Você está na página 1de 284

A Hýbris de Saturno

PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO


TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL
Projeto Editorial Praxis
A Condição de Proletariedade: A precariedade do SÉRIE TELA CRÍTICA
trabalho no capitalismo global
Giovanni Alves Tempos Modernos
Charles Chaplin (1936)
Dilemas da globalização: O Brasil e a
mundialização do capital Metrópolis
Francisco Luiz Corsi (Org.) Fritz Lang (1927)

Dimensões da Crise do Capitalismo Global Nós a Liberdade


Giovanni Alves (Org.) René Clair (1931)

Dimensões da reestruturação produtiva: Ensaios de A Terra Treme


sociologia do trabalho Luchino Visconti (1948)
Giovanni Alves
Ladrões de Bicicleta
Economia, Sociedade e Relações Internacionais: Vittorio De Sica (1948)
Perspectivas do Capitalismo Global
Salário do Medo
Giovanni Alves (Org.)
Henri-Georges Clouzout (1953)
Lukács e o Século XXI: Trabalho, Estranhamento e
Beleza Americana
Capitalismo Manipulatório
Sam Mendes (1999)
Giovanni Alves
Segunda-Feira ao Sol
Tela crítica - A Metodologia
Fernando Léon de Aranoa (2002)
Giovanni Alves
Pão e Rosas
Teoria da Dependência e Desenvolvimento do
Ken Loach (2000)
Capitalismo na América Latina
Adrián Sotelo Valencia Eles não usam black-tie
Leon Hirzsman (1981)
Trabalho e cinema: O mundo do trabalho através do
cinema vol 1, 2, 3 e 4 O Corte
Giovanni Alves Costa-Gavras (2004)
Trabalho e Capitalismo Global - O Mundo do O que você faria?
Trabalho Através do Cinema de Animação Marcelo Piñeyro (2005)
Cláudio Pinto
A classe operária vai ao paraíso
Trabalho, Educação e Reprodução Social Elio Petri (1971)
Eraldo Leme Batista e Henrique Novaes
2001 - Uma Odisséia no Espaço
Dimensões da precarização do trabalho: ensaios de Stanley Kubrick (1968)
sociologia do trabalho
Giovanni Alves A agenda
Laurent Cantet (2001)
Trabalho e gestão através do cinema
Bruno Chapadeiro Vinhas da Ira
John Ford (1940)
Sindicalismo e reestruturação produtiva no Brasil:
desafios da ação sindical dos metalúrgicos de Laranja Mecânica
Caxias do Sul/RS Stanley Kubrick (1971)
Paulo Roberto Wünsch
Meu Tio
O trabalho do juiz: Análise crítica do vídeo Jacques Tati (1958)
documentário O Trabalho do Juiz
Giovanni Alves (org) Morte de um caixeiro-viajante
Volker Schlondorff (1985)
Trabalho e Neodesenvolvimentismo: choque de
capitalismo e nova degradação do trabalho no O adversário
Brasil Nicole Garcia (2002)
Giovanni Alves O Invasor
Trabalho, Educação e Formação Profissional: um Beto Brandt (2001)
debate do Serviço Social O Sucesso a qualquer preço
Araré de Carvalho Júnior, Maria Cristina Piana e James Foley (1992)
Maria Jose de Oliveira Lima (orgs)

Conheça o Projeto Editorial Praxis: www.canal6editora.com.br


Pedidos pelo e-mail vendas@canal6.com.br
Organizadores
Giovanni Alves
André Luís Vizzaccaro-Amaral
Bruno Chapadeiro

A Hýbris de Saturno
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO
TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Projeto Editorial Praxis

1ª edição 2015
Bauru, SP
Copyright do Autor, 2015

Coordenador do Projeto Editorial Praxis


Prof. Dr. Giovanni Alves

Conselho Editorial
Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior – UNESP
Prof. Dr. Ariovaldo de Oliveira Santos – UEL
Prof. Dr. Francisco Luis Corsi – UNESP
Prof. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzáles – UNISO
Prof. Dr. Jorge Machado – USP
Prof. Dr. José Meneleu Neto – UECE

Ilustração da capa
“Saturno devorando um filho” – Francisco de Goya (c. 1819-23)

H992 A Hýbris de Saturno: precarização do trabalho, saúde do trabalhador


e invisibilidade social / Giovanni Alves, André Luís Vizzaccaro-
Amaral e Bruno Chapadeiro (orgs). — Bauru: Canal 6, 2015.
282 p. ; 23 cm. (Projeto Editorial Praxis)

ISBN 978-85-7917-344-8

1. Trabalho. 2. Precarização do trabalho. 3. Condições de tra-


balho. I. Alves, Giovanni. II. Vizzaccaro-Amaral, André Luís. III.
Chapadeiro, Bruno. IV. Título.

CDD: 331.2

Projeto Editorial Praxis


Free Press is Underground Press
www.canal6editora.com.br

Impresso no Brasil/Printed in Brazil


2015
SOBRE OS AUTORES

André Luís Vizzaccaro-Amaral ● andre.vizzaccaro@uol.com.br

É Doutor em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília


da Universidade Estadual Paulista (FFC-UNESP: http://www.marilia.unesp.br),
Graduado e Mestre em Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis
da Universidade Estadual Paulista (FCLAs-UNESP: http://www.assis.unesp.br) e
Pós-Graduando pelo Master of Business Administration em Gestão Estratégica de
Negócios pelo Programa de Educação Continuada em Economia e Gestão de Em-
presas, vinculado ao Instituto Pecege da Escola Superior de Agricultura “Luiz de
Queiroz”, da Universidade de São Paulo (I-PECEGE-ESALQ-USP: http://www.pe-
cege.org.br). Atualmente, é Professor Adjunto do Departamento de Psicologia So-
cial e Institucional da Universidade Estadual de Londrina (PSI-CCB-UEL: http://
www.uel.br), Membro Colaborador da Rede de Estudos do Trabalho (RET: http://
www.estudosdotrabalho.org), Pesquisador Assessor da Associação para a Defesa
da Saúde no Trabalho (ADESAT) e Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Trabalho,
Educação e Sociedade” (GPTES-PSI-UEL/CNPq), atuando nas áreas temáticas da
Psicologia Social do Trabalho, Sociologia do Trabalho, Saúde Mental do Trabalha-
dor e Subjetividade.

Bruno Chapadeiro ● brunochapadeiro@yahoo.com.br

Possui Graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (2009); Es-


pecialização em Psicologia Organizacional e do Trabalho pelo CFP – Conselho
Federal de Psicologia (2014) e Mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Esta-
dual Paulista (2013). Foi professor substituto em Psicologia Organizacional e do Tra-
balho na Universidade Federal do Paraná (2013-2015) e atualmente é Doutorando
em Educação na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pesquisador-
-colaborador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e cadastrado nos Grupos de
Pesquisa CNPq “Estudos da Globalização” (GEPEG/Unesp/CNPq) e “Núcleo de Es-
tudos Trabalho, Saúde e Subjetividade” (NETSS/Unicamp/CNPq). Tem experiência
na área de Psicologia Social das Organizações e do Trabalho atuando principalmen-
te nos seguintes temas: Trabalho, Saúde, Segurança, Subjetividade e Gestão.

Dolores Sanches Wünsch ● doloressw@terra.com.br

Possui graduação em Serviço Social pela Universidade de Caxias do Sul (1982),


Mestrado em Serviço Social (2001) e Doutorado em Serviço Social pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2005). Atualmente é professora do
Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
- UFRGS e Coordenadora do Curso de Especialização em Saúde do Trabalhador/
UFRGS. Como Assistente Social atuou na área de reabilitação profissional, previ-
dência social, saúde do trabalhador e assistência social. É pesquisadora do Núcleo
de Estudos e Pesquisas em Saúde e Trabalho (NEST/UFRGS), com participação
em pesquisas e estudos relacionadas a saúde do trabalhador, previdência social e
proteção social.

Giovanni Alves ● giovanni.alves@uol.com.br

É Professor da UNESP-Marilia, Livre-Docente em Teoria Sociológica, Professor-


-Colaborador do Programa de Pós-Graduação na UNESP-Marília e Professor
Permanente do Doutorado em Ciências Sociais da UNICAMP, Pesquisador do
CNPq com Bolsa-Produtividade desenvolvendo projeto de pesquisa intitulado
“Labirintos do Labor - A experiência do adoecimento laboral de jovens empre-
gados do novo (e precário) mundo do trabalho no Brasil”. É um dos líderes do
GPEG - Grupo de Pesquisa Estudos da Globalização, inscrito do diretório de
grupos de pesquisa do CNPq; e da RET - Rede de Estudos do Trabalho (www.
estudosdotrabalho.org). Coordena os seguintes projetos de extensão universitária:
Projeto de Extensão Tela Critica (www.telacritica.org), voltado para a produção de
material pedagógico de conteúdo sociológico que visa discutir temas da sociedade
global através da análise crítica de filmes do cinema; Projeto CineTrabalho/Praxis
Video, voltado para a produção de vídeos que tratem das experiências vividas do
mundo do trabalho; e o Projeto OST - Observatório Social do Trabalho (www.
observatoriodotrabalho.org), que visa criar um acervo virtual que trate das expe-
riências narrativas de precarização do trabalho no Brasil. É autor de vários livros e
artigos na área de trabalho, sindicalismo, reestruturação produtiva, precarização
do trabalho e saúde do trabalhador. Home-page: www.giovannialves.org.

Grijalbo Fernandes Coutinho ● grijafc@gmail.com

Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 10ª Região (DF e


TO), Mestre em Direito e Justiça pela Universidade Federal de Minas Gerais-
-UFMG. Ex-presidente da Anamatra, da Amatra e da ALJT-Associação Latino-
-Americana de Juízes do Trabalho.

Jussara Maria Rosa Mendes ● jussaramaria.mendes@gmail.com

Possui Graduação em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio


Grande do Sul - PUCRS (1980), mestrado em Serviço Social pela PUCRS (1993),
doutorado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
- PUC/SP (1999) e pós doutorado em Serviço Social pela Universität Kassel, Re-
pública Federal da Alemanha (2010). Docente credenciada à Pós-Graduação em
Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia/UFRGS e ao Programa
de Saúde Coletiva da UFRGS, professora adjunta do curso de Serviço Social da
UFRGS, Coordenadora do Núcleo de Estudos em Saúde e Trabalho - NEST/UFR-
GS. Consultora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló-
gico; com experiência na área de formação em Serviço Social e em Saúde Coletiva,
com ênfase em Proteção Social e Saúde do Trabalhador, atuando principalmente
nos seguintes temas: Proteção social, saúde do trabalhador, acidente e doenças do
trabalho, formação profissional.
Liliana Aparecida de Lima ● liliana@mpc.com.br

Possui Graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1987), Mestrado


(2000) e Doutorado (2012) em Educação pela Universidade Estadual de Campinas.
Desde 1990 é Professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas-SP. Tem
experiência na área de Psicologia; ministra disciplinas de Teorias Humanistas I e II
(teórica e prática respectivamente); Professora do Instituto de Psicodrama e Psicotera-
pia de Grupo de Campinas; trabalha com ênfase em Ensino de Psicodrama, atuando,
principalmente, nos seguintes temas: Psicodrama, Educação, Sociometria, Ensino Su-
perior. Psicoterapeuta Psicodramatista; atendimentos individuais e grupais; adultos,
casais e famílias. Professora do Centro Nacional de Estudos Sindicais e do Trabalho
- CES. Diretora da Associação dos Professores da PUC-Campinas – APROPUCC e
Diretora do Sindicato dos Professores de Campinas e Região - SINPRO.

Luciana Veloso Baruki ● luveloso@gmail.com

É Graduada em Administração de Empresas pela Escola de Administração de


Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV-SP) e em Direito pelo Ma-
ckenzie. É especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Direito (EPD),
Mestre e Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Pres-
biteriana Mackenzie. Integra os quadros do Ministério do Trabalho e Emprego
como Auditora-Fiscal do Trabalho desde 2007. É autora do livro “Riscos Psicosso-
ciais e Saúde Mental do Trabalhador” (São Paulo: LTr, 2015).

Luiz Salvador ● salvador@salvadoreolimpio.com.br

Advogado trabalhista em Curitiba-PR, Vice-Presidente da Asocioación Latinoa-


mericana de Abogados Laboralistas (ALAL: http://www.alal.com.br). Ex-Presiden-
te da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (ABRAT). Representante
Brasileiro no Departamento de Saúde do Trabalhador da Associação Luso-Brasi-
leira de Juristas do Trabalho (JUTRA: http://www.jutra.org). Membro integran-
te do corpo técnico do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar
(DIAP). Sócio da SALVADOR & OLIMPIO ADVOGADOS ASSOCIADOS.
Margarida Maria Silveira Barreto ● megbarreto@uol.com.br

Graduada em Medicina. Residência em Obstetrícia e Ginecologia na Associação


Maternidade São Paulo. Bolsista da CAPES no Departamento de Ginecologia do
Hospital das Clinicas de São Paulo. Outras especializações: Homeopatia; Medici-
na do Trabalho; Higiene Industrial; Mestrado Psicologia Social – Curso de Pós-
-Graduação pela Pontifícia Universidade Católica/SP (2000), com a dissertação
“Uma jornada de Humilhações”. Doutorado em Psicologia (Psicologia Social) pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2005), com a tese “Assédio moral,
a violência sutil”. Pesquisadora – Núcleo de Estudos Psicossociais da Dialética
Exclusão/Inclusão Social, professora convidada da Faculdade de Ciências Médicas
da Santa Casa de São Paulo. Tem experiência na área de Medicina, com ênfase de
pesquisas e estudos relacionadas a saúde do trabalhador e assedio laboral.

Maria Elizabeth Antunes Lima ● antuneslima15@gmail.com

Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1977),


mestrado em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (1986),
doutorado em Sociologia do Trabalho – Université de Paris IX (Paris-Dauphine)
(1992) e pós-doutorado em Clínica da Atividade – Conservatoire National des
Arts et Métiers – CNAM (Paris-França). Atualmente, é Professora Titular na Uni-
versidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de Psicologia do Tra-
balho, com ênfase em Saúde Mental no Trabalho, pesquisando, principalmente, os
seguintes temas: ergoterapia, psicopatologia do trabalho e segurança no trabalho.

Olímpio Paulo Filho ● olimpio@salvadoreolimpio.com.br

Advogado trabalhista em Curitiba-PR, Diretor de Imprensa da Associação Bra-


sileira de Advogados Trabalhistas (ABRAT). Assessor de entidades sindicais e de
associações profissionais que atuam em Saúde do Trabalhador. Sócio da SALVA-
DOR& OLIMPIO ADVOGADOS ASSOCIADOS.
Roberto Heloani ● rheloani@gmail.com

Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (1980) e em Psicologia pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1982). Mestre em Administração
pela Fundação Getúlio Vargas - SP (1985), Doutor em Psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (1991), Pós-Doutorado em Comunicação pela
USP e Livre-Docente em Teoria das Organizações pela UNICAMP. Atualmente é
Professor Titular da Faculdade de Educação e do Doutorado em Ciências Sociais
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Cam-
pinas, na área de Gestão, Saúde e Subjetividade. Também é professor conveniado
junto à Université de Nanterre (Paris X). Tem experiência na área de Psicologia,
com ênfase em Psicologia do Trabalho, Saúde no Trabalho e Psicodinâmica do
Trabalho. Membro fundador do site www.assediomoral.org Atua principalmente
nos seguintes temas: Ética no Trabalho; Assédio Moral e Sexual e na área da Saúde
no e do Trabalho.

