, não é? Ninguém é de luxo”.
Apesar da integração do Brasil no sistema do capitalismo global, sendo a 5ª.
economia do mundo industrial, o capitalismo hipertardio brasileiro põe e repõe a
questão agrária, mostrando no campo, sua dimensão regressiva. No filme “O ho-
mem que virou suco”, por exemplo, o Dr. Armando é o típico coronel nordestino
que cultivou a especulação imobiliária, com a propriedade da terra funcionando
apenas como reserva de valor contra a corrosão inflacionária e meio de acesso aos
favores fiscais e creditícios das políticas governamentais. Isso porque, no siste-
ma capitalista, pouco importa que um pedaço de chão produza soja ou cana-de-
-açúcar ou feijão. O que interessa é que produza lucros. Nem mesmo interessa se
esse lucro advém da utilização produtiva do solo ou não. E enquanto milhões de
hectares de terras férteis e bem localizadas são retidos improdutivamente, outros
milhões são apropriados à custa de trambiques e violência, por grandes empresas
capitalistas que, como já destacamos, não são mais apenas os “velhos latifúndios”,
mas também os bancos e as empresas multinacionais (o que mostra que a regres-
sividade do capitalismo hipertardio se articula com a modernidade conservadora
do capitalismo dependente). Como resultado disso são expulsas do campo, a cada
ano que passa, milhares de famílias, que não têm para onde se dirigir a não ser às
favelas das periferias das cidades. É por isso que a reforma agrária aparece hoje
como a bandeira de movimentos sociais como o MST, única solução democrática
possível para a questão agrária.
É claro que há outras soluções para a questão agrária, como, por exemplo,
deixar os migrantes morrerem de fome, continuar confinando esses excedentes
de população em novas favelas (como ocorre hoje). É importante salientar que
a questão agrária se alia hoje a uma série de “outras” questões, como a questão
energética, a questão indígena, a questão ecológica, a questão urbana e a questão
das desigualdades regionais; ou seja, a questão agrária permeia hoje uma série de
problemas fundamentais da sociedade brasileira. No fundo, todos eles têm a ver

253
Trabalho e Cinema • Volume 4

com o caráter parasitário que atingiu a forma específica como se desenvolveu o


capitalismo neste país.
Finalmente, é interessante observar um detalhe: um dos traços da condição
existencial de proletariedade nas camadas proletárias pobres é a resignação mo-
ral. Mas no caso de Mariazinha, casada com Pedrão, a condição de mulher pobre
a obriga a aceitar os desígnios do marido, provedor da família. Na verdade, no
caso da mulher nordestina, existe um misto de resignação e afeição (no caso de
Mariazinha). Ela diz: “Eu não queria, mas desde que você foi pra São Paulo, o jeito
é aceitar. E também que minha vida tem que ser com você, onde você estiver.”
No dia seguinte, o casal de “classe média”, acompanhado pelo engenheiro, vi-
sita o prédio em construção, sendo recepcionado pelo mestre-de-obras. O prédio
em construção é um prédio de luxo, provavelmente financiado com fundo público
(FGTS), destinado a venda para a alta “classes média”. Este é mais um aspecto do
capitalismo hipertadio no Brasil: a transferência de renda do fundo público – no
caso o FGTS – para financiar a construção de imóveis de luxo. É um modo de espo-
liação que caracteriza o capitalismo regressivo brasileiro. Na verdade, o modelo de
desenvolvimento militar-bonapartista do capitalismo brasileiro adotado pela di-
tadura militar-civil (1964-1984), caracterizou-se pelo deslocamento do centro de
decisão em favor das grandes empresas transnacionais e do sistema financeiro in-
ternacionalizado (isso potencializou os desequilíbrios estruturais da nossa forma-
ção social – capitalismo hipertardio dependente de extração colonial-prussiana:
dependência tecnológica e financeira e concentração de renda). A mimetização
dos padrões de consumo das economias capitalistas centrais significou colocar o
foco da produção industrial em bens de consumo duráveis (por exemplo, automó-
veis e inclusive, no caso da indústria da construção civil, prédios de condomínio
de luxo), combinada a uma mudança necessária no perfil da demanda através de
uma transferência de renda das classes trabalhadoras para as “classes médias”,
a fim de viabilizar o mercado aos novos padrões de industrialização. Expandiu-
-se o gasto público e o crédito ao consumo das “classes médias”, via nexos com o
sistema financeiro internacional, e aumentou-se a pressão pelo rebaixamento dos
salários (arrocho salarial).
Ao descrever a construção do prédio de luxo para o casal de “classe média”,
o engenheiro civil diz: “Todo o acabamento é de primeira, até mesmo de luxo,
que é pra dar um nível alto para o projeto. Eu acho que não vale a pena prédios
para clientela de baixa renda. Então com esse, nós estamos lançando uma série
de luxo...pra clientela de alta renda. Gente que está deixando suas mansões por

254
O mundo do trabalho através do cinema

causa do comércio...e problemas de assalto...essas coisas. Cuidado, tem piscina


aqui. Cada apartamento tem 4 dormitórios, 2 salas, dependência de empregada...”
[o grifo é nosso].
Portanto, percebemos que a lógica da indústria da construção civil acompa-
nhou a lógica do próprio modelo de crescimento da economia baseada na concen-
tração de renda nas “classes médias” para consumirem os automóveis, as geladei-
ras, as televisões, com o endividamento financiando o consumo e a importações
de bens de capital. Optou-se por construir prédios de luxo para “classe média” en-
dinheirada, ao invés de prédios para clientela de baixa renda. Primeiro, a margem
de lucro na construção de prédios de luxo era muito maior; e depois, a venda dos
imóveis de luxo era garantida, tendo em vista o medo que a alta “classe média” ti-
nha dos assaltos que cresciam, na medida em que aumentava a desigualdade social
no País. Naquela época, a alta “classe média”, beneficiária do “milagre econômico”
brasileiro (1968-1973), mudava-se das mansões para os prédios de luxo nas áreas
nobres da metrópole. No bojo da crescente especulação imobiliária, expandiu-se
a construção de prédios de luxo. Foi um período de boom da indústria da cons-
trução civil no País. Como nos diria Celso Furtado no livro “Subdesenvolvimneto
e estagnação na América Latina” (1966), a herança colonial atualizou-se, com a
dependência e o subdesenvolvimento reforçando suas conexões fundamentais.
Na visita do casal de “classe média” à obra, acompanhado pelo engenheiro,
o mestre-de-obras decidiu operar o guincho, tendo em vista que o engenheiro
sentiu-se inseguro com o elevador. Deraldo exclama: “Não, o operador aqui sou
eu. Quem vai manobrar sou eu”. O engenheiro observa que Deraldo está sem os
equipamentos de proteção individual (EPI´s) contra acidentes de trabalho: “O se-
nhor é manobrista? Por que o senhor não ta nem com luva, nem bota?”. Deraldo
diz: “Não me deram”. O mestre-de-obras retruca dizendo que mandou Deraldo no
barracão pegar luva e capacete. Deraldo afirma: “Eles quiseram me vender e eu
não quis comprar porque não sou trouxa”.
Eis um detalhe oculto da superexploração da força de trabalho na obra de
construção civil: o capital expõem o operário à insegurança no trabalho, culpan-
do-o, muitas vezes, por não cumprir as normas de segurança contra acidentes
de trabalho. No caso de Deraldo, uma flagrante ilegalidade do patrão: os equi-
pamentos de proteção individual eram vendidos no barracão, ao invés de serem
fornecidos gratuitamente para o operário. Como Deraldo não é trouxa, recusou
comprar os EPI´s.

255
Trabalho e Cinema • Volume 4

Após desentender-se e brigar com o mestre-de-obras, Deraldo abandonou o


emprego na obra de construção civil. Como sempre, com sua irreverência sagaz, o
poeta Deraldo oferece ao mestre-de-obras, uma poesia criada no calor da sua in-
dignação. Diz Deraldo para o mestre-de-obras nordestino “puxa saco do patrão”:

Tem gente que vem do Norte


e só causa decepção...
Tu és mestre de safadeza
aleijo da criação...
Conheço a tua bravura,
puxa-saco de patrão.

