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Volume 4
Projeto Editorial Praxis
A Condição de Proletariedade: A precariedade do SÉRIE TELA CRÍTICA
trabalho no capitalismo global
Giovanni Alves Tempos Modernos
Charles Chaplin (1936)
Dilemas da globalização: O Brasil e a
mundialização do capital Metrópolis
Francisco Luiz Corsi (Org.) Fritz Lang (1927)
Trabalho e Cinema
O mundo do trabalho através do cinema
Volume 4
1ª edição 2014
Bauru, SP
Copyright do Autor, 2014
Conselho Editorial
Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior – UNESP
Prof. Dr. Ariovaldo de Oliveira Santos – UEL
Prof. Dr. Francisco Luis Corsi – UNESP
Prof. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzáles – UNISO
Prof. Dr. Jorge Machado – USP
Prof. Dr. José Meneleu Neto – UECE
ISBN 978-85-7917-276-2
CDD 338
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Da pré-história somos projetados para a condição histórica do capitalismo glo-
bal com a análise crítica dos filmes “Amor sem escalas”, de Jason Reitman; e “Beleza
Americana”, de Sam Mendes. No filme “Amor sem escalas”, põe-se a problemática
da relação trabalho e vida pessoal, um dos temas candentes que emerge com o ca-
pitalismo global, tendo em vista que, sob as condições da crise estrutural do capital,
tempo de vida tende a estar cada vez mais reduzido a tempo de trabalho. Deste modo,
a precarização do trabalho oculta outra dimensão da precarização laboral: a preca-
rização do homem-que-trabalha. Esta é uma das dimensões da barbárie social que
caracteriza o capitalismo do século XXI.
No filme “Beleza Americana”, de Sam Mendes, buscamos apreender a natureza
da crise estrutural do capital através da crise da família burguesa. Discutimos o tema
do fetichismo da mercadoria e suas implicações da sociabilidade humana. Na socie-
dade das imagens-fetiche, a precarização do trabalho se manifesta como precariza-
ção existencial. Prosseguimos a discussão da crise orgânica do capital como modo
de controle estranhado da vida social, tratando o fascinante tema do estranhamento
social no filme “De olhos bem fechados”, de Stanley Kubrick. Discutir a precarização
das condições de existência do homem-que-trabalha, é discutir a precarização do
trabalho. “Beleza Americana” e “De olhos bem fechados” são exemplos magistrais
da Sétima Arte refletindo os impasses humano-genericos na era da barbárie social.
Concluímos o volume 4 do livro “Trabalho e Cinema”, analisando o filme clássico
soviético “A Greve”, de Serguei Eisenstein (1926); e o filme brasileiro “O homem que
virou suco”, de João Batista de Andrade (1981). No caso de “A greve”, discutimos a
formação da consciência de classe como processo social articula a dialética da con-
tingencia e da necessidade histórica. Finalmente, o filme “O homem que virou suco”
possui como tema central, as formas da precarização do trabalho nas condições do
capitalismo brasileiro. Num primeiro momento, o filme expõe, de modo realista, o
cotidiano de miséria da classe operária pobre da metrópole paulistana expostos à
precariedade salarial extrema no auge do “milagre brasileiro” (1968-1979). “O ho-
mem que virou suco” é um filme que trata das várias nuances da superexploração da
força de trabalho que caracteriza o capitalismo brasileiro. Ao mesmo tempo, expõe
a opressão e exploração capitalista que desefetiva o ser genérico do homem, isto é,
enlouquece o homem-que-trabalha. Deste modo, o filme de João Batista de Andrade
vincula superexploração da força de trabalho como característica ontogenética do ca-
pitalismo hipertardio brasileiro e adoecimento do trabalhador assalariado (o homem
que virou suco), como um modo de desefetivação humano-genérica ou loucura do
homem-que-trabalha.
Marília, 12 de junho de 2014
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Sumário
9 Introdução
O conceito de trabalho - A perspectiva histórico-ontológica
41 Capitulo 1
A guerra do fogo, de Jean-Jacques Annoud
73 Capitulo 2
Amor sem escalas, de Jason Reitman
107 Capitulo 3
Beleza americana, de Sam Mendes
139 Capitulo 4
De olhos bem fechados, de Stanley Kubrick
171 Capitulo 5
A greve, de Serguei Eisenstein
217 Capitulo 6
O homem que virou suco, de João Batista de Andrade
279 Bibliografia
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Introdução
O conceito de trabalho
A perspectiva histórico-ontológica
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do natural hostil. O animal homem nasceu carente e frágil diante da Natureza, por
isso a cooperação social se impõe como uma necessidade primordial no processo
de evolução da espécie. A cooperação social assumiu a forma de interação social,
onde a consciência, e com ela, a linguagem e a técnica, retro-alimentaram a nova
forma de ser: o ser social. Deste modo, o ser social surgiu como pressuposto da
atividade do trabalho humano e, ao mesmo tempo, como produto desta própria
atividade vital. Portanto, o trabalho humano, como modo de intercâmbio orgâ-
nico entre o homem e Natureza, é mediado pela consciência, técnica e interação
social. A mediação é o complexo constitutivo da própria forma do ser social que
se distinguiu do mundo natural propriamente dito (o ser orgânico e inorgânico).
Deste modo, o animal homem é um tipo peculiar de macaco que conseguiu, por
meio da atividade vital do trabalho, se distinguir das demais espécies e vencer a
luta pela sobrevivência diante de uma Natureza primordial inculta e indomável.
O processo de hominização/humanização ocorreu num período de cerca de
2 a 3 milhões de anos. Entretanto, ele ainda é um tempo ínfimo, comparado com
a evolução da natureza inorgânica e orgânica (só para lembrar, os dinossauros
habitaram a Terra há cerca de 300 milhões de anos!). A espécie humana conseguiu
vencer o tempo-espaço e reduzir a escassez primordial por meio da atividade vital
do trabalho, identificado com a luta primordial pela existência. No processo de
hominização/humanização e desenvolvimento das forças produtivas do trabalho
social, o homo sapiens se distinguiu da natureza inóspita e se impôs sobre outras
espécies animais. A redução dos limites das barreiras naturais significou efeti-
vamente a superação da escassez primordial. Entretanto, com o surgimento das
sociedades de classes, surgiu historicamente, outra forma de escassez - a escassez
social, isto é, o capital, um modo de controle estranhado do metabolismo social
que tendeu a obstaculizar o desenvolvimento humano-genérico.
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O trabalho capitalista
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Dimensões do Trabalho
Dimensão histórico-ontológica
Intercâmbio orgânico Homem e Natureza
Dimensão histórico-concreta
Formas societais de Trabalho
Mundos do Trabalho
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grandes legados científicos de Karl Marx não foi apenas descobrir e desenvolver
em sua obra clássica “O Capital - Crítica da Economia Política”, uma teoria da
exploração, com a apresentação, por exemplo, da categoria mais-valia e dos me-
canismos de produção do capital, mas, principalmente, indicar, no corpus teórico
deste empreitada critica, a teoria do estranhamento, base fundamental da produ-
ção do capital.
As alterações que o capital promoveu no processo de trabalho, principalmen-
te a partir da maquinaria e da grande indústria, colocaram, pela primeira vez na
historia da espécie homo sapiens, novas determinações no intercâmbio sócio-me-
tabólico do homem com a natureza através do trabalho, ou seja, desta atividade
humano-prática, base do processo de hominização/humanização. As determina-
ções sociais de novo tipo inscritas na teoria do estranhamento, são da mais alta
relevância historico-ontológica. Elas alteram não apenas a forma de ser, mas a
própria natureza do processo do trabalho e das múltiplas significações vinculadas
originalmente a ele (por exemplo, a questão da qualificação profissional, o proble-
ma da ciência e da tecnologia, etc). Assim, poderíamos dizer que, sob o modo de
produção capitalista propriamente dito, com a vigência do sistema de máquinas
instaurando a grande indústria, o trabalho perdeu, pela primeira vez, o seu lugar
como agente social ativo do processo de produção. De termo inicial, o trabalho
vivo torna-se mero termo intermediário subsumido à máquina. É, com certeza,
um momento inédito de inflexão civilizacional com múltiplos impactos nas for-
mas de sociabilidade da civilização humana. Eis, portanto, o sentido radical do
estranhamento na ordem do metabolismo social do capital.
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Processo de Trabalho
Valor de Uso
Trabalhos Concretos
Natureza
Objetivação/Exteriorização
Valor de Troca
Trabalho Abstrato
Cooperação Simples
Divisão do Trabalho
Subsunção formal
Natureza x Sociedade
Estranhamento
Valor de troca
Trabalho Abstrato
Maquinaria e Grande Indústria
Subsunção real
Sociedade
Fetichismo social
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homem e a natureza. O que se altera são as mediações de segunda ordem, que assu-
mem, deste modo, um conteúdo e forma estranhada e fetichizada (Mészáros, 2006).
Ao ser negado, o processo de trabalho sob a direção consciente do trabalho
vivo, em virtude das mediações estranhadas – que no caso específico do modo
de produção capitalista, seriam o trabalho assalariado, divisão hierárquica do tra-
balho, troca mercantil e propriedade privada - deixa de ser o que é, e transfigura-
-se, aparecendo como outra coisa; isto é, num primeiro momento, aparece como
processo de trabalho capitalista; e depois, mero processo de produção do capital.
Mas não podemos esquecer que o movimento real é intrinsecamente dialético e a
categoria de negação (Aufhebung) significa tanto superação/conservação num pa-
tamar superior; como pressuposição negada (que não deixa de ser efetiva, no sen-
tido de representar, de forma contraditória, a verdade do ser do real em processo).
Para compreendermos o significado destas mudanças sócio-técnicas de im-
pacto decisivo na produção (e reprodução) social, vejamos o que significa, origi-
nariamente, o processo de trabalho.
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dade do trabalho. É o que ocorre com a nova base técnica (e tecnológica) dada pelo
surgimento do sistema de máquinas. É importante destacar o seguinte: de fato, o
trabalho vivo não é, e não pode ser abolido absolutamente. Estamos diante de um
dos limites do capital que anseia (ou carece) pela abolição absoluta do trabalho
vivo como força de trabalho, mas não consegue efetiva-la pois isso significaria ne-
gar a si próprio. O que significa que a abolição do trabalho vivo é meramente ideal
(ou virtual), ou seja, projeta-se como mera possibilidade ideal-concreta a partir do
desenvolvimento da nova base técnica. Deste modo, a passagem para a subsunção
real do trabalho ao capital, com o surgimento da nova base técnica do capital,
com sua forma tecnológica voraz, abole apenas tendencialmente o trabalho vivo.
Ela se expressa, por exemplo, pela substituição, no interior da indústria (e dos
serviços) capitalista, do trabalho vivo pelo trabalho morto (um dos componentes
do crescente desemprego estrutural). Assim, o que se desenvolve na segunda mo-
dernidade do capital - século XIX e século XX - e assume dimensões lancinantes
na terceira modernidade do capital, na virada do século XX para o século XXI, é a
exacerbação de tendências contraditórias inscritas na ordem sociometabólica do
capital. A principal delas é o caráter destrutivo da expansão do segundo movimen-
to de abstração do trabalho, que se dá com a subsunção real do trabalho ao capital.
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ção. Com a grande indústria, o próprio processo de trabalho perdeu suas caracte-
rísticas naturais e adquiriu características técnicas (ou tecnológicas). A subordina-
ção (ou subsunção) do processo de trabalho ao processo de valorização tornou-se
subordinação (ou subsunção) material do trabalho ao próprio instrumento torna-
do ferramenta de trabalho ou sistema de máquinas. Na verdade, há uma transfor-
mação do próprio processo técnico do capital que tende a assimilar, deste modo,
todo o metabolismo social. Enfim, a racionalidade capitalista tende a tornar-se,
cada vez mais, racionalidade tecnológica. A racionalidade instrumental do capital
torna-se racionalidade tecnológica que permeia não apenas a produção de valor,
base originário desta implicação estranhada, mas a totalidade social.
O estranhamento do sistema de máquinas capitalista decorre não apenas da
separação entre trabalho vivo e instrumento de trabalho (que se tornou ferramen-
ta complexa ou sistema de máquina), mas do fato de que o sistema de máquinas
tendem a negar, inclusive no plano material, o trabalho vivo. Por isso, é o domínio
do trabalho morto sobre o trabalho vivo, que perde não apenas sua posição obje-
tiva, de termo inicial ou ativo do trabalho, mas posição subjetiva: o trabalho se
tornou mera ação mecânica; e a ciência se colocou fora da subjetividade negada de
quem trabalha. Na verdade, a ciência foi pensada e constituída em outro local: nos
grandes laboratórios das corporações industriais (é a separação entre execução e
concepção, concebida pela Organização Científica do Trabalho, de F.W. Taylor); e
no processo de trabalho, a ciência encontra-se presente não em quem trabalha,
mas dentro de uma coisa – objetivada na máquina ou no sistema de máquina.
A negação processual da posição - objetiva e subjetiva - do trabalho vivo cons-
titui o processo de modernização do capital, ou seja, marca o desenvolvimento
da modernidade do capital propriamente dita (consideradas como modernidade-
-máquina). A civilização do capital torna-se, deste modo, civilização da técnica,
ou melhor, civilização da tecnologia como forma técnica estranhada, pois o conhe-
cimento - e, portanto, o controle social do objeto técnico - não está mais em quem
trabalha, mas fora dele. A exterioridade estranhada não é, diga-se de passagem, o
objeto técnico propriamente dito, mas sim a relação social capitalista, o fetiche do
capital. Diante de quem trabalha, encontra-se incorporado na coisa ou no sistema
de máquina, relações sociais de poder e dominação de classe. Por isso, a ciência
e sua extensão estranhada, a tecnologia, tende a dominar o trabalho vivo, inver-
tendo, pela primeira vez na história da civilização, não apenas a relação entre o
homem e seu instrumento de trabalho, mas entre o homem e o produto/processo
de sua atividade produtiva (auto-alienação).
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CAPÍTULO 1
A guerra do fogo
Jean-Jacques Annoud
(1981)
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segundo esta hipótese, um caçador puro que teria depredado os seus recursos, o
que teria implicado na sua extinção.
Finalmente, outra hipótese diz que a extinção dos neanderthais pode ter sido
causada por humanos. Em escavações no fim da década de 1950 na região onde
hoje é o Iraque, cientistas americanos encontraram quatro esqueletos de nean-
derthais. Eles haviam sido sepultados na caverna entre 50 e 75 mil anos atrás.
Um desses esqueletos, conhecido como Shanidar 3, foi morto por um ferimento
no peito, causado, ou por um acidente, ou por outro neanderthal. Entretanto, no-
vas pesquisas publicadas no Journal of Human Evolution em 2009, sugerem que
o ferimento foi causado por um Homo sapiens, um humano como nós. A nova
hipótese, levantada por Steve Churchill, professor de antropologia evolutiva na
Universidade de Duke, nos Estados Unidos, que pesquisou o esqueleto de Shani-
dar 3 utilizando técnicas modernas de investigação criminal, concluiu que o ne-
andertal foi atingido por uma lança de arremesso, uma arma que, naquela época,
apenas os humanos haviam desenvolvido enquanto adaptavam suas técnicas de
caça às planícies africanas (os neanderthais caçavam em florestas e usavam lanças
de combate corpo a corpo). No começo de 2009, Fernando Rozzi, um antropólogo
do Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris, descobriu o maxilar
de um neanderthal com cortes iguais aos que humanos faziam em animais na
pré-história. Segundo Rozzi, os humanos cortaram e comeram a língua do nean-
derthal, e usaram sues dentes para fazer um colar. Entretanto, os pesquisadores
acreditam que o contato entre humanos e neanderthais foi diferente de região
para região, e que foram diversos os fatores que os levaram à extinção, não apenas
a violência humana. Shanidar 3 teve o azar de se encontrar com humanos dados
ao confronto, mais do que à cooperação.
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dência diante da natureza inóspita. Diz ele: “A sua face poderosa afugentava o leão
negro e o leão amarelo, o urso das cavernas e o urso cinzento, o mamute, o tigre e
o leopardo e, com os seus dentes vermelhos, protegia o homem contra a vastidão
do mundo”. A extinção do fogo era para eles como uma verdadeira catástrofe.
Na cena de abertura do filme, temos o panorama de um vale inóspito com
uma pequena chama distante na escuridão da noite pré-histórica. É o sinal do
fogo cultivado pela tribo de hominídeos neanderthais recolhidos numa caverna.
O fogo é símbolo da “proteção social”. A fogueira afugenta animais selvagens que
rondam a pequena tribo de neanderthais. Um dos hominídeos faz a vigília notur-
na do fogo. Na verdade, a horda primordial de neanderthais possui uma divisão
social do trabalho onde a função de “guardião do fogo” é atribuída a um sacerdote
que cultivava e preservava o fogo de extinção. Eles ainda não sabiam produzir o
fogo. Pelo contrário, o fogo é recolhido da natureza e preservado como dádiva
natural. Em torno da pequena chama acessa, concentrava-se o núcleo de líderes
tribais responsáveis pela sobrevivência da horda primitiva.
No interior da caverna, eles dormem aconchegados uns sobre os outros. É
o aconchego primordial da horda primitiva. Talvez possamos considera-la como
sendo a gemeinschaft (comunidade originária) da tribo pré-histórica. Ao alvore-
cer do dia, a tribo neanderthal desperta para a atividade vital. Em torno da foguei-
ra, os hominídeos cuidam de si e dos outros. É a forma rústica de afetividade pelo
tato, que une aquela tribo pré-histórica. A horda primitiva é um todo orgânico.
Como não existe propriedade privada, a sensibilidade e a percepção de si e dos
outros dos hominídeos é radicalmente diversa daquela que temos hoje. Enfim,
o comunismo primitivo é uma constelação societária incompreensível para nós
hoje, Homo sapiens do século XXI.
Próximo dali, a beira de um riacho, fêmeas neanderthais são pegas pelas cos-
tas por machos sedentos de desejo. Trata-se do desejo primordial, instinto sel-
vagem ainda marcado, em sua constituição, pela pulsão meramente sexual. É a
pulsão de vida que se impõe no alvorecer do dia. É o ato sexual animalesco, mas
radicalmente natural, na medida em que se tratam ainda de animais, meros esbo-
ços de homens (os neanderthais pertencem ao gênero Homo, mas não a espécie
humana). Talvez a “pegada” por trás do Homo neanderthalensis seja a única po-
sição conhecida do ato sexual primitivo, com o macho submetendo a fêmea de
modo vigoroso (mais tarde, veremos que a jovem Homo sapiens irá ensinar aos
neanderthais uma posição inovadora de “ fazer amor”). Além disso, a “pegada”
dos neanderthais não se trata absolutamente de estupro. A “pegada” pelas cos-
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tas das fêmeas, o modo primitivo e posição originária do intercurso sexual entre
hominídeos, é quase uma tarefa da reprodução biológica que festeja a pulsão de
vida. Enfim, após as trevas da noite, o alvorecer festeja a vida num mundo natural
prenhe de desafios de morte. O fogo foi recolhido numa pequena chama a ser
preservada para a noite seguinte.
Portanto, num primeiro momento, o filme de Jean-Jacques Annoud apresenta
pequenos aspectos da “vida cotidiana” da horda primitiva cercada pelos perigos
da natureza inóspita: primeiro, a escuridão que oculta animais selvagens como o
lobo pré-histórico e, depois, como veremos a seguir, logo ao alvorecer, o ataque de
hominídeos rivais que atacam a tribo de neanderthais. Deste modo, a narrativa de
“A Guerra do Fogo”, começa com a derrota da tribo neanderthal e a extinção do
fogo, obrigando-os a procurar desesperadamente o fogo como condição indispen-
sável da própria sobrevivência tribal.
O mundo pré-histórico é um mundo de disputas terríveis entre espécies ani-
mais, inclusive entre espécies de hominídeos – tanto lutas ferozes de hominídeos
de espécies diferentes (por exemplo, Homo erectus atacando Homo neandertha-
lensis); quanto lutas entre hominídeos da mesma espécie, como neanderthais ata-
cando neanderthais, disputando recursos escassos. Esta é a vigência do “estado
selvagem” ou “estado natural” onde uma tribo de hominídeos está sempre sob
espreita de outras tribos de hominídeos. Diria Thomas Hobbes: Homo homini lú-
pus, que é uma sentença latina que significa o homem é o lobo do homem. Esta ex-
pressão foi criada por Plauto (254-184) em sua obra “Asinaria”. No texto originário
se diz “Lupus est Homo homini non Homo”. Foi bem mais tarde popularizada por
Thomas Hobbes, filósofo inglês do século XVIII.
Um detalhe: o filme “A Guerra do Fogo” não apresenta Homo sapiens ata-
cando Homo sapiens. O cenário primitivo da guerra é outro. A “concorrência” ou
guerra que observamos no filme, não ocorre no interior de uma tribo primiti-
va (como hoje, com humanos devorando humanos). O que o filme ressalta são
disputas ferozes entre espécies hominídeas (por exemplo, Homo neanderthalen-
sis versus Homo erectus) e espécies pré-hominideas (australopitecos), instigados
pelo instinto de sobrevivência num cenário de escassez radical. Todos eles estão
subordinados ao círculo da natureza. Devido o estado de escassez radical, decor-
rente do baixíssimo nível – ou mesmo, inexistência – de desenvolvimento das for-
ças produtivas sociais do trabalho, disputam-se vorazmente territórios e recursos
naturais indispensáveis para a sobrevivência biológica da espécie. A evolução das
espécies de hominídeos ocorreu num cenário de disputa selvagem onde os mais
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fracos - os que não conseguiram vencer as espécies rivais pela força da guerra e
os que não conseguiram se adaptar às intempéries da natureza - eram extintos.
Portanto, nada comparável à concorrência entre os próprios homens no seio das
sociedades de classes sociais, organizadas em torno da propriedade privada e divi-
são hierárquica do trabalho. O homem como lobo que ataca outro homem, como
constataram Plauto e Hobbes, é o homem burguês, um homem social impregnado
do individualismo possessivo, nada comparável ao lobo. É interessante o que Ge-
org Lukács observou:
“Muitas vezes dizemos que a crueldade humana é “animalesca”, esquecendo
totalmente que animais nunca são cruéis. Sua existência permanece totalmente
submetida ao círculo das necessidades biológicas de sua autopreservação e repro-
dução do gênero. Quando o tigre caça e devora um antílope, faz, no interior da sua
reprodução prescrita pela natureza, o mesmo que a vaca ao pastar. Ele é tão pouco
cruel com o antílope quanto a vaca em relação ao capim. Só quando o homem
primitivo começa a torturar seu prisioneiro de guerra é que surge – como produto
causal do devir humano – a crueldade com todas as suas conseqüências futuras,
cada vez mais refinadas.” (LUKÁCS, Georg. “Prolegomênos para uma Ontologia
do Ser Social”)
Depois de ser derrotada pela tribo de australopitecos, a tribo de neanderthais
é obrigada a migrar. Os pré-hominídeos (australopithecus) que atacaram a tribo
neanderthal, buscavam a posse do fogo, além de seqüestrar mulheres e apropriar-
-se de alimentos. Eles andavam lentamente, parecendo ter dificuldade em andar;
os australopithecus se alimentavam de sobras fáceis de carne, como observamos
na cena em que procuram sobras na fogueira, pois tinham dificuldade na caça.
Assemelhavam-se a macacos, tendo o corpo completamente coberto por pelos,
ao contrário do Homo neandertalis, que se utilizava de peles de outros animais
para aquecer-se. Os australopitecos (Australopithecus, em latim australis “do sul”,
Grego pithekos, “macaco”) constituem um género de diversos hominídeos extin-
tos, bastante próximos aos do género Homo e, dentre eles, o A. afarensis e o A.
africanus são os mais famosos (por exemplo, o A. africanus, viveu há cerca de 2,5
a 2,9 milhões de anos e foi considerado durante muito tempo o ancestral direto do
género Homo (em especial da espécie Homo erectus).
O ataque dos australopitecos quase os dizimou. Derrotados, feridos e desam-
parados os neanderthais fogem do ataque dos lobos selvagens que devoram os ca-
dáveres dos hominídeos mortos e atacam os feridos que exalam cheiro do sangue
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Trabalho e Cinema • Volume 4
Noah, Gaw e Amoukar são destacados pelo ancião da horda primitiva para a
jornada que visa trazer para a tribo, uma nova chama de fogo. Percebe-se uma dis-
puta “política” entre os guerreiros neanderthais. No romance de J.H. Rosny Aîne,
a disputa pelo poder na tribo teria como prêmio a posse da filha do chefe Faouhm:
Gammla. Quem trouxesse o fogo, ficaria com ela. Exclama o chefe: “Entre as filhas
dos homens, haverá alguma que seja melhor? Pode carregar uma corça no seu
ombro, caminhar sem desfalecer desde o sol da manhã até ao sol do crepúsculo,
suportar a fome e a sede, preparar as peles dos animais, atravessar um lago a nado.
Ela dará filhos indestrutíveis”. E disse: “Se Naoh trouxer o Fogo, virá buscá-la, sem
ter de dar machados, conchas ou peles, em troca!”. Mas Aghoo, filho do Auro-
que, o mais peludo dos Oulhamr, quer disputar a posse de Gammla. Ele exclama:
“Aghoo quer conquistar o Fogo”. Entretanto, no filme de Jean-Jacques Annour, a
disputa entre Noah e Aghoo não é em torno de Gammla. Os dois guerreiros ne-
anderthais não disputam a posse da filha do chefe, mas sim, lutam apenas pelo
prestigio e poder que a conquista do fogo daria ao vencedor.
A narrativa fílmica de “A Guerra do Fogo”, como um “road movie” pré-histó-
rico, detém-se na longa jornada do trio de guerreiros neanderthais - Noah, Gaw e
Amoukar - em busca do fogo perdido. No trajeto de precariedade, eles enfrentam
os perigos da natureza primitiva inóspita, como animais ferozes e tribos de homi-
nídeos hostis. Apenas no final do filme, Noah Noah, Gaw e Amoukar enfrentarão,
no duelo final, Aghoo e seus parceiros rivais.
Num primeiro momento, Noah, Gaw e Amoukar, avançam por uma imensa
planície. De repente, sentem cheiro da aproximação de feras primitivas. O odor
de leões selvagens despertou o senso de perigo deles. Os guerreiros neanderthais
possuíam um senso olfativo apurado. Talvez seja um traço de aprimoramento dos
sentidos ou das habilidades sensoriais desenvolvidos pelos guerreiros – caçadores
e coletores - visando a auto-preservação da espécie num mundo natural hostil.
Como alguns animais superiores, os hominídeos utilizam-se dos sentidos – no
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O mundo do trabalho através do cinema
caso, o olfato – para “mapear” o território como espaço de luta. Diríamos que é
uma “técnica sensorial” primitiva que os alertava sobre a possível aproximação de
animais selvagens perigosos. O olfato e a audição dos hominídeos, como “radares”
orgânico, eram capazes de alertar os hominídeos sobre riscos iminentes. O habitat
primitivo dos hominídeos – como salientamos acima - era um mundo natural de
riscos terríveis, tendo em vista o baixíssimo desenvolvimento das forças produti-
vas sociais do trabalho. O que se impunha era a “seleção natural” sob a vigência
da sobrevivência dos mais fortes. Portanto, tendo em vista a fragilidade dos ho-
minídeos, colocava-se a necessidade do desenvolvimento de técnicas, como, por
exemplo, nesse caso, a utilização de “técnica orgânica”, isto é, habilidades sen-
soriais e perceptivas desenvolvidas socialmente como meio de sobrevivência da
espécie. Ao lado do desenvolvimento das “técnicas orgânicas” como habilidades
sensório-perceptivas ou habilidades físico-motoras desenvolvidas socialmente no
curso da evolução das espécies, o homem como animal que se fez homem através
do trabalho, desenvolveu também técnicas inorgânicas, ou seja, técnicas mate-
riais (instrumentos) e técnicas imateriais (os signos e a linguagem), capazes de
habilitá-lo a enfrentar com sucesso, o mundo natural de riscos da Terra primitiva.
A “técnica” é uma categoria sócio-ontológica que não está na natureza, mas
sim, no ser social; o que significa que, a rigor, o que designamos como “técnica
orgânica” não é a técnica propriamente dita, embora represente um meio orgâ-
nico desenvolvido socialmente, utilizado no processo de luta pela sobrevivência
na selva primitiva. Apenas o animal homem é capaz de desenvolver técnicas, isto
é, meios utilizados para a produção e reprodução da vida social. O surgimento (e
desenvolvimento) da técnica como meio (orgânico e inorgânico) entre o homem e
a natureza, pressupõe, mesmo que de modo rudimentar, um modo de práxis so-
cial, capaz de dar sentido à ação dos hominídeos ou homens em processo de devir
humano. É o que Noah, Gaw e Amoukar demonstraram no decorrer do filme: a
capacidade de enfrentar os riscos iminentes da natureza hostil. Por exemplo, ao
perceberem, pelo olfato, a aproximação dos leões primitivos, animais ferozes su-
periores a eles, correm em disparada pela planície e sobem numa árvore. A fuga
veloz e a habilidade em subir em árvores, habilidade que leões não têm, os salvou
de serem devorados. Noah, Gaw e Amoukar ficam horas (e talvez dias) recolhidos
no alto da árvore no meio da planície sob a espreita dos leões selvagens. Comba-
tem a fome, alimentando-se dos ovos de pássaros que recolhem nos ninhos das
árvores. É uma luta surda vencida pelo cansaço da fera primitiva. Esta é a pri-
meira batalha vencida por Noah, Gaw e Amoukar: conseguiram vencer o inimigo
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Técnicas (meios)
Homem – Natureza
Orgânicas Inorgânicas
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Entertanto, não queremos dizer que Gaw, ao tentar pega-la, tenha cometido
estupro. Ele agiu de acordo com a natureza neanderthal. Trata-se de acasalamento
entre espécies diferentes de hominídeos. No começo do filme “A Guerra do Fogo”,
observamos a prática corriqueira dos neanderthais pegarem as fêmeas por trás. É
a posição usual dos hominídeos. Entretanto, mais adiante, a jovem Ika irá mostrar
para Noah que existe um modo alternativo de “fazer sexo”: deitada de frente para
ele, com ela fazendo o movimento pélvico, mexendo o quadril durante a penetra-
ção. Com as pernas abertas, ela pode estimular o clitóris, enquanto é penetrada.