Selma Venco ● selmavenco@uol.com.br

É bacharel em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


(http://www.pucsp.br/), Mestre e Doutora em Educação, com ênfase em trabalho
e educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
(FE-UNICAMP: https://www.fe.unicamp.br/). Pós-doutorado em sociologia do
trabalho na Université Paris X – Centre de Recherches Sociologiques et Politiques
de Paris (http://www.cresppa.cnrs.fr) e pelo departamento de sociologia do Institu-
to de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (http://
www.ifch.unicamp.br/). Atualmente é professora na Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), no Departamento de Políti-
ca, Administração e Sistemas Educacionais. É pesquisadora associada ao Centre
de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris (CRESPPA), autora dos livros:
“Telemarketing nos bancos: o emprego que desemprega”; “As engrenagens do te-
lemarketing: vida e trabalho na contemporaneidade”, e participante de coletâneas
como “Infoproletários e Riqueza e Miséria do Trabalho”. O campo de pesquisa
atual analisa o trabalho dos professores da educação básica.
Sergio Augusto Vizzaccaro-Amaral ● sergiovizzaccaro@uol.com.br

É Licenciado em História pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis da Uni-


versidade Estadual Paulista (FCLAs-UNESP: http://www.assis.unesp.br), Mestre
em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
-SP: http://www.pucsp.br) e Doutor em Saúde Coletiva pela Faculdade de Ciências
Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP: http://www.
fcm.unicamp.br). Atualmente é Professor Convidado do Templo da Arte em São
Paulo (TArte: http://www.templodaarte.com.br) e Membro Colaborador da Rede
de Estudos do Trabalho (RET: http://www.estudosdotrabalho.org), desenvolvendo
trabalhos de pesquisa e ensino nas áreas de Arte, Saúde Pública e Coletiva, Ci-
ências Sociais, Subjetividade, Filosofia Contemporânea, Psicologia Institucional,
História do Brasil e da Arte, Cidadania e Ética e Metodologia de Pesquisa.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
A DESMEDIDA DO CAPITAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

CAPÍTULO INTRODUTÓRIO
INVASÕES BÁRBARAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
Sergio Augusto Vizzaccaro-Amaral

SEÇÃO 1 - Trabalho, Saúde e Invisibilidade Social

CAPÍTULO 1
PROMETEU ADOECIDO: CAPITALISMO GLOBAL E DEGRADAÇÃO
DA PESSOA HUMANA-QUE-TRABALHA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
Giovanni Alves

CAPÍTULO 2
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA INVISIBILIDADE DAS DOENÇAS E
MORTES RELACIONADAS AO TRABALHO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Dolores Sanches Wünsch
Jussara Maria Rosa Mendes

CAPÍTULO 3
BREVÍSSIMA HISTÓRIA DA LEGITIMAÇÃO DA PRECARIZAÇÃO
DA SAÚDE DO TRABALHADOR NO BRASIL MEDIANTE O SABER
MÉDICO-PSIQUIÁTRICO-TAYLORISTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
Roberto Heloani
Margarida Barreto

SEÇÃO 2 - Saúde, Subjetividade e a Precarização do Trabalho

CAPÍTULO 4
A (IN)VISIBILIDADE DOS “(IN)CAPACITADOS PARA O TRABALHO”. . . . . . . . . . . 87
André Luís Vizzaccaro-Amaral
CAPÍTULO 5
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO
TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES. . . . . . . . . . . . . 111
Maria Elizabeth Antunes Lima

CAPÍTULO 6
PRECARIEDADE DO TRABALHO, PRECARIZAÇÃO DA VIDA:
UMA ANÁLISE DO TRABALHO NOS CALL CENTERS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
Selma Venco

CAPÍTULO 7
OS IMPACTOS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO SOBRE A
SUBJETIVIDADE DO PROFESSOR DE ENSINO SUPERIOR PRIVADO
DE CAMPINAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
Liliana Aparecida de Lima

CAPÍTULO 8
CORAÇÕES E MENTES
NOTAS SOBRE A MANIPULAÇÃO DA SUBJETIVIDADE NOS
PROGRAMAS COMPORTAMENTAIS DE SAÚDE E
SEGURANÇA NO TRABALHO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179
Bruno Chapadeiro

SEÇÃO 3 - Dimensões Jurídico-Administrativas e Saúde do Trabalhador

CAPÍTULO 9
ANTROPOÉTICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197
Luiz Salvador
Olimpio Paulo Filho

CAPÍTULO 10
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES
NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL. . . . . . . . . . . 219
Grijalbo Fernandes Coutinho

CAPÍTULO 11
O AMANHECER DA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA:
OS PROGRAMAS DE METAS E O RECRUDESCIMENTO DOS
RISCOS PSICOSSOCIAIS NO SETOR BANCÁRIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
Luciana Veloso Baruki
A P R E S E N TAÇ ÃO
A DESMEDIDA DO CAPITAL

O livro A Hýbris de Saturno: Precarização do Trabalho, Saúde do Trabalhador


e Invisibilidade Social é mais um livro coletivo que, desta vez, consolida, em de-
finitivo, a produção epistêmica do Movimento Fórum Trabalho e Saúde (MFTS),
enquanto manifestação ético-política, de entidades e de atores sociais, em prol da
saúde do trabalhador deste início de século XXI. O MFTS é o resultado das ações
coordenadas pela Rede de Estudos do Trabalho (RET: http://www.estudosdotraba-
lho.org), um amplo coletivo composto por pesquisadores dedicados ao estudo do
Mundo do Trabalho, de grupos de pesquisas diversos, dentre os quais o Grupo de
Pesquisa “Estudos da Globalização”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais e ao Departamento de Sociologia e Antropologia da Facul-
dade de Filosofia e Ciências de Marília-SP, da Universidade Estadual Paulista
(GPEG-PGCS/DSA-FFC-UNESP-Marília-SP/CNPq) e com o apoio da Associação
para a Defesa da Saúde no Trabalho (ADESAT). Este livro soma-se a outros dois
anteriormente publicados pela Editora LTr, sendo o primeiro, publicado em 2011
sob o título de Trabalho e Saúde: a precarização do trabalho e a saúde do trabalha-
dor no século XXI; e, o segundo, em 2012 sob o título Trabalho e Estranhamento:
Saúde e Precarização do Homem-que-Trabalha. Assim como nos demais livros,
este procurou reunir e ampliar as discussões realizadas no decorrer do IV Fórum
Trabalho e Saúde: Precarização do Trabalho, Saúde do trabalhador e Invisibili-
dade Social (4FTS2013), ocorrido no dia 22 de Agosto de 2013 no Anfiteatro I e

15
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

no Prédio de Atividades Didáticas da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), em Marília-
-SP. É importante salientar que o 4FTS2013, especificamente, foi promovido em
parceria com o Projeto Tela Crítica/CineTrabalho e contou com o apoio institucio-
nal e financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FA-
PESP) e da Pró-Reitoria de Extensão Universitária da Unesp (PROEX-UNESP).
Considerando que este livro é o resultado ampliado das discussões realizadas no
4FTS2013 e, mais uma vez, fruto dos esforços do MFTS, entendemos que ele, alia-
do às obras anteriores, representa, nesta oportunidade, um terceiro registro docu-
mental e, desta vez, a consolidação de um Coletivo que, desde 2009, efetivamente,
vem preocupando-se em reunir diferentes perspectivas disciplinares e diversas
instituições e entidades em torno do eixo temático “trabalho-saúde”.
A década de 2010, mergulhada nos profundos efeitos da crise do capitalismo
global, decorrentes do big crash financeiro de 2008 – instabilidade econômica, so-
cial e política em escala planetária – apresentou um aviltante cenário para o mun-
do do trabalho, com importantes e negativas ressonâncias e reverberações para a
saúde do trabalhador. Tais ressonâncias e reverberações vêm cronificando ainda
mais, a cada ano, o quadro de saúde física e mental das pessoas-que-trabalham,
tendo como um de seus determinantes a natureza manipulatória do capitalismo
global predominantemente financeirizado, que imprimiu um novo metabolismo
social caracterizado por um processo de desefetivação das individualidades pes-
soais de classe. Esta é a manifestação radical do fenômeno da alienação/estranha-
mento que tem como uma de suas consequências fundamentais, o adoecimento
do homem-que-trabalha, resultado do desmonte da pessoa-humana-que-traba-
lha, o sujeito humano-genérico capaz de “negação da negação”.
Nesta presente obra, procuramos fomentar o debate acerca da temática Tra-
balho-Saúde destacando a invisibilidade social, oriunda da natureza ideológica
do capitalismo, a que os trabalhadores adoecidos estão submetidos, frente à pre-
carização do trabalho como precarização da pessoa humana-que-trabalha. O tí-
tulo do livro sugere a tese de que a miséria humana das pessoas-que-trabalham
decorre, entre outras coisas, da hýbris do capital como sujeito automático da auto-
-valorização do valor. O capital, como o deus Saturno, deus do Tempo na mitolo-
gia romana, é o senhor do Tempo. “Time is Money”, disse Benjamin Franklin. O
capital é movimento voraz que reduz tempo de vida a tempo de trabalho estra-
nhado. Como o deus mitológico Saturno, ele devora seus filhos – o mundo dos

16
A Desmedida do Capital

homens do qual é expressão alienada. Na língua grega, Hýbris significa qualquer


violação da norma da medida e dos limites que o homem deve encontrar nas suas
relações com o outro, com a divindade e com a ordem das coisas. Portanto, Hýbris
de Saturno significa a desmedida do capital como sujeito estranhado do processo
civilizatório que, nas condições da crise estrutural do capital, devora o mundo dos
homens. A maior expressão da desmedida do capital é a predominância do capital
financeiro na dinâmica de valorização da riqueza capitalista. Como reprodução
hermafrodita da riqueza abstrata, o capital financeiro dilacera a Humanidade
proletária – corpo e alma. Esta é a era da barbárie social. Eis a ponta do iceberg das
depressões e adoecimentos físicos e psicológicos que crassam no mundo do traba-
lho hoje. E pior: adquirem o status de invisibilidade social por conta do poder da
ideologia disseminada pelos aparatos sistêmicos do capital hegemônico.
O livro é um conjunto de posicionamentos que assumem um caráter ético,
estético e político no interior da diversidade onto-epistemológica. Por exemplo, já
no capítulo introdutório de Sérgio Augusto Vizzaccaro-Amaral quando este pos-
tula a questão inicial de que, se entendemos que o mundo do Capital é um mundo
de jogo de forças e que por elas expressam-se lutas travadas nas esferas estratifica-
das das formas (Estado, sujeito, cidadão, família, trabalhador etc.), logo, podemos
por meio da interpretação e da avaliação, extrair valores, hierarquizando-os de
maneira a fazer movimentar possibilidades de vida fraca ou forte e então, a partir
disso, levantar as questões sobre: (1) o que se pode ver e sobre o qual se pode falar,
acontece, principalmente, na ordem dos estratos, dos contornos, das formas; e ver
e falar, ou se deixar ver e falar, promove, portanto, o jogo entre captura e fuga e;
(2) se se deixar ver e falar, implica na formalização do jogo da captura-fuga, ao se
instituir um “programa” de defesa e ataque, em meio a tal jogo, corre-se o perigo
de fazer da própria captura uma moeda de troca entre adversários. Desse modo,
para o autor, o jogo institucional exige regras, limites, fronteiras e o manejo de
situações que entram, num momento ou noutro, em luta técno-burocrática; isto
é, ao se institucionalizar determinada luta, seja ela uma luta de resistência ou de
incrementação de domínio, as regras já estão dispostas anteriormente; ou seja,
falarmos no binômio Trabalho-Saúde significa compreendermos tal esfera imersa
no conflito Capital x Trabalho.
Os capítulos de Giovanni Alves, Dolores Wünsch & Jussara Mendes e Rober-
to Heloani & Margarida Barreto, que compõem a Seção Temática 1, “Trabalho,
Saúde e Invisibilidade Social”, explicitam a degradação da saúde do trabalhador

17
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

como um fenômeno ocultado socialmente por meio da construção de diferentes


mecanismos de desigualdade sociais presentes no sociometabolismo do capitalis-
mo predatório em que vivemos.
Em seu capítulo “Prometeu adoecido: capitalismo global e adoecimento da pes-
soa humana”, Giovanni Alves tenta decifrar o que chama de A tragédia de Pro-
meteu, em que, nos primórdios do século XXI, não temos apenas a afirmação dos
fenômenos sociais da precariedade salarial da juventude altamente escolarizada (o
precariado) e a precariedade salarial dos velhos-que-trabalham (o gerontariado),
mas temos também a vigência do fenômeno da precarização da pessoa humana-
-que-trabalha, expressa, por exemplo, pelo crescimento dos adoecimentos huma-
nos, principalmente na forma de transtornos mentais depressivos recorrentes, re-
sultado do crescimento do desequilíbrio sociometabólico da vida cotidiana.
Dolores Wünsch & Jussara Mendes explanam sobre “A construção social da
invisibilidade das doenças e mortes relacionadas ao trabalho” e buscam evidenciar
os mecanismos que contribuem para invisibilidade social do processo de saúde-
-doença e trabalho. Situam sua análise tendo como referência as doenças e mortes
relacionadas ao trabalho e apontam as formas e percursos para o desvendamento
dos processos de desigualdades sociais, que incidem sobre a saúde do trabalhador,
uma vez que os mesmos são naturalizados no cotidiano da produção e reprodução
das relações sociais presentes na sociedade capitalista.
Roberto Heloani & Margarida Barreto traçam o que chamam de uma “Brevís-
sima história da legitimação da precarização da saúde do trabalhador no Brasil me-
diante o saber médico-psiquiátrico-taylorista” ao destacarem o processo histórico de
manipulação da subjetividade da classe trabalhadora pelo capital que, consciente
das limitações do discurso médico-psiquiátrico, entabulou um novo discurso de
poder mais adequado às suas necessidades, proveniente da organização do trabalho
e que substituiria o modelo de exclusão pelo de colaboração. Em outras palavras,
efetuou-se a colaboração entre trabalho e capital através de novos métodos científi-
cos de organização da produção e da mente dos que labutam para sobreviver.
Na Seção 2, “Saúde, Subjetividade e Precarização do Trabalho”, Maria Eliza-
beth Antunes Lima, André Luís Vizzaccaro-Amaral, Selma Venco, Liliana Lima e
Bruno Chapadeiro exploram as formas históricas e conjunturais de “captura” da
subjetividade do homem-que-trabalha pela gestão capitalista e suas diferentes for-
mas contratuais e de relações salariais. Para além da esfera da produção, os auto-
res se propõem a analisar os impactos de tal “captura” da subjetividade do (novo) e

18
A Desmedida do Capital

precário proletário moderno também na esfera da reprodução social, o que comu-


mente acarreta numa precarização existencial da pessoa humana-que-trabalha.
Ao tratar das “Dificuldades no reconhecimento das doenças do trabalho e a
invisibilidade social de trabalhadores”, Maria Elizabeth Antunes Lima focaliza
a “nova categoria de trabalhadores” identificada e analisada por André Luís Vi-
zzaccaro-Amaral em seu “A (in)visibilidade dos (in)capacitados para o trabalho”,
explorando um estudo de caso no qual a autora atuou não apenas na elaboração de
um laudo incorporado ao processo judicial como também da perícia do mesmo.
Desta forma, ambos os autores permeiam o eixo temático “trabalho-saúde” com o
propósito de dar visibilidade a uma nova categoria de trabalhadores que se cons-
tituiu na linha de contorno que divide os trabalhadores formalizados dos desem-
pregados, sobretudo a partir da década de 2000, no Brasil. Enquanto Vizzacaro-
-Amaral se debruça na formulação de uma sociologia desta “nova categoria de
trabalhadores”, Antunes Lima visa dar visibilidade à mesma de forma que, como
não conseguem sequer o reconhecimento do nexo entre seus problemas de saúde
e suas condições de trabalho, costumeiramente estão ausentes das estatísticas dos
acidentes de trabalho e se tornam praticamente invisíveis para o sistema, restando
a essa categoria de trabalhadores a via judicial.
Com importantes pesquisas sobre a “Precariedade do trabalho, precarização
da vida: uma análise do trabalho nos call centers”, Selma Venco se propõe a discu-
tir em seu texto as diferentes abordagens do conceito de precariedade e seu conse-
quente refinamento dadas as mudanças conjunturais e, os elementos presentes na
organização do trabalho dos teleatendentes e em que medida estes vivenciam tais
dimensões da precariedade.
Considerando o atual contexto em que se encontram as Instituições de Edu-
cação Superior Privadas de Ensino, Liliana Lima denuncia “Os impactos das con-
dições de trabalho sobre a subjetividade do professor de ensino superior privado de
Campinas” e desenvolve importantes reflexões sobre a Expansão do Ensino Supe-
rior Privado no Brasil e a atual conjuntura desta modalidade de ensino no país.
A autora também se propõe a compreender melhor a relação Trabalho e Subjeti-
vidade que se altera em função das formas de organização do trabalho impostas
pelo modo de produção capitalista. Finaliza com a apresentação dos resultados
expressos deste seu valoroso estudo.
Completando a referida seção temática, Bruno Chapadeiro faz uma breve
análise dos programas comportamentalistas em Saúde e Segurança no Trabalho

19
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

(SST) em seu “Corações e mentes: notas sobre a manipulação da subjetividade


nos programas comportamentais de saúde e segurança no trabalho” em que busca
compreender de que modo a gestão preconiza que os trabalhadores atuem uns na
denúncia dos “comportamentos de risco” e “atos inseguros” dos outros, de modo
que, ao fazê-lo, sentem-se realizados por colaborarem com os princípios e valores
da organização.
Contando com os capítulos de Luiz Salvador & Olímpio Paulo Filho, de Gri-
jalbo Fernandes Coutinho e de Luciana Veloso Baruki, a Seção 3, “Dimensões Jurí-
dico-Administrativas e Saúde do Trabalhador” traz a visão de dois advogados, um
magistrado de segunda instância e uma auditora ligada ao governo federal sobre
a temática “Trabalho e Saúde”, rompendo com a visão positivista historicamente
reafirmada que há dentro da esfera do Direito.
Luiz Salvador & Olímpio Paulo Filho tratam da “Antropoética” que envolve o
indivíduo e o seu fazer responsável na Terra, portanto, como uma ética da huma-
nidade. E, nesse sentido, e no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo que
vivemos, pautado na disjunção, no individualismo exacerbado, no acúmulo de
riqueza em detrimento do bem-estar da coletividade, é necessário pensar em an-
tropoética, ou seja, é necessário pensar na vida, no homem, nos valores essenciais
da pessoa humana. A produção material da humanidade, segundo os autores, tem
sempre de ser destinada ao homem, ao bem-estar da humanidade, e não para o
enriquecimento de uns poucos às custas da saúde de outros. Ou seja, Justiça, na
visão dos autores, é “resguardar a vida e os valores essenciais da pessoa humana”.
Grijalbo Fernandes Coutinho explora a “Terceirização: mortes e mutilações
de trabalhadores nos setores elétrico, petroleiro e da construção civil” com o obje-
tivo de aferir quantitativamente os níveis de acidentalidade relacionada ao traba-
lho terceirizado, em todo o Brasil. Implica com isso na formatação de uma base
de dados capaz de desconstruir os pressupostos falhos das informações que hoje
alimentam parte dos cadastros governamentais. Desse modo, considera ser mais
seguro e confiável examinar o tema de sua discussão em setores econômicos, pois
considera que os elementos da pesquisa podem ser obtidos em fontes primárias
mais específicas ou conferidos diretamente por outros meios asseguradores de
elevado rigor metodológico e conceitual, bem distante do ambiente de transtornos
gerados com base em informações oficiais fornecidas aleatoriamente sem atentar
para o verdadeiro sentido e natureza da terceirização, muito menos para o seu
contributo (ou não) para a acidentalidade do trabalho.