A próxima estação da precariedade salarial cronicamente estrutural é o em-


prego doméstico como copeiro na Casa de Madame, uma mansão burguesa pau-
listana. Tal como operário na construção civil, o emprego doméstico cresceu
no Brasil no bojo do desenvolvimento do capitalismo industrial. Considera-se
empregado(a) doméstico(a) aquele(a) maior de 18 anos que presta serviços de
natureza contínua (freqüente, constante) e de finalidade não-lucrativa à pessoa ou
à família, no âmbito residencial destas. Assim, o traço diferenciador do emprego
doméstico é o caráter não-econômico da atividade exercida no âmbito residen-
cial do(a) empregador(a). Nesses termos, integram a categoria os(as) seguintes
trabalhadores(as): cozinheiro(a), governanta, babá, lavadeira, faxineiro(a), vigia,
motorista particular, jardineiro(a), acompanhante de idosos(as), entre outras.
O(a) caseiro(a) também é considerado(a) empregado(a) doméstico(a), quando o
sítio ou local onde exerce a sua atividade não possui finalidade lucrativa.
Foi só com a Constituição Federal de 1988, que se concedeu aos empregados
domésticos direitos sociais como: salário-mínimo; irredutibilidade salarial; re-
pouso semanal remunerado; gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos,
1/3 a mais do que o salário normal; licença à gestante, sem prejuízo do emprego e
do salário, com duração de 120 dias; licença-paternidade; aviso-prévio; aposenta-
doria e integração à Previdência Social. Com a edição da Lei n.º 11.324, de 19 de
julho de 2006, que alterou artigos da Lei n.º 5.859, de 11 de dezembro de 1972, os
trabalhadores domésticos firmaram direito a férias de 30 dias, e obtiveram a es-
tabilidade para gestantes, direito aos feriados civis e religiosos, além da proibição
de descontos de moradia, alimentação e produtos de higiene pessoal utilizados no
local de trabalho.

256
O mundo do trabalho através do cinema

Em 1979, o emprego doméstico era ainda um emprego precário, sem direi-


tos trabalhistas regulamentados ou reconhecidos pela sociedade civil. O emprego
doméstico era o emprego na área de serviços que acolhia, em sua maioria, tra-
balhadores pobres de baixa qualificação profissional, oriundos das regiões mais
atrasadas do País, mão-de-obra barata a serviço das famílias da “classe média” e
famílias da burguesia. As relações de trabalho no emprego doméstico eram rela-
ções de exploração e opressão análogas à escravidão - como não havia direitos tra-
balhistas, os empregados e empregadas domesticas não eram sujeitos de direitos,
sendo tratados literalmente como “escravos assalariados”. Na verdade, a abolição
da escravatura não modificou as estruturas hierárquicas imposta pela lógica es-
cravista, pois, na pratica, o pós-abolição não trouxe rupturas significativas na vida
social de um determinado grupo, as mulheres que eram escravas tornaram- se
empregadas domésticas.
Por exemplo, Deraldo diz para a jovem cozinheira que o Coronel estava che-
gando na Casa de Madame. Diz ele: “Te cuida, porque menina assim como você,
ele come mesmo...Ele vai te passar a mandioca”. Deraldo sabia da natureza opres-
sora das relações de trabalho doméstico, onde era comum o patrão, filhos e ami-
gos da Casa Grande, como o Coronel, que visitava a Casa da Madame, assediar as
“escravas assalariadas” da Senzala. Na verdade, isto tornou-se um elemento da
herança escravista das relações sociais de trabalho no Brasil.
Na cena da Casa da Madame, João Batista de Andrade caracterizou o Coronel
como um homem nordestino rude, oligarca que chegou ao parlamento brasilei-
ro, mas não perdeu os traços arcaicos de latifundiário do sertão da Paraíba. O
Coronel admira uma cabeça de boi de papelão dependurada na parede. Diz que
aquela cabeça de boi é diferente do boi da Paraíba: “O boi da Paraíba tem chifre
assim, agressivo, pra frente. Feito o Brasil”. A Madame pergunta por que o Co-
ronel não vem morar em São Paulo e deixa aquela vida de luta...Mas o Coronel
está preso àquele estilo de vida do sertão nordestino, onde o oligarca alimenta-se
das relações de cordialidade do sertanejo que o reconhece como senhor da Casa
Grande (o que não aconteceria, por exemplo, em São Paulo, onde a impessoalida-
de caracterizava as relações de dominação). Diz o Coronel: “Comadre, isso aqui
é lá vida? A senhora sabe que eu vim pela rua um tempão e ninguém nem bom
dia me deu? No Norte, aquilo é que é vida, no descanso, na calma, na fartura.”; e
diz mais: “Olha, comadre, lá não vive bem quem não quer. O que atrapalha muito
lá é a ignorância, falta de cultura...Eu mesmo tou montando uma indústria lá na
Paraíba com incentivos fiscais. Ajuda do governo.” A Madame afirma: “Governo

257
Trabalho e Cinema • Volume 4

bom”. O Coronel prossegue: “Graças a Deus. Mas eu vou levar gente daqui, gente
ligada à produção. Vai ser uma beleza”.
Por um lado, o Coronel, oligarca político do Nordeste, latifundiário e indus-
trial, demonstrando o vinculo orgânico entre o historicamente novo e o histori-
camente velho no capitalismo hipertardio, cultua a cordialidade do atraso, a sua
calma e fartura (como diz o Coronel, fartura “para quem quer”, pois como diz o
Coronel, “lá não vive bem quem não quer”); e, por outro lado, lamenta a igno-
rância e falta de cultura quando elas significam a falta de força de trabalho mais
qualificada para a sua indústria na Paraíba, construída com incentivos fiscais do
governo militar.
Mais uma vez, o filme “O homem que virou suco” expõe a espoliação do fun-
do público para financiar empreendimentos das classes dominantes: o que vimos,
por exemplo, na indústria da construção civil, com prédios de luxo sendo finan-
ciados pelo FGTS e incentivos fiscais para indústrias no Nordeste, indústrias de
propriedade da oligarquia política local, os coronéis latifundiários, que apóiam o
governo militar. Portanto, durante a ditadura militar, o modelo de crescimento da
economia brasileira baseou-se, não apenas na transferência de renda das classes
trabalhadoras para as “classes médias”, permitindo, deste modo, a mudança neces-
sária no perfil da demanda tendo em vista o padrão de industrialização centrado
na produção de bens de consumo duráveis; mas baseou-se também na transferên-
cia de renda para as oligarquias regionais por meio, por exemplo, de incentivos fis-
cais para indústrias no Nordeste. Eram as oligarquias regionais que sustentavam
politicamente o regime militar.
Deraldo, irreverente e indignado com o cinismo das classes dominantes, age
de modo atrevido contra as personas do capital. Como um Carlitos nordestino
consciente de sua inadequação à ordem medíocre da burguesia hipertardia, ele se
“insurge” na Casa da Madame: põe as cinzas do cigarro do Coronel nos copos de
whisky dos garotos que pulam a discoteque; mistura-se aos garotos na discoteca;
e dá umbigadas na filha da madame e suas amigas (o roteirista diz: Deraldo trans-
forma a discoteque numa dança nordestina); joga o vaso de cerâmica da Paraíba
que o Coronel deu para a afilhada, dentro da piscina e depois, finalmente, passa a
mão no bife do cachorrinho Xaxá (como diz ele, “o bife do cachorro viado”); come
uns pedaços e depois, dá um pedaço para um cãozinho vira-latas.
Mais uma vez, o poeta Deraldo está desempregado, fugindo da polícia, com
os jornais acusando-o de matar o patrão. Encontra na rua um operário da obra,
o mesmo que lhe ensinou a operar o elevador; o operário lhe diz que o mestre-

258
O mundo do trabalho através do cinema

-de-obras mostrou a reportagem do jornal para todo mundo, acusando-o de ser


o assassino do empresário. Deraldo diz: “Eu não matei ninguém não, viu? E meu
nome é Deraldo. O cara que matou o patrão chama-se José Severino da Silva. Ago-
ra, como eu não tenho documento... Não posso provar. A polícia tá atrás de mim.
Realmente, amigo, estou numa pior. Tou passando fome, necessidade”.
O operário diz ter um amigo que trabalha no metrô e que o metrô está con-
tratando pessoas. Diz ele: “...o metrô está precisando de gente pra serviço braçal”.
Esta será a próxima estação da precariedade salarial cronicamente estrutural: o
trabalho para empreiteira da obra de construção civil pública: o metrô da cidade
de São Paulo, símbolo da modernidade paulistana. Ao despedir-se do operário,
Deraldo, grato pela sua amizade, dedica-lhe uns versinhos:

Nas asas do pensamento


voarei por muitos ares...
Cantarei como os passarinhos
sobrevoando os pomares.
Serei um vate das letras
cantando em muitos lugares.