Tudo acompanhado por beijos no peito do parceiro e no seu também. Enfim, esta
é a posição clássica “papai-e-mamãe” que implica uma nova dimensão de sensi-
bilidade afetiva do casal. É claro que não se trata de excluir a posição de quatro,
mas de acrescentar uma variação que contribui para o enriquecimento humano-
-afetivo no ato sexual.
Mais uma vez, a jovem Ika ensinou aos neanderthais, traços da humanidade
vinculados ao desenvolvimento de habilidades lingüísticas. O que Ika ensinou a
Noah foram novas formas de linguagem capazes de expor a riqueza das possibili-
dades contidas na relação amorosa. Na verdade, não é a linguagem que é natural
ao homem, mas a faculdade de construir uma língua, vale dizer: um sistema de
signos distintos correspondentes a idéias distintas. Nesse caso, apenas o H. sa-
piens foi capaz de construir a diversidade humana expressa nas múltiplas formas
culturais.
Nos primórdios da evolução humana, a diversidade linguística expressa na
variedade cultural, eram manifestações das múltiplas possibilidades de ser huma-
no. Ela expressava com vigor, a capacidade humana de construir uma língua como
afirmação de sua própria hominidade humana. Portanto, no principio, tínhamos
a explosão de expressões humanas distintas por meio da multiplicidade cultural
que elaborava, em-si e para-si, a linguagem humana no sentido humano-genérico.
De repente, a jovem Ika foge, indo em busca da sua tribo de origem. Eis um
importante ponto de inflexão na narrativa do filme “A Guerra do Fogo”, tendo
em vista que a fuga de Ika expõe os sentimentos de Noah, que sente a sua falta e
decide ir buscá-la a qualquer preço. Ao procurar por ela desesperadamente, Noah
conhece a tribo de Homo sapiens. Ao sentir a falta de Ika, o neanderthal Noah
expressa uma manifestação de afeto pela jovem humana. Talvez a manifestação de
afeto neanderthal signifique, no plano do roteiro do filme “A Guerra do Fogo”, um
puro anacronismo (é comum ocorrer isso nos casos de filmes sobre a pré-história
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Trabalho e Cinema • Volume 4
humana, onde sempre nos projetamos como homens do século XX nas carac-
terizações de hominídeos ou humanos pré-históricos). Noah é um neanderthal
apaixonado, expressando um afeto intrinsecamente humano. Entretanto, pode-se
especular que a atitude de Noah não significa um sentimento de amor romântico
- como nós poderíamos supor. Talvez possamos dizer que o sentimento de afetivi-
dade de Noah por Ika é o mesmo que liga os animais de estimação aos seus donos.
Talvez - e estamos no plano da pura especulação - Noah sinta por Ika, o que um
animal de estimação sentiria quando o dono o abandona. Neste plano de argu-
mentação, o neanderthal Noahn é o “animal de estimação” que perdeu seu dono.
No plano evolutivo, embora Noah seja incapaz de expressar amor romântico,
modo de afetividade amorosa concebível apenas entre homens da mesma espécie
– e numa determinada temporalidade histórica (a modernidade burguesa), Noah
poderia manifestar outro modo de laço afetivo. A incongruência narrativa seria
supor amor romântico na pré-histórica, quando sabemos que o amor romântico é
uma construção histórica da modernidade do capital. Portanto, talvez o que exista
ali seja outro tipo de manifestação amorosa.
A fuga de Ika faz com que Noah, ao buscá-la, entre em contato com a tribo de
Homo sapiens. Num primeiro momento, Noah encontra uma cabana rudimentar,
expressão do trabalho humano. Ao invés de morar em cavernas, o H. sapiens cons-
trói sua própria habitação. Deste modo, Noah percebe os rudimentos de cultura
humana, tais com seus utensílios de cerâmica que expressam a desenvolvida capa-
cidade da espécie humana para a produção de utensílios. Nas mais diversas ferra-
mentas e utensílios encontrados por Noah na tribo de H. sapiens, encontramos a
expressão singela do processo de trabalho e a manifestação concreta da habilidade
manual, que só a espécie humana tem para a produção de argila e seu manuseio
na elaboração de artefatos culturais, onde os traços com signos expressam uma
visão de mundo. Um detalhe: percebe-se no vaso de cerâmica, o desenho de um
animal de caça. Ao lado da expressão material do utensílio de cerâmica, temos a
expressão artística rudimentar, rica em significações, vinculada ao cotidiano do
trabalho humano. Deste modo, nos primórdios da evolução humana, arte, ciência
e trabalho constituíam um só momento de afirmação do ser genérico do homem.
Por exemplo, a ciência, em sua forma primordial, se expressava no conheci-
mento que o artesão primitivo tinha das propriedades físico-químicas dos mate-
riais utilizados no processo de trabalho; e no domínio e habilidade técnica neces-
sária para manipulá-los tendo em vista a consecução de determinadas finalidades
prático-sensíveis (a intentio recta, como diria Lukács). Enfim, eles fazem, mas
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natural hostil que os cerca. Trata-se de uma habilidade técnica utilizada também
pelo neanderthal Noah quando, numa situação de risco e perigo, aproximou-se
do mastodonte, oferecendo-lhe alimento, e deste modo, utilizando-se da manada
de mastodontes como meio para afugentar os Homo erectus rivais que os perse-
guiam.
À beira da morte no pântano de areia movediça, Noah é resgatado pelos
guerreiros humanos. Fora preso, como um troféu, pela tribo de Homo sapiens.
Percebe-se o notável desenvolvimento técnico-cultural da tribo humana em
comparação com outras espécies de hominídeos. Os humanos pintam o corpo
e usam adornos. Eles têm uma organização hierárquica com um xamã da tribo
que organiza a cultura e os rituais humanos (o xamã se distingue dos demais pela
longa barba branca e altivez de seus adornos); além disso, com respeito a cultura
material, manejam lanças e possuem habitações – cabanas - construídas por eles
mesmos. Os H. sapiens utilizam Noah num ritual de acasalamento com as mulhe-
res mais opulentas da tribo, oferecidas para o guerreiro neanderthal como gesto
de hospitalidade. Mais uma vez, o filme sugere a hibridização de neanderthais e
Homo sapiens (alguns cientistas defendem que ocorreu encontros amorosos entre
neanderthais e sapiens. Dizem eles que, ao deixar a África e colonizar a Europa,
os H. sapiens não exterminaram os antigos habitantes do continente - os neander-
thais - mas, em maior ou menor grau, misturou seus genes aos deles).
Impressionado com o mundo social dos H. sapiens, Noah acomoda-se em
sua cabana (ou cela), quase esquecendo o motivo de estar ali: rever e resgatar a
jovem Ika. Provavelmente, Noah deleita-se com as oferendas da tribo humana.
Torna-se perceptível que a prática humana e o conjunto de artefatos, utensílios
e adornos utilizados pelos H. sapiens é permeada de ricos significados culturais.
Os rituais que envolvem o neanderthal Noah naquele universo cultural primitivo
dos sapiens, possuem uma excepcional riqueza simbólica. Na verdade, eis o ponto
flagrante de diferença entre as espécies de hominídeos e os Homo sapiens: os sa-
piens estão imersos em rituais mágicos e práticas simbólicas, ricas de significados
culturais.
Na medida em que o H. sapiens é um animal que se fez homem através do
trabalho; e o trabalho significa, na acepção lukácsiana, o pôr teleológico que
impulsiona séries causais; constituiu-se, em torno do homem, um complexo de
objetivações materiais e imateriais denso em significados simbólicos (Ernst Cas-
sirer considerava o homem um “animal simbólico”). O H. sapiens que surgiu há
aproximadamente 200 a 150 mil anos atrás, no leste da África (como resultado de
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os neanderthais aprenderam a rir; Ika ensinou a Noah uma nova posição sexual
e depois, a descoberta principal: a jovem humana ensinou Noah a produzir fogo.
A produção do fogo tem seu significado no processo do devir humano dos
homens. Como verificamos, a tribo sapiens dominava o savoir-faire da produção
do fogo. Foi por isso que Ika conseguiu transmitir para Noah, a técnica de produ-
ção do fogo. Entretanto, as outras tribos hominídeas, incapazes de desenvolver as
habilidades técnicas (como os H. sapiens), não dominavam a produção do fogo.
Como não sabiam como produzir fogo, obtinham o fogo espoliando outras tri-
bos hominídeos, que guardava acessa a chama primordial (por exemplo, na cena
inicial do filme, após atacar a tribo neanderthal, um espécime de Austrolopitecus
aparece furtando o fogo); mas podia-se obter o fogo também coletando-o dos
incêndios das matas atingidas por raios durante as tempestades primitivas. Após
“coletar” o fogo, criavam-se técnicas e rituais de conservação do fogo natural, in-
clusive atribuindo a alguém a função de guardião do fogo (como era o caso dos
neanderthais do filme “A Guerra do Fogo”).
A produção do fogo significava a criação de condições infra-estruturais para
a produção da vida social. O fogo era a fonte de energia capaz de propiciar, por
exemplo, o cozimento da carne com impactos no metabolismo orgânico da espé-
cie; permitiu também ser utilizado como arma na luta contra animais selvagens.
Enfim, o domínio do fogo significava, no plano simbólico, a primeira forma de
domínio das forças da Natureza inóspita e selvagem.
A produção do fogo implicou todo um processo de trabalho ocorrido após o
domínio do instrumento como ferramenta pelos hominídeos. Na verdade, o gê-
nero Homo se distinguiu dos demais animais ao descobrir o instrumento, meio
de trabalho indispensável para a produção da vida social. É a “descoberta” do ins-
trumento que inaugura o salto ontológico para a transformação do macaco em
homem. Embora os H. sapiens tenham sido a espécie hominídea mais hábil na
utilização da ferramenta, outras espécies do gênero Homo – como o Homo erectus
ou H. neanderthalensis – também utilizavam a ferramenta (por exemplo, os H.
erectus ou neanderthais utilizavam vestimentas de pele ou clavas, objetos de ador-
no e uso pessoal, produtos de um processo de trabalho que implicava o manejo de
determinadas técnicas de produção artesanal).
Obviamente a utilização da ferramenta operou efetivamente a transformação
ontológica do macaco em homem, com os H. sapiens sendo a espécie hominídea
superior capaz de utiliza-la com maestria, desenvolvendo, deste modo, o processo
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primitiva criou a base material efetiva para se impor sobre o meio-ambiente sel-
vagem. Fogo é o símbolo do poder. Tal como a descoberta e uso da ferramenta
por um macaco superior no filme “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, significou
(tal como Kubrick nos mostra na cena da batalha dos macacos pela posse de um
recurso escasso como a água), a origem e afirmação primordial do Poder sobre
outras espécies de macacos, a produção e uso do fogo significaram, do mesmo
modo, um acréscimo de Poder na luta pela sobrevivência humana no mundo hos-
til da pré-história, onde tribos de hominídeos se digladiavam disputando recursos
escassos. Portanto, o domínio da técnica de produção do fogo significava o domí-
nio da técnica de Poder.
Ao transmitir a técnica de produção do fogo para os neanderthais, a jovem
Ika obviamente não tinha noção dos riscos inerentes na transmissão desta pode-
rosíssima técnica de Mais-Poder (nas condições do estado selvagem em que se
vivia, eram constantes as disputa pelo território entre tribos hominídeas). Entre-
tanto, a tribo sapiens não demonstrava ser uma tribo guerreira, utilizando suas
armas apenas para se defender. A jovem Ika vivia numa tribo pré-histórica onde
vigorava o comunismo primitivo. O que significava que ela não incorporou o ego-
ísmo possessivo que os H. sapiens desenvolveram mais tarde, com o surgimento
e desenvolvimento histórico das mediações de segunda ordem do ser social, que
originaram a forma-capital (propriedade privada, divisão hierárquica do traba-
lho, classes sociais, ideologia e Estado político).
Mas o domínio da técnica de produção do fogo significou também mudanças
criticas na alimentação humana. O cozimento foi claramente uma inovação que
melhorou substancialmente a qualidade da alimentação humana, contribuindo,
portanto, para a evolução da raça humana. Ao dominar a produção do fogo, o
H. sapiens utilizou com mais frequência o cozimento de alimentos (é claro que
outras espécies de hominídeos – como os H. erectus do filme “A Guerra do Fogo”,
por exemplo - utilizavam o fogo, o que não significava que dominassem a técnica
de sua produção).
Cientistas da Universidade de Harvard demonstraram que cozinhar não só
faz com que os vegetais fiquem mais macios e fáceis de mastigar, como aumenta
substancialmente o conteúdo energético disponível, particularmente em tubér-
culos feculosos como a batata e a mandioca. Quando crus, as féculas não são
imediatamente quebradas pelas enzimas do corpo humano. Quando aquecidos,
porém, esses carboidratos complexos tornam-se mais digestíveis e, portanto, li-
beram mais calorias. O pesquisador Richard Wrangham e sua equipe propuse-
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ram que o H. erectus foi, provavelmente, o primeiro hominídeo a usar o fogo para
cozinhar há, talvez, 1,8 milhão de anos (os hominídeos antropófagos do filme
“A Guerra do Fogo” são da espécie H. erectus). Eles sustentam que, por exemplo,
o cozido de vegetais (especialmente tubérculos) permitiu à espécie desenvolver
dentes pequenos e cérebros maiores que seus antecessores. Além disso, as calorias
extras permitiram ao H. erectus começar a caçar - uma atividade energeticamente
dispendiosa - com maior frequência. Sob uma perspectiva energética, essa é uma
linha suficientemente lógica de raciocínio.
A equipe de Wrangham cita os sítios do leste africano, Koobi Fora e Cheso-
wanja, datados em torno de 1,6 e 1,4 milhão de anos, respectivamente, para indi-
car o controle do fogo pelo H. erectus. Esses locais, realmente, mostram evidências
de fogueiras, mas se hominídeos foram os responsáveis por essas fogueiras é um
assunto a ser debatido. A mais antiga e inequívoca manifestação do uso do fogo
- fornos de pedra e ossos de animais queimados em sítios na Europa - datam so-
mente de cerca de 200 mil anos.
Nas cenas finais do filme “A Guerra do Fogo”, assistimos mais uma vez, a pre-
sença de ameaças selvagens que atacam os neanderthais e sua companheira sa-
piens. Primeiro, Noah, ao fugir da perseguição dos seus rivais neanderthal, é ata-
cado por um urso selvagem. Ao invadir inadvertidamente, a caverna do animal,
o neanderthal é atacado furiosamente por ele, enfrentando-o numa luta de vida e
morte. Depois, pouco antes de chegar no seu destino (a tribo neanderthal), Noah,
Gaw, Amoukar e Ika, são cercados pelos neanderthais rivais de Noah. Quem con-
seguisse levar o fogo para a tribo, tornar-se-ia um homem poderoso. Noah conse-
guiu resgatar o fogo, mas seus rivais o aguardavam para furtá-lo.
A pequena batalha entre Noah e seus inimigos tribais é rápida. Mais uma vez,
o domínio da técnica tornou-se decisivo. Noah, Gaw e Amoukar dominaram a
técnica de utilização de lanças ou dardos à distancia transmitida por Ika. Apenas
os sapiens dominavam esta técnica que permitiu matar um oponente sem precisar
ter com ele um enfrentamento corpo-a-corpo, bastando ter habilidade no lança-
mento do dardo mortal. Em poucos segundos, Noah elimina seus oponentes.
Portanto, o filme “A Guerra do Fogo” é uma narrativa constituído pela dia-
lética entre homem e natureza com suas ameaças cotidianas no inóspito mundo
natural da Terra primitiva. No estado natural, a vida das espécies hominídeas (in-
cluso os H. sapiens) reduzia-se a luta pela sobrevivência, o que colocava o primado
da utilização (e aprendizado) da técnica como recurso de Poder (por exemplo, a
jovem sapiens Ika transmitiu uma série de técnicas para o neanderthal Noah: o
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CAPÍTULO 2
Jason Reitman
(2009)
O filme “Amor sem escalas”, de Jason Reitman possui como eixo temático, a
problemática da relação trabalho e vida pessoal, um dos temas candentes
que emerge com o capitalismo global, tendo em vista que, com a crise estrutural
do capital, o tempo de vida está cada vez mais reduzido a tempo de trabalho. Deste
modo, a precarização do trabalho oculta outra dimensão da precarização laboral:
a precarização do homem-que-trabalha. Neste caso, como iremos tratar adiante,
corrói-se os laços pessoais do homem como ser genérico, isto é, a relação do ho-
mem consigo mesmo e do homem com outros homens.
O filme é baseado no romance homônimo do escritor Walter Kirn, novelis-
ta norte-americano, crítico literário, e ensaísta, nascido em 1961. O romance foi
lançado nos EUA em 2001. Ele trata de uma temática candente da época de crises
financeiras, quando as grandes empresas tiveram que reestruturar-se, enxugando
seus quadros de pessoal. Submetidas à lógica do capital financeiro, os downsizing
tornaram-se freqüentes diante da instabilidade sistêmica. Foi no contexto históri-
co do capitalismo global que emergem empresas dedicadas tão-somente a mediar
o processo de demissão em massa nas corporações industriais. Num certo mo-
mento, o gerente da empresa diz: “Os varejistas enfrentam um prejuízo de 20%.
A indústria automotiva está mal. O mercado imobiliário está apático. É um dos
piores momentos já registrados nos EUA. Este é o nosso momento.”
Demitir alguém torna-se uma arte da manipulação. Na verdade, trata-se de
uma forma de perversidade social pois, nesse caso, o consultor motivacional deve
preparar o empregado para sua “desmontagem” pessoal: o desemprego desmonta
a vida pessoal do homem-que-trabalha. O filme expõe o capitalismo global como
uma máquina de “desmontar” pessoas humanas. Em “Up in the Air”, título ori-
ginal do filme, não apenas as vítimas de desemprego são desmontadas, mas o
próprio personagem principal – Ryan Bingham - possui uma “vida liquida” que
flui, tendo poucos laços humanos e nenhum compromisso afetivo. Bingham é
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E por ter passado por isso obteve sucesso. Essa é a verdade. Crie uma nova rotina
e logo estará de pé de novo.” Esta frase de Bingham é deveras interessante, pois
expõe a ideologia do convencimento perverso que o capital opera hoje no plano
lingüístico-locucional: fracasso é sucesso; morte é vida ou ainda, sofrimento é
redenção. Enfim, estamos diante da ideologia da auto-flagelação. Face ao inevi-
tável só nos resta adaptar-se ativamente, visando reinserir-se com atitudes pró-
-ativas, sempre individualmente, na “roda vida” do sistema; ou melhor ainda: é
importante – e decisivo – ver o lado positivo da negatividade do capital. Como
tratamos com destinos individuais, o consultor motivacional deve ter perspicácia
para verificar as possibilidades positivas contidas na tragédia da demissão e do
desemprego. Talvez Ryan Bingham exerça o papel de ilusionista social. Ele deve
ter a habilidade profissional para fazer as pessoas demitidas acreditarem que ou-
tra vida é possível; ou melhor, fazê-las acreditar na positividade do estranhamento.
Numa das suas entrevistas, Ryan Bingham demonstra, com genialidade, a arte
de transformação do fracasso profissional em realização pessoal. Um homem de-
mitido está inquieto: não sabe o que dizer para mulher e filhos. Nesse momento,
Bingham é acompanhado pela jovem Natalie Keener, colega de trabalho que quer
aprender (e exercitar) a arte de demitir pessoas, reconfortando-as e instigando-as
a adotarem atitudes pró-ativas na superação do desemprego.
Num primeiro, momento, é a jovem Natalie Keener quem o entrevista. Ela
pergunta: “Subestima o efeito positivo dessa transformação sobre seus filhos?”.
A resposta do homem demitido é ironicamente contundente. Diz ele: “Efeito po-
sitivo? Ganho 90 mil por ano. O seguro-desemprego dá 250 dólares por semana,
É um efeito positivo? Ficaremos mais aconchegados sem pagar a prestação da
casa, porque nos mudaremos para um apartamento de quarto e sala. E sem os
benefícios poderei abraçar minha filha, que sofre de asma, já que não poderei
pagar a medicação.” Indiferente ao drama humano, Natalie utiliza um argumento
tipicamente tecnocrático para legitimar a desgraça pessoal do demitido. Diz ela:
“Os testes mostram que crianças sob trauma moderada, tendem a se empenhar
academicamente como forma de colaborarem.” Indignado com a argumentação
dela, o homem demitido exclama: “Vá à merda. É o que meus filhos pensarão.”
Ryan Bingham percebe que a linha tecnocrática de argumentação utilizada
por Nathalie não funciona. É preciso utilizar outra linha de convencimento. Ele
questiona o homem demitido: “A admiração de seus filhos é importante?”. Eis o
ponto nevrálgico da estratégia do convencimento a ser utilizada por Ryan: deve-se
manipular a percepção (e auto-percepção) que o homem demitido tem de seus
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Afetos do desempregado
inferioridade
Rancor
Ódio
Luto
perplexidade
culpa
Injustiça pessoal
frustração
decepção
preocupação
medo
Auto-flagelação
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Deste modo, Ryan Bingham é o homem desvinculado dos afetos que pesam.
Ele quer ser demasiadamente leve para poder se mover nas highway da civilização
do capital. Como diz o poema: “Sejam quais forem os sinais de amor que rece-
ber, só responderá com beijos apaixonados de separação”. E mais: “Não permitirá
o controle daqueles que lhe estendem as mãos.” Entretanto, a ideologia da open
road é uma ideologia retrograda, no sentido de que não existem mais territórios
a serem desbravados no mundo histórico do capital monopolista: the road is clo-
sed. O pioneiro desbravador do Oeste norte-americano, a individualidade heroica
tão cultivada pelo cinema de Hollywood, tornou-se o mito ideológico utilizado
pelo capital para ocultar a farsa da liberdade individual sob a ordem burguesa
oligopolizada. No mundo social da corporação industrial, o individuo moderno é
apenas aquilo que o sociólogo Max Weber descreveu no século XX com estas pa-
lavras: “...é horrível pensar que um dia o mundo será ocupado somente por estas
pequenas peças, por pequenos homens que se agarram a pequenos empregos e
procuram obter outros maiores – uma situação que...tem um papel crescente no
espírito de nosso sistema administrativo presente...Esta paixão pela burocracia é
suficiente para pôr-nos em desespero...A grande questão não é saber como pro-
mover e estimular esta evolução, mas como se opor a esta máquina para manter
uma parte da humanidade livre desse desmembramento da alma, desta suprema
dominação do modo burocrático de vida.” [o grifo é nosso]. Ao invés das imensas
planícies do Velho Oeste, Ryan Bingham flutua nas nuvens que lhe dá a sensação
de desvinculação com o território do capital. Entretanto, é um homem cercado
pelas grandes corporações que organizam seu trajeto profissional e de vida. Ele
é mais uma das “pequenas peças” que compõem a engrenagem do capitalismo
monopolista, submetido a “dominação do modo burocrático de vida”.
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-nos nessa mochila. Não se preocupem, não pedirei para queima-la. Sintam o
peso dessa bolsa.” E conclui com sua filosofia de vida (“lean life”). Diz ele: “Saibam
que seus relacionamentos são os componentes mais pesados. Sentem as alças cor-
tando seus ombros? Todas as negociações, argumentos, segredos e compromis-
sos. Não precisam carregar todo esse peso. Por que não largam essa bolsa?”.
A sugestão de Bingham é absolutamente contrária àquela dada por homens
e mulheres demitidas que, nos depoimentos do final do filme, concluem que, fi-
lhos e cônjuge, isto é, a família; ou ainda, pessoas e amigos, é que dão sentido às
coisas. Enfim, o que dá sentido à vida no mundo sem sentido e desumanizador
do capital são os relacionamentos humanos. Como salientamos acima, uma das
mulheres demitidas observou: “O dinheiro mantém você quentinho. Ele paga a
conta da calefação. Ele compra o cobertor. Mas ele não esquenta como o abraço
de meu marido.”
A filosofia da lean life de Ryan Bingham é uma visão de mundo adequada à
voracidade do mundo social do capital. É a ideologia da globalização neoliberal
que incute a idéia de que, como nenhum outro mundo é possível, além do mundo
dos mercados, então só nos resta adaptar-se a ele, no sentido de preserva-se no
oceano profundo do capital. Essa adaptação à nova ordem sociometabolica do
capital tem um preço humano: a dessolidarização social.
A ruptura de laços de solidariedade social é um dos traços do capitalismo ne-
oliberal. De certo modo, por exemplo, a crise do Estado-Providência decorre das
políticas de desmonte do solidarismo social. Destroem-se coletivos do trabalho e
disseminam-se os valores do individualismo possessivo. Por isso, Bingham con-
clui sua fala dizendo: “Certos animais carregam uns aos outros e vivem simbio-
ticamente. Amantes sem sorte, cisnes monogâmicos. Não somos assim. Quanto
mais lento nos movemos, mais rápido morremos. Não somos cisnes. Somos tuba-
rões.” Nesse caso, a frase crucial é: “Quanto mais lento nos movemos, mais rápido
morremos. Não somos cisnes. Somos tubarões”. Eis o culto da ética da velocidade
que dilacera laços de solidariedade social e laços humanos.
Este é o cenário da barbárie social que expõem, como traço característico, a
desefetivação dos laços humanos em virtude da vigência do mercado. Nesse caso,
ocorre um processo de corrosão do ser genérico do homem, com consequências
desumanas no plano civilizacional. A destruição dos coletivos de trabalho, o culto
da fragmentação e da fluidez, o novo individualismo possessivo – não a posse da
propriedade particular, mas sim das coisas e da carreira profissional – compõem
o sociometabolismo da barbárie.
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Por exemplo, no filme “O que você faria?”, de Marcelo Pineyro (de 2004), te-
mos também a temática da dessolidarização social como um dos traços do socio-
metabolismo da barbárie. Neste filme, um dos personagens que concorre com os
demais a um cargo de executivo numa grande empresa, utiliza como lição moral,
o conto “A Lei da Vida”, de Jack London, que escreveu sobre uma tribo de esqui-
mós que migra sazonalmente. É a história de um ancião cansado, quase cego, que
sente que não pode acompanhar a tribo e então, todo o grupo pára e se despede
dele, um por um; seus filhos também, e simplesmente o deixam ali com um pouco
de lenha. O ancião senta-se na neve, tranqüilo, se lembrando do que foi sua vida. E
quando acaba a lenha, morre congelado; isto é, o ancião cansado iria pesar muito,
impedindo o deslocamento ágil da tribo nômade. Por isso, eles o deixam ali com
um pouco de lenha para morrer em paz. Como diria Ryan Bingham, “quanto mais
lento nos movemos, mais rápido morremos”.
Esta é a “lei da vida” no capitalismo neoliberal; o que explica, deste modo, a
interversão linguistico-locucional onde Morte é Vida; Liberdade é Escravidão; Paz
é Guerra. Esta corrosão lingüístico-locucional foi salientada por Herbert Marcuse,
em seu livro “A ideologia da sociedade industrial”, de 1965 (em inglês, no original,
intitula-se “The One Unidimensional Man”). Neste livro, ao observar a vigência
do homem unidimensional, Marcuse vislumbrava, sem o saber, as conseqüências
humanas do capitalismo flexivel (Marcuse, falecido em 1979, não viveu para ver
a era da globalização). Talvez Ryan Bingham seja expressão do homem unidi-
mensional marcuseano, nômade pós-moderno, homem-tubarão do capitalismo
neoliberal, homem flexível e desvinculado, inclusive de si, embora imerso num
profundo intimismo auto-centrado e particularismo narcísico, um dos sintomas
candentes do estranhamento (traços da personalidade particularista estão pre-
sentes, por exemplo, em Alex, no filme “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick).
Mas talvez Bingham seja também o herói burguês do tempo histórico do ca-
pital em sua fase de crise estrutural. Tal como aqueles homens e mulheres que
demite, Bingham está, a seu modo, numa deriva pessoal. Ele possui uma ide-
ologia pessoal: a ideologia do “tubarão”, névoa ideológica que oculta de si, sua
lenta e gradual desefetivação pessoal. Por isso, a necessidade que Bingham tem
de circular intensamente: ele gira, como o capital, que acelera, sob a crise, sua
taxa de rotação. Ele é - ele próprio - o exemplo de fluidez. É o homem liquido:
evita relacionamentos afetivos que possam comprometer sua leveza. No mundo
convulsivo do capital, flexibilidade (ou descompromisso) torna-se uma virtude
pessoal. Diante do mundo do capital que aparece como uma máquina capaz de
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Mais tarde, o chefe de Ryan contrata a jovem Natalie Keener (interpretada por
Anna Kendrick), para promover inovações no trabalho da empresa: desenvolver
um sistema de videoconferência onde as pessoas poderão ser demitidas, sem que
seja necessário deixar o escritório. Diz ela: “Esta Companhia mantém 23 pessoas
viajando 250 dias por ano. É caro e ineficaz. Quando mostrei isso ao Craig há 3
meses, ele disse que só é um problema se houver solução.” Este sistema, caso seja
implementado, põe em risco a rotina de trabalho de Ryan. Diz Natalie Keener
que, com a reestruturação organizacional, o “inflado orçamento de viagem” da
empresa será reduzido em 85%. Diz ela: “E mais importante, para vocês que via-
jam, chega de Natal num hotel em Tulsa atrasados por causa do tempo. Poderão
ir para casa.”.