20
A Desmedida do Capital

No capítulo “O amanhecer da reestruturação produtiva: os programas de me-


tas e o recrudescimento dos riscos psicossociais no setor bancário”, Luciana Veloso
Baruki propõe a problematização da questão do assédio moral institucionalizado
que ocorre hodiernamente nos bancos brasileiros. O tema representa um desafio
e a questão já não é exatamente uma novidade, no entanto, a autora consegue
avançar no enfrentamento deste problema, tendo em vista que os adoecimentos,
dias de trabalho perdidos, desajustamento social, dentre diversas outras questões
fazem parte do dia-a-dia do trabalhador que se vê exposto a um ambiente de tra-
balho permeado por velhos, mas sobretudo por “novos” riscos. A autora aponta
que a abordagem destes problemas sob o enfoque organizacional e não sob o pon-
to de vista individual sugere que tais riscos possam ser controlados como qualquer
outro tipo de risco relacionado à saúde e segurança nos locais de trabalho.
Como nos dois primeiros livros, a multidisciplinaridade presente nesta obra,
produzida, mais uma vez, coletivamente a partir dos esforços de importantes pro-
tagonistas e de novos pesquisadores e atores sociais envolvidos com a temática
do “trabalho e saúde”, reflete as múltiplas dimensões do trabalho, reafirmando,
assim, sua centralidade na ontologia do ser social.

Giovanni Alves
André Luís Vizzaccaro-Amaral
Bruno Chapadeiro

21
CAPÍTULO INTRODUTÓRIO
INVASÕES BÁRBARAS

Sergio Augusto Vizzaccaro-Amaral

1. INTRODUÇÃO

Nesse começo, algumas palavras de Nietzsche a respeito do mundo:

um mundo uno e múltiplo como um jogo de forças e de ondas de força,


acumulando-se num ponto e diminuindo num outro; um mar de forças em
tempestade e em fluxo perpétuo, eternamente em vias de mudar, eterna-
mente em vias de refluir, com gigantescos anos de retorno regular, um flu-
xo e um refluxo de suas formas indo das mais simples às mais complexas,
das mais calmas, mais fixas, mais frias às mais ardentes, às mais violentas,
às mais contraditórias, para logo retornar da multiplicidade à simplicidade,
do jogo dos contrastes à necessidade de harmonia, afirmando novamente o
seu ser nesta regularidade de ciclos e anos, vangloriando-se na sacralidade
do que deve eternamente retornar, como um devir que não conhece qual-
quer saciedade, nem desgosto, nem cansaço.

Lendo o trecho acima e nos lembrando das belas telas de Pollock, inevita-
velmente podemos relacioná-los sem que as palavras destoem das imagens em
questão (Jackson Pollock, “Olhos no calor, 1946; “Full Fathom Five”, 1947; “Né-
voa lavanda”, 1950; “Polos azuis”, 1952). Pois o espaço das telas impõe, ao olhar,
um campo dinâmico, por onde as formas esboçam limites para, logo em seguida,
dissolvê-los num jogo de fluxo de cores dissimuladas, linhas irregulares, densida-
des múltiplas e movimentos imprevisíveis. O olhar pode até procurar um ponto
de descanso, mas o ritmo das formas difusas o arranca novamente para o passeio

23
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

tenso ao longo das bordas. Na verdade, as próprias bordas correm o perigo de dis-
solução, tamanha é a força da pintura de Pollock: ela é uma obra aberta.
Enfim, lembrando de Heinrich Wölffilin, o linear, a forma fechada, a pluri-
dade e a clareza, permitem uma imagem mais fortemente ligada aos valores da
medida e da proporção, exatamente estabelecida, e ao rigor formal. Por outro
lado, ações que libertam a imagem da linearidade promovem a inexatidão, o em-
baralhamento, o deslize entre um espaço e outro, onde o olhar se perde em meio
a uma fluidez dispersa.
Diante disso, podemos exercitar o olhar em direção ao caminho mais seguro,
imerso em promessas de acordos e harmonias estavelmente mantidas, pelas quais
os conflitos adquirem a lógica da guerra e da diplomacia, ou podemos sair ao
campo aberto da fluidez, com seu espaço labiríntico, quase informal. É, por um
aspecto, uma escolha, mas escolha envolvida por mundos totalmente diferentes,
povoados por personagens e conceitos basicamente incompatíveis.

2. OS BÁRBAROS

As categorias e os conceitos não possuem um lugar de descanso. Estão sempre


sendo apropriados, traduzidos, atraídos para pólos de significação estranhos à sua
formalização. Da biologia à sociologia, da história à psicanálise e à epidemiologia,
são sempre mudanças de regime e de sentido as ações exercidas. Obviamente, quan-
do um conceito ou categoria passa por um território de significação estranho, ele
se modifica, agrega sentido, se desfaz de outros, muda de regime de relação com
suas próprias fronteiras de ação. Esse processo pode ser extremamente interessante,
mas o interessante nesse caso, não configura nenhuma relação tranqüila. Muito ao
contrário, são sempre por saques que as traduções e as relações acontecem. Pois há,
entre um território e outro, bordas a serem cristalizadas ou desterritorializadas, sob
ameaça da perda das linhas mais duras definidoras de identidades de saber.
As traduções são invasões ou espólios de uma luta surda e muda, somente
travada às claras quando disposta em terreno formal. E “formal”, aqui, quer dizer
“estratificado”, lugar do Estado, das linhas duras, mas também das linhas flexí-
veis ou nômades. A linha dura, a linha da forma-Estado, axiomatizada, diante de
tentativas de rapinas ou de invasões “bárbaras”, sendo estas ondas migratórias ou

24
INVASÕES BÁRBARAS

nômades, aciona o aparelho de segurança de território, com o objetivo de manter,


ou tenta manter, suas fronteiras protegidas. (DELEUZE, 1997)
Mas as ondas passam, assaltam. Primeiramente agindo sobre os lugares mais
indefinidos, situados na indiscernibilidade das bordas, para, num momento se-
guinte, descer às planícies mais férteis e, desse modo, colocar a própria sede de
governo em risco.
Podemos perceber o potencial essencialmente caótico de tais investidas. Lem-
bremos de Kafka e a instalação das hordas em plena praça do palácio imperial:
eles eram estranhos, comiam carne crua etc. É a desterritorialização, a visualiza-
ção de que fronteiras não existem a não ser em termos institucionais, demarcadas
em mapas e acordos entre territórios. Na própria fronteira, em que a realidade
estampa a mistura e o contágio, uma nova língua, um novo modo de movimentar
e de fazer movimentar, nesse “entre” espaços, as coisas se dão em devires, efetua-
ções e contra-efetuações. Isto é, temos um espaço potencialmente liso no seu fun-
cionamento, apesar das estrias e demarcações singulares que aí se formam. Mas se
formam diante de uma inevitável desterritorialização constante. Isso não deve nos
levar a crer na segurança do centro do território, pois as invasões, as misturas, os
devires agem por contágio, e o contágio, como sabemos, obedece a outras linhas
de ação nem sempre previsíveis ou equacionáveis.
Ondas migratórias. Carregadas de violência, por certa desordem, por pânico,
num momento seguinte, percebemos suas intenções migratórias, sua vontade de
integração ao centro do império. São migratórias, apenas. Desejam a cidadania,
desejam a obediência às leis do Estado ao qual investiram suas forças. Os romanos
temiam as invasões efetuadas por bandos compostos por mulheres, pois sabiam
de seu desejo sedentário. Portanto, nesse caso, a questão é integrar as diferenças,
fazê-las seguir linhas seguras por onde o controle possa ser exercido com mais ni-
tidez. Apesar da violência, da entrada forçada, a integração permite ainda exercer
a centralidade e assegurar a manutenção do território, ou, até mesmo, alargá-lo.
No final do trajeto, deseja-se, acima de tudo, a paz, a integração. E o processo de
integração pressupõe, exatamente, o inverso da diferenciação: integrar sob uma
determinação geral as diferenças e as singularidades potenciais. Na verdade, na
integração temos o movimento sempre em direção ao centro. Temos sempre uma
emissão de sentido capaz de domar as diferenças pela descaracterização daquilo
que se mostra estrangeiro, principalmente pela imposição de um regime de signos
aparelhado: a sobrecodificação.

25
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Mas não podemos nos esquecer de outro tipo de investida. Não são hordas
migratórias, pois não desejam a permanência, nem a obediência e nem mesmo
qualquer gratificação em troca de uma suposta aceitação de regras. As hordas
nômades invadem, saqueiam, incendeiam e partem para outros lugares. São rápi-
das, pois não se prendem aos lugares saqueados, não constroem ou reconstroem
aldeias devastadas, não se protegem em fortificações. A diplomacia, se é que pode-
mos chamá-la assim, que tais hordas exercem não se faz por regras claras e obede-
cem a outros códigos muito mais próximos da vida em combate que de uma vida
sedentária. Elas vêm e vão de acordo com as necessidades. Elas tão rapidamente
chegam como partem, e em seu rastro ficam apenas as mudanças provocadas pelo
fogo de suas investidas. De todas as relações, essas são as mais potentes, pois na
reação do Estado em função do perigo e do caótico, ele é forçado a mudar; ele
também recebe uma gigantesca carga de força que o impele em outras direções:
desterritorialização constante, imprimindo uma tonalidade muito distante da li-
nearidade clara e facilmente visível das demarcações.
Mas não nos esqueçamos de que tais processos não se dão de maneira es-
trondosa, por meios de encontros estabelecidos via institucional, como as reu-
niões entre representantes de diversos territórios. Diferente dessas formalidades
ancoradas em regras de conduta, o limite se faz pelo diferencial, pelo traçado da
tangente, pela variação e pela aposta em singularidades determináveis, mas não
determinadas.
O limite, portanto, não contém apenas uma fronteira, mas um espaço em vias
de indeterminação. Daí nosso interesse pela pintura de Pollock. Nela, o espaço
se compõe de maneira diferencial, a partir de vizinhanças, com linhas nômades,
livres de uma determinação evidente, ao mesmo tempo em que se mostra vigo-
rosa em suas relações determináveis. Não vemos repartições definidas. Tudo flui
numa luta por territórios e pela imposição de desterritorializações inevitáveis. As
cores formam regiões imprevisíveis, às vezes ameaçando umas as outras pelo uso
de complementares, às vezes entrando em consonância a partir do traçado das
linhas flexíveis ou nômades. Também podemos ver os endurecimentos, as zonas
de segurança, as imposições de sentido, a sobrecodificação.
Primeira questão: O que se pode vêr e sobre o qual se pode falar, acontece, prin-
cipalmente, na ordem dos estratos, dos contornos, das formas. E vêr e falar, ou se
deixar vêr e falar, promove, portanto, o jogo entre captura e fuga.

26
INVASÕES BÁRBARAS

3. ABERTURA DO CAMPO DE POSSÍVEIS: O POSSÍVEL E O


REALIZÁVEL

A questão que vimos perseguindo é fundamentalmente fazer aparecer a hete-


rogeneidade onde a unidade se apresenta como saída de origem. Na série pela qual
se tem a relação “oposição – militância – ação”, por exemplo, pensamos numa outra
relação envolvendo “intolerável – abertura do campo de possíveis – atualização”.
Esta configuração, que parte do “intolerável”, nos permite estabelecer a di-
ferença na origem, por desarticular o sentido dado à idéia de Unidade por meio
da idéia de Acontecimento. A unidade, no nosso caso, não parte do princípio de
conformação entre diferenças. Ao contrário, é pelo Acontecimento que buscamos
a constituição da unidade enquanto relação, enquanto esfera problemática, por
onde singularidades são postas em séries. Assim, a unidade se dissolve em meio
às singularidades postas em relação, e não mais se mostra a partir de pactos mo-
mentâneos entre forças antagônicas estrategicamente dispostas diante do enfren-
tamento de algum inimigo comum. Este ponto é fundamental. Não há mais o
acordo, a harmonização das forças políticas, como se faz em momentos de guerra,
quando pactos são estabelecidos por meio de alianças. Pois isto já seria por demais
“Estado”, por demais acabado e constituído. Muito diferente disso, ao termos o
Acontecimento animando nossas entradas na esfera da constituição do campo de
lutas coletivas, a unidade sempre se desfaz no jogo dos agenciamentos das séries
de singularidades.
O importante, portanto, é desarticular o momento constituinte da lógica do
Estado. Assim, para continuarmos, é preciso refinar o conceito de Acontecimento.
Como explica Deleuze (1997, p. 103)

A neutralidade, a impassibilidade do acontecimento, sua indiferença às de-


terminações do interior e do exterior, do individual e do coletivo, do parti-
cular e do geral etc., são mesmo uma constante sem a qual o acontecimento
não teria verdade eterna e não se distinguiria de sua efetuações temporais.
E devemos nos ater à “indiferença” do acontecimento no que se refere às
determinações do interior e do exterior, do individual e do coletivo, do
particular e do geral. Isto é, o acontecimento não possui um momento no
presente, não se dá encarnado em grupos e nem se faz pelas lutas delimi-
tadas e formalizadas nas forças políticas. Ele é, essencialmente, informal.

27
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Ele é, fundamentalmente, alheio aos acordos e desacordos estabelecidos,


apesar se apresentar, nesse contexto, a partir da batalha. Mas é sobretudo
porque a batalha sobrevoa seu próprio campo, neutra com relação a todas
as suas efetuações temporais, neutra e impassível com relação aos vence-
dores e vencidos, com relação aos covardes e aos bravos, e por isso tanto
mais terrível, nunca presente, sempre ainda por vir e já passada, não po-
dendo então ser captada senão pela vontade que ela própria inspira ao anô-
nimo, vontade que é preciso sem dúvida chamar “de indiferença” em um
soldado mortalmente ferido, que não é nem bravo nem covarde e não pode
mais ser vencedor nem vencido, de tal forma além, mantendo-se lá onde se
dá o Acontecimento, participando assim de sua terrível impassibilidade.
“Onde” está a batalha? Eis porque o soldado se vê fugir quando foge, saltar
quando salta, determinado a considerar cada efetuação temporal do alto
da verdade eterna do acontecimento que se encarna nela e, infelizmente, na
sua própria carne. (DELEUZE, 1997, p. 55)

A bela imagem descrita por Deleuze, expressa bem o sentido que queremos
fazer aparecer. Muito diferente daquela oposição marcada já pela efetuação nas
correntes políticas heterogêneas, compostas em unidade diante de um Estado au-
toritário, ou dispostas em conflito com os modelos assistenciais, o Acontecimento
liberta a análise e a remete a outras esferas mais diluídas e em movimento, somen-
te freado quando se faz as avaliações dos fatos, das falas e dos relatos.
A emergência de questões, portando, para nos inserirmos nesse momento de
constituição de problemas, precisa ser pensada em termos de acontecimento, em
termos de algo que, ao invés de possuir um delineamento assentado em posições
políticas, em primeiro lugar exerce o poder de fazer ver algo de intolerável, de ab-
surdo. Um acontecimento que tem o poder de problematizar um tempo, de abrir
um imenso campo de possíveis, uma virtualidade de tal modo tão potente, que é
capaz de exigir a criação de novas possibilidades de vida.
O acontecimento, enquanto ação política, se expressa por um duplo devir: ao
mesmo tempo em que ele inaugura um processo de experimentação, ele exige que
essa experimentação seja efetuada a partir de agenciamentos, dispositivos e insti-
tuições. O acontecimento, ou a emergência de um campo por onde se movimen-
taram novas abordagens, novas propostas ou novas possibilidades de se ver e falar
sobre a vida, se faz, primeiramente, abrindo um campo problemático, sob o qual

28
INVASÕES BÁRBARAS

se articularam idéias, conceitos, territórios disciplinares, reativações de conceitos


e a criação de novos, além, é claro, das inevitáveis relações produtoras de hibridis-
mos sempre tensos. E a importância de relacionarmos o acontecimento com a for-
mulação de problemas, com sua esfera de problematização, nos permite arrancar
o impacto diante do intolerável de reduções subjetivas, individuais ou de posicio-
namentos teóricos ou políticos. Portanto, como acontecimento, o problema possui
certa objetividade impessoal, uma “neutralidade”, como na descrição da batalha, e
os seus elementos podem ser pensados para além das dicotomias entre indivíduos
ou grupos. Dessa forma, a questão do problema e do problemático extrapola as
esferas do individual e do coletivo, dos posicionamentos políticos antagônicos, ou
dos fatos arrumados no tempo da História, sendo tais esferas mesmas, espécies de
soluções dos próprios problemas. De acordo com Deleuze (DELEUZE, 1997, 57),

O modo do acontecimento é o problemático. Não se deve dizer que há acon-


tecimentos problemáticos, mas que os acontecimentos concernem exclusi-
vamente aos problemas e definem condições. [...] O acontecimento por si
mesmo é problemático e problematizante. Um problema, com efeito, não é
determinado senão pelos pontos singulares que exprimem suas condições.