E depois, Deraldo complementa com uma “Canção de Fogo”, como ele diz:

Bem só pode estar o Sol


porque ninguém o alcança.
Haja no mundo o que houver,
o sol lá nem se balança.
Enquanto a fortuna dorme,
a desgraça não descansa.

O metrô de São Paulo é expressão da modernidade capitalista no Brasil. De-


raldo sobe uma escada rolante, entra no trem que dispara acima da cidade e entra
no túnel escuro. Dirige-se ao local da obra do metro para inscrever-se como ope-
rário. Entretanto, a empreiteira como uma empresa moderna, faz um treinamento
para seus operários contratados para trabalhar na obra do metrô. Diz o professor
do treinamento: “A nossa empresa tem a tradição de preparar os operários para
as obras. E para que se adaptem bem, sem criar problemas para vocês mesmos e
para a obra. A obra, como vocês sabem, é da maior importância para São Paulo

259
Trabalho e Cinema • Volume 4

e para o país. Muitos de vocês estão chegando agora a São Paulo, certamente. E a
grande maioria vem da zona rural... Nós vamos apresentar para vocês um filme
que é chamado audiovisual. Nós vamos apresentar esse audiovisual durante 3 dias
pra vocês e discutir muito sobre ele com vocês”.
O treinamento dos operários do Metro tem como objetivo, adaptar os operá-
rios à disciplina industrial. Como a maioria dos operários, como diz o professor,
“vêm da zona rural”, o treinamento é um modo de domar o trabalho vivo e adaptar
a força de trabalho ao rigor da produção capitalista. No filme “O homem que vi-
rou suco”, de João Batista de Andrade, o tema da conformação do homem rude do
sertão nordestino à vida moderna e à disciplina do processo de trabalho capitalista
é um tema candente do filme. Este é um problema crucial do processo de moder-
nização do capital no Brasil, que exigiu a formação de subjetividades humanas
adequadas à superexploração da força de trabalho (trabalho intenso, longas jor-
nadas de trabalho e arrocho salarial). Como diz o professor, preparar os operários
para o trabalho, é fazê-los se adaptar bem às condições de trabalho, evitando que
eles criem problemas para eles mesmos e para a obra.
Na sua odisséia pelas estações da precariedade salarial cronicamente estrutu-
ral no Brasil, o poeta Deraldo não se adaptou a nenhum emprego, recusando, não
apenas as condições salariais da superexploração do trabalho, como carregador
da zona cerealista ou operário da construção civil; mas também o desrespeito e
o preconceito contra o homem comum de origem rural. Portanto, o mundo so-
cial da superexploração do trabalho implica, não apenas as condições salariais do
trabalho intenso, longas jornadas de trabalho e arrocho salarial, mas a opressão
cultural e o preconceito social de extração colonial-escravista contra o povo brasi-
leiro. É o que denominamos de síndrome da superexploração da força de trabalho
no Brasil.
O treinamento na grande empresa é uma operação de conformação ideológica
do trabalho vivo às condições salariais e culturais da superexploração da força
de trabalho. O título do audiovisual apresentado no treinamento – “Audiovisual
do Herói Ridículo” – é expressão sintomática da “captura” da subjetividade do
trabalho pelo capital. Ridiculariza-se para quebrar a auto-estima do trabalho vivo,
tornado-o para mais dócil para introjetar a disciplina moral adequada às condições
salariais da superexploração da força de trabalho. Cria-se uma figura caricata do
homem nordestino e o ridiculariza, salientando, de forma negativa, as qualidades
pessoais que se busca denegrir. A longa transcrição da fala do audiovisual torna-
-se necessária. Diz o locutor do Audiovisual:

260
O mundo do trabalho através do cinema

Este é Antonio Virgulino da Silva. Cabra macho,


valente... Domador de burro bravo. Campeão em
todas as vaquejadas, era sempre respeitado. E
nosso herói logo se via cercado de mulheres. No
braço-de-ferro, como em tudo, era campeão.
Vencia no primeiro arranco. Um dia chega uma
carta de São Paulo, enviada por um amigo seu.
Virgulino, nosso herói, não sabia ler. Seu Manoel
lê a carta. Na carta o amigo conta suas aventuras
na cidade grande... Fala de máquinas gigantes,
feito cobras, que andam em cima de trilhos.
Era o metrô. Nosso herói imaginou logo a coisa.
Deu uma grossa cusparada e disse: Vou pra São
Paulo domar essa cobra gigante. Mostrar para
os paulistas o que é um cabra-macho.
Logo que chegou em São Paulo, Virgulino procurou
uma obra do metrô. E aqui está ele. Todos
trabalham, mas Virgulino, o nosso herói, não.
Bebia. Como valente que era, não respeitava um
só dos avisos. Era o único, que só por pirraça,
andava descalço na obra.
Respeitar o chefe? Dizia ele. Quero ver quem é
mais valente.
E não só não respeitava, como ainda rasgava os
cartazes. Ameaçava o chefe com sua peixeira
sempre do lado. Com tudo isso, Virgulino foi ficando
marginalizado pelos próprios companheiros,
que ridicularizavam suas manias.
Parece que ainda está no Norte, diziam.
Nosso herói se acabrunhava, mas não se emendava.
E logo aprontava mais uma valentia: desrespeitar
as ordens. E lá vai o nosso herói, cambaleando
pela tábua.
E “chibum”, despenca na poça d’água. Virgulino
era mesmo ridículo. Tinha fama de herói, mas
era um palhaço.

261
Trabalho e Cinema • Volume 4

Perdeu o emprego. E é expulso pelos próprios


companheiros. E acaba recebendo uma chuva de
cuspe na cara. Lá vai Antonio Virgulino Silva.
Atravessando São Paulo de volta para o Norte,
como um derrotado.

Um detalhe: todo o audiovisual que ridiculariza o herói do Sertão nordestino


foi acompanhado de músicas nordestinas: repentes, toadas, aboios. No discurso
da pequena tragédia do herói nordestino, algumas pérolas da ideologia da Ordem
que caracteriza sociedade brasileira:
Primeiro, o nome do herói ridículo era Virgulino (referência ao bandido Lam-
pião cujo nome era Virgulino Ferreira). Na verdade, a ideologia da Ordem quer
transmitir a idéia de que é ridículo rebelar-se. Personalidades rebeldes, negativas,
criticas, são hostis e devem ser renegadas a favor de personalidades colaborativas,
pró-ativas e propositivas.
Depois, salienta-se que o herói é analfabeto (não conseguiu ler a carta que
recebeu de São Paulo), imputando-lhe incapacidade de adequar-se ao mundo so-
cial moderno. Na verdade, a educação é um elemento de inclusão social na ordem
moderna, possuindo, em geral, caráter conformativo. A ordem burguesa cultua
aquilo que Paulo Freire denominou “educação bancária”, uma educação onde o
único papel do educador é expor/impor conhecimentos, não havendo espaço para
discussão ou reflexão. Para isto adota-se, analogamente, o termo “bancária”. A
idéia que se tem é de que, aquele que possui conhecimento, irá “depositar”, trans-
ferir, pura e simplesmente, aquilo que conhece para aquele que nada sabe, o de-
positário do saber de outrem.
Virgulino possuía algumas qualidades pessoais: era valente, cabra macho,
domador de burro bravo. Diz o audiovisual: campeão em todas as vaquejadas,
campeão no braço-de-ferro. era sempre respeitado e cercado de mulheres. Enfim,
era um herói daquele lugar: o sertão nordestino. Não se criticava Virgulino por
ser valente e cabra macho no Sertão nordestino, mas sim, por querer ser valente
e cabra macho em São Paulo. Era um comportamento de valentia fora-de-lugar.
A ordem burguesa no Brasil implica um duplo lugar: o lugar da ordem mo-
derna da cidade grande e o lugar da ordem arcaica do latifúndio. Eles se articulam
organicamente na formação hipertardia do capitalismo dependente brasileiro de
extração escravista. A modernidade brasileira é uma modernidade cindida em
dois lugares: o lugar do “novo” e o lugar do “arcaico”.