A última observação de Natalie aterrorizou Ryan Bingham, tendo em vista
que ele não tem um lar. Como retornar para um lugar que não existe? Na verdade,
a rotina de trabalho de Bingham é seu “lar de ferro” (como diria Max Weber a
respeito da modernidade). Por isso, ele sente uma estranha (e perversa) satisfação
nestas viagens de trabalho. Finalmente, Natalie Keener é destacada para acompa-
nhá-lo para conhecer a rotina do trabalho de Ryan. Ela viaja com ele por várias
cidades norte-americanas. Mas a preocupação de Ryan Bingham diz respeito a
percepção da irrelevância do humano, mesmo no trabalho desumano de demitir
pessoas. Diz ele para Craig: “Sou o único a ver que isto nos torna irrelevantes?”. Ir-
relevância, não apenas do trabalho vivo, substituído pela tecnologia e pelo manual
impresso que contém todas as respostas; mas irrelevância do fator humano ou das
relações sociais humanas no mundo instrumental do capital. Craig diz: “Não me
culpe. Culpe o combustível, o premio do seguro, a tecnologia”. E alerta Bingham:
“Cuidado, já está pensando como dinossauro.”
Um detalhe: existe uma sutil diferença de atitude diante do trabalho entre
Ryan Bingham, homem experiente de meia-idade; e a jovem Natalie Keener, re-
cém-contratada pela empresa. Por um lado, Natalie quer implantar a rotina da
demissão on-line via videoconferência para reduzir custos da empresa. Ela possui
uma atitude fria e mecânica na comunicação da demissão. Ela diz para o demitido
via videoconferência: “Analise o manual à sua frente. As respostas que procura
estão aí.” E conclui: “Antes que perceba, estará a caminho de novas oportunidades.
Pânico não ajuda a ninguém.”. Por outro lado, Ryan Bingham se insurge contra
o novo método de trabalho virtual sugerido por Natalie Keener. Diz ele: “O que
fazemos é brutal, arrasa as pessoas, mas há, dignidade na forma que faço.” E Craig
Gregory, chefe de Bingham retruca: “Apunhalá-las no peito em vez de nas costas?”.
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Trabalho e Cinema • Volume 4
Bingham insiste que Natalie não sabe nada da realidade do negócio dele: “Sabe
preparar um iChat, mas não sabe como as pessoas pensam.” Noutro momento ele
diz: “O MySpace não qualifica ninguém a reorganizar uma empresa.” Por isso quer
que ela o acompanhe na rotina do trabalho dos despedimentos (como ele diz,
nunca diga demitido, mas sim dispensado). Diz ele: “Antes de tentar revolucionar
o meu trabalho, gostaria que realmente conhecesse o meu trabalho”.
Na verdade, existe um contraste geracional entre Natalie Keener e Ryan Bin-
gham, o “dinossauro”. Natalie pertence a geração Z, que considera como um valor,
o trabalho virtual e as redes sociais. Por isso busca utilizá-las como ferramentas
indispensáveis de trabalho, reestruturando a rotina de trabalho da empresa e in-
corporando, deste modo, a demissão via vídeo conferencia como modo de reduzir
custos – o que atrai Craig Gregory, preocupado com os custos de produção. Na-
talie Keener não pensa no “fator humano”, mas apenas na tecnologia como meio
de racionalização do trabalho em termos de custos de produção. O uso das novas
tecnologias informacionais na rotina do trabalho de demissão, torna o Outro-a-
-ser-demitido, numa mera abstração. Além disso, ela pensa o processo de traba-
lho de demissão em termos abstrato-formal, reduzindo-o a gráficos de fluxos.
Quando Bingham pergunta o que ela acha que eles fazem, ela diz: “Preparar
desempregados para achar emprego e reduzir os processos”. Ele retruca: “Isso é
o que vendemos, não é o que fazemos.” Para Bingham, a sua tarefa primordial é
“tornar o limbo tolerável” para as pessoas demitidas. E prossegue: “Para trans-
portar pessoas feridas pelo rio do medo até a esperança se tornar vagamente vi-
sível. Depois os jogamos na água e os fazemos nadar.” Enfim, apesar de exercer
uma tarefa ingrata (e desumana), existe na atitude de Bingham, um resquício de
humanismo residual (o que não existe, por exemplo, na atitude de Natalie, mais
tecnocrática e indiferente às pessoas, talvez por ser incapaz de se por no lugar de-
las). Bingham quer tornar leve o pesado fardo da ordem do capital; e talvez Natalie
Keener represente o espírito de sua geração, que se (de)formou na temporalida-
de histórica do capitalismo manipulatório, caracterizada pelo intenso fetichismo
da mercadoria e pelos valores neoliberais, que destroem a percepção moral do
Outro-como-próximo; e a capacidade humana de vicariedade, isto é, colocar-se
no lugar do Outro.
Como narrativa paralela, uma das irmãs de Ryan, entra em contato com ele
para dizer que a irmã mais nova vai casar-se e ela quer um favor do irmão. É o
mundo da família que se intromete na rotina profissional do trabalho de Ryan.
A família de Ryan reduz-se a suas duas irmãs – Kara, a irmã separada, que se
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O mundo do trabalho através do cinema
preocupa com os irmãos (segundo Bingham, “que vigia tudo”); e Julie, prestes
a se casar. É Kara que, preocupada com Ryan, diz, num certo momento: “Você
vive muito isolado”. Ele retruca: “Estou cercado de gente”. De fato, Bingham é o
homem solitário na multidão. Kara pede a Ryan que tire fotos de locais de cada
cidade em que ele está, ao lado da maquete do casal Julie e Jim. É como se o ca-
sal, embora não tivesse visitado o local, conseguisse estar – mesmo que de modo
virtual – numa foto daquela paisagem distante. Ryan se interroga por que a irmã
iria querer lembranças de lugares em que não esteve. Ao encontrar Julie, ela fala
por que pensou nesta interessante idéia: “O Jim investiu nosso pé-de-meia num
negócio imobiliário, um investimento imobiliário. É animador, mas ao analisar-
mos as finanças, uma lua de mel a esta altura do campeonato não é possível. Então
pensamos que, o fato de não podermos viajar não nos impede de ter fotos.”
A metáfora de Julie e Jim expõe o problema da virtualidade na modernidade
do capital. Estar ou não-estar presente; ou ainda, ser ou não-ser – eis a questão.
Entretanto, com o mundo da virtualidade, substitui-se o “ou” pelo “e”, e pode-
-se estar e não-estar, ao mesmo tempo (ou ainda ser e não-ser). É a vigência da
aparência como modo de efetividade. O virtual é uma nova dimensão do real,
aliás, um modo de contornar o real interditado: “O fato de não podermos viajar
não nos impede de ter fotos.”. Este tema surge também no diálogo virtual via chat
de celular, entre Bingham e Alex, quando ele diz estar deitado e com insônia; e
Alex sugere que ele batesse uma. Ele agradece o conselho e diz: “Só se você fizesse
também”; e ela diz: “Já fiz há tempo”; Bingham exclama: “Meu Deus! Me ligue na
próxima para eu ouvir”; e ela diz: “Sonhe comigo”.
Todo o diálogo ocorre via chat virtual, onde o que se coloca em questão é o
fato de pessoas solitárias poderem se relacionar mesmo não estando presentes.
O ciberespaço e as fantasias permitem romper o interdito da distancia. Não estar
presente é estar presente virtualmente, tal como Jim e Julie – não estar presente é
estar presente virtualmente por meio de fotos do casal em lugares distantes. Tal-
vez a lógica dialética da virtualidade que aparece no filme “Up in the Air” esteja
presente também no drama de homens e mulheres demitidos: eles estão e não
estão incluídos na ordem burguesa; ou ainda, são (e não são) individualidades
pessoais.
A virtualidade é uma temporalidade de desefetivação que se põe, como efe-
tividade plena, na dimensão do imaginário, fantasia ou desejo. Ela resgata a di-
mensão cotidiana do sonho num plano meramente instrumental. Por exemplo, ao
“bater uma” – e Bingham diria: “se você bater também” – põe-se no plano da vir-
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Zizek observa que Adorno, num certo momento, se interrogava se seria possível
para o sujeito, ser passivo em relação ao mundo dos objetos, reconhecer a “pri-
mazia do objeto”, sem cair no fetichismo. A preocupação de Adorno com a Angs-
tlose Passivitat – “passividade sem angústia” – é um tema cadente, tanto para ele,
quanto para Horkheimer, desde o livro “Dialética do Esclarecimento”. Entretanto,
tal tema encontra-se originalmente no Georg Lukács de “História e Consciência
de Classe”, quando Lukács caracterizou que o mundo da reificação como sendo
constituído por homens e mulheres contemplativos.
A presença de novas tecnologias informacionais contribui para a propaga-
ção da interpassividade, uma inversão reflexiva que altera o registro humano do
processo civilizatório. Por exemplo, numa reportagem de 14 de julho de 2011,
a Revista Veja observava: “‘Efeito Google’ reduz a memória”. Segundo pesquisa
divulgada na revista Science, os computadores e os motores de busca online se
transformaram em uma espécie de sistema de “memória externa”. De acordo com
a descoberta, as pessoas perdem a memória retentiva de dados, mas ganham ha-
bilidades de procura. O estudo Google Effects on Memory: Cognitive Consequences
of Having Information at Our Fingertips sugere que a população começou a usar
a internet como seu banco pessoal de dados. Para chegar aos resultados, foram
realizados experimentos com mais de 100 estudantes de Harvard para examinar
a relação entre a memória humana, a retentiva de dados e a internet. Os pesqui-
sadores descobriram que, se os estudantes sabiam que as informações poderiam
estar disponíveis em outro momento ou que poderiam voltar a buscá-la com a
mesma facilidade, não lembravam tão bem a resposta como quando achavam que
os dados não estariam disponíveis.
Enfim, o que se observa é que, no mundo da interpassividade, com impactos
na memória humana retentiva de dados, ocorre um inversão reflexiva que não se
confunde com a mera passividade (por exemplo, “o Outro faz isso por mim, em
vez de mim, no meu lugar”). O que ocorre, nesse caso, é o surgimento de uma
subjetividade minimal - “eu faço isso através do Outro”. Zizek ao falar da condição
mínima da subjetividade salienta que a atitude que constitui a subjetividade hu-
mana não é mais “eu sou o agente ativo e autônomo que está a fazer isso”, mas sim,
“enquanto um faz isso por mim, faço-o através dele”.
Na sociedade do capital, com o fetichismo da técnica como meio ineliminável
da atividade humano-genérica, a interversão da reflexão determinante (como di-
ria Hegel), em determinação reflexiva, tornou-se candente. Na verdade, não é que
o Outro é ativo, e eu me limito apenas a observá-lo passivamente; mas sim, eu pos-
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Trabalho e Cinema • Volume 4
tulo uma identidade direta entre a atividade do Outro e a minha, quando concebo
a mim próprio como uma parte atuante, como aquele que age através do Outro (a
atividade do Outro não é só determinada pela minha reflexão, como é também a
resultante direta da minha determinação refletida). Portanto, não é que o Google,
como mecanismo de busca, se se torna o pólo ativo da relação e substitui a ativida-
de da memória humana, com os usuários se limitando a observa-lo passivamen-
te. Na verdade, os usuários dos mecanismos de busca sentem-se atuantes, agindo
através do Outro – no caso, a rede ou o meio técnico, postulado como resultante
direto da determinação refletida dos usuários.
O mesmo ocorre – como já salientamos – com o casal Julie e Jim: não é que
Ryan esteve apenas naqueles lugares, ao invés de Julie e Jim; mas sim que Julie e
Jim estiveram naqueles lugares através de Ryan; isto é, “Julie e Jim gozam atra-
vés de Ryan”. Trata-se, portanto, de uma nova condição subjetiva constituída no
mundo do capital como mundo da interpassividade. É a subjetividade minimal
que abre uma série de possibilidades contraditórias para o processo civilizatório
humano-genérico.
Ryan Bingham é incumbido pela sua irmã Kara, a persuadir Jim, noivo de sua
irmã Julie, a não abandonar seu compromisso matrimonial às vésperas do casa-
mento. Jim se acovardou e estava decidido a abandonar a cerimônia de casamen-
to. É pura ironia Ryan Bingham, o solteirão, ter que convencer o noivo da irmã a
casar-se. Entretanto, esta pequena cena é curiosa em sugestões criticas. Primeiro,
ao chegar no quarto para conversar com Jim, encontra ele folheando o livro infan-
til “The Valveteen Rabbit”. Ele pergunta a Ryan: “Já leu este livro?” e Ryan respon-
de, talvez com certa ironia: “Sim, é muito profundo”. Jim concorda com ele. O livro
infantil em apreço – “The Velveteen Rabbit” (“O coelho de pelúcia”), de Mergery
Williams, escrito em 1922, possui como subtítulo “Como os Brinquedos se Tor-
nam Reais”. Na verdade, “The Valveteen Rabit” é um dos clássicos da literatura
infantil norte-americana, possuindo ricas sugestões de análise para tratarmos da
ideologia do filme “Up in the Air”.
“The Valveteen Rabit” conta a fábula de um brinquedo, um coelho de pelúcia,
que um dia pergunta: “O que é Real?”. Os brinquedos são realidades virtuais para
as crianças. Os brinquedos mecânicos, como o trenzinho de ferro, eram muito
convencidos e se vangloriavam de serem reais. Certo dia, o velho e sábio Cava-
lo de Pele, um brinquedo que tinha vivido por muito mais tempo no quarto de
criança do que qualquer um dos outros, disse: “Real não é como você é fabricado.
É algo que acontece com você”. E salientou: “Quando uma criança o ama por um
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longo, longo tempo, não apenas para brincar com você, mas realmente ama você,
então você se torna Real.” O coelho de pelúcia pergunta: “Isto machuca?”. O cavalo
de pele diz: “Hummmmm...às vezes. Quando você é Real, você não se preocupa
em ser machucado.” E o sábio brinquedo diz para o coelho de pelúcia como os
brinquedos se tornam reais: “Isso não acontece de repente...Você se torna pouco
a pouco. Demora um longo tempo. Por isso não acontece freqüentemente para os
brinquedos que se quebram facilmente; ou que têm bordas afiadas; ou que têm
que ser guardadas com cuidado. Geralmente, quando você se torna Real, a maior
parte de seu cabelo foi arrancada, e seus olhos caem e você se torna frouxo nas
juntas e mais surrado. Mas estas coisas não importam, porque, uma vez que você
é Real, você não pode ser feio, exceto para pessoas que não compreendem.” E mais
adiante ele observa: “...uma vez que você é Real, você não pode tornar-se irreal
outra vez. Isso dura para sempre.” A partir daí o coelho de pelúcia passou a ansiar
tornar-se Real. Diz o conto: “A idéia de ficar surrado e de perder os olhos e bigodes
era demasiado triste. Ele desejava que pudesse se transformar (em Real), sem que
estas coisas incômodas e desconfortáveis acontecessem com ele.”
A fábula infantil de Mergerie Williams expressa o que outras fábulas infan-
tis, como “O Pequeno Príncipe”, de Antoine Saint-Exupery e “Pinóquio”, de Carlo
Calodi, também expressam: a idéia de que, só o amor torna efetivamente reais as
pessoas. O tema do amor remete a questão do reconhecimento do Outro e dos la-
ços humanos criados por meio da atribuição de sentido ao Outro. O tema do amor
é um tema filosófico crucial na critica da modernidade do capital, onde o fetiche
da mercadoria se impõe, coisificando homens e mulheres e os descartando como
brinquedos inúteis, diluindo e extirpando laços humanos, desefetivando, deste
modo, o ser genérico do homem. As fábulas infantis, como “The Valvetteen Rab-
bit”, são elaboradas, utilizando-se significantes reversos para desconstruir signifi-
cações fetichizadas. Por exemplo, critica-se a coisificação de homens e mulheres
a partir de coisas humanizadas (como os brinquedos vivos). A crítica radical do
fetichismo social possui uma dimensão intrinsecamente moral.
O tema do amor, ou das relações de seres humanos uns com os outros, base-
adas na mútua afeição, como o amor entre os sexos, a amizade, a compaixão, o
sacrifício, etc, é um tema caro à filosofia de Ludwing Feuerbach. Para ele, como
observou Friedrich Engels, “o essencial não é que essas relações puramente hu-
manas existam, e sim que sejam concebidas como a nova e verdadeira religião. Só
adquirem plena legitimidade quando ostentam o selo religioso. A palavra religião
vem de “religare” e, por sua origem, significa união. Toda união de dois seres hu-
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Trabalho e Cinema • Volume 4
manos é, pois, uma religião”. Engels critica o idealismo de Feuerbach e sua reli-
gião do amor, dizendo: “A possibilidade de experimentar sentimentos puramente
humanos em nossas relações com outros seres humanos acha-se já hoje, bastante
atrofiada pela sociedade erigida sobre os antagonismos e o regime de classe em
que nos vemos obrigados a mover-nos; não há razão alguma para que nós mes-
mos a atrofiemos ainda mais, sacramentando esses sentimentos em uma religião.
E a compreensão das grandes lutas históricas de classe já está bastante obscure-
cida pelos historiadores habituais, sobretudo na Alemanha, sem que acabemos
de torná-la inteiramente impossível, transformando esta história de lutas num
simples apêndice da história eclesiástica.” Deste modo, Engels critica Feuerbach
e sua “religião do amor” porque ela não exerce a crítica do capital; pelo contrário,
constrói uma utopia do amor, sem desvelar – e criticar – a sociedade burguesa
erigida sobre a alienação do trabalho e os antagonismos de classe. Esta percepção
idealista do Amor obscurece e oculta a luta de classes.
Num primeiro momento, é importante salientar que a crítica de Engels a Feu-
erbach ocorreu no período de ascensão histórica do capital. As fábulas do Amor
possuem uma inadequação histórico-ontológica. Perguntemos, parafraseando
Theodor Adorno: como é possível fazer poesia após Auschwitz; ou ainda, como é
possível amar e ser amado pertencendo ao mundo social da luta de classes, isto é,
o mundo social do capital erigido sobre o trabalho estranhado e o estranhamento?
Portanto, coloca-se como principio histórico-ontológico fundamental, a critica do
capital, sob pena de que a idéia de Amor torne-se apenas “ideologia” no sentido
negativo, contribuindo para obscurecer e ocultar a luta de classes e a exploração e
dominação de classe da burguesia.
Entretanto, num segundo momento, devemos reconhecer que, nas condições
da decadência histórica do capital, isto é, sob o estado de barbárie social,, carac-
terizado pela dessubjetivação de classe, ou ainda, pela “captura” da subjetividade
do homem-que-trabalha e desefetivação do ser genérico do homem, o tema do
Amor, na medida em que é colocado numa perspectiva critica, expondo o capital
como metabolismo social estranhado erigido sob o processo histórico de promes-
sas e frustrações irremediáveis do processo civilizatório, torna-se crucial para a
crítica do capital e sua sociabilidade fetichizada. Deste modo, não podemos des-
cartar meramente, como fez Engels, a crítica da sociedade burguesa sob a ótica
moral. Nas condições históricas do estado de barbárie social, a critica moral do
capital, no sentido de crítica da desumanização humano-genérica, na medida em
que se baseia na apreensão verdadeira da ontologia do ser social e critica da eco-
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“Vejo pessoas trabalhando na mesma empresa a vida toda, como você. Chegando
e saindo todo dia. E não têm um momento de alegria. Então é a sua oportunidade,
Bob! Isto é uma renascimento. Se não fizer por você, faça por seus filhos!”. Enfim,
eis o sentido magistral da argumentação de Ryan. No caso de Bob, o desemprego é
uma oportunidade de renascimento pessoal. Ao perseguir seus sonhos, Bob, o ho-
mem demitido, poderia reconquistar a admiração dos filhos. Com Jim, Bingham,
primeiro, reconhece que casamento pode ser um saco. Enfim, é preciso recuar
na argumentação, para abrir espaços de convencimento. Diz Ryan: “Jim, não vou
mentir. Casamento pode ser um saco. E tem razão. Tudo isso que falou o acompa-
nha até a morte. Todos nós somos como relógios que não podem ser parados. E
vamos para o mesmo lugar. Não há um propósito. Não há. É o que estou dizendo.”
E pondera: “Sabe, não sou o cara certo para conversar sobre isso.” E arremata com
o verdadeiro argumento capaz de convencer Jim: “Se pensar nas suas lembranças
favoritas, nos seus momentos mais importantes, estava sozinho?”. Eis a questão!
Foi por estar sozinho e solitário ontem à noite que Jim pensou “toda essa bestei-
ra”. E Ryan Bingham diz a frase crucial: “A vida é melhor com companhia. Todos
precisam de co-piloto”. Percebemos que Bingham não diz: “A vida é melhor se nos
casarmos”, pois não se trata em salientar a dimensão da instituição casamento,
necessária, mas insuficiente; mas sim, Ryan salienta a idéia do Outro como pessoa
humana companheira, isto é, todos nós, pessoas humanas temos o carecimento
radical de sermos efetivamente reais, o que exige a presença (e reconhecimento)
do Outro companheiro, isto é, aquele que nos reconhece efetivamente (esta é a
mesma mensagem da fábula infantil de Mergery Williams).
Ryan Bingham é um homem descompromissado, cercado de mulheres por
todos os lados. Elas o provocam, questionando-o sobre seu modo de vida. Ryan
está em tensão constante. Por exemplo, numa cena do filme, a jovem Natalie o
provoca, criticando sua disposição e medo de não comprometer-se. “Não quer
se casar nunca?” – interroga ela; ou ainda: “Nunca vai querer filhos?”. Ryan Bir-
gham afirma que não, sem chance. Diz: “Não vejo o valor disso”; e desafia: “Tudo
bem. Me convença!. Me convença a casar”. Enfim, Natalie deve exercer a força do
argumento. O filme “Up in the Air” é um exercício de práticas argumentativas de
cariz ideológico. Do trabalho de Ryan Bingham aos diálogos dos personagens com
seus dramas humanos, apreendemos um complexo de práticas dialógicas que vi-
sam convencer o outro com argumentos. Ryan quer ser convencido de que vale
a pena casar e ter filhos. Num plano contingente, ele questiona a instituição do
casamento e da família, instituições fundamentais da sociedade burguesa. Não se
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o suicídio da mulher negra, que ela entrevistara, tenha sido a gota d´água que a
fizera desistir da profissão. Ao mesmo tempo, o chefe de Ryan Bingham decidiu
não mais reorganizar o sistema de trabalho da empresa (o processo de demissão
seria operado via online). Deste modo, evitou-se reduzir drasticamente as viagens
dos consultores de demissões.
A série de acontecimentos diruptivos que ocorrem no final do filme “Amor
sem escalas” repõem a mecânica da vida pessoal (e profissional) de Ryan Bin-
gham. Ao alcançar a pontuação máxima com o cartão de fidelidade da American
Airlines (10 milhões de milhas!), Bingham deve voltar retornar ao seu ponto de
partida. Deve começar quase do zero, acumulando pontos com as novas milha-
gens. Entretanto, ele decidiu transferir seus pontos da milhagem para a irmã e o
marido recém-casados, fazerem uma viagem de volta ao mundo. Este é um modo
de afirmar o mundo real ao invés de aceitar a interpassividade da vida cotidiana.
Ao mesmo tempo, o gesto de Ryan Bingham é um gesto supremo de generosidade
e renúncia pessoal. A desilusão com Alex e o afastamento de Natalie – que plei-
teava a reorganização do trabalho da empresa - colocam Bingham novamente na
rotina solitária “up in the air”. Na cena final, a imagem de Ryan Bingham olhando
para o painel eletrônico do Aeroporto indicando seu próximo vôo. Como presidiá-
rio-de-si, em seu casulo de auto-exilio (como diria Natalie), Ryan Bingham parece
continuar no seu Mundo do Ar.
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CAPÍTULO 3
Beleza americana
Sam Mendes
(1999)
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inclinam-se agora para a convicção oposta, isto é, que a família, ao repousar sobre
a união mais ou menos duradoura e socialmente aprovada de um homem, de uma
mulher e de seus filhos, é um fenômeno universal, presente em todos os tipos de
sociedades”.
A sociabilidade mercantil tardia, própria do capitalismo mais desenvolvido,
com suas formas sociais fetichizadas e estranhadas, reduz e dissolve a dimensão
comunitária da família, tranfigurando suas relações sociais humanas em relações
sociais instrumentais. Deste modo, a crise da família burguesa é a crise da institui-
ção social primordial da ordem burguesa que preserva traços originários da vida
comunitária. No “Manifesto Comunista” de 1848, Karl Marx e Friedrich Engels
salientaram a capacidade dissolvente da forma-mercadoria, na medida em que ela
tornou-se nexo estruturante da ordem social burguesa. Dizem eles: “A burguesia
rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as
a simples relações monetárias.”
Mais adiante, Marx e Engels descreveram, com genialidade, os traços essen-
ciais do processo de modernização capitalista:
“A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente
os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com
isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de pro-
dução constituía, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as
classes industriais anteriores. Essa subversão continua da produção, esse abalo
constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de se-
gurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se to-
das as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de
idéias secularmente veneradas, as relações que as substituem tornam-se antiqua-
das antes mesmo de ossificar-se”.
Logo a seguir, Marx e Engels sintetizam, de modo epigramático, a natureza
crítica do movimento do capital: “Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo
o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar
com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas” (percebe-
-se que a idéia de “crise estrutural” está contida irremediavelmente no próprio
movimento histórico do capital). Podemos dizer que, com a idéia de proletariado,
temos a pré-figuração da crise da família burguesa. Marx e Engels observaram:
“Nas condições de existência do proletariado já estão destruídas as da velha socie-
dade. O proletariado não tem propriedade; suas relações com a mulher e os filhos
nada tem de comum com as relações familiares burguesas”.
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via a coisa pronta e acabada como elemento da Natureza, cujo conteúdo místico
provinha do desconhecimento que ele tinha do ser natural da Natureza externa; o
homem moderno, imerso na pseudo-concreticidade da vida cotidiana, vê a coisa-
-mercadoria consumida, pronta e acabada. Esta percepção ingênua, oculta, na
plano da imediaticidade, a dimensão da atividade produtora de mercadorias; e
opera, no plano subconsciente, o misticismo primitivo da coleta natural. Nesse
caso, ocorre o mesmo na elaboração conceitual de Deus como projeção aliena-
da das capacidades humanas. A coisa é uma dádiva de Deus – o que explica, no
plano do pensamento, a interversão do misticismo da coisa pelo misticismo da
divindade.
A questão que se coloca para Marx é a seguinte: por que esta produção de
mercadorias engendra uma ambiência mística que envolve os produtos do traba-
lho e impede o seu reconhecimento como produtos e formas sociais? Diz Marx:
“Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias provém do caráter social pecu-
liar do trabalho que produz mercadorias”. O caráter social peculiar do trabalho
que produz mercadoria é o trabalho abstrato, categoria social crucial para expli-
car, tanto o segredo do fetichismo da mercadoria, quanto a própria produção do
capital, objetivo de Marx em sua obra-prima “O capital – crítica da economia
política”. A categoria de trabalho abstrato, categoria social antitética do trabalho
concreto, é a categoria social que explica o caráter místico da mercadoria como
produto-coisa e o segredo do fetichismo social.
Trabalho abstrato é trabalho indiferente à forma concreta da atividade so-
cial. Ele assume dimensão plena com o trabalho capitalista propriamente dito,
trabalho produtor de mercadoria, veículo do processo de valorização do valor;
caracterizando-se, deste modo, mais pela forma social do que pela forma material
(tanto o trabalho do metalúrgico, quanto o trabalho do professor, podem assumir
a forma social de trabalho abstrato).
Deste modo, trabalho abstrato é trabalho assalariado no sentido do trabalho
capaz de valorizar capital. Na perspectiva do capitalista, o tipo de trabalho que lhe
interessa efetivamente é trabalho abstrato, tendo em vista que só o trabalho abs-
trato produz valor, uma das determinidades da mercadoria (mercadoria é valor
de uso e valor, onde a categoria valor tem como suporte material, a categoria de
valor de troca; o que significa que o valor só se manifesta no proceso de troca).
Quando o capitalista contrata força de trabalho-como-mercadoria, ele contrata
a capacidade do operário (ou empregado) em produzir, num determinado tem-
po de trabalho socialmente necessário, algo além do valor efetivo de sua força
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ta consegue trocar suas mercadorias por dinheiro, isto é, vendê-las, ele realiza a
mais-valia, credenciando-se para um novo circuito de valorização e acumulação
de capital.
É a lei do valor operada por meio da concorrência no mercado capitalista que
organiza a troca de mercadorias, impondo, deste modo, suas regras aos produto-
res privados. Diz Marx: “...os trabalhos privados só atuam, de fato, como mem-
bros do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os
produtos do trabalho e, por meio dos mesmos, entre os produtores. Por isso, [aos
produtores] aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como o
que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus pró-
prios trabalhos, senão como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais
entre as coisas”. A lei do valor opera com força objetiva às costas dos produtores de
mercadorias, impondo-lhes regras às quais eles têm que se submeter, mesmo que
não a conheçam efetivamente. Eles fazem, mas não o sabem.