E é nesse espaço, em que as problematizações foram postas em movimento,


que podemos entender quais tendências começaram a se esboçar, quais tonalida-
des iniciaram seus domínios, subjugando as multiplicidades ao seu redor. Mais
que um movimento claramente desenhado, com linhas delimitando fronteiras
claras, a abertura do campo de possíveis permite a emergência de possibilidades,
que são logo gerenciadas ou em função de efetuações (sejam elas agenciadas ou
não em torno dos projetos políticos estabelecidos), ou em função da oposição aos
modelos existentes e das tentativas de unificação em instituições.
Daí a importância em entender a efetivação dos possíveis. Ou melhor, enten-
der como se dá as apropriações das singularidades postas em relação pelo aconte-
cimento-problema, e de como as apropriações conjugam movimentos conflitantes
entre um jogo de captura e de fuga.
Se é um objetivismo e uma neutralidade aqueles que animam as relações entre
as singularidades, o problema, portanto, se concentra na forma dessas efetuações,
em como haverá a encarnação dessas singularidades. Deleuze (1997) nos fala de
cinco características principais que movem esse mundo de singularidades:

29
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Em primeiro lugar, as singularidades-acontecimentos correspondem a


séries heterogêneas que se organizam em um sistema nem estável nem
instável, mas “metaestável”, provido de uma energia potencial em que se
distribuem as diferenças entre séries. (A energia potencial é a energia do
acontecimento puro, enquanto que as formas de atualização corresponde-
màs efetuações do acontecimento).

A primeira característica diz respeito à heterogeneidade e ao processo de atu-


alização dessas heterogeneidades a partir de um sistema de diferença de “energia”:
o que Deleuze chama de energia potencial e sua atualização. Há uma determinada
imprevisibilidade nisso tudo. Imprevisibilidade que confere ao desejo de efetiva-
ção de projetos programáticos grande grau de idealização. Isto é, entre as relações
e suas atualizações, a diferença se instala, a imprevisibilidade se faz notar, mos-
trando-se impassível frente às necessidades de semelhança e controle entre aquilo
que foi idealizado e aquilo que se realiza. Em outras palavras, entre um projeto
programático e sua efetuação um abismo se instala, desarticulando o que se deseja
daquilo que se realiza ou se pode realizar.
Em segundo lugar “as singularidades gozam de um processo de auto-unifi-
cação sempre móvel e deslocado, na medida em que um elemento paradoxal per-
corre e faz ressoar as séries, envolvendo os pontos singulares correspondentes em
um mesmo ponto aleatório e todas as emissões, todos os lances, em uma mesma
jogada”. Assim, a segunda característica consolida o aleatório e, de certa forma,
a exigência do acontecimento: não há previsão e nem deve haver lugar para a
semelhança.
É importante ressaltar, antes de entrarmos nas estratégias de atualização,
que, não importa quais forem os processos de captura, o acontecimento, com suas
singularidades móveis e seus pontos aleatórios, atualiza-se num único lance. Isto
é, na atualização a semelhança se estilhaça no momento em que se pretende re-
petir o lance, no momento em que se pretende ter nas formas e nos processos
algo de semelhante ao idealizado, mesmo porque o idealizado já foi uma atuali-
zação e já corresponde a uma esfera essencialmente diferente de seus elementos
determinantes.
Em terceiro lugar “as singularidades ou potenciais freqüentam a superfície.
Tudo se passa na superfície em um cristal que não se desenvolve a não ser pelas
bordas”. E é pelas bordas, distribuídas em superfície, sem qualquer relação entre

30
INVASÕES BÁRBARAS

interior/exterior, onde os potenciais expulsam qualquer tentativa de movimento


em direção ao indivíduo, ao sujeito, ao coletivo como emissores dessas relações.
Não há sujeito nem indivíduo, e muito menos o coletivo ou o grupo enquanto suas
derivações, no mundo em que singularidades povoam apenas a superfície.
Pela quarta determinação, tem-se a superfície como o lugar do sentido: “os
signos permanecem desprovidos de sentido enquanto não entram na organização
de superfície que assegura a ressonância entre duas séries (duas imagens-signos,
duas fotos ou duas pistas etc.).” Mas, para que seja possível o sentido, é preciso
antes estabelecer a ressonância na relação entre as séries em movimento na super-
fície. Não são signos, não são proposições nem são significados e, portanto, ainda
estamos longe da esfera dos discursos e de suas territorialidades delimitadas por
fronteiras claras. Ainda não cabe falar de eixos de integração.
Por fim, a quinta característica:

[...] em quinto lugar este mundo do sentido tem por estatuto o problemáti-
co: as singularidades se distribuem em um campo propriamente problemá-
tico e advêm neste campo como acontecimentos topológicos aos quais não
está ligada nenhuma direção. [...] O que permite, como vimos, dar ao “pro-
blemático” e à indeterminação que comporta uma definição plenamente
objetiva, uma vez que a natureza das singularidades dirigidas de um lado, e
sua existência e repartição sem direção, de outro, dependem de instâncias
objetivamente distintas. (DELEUZE, 1997, p. 106-107)

Segunda questão: se se deixar ver e falar implica na formalização do jogo da


captura-fuga, ao se instituir um “programa” de defesa e ataque, em meio a tal jogo,
corre-se o perigo de fazer da própria captura uma moeda de troca entre adversários.

4. SOBRE O PROGRAMÁTICO

Nesse ponto, ao iniciarmos a discussão sobre uma espécie de “saber militante”,


pretendemos, de certo modo, o problema da origem. Isso porque, ao levantarmos
a questão do predomínio do “programático”, queremos trazer para a discussão
sobre o esgotamento do possível como diferença na origem. Em outras palavras,
queremos proceder de modo a vincular o esgotamento do possível ao esgotamento

31
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

da vida enquanto força criativa. Ora, se no esgotamento do possível é o novo que


morre, fazendo vir à tona o passado reeditado pelo “programa”, então o que sobra,
e é o que “sobra” mesmo, nada mais tem com a criação, ou o vigor ativo de uma
vida potente.
Pois é nesse esgotamento, enquanto vitória daquilo que é mais fraco, que
poderemos detectar certas diferenças estratégicas, tanto pelo fato das tensões cria-
das quanto pelas tentativas de unidade impostas aos movimentos de resistência
à captura. Assim, se o “programático” sobrepõe-se ao real, promovendo o esgo-
tamento das possibilidades abertas pelo acontecimento político, o salto do pos-
sível à realização de algum tipo de possibilidade implica no esvaziamento desse
acontecimento.
Deleuze chama isso de voluntarismo na política. Realizar um projeto não pro-
duz nada de novo no mundo, uma vez que não há diferença conceitual entre o
possível como projeto e sua realização: apenas o salto para a existência. E aqueles
que pretendem transformar o real à imagem do que antes conceberam não levam
em conta a própria transformação. Há uma diferença de estatuto entre o possível
que se realiza e o possível que se cria. (ZOURABICHVILI, 2000, p. 337)
Daí a artificialização, pois não mais se atua sobre o real, mas sobre uma ima-
gem do real, sobre aquilo que o projeto estipulou como sendo o real a ser atingido.
E, se se pensou no real nesses termos, através de sua imagem prévia contida no
projeto, sua realização já está marcada pela lógica da semelhança e pela limitação
das ações em prol dessa semelhança: o real enquanto recognição. Aqui as ques-
tões adquirem uma tonalidade de embate político em torno da implementação de
propostas, configurando um espaço de acordos e desacordos frente às decisões
programáticas em nível essencialmente institucional. Lutas que esbarram na ame-
aça de seu esgotamento. E o esgotamento se faz presente, justamente, quando o
“projeto” começa a ser incorporado.
Estamos no espaço do realizável, e não mais do possível. Se o problemático
abre, então, o momento da experimentação, a “solução”, ao contrário, se pensada e
agida em termos de “projeto” a ser realizado, abre-se ao espaço da captura das sin-
gularidades, abre-se ao fechamento dos possíveis em torno de linhas diferenciadas
numa espécie de “topologia”, de espaço topológico, onde percorrem tanto linhas
duras quanto flexíveis, apesar de, mesmo nestas condições, ainda sobrevirem ou-
tras linhas que estão além das demarcações impostas. Estas últimas, que são li-
nhas nômades, expressam outras possibilidades, criando focos de resistência, por

32
INVASÕES BÁRBARAS

meio de ações transversais e recusas em agir, ou despencando sobre si mesmas


num ruir suicida.
E se o programático é o projeto, ele também é “instituição”. Como explica La-
zzarato (2006), imerso pelo universo de Deleuze, as instituições são sempre promo-
vidas sob o processo de captura das multiplicidades: “[...] os indivíduos e as classes
nada mais são do que a captura, a integração e a diferenciação da multiplicidade”.
(LAZZARATO, 2006, p. 61) Isto é, de acordo com esse autor, as instituições se co-
locam como agentes de integração das relações de forças, fixando-as de maneira a
produzirem formas as mais precisas possíveis e com função reprodutiva. E tais rela-
ções de forças traçam linhas de condensação, estabelecendo vizinhanças de paradas
e de desacelerações. É o fazer desacelerar para poder fazer ver formas e fazer falas
sob os limites dos discursos e, portanto, a constituição dos territórios.
No final, tem-se a integração das diferenças, das singularidades pré-individu-
ais, submetidas por determinações gerais, garantindo um mínimo de aglutinação
sobre as diversas tendências locais, no sentido mesmo da integração e da dife-
renciação matemática: “a integração é uma operação que consiste em traçar uma
linha de força geral que passa pelas forças e as fixa nas formas”. (LAZZARATO,
2006, p. 66)

5. A DIFERENÇA NA ORIGEM: UMA QUESTÃO DE VALOR

Voltando às questões próprias de uma genealogia, se na origem não devemos


esperar encontrar uma identidade, se no “começo” o que se vê é a “heterogenei-
dade do que se imaginava conforme a si mesmo” (FOUCAULT, 2000, p. 265), o
que deve nos mobilizar, portanto, é fazer emergir as forças que compõem essa
heterogeneidade: que tipo de vida está em jogo? Assim, enquanto a proveniência
desarticula o “eixo”, trazendo à tona as “mil faces” de sua constituição, a análise da
emergência “designa um lugar de confrontação” (FOUCAULT, 2000, p. 269) em
que estas se mobilizam. Temos aqui a questão da interpretação: determinar quais
forças se relacionam, quais suas quantidades, suas qualidades, quais os sentidos
que tais relações imprimem nas formas que elas delimitam. Envolver-se no pro-
blema da “emergência” e da “proveniência” de determinadas formas, portanto, é,
fundamentalmente, interpretar.

33
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Porém, diferentemente da diferença na origem, o oculto, o velado, o camu-


flado, entram numa dimensão de tempo que se perde e se mistura em matizes de
cores teológicas. E, se pensarmos no caminho traçado até aqui, a grande preocu-
pação está, essencialmente, em se isentar de qualquer ressonância desse tipo, já
que “engrandecer a origem é a suposição metafísica que se põe a germinar quan-
do se considera a História, e que leva a pensar que realmente no começo de todas
as coisas se encontram as coisas mais preciosas e mais essenciais”. (NIETZSCHE,
2005, p. 208)
As coisas são inventadas e o são, sempre, criadas imersas em condições espe-
cíficas, expressando as possibilidades de sua criação. A idéia, neste caso, é buscar
as estratégias, estejam elas onde estiverem. Isto porque nem sempre, ou melhor,
nunca encontramos as condições de aparecimento de determinada forma nela
mesma. É sempre necessário partirmos para outras instâncias, outros terrenos,
muitas vezes.
Mais vale o conceito de invenção, de criação, que, ao contrário da busca pela
pureza do começo, se dedica a identificar os desejos e intenções envolvidos na
formalização de alguma coisa. Por exemplo, quando pensamos no surgimento da
noção de “segurança”, como a conhecemos, não podemos nos esquecer de que ela
só foi possível quando o regime de poder soberano deixou de se focar no território,
na defesa do território, e passou a almejar o espaço a partir da noção de “fun-
cionamento”, de “movimento”, de “integração eficiente entre partes” – não mais
excluir os possíveis elementos perigosos, mas, ao contrário, torná-los visíveis para
fazê-los se movimentar dentro de limites que imprimiam a lógica do “bom fun-
cionamento” (FOUCAULT, 2008). Mais um pouco ainda, a noção de “segurança”
se quisermos um valor na “origem”, precisa ser articulada, não com o incremento
da teoria da soberania, mas na concepção fisiocrata de enfrentamento da realida-
de. Isto é, o jogo foi movido pelo processo que atribuiu aos “elementos danosos”
ao bom funcionamento econômico, cálculos de produção e de trocas e a efetiva-
ção da estatística, com suas possibilidades de generalização e previsão, sempre,
obviamente, apontando os limites críticos de crise e intervenção. “Segurança”,
portanto, mais vinculada ao controle interno e aos cálculos de produtividade que,
necessariamente, à defesa do território propriamente dito contra ameaças exter-
nas. Conservação, produtividade, controle, formatação dirigida a resultados cal-
culados; enfim ações que promovem, mais do que tudo, a produção de uma vida
fraca, já que demarcada por limitações.

34
INVASÕES BÁRBARAS

Enfim, interpretar, mas fazê-lo como busca de estratégias de poder. A questão,


nesse caso, é sempre buscar a estratégia para, logo em seguida, avaliar, estabelecer
quais forças exigem o Estado como fonte de domínio e conformação, quais con-
seguem se libertar desse parâmetro. De certa forma, tal avaliação, nos permitiria
encontrar as tendências mais duras e como elas se relacionam com aquelas mais
flexíveis, além, é claro, tentar encontrar por onde se cavam as brechas, por onde
se desfazem os territórios.
Assim, os sentidos de determinada coisa serão, sempre, a expressão de forças
que dele estao se apropriando atualmente. E os sentidos se colocam de maneira
hierárquica (entre dominados e dominadores): é aí, nessa hierarquia, que consiste
uma parte importante da avaliação – “la hierarchie est le premier résultant du
jugement de valeur” (NIETZSCHE, 2008, p. 289).
Mas a força nunca é um singular, ou algo que se materializa a partir de uma
ação sobre o fenômeno, sobre a forma, sobre uma matéria qualquer, pois não se
pode esquecer que força já é uma relação. E são, sempre, relações de poder, de
domínio e de sujeição, de fazer obedecer e obedecer, jogo. Daí, sendo as forças
um jogo de poder em que se domina e se sujeita, há a condição, que Nietzsche
perseguiu ao longo de seu pensamento, de se extrair as quantidades e qualidades
que constituirão o sentido das interpretações: existem forças dominantes, ativas,
plásticas, criativas, assim como existem forças dominadas, reativas, adaptativas.
Mostrar qual o sentido, quais forças movimentam as formas: mostrar se são for-
mas ou fenômenos adaptativos, reativos, se se esmeram em frear a criação, se in-
crementam a dominação ou se possibilitam a criação e a ação plástica.
Tomar o Estado. Em tal lugar dificilmente poderíamos vislumbrar uma ação
capaz de promover ou potencializar devires criativos, já que as instituições que or-
bitam ao redor de seu eixo, em termos gerais, exprimem a necessidade de controle
e de direcionamento das relações no interior de limites estipulados normativa-
mente. Não tão difícil ver agora, por exemplo, a tendência das relações na forma-
-Estado, como, necessariamente, a expressão de forças reativas: forma que implica
fazer obedecer, em harmonizar diferenças – o que significa que elas devem ser
anuladas e negadas, por meio de violência e correção. É que a forma-Estado já
se expressa pela lógica das forças que se voltam, reagem, que são naturalmen-
te reativas a qualquer coisa portadora de algum risco de desestabilização. Neste
caso, a plasticidade das forças ativas será, inevitavelmente, negada em favor de um
movimento essencialmente conservador. E, assim como o Estado, diversas outras

35
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

formas também funcionam mediante a conservação da ordem e da manutenção


da estabilidade: a família, a escola, a ciência maior, a arte consolidada, as práticas
aceitas socialmente, as tradições, etc.
E se a questão envolve o Estado, mesmo que na esfera da “tomada de posição”
enquanto estratégia de construção de um espaço contra-hegemônico, não se pode
deixar de dizer que tal processo implica, sim, uma possibilidade real de crista-
lização de linhas duras. De acordo com Deleuze: “Uma coisa possui tanto mais
sentido quanto haja forças capazes de dela se apoderarem. Mas a própria coisa não
é neutra, e encontra-se mais ou menos em afinidade com a força que atualmente
dela se apodera.” (DELEUZE, 2001, p. 09).