262
O mundo do trabalho através do cinema

Virgulino, o herói rídiculo e o Coronel, o latifundiário que visita a Casa de


Madame, pertencem, por exemplo, ao lugar do “arcaico”. Entretanto, o Coronel
conseguiu transitar pela ordem do “novo” na medida em que ele – como repre-
sentação do “arcaico” - é parte orgânica da ordem do “novo” em sua articulação
hipertardia de extração colonial-escravista. Por outro lado, Virgulino é o homem
simples, rebelde, inadaptado, herói problemático, herdeiro do arcaico subalterno
que sucumbe diante da modernidade irremediável.
Virgulino, o herói valente do Sertão, ao receber a carta de São Paulo, impres-
sionou-se com o relato do amigo que mora em São Paulo. Apesar de analfaberto,
Virgulino era um homem simples de imaginação fértil. Imaginou máquinas gi-
gantes, feito cobras, que andam em cima de trilhos. Era o metrô – símbolo da
modernidade da cidade grande. Auto-confiante, Virgulino decidiu ir a São Paulo,
domar essa cobra gigante e mostrar para os paulistas o que é um cabra-macho.
Entretanto, ir a São Paulo “domar essa cobra grande” significava trabalhar no me-
trô. Pela primeira vez, a representação de Virgulino, o herói ridículo, cruzou-se
com a auto-representação do público, constituída em sua maioria por operários
oriundos da zona rural sertaneja.
A auto-confiança de Virgulino tornou-se arrogância. Ele não consegue se
adaptar ao trabalho na cidade grande. A cidade grande era um lugar estranho.
Diz o audiovisual que Virgulino só bebia. Era o sintoma da deriva pessoal. Diz
ainda que ele não respeitava avisos e rasgava cartazes. Por exemplo, era o único,
que só por pirraça, andava descalço na obra; não respeitava o chefe e o ameaçava
com sua peixeira de lado. Não se adaptar no trabalho era o sintoma crucial da
inadequação de Virgulino à inexorável modernidade. Enfim, Virgulino preservou
o ethos do cangaço, atitudes e comportamentos de insurgência popular típicos da
ordem rural do latifúndio.
As origens do cangaço, como fenômeno social que se alastrou pelo nordeste
brasileiro, particularmente a região do sertão, tem influência da forma como foi
colonizada o sertão brasileiro. Com a expulsão dos índios e a escravidão indígena
e negra, veio a colonização, com as lavouras de cana na região mais próxima do
mar; e mais tarde, as fundações das extensas fazendas de criação de gado, os lati-
fúndios, nas regiões mais afastadas do litoral. Os pobres se vêem desprovidos de
terra, vivendo num ambiente cercado pela miséria e pela violência dos coronéis
e do Estado. A falta de perspectivas de vida, em um ambiente cercado de violên-
cia de todos os tipos, bem como a cultura de honra e orgulho, que foi gerada no
povo do sertão, são alguns fatores que levaram muitos homens a entrar na vida do

263
Trabalho e Cinema • Volume 4

banditismo. O ethos do cangaço estava incorporado na figura de Virgulino, cabra-


-macho que cultiva a cultura de honra e orgulho. O cangaço foi um tipo de ban-
ditismo que se iniciou por motivos de vingança entre famílias, incluindo as das
próprias elites por divergências políticas, questões de herança, salvaguarda das
terras etc (alguns cangaceiros eram pequenos proprietários, mas é entre o povo
pobre que ele irá florescer com mais força). Existiram cangaceiros que faziam ser-
viços para fazendeiros, coronéis e políticos. Outros eram levados a vida bandida
por iniciarem brigas e nunca mais poderem voltar para suas antigas vidas, sendo
perseguidos pela família rival, por capangas ou mesmo pela polícia. Mas é quando
o cangaço passa a ser meio de vida, uma profissão, que vai se tornar o fenômeno
que ouvimos falar em nossos dias.
Finalmente, o audiovisual mostra que Virgulino foi ficando marginalizado
pelos próprios companheiros, que ridicularizavam suas manias. Virgulino não
percebia que o lugar era outro: ele não vivia no sertão nordestino, mas em São
Paulo, o que exigia dele, novas atitudes sociais. O discurso do audiovisual exibido
no treinamento, transmitia a mensagem da adequação do operário, não apenas à
obra, mas a cidade grande, adequação que significava respeito: respeitar avisos e
respeitar o chefe. Enfim, o operário deveria adaptar-se, adequando-se à ordem
social local, renunciando ao espírito de valente e cabra-macho, atitudes e compor-
tamentos inadequados para a vida social moderna. Na cidade grande não havia
vaquejada e quebra-de-braço. Havia trabalho, disciplina e respeito, ingredientes
morais de adequação concreta às condições da superexploração da força de tra-
balho no Brasil.
Após a apresentação do audiovisual, Deraldo entra numa situação de inquie-
tação mental. Ele está transtornado com a carga ideológica do audiovisual. Ex-
clama para o professor: “Nunca me viu não? Fica me olhando assim como seu eu
fosse um bicho!”. Diz o roteirista: “Deraldo não suporta a tensão em sua cabeça.
Precisa fazer alguma coisa. Olha com ódio para o professor e acaba chutando uma
cadeira que se quebra, com um grande estrondo”. Na verdade, o treinamento aba-
teu-lhe a auto-identidade pessoal, contribuindo, deste modo, para a perda da sua
auto-estima visando adequá-lo à ordem disciplinar burguesa. Deraldo é o homem
que virou bicho. Após o treinamento, os conflitos íntimos de Deraldo se agudiza-
ram. É o momento da deriva pessoal.
A cena no corredor do refeitório, corredor de madeira por onde devem passar
os operários para se servir, é uma cena metafórica que expressa a deriva pesso-
al de Deraldo, o homem ridicularizado que virou boi indo para o matadouro. O