A regra 1 diz: só trabalho abstrato produz valor; regra 2: o valor só se realiza
por meio da venda da mercadoria; regra 3: cada produtor de mercadoria apropria-
-se-a de um percentual da massa de mais-valia social, na medida do seu sucesso
na concorrência e no quantum de sua participação do mercado. Para a lei do valor,
o sucesso do capitalista na concorrência depende da sua capacidade em reduzir o
tempo de trabalho socialmente necessário para a produção da força de trabalho,
exigindo do capitalista, deste modo, o aumento da produtividade média do traba-
lho social (o que explica, por exemplo, a necessidade exacerbada de crescimento
da produtividade do trabalho nas condições da crise estrutural de valorização). É
a lógica do valor que tende a condicionar a ação humana na sociedade produtora
de mercadorias. É o valor que impregna as relações sociais humanas com sua “te-
leologia” instrumental e cêga, ocultando para os agentes humanos, o caráter social
do trabalho. Eis o sentido do fetichismo da mercadoria.
O conceito de fetichismo da mercadoria diz respeito à consciência social que
homens e mulheres têm do mundo do capital. Nesse caso, ao tratar do fetiche da
mercadoria e seu segredo, Marx quer tratar do modo de aparição da objetividade
social. O que descrevemos acima é o modo de objetividade social do mundo his-
tórico burguês que, como observamos, é uma objetividade social constituída por
relações sociais de produção da vida social, organizadas em torno da lógica do
trabalho abstrato. A questão é saber, como a vida social aparece para os homens;
ou como os homens a vêem efetivamente na sua vida cotidiana. Marx observa
que os homens a vêem como movimento de coisas. Na verdade, o movimento dos
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Tese 2
Tese 3
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nos segmentos de direita dos EUA. A eleição de Bush em 2000 foi à reação con-
servadora à crise de hegemonia dos EUA. É perceptível no escritório de Frank
Fitts, ícones do poder imperialista dos EUA e do seu complexo militar, tais como
bandeiras dos Estados Unidos e do Estado da União; um globo antigo (da época
do colonialismo) e uma coleção de armas de fogo.
Certa vez, o casal de gays Jim e Jim, batem à porta da casa dos Fitts para co-
nhecer os novos vizinhos. Frank Fitts abre a porta e recebe, como presente, um
conjunto de flores. Exclama, de imediato: “Vamos ao que interessa! O que estão
vendendo?”. Na ótica capitalista, o que de fato interessa é o que tem valor de troca.
Deste modo, o Coronel Fitts expressa tal lógica do capital, ao medir qualquer gesto
de aproximação cordial segundo tais critérios fetichistas.
A fenomenologia do estranhamento social aparece não apenas na representa-
ção do Complexo Militar, na figura do coronel Frank Fitts, mas também na repre-
sentação do Complexo Industrial. A lógica do capital-dinheiro aparece na prática
da reengenharia das corporações capitalistas. Por exemplo, a atitude do gerente de
Lester, ao despedi-lo, após anos e anos de serviços prestados à empresa, expressa a
prática impessoal e hipócrita das corporações capitalistas que adotaram, de forma
diruptiva, no decorrer da década de 1990, um processo de reengenharia de em-
pregos que significou a extinção de milhões de postos de trabalho nos EUA. Um
dado curioso: o quadro de arte abstrata na sala do gerente da corporação capita-
lista expressa que, no mundo concreto da barbárie social, a arte torna-se abstrata.
Ao encontrar-se numa situação de pressão gerencial, Lester passa a enxer-
gar aspectos significativos da lógica capitalista, que busca criar situações factuais
(ou de conveniência), que tornem propicia a exploração da força de trabalho. Ao
mesmo tempo, torna-se perceptível que a fenomenologia do estranhamento social
convive com a fenomenologia do fetichismo da mercadoria, que iremos tratar mais
adiante Na verdade, na sociedade burguesa mais desenvolvvida, estranhamento
e fetichismo social articulam-se na composição do sociometabolismo do capital.
O filme “Beleza Americana” expõe com clareza a vigência da estética da mer-
cadoria na sociedade burguesa complexa. A mercadoria torna-se imagem. Diz
Guy Debord: “A forma última da reificação mercantil na sociedade contemporâ-
nea é precisamente a própria imagem.” É a partir da estética da mercadoria que
podemos expor os personagens que representam a fenomenologia do fetichismo
da mercadoria no filme “Beleza Americana”. Por exemplo, Carolyn Burham, a
mulher de Lester, representa a fenomenologia do fetichismo da mercadoria. Ela
aparece fascinada pelo fetiche. É o que sugere seu gosto pela American Beauty,
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um tipo de rosa vermelha, comum nos EUA. Carolyn cultiva, com dedicação, em
seu jardim, as American Beauties. O fascinio de Carolyn pela American Beauty ex-
pressa seu fascínio pelo fetiche que aparece como imagem. A própria Carolyn em
seu modo de ser, expõe a simetria do fetiche. Seu fascínio está menos na coisa em
si, do que em sua forma imagética; ou seja, vale mais pelo que representa, do que
pelo que é. Carolyn vive o Mundo das Aparências. Na sociedade do fetichismo da
mercadoria, a aparência torna-se a forma de ser das relações sociais. Como a mer-
cadoria é uma coisa exterior, ela se impõe pela sua aparência imediata. Na medida
em que as relações humanas tornam-se relações coisificadas, elas se estruturam
em função da imagem ou da forma da aparição social. Na verdade, a aparição
social apenas expressa valores vigentes na ordem do capital.
Na sociedade do fetiche, permeada de múltiplas (e complexas) relações so-
ciais, cada vez mais intensas, a imagem torna-se mercadoria e objeto de trabalho.
A imagem constitui a sociabilidade, por isso ela torna-se objeto de trabalho para
os profissionais que manipulam sonhos, desejos e fantasias. É o caso, por exemplo,
dos trabalhadores assalariados dos serviços que prestam atendimento ao público.
Na medida em que a ânsia do capitalismo global é vender mercadorias, tendo em
vista a necessidade de realizar mais-valia, a totalidade viva do trabalho está im-
plicada com atividades de venda, utilizando para isso, a manipulação dos sonhos,
desejos e fantasias dos clientes. Esta manipulação do mercado consumidor ocorre
por meio de Imagens. Não apenas a mercadoria é uma Imagem, mas o próprio
vendedor torna-se Imagem. Temos, nesse caso, o que denominamos alhures de
proletário-mascate, o trabalhador assalariado envolvido na compra-e-venda de
mercadorias. Todos nós nos tornamos vendedores de Imagens, ou nos tornamos
Imagens, no mundo do capitalismo manipulatório, tendo em vista que a manipu-
lação que impregna a vida social é permeada de Imagens. Ao viver a imagem, Ca-
rolyn confessa viver o fetiche. Na medida em que a imagem constitui a vida social,
a vida social torna-se um simulacro, onde o que é significativo no trato humano é
a forma de aparição social. Deste modo, as coisas se impõem aos homens.
A Imagem no filme “Beleza Americana” aparece, por exemplo, na marca da
indústria de fast food. O nome da empresa é Mr. Smile, sugerindo uma crítica
sarcástica ao American way of labour. O mote de “Beleza Americana” poderia ser
“Pareça Feliz!”, demonstrando que a sociedade burguesa é a sociedade da hipocri-
sia. Mr. Smile é a Imagem da sociedade do capitalismo manipulatório, onde todos
devem parecer felizes, mesmo que não o sejam. A sociedade da hipocrisia é a
sociedade do adoecimento humano, pois todos devem parecer felizes, mesmo que
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cas e um casal de negros, grupos sociais minoritários nos EUA que avançaram
na década de 1990. Ao expor o trabalho da corretagem de imóveis, o filme “Bele-
za Americana”, retrata o começo da bolha imobiliária que iria estourar em 2008,
provocando uma das maiores crises financeiras do capitalismo global. O filme de
Sam Mendes é um filme visionário, pois contém elementos cruciais da nova dinâ-
mica do capitalismo imperial dos EUA que iriam estourar na década de 2000. Por
exemplo, como salientamos acima, quando Frank Fitts, lendo o jornal no break-
fast, exclama “Este país está indo direto para o Inferno”, ele prenuncia a ascensão
da nova direita republicana, responsável pela invasão do Iraque e ocupação do
Afeganistão, legitimado pelo pretexto do ataque terrorista em 11 de setembro de
2001 ao World Trade Center; e a presença do trabalho de Negócios Imobiliários
no filme expõe na segunda metade da década de 1990, a ascensão da bolha imo-
biliária nos EUA que iria estourar em 2008 com a crise hipotecária da subprime.
Por outro lado, é interessante a análise crítica do trabalho de Lester: o traba-
lho na Agência de publicidade. Este detalhe do roteiro do filme “Beleza America-
ca” também representa uma tendência marcante da nova dinâmica do capitalismo
global, baseado do trabalho dos infoproletários. Lester era um infoproletário que,
no seu trabalho de telemarketing na revista Midia Mensal, utiliza a Imagem como
matéria-prima, demonstrando que, tanto Carolyn quanto ele, estão imersos no
mundo do fetichismo, onde a Imagem como mercadoria é seu nexo estrutural.
O trabalho de Lester é o trabalho dos Negócios Virtuais. A atividade cotidiana de
Lester implica um processo de trabalho onde ele utiliza atendimento virtual. Ele
passa o dia tratando com pessoas virtuais, tão abstratas quanto a sua vida estra-
nhada. De fato, o trabalho de Lester é tão estranhado quanto a sua vida pessoal – e
vice-versa. Poderíamos perguntar: “Lester existe?”. Um detalhe curioso: em sua
baia no local de trabalho, existe um pequeno cartaz com o mote publicitário do
filme “Beleza America” – “Look closer”, que significa “Olhe bem de perto”.
O fetichismo social que caracteriza o capitalismo global, promove defor-
mações na auto-percepção pessoal. Vejamos o caso, por exemplo, de Jane e a
(Auto)-Imagem. O sonho dela é aumentar os seios, buscando possuir uma (auto)-
-imagem de acordo com o padrão vigente de beleza da mulher na sociedade do
capital. Na verdade, este é um sintoma de sua baixa auto-estima e da insegurança
típica da adolescência nas condições do capitalismo flexivel. Mas seriam os seios
de Jane tão pequenos? Estamos diante de uma (auto)-imagem estranhada e falsa,
sintoma de incapacidade da auto-referência pessoal na sociedade do fetiche. O que
é perceptível é apenas a imagem da mercadoria e suas imposições sistêmicas.
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“Rei dos Imóveis” (por exemplo, a disseminação do sexo virtual deriva da con-
junção das tecnologias informacionais de comunicação com a vigência do corpo
como imagem).
O filme “Beleza Americana” expõe também a fenomenologia social da era
da corpolatria. Corpolatria é uma espécie de “patologia da modernidade burgue-
sa” caracterizada pela preocupação e cuidado extremos com o próprio corpo, não
exatamente no sentido da saúde (ou presumida falta dela, como no caso da hipo-
condria), mas particularmente no sentido narcisístico de sua aparência ou embe-
lezamento físico. Para o corpólatra, a própria imagem refletida no espelho se tor-
na obsedante, incapaz de satisfazer-se com ela, sempre achando que pode e deve
aperfeiçoá-la; sendo assim, a corpolatria se manifesta como exagero no recurso às
cirurgias plásticas, gastos excessivos com roupas e tratamentos estéticos, abuso do
fisiculturismo (musculação, uso de anabolizantes, etc). A corpolatria é sintoma
social da perda de sentido de realidade e/ou de efetividade humano-genérica.
Por outro lado, a corpolatria, como fenômeno psico-social, aparentemente
está relacionada com as mudanças no campo do trabalho produtivo ocorridas no
final do século XX, a saber, desde que a distinção entre produção e reprodução
social perdeu nitidez, confundindo-se assim, tempo de vida com tempo de traba-
lho (a passagem do capitalismo industrial para o capitalismo de serviços explica
a mudança sociometabólica). Desde então, em muitas profissões e ocupações, a
aparência corporal e o vigor físico passaram a ser uma espécie de segunda força
produtiva ao lado da força de trabalho propriamente dita, com o tempo livre ten-
dendo a se tornar um segundo turno do trabalho produtivo. O corpo tornou-se
Imagem, Imagem-como-mercadoria inserida no processo de compra-e-venda,
isto é, processo de realização do capital. Na medida em que trabalho vivo reduziu-
-se a força de trabalho, o corporalidade viva do homem-que-trabalha, sua força
de trabalho vital, adquiriu proeminencia no processo de metabolismo entre o ho-
mem e a Natureza. Entretanto, a corporalidade viva – corpo e mente – reduziu-se
a sua dimensão instrumental adequada à reprodução sistêmica da ordem bur-
guesa. Surgiu tanto o fetichismo do corpo – a corpolatria, quanto o fetichismo da
mente – que vai das filosofias de Auto-Ajuda às filosofias da Nova Era (New Age)
que proliferam sob o capitalismo global.
A Imagem como mercadoria na sociedade capitalista, significa que ela – a
Imagem – permeia as múltiplas relações sociais, constituindo, deste modo, for-
mas de auto-representação pessoal. O mundo social do filme “Beleza Americana”
é o mundo das Imagens. Por exemplo, a presença de Imagens (no caso, Imagens
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Tese 4
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mulacro busca o exercicio da agressividade simulada. Mais uma vez, o que existe
é mera simulação – nesse caso, a simulação de agressividade no Clube de Tiro é
parte do ritual das personalidade-simulacros que permeiam a sociabilidade da
sociedade do capital. Ele serve como “válvula de escape” para o estresse cotidia-
no. É uma “droga” que alimenta a perda de sentido de realidade, pois apesar de
estarem imersos (e impotentes) diante da contingência e do acaso do mercado,
consideram-se (ou se sentem) poderosos. Um detalhe curioso é a imagem da arma
ao lado do cassete de auto-ajuda. Esta imagem de “Beleza Americana” é deveras
significativa, expressando a afinidade eletiva entre Agressividade e Auto-Ajuda.
São duas formas de ser de personalidades-simulacros, estranhadas e imersas em
sua introversão abstrata.
Ao lado das situações de farsa, convive-se com situações de tragédia. O desen-
volvimento complexo do fetichismo da mercadoria constitui o metabolismo social
do capital como sistema. Mesmo os personagens problemáticos têm dificuldades,
no plano subjetivo, de ir além do fetiche. Na verdade, eles estão imersos na contin-
gência. Eis a forma que assume a tragédia. Como personagens que representam
as situações de tragédia, temos, por exemplo, Lester/Rick/Jane. No filme “Beleza
Americana”, Rick, tal como Lester, é um personagem problemático, que enfrenta
uma situação de estranhamento: a opressão paterna. Buscando sobreviver, de-
senvolveu um agudo senso de pragmatismo condescendente (certa vez afirmou:
“Gosto de todo tipo de música”). Além disso, diante do sistema do fetiche, adota
uma atitude contemplativa, cultivando uma estética da coisificação. Rick não se
indigna com as desgraças do mundo, mas adota uma introversão escapista.
A relação de Ricky com o pai - e, portanto, com o mundo - é ambígua. Na ver-
dade, Rick não consegue odiar o pai - não o considera mal, mas apenas triste; ou
seja, apesar de expressar tanto poder (e força) diante dele e da mãe, o pai de Ricky
é um impotente. É curioso que Rick pede a mãe para tomar conta do pai, apesar
dela ser a própria personificação da impotência e da incapacidade pessoal. O que
Ricky tem de excesso em sua família – autoridade, disciplina e estrutura, Jane tem
de falta. Eles representam extremos perversos de uma forma de sociabilidae sem
o justo-termo – a sociabilidade do capital.
Existe uma estética do fetichismo social no filme “Beleza Americana”. É através
da câmera de vídeo – Imagens Audiovisuais - que Rick expõe fragmentos coisifi-
cados do mundo do capital, buscando, por meio da contemplação dos fragmentos
à deriva, um sentido de vida. É o que ele considera a “beleza do mundo”: um pás-
saro morto, um mendigo morrendo de frio, um saco plástico ao vento… Com o
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registro audiovisual de sua câmera de video, Rick retrata inclusive, a vida trágico-
-catatônica da mãe. Na verdade, Rick busca através da contemplação do próprio
fetiche, um sentido para a vida. Busca a vida “por trás das coisas” – como ele diz.
Rick sugere uma estética do fetichismo, propondo a estetização do fragmento, ati-
tude típica do pensamento pós-modernista. Talvez, a atitude estética de Rick seja
apenas expressão da renúncia à transcendência do estranhamento e aceitação do
fetichismo da mercadoria. Talvez a estética de Rick seja uma forma de introversão
conformista e escapista. No plano ético, Rick evita confrontar a ordem burguesa,
procurando, a seu modo, adaptar-se à sociabilidade fetichizada. Por isso, diante
do pai opressor, ele foge (com Jane) e busca um lugar ao sol.
Tese 5
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nos remete, por exemplo, ao desenho animado Fantasia, longa-metragem dos es-
túdios Walt Disney, onde Mickey interpretou o aprendiz atrapalhado. O episodio
“Aprendiz de Feiticeiro”, baseado em poema de Goethe que inspirou o francês Paul
Dukas a compor sua sinfonia homônima, conta a história de um incauto aluno das
artes mágicas que, aproveitando a ausência do mestre, resolve aplicar um feitiço
às escondidas. Faz com que uma vassoura crie pernas e braços, pegue um balde e
vá buscar água no rio. Tudo corre bem até que o aprendiz percebe que não sabe as
palavras mágicas para fazer com que a vassoura pare. A cada momento, mais água
ela traz para casa. Tentando evitar uma inundação, o rapaz tem a infeliz idéia de
destruir a vassoura com um machado, e parte-a ao meio. Agora as duas metades
vão buscar água, duplicando a quantidade trazida. No último momento, o mestre
reaparece e resolve a situação, que, bem ao gosto de Goethe, serve como lição
moral para o aprendiz. Vejamos como a descrição da natureza da crise capitalista
no “Manifesto Comunista” feita por Marx e Engels expõe as dimensões irônicas da
contradição visceral do mundo do capital. Dizem eles:
“Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a
história da revolta das forças produtivas modernas contra as atuais relações de pro-
dução e de propriedade que condicionam a existência da burguesa e seu domínio.
Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, amea-
çam cada vez mais a existência da sociedade burguesia”.
E prosseguem:
“Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos já
fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já de-
senvolvidas. Uma epidemia, que em qualquer outra época teria parecido um pa-
radoxo, desaba sobre a sociedade - a epidemia da superprodução”.
Ou ainda:
“Subitamente, a sociedade vê-se, reconduzida a um estado de barbaria mo-
mentânea, dir-se-ia que a fome ou uma guerra de extermínio cortaram-lhe todos
os meios de subsistência; a indústria e o comércio parecem aniquilados. E por
quê? Porque a sociedade possui demasiada civilização, demasiados meios de sub-
sistência, demasiada indústria, demasiado comércio”.
Eis a suprema contradição do capital:
“As forças produtivas de quê dispõe não mais favorecem o desenvolvimento
das relações de propriedade burguesa; pelo contrário, tornaram-se por demais
poderosas para essas condições, que passam a entravá-las; e todas as vezes que as
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dem a beleza no mundo. Lester diz ser grato por todos esses “momentos de minha
vida idiota”. O que é importante destacar é que, Lester, como Rick, busca através
de sua “filosofia minimalista”, dar algum sentido à vida no sistema fetichizado do
capital. Na verdade, tanto Lester, quanto Rick, são expressões do fenomeno radical
do estranhamento social que coloca para as individualidades de classes, o problema
candente da vida plena de sentido. É este carecimento radical que move na vida
cotidiana, cada vez mais, homens e mulheres que vivem do trabalho.
137
CAPÍTULO 4
De olhos
bem fechados
Stanley Kubrick
(1999)
O filme “De olhos bem fechados” (Eyes Wide Shut), de Stanley Kubrick, foi o
último filme do magistral cineasta norte-americano falecido em 1999. O ci-
nema de Kubrick é uma radiografia profunda do espírito da civilização do capital
no século XX, a partir do seu pólo hegemônico mais desenvolvido: os Estados
Unidos da América. Stanley Kubrick tratou em seus filmes de temas cruciais do
século XX como, por exemplo, o estranhamento da técnica, no filme “2001 – Uma
Odisséia no Espaço”; e o irracionalismo da guerra, nos filmes “Glória feita de San-
gue” (1957), “Dr. Strangelove” (1964) e “Nascido para Matar” (1987). Abordou
também o tema do estranhamento e arrivismo social nos filmes “O Grande Golpe”
(1956) e “Barry Lyndon”; e o tema da barbarie social e manipulação, em “Laranja
Mecânica” (1971). Finalmente, ele tratou do tema do estranhamento, terror e fe-
tichismo social no filme “Lolita” (1962), “O Iluminado” (1980) e “De olhos bem
fechados” (1999). Portanto, Kubrick experimentou os vários gêneros do cinema:
drama social, guerra, suspense, ficção científica e terror. Foi um cineasta perfec-
cionista que em 46 anos de carreira cinematográfica dirigiu apenas 13 filmes. (o
primeiro longa-metragem foi “Fear and Desire”, de 1953).
O filme “De olhos bem fechados” (1999), de Stanley Kubrick foi baseado no
romance “Breve romance de sonho” (em alemão, Traumnovelle), de Arthur Sch-
nitzler (1926). A narrativa de Arthur Schnitzler foi adaptada por Stanley Kubrick
e Frederic Raphael para o cenário de Nova Iorque de 1999, período de crise do
capitalismo global. O diretor norte-americano vai buscar na literatura de Arthur
Schnitzler (1862-1931), escritor austriaco das primeiras décadas do século XX,
período da primeira crise organica do capitalismo mundial, elementos narrativos
para abordar o drama social da pós-modernidade burguesa. Na verdade, existem
homologias estruturais entre a Viena de 1926 e a Nova Iorque de 1999.
Arthur Schnitzler foi o dramaturgo do decadente Império Austro-hungaro;
e Stanley Kubrick foi o cineasta do decadente Imperío norte-americano. Schnitz-
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etapa da crise orgânica do capital, explicitando, deste modo, a crise orgânica como
crise estrutural do capital. Ela – a crise estrutural do capital - inaugurou a tempo-
ralidade histórica do capitalismo global. É o que István Mészáros iria considerar o
periodo de decadencia histórica do capital.
O traço categorial distintivo do mundo burgues moderno é a presença do feti-
chismo da mercadoria na vida social (Georg Lukács denominaria este fenomeno,
em “História e Consciência de Classe” (1921), de fenomeno da reificação). Com
a dissolução dos laços entre o Eu e o mundo social por conta do fetichismo da
mercadoria (o que Karl Marx nos Manuscritos filósoficos de 1844 denominaria
como sendo o fenomeno do estranhamento ou desefetivação humano-genérica,
isto é, a perda do sentido de realidade), as objetivações sociais assumiriam formas
estranhas. Estava-se diante não apenas do fenomeno do estranhamento, mas sim,
de um modo histórico de estranhamento social: o fetichismo social com suas for-
mas estranhadas – imagens-fetiches ou valores-fetiches, por exemplo – que per-
meiam a vida social. O fetichismo da mercadoria é apenas a forma mais simples
(e paradigmática) do fetichismo social que permeia o mundo burguês. Na medida
em que os individuos não conseguem discernir a natureza histórico-social das
objetivações estranhadas, elas tornam-se fetiches propriamente ditos, isto é, ima-
gens, valores, idéias-forças que conduzem peremptoriamente os agentes sociais.
Por exemplo, os “fantasmas” do psiquismo que permeiam a psicanálise, apare-
cem para os psicanalistas como traços da alma humana e não como expressões da
alma burguesa. Na verdade, o fetichismo oculta a origem de classe e a dimensão
histórica das fenomenologias esranhadas do psiquismo humano, reduzindo-os a
traços ontológicos do homem.
Podemos dizer que o fetichismo social é a forma de ser do estranhamento
caracteristico do capitalismo histórico em sua etapa desenvolvida. Na medida em
que se desenvolve a sociedade mercantil complexa, o estranhamento intrinseco à
ordem do capital, fetichiza-se, adquirindo, deste modo, um caráter místico (como
a própria coisa-mercadoria). Com a predominância do fetiche da mercadoria, o
estranhamento, adquire uma dimensão naturalizada, quase fantasmagorica, que
se projeta no plano do imaginário social. O desenvolvimento capitalista faz proli-
ferar a consciencia social ingenua adversa à consciencia critica. Sob o capitalismo
manipulatório, dissemina-se a consciencia ingenua, com as individualidades pes-
soais de classe perdendo a dimensão da historicidade dos objetos humanos, que
se intervertem em coisas sociais (como diria Marx a respeito das mercadorias,
“coisas fisicamente metafisicas”).
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tão descaradamente”; e Bill quer saber do homem que a cortejava: “Quem era
aquele cara dançando com voce?”. As percepções de Alice e Bill são visivelmente
díspares: estava Bill paquerando descaradamente as duas jovens modelos? O cara
que estava com Alice estava apenas dançando com ela?
Na verdade, como têm uma relação estável de casal, Bill e Alice cobram com
naturalidade, fidelidade um do outro. Deixam-se levar pela conversa e acabam
por falar de sexo e traição. Bill observa que o cara que ele viu dançando com
a mulher dele, “só queria comer minha mulher”. E arremata: “Bem, acho que é
compreensivel”. É compreensicel para ele, porque ela considera Alice, uma mulher
bonita. Nesse momento, Alice pula – literalmente. Fica indignada com o marido.
Esta é a cena mais importante do filme, pois é a partir dela que surge a pro-
blemática narrativa. Alice irrita-se com Bill, pois ele expressou demasiada segu-
rança sobre a fidelidade dela. Diz ela: “A única razão pela qual os homens que-
rem falar comigo é porque querem me comer. É isso que voce está dizendo?”.
Bill fica desconcertado (é o primeiro desconcerto entre muitos – de Bill Harford
no filme): “Bem, acho que a resposta não é tão simples assim; mas imagino que
ambos sabemos como os homens são”. Na ótica masculina de Bill, homens falam
com mulheres bonitas porque querem come-las (nesse momento, Alice retruca
Bill afirmando: “devo concluir que voce queria comer aquelas duas modelos”).
Para Bill, homens desejam naturalmente mulheres bonitas e fantasiam come-las,
pois isto trata-se de um traço natural do genero masculino, o que significa que
Bill não concebe que as mulheres possam ser assim. Na verdade, Bill, homem
pequeno-burgues, herdeiro da tradição patriarcal do capital, tem um ideal de
mulher (mulher-mãe?) como incapaz de ser sujeito de direito de fantasias sexuais.
Bill se considera exceção à regra que diz que “homens falam com mulheres
bonitas porque querem come-las”. Ele argumenta com Alice que, como ele a ama,
e é casado com ela, ele nunca mentiria para ela e nunca a magoaria. Mas Alice
interroga Bill: “Voce se dá conta do que está dizendo - que só não comeu aquelas
duas modelos por ter consuideração comigo? Não porque realmente não qui-
sesse”. Esta é a questão crucial: o problema do conflito entre desejo e convenção.
Na verdade, Bill oculta de Alice que ele (e apenas ele como macho burgues), é
o sujeito de desejos capaz de fantasias sexuais. Ele oculta este detalhe dela por-
que o seu poder-de-genero baseia-se ideologicamente, na ocultação da alienação
sofrida por ela, como mulher, do poder-do-desejo, que se tornou, deste modo,
prerrogativa masculina. Alice contesta – de forma ironica: “Digamos, por exem-
plo, que uma mulher deslumbrante esteja nua no seu consultório e voce esteja
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O mundo do trabalho através do cinema
apalpando os peitos dela. O que eu quero saber é o que voce pensa enquanto
apalpa os peitos dela”.
Bill apela para a convenção profissional: “Alice, lembre-se de que sou médico.
É tudo muito impessoal; e voce sabe que há sempre uma enfermeira presente.”
E Alice retruca: “Então, quando voce apalpa peitos, é só o seu profissionalismo?
É isso?”. E Bill diz: “Exatamente isso. Sexo é a última coisa na qual penso quan-
do estou com uma paciente.”. Mas Alice insite em ir para além das convenções
ético-profissionais. Pergunta ela, sempre interrogando Bill: “Bem, quando ela está
sentindo voce apertando seus peitinhos, acha que ela tem alguma fantasia sobre
como o pintinho do lindo Dr. Bill pode estar?”. E Bill re-afirma: “Vamos lá, posso
ganratir que sexo é a última coisa que passa pela cabeça dessa porra da paciente
hipotética!” (Kubrick, sempre genial, em cena anterior, nos mostrou que a “porra
da paciente hipotética” não é tão hipotética assim). Mas Alice quer conduzir Bill
para o ponto fulcral ao perguntar: “E o que faz voce ter tanta certeza?”. Bill apela,
mais uma vez, para as convenções – na sua dimensão do fingimento. Diz ele: “No
mínimo, o medo que ela tem que eu possa lhe dizer”. Enfim, Bill expõe um pre-
conceito contra as mulheres que oculta, em ultima instancia, uma pressuposição
alienada (a alienação do poder-do-desejo). Na verdade, Alice quer dizer-lhe algo a
respeito das mulheres que Bill se recusa a ver: elas são como os homens! –. Mas diz
Bill: “As mulheres não pensam desta maneira”. Alice se irrita e exclama: “Milhões
de anos de evolução, certo? Os homens precisam enfiar os deles em tudo quanto é
lugar, mas para as mulheres, só o que importa é a segurança, o compromisso e sei
lá que porra mais!”. E depois, diz, num desabafo: “Se voces, homens, soubessem!”.