6. CONCLUSÃO

Por fim, se entendemos que o mundo é um jogo de forças, que por elas expres-
sam-se lutas, e pelas lutas, travadas nas esferas estratificadas das formas (Estado,
sujeito, cidadão, família, trabalhador etc.), podemos, por meio da interpretação e
da avaliação, extrair valores, hierarquizando-os de maneira a fazer movimentar
possibilidades de vida fraca ou forte, então, a partir disso, podemos finalizar com
as seguintes questões, já levantadas acima, mas ainda não trabalhadas:
Primeira questão: O que se pode vêr e sobre o qual se pode falar, acontece, prin-
cipalmente, na ordem dos estratos, dos contornos, das formas. E vêr e falar, ou se
deixar vêr e falar, promove, portanto, o jogo entre captura e fuga.
Segunda questão: se se deixar ver e falar implica na formalização do jogo da
captura-fuga, ao se instituir um “programa” de defesa e ataque, em meio a tal jogo
corre-se o perigo de fazer da própria captura uma moeda de troca entre adversários.
Aqui, o que está em jogo é como pensar as estratégias diante das lutas tra-
vadas: seria interessante fazer-se visível diante de um inimigo, organizando-se
por meio de instrumentalizações institucionais? O jogo institucional exige regras,
limites, fronteiras e o manejo de situações que entram, num momento ou noutro,
em luta tecno-burocrática. Isto é, ao se institucionalizar determinada luta, seja
ela uma luta de resistência ou de incrementação de domínio, as regras já estão
dispostas anteriormente. Há, de certa forma, a delimintação prévia dos caminhos,
como no jogo de xadrez, onde cada peça deve obedecer seu movimento “natural”,

36
INVASÕES BÁRBARAS

inserida num espaço também previamento construído e que seria também “na-
tural” aos movimentos das peças. Neste caso, como estamos tentando dizer, a
visibilidade de cada lugar preeenchido ou não pelas esferas de influência de cada
peça é o que determina as táticas a serem utilizadas. Ganha quem mais dominar
aberturas, várias delas descriminadas em manuais, meio-jogo e final. Obviamente
que, por mais demarcadas que estejam as táticas de jogo, ainda restam possibili-
dades de invenção. Por outro lado, se as possibilidades de invenção existem, elas
exigem uma postura, de “quem” se propõe a tanto, que seja “forte” o bastante para
arriscar ir além do previsto. E ir além do previsto é, de alguma maneira, não se
deixar “ver”. É não propor o esperado, é não agir em espaço demarcado. É ser um
“estrangeiro” em sua própria terra, é talvez, não ter terra nenhuma, é, por fim, ter
no movimento nômade a esfera de sua ação.

REFERÊNCIAS

DELEUZE, G. Lógica do sentido. Ed. Perspectiva, São Paulo, 1994.

______. Nietzsche e a filosofia. Rés- Ed. Porto, Portugal, s. d.

FOUCAULT, M. Ditos e escritos. Vol IV. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2010.

NIETZSCHE, F. La volonté de puissance. Vol I. Gallimard, 2002.

37
SEÇÃO 1
TRABALHO, SAÚDE E
INVISIBILIDADE SOCIAL
CAPÍTULO 1
PROMETEU ADOECIDO: CAPITALISMO
GLOBAL E DEGRADAÇÃO DA PESSOA
HUMANA-QUE-TRABALHA

Giovanni Alves

Com a publicação do artigo “Prometeu envelhecido: velhice e proletarieda-


de” no Blog da Boitempo editorial1, salientamos como candente contradição do
capital global, o surgimento do gerontariado, que, ao lado do precariado, devem
compor a nova multidão de proletários do século XXI. O novo léxico criado por
nós – o gerontariado – diz respeito aos velhos-que-trabalham, pessoas acima dos
60 anos de idade que são obrigadas ao labor cotidiano, muitos deles em situações
de precariedade de vida e trabalho. A inversão da curva demográfica no Brasil
deve aumentar no século XXI o contingente do gerontariado. Naquela ocasião,
utilizamos a figura mitológica de Prometeu como a representação das possibili-
dades humanas. Neste artigo que ora publicamos, intitulado “Prometeu adoecido:
capitalismo global e degradação da pessoa humana”, buscamos salientar outra di-
mensão da tragédia de Prometeu: o adoecimento como produto da desefetivação
humano-genérica produzida pelo novo sociometabolismo do capital nas condi-
ções históricas de sua crise estrutural. Não se trata apenas da afirmação do fe-
nômeno da alienação/estranhamento [Entfremdung] como traço sócio-ontológico
do mundo burguês, salientada por Karl Marx em meados do século XIX (1844),
mas do seu salto qualitativamente novo, instaurando aquilo que podemos conside-
rar como sendo a temporalidade histórica da barbárie social.
Nos primórdios do século XXI, não temos apenas a afirmação dos fenô-
menos sociais da precariedade salarial da juventude altamente escolarizada (o

1 http://blogdaboitempo.com.br/2015/01/19/prometeu-envelhecido-proletariedade-e-velhice-no-
-seculo-xxi/. Acesso em 10/09/2015

41
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

precariado) e a precariedade salarial dos velhos-que-trabalham (o gerontariado),


mas temos também a vigência do fenômeno da precarização da pessoa humana-
-que-trabalha, expressa, por exemplo, pelo crescimento dos adoecimentos huma-
nos, principalmente na forma de transtornos mentais depressivos recorrentes,
resultado do crescimento do desequilíbrio sociometabólico da vida cotidiana. Eis
assim, a tragédia de Prometeu: Prometeu envelhecido (precariado e gerontariado)
e Prometeu adoecido (os lesionados físico e mentalmente do novo e precário mun-
do do trabalho).
Ao utilizarmos a figura mitológica de Prometeu buscamos resgatar a imagem
das (im) possibilidades de desenvolvimento humano nas condições historiadores da
hipermodernidade capitalista. Prometeu é a representação mitológica da potência
humana. “Prometeu adoecido” expressa a percepção das consequências humanas
da “nova precariedade salarial” e do modo de vida just-in-time sobre o mundo dos
homens, produzindo aquilo que denominamos de fenômeno da “vida reduzida”.
O fenômeno do estranhamento adquiriu uma centralidade radical na vida
social. O capitalismo global como capitalismo flexível, baseia-se na constituição,
no interior do mundo social do trabalho, daquilo que denominamos “nova pre-
cariedade salarial” e “modo de vida just-in-time”. Nos primórdios do século XXI,
após “trinta anos perversos do capitalismo global” (1980-2010), cresceu, de modo
significativo, as ocorrências de depressão e transtornos mentais no mundo ca-
pitalista (KEHL, 2009). A era do neodesenvolvimentismo no Brasil (2003-2013)
impulsionou o “choque capitalista” dos últimos dez anos, instaurando o toyotismo
sistêmico (expressão utilizada por nós no livro “O novo é precário mundo do tra-
balho”, Boitempo, 2001), isto é, uma “nova precariedade salarial” (ALVES, 2001;
2013;2014). Constituíram-se novas dimensões do fenômeno da precarização do
trabalho, constituída não apenas pela precarização salarial, mas também pela
“precarização existencial” e pela “precarização da pessoa-que-trabalha”. Deste
modo, o resultado candente do movimento voraz do capital como sociometabo-
lismo, é a deterioração da saúde das pessoas humanas. Portanto, eis o sentido
categorial de precarização da pessoa-que-trabalha (ou precarização do homem-
-que-trabalha - homem como ser humano-genérico).
Na verdade, mais do que nunca, tornou-se perceptível que vivemos numa so-
ciedade do trabalho adoecido tendo em vista a presença crescente de pessoas ado-
ecidas, manifestação vital da desefetivação humano-genérica e explicitação uni-
versal da condição existencial de proletariedade. O crescimento das ocorrências

42
Prometeu adoecido: capitalismo global e degradação da pessoa humana-que-trabalha

de depressão e suicídios, possuem nexo causal com o novo sociometabolismo do


capital no século XXI, assumindo dimensões catastróficas no Brasil como país
capitalista hipertardio. Por exemplo, o relatório São Paulo Megacity Mental Heal-
th Survey, de 2009, demonstrou que a região metropolitana de São Paulo possui
a maior incidência de perturbações mentais no mundo. O estudo feito pela OMS
(Organização Mundial de Saúde) revelou que 29,6% dos paulistanos, e moradores
da região metropolitana, sofrem de algum tipo de perturbação mental. O levan-
tamento pesquisou 24 grandes cidades em diferentes países. Entre os problemas
mais comuns apontados no estudo estão a ansiedade, mudanças comportamen-
tais e abuso de substâncias químicas. Dentre eles, a ansiedade é o mais comum,
afetando 19,9% das 5.037 pessoas pesquisadas. Depois de São Paulo, cidade que
representa o Brasil no estudo, os EUA aparecem em segundo lugar, com aproxi-
madamente 25% de incidência de perturbações mentais. A cidade norte-ameri-
cana utilizada no levantamento da OMS não foi revelada. Além de ser a cidade
com maior incidência de perturbações mentais, São Paulo também aparece na
liderança do ranking de casos graves, com 10% da população afetada. Neste pon-
to, a capital paulista também é seguida pelos EUA, que possui uma incidência de
casos graves de 5,7%. De acordo com os pesquisadores responsáveis pelo estudo, a
alta incidência de perturbações mentais é causada pela alta urbanização associada
com privações sociais. Segundo eles, os grupos mais vulneráveis são homens mi-
grantes e mulheres que residem em regiões de alta vulnerabilidade social. 2
Nossa principal hipótese é que a pletora de adoecimentos no mundo social do
trabalho hoje, diz respeito a nova dinâmica sociometabólica dos locais de trabalho
reestruturados e do modo de vida just-in-time sendo ela – o novo sociometabolismo

2 Em São Paulo, a pesquisa da OMS foi financiada pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo), sob a coordenação da Profa. Laura Helena Andrade, professora do Depar-
tamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, e da Profa. Maria Carmen
Viana, professora do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal do Espírito San-
to. Para maiores informações, ver o site The World Mental Health Survey Initiative - http://www.
hcp.med.harvard.edu/wmh/. Acesso em 10 de setembro de 2015. Em 2009, a equipe da pesquisa
no Brasil publicou um artigo na Revista Brasileira de Psiquiatria intitulado “São Paulo megacity
– um estudo epidemiológico de base populacional avaliando a morbidade psiquiátrica na região
metropolitana de São Paulo: objetivos, desenho e implementação do trabalho de campo” (vide
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462009000400016 – Acesso em
10 de setembro de 2015).

43
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

do capital (o que indicamos como sociometabolismo da barbárie), traço crucial da


crise do trabalho vivo (ALVES, 2011). No caso do Brasil, onde a nova precariedade
social surgiu num cenário de vulnerabilidade social extrema, principalmente nas
metrópoles, mesmo depois de dez anos de governos neodesenvolvimentistas, o
grau da degradação da pessoa humana adquiriu índices catastróficos. Talvez, o
percentual de incidência de transtorno mentais na cidade de São Paulo indicado
neste survey esteja subestimado tendo em vista a natureza complexa da degrada-
ção da pessoa humana-que-trabalha (o que exige uma discussão metodológica
capaz de aferir o caráter do desequilíbrio sociometabólico que afeta a totalidade
viva do trabalho hoje).

DIMENSÕES DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

O que consideramos como sendo a “precarização da pessoa-humana-que-


-trabalha” se distingue efetivamente da “precarização salarial”, forma usual de
precarização do trabalho, objeto de estudo da sociologia (e economia) do trabalho.
O movimento da precarização salarial, impulsionado pelo capitalismo global, al-
terou as condições estruturais de consumo da força de trabalho como mercadoria,
instaurando uma “nova precariedade salarial”, caracterizada pelas novas formas
de contratação flexível e novos métodos de gestão de cariz toyotista. Flexibiliza-
ção contratual e choque de gestão, com disseminação do espírito do toyotismo,
são dimensões articuladas da nova reestruturação produtiva do capital sob a base
tecnológica da revolução informacional. O resultado crucial do novo movimento
reestruturativo do capital é o aumento exponencial da intensificação do trabalho.
Tanto a flexibilização da contratação trabalhista, que se disseminou na Euro-
pa e Estados Unidos a partir da década de 1980; quanto o método de gestão toyotis-
ta acoplado as novas tecnologias informacionais, adotadas nos locais de trabalho
reestruturados nas últimas décadas de capitalismo flexível, constituíram o cerne
da nova reestruturação produtiva do capital que, no caso do Brasil, desenvolveu-se
com o neoliberalismo, a partir da década de 1990, e mais tarde, com o “choque de
capitalismo” do neodesenvolvimentismo (2003-2013). Por exemplo, a flexibiliza-
ção da contratação salarial levou à adoção de várias formas legais de modalidades
flexíveis de contratação. A aprovação do PL 4330 - a Lei das Terceirizações - em

44
Prometeu adoecido: capitalismo global e degradação da pessoa humana-que-trabalha

2015, pode significar a ampliação da nova precariedade salarial no plano da con-


tratação salarial. Na verdade, a terceirização é o exemplo cabal da flexibilização
contratual no mercado de trabalho. Nesse caso, como ocorreu na Europa e nos
EUA, caso se aprofunde a flexibilização contratual no Brasil por meio da afir-
mação, deve crescer, mais ainda, o precariado, a camada social do proletariado
constituída por jovens-adultos altamente qualificados inseridos em condições de
vida e trabalho precários).
Embora lideranças sindicais e políticas se mobilizem contra a precarização
salarial levada a cabo pela disseminação da contratação flexível na CLT (como,
por exemplo, a luta contra a terceirização), não constatamos, por outro lado, um
movimento de crítica - sindical ou política - à disseminação, nos locais de traba-
lho reestruturados (inclusive na administração pública), do outro componente da
“nova precariedade salarial”: a adoção dos métodos de gestão toyotista acoplados
a novas tecnologias informacionais. Apesar do choque de gestão toyotista ser con-
siderado um modo de precarização do trabalho, não existem movimentos sindi-
cais e políticos capazes de disputar efetivamente a gestão nos locais de trabalho
reestruturados tendo em vista que a gestão ainda é uma prerrogativa indiscutível
do capital.
Por trás dos novos métodos de gestão de cariz toyotista existem uma pletora
de valores-fetiches que impregnam a totalidade social, contribuindo, deste modo,
para a proliferação de formas sistêmicas de assédio moral, a violência invisível
do capital contra a pessoa-que-trabalha. Vejamos por exemplo, a utilização corri-
queira nos locais de trabalho reestruturados, da palavra “colaborador” para se re-
ferir aos trabalhadores assalariados. Ela contém uma pesada carga ideológica que
contribui subliminarmente para corroer a subjetividade de classe. Na verdade, ao
utilizar o novo léxico de tratamento de seus subalternos, o capitalista não está ape-
nas sendo simpático com seus subordinados, mas está dizendo para os outros - e
inclusive para si mesmo - que não existem mais “classes sociais” ou mesmo “classe
trabalhadora”. Deste modo, suprimiu-se do horizonte locucional-simbólico dos
sujeitos-que-trabalham, a palavra “trabalhador”, e por conseguinte, a categoria
“trabalho”. Enfim, não percebemos a agressão (e provocação) ideológica ou mes-
mo a violência simbólica que usurpam das pessoas-que-trabalham, sua identidade
de classe. Podemos não perceber que o uso sistemático (e sub-reptícia) da palavra
”colaborador” é, antes de tudo, uma violência simbólica que interdita o reconhe-
cimento da minha condição existencial de subalternidade estrutural à dinâmica

45
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

do capital; e ao não reconhecermos isso, a despercepção léxico-locucional da al-


teridade do Outro assalariado, tornar-se a ante-sala da invisibilidade social da
pessoa-que-trabalha.
No princípio, eles não nos tratam mais pelo nome daquilo que efetivamente
somos - trabalhadores assalariados. Depois, nos tornamos invisíveis socialmente.
Enfim, deixei de ser reconhecido como sujeito-de-direitos. Ao perdermos a dimen-
são simbólica da palavra envolvida com nossos gestos, inclusive gestos de polidez
politicamente correta, particularmente os que têm expressão pública, reforçamos,
muitas vezes sem saber, a mensagem de violência simbólica e invisibilidade social
contra o mundo do trabalho. É por isso que, a rigor, o assédio moral reside tam-
bém - e talvez principalmente - na dimensão simbólica do metabolismo social3.
Na era da crise estrutural do capital - crise de produção e realização do valor - a
precarização estrutural do trabalho tornou-se um movimento inexorável que, como
salientamos acima, não se reduz à precarização salarial - embora esta seja o eixo
crucial da nova ofensiva do capital na produção. A luta contra o desmonte social do
trabalho é uma luta inglória que busca recompor as bases jurídico-políticas da con-
certação social entre capital e trabalho, compromisso social de classe que caracteri-
zou a era fordista-keynesiana. O capital global vive hoje sua etapa de decadência his-
tórica. Como salientou István Mészáros, “a novidade radical do nosso tempo é que o
sistema do capital já não está em posição de conceder ao trabalho seja o que for, em
contraste com as aquisições reformistas do passado”. É por isso que encontramos,
no plano do mercado mundial, um movimento coordenado pela flexibilização da
legislação trabalhista e a disseminação dos valores-fetiche da gestão toyotista basea-
da na administração pelo stress, “captura” da subjetividade, trabalho em equipe e a
lógica gerencialista baseada em cumprimento de metas abusivas.
Essa lógica produtivista que incita a intensificação do trabalho, cria a cultura
do estresse, que reduz tempo de vida a tempo de trabalho. Nessas novas condi-
ções sociometabólicas, a produção tornou-se totalidade social, com a produção
do capital invadindo espaços da vida social. Formas derivadas de valor “coloni-
zam” instâncias do mundo dos homens. A ideologia do desempenho e a lógica da
gestão, que Vincent De Gaulejac denominou doença social, impregna a vida das

3 Vide meu artigo “A vingança de Kant ou Por que o assédio moral é a peste negra do século XXI”:
http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/13/a-vinganca-de-kant-ou-porque-o-assedio-moral-
-tornou-se-a-peste-negra-do-seculo-xxi/. Acesso em 10/09/2015