264
O mundo do trabalho através do cinema

diretor João Batista de Andrade constrói uma interessante metáfora com a cena
do corredor do refeitório, que acaba se transformando – no imaginário de Deral-
do - num corredor de gado, usado para controle, marcação e vacina do boi. Ao
contrário de Serguei Eisenstein no filme “A greve”, João Batista de Andrade, não
utilizou imagens do boi indo para o matadouro, metáfora utilizada por Eisenstein
para representar o massacre dos operários pelas forças de repressão do Czar; mas
o próprio ator no papel de Deraldo, representou o boi preso e acuado no corredor
usado para controle, marcação e vacina. Diz o roteirista: “Deraldo, sozinho, em
transe, ali dentro. Faz gestos lentos, estranhos e, de início, bem sutis.Não sabe o
que faz. Aos poucos começa a emitir som triste, suave. O som aos poucos se parece
com um mugido de boi. Seus gestos aos poucos vão se transformando em marra-
das (cabeçadas de boi) contra a cerca. Gesto e som vão num crescendo doido.” Ao
utilizar o transe de Deraldo no corredor de refeitório, que aparece como corredor
de gado, o diretor João Batista de Andrade quis dizer que o operário-poeta De-
raldo sentia-se como um boi aprisionado. O objetivo do treinamento capitalista
imposto aos operários da obra do Metro era “controle, marcação e vacina” dos
operários contra o “vírus” da insubordinação. O capital quer imprimir a sua mar-
ca no operário-boi e vaciná-lo contra o vírus da rebeldia. Deraldo é o homem que
virou boi. Mas, como boi, ele resiste dando marradas contra a cerca.
Tanto a cena do corredor do refeitório, como a cena onírica de Deraldo numa
rua central de São Paulo, vestido de cangaceiro, igual ao herói ridículo, encostado
a um poste, com um fuzil na mão e cruzado de cartucheiras de balas, punhal na
cintura, facão, são momentos que expressam a luta de Deraldo contra a perda
de si. Na cena onírica, em que ele aparece vestido de cangaceiro, igual ao herói
ridículo, diz o roteiro: “O público se junta e todos gozam a triste figura”. Como
um Dom Quixote nordestino, o cangaceiro Deraldo, atormentado, tira seu facão e
ameaça as pessoas que cada vez mais se divertem com o tipo que não lhes causa
nenhum medo. Na verdade, Deraldo está tendo um pesadelo.
O treinamento da empresa abalou o poeta popular. As duas cenas de delírio
pessoal de Deraldo – imaginar ser um boi cercado num corredor para controle,
marcação e vacina; e sonhar ser um cangaceiro, igual ao herói ridículo, no centro
de São Paulo - expressam o impacto contundente do treinamento com audiovisual
na subjetividade de Deraldo. Os cursos de treinamento para operários e empre-
gados nas empresas capitalistas, que têm aumentado ano após ano, são instru-
mentos indispensáveis de “captura” da subjetividade do trabalho vivo pelo capital,
visando adequar a força de trabalho aos requisitos da produção de valor. Esses

265
Trabalho e Cinema • Volume 4

treinamentos têm mais função de adequação comportamental do que transmis-


são de conhecimentos técnicos. Deste modo, o objetivo dos cursos de treinamento
é conformar o trabalho vivo ao mundo social da produção capitalista, disseminan-
do valores empresariais.
No dia seguinte, no refeitório, um barracão de madeira onde todos se sentam
em bancos com mesas improvisadas, um operário provoca Deraldo dizendo: “Tá
gostando da comidinha?”. Ele questiona a qualidade da refeição servida aos ope-
rários. O operário sutilmente expõe para Deraldo, traços da precariedade salarial
que compõem o desiderato da superexploração da força de trabalho no Brasil: ali-
mentação de péssima qualidade servida aos operários e condições insalubres de
trabalho na obra do Metro (por exemplo, o operário diz para Deraldo que “o quen-
te é lá embaixo, você nem vê a luz do dia, é só terra, tapume. A gente só vê a luz lá
fora, de noite...”). Trata-se de um quadro infernal que inquieta e abala mais ainda
o operário-poeta. Perturbado, Deraldo acha uma barata no prato. Diz o roteirista:
“É a gota d´água, joga o prato pra cima e grita: Isso é comida pra gente, porra?
Barata na comida!”. O refeitório explode na maior confusão. Guardas brigam com
Deraldo, que consegue, mais uma vez, fugir do inferno do trabalho capitalista.
O poeta Deraldo, fugitivo da polícia, homem incapaz de se adaptar à misé-
ria da superexploração do trabalho, rebelde contumaz, encontra-se no seu limite
pessoal. Perambula pelas ruas movimentadas de São Paulo, faminto e fraco. As
pessoas o olham com piedade. Ele encontra a caridade do público que circula pe-
las ruas. Diz o roteirista: “Uma pessoa lhe dá dinheiro. Outra lhe dá um café. Uma
outra pessoa começa a conversar com ele, dando-lhe conselhos para não desistir,
para enfrentar a vida, que ele vai superar as dificuldades.”. Mas, sem forças, Deral-
do acaba caindo na calçada e no meio da gente, fica desmaiado.
A odisséia do poeta popular Deraldo pelas estações da precariedade salarial
cronicamente estrutural no Brasil o conduz ao asilo de mendigos. É o destino da
inadaptação pessoal de Deraldo ao inferno do trabalho assalariado precário. No
asilo de mendigos Deraldo está pálido e sem forças. Mendigos se amontoam nas
camas muito juntas. O asilo de mendigos é o depositório do lumpen-proletariado,
trabalho vivo inservível para o capital e excluído do mundo social da produção ca-
pitalista. Deraldo tornou-se um lumpemproletario, inserindo-se na camada social
do lumpemproletariado, palavra de origem alemã (“lumpenproletariat”: “lumpen”
+ “proletariat”), que foi aportuguesado pelo dicionário brasileiro Aurélio (2.ª edi-
ção) para lumpesinato ou lumpemproletariado. Significa, ao pé da letra “trapo ou
homem trapo”. Esta palavra designa a camada social do proletariado, carente de

266
O mundo do trabalho através do cinema

consciência política, constituída pelos operários que vivem na miséria extrema


e por indivíduos que vivem direta ou indiretamente desvinculados da produção
social e que se dedicam a atividades marginais, como, por exemplo, o roubo e a
prostituição. Deraldo caiu no inferno do “lumpemproletariado”, mas não é um
“lúmpen”, que é relativo ao “ser lúmpen”, isto é, pessoa desprovida de qualquer
tipo de princípio ético; um estado de espírito que não se restringe a classes ou
categorias sociais; por vezes um oportunista. Marx classifica a palavra “lúmpen”
de pernicioso, já que a absoluta ausência de valores e o cinismo de seu compor-
tamento poderiam contaminar a consciência revolucionária do proletariado. En-
fim, Deraldo imerso na miséria extrema, encontra-se apenas depauperado física
e mentalmente.
Mas no mundo do capital, mendigos são personagens do espetáculo da cari-
dade organizada, tornando-se dependentes do gesto oportunista de filantropos da
miséria social. O que significa que, assim como existe a indústria da seca no Nor-
deste, existe a indústria da miséria social que aproveita-se dos mendigos para sua
auto-promoção empresarial. Uma enfermeira diz para Deraldo: “Você está num
lugar que você vai ser bem tratado. É bom ficar quietinho porque hoje é a visita da
Condessa. A pessoa que mantém este lugar, para ajudar gente como você.”
Ao visitar o asilo de mendigos, a Condessa está acompanhada com repórteres.
A visita da Condessa é um verdadeiro espetáculo midiático com a miséria huma-
na. Ela detém um mendigo que o entusiasma, uma figura engraçada, original;
como diz o roteirista, “um mendigo que mais parece um ser de outro mundo,
vestido com restos de saco, o olhar catatônico...”. A Condessa diz aos pessoal da
imprensa: “Vejam o estado em que esses pobres coitados chegam aqui. Eles che-
gam sem a menor condição de higiene. Cheios de piolhos, pulgas, vermes, um
horror. E aí a nossa equipe médica faz um check-up geral... Para ver se eles têm
alguma doença grave... Se eles têm Mal de Chagas, se eles têm tuberculose... Vocês
sabem, esse povo nosso é extremamente subdesenvolvido, desnutrido. Você per-
cebe olhando pra ele que ele está num estado lastimável. E as nossas enfermeiras
fazem um trabalho admirável...”
Como pertencentes à camada social do lumpemproletariado, os mendigos
são ex-operários incapacitados que vivem na miséria extrema, indivíduos que vi-
vem direta ou indiretamente desvinculados da produção social, excluídos como
força de trabalho do mundo social da produção do capital. Eles não são seres de
outro mundo, mas sim, espectros de forças de trabalho desefetivadas e alienadas,
refugos humanos do “moinho satânico” do capital. Ao fetichizá-los como “pobres