O homem burgues construiu o seu imaginario de poder a partir do par anti-
tético desejo e convenção. A convenção provoca o fingimento, que oculta o desejo
e a fantasia; e inclusive, a sua realização assumida como meramente contingen-
cial. Trata-se de uma construção sociometabolica que equilibra o concerto íntimo
do macho burgues. Ao mesmo tempo, põe-se a pressuposição de que a mulher
– mulher-mãe, objeto de amor - está numa posição subalterna na relação de ge-
nero, representando apenas o pólo da convenção, sendo alienada, deste modo, do
pólo do desejo e da fantasia sexual. Esta pressuposição mental de Bill Harford é
implodida pela confissão de Alice, que desmascara o falsa exclusividade de genero
pressuposta no argumento do marido. Enfim, o que Alice vai dizer é que, ela – a
mulher – é capaz sim, de desejo e fantasia sexual com outros homens. Ela contesta
o desejo de posse de Bill e provoca nele o medo de perda.
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Trabalho e Cinema • Volume 4
Bill diz que não tem ciúmes dela, que nunca sentiu ciumes de Alice, mas a
afirmação dele é apenas a tranquilidade perene do sono dogmático do macho bur-
guês. Como diz Alice, “Ah, se os homens soubessem”. Alice pergunta por que ele
nunca sentiu ciúmes dela; e ele confessa com tranquilidade: “Bem, não sei Alice!
Talvez por voce ser minha esposa. Talvez por voce ser a mãe de minha filha; e por-
que sei que voce nunca me trairia.” E de modo peremptorio exclama: “Eu confio
em voce!”.
Bill apega-se às convenções e pressupostos alienados que lhe impedem de ver
Alice como sujeito de desejo, capaz de fantasias sexuais. Na verdade, sob a ordem
burguesa, desejo e fantasia sexual atentam contra a lógica da possessividade que
permeia o sociometabolismo do capital. Eis o ponto fulcral: o homem burgues
afirma-se com o desejo da posse e atormenta-se com o medo da perda. Finalmen-
te, Alice confessa-lhe que no verão passado em Cape Cod (balneário no Estado de
Massachusetts, nos EUA), sentira uma atração irresistivel por um jovem oficial da
Marinha. Bill não se lembra de ter visto o oficial da Marinha no saguão do hotel,
onde Alice o vira pela primeira vez. Mas ela lembrava-se perfeitamente do en-
contro casual. Diz ela: “Ele olhou para mim de relance ao passar. Foi só um olhar.
Nada mais. Mal eu consegui me mexer.” Prossegue ela: “Naquela tarde Helena
foi ao cinema com uma amiga e eu fiz amor com voce. Nós fizemos planos sobre
nosso futuro e falamos de Helena. Mesmo assim, em nenhum momento, eu deixei
de pensar nele.” Ao confessar seus pensamentos sobre o jovem oficial da Marinha,
Alice deixa Bill estupefato. Ele ouve atentamente a confissão dela; e prossegue:
“E pensei que, se ele me quissesse, mesmo que fosse só por uma noite, eu estaria
pronta a abandonar tudo – Helena, todo meu futuro. No entanto, foi estranho por-
que ao mesmo tempo, voce foi mais precioso para mim do que nunca. E naquele
momento o meu amor por voce, era ao mesmo tempo, terno e triste. Eu mal dormi
naquela noite, e acordei em pânico na manhã seguinte. Não sabia se tinha medo
de que ele tivesse partido, ou de que ainda estivesse lá. Mas no jantar percebi que
ele tinha ido embora e fiquei aliviada.”
A confissão de Alice é o “golpe baixo” na guerra entre os sexos. Bill fica visi-
velmente transtornado com a declaração da mulher. Ela demonstrara que era per-
feitamente um sujeito do desejo, capaz de fantasias sexuais. Talvez não se tratasse
de carecimento afetivo pela falta de relações sexuais com o marido. Ela diz que
naquela tarde chegara a ter em Cape Cod, amor com Bill; e inclusive conversaram
sobre o futuro. Aparentemente, a relação do casal estava bem. Portanto, o desejo
de Alice pelo jovem oficial da Marinha não se vinculava exatamente a fantasias
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ção como referente pressuposto do desejo – ele diz que nunca sentiu ciumes dela
por ela ser esposa e mãe; e que acredita que, por isso, ela nunca vai trai-lo - Bill
adota uma perspectiva ideológica da ordem burguesa. Pelo menos, ele imagina
que ela nunca vai trai-lo. É isso que Alice questiona.
Entretanto, a atitude de Alice foi deveras ambivalente. Ela ficou aliviada
quando o oficial da Marinha partiu, pois ele era objeto de desejo e fantasias sexu-
ais que, não apenas incomodavam, mas subvertiam materialmente o seu precioso
estilo de vida pequeno-burgues. Nesse ponto de vista, a mulher pequeno-burgue-
sa – talvez mais do que o homem – pondera numa perpectiva intrinsecamente
pragmática. Embora Alice tenha se afirmado como sujeito do desejo capaz de
fantasias sexuais, ela sabe que, ao invés de Bill, que viveu aventuras reais, ela teria
tão-somente aventuras sonhadas. Ao ouvir a “confissão” da mulher, Bill Harford é
envolvido pela sensação de “estranhamento”. Ele sente-se incomodado, ou melhor,
desconcertado pela aventura imaginada de Alice. Ao imaginar fazendo amor com
o jovem oficial da Marinha, ou mesmo, construindo projetos de vida com ele, teria
Alice traido Bill, como ele jamais imaginou que pudesse ocorrer, afinal ela era sua
dedicada mulher e mãe zelosa de sua filha? Como conceber que ela seria capaz de
sentir desejo e ter fantasias sexuais com outros homens? Bill deixa-se fascinar pela
sua própria imaginação: ele se transtorna com suas fantasias sobre a fantasia de
traição de sua mulher Alice. Como observa Enrico Ghezzi, “ele perde o controle da
situação, e acaba primeiro por percorrer e depois, por reiterar, passo a passo, uma
peregrinação confusa no mundo mágico das imagens.”
O estranhamento pode assumir a forma de imagens-fetiches que nos conduzem
em nossas odisséias cotidianas. Alain Masson diz-nos, por exemplo, que o verdadei-
ro motor da trama de Stanley Kubrick é precisamente uma imagem. Diz ele:
“Independentemente das possiveis motivações psicológicas, é um enqua-
dramento a preto e branco da sua mulher fazendo amor com outro homem que
desencadeia os ímpetos do marido em relação a outras mulheres misteriosas e
lascivas. Ora o preto e branco declara a imagem enquanto tal: é uma imagem de
uma imagem. Mais ainda, é uma imagem de nada: não só este adultério nunca
foi descoberto pelo marido mas, melhor ainda, nunca teve lugar, não existe senão
como fantasma da jovem mulher que não o descreveu especificamente nem se-
quer o desfrutou visualmente. A coisa torna-se verdadeiramente estranha: a ima-
gem filmica da imagem quimérica que um homem faz da imagem irreal e infiel
de um fantasma feminino. Uma imagem de pura imaginação.”
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mesmo após viver esta situação inusitada, Bill se recompõe. É meia-noite, mas ele
não regressa para casa e passeia pelas ruas noturnas obcecasdo com a idéia da
traição virtual da mulher.
Ao ser provocado pelas fantasias de sua mulher, vive uma forma particular de
estranhamento e crise de identidade: a identidade do homem burgues possessivo,
macho dominador, representação do opressor de gênero. No seu íntimo, Bill tem
medo da traição e medo da perda. Bill não reconhece Alice como sujeito de dese-
jo. Indignada (e insatisfeita) diante do não-reconhecimento pelo marido, dos seus
direitos de fantasia do desejo, Alice confessa a fantasia de sua própria traição. Ela
abala as pretensões de poder e dominação masculina do marido, representante do
poder-de-gênero do capital. Deste modo, além das relações de classe, a dominação
do capital tende a ser mediada pelas relações de gênero (homem versus mulher), a
base primordial do poder hierarquico do capital, com o homem assumindo o papel
de pólo dominante da sociabilidade estranhada. Portanto, o drama do Dr. William
Harford é o drama da sociabilidade estranhada, que, ao estranhar a mulher (o seu
outro-do-desejo, o outro reflexivo que lhe é familiar), ele estranha a si mesmo.
Ao ouvir a “confissão” da mulher, Bill é envolvido pela sensação do “estranho”,
que representa, na dimensão subjetiva, a forma contingente da autoconsciência
critica da modernidade burguesa. É através da relação com o Outro, que se desen-
volve a auto-consciência. Na medida em que a mulher, o Outro-do-desejo, reivin-
dica tornar-se, como subjetividade complexa, sujeito de desejo - o que signfica ter,
pelo menos, o direito de fantasiar a traição - ela desencadeia no psiquismo mascu-
lino, medo e insegurança. Alice se irrita com a segurança dele sobre a fidelidade
dela. No íntimo de Bill, Alice não deveria (ou não poderia) desejar outro homem.
A confissão do desejo de Alice desconcertou Bill, projetando-o num universo es-
tranhado. Ele sentiu aquilo que Freud denomina “Estranho (Unheimich)”. Diz ele:
“O estranho é aquela categoria que remete ao que é conhecido, de velho, e há mui-
to familiar […] o familiar pode tornar-se estranho e assustador.”. Como observa
o psicanalista Sérgio Telles, “esse estranhamento profundo, esse desencadear da
vivência de algo estranhamente familiar, algo familiar e estranho, é uma sensação
que acompanha a emergência do desejo inconsciente, da fantasia reprimida. Apa-
rece quando algo que devia permanecer oculto, vem à luz.”
Deste modo, eis um tema recorrente na crise da modernidade burguesa: o
que devia permanecer oculto vem a luz. Com a crise orgânica do capital, o siste-
ma da exploração expõe à luz suas idiossincracias perversas. Não apenas “tudo
que é sólido se desmancha no ar”, como observou Marx e Engels; mas no mundo
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do capital, cedo ou tarde, tudo o que está oculto vem a luz. Eis um traço da alta
modernidade do capital. Em seu desenvolvimento contraditório, o capital produz
recorrentemente máscaras sociais que ocultam, de forma hipocrita (como no baile
orgiástico), a face dos agentes sociais das perversidades burgueses. Entretanto, a
situação de crise orgânica oferece momentos de desvelamentos criticos e auto-
-consciencia social. É claro que sob o imperio da manipulação, procura-se re-
-ocultar recorrentemente as tramas complexas da dominação e poder espúrio da
ordem bureguesa. Mas, mais do que nunca, se põe e repõem a centralidade da
política contra-hegemonica no mundo do capital.
No filme “De olhos bem fechados”, a dialética entre o que está oculto e o que é
desvelado, é quase permanente. O intercurso sexual de Victor Ziegler com a exu-
berante mulher no recôndito do quarto no piso superior da mansão, que deveria
permenecer oculto, veio à luz com o consumo excessivo de droga pela prostituta;
as fantasias de traição da Alice, que deveriam permanecer ocultas, foram desve-
lados no calor da conversa entre Bill e Alice sob o efeito da maconha; no leito de
morte de seu pai, Marian confessa a Bill que o ama; Nick Nightgale confessa a Bill
a senha de acesso ao baile orgiástico, etc.
Como salientamos acima, o Dr. William Harford é conduzido pela imagem
da fantasia de traição de sua mulher. Trata-se apenas da projeção especulativa,
quase homóloga do capital financeiro. Nem ele, nem ela traíram, de fato, um ao
outro; mas algo realmente aconteceu. Bill é perseguido por fantasmas de sua men-
te, oriundos do “terreno de possibilidades” ou mesmo do velho e traiçoeiro “se..”.
É a pura especulação que conduz o estranhamento do personagem. Mas a sensa-
ção de estranhamento diz-nos que “há algo de podre no reino da Dinamarca…”
(como diria Horácio em Hamlet, de William Shakespeare). Nesse caso, o reino da
Dinamarca é o casamento burgues de Bill e Alice Harford. Do mesmo modo, a
financeirização da riqueza burguesa e o dominio do capital especulativo-parasitá-
rio diz-nos que há uma crise estrutural de valorização do capital.
É nas instâncias do desejo (e do sexo) onde ocorre a negociação dos afetos en-
tre homens e mulheres, sendo o mêdo a “moeda de troca” das relações estranhadas
e fetichizadas das subjetividades complexas. É por serem mediadas pelo mêdo, a
“moeda de troca” dos afetos da alma humana subsumida às relações heteronomas
do capital, que o sexo tende a ser representado, no romance de Schnitzler, como
um flerte com a morte. Como observou Bernardo Carvalho, “em Schnitzler , o
sexo está diretamente ligado à morte e não é por acaso que o pesadelo sexual em
que o protagonista vai se embrenhar põe em risco a sua própria vida”. Conduzidos
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Trabalho e Cinema • Volume 4
pelos seus tormentos íntimos, o Dr. William Hartford submerge numa odisséia
do estranhamento onde vislumbra, através da sua autoconsciência estranhada, a
natureza crítica da sociabilidade burguesa decadente.
O filme “De olhos bem fechados” nos permite uma reflexão sobre a moder-
nidade burguesa hipertardia como sendo uma modernidade estranhamente fami-
liar. Freud estava com a razão: não mandamos nem mesmo na nossa própria casa.
Bill Harford desconhecia o que Alice fantasiava. Eis a razão do medo: desconhecer
irremediavelmente o que está oculto. Como diziam Vinicio de Moraes e Toqui-
nho: “Você, por exemplo, está aí com a boneca do seu lado/linda e chiquérrima,
crente que é o amo e senhor do material/É, amigo, mas ela anda longe, perdida
num mundo lírico e confuso, cheio de canções, aventura e magia. E você nem
sequer toca a sua alma. É, as mulheres são muito estranhas, muito estranhas.”
Após atender a consulta, Bill Harford perambula pelas ruas noturnas de Nova
Iorque transtornado pela idéia da possivel traição da mulher. Em “Breve romance
de sonho”, Arthur Schnitzler descreve o que Fridolin – o Bill Harford de Schnitzler
– sentiu com as declarações de Albertine: “Sentia-se atabalhoado, desamparado,
tudo lhe escorria por entre os dedos; tudo se tornava irreal, até mesmpo seu lar,
sua esposa, sua filha, sua profissão, e até ele próprio, caminhando mecanicamente
pelas ruyas noturnas, os pensamentos divagando sem rumos”.
De repente, na rua, Bill depara-se com Domino, uma vistosa prostituta que
o convence a segui-lo até sua casa. Mais uma vez, Bill Harford é conduzido por
uma mulher. Ele sente-se visivelmente incomodado. Quando recebe uma ligação
de Alice vai embora sem nada fazer, mas insiste em pagar pelo serviço sexual não
realizado. No seu percurso de volta, entretanto, Bill se dispersa mais uma vez.
Depara-se com o bar onde trabalha Nick Nightgale – “Sonata Café” e entra. Deste
vez, ele tem mais tempo para conversar com o velho amigo de faculdade. Nick,
o pianista proletário, diz ter quatro filhos que moram em Seattle. É um músico
precário que trabalha por conta própria. Nick diz que toca com qualquer um, em
qualquer lugar; e confessa ter outro trabalho a noite, onde toca vendado. Foi a
conversa sobre o trabalho que o levou a contar a Bill sobre a sua experiencia estra-
nha de tocar vendado numa misteriosa festa privada que só se pode entrar com
máscara e conhecendo a senha: o baile orgiástico.
Inadvertidamente, Bill fica fascinado em conhecer o estranho mundo descri-
to por Nick. É a situação de risco perfeita. Consegue arrancar de Nick, a senha que
lhe permite acesso ao baile orgiástico: “Fidelio” (o nome de uma ópera de Ludwig
von Beethoven). Mais uma vez a genialidade de Kubrick, que mescla temas clássi-
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jornal num bar, Bill é atraido pela noticia de uma modelo que foi parar no hospital
devido a overdose. Dirige-se ao hospital e é informado que a mulher falecera. Ao
ver o cadáver no necrotério, reconhece a misteriosa mulher da festa que se ofere-
cera em sacrificio no seu lugar.
Entretanto, logo a seguir, Bill recebe um telefonema de Victor Ziegler. O ami-
go milionário confessa-lhe que o seguiu e estava presente na orgia. Conta-lhe que
o suposto sacrificio da mulher era apenas uma encenação para o assustar; e que
a morte dela se deve apenas ao vicio de droga. Para dissipar todas as dúvidas,
reconforta-lhe com a notícia que o pianista está bem e se encontra na casa com
a mulher. Portanto, a odisséia de Bill Harford nada alterara na fenomenologia do
mundo. Ele correu riscos, mas no final, o amigo Victor Ziegler o tranquiliza, pe-
dindo para deixar as coisas como estão, pois nada aconteceu. Bill retorna para a
familia, transtornado pelos acontecimentos estranhos da noite passada.
Ao voltar para casa, Bill encontra Alice dormindo tendo ao seu lado a máscara
que ele julgava ter perdido. Desata em chovo convulsivo e promete contar tudo a
mulher. Os dois conversam até de manhã e depois levam a filha Helena para es-
colher os presentes de Natal. A cena final é rica em significados sociológicos. Na
loja de Departamentos, cheia de brinquedos e clientes envoltos nas festividades
natalinas, o casal está acompanhado pela filha Helena que fascina-se com os brin-
quedos de Natal. O carrinho de bebe e o grande urso de pelúcia e depois a boneca
Barbie expressam o cultivo dos sentidos do desejo para imagens da conservação
dos ideais de amor romantico, casamento burgues e familia burguesa. Ao fundo, a
música de Natal cria um clima de consumo e fantasia de final de ano.
Bill, cabisbaixo e abatido ao lado de Alice, pergunta a mulher o que é que
hão de fazer agora. Diz ele: “O que acha que devemos fazer?”. O homem burguês
encontra-se desarmado depois da odisséia estranhada. Alice diz: “O que eu acho.
Não sei...” Ela está decepcionada com a reação do marido. Na verdade, ao con-
tar sua odisséia estranhada, Bill confessara para Alice sua fraqueza humana. Ele
se dispira de quaisquer veleidades de firmeza. Como representação exemplar do
macho burguês, Bill demonstrará ter um calcanhar-de-aquiles. O homem burgues
finge ser um forte. A odisseia estranhada, como a dinâmica da crise orgânica do
sistema do capital, têm uma função heuristica: expor a farsa do poder burguês.
Depois, Alice responde-lhe que, antes de mais nada, “talvez eu ache que de-
veriamos ficar gratos, por termos conseguido sobreviver a todas as nossas aven-
turas, tanto as reais, quantos as sonhadas”. Bill pergunta: “Tem certeza disso?”.
Abalado pelos últimos acontecimentos, que implodiram sua visão de mundo fe-
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Trabalho e Cinema • Volume 4
minino, Bill busca certezas. Mas Alice aparentando inquietação e cansaço, não de-
seja dar-lhe certezas. Fala compassadamente. Interroga Bill: “Se tenho certeza?”.
E diz: “Tenho a mesma certeza de que a realidade de uma noite, para não dizer de
uma vida inteira, pode ser toda a verdade.” O que significa que a certeza que Bill
anseia não é um a priori, mas sim um a posteriori. Diria Engels: a prova do pudim
está em come-lo. Bill arremata, num tirada freudiana: “E nenhum sonho jamais é
apenas um sonho”. Ele sabe que o sonho é a realização de um desejo.
Alice pensativa diz: “O importante é que estamos acordados agora, e espera-
mos continuar assim por muito tempo.” Bill exclama: “Para sempre”. Alice retruca:
“Para sempre?”. Bill reafirma: “Para sempre”. Bill mais uma vez almeja a certeza e a
eternidade. Mas Alice possui a sabedoria da miséria humana no mundo burgues.
Talvez os ideais caros do mundo burgues sejam meramente uma farsa. Apesar de
adota-los, com seu espírito pragmático, talvez ela não acredita neles como deve-
ria acreditar. Ao contrário, os teme, pois significam correntes que aprisionam a
subjetividade humana (corpo e mente). Ela diz: “É melhor não dizer isso, sabe?
Me assusta. Mas, eu amo voce; e sabe, há uma coisa muito importante que pre-
cisamos fazer o mais rápido possivel ”. Bill pergunta: “O que?”. Alice responde
decidida: “Trepar”.
O filme “De olhos bem fechados” possui um conjunto de personagens femini-
nas, proletárias do desejo, a maior parte delas com a função narrativa de provocar
o Dr. William Harford. Por exemplo, as prostitutas – Domino e Mandy - repre-
sentam as mulheres proletárias do desejo que compõem a odisséia estranhada de
William Harford. Elas são mulheres lascivas e misteriosas que fazem o contrapon-
to ao ideal de mulher-mãe (Alice) cultivado por Bill. As prostitutas, damas da noi-
te, são mulheres insurgentes que provocam e desconcertam o homem pequeno-
-burguês. Ele as possui no sentido fisico por algum tempo – o tempo do valor de
troca - mas não as possui no sentido espiritual. Talvez por isso elas o fascinam.
Pergunta-se: pode-se considerar o filme “De Olhos Bem Fechados”, de Stanley
Kubrick, um manifesto feminista? Talvez sim. Certa vez, Eric Hobsbawn obsrevou
que “a maior revolução social ocorrida no ‘curto’ século XX foi a das mulheres”.
É curioso que a revolução social das muheres tenha ocorrido no século da crise
orgânica dp capital, isto é, a temporalidade histórica em que o capital expos suas
candentes contradições sociometabólicas.
Na sua odisséia do estranhamento, Bill Harford escapa de situações de risco
de vida. Eis o nexo entre estranhamento e risco. A sociedade do capital é uma
sociedade do risco. Na medida em que se perdeu de si, imerso nas fantasias de
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O mundo do trabalho através do cinema
fantasia, o médico vê-se envolvido com prostitutas e festas privadas (o baile or-
giástico), correndo risco de vida. Bill desce às profundezas da miséria humana e
perversidade burguesa. Mas por mera contigencia, ele escapa por pouco (como
diz sugestivamente a manchete do jornal em letras grandes – “Lucky to be alive”
– sorte por estar vivo).
As imagens dos filmes de Stanley Kubrick são imagens densas de significados
que ocultam o sentido da sua narrativa filmica. Num certo momento, ao peram-
bular a noite, Bill percebe que está sendo seguido. Apressa o passo procurando fu-
gir daquele que o persegue. Num momento, a cena mostra o perseguidor atraves-
sando a rua, olhando fixamente Bill Harford. No fundo, o letreiro luminoso de um
restaurante: Verona Restaurant diz-nos algo. Verona é um dos locais onde se passa
a história da peça “Romeu e Julieta”, escrita por William Shakespeare. No centro
da cidade existe uma vila onde, pelo que conta a história, Julieta morava. Este é
um grande marco da cidade, que recebe a fama de cidade dos namorados, atrain-
do centenas de turistas. A trama narrativa do filme “De olhos bem fechados” é a
contraposição dos ideais de amor romântico que funda a modernidade burguesa.
A filha de Bill e Alice Harford, Helena é uma criança imersa no mundo das
mercadorias. Como núcleo reprodutivo do sistema do capital, a família pequeno-
-burguesa submerge a filha no mundo das mercadorias com seus valores factuais
fetichizados. A imagem da pequena Helena mostrando a boneca Barbie expõe,
por um lado, a trama perversa do envolvimento da filha, pequena mulher com as
representações alienados do desejo e papeis sociais subalternizados à ordem do
macho burguês. Por outro lado, mostra a continuidade da ordem sociometabolica
do capital para além de possiveis transtornos pessoais que possam ocorrer.
169
CAPÍTULO 5
A greve
Serguei Eisenstein
(1925)
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Trabalho e Cinema • Volume 4
salientar que Eisenstein começou sua atividade artística no teatro, indo depois
para o cinema. Disse ele que o filme “A greve”, obra cinematográfica que o torna-
ria famoso como cineasta na Rússia daquela época, “patinhava nos restos de uma
rançosa teatralidade que se tornava estranha a ele”. Deste modo, quase 10 anos
depois, Eisenstein, no auge da carreira, elaborou uma autocrítica sobre seus pri-
meiros filmes (“A greve”, “Outubro”, “Encouraçado Potemkim” e “Linha Geral”). E
prossegue dizendo neste artigo:
“Ao mesmo tempo, a ruptura com o teatro, a princípio, foi tão forte que em
minha ‘revolta contra o teatro’, afastei-me de um elemento muito vital do teatro –
o argumento. Na época isto pareceu natural. Levamos a ação coletiva e de massa
para a tela, em contraste com o individualismo e o drama do ‘tringulo’ do cinema
burguês. Eliminando a concepção individualista do herói burguês, nossos filmes
daqueles períodos fizeram um desvio abrupto – insistindo em uma compreensão
da massa como herói.” [o grifo é nosso]
E observa:
“Nenhum cinema refletira antes uma imagem da ação coletiva. Agora a con-
cepção de ‘coletividade’ deveria ser retratada. Mas nosso entusiasmo produziu
uma representação unilateral da massa e do coletivo; unilateral porque coletivis-
mo significa o desenvolvimento máximo do indivíduo dentro do coletivo, uma con-
cepção irremediavelmente oposta ao individualismo burguês. Nossos primeiros
filmes de massa omitiram este significado mais profundo.” [o grifo é nosso]
Portanto, Eisenstein reconhece que nos primeiros filmes de sua quadrilogia
revolucionária, ele eliminara da narrativa fílmica, a individualidade, quase redu-
zindo-a à representação unilateral da massa e do coletivo. Deste modo, perdera
aquele tertium datur importantissimo entre indivíduo e massa, ou seja, entre in-
dividualidade pessoal e classe social. Como ele salientou: “...coletivismo significa
o desenvolvimento máximo do indivíduo dentro do coletivo”. Esta seria a meta
crucial do cinema coletivista de Eisenstein. Para ele, coletivismo não é a redu-
ção do indivíduo à massa ou coletivo, mas sim a expressão do desenvolvimento
da individualidade pessoal no interior do coletivo. Talvez nos filmes seguintes à
quadrilogia revolucionária – “Alexandre Nevski” (1938) e “Ivan, o Terrível” (1944-
1945) - Eisenstein tenha conseguido expressar, por meio das personalidades his-
tóricas grandiosas de Alexandre Nevski e Ivan da Rússia, o desenvolvimento de
individualidades pessoais no interior do coletivo historicamente determinado da
classe social (ou a “individualidade dentro do coletivo”, como ele mesmo diz). As-
172
O mundo do trabalho através do cinema
sim, não temos mais como herói, a massa e o coletivo, mas sim, individualidades
históricas densamente construídas no interior da processualidade histórica.
Entretanto, no artigo “Do teatro ao cinema”, de 1934, Eisenstein pondera sua
autocritica salientando que o “desvio abrupto” que ele cometera na “infância” de
sua carreira cinematográfica “foi não apenas natural, mas necessário”. E conclui:
“Era importante que o cinema fosse primeiro penetrado pela imagem geral, o co-
letivo unido e impulsionado por uma única vontade. ‘A individualidade dentro do
coletivo’, o significado mais profundo, exigido do cinema hoje, dificilmente teria
aceitação se o caminho não tivesse sido aberto pelo conceito geral.”
O filme “A greve” foi concebido para ser o primeiro de uma série de filmes a
ser realizado no Proletkult1. Diz o letreiro de apresentação: “Um ciclo de filmes
sobre o movimento dos operários na Rússia”. O subtítulo do filme era “Em direção
à Ditadura”. O tema axial do filme “A greve”, de Serguei Eisenstein, é trabalho,
classe e consciência de classe. Na medida em que se organiza e luta, a massa de
operários - a massa do povo, como diria Lenin - se constitui como classe social do
proletariado, sujeito histórico coletivo posto como coletivo-em-movimento, que
põe reivindicações salariais para o patronato capitalista, explorador e opressor.
Ao reconhecer a sua força material na organização e luta, o proletariado industrial
elabora suas reivindicações salariais. Operários e operárias percebem seu poder
social e se insurgem contra a exploração e opressão. Por isso, a frase de abertura
do filme de V.I. Lênin (1907): “A força da classe operária reside na organização.
Sem a organização das massas, o proletariado é nada. Uma vez organizado – ele é
tudo. A organização quer dizer a unidade das ações, a unidade da atividade práti-
ca”. O filme “A greve” divide-se em seis partes que retratam os passos de ascensão
e queda do coletivo-em-movimento, isto é, a efetivação e desefetivação da classe
social do proletariado em sua forma “em-si”. Eis as partes do filme:
Primeira Parte: Na Fábrica, Tudo Está Tranqüilo.
Seguna Parte: O Motivo da Greve
Terceira Parte: A Fábrica Parou
Quarta Parte: A Greve Prolonga-se
Quinta Parte: A Provocação para o Desastre
Sexta Parte: A Liquidação
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Como salientamos acima, o filme “A greve” foi planejado para provocar o má-
ximo de impacto social e emocional possivel no público. Para Eisenstein, a arte
– e o cinema para Eisenstein era a arte das artes – tinha uma função radicalmente
ideológica. Era um instrumento fundamental (e fundante) do devir humano dos
homens, cuja função mediadora era promover a humanização radical dos ho-
mens. Utilizando a linguagem de Vygostki poderiamos dizer que, para Eisenstein,
o cinema, como toda a arte, era elemento mediador da atividade humana, isto é,
meio criado pelo homem no decorrer do processo de humanização que se carac-
teriza por representar, em si, algo diferente de si mesmo. Deste modo, a arte opera
como um signo cuja função é regular as ações sobre o psiquismo das pessoas.
Deste modo, o cinema como arte, é um instrumento psicológico que tem a função
de auxiliar o homem nas suas atividades psíquicas, portanto, internas ao indivíduo.
Diz Vygostki: a “invenção e o uso de signos auxiliares para solucionar um dado
problema psicológico (lembrar, com parar coisas, relatar, escolher, etc.) são análo-
gos à invenção e uso de instrumentos, só que agora no campo psicológico. O signo
age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel
de um instrumento no trabalho”.