46
Prometeu adoecido: capitalismo global e degradação da pessoa humana-que-trabalha

pessoas que trabalham. Não se trata apenas de caracterizar a vida social da hiper-
modernidade do capital como sendo “vida líquida”, como fez Zygmunt Bauman,
mas tratá-la como sendo “vida reduzida”, tendo em vista a supremacia do “modo
de vida just-in-time”. Essa sintomatologia da nova modernidade do capital explica
o que Bauman considerou como sendo “cegueira moral”, contribuindo para aqui-
lo que Honneth resgata no conceito de matriz lukacsiana - “reificação” (GAULE-
JAC, 2005; BAUMAN, 2014; HONNETH, 2008).
A nova reestruturação produtiva do capital, em sua etapa de crise estrutural,
implica em mudanças sociais na organização da vida cotidiana para além dos lo-
cais de trabalho reestruturados. Por isso salientamos o fenômeno da precarização
existencial que atinge o mundo social do trabalho. A vida social - ou a qualidade
de vida e saúde dos trabalhadores - tornou-se afetada pelo “modo de vida just-in-
-time”. A pressão da ideologia da gestão toyotista acoplada às novas tecnologias
informacionais - smartphones e tablets conectados às redes sociais e a invasão das
telas digitais de high definition - invadem a vida pessoal, alterando as trocas meta-
bólicas da reprodução social. A precarização das condições de existência humana
no sentido de fragilização e corrosão dos laços sociais, por conta da concorrência e
manipulação de alta intensidade, ao lado da nova precariedade salarial, contribui
para a degradação da pessoa humana-que-trabalha.
Uma das dimensões da crise do sindicalismo é sua incapacidade em criticar
efetivamente a precarização do trabalho que diz respeito ao modo de vida just-in-
-time e suas implicações sociometabólicas que afetam a saúde do trabalhador. Ao
restringir-se tão-somente à crítica da nova precariedade salarial, principalmente
a luta contra a precarização contratual, o sindicalismo expõe seus limites irreme-
diáveis. A luta contra a precarização existencial e a luta contra a precarização da
pessoa-que-trabalha é, acima de tudo, uma luta ideológica. Esta cegueira política do
sindicalismo, decorre das suas dificuldades estruturais em levar a cabo a luta ideo-
lógica, encontrando-se hoje, sindicatos (e inclusive partidos políticos), muito aquém
na capacidade de enfrentamento ideológico contra o capital como metabolismo so-
cial. Enfim, a luta sindical e a luta política têm hoje – e desde sempre - imensas
dificuldades em intervir no metabolismo social do capital movido pela ideologia.
Como a nova ofensiva do capital assume um caráter efetivamente ideológico, devido
à natureza do capitalismo global como capitalismo manipulatório, a luta ideológica
coloca-se hoje, mais do que nunca, como prioritária no campo da luta de classes. A
luta ideológica envolve a disputa por valores e não apenas por ideias.

47
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Nossa principal hipótese é que, em pleno século XXI, o movimento voraz do


capital social total, com a constituição da “nova precariedade salarial”, provocou a
degradação do ser genérico do homem. Não se trata de uma hipótese original, pois
o velho Marx já assinalava no século XIX, a natureza íntima do movimento voraz
do capital como sendo a afirmação radical do estranhamento. Por um lado, a pre-
carização salarial, com a instauração da nova precariedade salarial, que se mani-
festa, por exemplo, com a disseminação da contratação precária e novos métodos
de gestão toyotista acoplada às novas tecnologias informacionais; e por outro lado,
a precarização existencial, com a efetivação do “modo de vida just-in-time” e o
fenômeno da “vida reduzida”, levaram àquilo que denominamos precarização da
pessoa-que-trabalha. Portanto, não se trata apenas de explorar a força de trabalho,
mas principalmente em degradar, como processo sistêmico, a pessoa-que-trabalha
como trabalho vivo (eis a hybris do capital) (ALVES, 2013).

DEGRADAÇÃO DA PESSOA-QUE-TRABALHA E BARBÁRIE SOCIAL

No desvelamento da nova dimensão da precarização do trabalho, resgatamos,


numa perspectiva histórico-materialista, o conceito de pessoa humana-que-tra-
balha. O capitalismo global possui um caráter de “capitalismo catastrófico”, na
medida em que, enquanto capitalismo histórico na etapa de crise estrutural do
capital, tornou-se incapaz de realizar suas promessas civilizatórias, tornando-se,
portanto, uma “máquina de moer gente” (utilizando as palavras de Grijalbo Cou-
tinho quando tratou da terceirização tratando-a como “máquina de moer gente”.)
(COUTINHO, 2015). Entretanto, a ideia de “máquina de moer gente” diz respeito
não apenas a terceirização, mas também à nova lógica da gestão toyotista que,
acoplada a novas tecnologias informacionais, reduz tempo de vida a tempo de
trabalho, instaurando o fenômeno da “vida reduzida”, numa etapa histórica do
processo civilizatório em que as individualidades pessoais de classe estão bastante
complexas no sentido de pessoas enriquecidas.
O processo civilizatório do capital, ao promover a redução objetiva das bar-
reiras naturais, produziu personalidades complexas no sentido de personalidades
enriquecidas pelas possibilidades de realização humano-genérica. O homem mo-
derno é um homem enriquecido por relações sociais múltiplas que o distinguem,

48
Prometeu adoecido: capitalismo global e degradação da pessoa humana-que-trabalha

por exemplo, do homem provinciano, limitado pelo modo de vida da comunidade


local. Foi por isso que Karl Marx e Frederico Engels cunharam na “Ideologia Ale-
mã”, o termo “indivíduos histórico-mundiais” para caracterizar o homem moder-
no. As pessoas-que-trabalham no século XXI são indivíduos histórico-mundiais.
Apesar do movimento do capital em sua etapa histórica tardia reduzir homens e
mulheres a mera particularidade (o que Lukács denominou de “personalidades
imersas em seu particularismo”), a sociedade global constituiu de modo efetivo, o
mercado mundial, produzindo espectros de genericidade humana em-si e para-si.
Nesse caso, trata-se de promessas irrealizadas de emancipação humana contidas
nos sonhos, desejos e utopias de libertação - pessoal ou coletiva.
Deste modo, ao “moer” gente, o capital violenta a dignidade da pessoa huma-
na. A questão é que, sob o capitalismo catastrófico do século XXI, tornou-se inviá-
vel a realização das promessas civilizatórias. Vejamos, por exemplo, o crescimento
da desigualdade social no plano global, salientada por Thomas Piketty no livro “O
capital do século XXI” (PIKETTY, 2014). Nos primórdios do século XXI torna-se
cada vez mais perceptível, a nova etapa histórica de evolução do capital social to-
tal, que se coloca efetivamente contra a totalidade viva do trabalho (utilizando os
termos de István Mészáros no livro “Para além do capital”) (MÉSZÁROS, 2003).
Enfim, não se trata de mera contingência histórica do capitalismo neoliberal. A
degradação radical da pessoa humana-que-trabalha expressa a dinâmica da pre-
carização estrutural do trabalho que diz respeito a nova etapa do desenvolvimento
capitalista caracterizado pela crise estrutural de valorização.
A precarização da pessoa-que-trabalha é expressão superior do fenômeno do
estranhamento, salientado por Georg Lukács no último capítulo da sua obra ina-
cabada (“Para uma Ontologia do ser social”) (LUKÁCS, 2014). Na medida em que
o fenômeno do estranhamento significa a degradação da personalidade humana,
ele remete à degradação da pessoa humana-que-trabalha. O capital usurpa a digni-
dade da pessoa humana de classe. A degradação da personalidade humana expõe
um processo mais radical de alienação/estranhamento provocada por alterações
no metabolismo social da atividade vital do homem. A alienação/desastradamente
provoca a desefetivação do homem como ser genérico. Ocorre a degradação do
sujeito moral. O conceito de pessoa humana diz respeito ao ser humano integral.
Nesse caso, a alienação/estranhamento possui um sentido radical que merece ser
investigado, constituindo assim, o sociometabolismo da barbárie.

49
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

A barbárie social que caracteriza o mundo social do capital no século XXI se


distingue da barbárie política que caracterizou, por exemplo, o século XX (fas-
cismo e terrorismo político) e a barbárie histórica (crueldades e violências sociais
variadas) intrínseca do processo civilizatório do capital. A barbárie social é a bar-
bárie interior das personalidades humanas complexas, expressando a miséria do
presente diante da riqueza do possível. A barbárie interior é a deformação dos sen-
tidos humanos ocasionado pelo movimento do capital como metabolismo social.
É a deformação da alma e a corrosão moral, indiferença, desrespeito, degradação
dos sentidos humanos (cognitivos - percepção e entendimento, e ainda os sentidos
volitivos e estéticos) e o esvaziamento espiritual das massas num estágio mais de-
senvolvido do processo civilizatório, caracterizam efetivamente a barbárie social
do nosso tempo histórico.
O conceito de estranhamento em Lukács remete à densa contradição entre
o desenvolvimento das capacidades humanas, por conta do aumento da produ-
tividade do trabalho social ou redução das barreiras naturais, e a degradação da
personalidade humana (o que caracteriza a barbárie social), por conta da vigência
das relações capitalistas de produção. O estranhamento como fenômeno social
atual inverteu o próprio significado ontológico do processo civilizatório em seu
estágio histórico tardio. O que poderia significar emancipação social, tornou-se
nova servidão humana numa etapa histórica onde as promessas civilizatórias tor-
naram-se universais-concretas. Por exemplo, a inversão do processo civilizatório
foi demonstrada por Marx, quando ele, no livro I de ‘“O Capital”, demonstrou que
o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, com o advento do
sistema de máquinas, não significou a redução da jornada de trabalho, e, portanto,
mais tempo disponível para si; mas sim, pelo contrário, o aumento da produtivi-
dade do trabalho social significou o aumento da extração da mais-valia relativa; e
portanto, aumento da taxa de exploração. A força produtiva do trabalhador coleti-
vo do capital e o desenvolvimento das novas tecnologias de produção voltaram-se
contra o desenvolvimento pessoal do sujeito-que-trabalha. Deste modo, o aumen-
to da capacidade humana de produzir mais, numa menor unidade de tempo, não
se traduziu no usufruto efetivo do tempo de vida disponível, mas pelo contrário,
o tempo de vida se reduziu a tempo de trabalho estranhado - é o que verificamos
no século XXI (MARX, 2014).
Nos “Manuscritos econômico-filosóficos”, Karl Marx caracterizou o fe-
nômeno do trabalho estranhado como sendo o responsável pela degradação do

50
Prometeu adoecido: capitalismo global e degradação da pessoa humana-que-trabalha

ser genérico do homem. O estranhamento bloqueia a expressão da genericida-


de humana. Consideramos que a equação da genericidade humana é dada pela
relação “tempo de vida/tempo de trabalho» (tv/tt). Parafraseando o conceito de
composição orgânica do capital, de Marx, é o que caracterizamos como sendo a
“composição orgânica do ser genérico do homem”. Na medida em que o processo
civilizatório do capital se desenvolveu, em termos objetivos, provocou a redução
das barreiras naturais, criando personalidades humanas complexas. Entretanto,
ao mesmo tempo, por conta da precarização estrutural do trabalho, o tempo de
vida se reduziu, cada vez mais, a tempo de trabalho estranhado, ocorrendo, deste
modo, o aumento do denominador (tt) em relação ao numerador (tv), levando
assim, à redução da composição orgânica da genericidade humana. Ocorreu uma
inversão estranhada que degrada a personalidade humana. É a própria expressão
do estranhamento: o aumento das capacidades humanas no plano da objetividade
social não significou efetivamente a plena emancipação do homem das barreiras
naturais, mas sim, a sua escravidão às mediações de segunda ordem estranhadas
(troca mercantil, dinheiro, Estado político), como diria István Mészáros no livro
“A teoria da alienação em Marx”.
Deste modo, o fenômeno do estranhamento deriva da dominância da pro-
priedade privada e divisão hierárquica do trabalho, dominância histórica que al-
cançou com o capitalismo global sua etapa superior. Esta é a fórmula clássica de
Karl Marx, salientada em seu livro clássico de 1858 (“Contribuição à Crítica da
Economia Política”), onde a propriedade privada constituiu para ele, obstáculo ao
desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, sendo que a principal
força produtiva social, é o próprio homem, não apenas como força de trabalho,
mas como pessoa humana-que-trabalha. O desenvolvimento do capital como re-
lação social predominante na civilização industrial, constituída a partir de fins do
século XVIII na Inglaterra, conduziu à contradição crucial do nosso tempo histó-
rico, a contradição entre capital social total e totalidade viva do trabalho.

MAQUINOFATURA E CAPITALISMO MANIPULATÓRIO

Nas condições históricas do capitalismo global, instaurou-se uma nova for-


ma de produção do capital: a maquinofatura. Depois da manufatura e grande

51
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

indústria, o capital requisita, cada vez mais, não apenas a força de trabalho, mas
o próprio trabalho vivo, a pessoa humana-que-trabalha, o homem integral para
dedicar-se à produção do capital. Enquanto com a manufatura, o capital revo-
lucionou o homem por meio do revolucionamento da divisão manufatureira do
trabalho; e com a grande indústria o capital revolucionou a máquina, base técnica
de produção de mercadorias, com o surgimento do sistema de máquinas; com a
maquinofatura - que outros autores denominaram “pós grande indústria” (Ruy
Fausto), “cooperação complexa” (Francisco Teixeira) ou ainda “hiper-indústria”
(Haddad) - o capital revolucionou a relação homem-máquina por meio daquilo
que se denominou gestão.
Na era da maquinofatura, a lógica gerencialista impregnou a produção como
totalidade social com o advento da quarta idade da máquina (as máquinas in-
formacionais da produção do capital são novas máquinas que envolvem as pes-
soas-que-trabalham por meio da rede social). Enfim, com a nova base técnica da
produção do capital, alterou-se o nexo psicofísico do homem na produção. Deste
modo, exigiu-se um salto qualitativamente novo na natureza da “captura” da sub-
jetividade do trabalho pelo capital, tendo em vista a própria natureza do traba-
lho capitalista do século XXI constituído, de modo predominante, pelo trabalho
imaterial. A maior presença de traços de imaterialidade na produção do capital,
exigiu um nexo psico-fisico que demanda, com maior intensidade, as dimensões
complexas da pessoa humana-que-trabalha (subjetividade, alteridade e individu-
alidade). Na era do “proletário mascate”, quando o trabalho da indústria, servi-
ços e administração pública se impregnam cada vez mais da ação comunicativa,
tornando-se, deste modo, trabalho ideológico, o capital exige mais - no sentido
subjetivo - das pessoas humanas-que-trabalham (entendemos “trabalho ideológi-
co” como sendo um modo da atividade humana laboral que se exerce por meio da
ação comunicativa, isto é, implica uma ação ideológica no sentido de ação sobre
outrem e inclusive, sobre si mesmo no sentido do auto-engajamento pessoal).
O fordismo-taylorismo implicou um modo de ser da “captura” da subjetivi-
dade baseado em contrapartidas salariais - por exemplo, o “compromisso fordis-
ta” destacado por David Harvey no livro “Condição pós-moderna”. A implicação
subjetiva do fordismo-keynesianismo se distinguia efetivamente da “captura”
da subjetividade do trabalho pelo capital operada pelo toyotismo. Com a gestão
toyotista temos um movimento do capital visando mais envolvimento das pes-
soas humanas-que-trabalham. Nos locis mais dinâmicos da produção de valor,

52
Prometeu adoecido: capitalismo global e degradação da pessoa humana-que-trabalha

o capital exerce um movimento de pressão pelo engajamento visando a “captu-


ra” ou manipulação da subjetividade, buscando criar, deste modo, novos laços de
consentimento do operário ou empregado. A “captura” da subjetividade na era do
toyotismo abriu um campo de disputa que implica lutas contingentes e necessá-
rias de resistência às impostações da nova ideologia orgânica do capital.
O espírito do toyotismo disseminou valores-fetiches, que são utilizados na ope-
ração das escolhas morais dos sujeitos humanos na vida cotidiana. Na verdade,
o que caracterizamos como “captura” da subjetividade do trabalho pelo capi-
tal é constituído por processos manipulativos de natureza moral que implicam
decisões dos trabalhadores assalariados intimados a colaborar (a “captura” da
subjetividade diz respeito a um processo peculiar de manipulação - o que deno-
minamos de “manipulação reflexiva”). A manipulação candente do capital - a
manipulação reflexiva - opera no plano linguístico, visando engajar a pessoa-
-que-trabalha no discurso hegemônico. A “captura” da subjetividade implica,
portanto, numa operação, em-si e para-si, de assédio moral, que configura, em
última instância, uma forma de violência simbólica. “Captura” é disputa moral,
que assumiu hoje, uma dimensão que não se reduz meramente aos locais de tra-
balho reestruturados, mas abarcou a totalidade da vida social. Tanto os locais
de trabalho reestruturados, quantos instâncias de reprodução social, tornam-se
territórios de disputa intelectual-moral, onde o capital, como movimento voraz
de envolvimento reflexivo, busca conquistar “corações e mentes”. Trata-se da
“guerra simbólica” que opera no plano da subjetividade, implicando as instân-
cias da consciência, pré-consciência e inconsciente (ou o que consideramos como
“inconsciente estendido”) (ALVES, 2011).
Nesse caso, ao tratarmos da “captura” da subjetividade do trabalho pelo capi-
tal, torna-se mais importante salientar a dimensão da resistência e disputa do que
propriamente a dimensão do consentimento. “Captura” implica movimento de luta
ideológica. Na era do capitalismo manipulatório incrementa-se a luta ideológica e
os campos de disputa pelo intangível - o movimento da “captura” da subjetividade
do homem-que-trabalha. É o aumento da “manipulação reflexiva” - a manipula-
ção de fundo moral - que caracteriza a era do toyotismo. É ela que explica, por
exemplo, o crescimento de adoecimentos laborais de natureza psicológica. Quem
resiste à manipulação reflexiva, no plano contingente, corre o risco de adoecer.
No movimento da “captura”, mente e corpo, sociabilidade e objetivações civiliza-
tórias, são alienadas da pessoa humana-que-trabalha.