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Trabalho e Cinema • Volume 4

coitados” e “povo extremamente subdesenvolvido, desnutrido” a Condessa oculta


o complexo social da superexploração do trabalho que produziu a escória huma-
na. Como parte ineliminavel da superpopulação relativa, o lumpemproletariado é
um subproduto da dinâmica de acumulação do capital.
Por exemplo, Deraldo encontra entre os mendigos, um ex-operário, oriundo
de Pernambuco, que sofreu acidente de trabalho e ficou incapaz de trabalhar. O
mendigo, ex-operário nordestino, diz: “Pra mim viver de esmola, o melhor é São
Paulo”. Na verdade, o clima cultural do asilo de mendigos é um clima nordestino.
Deraldo começa a ouvir uma música: Asa Branca (de Luiz Gonzaga), na sanfona.
O roteirista descreve uma cena dantesca: “Os mendigos bailam, dançam com a
Condessa que ri às gargalhadas ao som da sanfona.”
O asilo de mendigos é a última estação da odisséia da precariedade salarial
cronicamente estrutural percorrida por Deraldo, precariedade salarial cronica-
mente estrutural que caracteriza o capitalismo hipertardio brasileiro. O asilo de
mendigo – como o hospital psiquiátrico que irá acolher José Severino da Silva - é
a última estação do homem que virou suco.
Após ser reconhecido por um repórter que acompanhava a Condessa, De-
raldo consegue mais uma vez, fugir. Temos a seguir, duas cenas que compõem a
transição da primeira parte do filme para a segunda parte constituída pela verda-
deira história do homem que virou suco: o reencontro de Deraldo com Mariazi-
nha; e depois, o encontro de Deraldo com seu Castor, editor dos livros de cordel
de Deraldo.
Ao reencontrar Mariazinha, Deraldo descobre uma mulher diferente daquela
que implicava com ele no bairro. Mariazinha tornou-se mulher da noite, traba-
lhadora do sexo, que ganha a vida fazendo programas sexuais. Deraldo retorna ao
barraco para pegar algumas coisas e reencontra Mariazinha. Diz Deraldo: “Ontem
eu te vi na rua...Tu tava entrando num carro. Num Volks...” O marido de Maria-
zinha voltara para Natal e ela teve que ganhar a vida sozinha. Maria e Deraldo se
aproximam e se tornam íntimos. Deraldo pega um pacote de livrinhos de cordel.
No dia seguinte, Deraldo visita Castor, seu editor. Ele leva alguns livrinhos
de cordel para que ele possa apreciar e, quem sabe, vender. Exclama: “Eu nunca
vi cidade mais doida do que essa na minha vida”. Castor retruca: “Então pra que
veio?”. Deraldo arremata: “Porque que minha gente vem pra aqui ser esprimido...
Virar suco de laranja e ser jogado aí pela sarjeta. Não entendo”.
Castor vem com um jornal onde está a foto do operário que matou o patrão.
Deraldo afirma inocência e diz ser outra pessoa: “Meu nome é Deraldo e o senhor

268
O mundo do trabalho através do cinema

sabe disso.” E depois: “O senhor tem que acreditar na minha palavra. Homem é
homem. O senhor é meu amigo ou não é?”. Castro olha desconfiado para o poeta.
O editor recusa o livrinho de cordel intitulado “O homem que trocou duas pernas
por um pão”, dizendo que essa história é muito nordestina: “Coisa pra gente que
vive lá”. Deraldo exclama: “Mas não tem nordestino em São Paulo?”. Castor: “Tem,
mas não estamos interessados nisso”. Finalmente, Deraldo tem a idéia de uma
história que o ilumina e desperta o interesse do editor. Diz ele: “Eu vou escrever
a história desse operário que matou o patrão”. A partir deste momento entramos
na segunda parte do filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade.

Estações da precariedade salarial cronicamente estrutural


(As aflições de Deraldo no filme “O homem que virou suco”)
carregador na zona cerealista

operário da construção civil

empregado doméstico na Casa da madame

operário da obra de construção do Metro

mendigo no asilo da Condessa

Na primeira parte do filme, constituída pelo conjunto de estações da preca-


riedade salarial cronicamente estrutural percorridas por Deraldo, temos expe-
riências vividas da superexploração da força de trabalho. É o drama pessoal do
“estrangeiro” em sua própria terra, proletários pobres oriundo do Nordeste que
enfrentam a superexploração do trabalho, preconceito étnico-racial e opressão
cultural na cidade grande. Como diz Deraldo, “...gente [que] vem pra aqui ser
esprimido...Virar suco de laranja e ser jogado aí pela sarjeta”. Deste modo, o “virar
suco de laranja e ser jogado na sarjeta” está presente em cada estação da pre-
cariedade salarial cronicamente estrutural mostrada no filme de João Batista de
Andrade.
Na segunda parte do filme, na medida em que Deraldo resgata a história pes-
soal do operário que matou o patrão - o homem que virou suco -, ele faz uma
verdadeira genealogia da precariedade salarial cronicamente estrutural que carac-
teriza o capitalismo hipertardio brasileiro. Deraldo encontra a genealogia da mi-

269
Trabalho e Cinema • Volume 4

séria da superexploração do trabalho resgatando a experiência vivida do operário


da indústria metalúrgica, um dos setores mais dinâmicos da economia brasileira,
símbolo da modernidade do capital, lócus da precariedade salarial regulada. Deste
modo, a raiz da superexploração da força de trabalho no Brasil se encontra na
expressão mais desenvolvida do modo de produção capitalista: a grande indústria,
o pólo mais dinâmico da economia do capitalismo dependente (o operário que
matou o patrão, a expressão singela do homem que virou suco, era empregado de
uma empresa metalúrgico multinacional).
O que o filme “O homem que virou suco” sugere é que, existe um vinculo orgâ-
nico entre a precariedade salarial cronicamente estrutural dos empregos precários,
informais, alguns de feição arcaica e mal-pagos (como o emprego doméstico); e a
precariedade salarial regulada nos pólos mais dinâmicos e modernos da explora-
ção capitalista no Brasil vinculada ao capital estrangeiro. É este elo orgânico – que
se contrapõe à razão dualista que separa o “moderno” e o “arcaico” – é que explica
a miséria salarial brasileira, que se origina ontogeneticamente do próprio modo
de entificação do capitalismo no Brasil, capitalismo hipertardio, retardatário, de-
pendente, de feição colonial-escravista, que possui como traço estrutural a articu-
lação entre o “historicamente novo” e o “historicamente velho”.
Deste modo, o filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andra-
de, utilizou uma perspectiva metodológica dialética na sua exposição narrativa.
Como disse Marx, “a anatomia do homem é uma chave da anatomia do macaco.
[...] Assim, a economia burguesa forneceu a chave da Antiguidade, etc.”. Deste
modo, a última parte do filme – “a anatomia do homem” - explica a primeira parte
com sua fenomenologia da precariedade salarial cronicamente estrutural.

A dialética do capitalismo hipertardio no Brasil

Precariedade salarial extrema Precariedade salarial regulada


cronicamente estrutural

“historicamente arcaico” “historicamente novo”


(miséria salarial de Deraldo) (loucura de Severino)

270
O mundo do trabalho através do cinema

Na segunda parte do filme, Deraldo busca informações sobre o operário que


matou o patrão. Dirige-se ao bairro de José Severino da Silva e pergunta a várias
pessoas se o conhecem. Finalmente, numa casa em construção, Deraldo encontra
dois pedreiros que conhecem José Severino. Um deles diz que conheceu Severino
numa firma da indústria metalúrgica, quando ele começou a trabalhar na limpe-
za. Diz o pedreiro:
“Severino era cearense. Tinha vindo fazia pouco tempo do Norte. Era doi-
do pra subir”. Severina sonhava ocupar o lugar de Olavo, um operário torneiro-
-mecânico no chão-de-fábrica. Todo dia era o Olavo ir embora e o Severino ficava
ali, treinando no torno do Olavo. Não queria ficar na limpeza. Olavo era organi-
zador da base sindical na firma. Os operários estavam preparando uma greve e
todo mundo estava só esperando a ordem do Olavo. Diz o pedreiro: “Na hora H,
chegou a polícia e baixou o porrete em todo mundo. E prendeu o Olavo.” Quando
Olavo foi preso, Severino deixou a limpeza e ocupou o lugar dele no torno. Diante
do fracasso da greve, os operários decidiram fazer “operação tartaruga”, isto é, os
operários decidiram produzir a metade. Entretanto, Severino desrespeitando a
decisão da maioria dos operários, não parava de trabalhar. Ele escolheu ficar do
lado do capital, colocando seu sonho de ascensão no interior da firma em primei-
ro lugar. Deste modo, sacrificou as relações com os companheiros de trabalho que
planejavam organizar uma greve.