Portanto, a preocupação de Eisenstein com a gramática da montagem origi-
nou-se da compreensão de que, é por meio da montagem, que a arte como signo,
cumpriria efetivamente a sua função de regular as ações sobre o psiquismo das pes-
soas. O cinema, como a arte das artes, era a representação plena do signo na acep-
ção de Vygostski. Para o educador soviético, com o auxílio dos signos, o homem
pode controlar voluntariamente sua atividade psicológica e ampliar sua capaci-
dade de atenção, memória e acúmulo de informações, como, por exemplo, pode
se utilizar de um sorteio para tomar uma decisão, amarrar um barbante no dedo
para não esquecer um encontro, anotar um comportamento na agenda, escrever
um diário para não esquecer detalhes vividos, consultar um atlas para localizar
um país etc. Mas o cinema como arte era um signo superior a quaisquer outros
signos criado pelo homem.
Como construtivista, Eisenstein defendia uma arte funcional, que deve aten-
der às necessidades do povo, pois para ele, era justamente na atividade de “cons-
truir” que estava a característica básica do trabalho artístico. Eisenstein era, por-
tanto, crítico da arte pura ou arte pela arte. Era também contrário a idéia de que a
arte deve imitar a vida; ou que ela deve ser “réplica fiel da realidade”. A realidade
para o cineasta deveria ser “matéria útil” nas mãos do diretor. Os objetos da re-
alidade podiam ser recompostos de acordo com os desejos formais do diretor. Na
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verdade, os objetos construtivistas não são orgânicos, mas sim feitos de fragmen-
tos justapostos, pedaços do mundo que compõem um novo objeto. Esta é a idéia
eisensteiniana do artista-engenheiro.
Portanto, o cineasta soviético colocará o cinema como a arte-signo por exce-
lência, arte técnica que não deve visar “reproduzir” a realidade com uma enorme
fidelidade, mas sim, exercer efetivamente a sua prerrogativa estética de regular –
no sentido ideológico – as ações do psiquismo das pessoas.
Lukács, em sua “Estética”, irá caracterizar o reflexo estético, em contraste com
o reflexo científico, como sendo eminentemente antropomorfizador. Embora a
realidade seja sempre a mesma, enquanto o cientista tem o propósito de reprodu-
zir a realidade “em si”, o artista figura essa mesma realidade, mas se orienta ide-
ologicamente em relação ao mundo plasmado pelos homens. No caso do reflexo
científico, o cientista busca a realidade em sua máxima desantropomorfização; no
caso da arte, o artista reflete a realidade antropomorfizada, isto é, plasmada pela
ideologia que visa regular as ações humanas. Por esta razão, para Lukács a arte é a
autoconsciência da humanidade. Arte e ciência são, deste modo, formas distintas
de recepção e reprodução da realidade.
A construção do artista-engenheiro para Eisenstein é, acima de tudo, uma
construção ideológica, na medida em que a arte em si e para si, como signo, é
sempre um modo de organizar os objetos da realidade. Só que o artista-enge-
nheiro não alimenta a veleidade da arte como “réplica fiel da realidade”. Pelo con-
trário, Eisenstein defendia uma arte voltada ao futuro, a um novo ser humano, a
emancipação da classe-que-vive-do-trabalho, salientando, deste modo, que, como
signo supremo da Humanidade – ou como disse Lukács, “a autoconsciencia da
humanidade”, deveria atender às necessidades do povo.
Por isso, os conceitos idealizados pelo cineasta russo procuram colocar as pre-
missas de um cinema discursivo e político, oposto ao cinema narrativo burguês. A
gramática da montagem de Eisenstein indica, de modo metódico e teórico, recur-
sos e alternativas para o ilusionismo do cinema norte-americano. Ele procurava
um cinema em que a montagem passasse, de modo deliberativo violento, de uma
atração a outra, ou seja, de um movimento forte e espetacular, relativamente au-
tônomo, a outro, em vez de procurar a fluidez e a continuidade narrativa (como
nos filmes de Hollywood).
Eisenstein sugeriu uma maneira de composição narrativa através da monta-
gem. Seu estilo de montagem, que mais tarde ficou conhecida como montagem
intelectual, rompe completamente com a finalidade ilusionista, a qual propõe o
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Lenin, “poder sustentar a sua família com uma alimentação abundante e sadia,
viver numa boa casa e não se vestir como mendigos, mas como se veste todo mun-
do.” Portanto, de acordo com o revolucionário russo, há uma luta antagônica de
interesses entre patrões e operários, uma constante luta pelo salário baseado em
direitos iguais (como observou Marx, onde se disputa direitos iguais, o que decide
é a força). Por um lado, o patrão tem liberdade de contratar o operário que qui-
ser, pelo que procura o mais barato. Por outro lado, o operário tem liberdade de
alugar-se ao patrão que quiser, e procura o mais caro, o que paga mais. Diz Lenin
“Trabalhe o operário na cidade ou no campo, alugue seus braços a um latifundi-
ário, a um fazendeiro rico, a um contratista ou a um industrial, sempre regateia
com o patrão, lutando contra ele pelo salário”.
Deste modo, a greve é a luta constante e necessária do operário pelo salário. É
uma luta que se coloca no interior da lógica do sistema produtor de mercadorias,
onde o operário é força de trabalho como mercadoria que busca melhor preço
para sua força de trabalho. Mas o operário não é apenas força de trabalho como
mercadoria. Ele é trabalho vivo que diz não à exploração e espoliação do capita-
lista, homem e mulher que resiste e luta contra a exploração e tem a liberdade de
procurar o que paga mais e luta para ter melhores salários.
A questão que se coloca é se o operário pode, por si só, sustentar a luta por sa-
lário. Coloca-se, deste modo, a necessidade da luta coletiva e organizada da greve
operária, que se torna tão necessária quanto à própia necessidade da luta grevista
no capitalismo. Diz ele categoricamente: “É impossível para o operário lutar sozi-
nho contra o patrão”.
O capital tem o poder social alienado a seu favor na sociedade produtora de
mercadorias. Por isso, se o operário exige melhor salário, ou não aceita o rebaixa-
mento de salário, o patrão responde: vá para outro lugar, são muitos os famintos
que esperam à porta da fábrica e ficarão contentes em trabalhar, mesmo que por
um salário baixo. Na verdade, a necessidade da ação coletiva é uma necessidade
histórico-moral, o que significa que ela pode não ocorrer sob pena de desvalori-
zação irremediavel daquela força de trabalho. Como se trata de ação histórico-
-moral, a greve e a ação coletiva dos operários e operárias, implica as escolhas
das individualidades pessoais de classe. As condições de miséria e ruína do povo
contribuem para que operários e operárias façam escolhas morais espúrias. Lenin
diz: “Quando a ruína do povo chega a tal ponto que nas cidades e nas aldeias
há sempre massas de desempregados, quando os patrões amealham enormes
fortunas e os pequenos proprietários são substituídos pelos milionários, então o
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coloca o operário ou a classe operária ao nível dos animais (Engels) ou dos escra-
vos (Lenin). Mas deve ser salientado que, colocar-se ao nível dos animais ou dos
escravos, é uma escolha moral dos operários e operárias, que aceitam a perda de si
mesmo, e recusam-se a lutar contra o capital ou suas condições de vida alienadas.
Em seu artigo de 1898, Lenin faz um resgate do sentido humanizador das gre-
ves operárias, capaz de dar auto-estima aos operários, fazê-los ver o poder social
que tem e que foi alienado pelos capitalistas. Diz ele: “Os escravos [os operários
– GA] começam a apresentar a reivindicação de se transformar em donos: traba-
lhar, e viver não como queiram os latifundiários e capitalistas, mas como queiram
os próprios trabalhadores. As greves infundem sempre tal espanto aos capitalistas
porque começam a fazer vacilar seu domínio. ‘Todas as rodas detêm-se, se assim
o quer teu braço vigoroso’, diz sobre a classe operária uma canção dos operários
alemães”.
Deste modo, as greves têm uma função pedagógica no sentido de dar-lhes
consciência, por um momento, do poder social da classe trabalhadora, a classe-
que-vive-do-trabalho que move a engrenagem do mundo social do capital. Diz
Lenin: “Toda esta engrenagem é movida pelo operário, que cultiva a terra, extrai
o mineral, elabora as mercadorias nas fábricas, constrói casas, oficinas e ferro-
vias. Quando os operários se negam a trabalhar, todo esse mecanismo ameaça
paralisar-se”.
A pedagogia da greve possui uma função mnemônica – como Eisenstein de-
monstra no filme “A greve” (noutro sentido, é claro). Enfim, “Lembrai-vos!”.
Primeiro, a greve contribui, segundo Lenin, para lembrar aos capitalistas que
os verdadeiros donos não são eles, e sim os operários, que proclamam seus direi-
tos com força crescente.
Segundo, a greve faz lembrar aos operários que sua situação não é desespe-
rada e que não estão sós (Lenin observa a enorme influência que a greve exerce,
tanto sobre os grevistas, como sobre os operários das fábricas vizinhas ou próxi-
mas, ou das fábricas do mesmo ramo industrial). Mais adiante ele observaria o
valor moral das greves, capaz de disseminar o espírito de solidariedade humana:
“Amiúde, basta que se declare em greve uma fábrica para que imediatamente
comece uma série de greves em muitas outras fábricas. Como é grande a influên-
cia moral das greves, como é contagiante a influência que exerce nos operários ver
seus companheiros, que, embora temporariamente, se transformam de escravos
em pessoas com os mesmos direitos dos ricos!”.
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entre eles, cada vez mais, os círculos e as associações e seja maior o número dos
operários que se tornam socialistas”.
O revolucionário russo aproveita o fato social da greve como nessidade irre-
mediavel da afirmação da pessoa humana nas condições da sociedade capitalis-
ta, para extrair dele a idéia de socialismo. Trata-se da passagem da consciência
sindicalista ou consciência de classe contingente, para a consciência política ou
consciência de classe necessaria, que exige que os operários pensem não apenas
em seu patrão e em seus companheiros próximos, mas sim, “em todos os patrões,
em toda a classe capitalista e em toda a classe operária”.
A consciência de classe necessaria exige a percepção e entendimento da tota-
lidade social da sociedade capitalista dividida em classes sociais estruturalmente
antagonicas. Enfim, a percepçao do anatgonsimo entre capital e trabalho como
o antagonismo essencial da sociedade capitalista. É importante deste modo que,
cada operário possa ver, como diz Lenin, “com clareza que toda a classe capitalista
é inimiga de toda a classe operária e que os operários só podem confiar em si
mesmos e em sua união”.
No plano imediato, alguns patrões, segundo ele, podem enganar os operários,
apresentando-se “como um benfeitor que encobre a exploração de seus operários
com uma dádiva insignificante qualquer, com qualquer promessa falaz”. Mas Le-
nin observa: “Cada greve sempre destrói de imediato este engano, mostrando aos
operários que seu ‘benfeitor’ é um lobo com pele de cordeiro”. O que significa que,
as greves tem uma função heurística, desvelando o engano ou mistificação da clas-
se burguesa que encobre a exploração e sua falácias de classe dominante. Para ele,
a greve abre os olhos dos operários não só quanto aos capitalistas, mas também
no que se refere ao governo e às leis. Eis o sentido de conscientização política dos
operários. Diz Lenin: “Do mesmo modo que os patrões se esforçam para aparecer
como benfeitores dos operários, os funcionários e seus lacaios se esforçam para
convencer os operários de que o tzar e o governo tzarista se preocupam com os
patrões e os operários na mesma medida, com espírito de justiça”.
A greve como função heurística, ou função de esclarecimento social, desvela
as mistificações dos capitalistas e do Estado burgues, com suas leis que faz com
que os operários dêem créditos a eles. A greve (e os movimentos sociais) desmis-
tifica o caráter das leis na qual se baseia o Estado capitalista:
“O operário não conhece as leis e não convive com os funcionários, em par-
ticular os altos funcionários, razão pela qual dá, freqüentemente, crédito a tudo
isso. Eclode, porém, uma greve, apresentam-se na fábrica o fiscal, o inspetor fa
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bril, a polícia e, não raro, tropas, e então os operários percebem que infringiram
a lei: a lei permite aos donos de fábricas reunir-se e tratar abertamente sobre a
maneira de reduzir o salário dos operários, ao passo que os operários são tachados
de delinqüentes ao se colocarem todos de acordo! Despejam os operários de suas
casas, a polícia fecha os armazéns em que os operários poderiam adquirir co-
mestíveis a crédito e pretende-se instigar os soldados contra os operários, mesmo
quando estes mantêm uma atitude serena e pacífica. Dá-se inclusive aos soldados
ordem de abrir fogo contra os operários, e quando matam trabalhadores indefe
sos, atirando-lhes pelas costas, o próprio tzar manifesta a sua gratidão às tropas
(assim fez com os soldados que mataram grevistas em Iaroslavl, em 1895).”
E prossegue fazendo referência ao regime autocrático do czarismo, forma de
Estado burgues que aparece como “comitê executivo da classe dominante” (Marx-
-Engels):
“Torna-se claro para todo operário que o governo tzarista é um inimigo jura-
do, que defende os capitalistas e ata de pés e mãos os operários. O operário começa
a entender que as leis são ditadas em benefício exclusivo dos ricos, que também
os funcionários defendem os interesses dos ricos, que se tapa a boca do povo tra
balhador e não se permite que ele exprima suas necessidades e que a classe operá-
ria deve necessariamente arrancar o direito de greve, o direito de participar numa
assembléia popular representativa encarregada de promulgar as leis e de velar por
seu cumprimento.” [o grifo é nosso].
“Tornar claro...” ou “...começa a entender” expressam a função pedagogica
das greves. É por meio dela – atividade prático-sensível – que os operários são
educados sobre a natureza de classe do Estado político do capital. A formação da
consciência de classe faz-se, deste modo, na perspectiva materialista, por meio
da experiência de luta de classe, adquirindo um caráter de desilusionismo com as
representações fetichizadas da ordem burguesa (a Lei e o Estado político).
Lenin observa que, por sua vez, o governo compreende muito bem que “as
greves abrem os olhos dos operários, razão por que tanto as teme e se esforça a
todo custo para sufocá-las quanto antes possível”. Segundo ele, portanto, o go-
verno visa sufocar as greves, não apenas por mero dever de preservar a ordem
pública ou os interesses dos capitalistas individuais. O governo teme que as greves
“abram os olhos dos operários”. Lenin se utiliza de um exemplo do ministro do
Interior alemão – ele não diz o nome - que ficou famoso por suas ferozes persegui
ções contra os socialistas e os operários conscientes. Tal ministro alemão, decla
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rou uma ocasião, não sem motivo, perante os representantes do povo: “Por trás de
cada greve aflora a hidra da revolução”.
Portanto, o sentido pedagógico-político das greves é muito claro para Lenin.
Para ele, durante cada greve cresce e desenvolve-se nos operários “a consciência
de que o governo é seu inimigo” e de que a classe operária deve preparar-se para
“lutar contra ele pelos direitos do povo”. A luta operária se coloca no plano da
luta pelo “direito do povo” a uma vida e trabalho digna. A consciência de classe
necessária desenvolve-se a partir da luta sindical que torna claro quais os inimigos
de classe dos operários (o governo autocrático-burguês como representante da
classe dos capitalistas). A greve torna-se, como dizem os socialistas, uma “escola
de guerra” (guerra de classes), ensinando os operários a unirem-se e que, como
observa ele, “somente unidos podem agüentar a luta contra os capitalistas”; ou
ainda, “as greves ensinam os operários a pensarem na luta de toda a classe operá-
ria contra toda a classe patronal e contra o governo autocrático e policial”.
Entretanto, a posição dos marxistas, expressa por Lenin, não é superestimar
o valor das greves operárias; ou mesmo da greve geral dos trabalhadores assa-
lariados contra o poder do capital. Depois de salientar a importância da união
dos operários em sua luta contra os capitalistas, Lenin critica a posição política
daqueles que pensam que a classe operária pode limitar-se às greves e às caixas
ou sociedades de resistência; que apenas com as greves, a classe operária pode
conseguir uma grande melhora em sua situação e até sua própria emancipação.
Como marxista, Lenin conhece os limites das greves. Diz o revolucionário russo:
“As greves são um dos meios de luta da classe operária por sua emancipação, mas
não o único, e se os operários não prestam atenção a outros meios de luta, atrasam
o desenvolvimento e os êxitos da classe operária” [o grifo é nosso]. Pode-se dizer
que, o final do filme “A greve”, possui um caráter marxista-leninista.
Primeiro, Lenin trata dos limites das greves operárias no capitalismo de for-
ma concreta, utilizando o exemplo da luta de classes na Rússia autocrática em
1898. Ele pondera: “Para que as greves tenham êxito são necessárias as caixas de
resistência, a fim de manter os operários enquanto dure o conflito. Os operários
(comumente os de cada indústria, cada ofício ou cada oficina) organizam essas
caixas em todos os países, mas na Rússia isso é extremamente difícil, porque a
polícia as persegue, apodera-se do dinheiro e prende os operários”. Entretanto,
o regime autocrático-burguês na Rússia czarista age de forma truculenta com as
caixas de resistência, impedindo a sua eficácia, limitando – na prática - portanto o
direito dos trabalhadores assalariados à greve; e Lenin prossegue dizendo:
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A Primeira Parte do filme “A greve” intitulou-se “Na Fábrica tudo está tran-
quilo”. Antes de ser um intertítulo da primeira parte do filme, trata-se de uma
observação que se dá no plano da imediaticidade fenomênica da coisa. Num pri-
meiro momento, nada percebemos de movimento da coisa em si e para si. A cha-
miné da fábrica, a expressão de bonança do diretor e o funcionamento febril dos
escritórios da administração expressam a percepção imediata de que tudo está em
calma na fábrica. Mas aquela percepção é tão-somente a pseudo-concreticidade
da vida cotidiana. Para o filosófo Karel Kosik, a pseudo-concreticidade da vida
cotidiana é constituída pelo “complexo dos fenômenos que povoa o ambiente co-
tidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, ime-
diatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo
um aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcerticidade”.
Kosik discrimina os elementos compositivos do mundo da pseudoconcreticidade
da vida cotidiana. São eles:
• o mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à superfície dos
processos realmente essenciais;
• o mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da praxis fetichizada dos
homens (a qual não coincide com a praxis crítica revolucionária da hu-
manidade);
• o mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos
externos na consciência dos homens, produto da praxis fetichizada, for-
mas ideológicas de seu movimento;
• o mundo dos objetos fixados, que dão a impressão de ser condições natu-
rais e não são imediatamente reconhecíveis como resultados da atividade
social dos homens.
Deste modo, o filme “A greve”, de Serguei Eisenstein, nos apresenta, num
primeiro momento, o mundo da pseudo-concreticidade da vida cotidiana onde
tudo parece estar tranquilo. Entretanto, como iremos verificar, logo a seguir, exis-
te um movimento oculto de intranquilidade e inquietação operária na fábrica.
Na verdade, a intranquilidade operária é um processo realmente essencial, oculto
pela estrutura da pseudo-concreticidade da vida cotidiana fetichizada. A raiz da
intranquilidade operária origina-se na exploração da força de trabalho que torna
as condiçõs de vida dos operários desumanas e indignas. Foi o que V.I. Lenin
salientou no artigo comentado acima. Como a exploração da força de trabalho
na situação da Rússia czarista assumiu grandes proporções por conta do desen-
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ladrão dói-lhe mais que a obrigação de ter que pagar os 25 rublos, sacrificando
deste modo, 3 semanas de trabalho. Desesperadao, o operário comete suicídio na
própria fábrica.
O suicídio do operário foi um ato biopolítico que se tornou estopim para a
rebeldia operária que conduziu à greve na fábrica. Em si, o suicídio do operário no
local de trabalho, expressou a alienação em sua dimensão radical: a morte. O tra-
balhador assalariado é desefetivado a ponto de morrer; mas não apenas morrer,
mas sim, cometer suicídio. Ele renunciou à vida diante da violência moral que lhe
foi imposta pela gerencia da fábrica. Yakov Strongen foi humilhado, injustamente
acusado por um ato que não cometeu, sendo, portanto, vítima de “assédio moral”.
O operário suicida deixou o seguinte bilhete para seus companheiros de fábri-
ca: “Camaradas! O chefe acusou-me de roubo. Não sou culpado, mas não posso
prová-lo. Não posso deixar a fábrica com o estigma de ladrão. Por isso, decidi
suicidar-me. Adeus e lembrem-se de que não sou culpado. Iakov Strongen” (o in-
tertítulo em portugues de Portugal diz: “Lembrai para sempre que sou inocente”).
O assédio moral e a humilhação são hoje atos comuns nos locais de trabalho
das grandes empresas capitalistas submetidas à concorrência mundial. É intrínse-
co às novas formas de gestão capitalista sob o espírito do toyotismo, as práticas de
pressão pessoal para cumprimentos de metas e resultados, que levam, no limite,
à humilhação de empregados e operários. É claro que nem toda violência moral
leva ao suicídio, como ocorreu com Yakov Strudine. Embora possamos dizer que,
nos últimos dez anos, o número de suicídios evidentemente relacionados ao tra-
balho cresceu enormemente, tendo em vista a nova lógica de produção capitalista
baseada na superexploração do trabalho. Entretanto, oculta-se o fato social da
sociedade. Na verdade, o assédio moral e a humilhação são modos de precari-
zação do homem-que-trabalha, corroendo a auto-estima de homens e mulheres
trabalhadoras e no limite, anulando sua dimensão humano-genérica. No caso, de
Yakov Strudine, a violência moral cometida numa sociedade de laços comunitá-
rios, onde o valor da honra pessoal é incomensurável, significou a própria morte
do homem-que-trabalha. O estigma de ladrão tornou-se um fardo imenso para
Yakov Strongen, levando-lhe a renunciar a própria vida.
A humilhação é um sentimento de ser ofendido/a, menosprezado/a,
rebaixado/a, inferiorizado/a, submetido/a, vexado/a, constrangido/a e ultrajado/a
pelo outro/a. É sentir-se um ninguém, sem valor, inútil. Magoado/a, revoltado/a,
perturbado/a, mortificado/a, traído/a, envergonhado/a, indignado/a e com raiva.
A humilhação causa dor, tristeza e sofrimento.
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Assédio moral pode ser definido como sendo a exposição dos trabalhadores e
trabalhadoras a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas
durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções, sendo mais comuns
em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, em que predominam condu-
tas negativas, relações desumanas e aéticas de longa duração, de um ou mais chefes
dirigida a um ou mais subordinado(s), desestabilizando a relação da vítima com o
ambiente de trabalho e a organização, forçando-o a desistir do emprego.
Mas Yakov Strongen escolheu tirar a própria vida no local de trabalho. Por isso,
seu suicídio tornou-se um ato biopolítico, pois expressou, em sua insanidade, a ra-
zão contestatória do homem explorado e oprimido pelo capital. O local de trabalho
não é um local qualquer, mas sim é o local supremo da exploração, onde se extrai
a mais-valia que alimenta a acumulação de capital. Ao cometer suicídio no local de
trabalho, Yakov Strongen cometeu uma blasfêmia contra a ordem burguesa, que
oculta às misérias da exploração e espoliação que lhe são inerentes. Por isso, o sui-
cídio no local de trabalho tornou-se o ato deflagrador da greve operária anunciada.
É interessante salientar a frase final contida no bilhete deixado pelo operá-
rio que repete a derradeira exortação do filme: “Lembrai para sempre” (de acor-
do com o intertítulo em português de Portugal). No final do filme, como iremos
analisar mais adiante, após a cena do massacre de operários e operárias em gre-
ve pelas forças policiais do Czar, sangrados como o boi no matadouro, o último
intertítulo do filme exorta os operários, a lembrar-se das cicatrizes sangrentas e
incuráveis no corpo do proletariado.
Indignados com o suicídio do camarada Yakov Strongen no local de trabalho,
os operários exclamam: “Basta de trabalhar!”. E exigem que o Chefe se apresente
para esclarecer a situação. Na verdade, a cena do suicídio do operário na fábrica
é a cena de inflexão da trama filmica. É o momento contingente – o “acidente” –
que provoca um salto qualitativamente novo no desenrolar da narrativa filmica.
Os operários indignados agitam-se pela oficina de montagem. Fazem assembléias
repentinas para decidir pela greve operária. Chegou o momento da paralisação
da fábrica capitalista que começa pelo chão-de-fábrica. Diz o intertítulo em por-
tuguês de Portugal: “A velha oficina de fundição obstinou-se”. Os operários excla-
mam: “Rapazes, vamos destituí-los!”. Depois dizem: “Ao escritório, camaradas!”. E
ainda: “Não abram as portas. Não deixem ninguém entrar, nem sair.” A massa de
operários agita-se no interior da fábrica.
O assalto ao escritório é o assalto ao local do controle operário. Ao invés do
chão-de-fábrica, o escritório é o local onde se administra a exploração e espo-
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a desatenção da mãe e dirige-se para baixo dos cavalos dos policiais, correndo
perigo de ser esmagada pelas patas dos animais. A mãe operária se desespera e
vai pegar o filho. O policial a chicoteia. Ela grita por ajuda: “Camaradas, socorro!”.
Ocorre tumulto entre os operários. Mais uma vez, um fenômeno contingente –
um “acidente” - altera o rumo dos acontecimentos na narrativa fimica. Enquanto
a criança chora num canto da cena, após ser recolhida pela mãe, observamos, ao
fundo, operários e soldados se digladiando.
Depois, os policiais a cavalo perseguem a pequena multidão de operários e
operárias desesperados. Eles se dirigem para uma fábrica. Um operário clama:
“Para a forja, camaradas! Aos martelos de forja!”. A multidão de operários fo-
gem dos policiais a cavalo. Os policiais agridem operários e operárias, mulheres e
crianças com seus chicotes. Diz o intertítulo: “Entraram nas casas”. A multidão se
dirige para suas casas no distrito industrial.
Assistimos uma escalada de brutalidade e crueldade policial nunca mostrada
pelo cinema mundial. Apesar de estarem em suas casas, os policiais a cavalo per-
seguem a multidão de operários e operárias, invadindo o complexo de apartamen-
tos (num detalhe, Eisenstein mostra, no meio de tumulto, crianças brincando).
Diz o intertítulo sobre os policiais: “Comportam-se como animais selvagens enfu-
recidos”. Eles atacam cruelmente homens, mulheres e crianças. Eis a desmedida
da violência capitalista. A cena do policial agarrando uma criança pequena no alto
do prédio de apartamentos, e depois deixando-a cair é a marca da bestialidade da
autocracia burguesa. Estamos diante do massacre de famílias operárias pelas for-
ças policiais do regime autocrático do Czar a serviço dos capitalistas. Ao mesmo
tempo, como contraste, agentes policiais riem da situação cruel. É a expressão
suprema da perversidade que permeia o filme “A greve” de S. Eisenstein. Mas
não são animais selvagens enfurecidos, embora possamos caracteriza-los assim.
Trata-se de caricaturas de bestas humanas, homens insensíveis barbarizados pela
sociometabolismo do capital.
Temos um corte de cena para o operário preso que exclama para seus algozes:
“Não poderão prender todos. Nossos rapazes resistirão”. O oficial de polícia diz: “
Os rapazes?”. E mostra para ele no mapa o distrito industrial onde se concentra a
repressão policial: “Seu pequeno distrito já está...” E diz: “Mas voce, rapaz, poderia
juntar-se a nós.... Poderiamos ajuda-lo...que me diz?”. Mas o operário se recusa a
colaborar e agride o chefe de polícia. É levado de volta a cela.
A cena final do filme “A greve” de Serguei Eisenstein intitula-se “A matança”;
esta é a cena de desfecho dramático do filme. A tropa de policiais a cavalo perse-
214
O mundo do trabalho através do cinema
gue a multidão de operários e operárias que, buscando fugir, se dirige para uma
planicie descampada. A multidão de operários e operárias, homens e mulheres,
é massacrada como boi no matadouro. Esta cena é clássica, pois, mais uma vez,
Eisenstein utiliza-se de sua metafora visual. A cena da tropa de choque da polícia
czarista a cavalo massacrando a multidão é justaposta com a cena de abate de um
boi no matadouro. É uma cena de alto conteúdo emocional que visa provocar a
experiência catártica. Os intertitulos dizem: “A matança”. E a seguir: “A derrota”.
Finalmente os letreiros derradeiros do filme, após a cena catártica, salientam
o valor da memória coletiva para o proletariado em seu processo de formação
de classe social. Diz o intertítulo: “E como cicatrizes sangrentas inolvidáveis do
proletariado, jazem as feridas de Lena, Talka, Zlastoust, Yaro, Slavl, Tsaritsin e
Kosteroma.” E temos o intertítulo final como verdadeira exclamação: “Lembrai-
-vos!” (ou ainda: “Lembrem-se disso! Proletários!”).
215
CAPÍTULO 6
O homem que
virou suco
João Batista de Andrade
(1981)
O filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade, de 1981, pos-
sui como tema central, as formas da precarização do trabalho nas condições
do capitalismo brasileiro. Num primeiro momento, expõe, de modo realista, o
cotidiano de miséria da classe operária pobre da metrópole paulistana, exposta
à precariedade salarial extrema no auge do “milagre brasileiro” (1968-1979). É
um filme que trata das várias nuances da superexploração da força de trabalho
que caracteriza historicamente o capitalismo brasileiro. Ao mesmo tempo, expõe
a opressão e exploração capitalista que desefetiva o ser genérico do homem, isto
é, enlouquece o homem-que-trabalha. Deste modo, o filme “O homem que virou
suco”, vincula superexploração da força de trabalho como característica ontoge-
nética do capitalismo hipertardio brasileiro; e adoecimento do trabalhador assa-
lariado (o homem que virou suco), como um modo de desefetivação humano-
-genérica (ou loucura do homem-que-trabalha).