53
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

ESTRANHAMENTO E CARECIMENTOS RADICAIS

A lógica da propriedade privada e divisão hierárquica do trabalho inverteu o


sentido do desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho. O aumento
da capacidade humana se voltou contra o desenvolvimento do homem integral. Essa
contradição crucial entre capital e trabalho irrompeu numa época histórica de luta
de classes, onde a disputa ideológica - a disputa pelo intangível (valores morais) - as-
sume dimensões candentes. Nesse processo social de luta, multidões e o povo resis-
tem - coletivamente ou individualmente - à dominação do capital. O que significa
que, contradições objetivas postas pelo movimento do capital social total, libertam
uma pletora de inquietações sociais e carecimentos radicais, postos pela trágica dialé-
tica entre miséria do presente e riqueza do possível. O fenômeno do estranhamento,
ao invés de significar a mera resignação da pessoa humana à sua desgraça histórica,
contém, pelo contrário, um sentido de irrupção pessoal de energias contestatórias
que podem (ou não) serem canalizadas para a dinâmica histórica da luta de classes.
Essa contradição radical entre o movimento do capital social total e a totali-
dade viva do trabalho, explicitada pelo fenômeno do estranhamento, só poderia
ocorrer num alto estágio de desenvolvimento civilizatório. Apesar do fenômeno
do estranhamento ser um fenômeno histórico de longa duração, ocorrendo há
milênios da história humana, inclusive em sociedades pre-capitalistas, o desen-
volvimento intenso e extenso do processo civilizatório do capital no século XXI
deve significar um salto qualitativamente novo na natureza do fenômeno do es-
tranhamento. A degradação da pessoa humana p-que-trabalha assumiu novas
dimensões fenomênicas. Ao lado do fenômeno da “vida reduzida”, que caracte-
rizou o modo de vida just-in-time, temos, por exemplo, a “corrosão do caráter”
(Richard Sennett), “cegueira moral” (Zygmunt Bauman) ou ainda a constituição
da “sociedade do desapreço” (Axel Honneth). Enfim, trata-se de expressões de
negatividade da ordem social burguesa hipertardia que expõem novas formas de
precarização do trabalho como precarização existencial.
Na verdade, existe uma “crise de sentido” no mundo burguês hipertardio, que
provoca um sentimento de carecimento radical, expresso, por exemplo, na frustra-
ção visceral entre possibilidades objetivas de desenvolvimento humano-genérico
e realidade efetiva de degradação humana. Por exemplo, a redução do tempo de
vida a tempo de trabalho na presente etapa do processo civilizatório é o principal
sintoma da frustração existencial de largos contingentes do mundo do trabalho.

54
Prometeu adoecido: capitalismo global e degradação da pessoa humana-que-trabalha

Diante de carecimentos radicais e frustrações existenciais, percebe-se que proli-


feram vias grotescas de escape no plano da adesão individual à formas de irracio-
nalidade social e alienações variadas (a barbárie social manifesta-se pela prolife-
ração do “grotesco” na vida social, isto é, por aquilo que nega o caráter trágico da
existência humana na modernidade do capital, tendo em vista o esvaziamento das
possibilidades objetivas de “negação da negação”).
Existe uma profunda dialética histórica que vincula o fenômeno do estranha-
mento ao fenômeno dos carecimentos radicais e as inquietações sociais provoca-
das pela condição existencial de proletariedade universal. Ao mesmo tempo que
produz fenômenos bizarros de barbárie social (adoecimentos, corrosão de caráter
e cegueira moral), provocando no plano da vida cotidiana, irracionalidades e in-
quietações sociais, o fenômeno do estranhamento impulsiona a luta de classes na
medida em que as energias libertárias da indignação moral e inquietação social
são canalizadas para a luta social e política e não para o desvario social. A luta de
classes é o motor da história, enquanto o desvario social é a reposição histórica da
barbárie que alimenta a dominância do capital.

A PESSOA HUMANA-QUE-TRABALHA

A precarização da pessoa-que-trabalha, ou precarização do homem como ser


humano-genérico, possui múltiplas determinações derivadas da degradação dos
elementos compositivas da pessoa humana. Para nós, toda pessoa humana-que-
-trabalha é composta pelos elementos de subjetividade, alteridade e individualida-
de. Esta divisão da pessoa-de-classe é meramente heurística, pois objetivamente,
a pessoa humana constitui o “homem integral”. O conjunto da pessoa-humana-
-que-trabalha constitui o homem integral. O movimento do capital na medida em
que degrada a pessoa-que-trabalha, precariza ou corrói a subjetividade, alteridade
e individualidade do homem-que-trabalha. É o estranhamento que constitui efe-
tivamente a precarização da pessoa-que-trabalha. Podemos identificar dimensões
da alienação/estranhamento em vários processos sociais que compõem o novo (e
precário) mundo do trabalho.
Por um lado, (1) o processo de “captura” da subjetividade, nexo essencial dos
novos métodos de gestão toyotista, é um modo de manipulação da subjetivida-
de humana - a manipulação reflexiva - que corrói a subjetividade de classe. Na

55
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

medida em que a nova forma de produção do capital - a maquinofatura - exige um


novo modo de relação homem-máquina, expressa na ideologia da gestão, altera-se
o modo de subjetivação do homem-que-trabalha. A “captura” da subjetividade do
trabalho pelo capital é um processo de envolvimento moral e espiritual do homem
com os valores do mercado. É um modo de “assédio moral” de cariz sistêmico, na
medida em que toda “captura” exige escolha moral. Inclusive podemos considerá-
-la uma forma moderna de “servidão voluntária”. A “captura” da subjetividade
do trabalho vivo é um modo de “envolvimento espiritual” na medida em que im-
plica os sentimentos de “religiosidade” do homem integral, isto é, sentimentos de
pertencimento a uma ordem moral superior capaz de dar sentido à ação social
humana. A “captura” torna-se uma crença pessoal que dá um sentido alienado à
atividade produtiva do sujeito-que-trabalha.
Por outro lado, (2) o processo de invisibilização social, provocado pelas novas
formas de precariedade contratual, traço característico do precário mundo do tra-
balho e da nova precariedade salarial, desconectou o tempo presente do tempo fu-
turo, sendo um modo de corrosão da sociabilidade humana. Por exemplo, a invi-
sibilidade social do precariado significou a fratura do reconhecimento deles como
sujeitos de direitos. Constitui também uma forma de negação da alteridade do
Outro. Na medida em que não se reconhece o Outro-que-trabalha como “sujeito
de direito”, oblitera-se um dos traços da modernidade salarial constituída na etapa
de ascensão histórica do capital. Podemos salientar também outro modo de corro-
são da sociabilidade humana na dificuldade de reconhecer o Outro-como-próximo,
tornando-se ele meramente Outro-como-concorrente. O aumento da concorrência
no interior do mundo do trabalho leva o homem-que-trabalha a considerar o ou-
tro como inimigo. Na ordem neoliberal, temos a vigência da “lei da selva” no mer-
cado de trabalho provocada pelos altos índices de desemprego. O homo hominí
lupus é o homem burguês fechado em seu particularismo. Além do metabolismo
social do desemprego contribuir para o aumento da concorrência, fragmentando
laços de solidariedade, a lógica da gestão toyotista também contribui para aquilo
que denominamos de dessubjetivacao de classe. Deste modo, a presença do Outro-
-como-concorrente se impõe. Na equipe, o operário ou empregado torna-se algoz
do outro e de si próprio. Ao colaborarem com o capital, tornam-se patrões de si
mesmo. Ao corroer a dimensão da sociabilidade e alteridade, o capital provocou
a degradação da auto-estima, pois o estresse e a pressão dos valores-fetiches do
produtivismo se exerce não apenas sobre o Outro, mas sobre si mesmo. Muitas

56
Prometeu adoecido: capitalismo global e degradação da pessoa humana-que-trabalha

vezes, o trabalhador alienado em sua dimensão social - tanto a dimensão da cole-


tividade, quanto a dimensão política de ser reconhecido como “sujeito de direito”
- culpa a si mesmo pelo desempenho insuficiente, diminuindo-se diante do po-
der do capital, degradando-se assim, sua auto-estima. A culpabilização da vítima
é um recurso da “captura” da subjetividade, pois ao envolver-se com os valores
do capital, o sujeito-que-trabalha entrega-se de corpo e alma (espiritualidade) à
valores-fetiches estranhos a si. O que significa que, processos de degradação da
pessoa humana estão inter-relacionados em sua efetividade complexa (“captura”
da subjetividade e degradação da sociabilidade – por exemplo).
Finalmente, (3) o processo de redução do tempo de vida a tempo de trabalho,
provocado pelo novo modo de vida just-in-time, oblitera o tempo de vida para si
como espaço para a apropriação de valores civilizatórios (cultura). Deste modo,
temos a degradação da individualidade humana. A correria insana do manage-
ment by stress faz com que as pessoas não tenham tempo e disposição para se
encontrarem com os Outros-como-próximo e apropriarem-se da cultura como
objetivações civilizatórias. A manipulação cultural que produz a imbecilização
cultural e o idiota social é parte compositivas da degradação da individualidade
humana. Enfim, alterou-se a dinâmica do processo de socialização com impactos
na saúde pessoal. O desequilíbrio sociometabólico tornou-se traço característico
da totalidade social subsumida ao espírito do toyotismo. A crise do processo de
individuação corrói o processo de transformação das singularidades humanas em
personalidades únicas. Temos assim, a vigência do individualismo que corrói a
individualidade humana. A multidão solitária e inquieta, imersa em formas de
irracionalidade social ou racionalidades instrumentais adequadas à dominação
do capital, tornou-se uma das características da sociedade do toyotismo sistêmico.

CONDIÇÃO EXISTENCIAL DE PROLETARIEDADE E CONSCIÊNCIA DE


CLASSE

Na etapa histórica de crise estrutural do capital, a contradição histórica radi-


cal é a contradição entre o movimento do capital como capital social total e a huma-
nidade como totalidade viva do trabalho. É no interior desta contradição histórica
radical que ocorre a luta de classes. Marx e Engels na “Ideologia Alemã”, em 1847,
salientaram o surgimento da alienação radical que provocaria a revolução social.

57
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Marx subestimou a força reiterativo da ordem burguesa permeada pelo fetichismo


da mercadoria. Entretanto, seu diagnóstico nunca esteve tão atual no século XXI.
Na temporalidade histórica da crise estrutural do capital temos uma crise civili-
zatória de profundo espectro social, que decorre do movimento da precarização
estrutural do trabalho, onde a dimensão da precarização da pessoa humana-que-
-trabalha está na raiz do fenômeno da barbárie social.
O mundo do trabalho no século XXI - a totalidade viva do trabalho - comple-
xificou-se e universalizou-se, incorporando inclusive camadas médias assalaria-
das inseridas em localizações contraditórias na estrutura de classe (por exemplo,
trabalhadores das profissões ditas liberais, por conta própria ou “autônomos”,
trabalhadores públicos com prerrogativas de poder, assalariados de grandes em-
presas com funções gerenciais, etc.). Contraposta objetivamente à totalidade viva,
complexa, multifacetada, heteróclita é contraditória, temos o capital social total
como poder social estranhado. A condição existencial de proletariedade adquiriu
uma dimensão universal, o que não significa que todos aqueles inseridos nela per-
tençam à classe social do proletariado (ALVES,2009).
Para pertencer à classe social do proletariado, sujeito histórico de “negação
da negação”, torna-se necessário que a categoria social imersa na condição exis-
tencial de proletariedade tenha capacidade de consciência de classe necessária.
Nem todas as categorias sociais imersas na condição existencial de proletarie-
dade, subsumidas ao poder social estranhado do capital social total, tem capaci-
dade de consciência de classe necessário capaz de habilita-los a tornar-se sujeito
histórico de “negação da negação”. Algumas categorias sociais da totalidade viva
do trabalho imersas na condição de proletariedade, encontram-se bloqueadas em
sua capacidade de adquirir, em si e para si, a consciência de classe necessária,
tendo em vista a sua inserção na estratificação social e sua localização contra-
ditória na estrutura de classes. Nesse caso, o fenômeno do fetichismo da merca-
doria tornou-se traço efetivo de bloqueio do processo de subjetivação de classe.
A obnubilação da consciência social pelo fetiche da mercadoria (as posses de bens
simbólicos promovem deslocamentos no campo ideológico, provocando dificulda-
des na identidade de classe). É o que ocorre, por exemplo, com camadas médias
assalariadas que, ideologicamente posicionam-se ao lado das personas do capital,
embora objetivamente pertençam à totalidade viva do trabalho, sendo, portanto,
objetos do movimento voraz do capital no processo de precarização da pessoa

58
Prometeu adoecido: capitalismo global e degradação da pessoa humana-que-trabalha

humana-que-trabalha.4 Deste modo, no processo de contradição histórica entre


o movimento voraz do capital social total que aliena e promove o estranhamento
social, e a humanidade como totalidade viva do trabalho, gênero humano pro-
duto do processo civilizatório do capital, o poder da ideologia opera clivagens
de classe, no interior da totalidade viva do trabalho e no próprio mundo dos ho-
mens. Na verdade, a luta de classes representa a síntese da contradição histórica
radical entre o movimento do capital social total e a totalidade viva do trabalho,
onde a “classe social do proletariado”, homens e mulheres imersos na condição
de proletariedade capazes de, em si e para si, adquirirem consciência de classe
necessária, representa os interesses históricos da humanidade; em contraposição,
por outro lado, à “classe social do capital” e suas personas sociais estranhadas no
interior do mundo dos homens - as personas do capital no interior da totalidade
viva do trabalho são objetos do movimento voraz do capital que degrada a pessoa
humana-que-trabalha. Entretanto, em si e para si, elas são incapazes de adquiri-
rem a consciência de classe necessária tendo em vista que percebem a alienação/
estranhamento como gozo pessoal ensimesmado, tendo, deste modo, uma percep-
ção positiva da sua degradação humano-genérica.

REFERÊNCIAS

ALVES, Giovanni (2011) Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório,
São Paulo: Boitempo editorial.

______ (2000), O Novo (e Precário) Mundo do Trabalho: Reestruturação produtiva e crise do sindicalismo, São
Paulo: Boitempo Editorial.

______ (2009) A condição de proletariedade, Bauru: Editora Praxis.

4 Por exemplo, a categoria social dos magistrados é a prova candente de trabalhadores públicos de
alta reputação social e política, que apesar de serem objetos da precarização do trabalho enquanto
precarização da pessoa humana-que-trabalha, são incapazes, como categoria social da totalidade
viva do trabalho no setor público, em adquirir consciência de classe necessária por conta da sua
posição na estratificação social e localização contraditória na estrutura de classes. A alta remu-
neração, status e prestígio social, e as prerrogativas de mando e poder (divisão hierárquica do
trabalho) impedem - objetivamente - que a categoria social, em si e para si, possa desenvolver a
consciência de classe necessária.

59
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

______ (2013). Dimensões da Precarização do Trabalho: Ensaios de sociologia do trabalho. Bauru: Editora
Praxis.

______ (2014) Trabalho e neodesenvolvimentismo: A nova degradação do trabalho no Brasil. Bauru: Editora
Praxis.

ANTUNES. Ricardo (1999). Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.

BAUMAN, Zygmunt (2001) Modernidade liquida, Rio de Janeiro: Zahar Editora.

______(2014) Cegueira moral: A perda da sensibilidade na modernidade, Rio de Janeiro: Zahar Editora

COUTINHO, Grijalbo Fernandes (2015). Terceirização: máquina de moer gente trabalhadora. LTr, São Paulo.

DAL ROSSO, Sadi. Mais Trabalho! (2008) A intesificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo:
Boitempo Editorial.

GAULEJAC, Vincent de Gaulejac (2005). Gestão como Doença Social: ideologia, poder gerencialista e fragmen-
tação social. Idéias&Letras, São Paulo.

HARVEY, David (1990). Los limites del capitalismo y la teoria marxista. México: Fondo de Cultura Econômica.

______ (1992). Condição pós-moderna – Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural (1992). São Paulo:
Edições Loyola.

______ (2004) O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola.

HONNETH, Axel (2008). Reification. Oxford University Press, New York, 2008.

HADDAD, Fernando (1997). “Trabalho e classes sociais”. Tempo Social – Revista de Sociologia. USP, vol.9,
número 2, S. Paulo.

TEIXEIRA, Francisco e FREDERICO, Celso (2008). Marx no Século XXI. Cortez Editora, São Paulo.

KEHL, Maria Rita (2009). O cão e o tempo: a atualidade das depressões. Boitempo editorial. 2009

LUKÁCS, György (2013). Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo editorial.

MARX, Karl (1996) O Capital – Crítica da Economia Política. Volume I, São Paulo: Abril Cultural.

______ (1985) Capítulo VI, Inédito de O Capital: resultados do processo de produção imediata. São Paulo:
Moraes, 1985.

______ (2004) Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo editorial.

MÉSZÁROS, István (2009). A Crise Estrutural do Capital, São Paulo: Boitempo, 2009.