Num certo momento, Severino é convocado para uma conversa com o dire-
tor da empresa, seu patrão, Mr. Joseph Losey, e os diretores da Ashby Losey do
Brasil. Eis como o roteirista descreve o escritório do diretor: “O escritório é ultra
sofisticado e, pelo enorme vitral, se pode ver a cidade de São Paulo do alto, o mar
de edifícios brancos.” Os diretores fazem tudo para agradar Severino. Na verdade,
querem cooptá-lo visando obter informações sobre a organização da greve pelos
operários. É interessante analisar a fala do diretor mr. Joseph Losey. Ele se dirige
a Severino (com sotaque em inglês). É interessante a transcrição da longa fala de
Mr. Joseph Losey tendo em vista que ela representa uma primorosa peça ideológi-
ca do capital imperialista no Brasil:
“Oh, Mr. Severino… Eu pedi sua presença aqui por motivos muito sérios.
Sente-se, por favor. Certamente o senhor deve saber nosso problema... Esta agi-
tação...Esta indisciplina dentro da fábrica. Eu saber que o senhor é homem res-
ponsável. Pensa com a cabeça. Por isso o chamei para falar de amigo para amigo.
Eu saber que o senhor vai ajudar a nós, como nós ajudou o senhor. Você sabe,

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Trabalho e Cinema • Volume 4

nossa empresa é uma das mais importantes do país. Sempre encaramos tudo com
seriedade. Temos nossos compromissos com o crescimento desse seu fabuloso
país, em busca de se tornar uma grande nação. Eu sou um estrangeiro que aqui
represento o espírito de luta do povo americano, contribuindo para a chegada
desse futuro. Nós sabemos que essa fase é difícil. Exige sacrifício de todos, pois o
importante é crescer. Não é possível o bem-estar sem produção acumulada. Pri-
meiro crescer, depois distribuir riquezas. Nossos salários são fixados pelo gover-
no. Com estudos que nós respeitamos e que são realistas. Nós não podemos e nem
queremos pagar mais do que os índices. Estamos sabendo que alguns operários
insatisfeitos vêm persuadindo outros operários a paralisar a produção. Isto não
pode continuar. Caso contrário, vamos tomar medidas enérgicas. Talvez vamos
até decidir... Dispensa em massa de operários, que podem causar problemas para
inocentes e culpados. Causar desemprego em massa... E até violência”.
Primeiro, Losey trata Severino como um “colaborador” que “pensa com a ca-
beça”, mas com a cabeça do capital. Diz o patrão: “Eu saber que o senhor é homem
responsável. Pensa com a cabeça. Por isso o chamei para falar de amigo para ami-
go. Eu saber que o senhor vai ajudar a nós, como nós ajudou o senhor.” Severino
aparece no discurso do capitalista não como um trabalhador assalariado, mas sim,
um amigo do patrão e vice-versa. Por isso, o patrão espera que Severino lhe ajude.
Na verdade, o discurso do patrão é um discurso motivado por uma preocupação:
a greve dos operários que pode parar a produção e dar prejuízos para a empresa.
Deste modo, os diretores da Ashby Losey do Brasil são meras personificações da
empresa, ente abstrato do capital, lócus de acumulação de mais-valia. Parafra-
seando Marx diríamos: “A empresa é tudo, o homem é nada, senão a carcaça da
empresa...”. Por isso, ao reconhecimento de Severino como colaborador, segue-se
a apresentação da empresa que ele representa.
Um detalhe: a empresa não é um mero ente abstrato. Existe uma mediação
fundamental no discurso do capitalista Joseph Losey: a Nação. A empresa Ashby
Losey do Brasil é uma empresa norte-americana. Por isso, não apenas a empre-
sa tem um compromisso com o crescimento do Brasil – diz ele, apelando para
o espírito nacionalista de Severino, “desse fabuloso país, em busca de se tornar
uma grande nação” – mas, como a empresa norte-americana, ela representa “o
espírito de luta do povo americano contribuindo para a chegada desse futuro.”.
Portanto, no discurso de Joseph Losey, mescla-se a empresa-como-capital e a em-
presa-como-nação-hegemônica-do-capital no plano do mercado mundial. Nesse
momento do filme, põe-se de modo inseparável, o tema da acumulação de capital

272
O mundo do trabalho através do cinema

que possui como lócus a empresa e o tema do imperialismo que possui como lócus
a nação imperial que garante as condições políticas e ideológicas para a produção
do capital.
Mas no discurso de Joseph Losey está presente também, como outro elemen-
to do discurso da dominação imperialista, o tema da ideologia, isto é, existe uma
ideologia do imperialismo, reproduzida pelas personificações do capital hegemô-
nico. Diz o capitalista Joseph Losey: “Nós sabemos que essa fase é difícil. Exige
sacrifício de todos, pois o importante é crescer. Não é possível o bem-estar sem
produção acumulada. Primeiro crescer, depois distribuir riquezas.” Eis a ideolo-
gia do desenvolvimentismo do “milagre brasileiro”, baseado na superexploração
do trabalho sob a condução das grandes empresas oligopólicas estrangeiras com
apoio do Estado bonapartista-militar.
Neste discurso existem duas falácias ideológicas que invalidam a única afir-
mação verdadeira: “Não é possível o bem-estar sem produção acumulada”. É claro
que sem produção de riqueza, não há como distribuí-la. Mas o discurso ideológi-
co oculta o caráter estrutural de classe da produção de riqueza.
Primeiro, não é verdade que a produção de riqueza exige o sacrifício de todos:
o único sacrificado pela superexploração da força de trabalho é a classe operária
e camadas subalternas da ordem social burguesa. Depois, não é verdade que pri-
meiro, é preciso crescer; e depois, distribuir riqueza. O Estado bonapartista-mi-
litar foi estruturalmente incapaz de redistribuir a riqueza acumulada. Pelo con-
trário, a forma social do Estado político do capital – Estado oligárquico-burgues
de feição bonapartista-militar – que reprimiu sindicatos e movimentos sociais,
existiu para garantir, não a redistribuição de riqueza, mas sim a concentração de
riqueza, como de fato ocorreu no período do regime militar no Brasil.
Finalmente, Joseph Losey chegou ao ponto fulcral do seu discurso ideológico:
ele quer que o operário José Severino da Silva traia os companheiros de trabalho,
“dedurando” os organizadores da greve no chão-de-fábrica. Foi o que aconteceu.
Diz o operário que relata a história do homem que virou suco: “Ele dedurou o
Luisão.” Enfim, Severino, o homem que virou suco, é o homem que escolheu ser
colaborador do capital. A “captura” da subjetividade do operário Severino ocorreu
como ato de escolha moral: imbuído de sonhos, expectativas e valores de mercado
com seu fetichismo da mercadoria e anseios por ascensão profissional, Severino
decidiu romper com o coletivo de classe e cultivar o sonho de subir na vida.
Nas condições de luta de classes, a pressão do capital sobre Severino foi inten-
sa, tendo em vista que os diretores da Ashby Losey do Brasil perceberam que ele