O filme nos permite refletir sobre um tema crucial para compreendermos a
persistência das desigualdades sociais no Brasil: o modo de objetivação histórica
do capitalismo no Brasil, capitalismo hipertardio, dependente, de formação colo-
nial-escravista. Os traços ontogenéticos do capitalismo brasileiro estão presentes
no filme através da exposição da desigualdade social historicamente crônica, ba-
seada na síndrome da superexploração estrutural da força de trabalho, caracteriza-
da pelo trabalho intenso, longas jornadas de trabalho, arrocho salarial, autocracia
oligárquico-burguesa e manipulação ideológica exacerbada.
A narrativa do filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade,
num primeiro momento, nos apresenta a via crucis de Deraldo (interpretado por
José Dumont)., homem nordestino, poeta popular e trabalhador de rua. Ao fugir
da policia, acusado injustamente de ter matado o patrão na solenidade de entrega
do Premio Operário-Padrão, Deraldo trabalha em várias ocupações salariais pre-
cárias. Dos serviços domésticos à indústria da construção civil, o poeta popular
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Trabalho e Cinema • Volume 4
218
O mundo do trabalho através do cinema
modo, discriminado, não apenas pela policia que o persegue, mas também pelos
próprios companheiros de bairro que não reconhecem o trabalho de artista do poeta
Deraldo como sendo efetivamente trabalho digno.
O filme “O homem que virou suco” expõe, num primeiro momento, a luta
cotidiana de Deraldo contra a opressão, preconceito e discriminação de classe
que caracterizou historicamente a ordem burguesa no Brasil. Na verdade, o estig-
ma da precariedade salarial extrema que persegue os proletários pobres, oculta
a superexploração estrutural da força de trabalho que caracteriza o capitalismo
histórico no Brasil. Existe um vínculo ontogenético entre opressão, preconceito e
discriminação contra os trabalhadores proletários pobres oriundos das regiões
mais atrasadas do País, principalmente a região nordeste, expulsos do campo pelo
latifúndio; e a superexploração da força de trabalho, padrão histórico de consumo
do trabalho vivo que caracteriza o capitalismo dependente.
Em nossa análise do filme “O homem que virou suco”, utilizaremos bastante
o conceito de superexploração da força de trabalho. Para o economista marxista
Ruy Mauro Marini, a superexploração da força de trabalho caracteriza os países
capitalistas dependentes. Para ele, a economia capitalista dependente se contrapõe
à transferência de valor (que ocorre por meio do intercâmbio desigual), por meio
de compensações no plano da produção interna. Na medida em que se vincula ao
mercado mundial, convertendo produção de valores de uso em valores de troca,
a economia dependente se insere no circuito do intercambio desigual entre cen-
tro e periferia. Para Marini, o intercambio desigual que caracteriza as relações
de dependência da economia mundial capitalista, tem o efeito de exacerbar nas
economias periféricas, o afã de lucro e a agudização dos métodos de extração do
trabalho excedente. Deste modo, para Ruy Mauro Marini, a superexploração da
força de trabalho se caracteriza pelo (1) aumento da intensidade do trabalho, com
o aumento da mais-valia obtido através da maior exploração do trabalhador assa-
lariado e não do incremento da sua capacidade produtiva; (2) prolongamento da
jornada de trabalho com o aumento da mais-valia absoluta em sua forma clássi-
ca, aumentando, deste modo, o tempo de trabalho excedente; e a (3) redução do
consumo do operário além do limite normal (como observou Karl Marx em “O
Capital”: “O fundo necessário de consumo do operário se converte, de fato, dentro
de certos limites, num fundo de acumulação de capital”).
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Trabalho e Cinema • Volume 4
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O mundo do trabalho através do cinema
dora aos direitos inscritos na CLT (Consolidação das leis Trabalhistas), que, em
1940, quando foram criados, regulamentaram o trabalho urbano (O Brasil era um
país agrário e o trabalho rural não era coberto pela CLT quando ela foi criada,
deixando, naquela época, a maior parte dos trabalhadores brasileiros imersos na
precariedade salarial extrema).
Portanto, o mundo social do trabalho no Brasil, imerso na condição existencial
de proletariedade dividiu-se historicamente entre a precariedade salarial extrema
e a precariedade salarial regulada. Na primeira, a precariedade salarial extrema,
os trabalhadores assalariados, proletários pobres, não tem acesso aos direitos tra-
balhistas, não sendo, deste modo, sujeito de direitos. Na segunda, a precariedade
salarial regulada, os operários e empregados têm acesso aos direitos trabalhistas
inscritos na CLT, sendo divididos entre trabalhadores assalariados não-organizados,
constituindo a maioria dos formalizados, no sentido de não possuírem representa-
ções sindicais com poder de barganha e negociação coletiva; e trabalhadores assala-
riados organizados, os formalizados capazes de negociação coletiva.
Deste modo, o trabalhador assalariado formal com capacidade de negociação
coletiva, está no topo da pirâmide, isto é, o nível superior da precariedade salarial re-
gulada, representando o patamar mais elevado da cidadania salarial no País. Os tra-
balhadores assalariados formalizados, principalmente os organizados e com poder
de barganha sindical, têm a capacidade de resistir como classe em-si à superexplo-
ração da força de trabalho que caracteriza historicamente o capitalismo brasileiro.
(organizados)
(não-organizados)
Precariedade regulada
Precariedade extrema
(não-organizados)
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Trabalho e Cinema • Volume 4
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O mundo do trabalho através do cinema
Portanto, na análise critica do filme “O homem que virou suco”, torna-se in-
teressante resgatar a discussão dos modos de entificação do capitalismo no Brasil,
tornando claro, por exemplo, o significado de “via colonial” e “via prussiana” de
desenvolvimento do capitalismo no Brasil. No caso do Brasil, a via de objetiva-
ção do capitalismo pode ser caracterizada como via colonial-prussiana de cariz
escravista. É esta categorização histórico-estrutural – capitalismo de via colonial-
-prussiana - que explica a persistência da superexploração da força de trabalho,
ou melhor, a síndrome histórica da superexploração da força de trabalho no Brasil,
baseada na desigualdade social, discriminação étnico-racial e autoritarismo nas
relações sociais da formação capitalista brasileira.
O filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade, ao expor o
drama do êxodo rural para a cidade grande (um elemento da questão democrática
não-resolvida), a superexploração da força de trabalho como traço estrutural do
capitalismo dependente (um traço da irresolução da questão nacional) e a discri-
minação étnico-racial e autoritarismo nas relações sociais no Brasil (um resultado
da herança escravista), condensou, em sua narrativa fílmica, a problemática da
via colonial-prussiana de cariz escravista que caracteriza a entificação do capitalis-
mo brasileiro. Primeiro, a superexploração da força de trabalho é uma derivação
estrutural da condição dependente do capitalismo histórico no Brasil. Depois, o
preconceito étnico-racial e o autoritarismo nas relações sociais no Brasil é uma
derivação estrutural da formação escravista do capitalismo brasileiro baseado na
grande propriedade (latifúndio).
Podemos assinalar três vias particulares de objetivação do capitalismo:
1. A “via clássica” é aquela em que o desenvolvimento da burguesia culmi-
nou com a supremacia do modo de produção capitalista por meio das revoluções
democrático-burguesas, em torno de propostas políticas, onde o historicamente
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Trabalho e Cinema • Volume 4
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O mundo do trabalho através do cinema
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Trabalho e Cinema • Volume 4
Deste modo, a frágil burguesia alemã, temendo ser encontrada pelo proleta-
riado revolucionário, abandonou covardemente suas tarefas políticas, realizando
só as tarefas econômicas. Portanto, a constituição do Estado alemão se põe através
da conciliação do historicamente novo (a industrialização e o progresso social)
com o historicamente velho (o latifúndio e a autocracia junker), em que o pri-
meiro paga alto tributo ao segundo. Esta forma particular de ser do capitalismo,
no que tange aos movimentos nacionais, desconhece a revolução democrático-
-burguesa. Como observou V. I. Lênin no texto “Sobre o Direito das Nações à
Autodeterminação”: “É típica da segunda época (do capitalismo), a ausência de
movimentos democrático-burgueses de massas, quando o capitalismo desenvol-
vido, aproximando e misturando cada vez mais as nações já plenamente incor-
poradas na circulação comercial, coloca em primeiro plano o antagonismo entre
o capital internacionalmente fundido e o movimento operário internacional” (o
parêntese é nosso).
No texto “A ‘Politização’ da ‘Totalidade’: Oposição e Discurso Econômico” (de
1977), José Chasin observou que, a via alemã ou o caminho prussiano, é “um ca-
minho histórico concreto que produziu certas especificidades que, em contraste,
por exemplo, com os casos francês e norte-americano, muito se aproxima de al-
gumas das que foram geradas no caso brasileiro”. De maneira que, para Chasin, o
caso brasileiro, “sob certos aspectos importantes, é conceitualmente determinável
de forma próxima, ou assemelhável, àquela pela qual fora o caso alemão”, res-
saltando que, “de maneira alguma de forma idêntica”. Assim, salientou Chasin,
“irrecusavelmente, tanto no Brasil, quanto na Alemanha, a grande propriedade
rural é presença decisiva; de igual modo, o ‘reformismo pelo alto’ caracterizou
os processos de modernização de ambos, impondo-se, desde logo, uma solução
conciliadora no plano político imediato, que exclui as rupturas superadoras, nas
quais as classes subordinadas influiriam, fazendo valer seu peso específico, o que
abriria a possibilidade de alterações mais harmônicas entre as distintas partes do
social”.
Também nos dois casos (Alemanha e Brasil), o desenvolvimento das forças
produtivas foi mais lento, e a implantação e progressão da grande indústria, isto é,
o desenvolvimento do ‘verdadeiro capitalismo’ ou modo de produção especifica-
mente capitalista, como distinguia Marx, é retardatária, tardia, sofrendo obstacu-
lizações e refreamentos decorrentes da resistência de forças contrárias e adversas.
Em síntese, num e noutro caso, conclui Chasin, verifica-se que “o novo paga alto
tributo ao velho”.
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O mundo do trabalho através do cinema
Industrialização retardatária
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Trabalho e Cinema • Volume 4
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O mundo do trabalho através do cinema
2 Temos utilizado à exaustão, citações de José Chasin – citado por Maria Angélia B. Rodrigues
no seu texto “Particularidade e objetivação do Capitalismo” – por ele representar o intelectual
brasileiro que desenvolveu de forma brilhante, o conceito de “via colonial (em polêmica, por
exemplo, com outros intelectuais de esquerda, que trataram do tema das particularidades
de objetivação do capitalismo no Brasil, como Carlos Nelson Coutinho e Antonio Carlos
Mazzeo)..
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Trabalho e Cinema • Volume 4
vias não-classicas
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O mundo do trabalho através do cinema
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Trabalho e Cinema • Volume 4
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O mundo do trabalho através do cinema
A multidão dos “homens livres” sem posse compunha um dos três segmen-
tos sociais da sociedade colonial (os outros eram os latifundiários e os escravos).
Como nos diz Robert Schwarz, “nem proprietários, nem proletários, seu acesso à
vida social e a seus bens dependem materialmente do favor, indireto ou direto, de
um grande. O agregado é a sua caricatura. O favor é portanto o mecanismo através
do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também
outra, a dos que tem. [...] Assim, com mil formas e nomes, o favor atravessou e
afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a relação produtiva de
base, esta assegurada pela força”.
Portanto, na medida em que não se resolveu a questão nacional (economia
dependente) e a questão democrática (o acesso a terra), e muito menos a questão
social, que surgiu com o problema da inclusão do negro na ordem competitiva bur-
guesa (o mercado de trabalho), a precariedade salarial extrema, caracterizada pela
flexibilidade estrutural da força de trabalho, tornou-se o fardo historicamente pe-
sado para amplas parcelas do mundo social do trabalho do Brasil, principalmente
para os homens livres negros e pardos afro-descendentes, proletários que sofreram
diretamente o tributo que o novo tem que pagar ao arcaico (o passado escravista).
Num primeiro momento, pode-se explicar a vigência da precariedade salarial
extrema no Brasil, pela oferta abundante de mão-de-obra, que faz cair o valor da
força de trabalho. Entretanto, a explicação demográfica não é, por si só, suficiente.
A oferta historicamente abundante de mão-de-obra no Brasil deve-se, em primei-
ro lugar, à concentração da propriedade fundiária, que obstaculizou o acesso a
terra e expulsou o trabalho vivo para a exploração da força de trabalho nas cidades
(a irresolução da questão democrática, isto é, a falta da Reforma Agrária). Depois,
com a industrialização brasileira, ocorrida na etapa do capitalismo monopolista, a
grande indústria instalou-se com um arcabouço técnico de capital intensivo. Des-
te modo, constituiu-se irremediavelmente no Brasil, uma superpopulação relativa
excedente às próprias necessidades de acumulação de capital.
Esta precariedade salarial cronicamente estrutural caracterizou-se pela alie-
nação dos direitos trabalhistas para amplas parcelas do mundo do trabalho no
Brasil, principalmente trabalhadores pobres do campo ou trabalhadores pobres
oriundos do campo que vivem nas grandes cidades. O mundo da precariedade
salarial cronicamente estrutural é o mundo do trabalho sem proteção social, de-
samparado das conquistas civilizatórias do século XX e que permeia a história
social do Brasil com seu povo pobre “capado e recapado, sangrado e ressangrado”
(como disse Capistrano de Abreu). O mundo da precariedade salarial cronica-
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Trabalho e Cinema • Volume 4
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O mundo do trabalho através do cinema
ção do estranhamento social num patamar superior. Pode-se dizer que existe um
estranhamento dos miseráveis imersos na precariedade salarial cronicamente es-
trutural, que caracterizou o mundo do trabalho no Brasil há séculos; e um estra-
nhamento dos formalizados da nova precariedade salarial, com suas experiências
vividas de precarização do trabalho.
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Trabalho e Cinema • Volume 4
cena de abertura do filme “O homem que virou suco” é uma cena de violência
brutal que rompe, de modo diruptivo, com a solenidade ritualística de entrega do
Premio Operário-símbolo na FIESP.
A violência brutal cometida pelo operário José Severino da Silva contra o ca-
pitalista, na abertura do filme, representa tão-somente o ato sintético da violência
destilada que impregna toda a narrativa fílmica de João Batista de Andrade. Na
verdade, o filme “O homem que virou suco” é um filme de violência do capital
contra o mundo do trabalho em suas múltiplas formas, violência atroz que não se
encontra apenas no começo do filme, mas também no meio e inclusive, no fim do
filme. A violência condensada no gesto cruel de José Severino da Silva, o homem
que virou suco, é a expressão antípoda da violência diluída, violência simbólica
e física das classes dominantes contra as classes subalternas que percorre toda a
narrativa fílmica. Na verdade, o título do filme – “O homem que virou suco” – é
expressão da violência sistêmica que está diluída no modo de produção (e repro-
dução) do capitalismo histórico no Brasil, sociedade burguesa hipertardia de gê-
nese colonial e formação escravista.
A violência diluída – ou violência cotidiana - das classes dominantes contra
os proletários pobres que aparece no decorrer do filme, se expressa, primeiro, no
não-reconhecimento dos proletários pobres como “sujeitos de direito”. O precon-
ceito étnico-racial e a discriminação de classe, que marca a atitude cotidiana das
classes proprietárias (incluindo a “classe média”) contra os pobres - no caso, tra-
balhadores pobres de origem nordestina - são expressões da violência estrutural
do capital contra o trabalho que está na raiz do capitalismo brasileiro. Por isso, os
trabalhadores pobres são obrigados a trabalhar sem carteira assinada e, portanto,
sem acesso aos direitos sociais inscritos na CLT.
No ato cruel do operário-padrão José Severino da Silva, estava contido, em si,
o ressentimento secular das classes subalternas brasileiras contra a opressão e ex-
ploração capitalista. Ao mesmo tempo, existe um contraste dialético na expressão
do movimento da classe (contingente e necessário) exposto no filme: se, por um
lado, o operário José Severino da Silva, ao matar o patrão, deu uma resposta mera-
mente individual, radicalmente contingente e bizarra, àquilo que o capital fez con-
sigo; por outro lado, naquele ano de 1979, a classe operária brasileira organizada
como classe em-si, deu historicamente uma resposta coletiva e necessária contra a
exploração capitalista, nas greves operárias do ABC paulista (naquele ano, de 13
a 27 de março de 199, a classe operária metalúrgica do ABC organizou uma longa
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O mundo do trabalho através do cinema
Severino Deraldo
loucura luta de classe
grotesco trágico
contingente necessário
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Trabalho e Cinema • Volume 4
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O mundo do trabalho através do cinema
o local de moradia do poeta Deraldo, num lugar típico da periferia de São Paulo.
Maria, vizinha de Deraldo, põe roupa no varal; um Boeing passa por cima da
vila operária. Diz o roteiro: “Ali é o terraço de uma construção com quartos para
alugar. Embaixo, o armazém do Ceará, tipo miúdo, subdesenvolvido e que subiu
na vida em São Paulo.”
O barraco de Deraldo fica no terraço improvisado. Diz o roteiro: “um cubí-
culo de 2,5m x 2,5m atopetado de gravuras e instrumentos de trabalho, livros de
cordel com seu nome: Deraldo José da Silva.” Nesta primeira cena, quando Deral-
do sai para o trabalho, logo pela manhã, após empacotar alguns livros de cordel,
ele é provocado por Maria que pergunta se conseguiu emprego. O poeta popular
expressou, de imediato, sua repulsa pelo trabalho estranhado. Diz ele: “Se eu sou-
besse quem inventou o emprego, eu mandava fuzilar...”.
Como poeta popular, trabalhador autônomo, Deraldo se recusou a assumir o
trabalho estranhado, trabalho heterônomo que produz riqueza para o capitalista
e empobrece o trabalhador assalariado. Deste modo, Deraldo se apresenta como
crítico da ordem burguesa que se baseia no trabalho assalariado. O poeta popular
é totalmente avesso à divisão hierárquica do trabalho que caracteriza o trabalho
estranhado do capital. Deraldo, interpretado por José Dumont, é um personagem
rebelde por natureza, artista criativo que cultua a liberdade de expressão estética.
Mas a tragédia de Deraldo é que ele vive no mundo da escassez extrema. Maria re-
truca Deraldo: “Pensa que a vida é só cantar? A vida é dura, é agarrar no batente...”.
Para Dona Mariazinha, quem quer ganhar a vida, é obrigado a ter emprego assa-
lariado. Portanto, nesta primeira cena, temos a contestação da atividade criativa
do artista como trabalho. Primeiro, o poeta Deraldo não é reconhecido como tra-
balhador. Escrever poesia, imprimi-las em livros de cordel e vender no centro de
São Paulo, não é reconhecido como “emprego” (no sentido de trabalho digno). Diz
ele para Maria: “Na sua concepção isso aqui não é emprego, não?”. Ela assevera:
“Isso é diversão, seu Deraldo. Se o senhor fosse cego, vá lá, mas com uns olhinhos
desses tão vivos...Porque não faz igual a meu marido, que pega no batente desde
6 horas da manhã e só volta a noite?”. Deraldo não deixa de fazer sua observação
mordaz e irônica sobre o relacionamento conjugal de Maria: “Tai, descobri...Vocês
vivem tão bem é por isso, não é?”.
Mas Deraldo foi contestado em sua atividade de artista, não apenas por Ma-
ria, mas, também, logo a seguir, pelo dono do bar. O poeta popular entra no Bar
do Ceará que o olha com ar de hostilidade. Deraldo tem uma divida com o Cea-
rá. Diz que vai pagá-la. “Vai pagar com o quê?”, exclama Ceará. Deraldo afirma:
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Trabalho e Cinema • Volume 4
“Poesia”. Indignado, Ceará retruca: “Poesia, seu Deraldo? O custo de vida subindo
todo dia...e o senhor vem me dizer que vai pagar com poesia? O senhor acha que
eu pago a mercadoria aqui com quê?”. Mais uma vez, percebemos a diferença ra-
dical entre a visão de mundo de Deraldo e a visão de mundo de Maria e Ceará.
Deraldo, com sua atitude atrevida, se recusa a aceitar como parâmetro de vida
e sociabilidade, o trabalho alienado, propriedade privada, divisão hierárquica do
trabalho e dinheiro, mediações estranhadas de segunda ordem do capital (como
diria I. Mészáros). Deraldo é uma individualidade pessoal exótica no mundo da
escassez, onde a atividade criativa, viver bem (no sentido humano) e as relações
de confiança, não são mediadas pelos parâmetros estranhados do capital. Maria
vive bem com seu marido, porque ele tem um emprego (“pega no batente desde 6
horas da manhã e só volta à noite”); o dono do bar Ceará só se dispõe a ser amigo
de Deraldo desde que ele pague as dividas. O mundo da escassez é o mundo social
fetichizado onde as coisas se interpõem entre os homens.
O trabalho de Deraldo não é reconhecido como trabalho digno no mundo
da indignidade humana. Ceará exclama para Deraldo: “Vai trabalhar, seu vaga-
bundo! Em vez de ficar pensando o dia todo em poesia”. Pensar o dia todo em
poesia não é trabalho, pois a concepção de trabalho como emprego assalariado é a
concepção de trabalho como atividade estranhada. O trabalho do artista popular
não é reconhecido como trabalho, por isso foi imputado a ele a pecha de vaga-
bundo. A ideologia do trabalho estranhado o desqualifica como homem digno.
Ceará expressa, primeiro, a ideologia do trabalho estranhado; e depois, a ideologia
do empreendedor que ascendeu na vida em São Paulo. Exclama ele para Deraldo:
“Seu Deraldo, vá trabalhar, seu vagabundo! Ta pensando que eu conseguiu isto
tudo com o quê? Foi com o suor do meu ganho. Veja isso aqui, veja tudo isso. Foi
trabalhando e muito, Foi muita fome que passei. Foi muita fome e muito trabalho.
Não foi com poesia, não senhor”.
O personagem Ceará é um homem livre sem posses que acumulou recursos
com sacrifício pessoal e montou seu próprio negócio. É o típico empreendedor
popular cujo sonho da ascensão social pelo empreendedorismo adensou nele, a
ideologia do trabalho. Para ele, o trabalho dignifica o homem. Ceará representa os
anseios dos proletários pobres da ordem burguesa hipertardia. É o empreendedor
que cultua a ideologia do trabalho como tripalium e o sacrifício pessoal como
expiação pelos “pecados” da exclusão social na qual estavam condenados escravos
e homens livres na ordem competitiva burguesa escravista.
240
O mundo do trabalho através do cinema
Mas o dia 6 de setembro de 1979 não era o dia de sorte de Deraldo. Após seu
trabalho não ser reconhecido por Maria e Ceará, nem como emprego, e muito me-
nos como trabalho, o poeta popular é abordado pelo fiscal da Prefeitura no centro
de São Paulo, quando vendia, em cima de uma toalha no chão, seus livrinhos de
cordel intitulados “O homem que trocou duas pernas por um pão”. O fiscal cobra
de Deraldo documentos. Ele diz: “Não, não tenho documentos”; e o fiscal exclama:
“Como não tem documento, rapaz? Então vamos jogar essa porra fora”. Deraldo
tenta convencê-lo a não jogar fora os livros de poesia. O fiscal diz: “Isto aqui é São
Paulo, não é Nordeste. Vamos conversar direito. Isto aqui é São Paulo, não é Nor-
deste. E digo mais...se você vai ficar fazendo baderna, isto não é Nicarágua. Vem
cá, menino, Aqui todo mundo tem documentos” (o fiscal chama um hippie para
mostrar que ele tem documentos).
O hippie, figura de “classe média” rebelde, deslocado no tempo e no espaço
- São Paulo não era EUA e a contracultura tinha-se se esgotado há tempos - era
o artesão “insurgente” contra os costumes burgueses... mas tinha documentos.
O hippie tira sua carteira de documentos (de dobrar) e deixa desdobrar, imensa,
cheia de documentos. O fiscal recolhe os livros de Deraldo, sempre afirmando:
“Isso aqui é São Paulo, entendeu?”. Enfim, sem lenço e sem documentos, como diz
a canção, Deraldo não era reconhecido como cidadão. O Estado burguês só reco-
nhece o sujeito como cidadão desde que ele esteja com documentos que provem
sua idoneidade civil. O “vagabundo” Deraldo não era sequer um sujeito de direitos
pois não possuía documentos, portanto não poderia exercer atividade comercial
nas ruas de S.Paulo.
Tal como discurso de Maria e Ceará, o discurso do fiscal da Prefeitura ex-
pressou a ideologia da ordem burguesa regressiva. A frase “isto aqui é S.Paulo”,
afirmado por ele, continha elementos de discriminação regional que caracteri-
zou historicamente o desenvolvimento do capitalismo hipertardio. O Estado de
S.Paulo, pólo do desenvolvimento capitalista no Brasil, atraiu migrantes de todo
o País, sendo, portanto, o Estado-mor da ordem burguesa. São Paulo não é Nor-
deste, região que exportava força de trabalho barata para o crescimento da indús-
tria paulista. O Brasil – diga-se de passagem, São Paulo – não é Nicarágua, onde
ocorreu naquela época uma revolução nacional-popular anti-imperialista. Enfim,
o discurso do fiscal era o discurso da ordem burguesa hipertardia, dependente,
colonial-prussiana de extração escravista.
Mas o dia 6 de setembro de 1979 ainda reservaria para o poeta Deraldo um
momento kafkiano. À noite, ao voltar para casa, Deraldo sobe as escadas rumo
241
Trabalho e Cinema • Volume 4
a seu barraco. Um menino pára ele, e diz que ele precisa fugir pois esfaqueou
um dono de fabrica. Deraldo exclama: “Eu? Tá todo mundo louco. Onde é que
tu ouviu essa conversa?”. O menino mostra o jornal onde Deraldo lê na primeira
página uma foto com sua cara. Diz a manchete: “Operário esfaqueia o patrão.” Na
verdade, Ceará viu a foto de Deraldo no jornal e chamou a policia. Ao chegar no
barraco, Deraldo lê a reportagem do jornal. A polícia chega com voz de prisão.
Deraldo insiste que o cara do jornal parece com ele, mas não é ele, pois o nome é
outro (José Severino da Silva). Exclama: “E meu nome é Deraldo José da Silva”. En-
tretanto, o policial retruca: “É, mas todos esses paus-de-arara é Silva. Documen-
tos. Não tem documentos?”. Deraldo, inquieto, diz: “Não, não tenho documentos.
Quando eu cheguei aqui não deu tempo de tirar documento.”. O policial, precon-
ceituoso e agressivo, exclama: “Ah, esses pau-de-arara sempre sem documentos.
Mas que onda é essa? Você é um descarado mesmo. Mexer com pé-de-chinelo é
foda. Como é, do Norte, e a identidade?”. Sentindo-se acuado, Deraldo aproveita
um descuido e foge.
A truculência autoritária dos agentes policiais e do fiscal da Prefeitura contra
o poeta popular Deraldo, que vimos nas primeiras cenas do filme “O homem que
virou suco”, são exemplos da violência diluída, perpetrada cotidianamente pelos
agentes sociais do Estado capitalista brasileiro, contra os trabalhadores pobres.
Ela permeia a vida cotidiana dos homens simples. Representa o traço da socia-
bilidade autoritária que caracteriza a formação social brasileira e o capitalismo
brasileiro de origem colonial-prussiana com extração escravista. O autoritarismo
dos agentes sociais do Estado contra os pobres, negros ou pardos, trabalhadores
simples oriundos do campo, é um elemento compositivo da síndrome da supe-
rexploração da força de trabalho no Brasil. Ela reforça (e perpetua) a lógica da
superexploração da força de trabalho.
A truculência autoritária contra os pobres no Brasil originou-se, como salien-
tamos acima, da formação social constituída historicamente na base do latifúndio
colonial-escravista. O latifúndio que caracteriza a formação social brasileira, além
da posse da terra, representa, no plano da sociabilidade, a perpetuação do status
quo opressor. Nele, uma minoria pensa, desenvolve, estabelece e decide regras de
comportamento e de direitos que se impõem a uma maioria amorfa e sem nenhu-
ma possibilidade de inverter ou subverter o processo.
A lógica social do latifúndio de origem colonial-escravista, que caracteriza a
formação do capitalismo brasileiro, concebe duas vertentes ideológicas: os “natural-
mente inferiores” e os “naturalmente superiores”. Deste modo, como salienta Paulo
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O mundo do trabalho através do cinema
Freire (no livro “Extensão ou comunicação?”, Paz e Terra, 1992), a posse da terra não
é só um instrumento de poder e controle econômico, mas também uma legitimação
para o domínio até mesmo da alma e do futuro dos homens. Diz Freire: “A estrutura
latifundista, de caráter colonial, proporciona ao possuidor da terra, pela força e pres-
tigio que tem, a extensão de sua posse também até os homens”. Portanto, a trucu-
lência autoritária das personificações sociais do capital (fiscal da Prefeitura, agentes
policiais e, mais adiante, o Mestre de obras), reproduzem a lógica latifundista que
impregna a vida cotidiana e as relações sociais de trabalho no Brasil.
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Trabalho e Cinema • Volume 4
diretor-roteirista tenha em mente o foco de luz utilizado nos porões do DOPS nas
sessões de interrogatório policial. Mas o foco de luz não apenas reprime, mas expõe
para o público espectador, nos seus claro-escuros, a proletariedade impressa na mi-
serabilidade das habitações precárias e caras sofridas e intimidadas pelo aparato po-
licial. A montagem da cena segue a canção de Vital Farias que nos fala de lembranças
(“Que não sai da minha idéia/Que não sai da minha mente”), fome (“Eu vejo mesa
sem prato/Eu vejo prato sem ceia”) e sofrimento do proletário pobre oriundo da Para-
íba (“Bem curtida e bem pra frente/Esse suor que escorre no peito da nossa gente”).