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Trabalho e Cinema • Volume 4

era o elo mais fraco da corrente operária do chão-de-fábrica. Por isso, Severino
ganhou o premio de operário-simbolo. Entretanto, existe a dialética perversa do
capital que devorou irremediavelmente José Severino da Silva. Diz um operário:
“Mas depois que ele entregou o Luisão, se danou todo.” E prossegue: “Era só ele
entrar na fábrica e a gente parava. Ninguém trabalhava com ele lá, o patrão, de
quem tanto puxou o saco... Mandou ele embora com prêmio e tudo. Quando foi lá
na festa receber o prêmio de operário-símbolo... Já tava desempregado e na pior”.
Enfim, nas condições da luta de classes com a ascensão do movimento sindi-
cal de fins da década de 1970 no Brasil, o operário José Severino e seus anseios de
subir na vida, desrespeitando o coletivo de classe e colaborando com o capital, foi
esmagado não apenas pelo patrão, que o mandou embora, pois ele tornou-se um
estorvo para a produção, tendo em vista que os operários se recusavam a trabalhar
com ele; mas foi esmagado também pelo coletivo de classe que ele próprio des-
respeitou e traiu. José Severino da Silva, operário-simbolo de 1979, tornou-se um
homem solitário que, alienado do ser genérico do homem-que-trabalha, entrou
numa situação de deriva pessoal. Desemprego com família e filhos, decidiu matar
o patrão na solenidade de entrega do Premio de Operário-Simbolo. Foi a solidão
de Severino que o enlouqueceu – solidão de classe.
Finalmente, Deraldo, que reconstrói a história do homem que virou suco, en-
contra a casa de Severino na periferia de São Paulo. Diz o roteirista: “lugar alto,
espantado com a imensidão de tudo, aquele mar de casinhas construídas e po-
bres.” Encontra D. Auxiliadora, mulher de Severino. É o filho de Severino que
conduz Deraldo por becos e mais becos até o local onde está o pai. Assim des-
creveu o roteirista o encontro de Deraldo com seu sósia. Diz ele: “De repente, a
surpresa amarga. Num buraco imundo, de uma porta de um pequeno barraco, sai
Severino, ainda de terno (como estava na festa) e de óculos, mas todo sujo, com a
peixeira na mão, dando facadas no ar. Louco. Deraldo, extremamente comovido,
é tomado pela cena. Os dois sósias se encaram, há um encantamento nesse gesto
que os une”.
Mais adiante, a cena final: “Deraldo assiste à cena final: enfermeiros levam
Severino para uma ambulância, em camisa de força. Deraldo, fortemente emocio-
nado, seu rosto revela sentimentos elevados de solidariedade e de gratidão àquele
homem que, na sua desgraça, o ensinou tanto. Severino vai sendo colocado dentro
da ambulância. Os dois sósias ainda se encaram por um breve instante, pela últi-
ma vez. A ambulância se vai, veloz, pelo bairro pobre”.

274
O mundo do trabalho através do cinema

Deraldo escreve o novo livrinho de cordel: “O homem que virou suco”. Diz ele:
“É a história de todo nordestino. Do cara que chega em São Paulo... trabalha, luta
e acaba passando fome, virando suco de laranja”.
Na rua, vendendo seu livrinho de cordel, é incomodado novamente pelo fis-
cal. Mas dessa vez, Deraldo apresenta os documentos. Diz ele: “Os documentos de
um homem”. Deraldo tornara-se homem-cidadão, sujeito de direito que luta con-
tra a desigualdade social e a exploração do homem pelo homem. Esta cena final é
uma cena emblemática da conjuntura social e política de 1979 com a ascensão dos
movimentos sindicais e movimentos sociais na luta contra o arrocho social e pela
democracia. Diz o poeta popular Deraldo:

Eu sou poeta, violeiro e repentista.


E quem despreza essas canções...
Desconhece a grandeza de Camões...
E não sabe dar valor a um artista.

Ignora que a vitória é uma conquista.


Na vida só terá decepção.
Quem trata o povo com desdém...
Se atrasou neste mundo e não...
Que é no peito, na força e mão...
E na união, que é uma semente,
A força que o povo tem”.

As cenas finais do filme “O homem que virou suco” são bastante ricas de sig-
nificados críticos que explicam a narrativa fílmica em sua totalidade concreta.
Da odisséia pelo conjunto de estações da precariedade salarial cronicamente es-
trutural, que caracterizou a primeira parte do filme; à investigação etnográfica
(e etnotrágica) de Deraldo, que reconstitui a história grotesca do operário José
Severino da Silva, existe toda uma dialética do encantamento e desencantamento
das individualidades pessoais de classe na ordem burguesa hipertardia.
Primeiro, a história da loucura de Severino possui para Deraldo um caráter
trágico e, portanto, tem sentido catártico para Deraldo, que ficou fortemente emo-
cionado com a desgraça de Severino pois ele – Deraldo - compreendeu o sentido
contingente das escolhas morais daquele nordestino que, como ele diz, “chega em
São Paulo, trabalha, luta e acaba passando fome, virando suco de laranja”. A des-

275
Trabalho e Cinema • Volume 4

graça de Severino ensinou muito a Deraldo, contribuindo para que ele pudesse
entender a tragédia brasileira, a tragédia de um povo cuja força está na união e
luta pelos direitos sociais e democratização política e social capaz de transformar
e abolir o Estado político do capital que sustenta o sistema social da superexplo-
ração do trabalho.
Segundo, a loucura de Severino está expressa não apenas no louco que dá
facadas no ar recolhido na favela, mas sim num processo de “captura” da subjeti-
vidade do homem-que-trabalha que percorre a história de sua vida pessoal como
trabalhador nordestino e operário da indústria metalúrgica que individualmente
buscou subir na vida. Como disse um operário sobre Severino: “Era doido pra
subir”. Portanto, a loucura de Severino – este poderia ser o título da segunda parte
do filme – é a loucura do consentimento espúrio do homem-que-trabalha às dis-
posições estranhadas do capital.
Na verdade, a loucura de Severino estava presente nos momentos de sonho,
expectativas e anseios pela ascensão profissional, mesmo que isso implicasse trair
o coletivo de classe – como ocorreu. A loucura de Severino estava no engodo da
manipulação dos sonhos e expectativas dos trabalhadores assalariados que esco-
lhem reduzir seu tempo de vida a tempo de trabalho visando manter seu padrão
de vida burguesa. Severino aderiu por livre e espontânea vontade à “máquina de
fazer suco de laranja” da superexploração do trabalho: trabalho intenso com lon-
gas jornadas, visando a ascensão profissional, ou seja, ganhar mais dinheiro para
ter padrão de vida de “classe média”. Disse o operário sobre Severino: “Todo dia
era o Olavo ir embora e o Severino ficava ali, treinando no torno do Olavo”. Deste
modo, a loucura de Severino era a loucura do consentimento espúrio à lógica da
superexploração do trabalho que implicava negar a si próprio.
É claro que a perda completa de si ocorreu quando Severino se decepcionou
com o próprio patrão que o demitiu, porque Severino tornara-se um estorno na
produção da fábrica. Com o desemprego, a alienação, que estava apenas no plano
ideal da subjetividade humana (Severino preservava sua personalidade-simula-
cro), efetivou-se por completo: a perda de si ocorreu efetivamente.
Terceiro, podemos afirmar a simetria real entre Deraldo e Severino: enquanto
Deraldo reage à ideologia, Severino sucumbe a ela. Deraldo se engrandece espiri-
tualmente; e Severino enlouquece. Ao enlouquecer, Severino reencontra a luta no
plano da fantasia: ele luta contra “moinhos de vento” (Deraldo encontra Severino,
ainda de terno - como estava na festa - e de óculos, mas todo sujo, com a peixeira

276
O mundo do trabalho através do cinema

na mão, dando facadas no ar). A luta de Severino enlouquecido é a luta de quem


perdeu o sentido de realidade.
Por outro lado, Deraldo se reconcilia com a realidade: vai para vender livri-
nhos de cordel na rua com documentos de identidade que o tornam sujeito de
direito. Para a verdadeira luta pela cidadania plena torna-se necessário, primeiro,
reconciliar-se – não no sentido de aceitar – com a realidade, mas sim reconciliar-
-se no sentido de compreender as determinadas condições de luta, o que distingue
Deraldo, portanto, do herói ridículo Virgulino.
O que significa que, ao mesmo tempo que Deraldo se distingue de Severino,
ele se distingue de Virgulino, operando nele a negação da imputação ideológica
que o treinamento com o audiovisual queria fazer, transformando-o num herói
ridículo. A ideologia do capital queria convencê-lo que se ele não colaborasse com
o capital a única alternativa seria ser um herói ridículo. Enfim, Deraldo não re-
nuncia à luta, mas sabe que ela deve ocorrer no plano coletivo: a união, que é uma
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