[Refrão]
Bate com o pé xaxado [Refrão]
Bate com o pé rachado
Bate com o pé xaxado Taperoá, Paraíba
Bate com o pé rachado Na minha imaginação...
Paraíba hospitaleira,
Essa linda Filipéia, Que sublime, que besteira, ou que
Digo João Pessoalmente, torrão
Que não sai da minha idéia
Que não sai da minha mente.
[Refrão]
[Refrão]
Porto do Capim, existe
Sua sorte é meu desgosto
Essa Paraíba agora,
Ilha do Bispo
Bem curtida e bem pra frente
Esse suor que escorre no peito da Cimento deformando o nosso rosto
nossa gente
[Refrão]
[Refrão]
Essa antiga Guanabara...
Eu aqui no Baixo Roger, Centenas de edifícios nos subúrbios
Vejo uma luz de candeia coisa e tal
Eu vejo mesa sem prato Favelados e mocambos no centro da
Eu vejo prato sem ceia capital
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Trabalho e Cinema • Volume 4
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bres oriundos das regiões mais atrasadas, mal organizados em sindicatos (o que os
distingue, por exemplo, dos operários da indústria metalúrgica do ABC). Apesar
de mal organizados em sindicatos, os operários da construção civil conseguiram
em 1979 se mobilizar em várias capitais e fazer greve contra o arrocho salarial.
O movimento dos operários da construção civil de 1979 inseriu-se na “onda
grevista” dos trabalhadores brasileiros que provocou uma reviravolta no mundo
do trabalho no triênio 1978-80. O núcleo dessa grande agitação iniciou-se na re-
gião paulista do ABC, espalhando-se posteriormente para o resto do país. Uma
das principais greves dos operários da construção civil ocorrida em 1979, foi a
greve dos trabalhadores da construção civil de Belo Horizonte, também conheci-
da como “A Rebelião dos Pedreiros”, que teve duração de quatro dias, mas colocou
a capital mineira em estado de convulsão social. A greve teve a participação de
mais de 30 mil trabalhadores e foi violentamente reprimida, causando a morte
de um operário e deixou mais de 50 feridos. Esta não foi apenas uma greve, mas
uma grande revolta operária que contribui para acentuar a crise do regime militar.
Os trabalhadores da construção civil são um dos setores do proletariado bra-
sileiro mais explorado. Em 1979, cerca de 80% tinham vindo do campo, sendo
que 70% ganhavam apenas um salário mínimo. Estes trabalhadores tinham as
piores condições de trabalho, trabalhando até 11 horas por dia, executando um
trabalho superpesado, com alto índice de acidentes e também muitos operários
que adquiriam doenças causadas pelo trabalho. Os operários da construção civil
eram submetidos a grande atraso cultural e grande parte era composta de traba-
lhadores analfabetos.
A truculência autoritária do mestre-de-obras era um elemento compositivo
do sistema da superexploração da força de trabalho no Brasil. Como persona do
capital de extração senhorial, o mestre-de-obras exercia o controle biopolítico
sobre o trabalho vivo, tendo em vista que proibia, por exemplo, os operários de
levarem mulher para o alojamento, e inclusive, de usar barba. Na verdade, nesse
caso, a superexploração da força de trabalho implicava visceralmente, o controle
do modo de vida do operário como trabalho vivo. O operário resiste, exclamando:
“E a barba empata meu serviço?”. Mas o autoritarismo vigente das relações de
trabalho, e o preconceito senhorial que impregna a mentalidade do supervisor
(que é um trabalhador assalariado exercendo função do capital), impede qualquer
diálogo entre operários e chefias autocráticas. Diz o mestre: “Não discute comigo.
Dou um pé no seu rabo e te mando embora. Essa barba aí me invoca. Tu é hippie?
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Trabalho e Cinema • Volume 4
Se não é hippie, não amola. Tu é Jesus Cristo? Então tira essa porra dessa barba.
Vai trabalhar, vai embora.”
O mestre-de-obra interroga Deraldo sobre a sua qualificação para o trabalho
na construção civil: “Em que obra você já trabalhou? Em que edifício você traba-
lhou?”; ou ainda: “Você já trabalhou em alguma obra de edifício que nem essa?”;
e vocifera, arrogante: “Já misturou areia com cimento? Sabe fazer concreto? Sabe o
que é concreto armado? Sabe o que é vergalhão?”; e salienta a dureza do trabalho
na construção civil, preparando o espírito de Deraldo para a rotina da superex-
ploração do trabalho: “Olha, meu chapa, o trabalho aqui é dureza. Não é que nem
aquelas molezas que você tinha lá no Norte. Isso aqui é trabalho pra macho. Aqui
é salário mínimo. E você tem duas horas por obrigação de dar pra obra, por dia. Ai
você tem o salário e tem as duas horas em que você ganha por fora.”
Percebe-se que o mestre-de-obras não diz “hora-extra”, mas sim “horas por
obrigação para dar pra obra”. A mais-valia absoluta torna-se elemento crucial do
processo de extração de sobretrabalho. Ela se põe articulada com a mais-valia
relativa na medida em que temos a intensificação do trabalho no interior da jor-
nada laboral. Ao pagar um salário mínimo, institucionaliza-se o arrocho salarial
da categoria operária, efetuando a redução do fundo de consumo do trabalhador
assalariado abaixo do valor da força de trabalho. Eis o caráter da superexploração
da força de trabalho.
Deraldo reclama: “Mas só um [salário mínimo]?”. O mestre-de-obras argu-
menta salientando que existe um “salário indireto”: “Tu acha pouco? Um salário
só, não. É salário mínimo, mais as duas horas e mais que você pode morar aqui.
Se você fosse pagar aluguel, você ia pagar uma nota, Isto que você economiza
morando aqui é salário também.” Na verdade, o “salário indireto” oculta a própria
superexploração do trabalho, pois morar na obra, reduz (ou elimina) o tempo
“improdutivo” de trajeto do operário do local de moradia para o local de trabalho,
permitindo, além disso, o controle biopolítico do trabalho vivo (não pode trazer
mulher, etc.). Enfim, morar na obra reduz o valor de reprodução da força de tra-
balho (como ocorre, por exemplo, com o trabalho doméstico), permitindo deste
modo, maior apropriação do sobretrabalho pelo capital. Ao articular-se com a
“hora-extra” (o prolongamento da jornada de trabalho), o capital incrementa ain-
da mais a extração de trabalho excedente com o recurso da mais-valia absoluta.
Na verdade, a superexploração da força de trabalho é um elemento catego-
rial da vigência da extração da mais-valia relativa nas condições da forma social
da grande indústria, que mobiliza, em torno de si, um complexo de elementos
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Experiência expectante
(sonhos, aspirações, anseios)
Experiência compartilhada
(linguagem e interação social)
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bom”. O Coronel prossegue: “Graças a Deus. Mas eu vou levar gente daqui, gente
ligada à produção. Vai ser uma beleza”.
Por um lado, o Coronel, oligarca político do Nordeste, latifundiário e indus-
trial, demonstrando o vinculo orgânico entre o historicamente novo e o histori-
camente velho no capitalismo hipertardio, cultua a cordialidade do atraso, a sua
calma e fartura (como diz o Coronel, fartura “para quem quer”, pois como diz o
Coronel, “lá não vive bem quem não quer”); e, por outro lado, lamenta a igno-
rância e falta de cultura quando elas significam a falta de força de trabalho mais
qualificada para a sua indústria na Paraíba, construída com incentivos fiscais do
governo militar.
Mais uma vez, o filme “O homem que virou suco” expõe a espoliação do fun-
do público para financiar empreendimentos das classes dominantes: o que vimos,
por exemplo, na indústria da construção civil, com prédios de luxo sendo finan-
ciados pelo FGTS e incentivos fiscais para indústrias no Nordeste, indústrias de
propriedade da oligarquia política local, os coronéis latifundiários, que apóiam o
governo militar. Portanto, durante a ditadura militar, o modelo de crescimento da
economia brasileira baseou-se, não apenas na transferência de renda das classes
trabalhadoras para as “classes médias”, permitindo, deste modo, a mudança neces-
sária no perfil da demanda tendo em vista o padrão de industrialização centrado
na produção de bens de consumo duráveis; mas baseou-se também na transferên-
cia de renda para as oligarquias regionais por meio, por exemplo, de incentivos fis-
cais para indústrias no Nordeste. Eram as oligarquias regionais que sustentavam
politicamente o regime militar.
Deraldo, irreverente e indignado com o cinismo das classes dominantes, age
de modo atrevido contra as personas do capital. Como um Carlitos nordestino
consciente de sua inadequação à ordem medíocre da burguesia hipertardia, ele se
“insurge” na Casa da Madame: põe as cinzas do cigarro do Coronel nos copos de
whisky dos garotos que pulam a discoteque; mistura-se aos garotos na discoteca;
e dá umbigadas na filha da madame e suas amigas (o roteirista diz: Deraldo trans-
forma a discoteque numa dança nordestina); joga o vaso de cerâmica da Paraíba
que o Coronel deu para a afilhada, dentro da piscina e depois, finalmente, passa a
mão no bife do cachorrinho Xaxá (como diz ele, “o bife do cachorro viado”); come
uns pedaços e depois, dá um pedaço para um cãozinho vira-latas.
Mais uma vez, o poeta Deraldo está desempregado, fugindo da polícia, com
os jornais acusando-o de matar o patrão. Encontra na rua um operário da obra,
o mesmo que lhe ensinou a operar o elevador; o operário lhe diz que o mestre-
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E depois, Deraldo complementa com uma “Canção de Fogo”, como ele diz:
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e para o país. Muitos de vocês estão chegando agora a São Paulo, certamente. E a
grande maioria vem da zona rural... Nós vamos apresentar para vocês um filme
que é chamado audiovisual. Nós vamos apresentar esse audiovisual durante 3 dias
pra vocês e discutir muito sobre ele com vocês”.
O treinamento dos operários do Metro tem como objetivo, adaptar os operá-
rios à disciplina industrial. Como a maioria dos operários, como diz o professor,
“vêm da zona rural”, o treinamento é um modo de domar o trabalho vivo e adaptar
a força de trabalho ao rigor da produção capitalista. No filme “O homem que vi-
rou suco”, de João Batista de Andrade, o tema da conformação do homem rude do
sertão nordestino à vida moderna e à disciplina do processo de trabalho capitalista
é um tema candente do filme. Este é um problema crucial do processo de moder-
nização do capital no Brasil, que exigiu a formação de subjetividades humanas
adequadas à superexploração da força de trabalho (trabalho intenso, longas jor-
nadas de trabalho e arrocho salarial). Como diz o professor, preparar os operários
para o trabalho, é fazê-los se adaptar bem às condições de trabalho, evitando que
eles criem problemas para eles mesmos e para a obra.
Na sua odisséia pelas estações da precariedade salarial cronicamente estrutu-
ral no Brasil, o poeta Deraldo não se adaptou a nenhum emprego, recusando, não
apenas as condições salariais da superexploração do trabalho, como carregador
da zona cerealista ou operário da construção civil; mas também o desrespeito e
o preconceito contra o homem comum de origem rural. Portanto, o mundo so-
cial da superexploração do trabalho implica, não apenas as condições salariais do
trabalho intenso, longas jornadas de trabalho e arrocho salarial, mas a opressão
cultural e o preconceito social de extração colonial-escravista contra o povo brasi-
leiro. É o que denominamos de síndrome da superexploração da força de trabalho
no Brasil.
O treinamento na grande empresa é uma operação de conformação ideológica
do trabalho vivo às condições salariais e culturais da superexploração da força
de trabalho. O título do audiovisual apresentado no treinamento – “Audiovisual
do Herói Ridículo” – é expressão sintomática da “captura” da subjetividade do
trabalho pelo capital. Ridiculariza-se para quebrar a auto-estima do trabalho vivo,
tornado-o para mais dócil para introjetar a disciplina moral adequada às condições
salariais da superexploração da força de trabalho. Cria-se uma figura caricata do
homem nordestino e o ridiculariza, salientando, de forma negativa, as qualidades
pessoais que se busca denegrir. A longa transcrição da fala do audiovisual torna-
-se necessária. Diz o locutor do Audiovisual:
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diretor João Batista de Andrade constrói uma interessante metáfora com a cena
do corredor do refeitório, que acaba se transformando – no imaginário de Deral-
do - num corredor de gado, usado para controle, marcação e vacina do boi. Ao
contrário de Serguei Eisenstein no filme “A greve”, João Batista de Andrade, não
utilizou imagens do boi indo para o matadouro, metáfora utilizada por Eisenstein
para representar o massacre dos operários pelas forças de repressão do Czar; mas
o próprio ator no papel de Deraldo, representou o boi preso e acuado no corredor
usado para controle, marcação e vacina. Diz o roteirista: “Deraldo, sozinho, em
transe, ali dentro. Faz gestos lentos, estranhos e, de início, bem sutis.Não sabe o
que faz. Aos poucos começa a emitir som triste, suave. O som aos poucos se parece
com um mugido de boi. Seus gestos aos poucos vão se transformando em marra-
das (cabeçadas de boi) contra a cerca. Gesto e som vão num crescendo doido.” Ao
utilizar o transe de Deraldo no corredor de refeitório, que aparece como corredor
de gado, o diretor João Batista de Andrade quis dizer que o operário-poeta De-
raldo sentia-se como um boi aprisionado. O objetivo do treinamento capitalista
imposto aos operários da obra do Metro era “controle, marcação e vacina” dos
operários contra o “vírus” da insubordinação. O capital quer imprimir a sua mar-
ca no operário-boi e vaciná-lo contra o vírus da rebeldia. Deraldo é o homem que
virou boi. Mas, como boi, ele resiste dando marradas contra a cerca.
Tanto a cena do corredor do refeitório, como a cena onírica de Deraldo numa
rua central de São Paulo, vestido de cangaceiro, igual ao herói ridículo, encostado
a um poste, com um fuzil na mão e cruzado de cartucheiras de balas, punhal na
cintura, facão, são momentos que expressam a luta de Deraldo contra a perda
de si. Na cena onírica, em que ele aparece vestido de cangaceiro, igual ao herói
ridículo, diz o roteiro: “O público se junta e todos gozam a triste figura”. Como
um Dom Quixote nordestino, o cangaceiro Deraldo, atormentado, tira seu facão e
ameaça as pessoas que cada vez mais se divertem com o tipo que não lhes causa
nenhum medo. Na verdade, Deraldo está tendo um pesadelo.
O treinamento da empresa abalou o poeta popular. As duas cenas de delírio
pessoal de Deraldo – imaginar ser um boi cercado num corredor para controle,
marcação e vacina; e sonhar ser um cangaceiro, igual ao herói ridículo, no centro
de São Paulo - expressam o impacto contundente do treinamento com audiovisual
na subjetividade de Deraldo. Os cursos de treinamento para operários e empre-
gados nas empresas capitalistas, que têm aumentado ano após ano, são instru-
mentos indispensáveis de “captura” da subjetividade do trabalho vivo pelo capital,
visando adequar a força de trabalho aos requisitos da produção de valor. Esses
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sabe disso.” E depois: “O senhor tem que acreditar na minha palavra. Homem é
homem. O senhor é meu amigo ou não é?”. Castro olha desconfiado para o poeta.
O editor recusa o livrinho de cordel intitulado “O homem que trocou duas pernas
por um pão”, dizendo que essa história é muito nordestina: “Coisa pra gente que
vive lá”. Deraldo exclama: “Mas não tem nordestino em São Paulo?”. Castor: “Tem,
mas não estamos interessados nisso”. Finalmente, Deraldo tem a idéia de uma
história que o ilumina e desperta o interesse do editor. Diz ele: “Eu vou escrever
a história desse operário que matou o patrão”. A partir deste momento entramos
na segunda parte do filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade.
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Num certo momento, Severino é convocado para uma conversa com o dire-
tor da empresa, seu patrão, Mr. Joseph Losey, e os diretores da Ashby Losey do
Brasil. Eis como o roteirista descreve o escritório do diretor: “O escritório é ultra
sofisticado e, pelo enorme vitral, se pode ver a cidade de São Paulo do alto, o mar
de edifícios brancos.” Os diretores fazem tudo para agradar Severino. Na verdade,
querem cooptá-lo visando obter informações sobre a organização da greve pelos
operários. É interessante analisar a fala do diretor mr. Joseph Losey. Ele se dirige
a Severino (com sotaque em inglês). É interessante a transcrição da longa fala de
Mr. Joseph Losey tendo em vista que ela representa uma primorosa peça ideológi-
ca do capital imperialista no Brasil:
“Oh, Mr. Severino… Eu pedi sua presença aqui por motivos muito sérios.
Sente-se, por favor. Certamente o senhor deve saber nosso problema... Esta agi-
tação...Esta indisciplina dentro da fábrica. Eu saber que o senhor é homem res-
ponsável. Pensa com a cabeça. Por isso o chamei para falar de amigo para amigo.
Eu saber que o senhor vai ajudar a nós, como nós ajudou o senhor. Você sabe,
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Trabalho e Cinema • Volume 4
nossa empresa é uma das mais importantes do país. Sempre encaramos tudo com
seriedade. Temos nossos compromissos com o crescimento desse seu fabuloso
país, em busca de se tornar uma grande nação. Eu sou um estrangeiro que aqui
represento o espírito de luta do povo americano, contribuindo para a chegada
desse futuro. Nós sabemos que essa fase é difícil. Exige sacrifício de todos, pois o
importante é crescer. Não é possível o bem-estar sem produção acumulada. Pri-
meiro crescer, depois distribuir riquezas. Nossos salários são fixados pelo gover-
no. Com estudos que nós respeitamos e que são realistas. Nós não podemos e nem
queremos pagar mais do que os índices. Estamos sabendo que alguns operários
insatisfeitos vêm persuadindo outros operários a paralisar a produção. Isto não
pode continuar. Caso contrário, vamos tomar medidas enérgicas. Talvez vamos
até decidir... Dispensa em massa de operários, que podem causar problemas para
inocentes e culpados. Causar desemprego em massa... E até violência”.
Primeiro, Losey trata Severino como um “colaborador” que “pensa com a ca-
beça”, mas com a cabeça do capital. Diz o patrão: “Eu saber que o senhor é homem
responsável. Pensa com a cabeça. Por isso o chamei para falar de amigo para ami-
go. Eu saber que o senhor vai ajudar a nós, como nós ajudou o senhor.” Severino
aparece no discurso do capitalista não como um trabalhador assalariado, mas sim,
um amigo do patrão e vice-versa. Por isso, o patrão espera que Severino lhe ajude.
Na verdade, o discurso do patrão é um discurso motivado por uma preocupação:
a greve dos operários que pode parar a produção e dar prejuízos para a empresa.
Deste modo, os diretores da Ashby Losey do Brasil são meras personificações da
empresa, ente abstrato do capital, lócus de acumulação de mais-valia. Parafra-
seando Marx diríamos: “A empresa é tudo, o homem é nada, senão a carcaça da
empresa...”. Por isso, ao reconhecimento de Severino como colaborador, segue-se
a apresentação da empresa que ele representa.
Um detalhe: a empresa não é um mero ente abstrato. Existe uma mediação
fundamental no discurso do capitalista Joseph Losey: a Nação. A empresa Ashby
Losey do Brasil é uma empresa norte-americana. Por isso, não apenas a empre-
sa tem um compromisso com o crescimento do Brasil – diz ele, apelando para
o espírito nacionalista de Severino, “desse fabuloso país, em busca de se tornar
uma grande nação” – mas, como a empresa norte-americana, ela representa “o
espírito de luta do povo americano contribuindo para a chegada desse futuro.”.
Portanto, no discurso de Joseph Losey, mescla-se a empresa-como-capital e a em-
presa-como-nação-hegemônica-do-capital no plano do mercado mundial. Nesse
momento do filme, põe-se de modo inseparável, o tema da acumulação de capital
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O mundo do trabalho através do cinema
que possui como lócus a empresa e o tema do imperialismo que possui como lócus
a nação imperial que garante as condições políticas e ideológicas para a produção
do capital.
Mas no discurso de Joseph Losey está presente também, como outro elemen-
to do discurso da dominação imperialista, o tema da ideologia, isto é, existe uma
ideologia do imperialismo, reproduzida pelas personificações do capital hegemô-
nico. Diz o capitalista Joseph Losey: “Nós sabemos que essa fase é difícil. Exige
sacrifício de todos, pois o importante é crescer. Não é possível o bem-estar sem
produção acumulada. Primeiro crescer, depois distribuir riquezas.” Eis a ideolo-
gia do desenvolvimentismo do “milagre brasileiro”, baseado na superexploração
do trabalho sob a condução das grandes empresas oligopólicas estrangeiras com
apoio do Estado bonapartista-militar.
Neste discurso existem duas falácias ideológicas que invalidam a única afir-
mação verdadeira: “Não é possível o bem-estar sem produção acumulada”. É claro
que sem produção de riqueza, não há como distribuí-la. Mas o discurso ideológi-
co oculta o caráter estrutural de classe da produção de riqueza.
Primeiro, não é verdade que a produção de riqueza exige o sacrifício de todos:
o único sacrificado pela superexploração da força de trabalho é a classe operária
e camadas subalternas da ordem social burguesa. Depois, não é verdade que pri-
meiro, é preciso crescer; e depois, distribuir riqueza. O Estado bonapartista-mi-
litar foi estruturalmente incapaz de redistribuir a riqueza acumulada. Pelo con-
trário, a forma social do Estado político do capital – Estado oligárquico-burgues
de feição bonapartista-militar – que reprimiu sindicatos e movimentos sociais,
existiu para garantir, não a redistribuição de riqueza, mas sim a concentração de
riqueza, como de fato ocorreu no período do regime militar no Brasil.
Finalmente, Joseph Losey chegou ao ponto fulcral do seu discurso ideológico:
ele quer que o operário José Severino da Silva traia os companheiros de trabalho,
“dedurando” os organizadores da greve no chão-de-fábrica. Foi o que aconteceu.
Diz o operário que relata a história do homem que virou suco: “Ele dedurou o
Luisão.” Enfim, Severino, o homem que virou suco, é o homem que escolheu ser
colaborador do capital. A “captura” da subjetividade do operário Severino ocorreu
como ato de escolha moral: imbuído de sonhos, expectativas e valores de mercado
com seu fetichismo da mercadoria e anseios por ascensão profissional, Severino
decidiu romper com o coletivo de classe e cultivar o sonho de subir na vida.
Nas condições de luta de classes, a pressão do capital sobre Severino foi inten-
sa, tendo em vista que os diretores da Ashby Losey do Brasil perceberam que ele
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Trabalho e Cinema • Volume 4
era o elo mais fraco da corrente operária do chão-de-fábrica. Por isso, Severino
ganhou o premio de operário-simbolo. Entretanto, existe a dialética perversa do
capital que devorou irremediavelmente José Severino da Silva. Diz um operário:
“Mas depois que ele entregou o Luisão, se danou todo.” E prossegue: “Era só ele
entrar na fábrica e a gente parava. Ninguém trabalhava com ele lá, o patrão, de
quem tanto puxou o saco... Mandou ele embora com prêmio e tudo. Quando foi lá
na festa receber o prêmio de operário-símbolo... Já tava desempregado e na pior”.
Enfim, nas condições da luta de classes com a ascensão do movimento sindi-
cal de fins da década de 1970 no Brasil, o operário José Severino e seus anseios de
subir na vida, desrespeitando o coletivo de classe e colaborando com o capital, foi
esmagado não apenas pelo patrão, que o mandou embora, pois ele tornou-se um
estorvo para a produção, tendo em vista que os operários se recusavam a trabalhar
com ele; mas foi esmagado também pelo coletivo de classe que ele próprio des-
respeitou e traiu. José Severino da Silva, operário-simbolo de 1979, tornou-se um
homem solitário que, alienado do ser genérico do homem-que-trabalha, entrou
numa situação de deriva pessoal. Desemprego com família e filhos, decidiu matar
o patrão na solenidade de entrega do Premio de Operário-Simbolo. Foi a solidão
de Severino que o enlouqueceu – solidão de classe.
Finalmente, Deraldo, que reconstrói a história do homem que virou suco, en-
contra a casa de Severino na periferia de São Paulo. Diz o roteirista: “lugar alto,
espantado com a imensidão de tudo, aquele mar de casinhas construídas e po-
bres.” Encontra D. Auxiliadora, mulher de Severino. É o filho de Severino que
conduz Deraldo por becos e mais becos até o local onde está o pai. Assim des-
creveu o roteirista o encontro de Deraldo com seu sósia. Diz ele: “De repente, a
surpresa amarga. Num buraco imundo, de uma porta de um pequeno barraco, sai
Severino, ainda de terno (como estava na festa) e de óculos, mas todo sujo, com a
peixeira na mão, dando facadas no ar. Louco. Deraldo, extremamente comovido,
é tomado pela cena. Os dois sósias se encaram, há um encantamento nesse gesto
que os une”.
Mais adiante, a cena final: “Deraldo assiste à cena final: enfermeiros levam
Severino para uma ambulância, em camisa de força. Deraldo, fortemente emocio-
nado, seu rosto revela sentimentos elevados de solidariedade e de gratidão àquele
homem que, na sua desgraça, o ensinou tanto. Severino vai sendo colocado dentro
da ambulância. Os dois sósias ainda se encaram por um breve instante, pela últi-
ma vez. A ambulância se vai, veloz, pelo bairro pobre”.
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O mundo do trabalho através do cinema
Deraldo escreve o novo livrinho de cordel: “O homem que virou suco”. Diz ele:
“É a história de todo nordestino. Do cara que chega em São Paulo... trabalha, luta
e acaba passando fome, virando suco de laranja”.
Na rua, vendendo seu livrinho de cordel, é incomodado novamente pelo fis-
cal. Mas dessa vez, Deraldo apresenta os documentos. Diz ele: “Os documentos de
um homem”. Deraldo tornara-se homem-cidadão, sujeito de direito que luta con-
tra a desigualdade social e a exploração do homem pelo homem. Esta cena final é
uma cena emblemática da conjuntura social e política de 1979 com a ascensão dos
movimentos sindicais e movimentos sociais na luta contra o arrocho social e pela
democracia. Diz o poeta popular Deraldo:
As cenas finais do filme “O homem que virou suco” são bastante ricas de sig-
nificados críticos que explicam a narrativa fílmica em sua totalidade concreta.
Da odisséia pelo conjunto de estações da precariedade salarial cronicamente es-
trutural, que caracterizou a primeira parte do filme; à investigação etnográfica
(e etnotrágica) de Deraldo, que reconstitui a história grotesca do operário José
Severino da Silva, existe toda uma dialética do encantamento e desencantamento
das individualidades pessoais de classe na ordem burguesa hipertardia.
Primeiro, a história da loucura de Severino possui para Deraldo um caráter
trágico e, portanto, tem sentido catártico para Deraldo, que ficou fortemente emo-
cionado com a desgraça de Severino pois ele – Deraldo - compreendeu o sentido
contingente das escolhas morais daquele nordestino que, como ele diz, “chega em
São Paulo, trabalha, luta e acaba passando fome, virando suco de laranja”. A des-
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Trabalho e Cinema • Volume 4
graça de Severino ensinou muito a Deraldo, contribuindo para que ele pudesse
entender a tragédia brasileira, a tragédia de um povo cuja força está na união e
luta pelos direitos sociais e democratização política e social capaz de transformar
e abolir o Estado político do capital que sustenta o sistema social da superexplo-
ração do trabalho.
Segundo, a loucura de Severino está expressa não apenas no louco que dá
facadas no ar recolhido na favela, mas sim num processo de “captura” da subjeti-
vidade do homem-que-trabalha que percorre a história de sua vida pessoal como
trabalhador nordestino e operário da indústria metalúrgica que individualmente
buscou subir na vida. Como disse um operário sobre Severino: “Era doido pra
subir”. Portanto, a loucura de Severino – este poderia ser o título da segunda parte
do filme – é a loucura do consentimento espúrio do homem-que-trabalha às dis-
posições estranhadas do capital.
Na verdade, a loucura de Severino estava presente nos momentos de sonho,
expectativas e anseios pela ascensão profissional, mesmo que isso implicasse trair
o coletivo de classe – como ocorreu. A loucura de Severino estava no engodo da
manipulação dos sonhos e expectativas dos trabalhadores assalariados que esco-
lhem reduzir seu tempo de vida a tempo de trabalho visando manter seu padrão
de vida burguesa. Severino aderiu por livre e espontânea vontade à “máquina de
fazer suco de laranja” da superexploração do trabalho: trabalho intenso com lon-
gas jornadas, visando a ascensão profissional, ou seja, ganhar mais dinheiro para
ter padrão de vida de “classe média”. Disse o operário sobre Severino: “Todo dia
era o Olavo ir embora e o Severino ficava ali, treinando no torno do Olavo”. Deste
modo, a loucura de Severino era a loucura do consentimento espúrio à lógica da
superexploração do trabalho que implicava negar a si próprio.
É claro que a perda completa de si ocorreu quando Severino se decepcionou
com o próprio patrão que o demitiu, porque Severino tornara-se um estorno na
produção da fábrica. Com o desemprego, a alienação, que estava apenas no plano
ideal da subjetividade humana (Severino preservava sua personalidade-simula-
cro), efetivou-se por completo: a perda de si ocorreu efetivamente.
Terceiro, podemos afirmar a simetria real entre Deraldo e Severino: enquanto
Deraldo reage à ideologia, Severino sucumbe a ela. Deraldo se engrandece espiri-
tualmente; e Severino enlouquece. Ao enlouquecer, Severino reencontra a luta no
plano da fantasia: ele luta contra “moinhos de vento” (Deraldo encontra Severino,
ainda de terno - como estava na festa - e de óculos, mas todo sujo, com a peixeira
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