______ (2002) Para além do capital – Rumo a uma teoria da transição. Campinas/São Paulo: Editora da UNI-
CAMP/Boitempo Editorial, 2002.

PIKETTY, Thomas (2014). O Capital no Século XXI. Record. Rio de Janeiro.

60
CAPÍTULO 2
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA
INVISIBILIDADE DAS DOENÇAS
E MORTES RELACIONADAS AO
TRABALHO

Dolores Sanches Wünsch


Jussara Maria Rosa Mendes

INTRODUÇÃO

O presente capítulo pretende evidenciar os mecanismos que contribuem para


invisibilidade social do processo de saúde-doença e trabalho. Situa a análise tendo
como referência as doenças e mortes relacionadas ao trabalho e aponta as formas
e percursos para o desvendamento dos processos de desigualdades sociais, que
incidem sobre a saúde do trabalhador, uma vez que os mesmos são naturalizados
no cotidiano da produção e reprodução das relações sociais presentes na socieda-
de capitalista.
Apresenta-se, inicialmente, neste texto, o cenário sócio-historico do traba-
lho e das doenças e mortes a ele relacionados, de modo a explicitar os “ângulos
mortos”1 que têm contribuído para tornar invisíveis as desigualdades que se re-
produzem no processo de saúde-doença. Para tal toma-se como referência duas
manifestações inquietantes para a área da saúde do trabalhador quais sejam: as

1 Ângulo morto termo utilizado por Thébaud-Mony(1991); Mendes, J. (1999) para designar zona
que escapa ao campo de visão, ou seja, significa indicar de que existe um perigo dissimulado, sem
visibilidade.

61
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

mortes relacionadas ao trabalho e as doenças de latência, ilustradas pelas doenças


que são produzidas pela exposição do trabalhador ao amianto, sendo esse um mi-
neral cancerígeno. Contudo, ambas manifestações revelam a ausência de reconhe-
cido social, bem como o contexto em que essas são produzidas, caracterizam-se
em cenários de subnotificação e sub-registro dessas ocorrências. Geram assim,
grande impacto nos índices apontados pelas estatísticas, e, portanto, com conse-
quências adversas para o incremento da Política de Saúde do Trabalhador, além de
evidenciarem uma realidade perversa que atinge de forma multidimensional um
número crescente de trabalhadores.
Na sequência da discussão, apresentam-se formulações teórico-metodológica
sobre o método investigativo que norteia o desocultamento da construção da in-
visibilidade do processo saúde-doença relacionada ao trabalho. Discorre-se sobre
a atividade científica, que enseja percorrer diferentes caminhos para o desven-
damento da compreensão sobre a invisibilidade social do fenômeno em estudo.
Ao assegurar o rigor científico e teórico da investigação, busca-se politicamente e
eticamente incidir no enfrentamento do fenômeno.
Ao final do capítulo, apresentam-se algumas considerações sobre o desven-
damento da invisibilidade socialmente construída, possibilitando assim a ressig-
nificação sobre o tema e, potencialmente, evidenciam-se elementos que possam
contribuir com o reconhecimento da necessidade da proteção social com vistas a
garantir o direito à saúde dos trabalhadores.

1. O PROCESSO DE SAÚDE-DOENÇA E TRABALHO SILENCIADO NO


CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO

Historicamente, as doenças e mortes relacionadas ao trabalho se constituem


em expressões da questão social, a qual se encontram arraigadas no desenvolvi-
mento desigual da sociedade moderna. Entretanto suas manifestações, nem sem-
pre estão visíveis socialmente, pois são ocultadas pelas contradições de classe, o
que faz com que seu reconhecimento torne-se produto do enfretamento dessas
contradições.
Um conjunto de mecanismos sociais, políticos, econômicos e culturais obscu-
recem a realidade que envolve as doenças e mortes relacionadas ao trabalho e se

62
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA INVISIBILIDADE DAS DOENÇAS E MORTES RELACIONADAS AO TRABALHO

constituem em diferentes determinantes que contribuem para a construção dessa


invisibilidade.
Os rebatimentos dos processos sociais e institucionais sobre a Saúde do Tra-
balhador demonstram como se constrói a invisibilidade das doenças e mortes re-
lacionadas ao trabalho. São resultantes da complexificação das diferentes formas
de precariedade do trabalho, combinado com a ausência ou ineficiência das ações
e propostas das políticas sociais para o enfrentamento da realidade que emerge
das novas configurações do trabalho.
Diante de fatores como a competitividade exacerbada, a exigência de produ-
tividade, de metas e da priorização do lucro, tem-se a acentuada precarização do
trabalho, ao mesmo tempo em que se intensifica a utilização da força de trabalho
como mera mercadoria a serviço do capital. É nesse ínterim que o trabalhador é
submetido a situações que incidem nas suas condições de vida e comprometem
deliberadamente sua saúde.
Tal situação constitui-se em expressão da precariedade e da precarização da
vida causada pelos processos de desenvolvimento e pela incitação econômica, na
sociedade capitalista contemporânea. Sofre-se com o adoecimento e com o im-
pacto da morte que, aos poucos, vai sendo delineada nos ambientes de trabalho.
A morte pelos acidentes de trabalho e as doenças decorrem de espaços insalubres,
descuidados, nocivos, deletérios. Tem-se o aumenta da fadiga nervosa, da fadiga
psíquica, da ansiedade, da depressão, dos suicídios. Tal quadro é representativo do
quão voraz e perverso pode ser esse sistema, carregando processos que transfor-
mam a vida das pessoas, gerando sofrimento, um sofrimento ampliado que nos
faz sofrer a todos: o sofrimento social (WERLANG, MENDES, 2013).
As mortes relacionadas ao trabalho se constituem num fenômeno, de grandes
repercussões. A ocorrência da morte no ambiente de trabalho como resultado da
crescente precarização e intensificação do trabalho tem atingido o conjunto dos
trabalhadores que vivenciam e sofrem socialmente com o risco real da morte no
seio da produção da riqueza socialmente produzida.
Portanto, as mortes e doenças relacionadas ao trabalho constituem-se, num
fenômeno indissociável ao contexto social marcado pela ampliação da exploração
do trabalho, cujas características atuais da precarização do trabalho, se associam
ao forte controle do trabalho, levando “o trabalhador perder o controle do seu
corpo e de sua mente” (ALVES, 2013, p. 130) e consequentemente de sua saúde. A
reestruturação produtiva que acompanha o desenvolvimento do capitalismo, em

63
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

especial a partir da década de 80, tem contribuído para ampliar o adoecimento re-
lacionado ao trabalho, mas ao mesmo tempo a oculta-las face às diferentes formas
de precarização do e no trabalho ao mesmo tempo em que mantém a culpabiliza-
ção do indivíduo frente as esses agravos.
Nessa contraditória relação, verifica-se o significativo número de doenças e
mortes relacionadas com o trabalho nas estatísticas oficiais, em que pese ainda a
existência de sua subnotificação. Em 2011, foram registrados 711.164 acidentes e
doenças do trabalho, entre os trabalhadores assegurados da Previdência Social,
deixando de fora dessas estatísticas trabalhadores autônomos, empregadas do-
mésticas e trabalhadores do setor público e informal. (BRASIL, 2013). Em feve-
reiro de 2013, dados do acompanhamento mensal de benefícios da Previdência, o
pagamento do benefício por acidente de trabalho e auxílio-doença seguem uma
dinâmica semelhante. A cada sete benefícios concedidos por afastamento por do-
ença relacionada ao trabalho, um é pago por acidente. Nesse aspecto, ainda há de
se considerar o grande número desses benefícios por incapacidade que têm rela-
ção direta com o trabalho, sem que tenham o devido reconhecimento legal. Outra
informação alarmante refere-se aos transtornos mentais; no Brasil, dos 166,4 mil
auxílios-doença concedidos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) cerca
de 15,2 mil são por problemas mentais ou comportamentais. A depressão está no
topo, com mais de 5,5 mil casos, entre episódios depressivos ou transtorno recor-
rente.( BRASIL, 2013)
Em 2013, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou que ocor-
rem 2,3 milhões de mortes por ano relacionadas com a atividade exercida pelo
trabalhador. Dessas, cerca de 2 milhões de mortes referem-se ao desenvolvimento
de enfermidades e 321 mil resultam de acidentes – cerca de “uma morte por aci-
dente para cada seis mortes por doença”. A OIT calcula que a cada 15 segundos
um trabalhador morra por acidentes ou doenças relacionadas com o trabalho e a
cada 15 segundos, 115 trabalhadores sofrem um acidente laboral. (BRASIL, 2013).
As doenças e mortes relacionadas ao trabalho tem se constituído por agravos
relacionados ao contexto de como e onde esse trabalho ocorre, quer seja, durante
e após os períodos de realização de atividade, ou seja, o trabalhador fica exposto
a diferentes agentes nocivos a sua saúde. O estabelecimento, na maioria das situ-
ações, do nexo causal entre agente causador e atividade exercida é silenciado por
meio de diferentes mecanismos que contribuem para a ausência do reconheci-
mento do processo do adoecimento. O silêncio é fruto também de perspectivas

64
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA INVISIBILIDADE DAS DOENÇAS E MORTES RELACIONADAS AO TRABALHO

conservadoras de atenção a saúde do trabalhador que é descontextualizada do


processo social e produtivo que permeia toda a vida do trabalhador. A real apro-
ximação com a relação entre saúde e trabalho acaba por revelar o contexto obs-
curo, no qual se processam os acidentes, as doenças e as mortes relacionadas ao
trabalho, e contribui para romper com perspectivas de que esses são resultantes de
riscos “socialmente” aceitáveis na lógica sociometabólica da produção capitalista.
Nessa intensa dinâmica não poderíamos deixar de lado um dos ângulos mor-
tos que contribui para a construção social da invisibilidade da “ferida social” (Oli-
veira, 2001) que marca essa realidade, a fragmentação institucional com que o
trabalho e a saúde do trabalhador são tratados. Fato esse que “dificulta o conheci-
mento do tema por inteiro e obscurece a percepção das possíveis soluções. Todos
estão atentos aos detalhes, mas distraídos do conjunto” (Oliveira, p. 23, 2001).
Outra dimensão do processo de invisibilidade está as doenças produzidas a
partir de manifestação de sua latência. Verifica-se que, além da ausência do reco-
nhecimento da relação doença e trabalho, essas doenças, fundamentalmente, por
se manifestarem após longos períodos depois da exposição ao agente causador,
resultam na ampliação da desproteção social dos trabalhadores que vivenciam
situações de adoecimento. Toma-se como exemplo as doenças provocadas pela
exposição ao amianto. Isso porque das doenças relacionadas ao trabalho, uma das
que mais tem suscitado preocupação nas últimas duas décadas no mundo são, sem
dúvida, as originadas da exposição ao amianto – uma fibra mineral que, quando
inalada de forma contínua, pode provocar doenças respiratórias, como asbestose,
câncer de pulmão, mesotelioma de pleura, além das muitas outras que podem
levar a morte. Estudos revelam que seu período de latência pode variar de 10 à
60 anos. Milhares de novos casos surgem por ano, como denunciou o Seminário
Europeu do Amianto, realizado na primeira década do século XXI, indicando que
somente na Europa Ocidental, estima-se que o total de mortes relacionadas ao
amianto nos próximos anos poderá exceder a 500 mil. Paradoxalmente, essa reali-
dade é ainda invisível perante o conjunto da sociedade e mesmo para a população
diretamente exposta, em especial, os trabalhadores que utilizam ou utilizaram
o amianto como matéria prima no seu processo de trabalho. Como bem aler-
tou a Conferência sobre o amianto, do Parlamento Europeu realizada em 2005,
há uma verdadeira conspiração do silêncio que precisa ser rompida. Reafirmam
que o amianto permanece como o principal tóxico cancerígeno no ambiente de
trabalho. Além disso, na Europa Ocidental, na América do Norte, no Japão e na

65
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Austrália, está prevista a ocorrência de 20.000 cânceres de pulmão induzidos pelo


amianto e de 10.000 casos de mesotelioma por ano e sentenciaram que, nos países
em desenvolvimento, o risco é ainda maior que nos de economia estável, sendo
que, nesses países, nos próximos 20 a 30 anos, o amianto se mostrará uma “bomba
relógio” para a saúde. (ABREA, 2005)
Esses números revelam uma realidade alarmante e que denuncia a neces-
sidade de amplo controle epidemiológico e mecanismos de reconhecimento da
relação do adoecimento e morte relacionados à exposição ao amianto. Requer o
imediato banimento do uso do mineral, no Brasil, da mesma forma que mais de
40 países já o fizeram.
Por outro lado, se constata, contraditoriamente que em muitos países e em
seguimentos produtivos, que inclui empresas brasileiras, a fase pós-banimento,
que representa um avanço imprescindível no enfretamento das doenças relacio-
nadas ao amianto, vem se constituindo também uma forma de ocultamento da
realidade, na medida que amplia os níveis de desinformação sobre seus agravos.
Soma-se a isso o mascaramento do todo processo de desproteção ocupacional
dos trabalhadores expostos aliado ao não reconhecimento da doença e dos di-
reitos dele decorrentes. (WÜNSCH, 2005). Os trabalhadores expostos e/ou que
estiveram expostos ao amianto vivenciam trajetos de vida, adoecimento e morte
distintos, expostos a precarização do trabalho e a um sistema de proteção social
excludente que não atende e não acompanha o surgimento de novas doenças de-
correntes das rápidas transformações e exigências decorrentes da nova morfolo-
gia social do trabalho.
Portanto, a realidade dos trabalhadores expostos ao amianto, aliada a inú-
meras outras manifestações contemporâneas relacionadas ao trabalho e a saúde,
como por exemplo, as doenças osteomusculares, que também se manifestam em
grande escala, são evidencias da construção social do processo de saúde-doença.
Essa construção social e sua invisibilidade conduzem para a ampla e crescente
precarização da saúde dos trabalhadores.
Contudo, as discussões e as pesquisas desenvolvidas pela área de Saúde do
Trabalhador têm contribuído para a compreensão da vinculação entre o processo,
a organização do trabalho e a saúde dos trabalhadores. Entretanto, Annie Thébaud
Mony (2013) alerta para que esse campo não seja reservado para alguns especialis-
tas saídos dos meios científicos ou médicos, sindicalistas ou associações e menos
ainda pelo patronato, é necessário utilizar-se outras estratégias para denunciar

66
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA INVISIBILIDADE DAS DOENÇAS E MORTES RELACIONADAS AO TRABALHO

esses perigos que estão sendo dissimulados e negados aos quais os trabalhadores
encontram expostos no seu dia a dia.

Aponta para a alternativa que vem sendo desenvolvida “há quinze anos,
formam-se redes com o objetivo de questionar a invisibilidade dos danos
ligados ao trabalho, à terceirização dos riscos e à deslocalização da morte
no trabalho. Uma delas é a Rede Internacional Ban Asbestos, para a proibi-
ção mundial do amianto, que vem cumprindo um grande papel na tomada
de consciência do número de vítimas e para apontar os responsáveis” (Thé-
baud Mony, A.; 2014).

Nesse aspecto, o amplo movimento em torno do banimento do amianto, tem-


-se constituído em mecanismos contra-hegemônico a ofensiva do capital sobre a
saúde dos trabalhadores. Esses movimentos são referências práticas, as que neces-
sitam serem ampliadas e incorporadas a uma agenda pública de luta pela saúde
dos trabalhadores.
Com essa perspectiva e considerando que a produção do conhecimento cien-
tífico acerca do processo de saúde-doença relacionado ao trabalho compõe outra
dimensão contra-hegemônica, discute-se a seguir aspectos teórico-metodológicos
presentes no desocultamento da invisibilidade desse processo.

2. A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA INVISIBILIDADE: APONTAMENTOS


TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Constitui-se como desafio central o percurso metodológico empreendido na


efetivação das pesquisas relativas à saúde do trabalhador para superar as formas
dissimuladas como se apresentam os objetos de estudo. A persistência empírica
requer plena articulação ao método que norteia a construção do conhecimento,
exigindo transitar por caminhos não lineares, percebendo as contradições, e ain-
da, colocando os objetos em conexão dialética com a totalidade histórica, como
afirmam Marx e Engels:

O fato é o seguinte: indivíduos determinados, que como produtores atuam


de um modo também determinado, estabelecem entre si relações sociais e

67
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

políticas determinadas. É preciso que, em cada caso particular, a observa-


ção empírica coloque necessariamente em relevo – empiricamente e sem
qualquer especulação ou mistificação – a conexão entre estrutura social e
política e a produção (MARX; ENGELS, 1987, p. 35).

A implicação fenomênica expressa-se, por vezes, em abstrações que, conco-


mitantemente, escondem o fenômeno e permeiam sua existência em todos os sen-
tidos, contribuindo para mantê-lo na invisibilidade ou para desocultá-lo. Assim,
ao tematizar sobre um objeto produto dessa relação social, verifica-se que ele é
duplamente obscurecido, quer pelo contexto em que o mesmo ocorre, quer seja
muitas vezes, pelo longo período de tempo necessário para a manifestação efetiva
do processo de saúde-doença.
No entanto, a sua própria manifestação é também obscurecida pela ausência
de seu reconhecimento, que ocorre num amplo espectro das relações estabelecidas
no espaço e no tempo. Esses dois fatores contribuem para a construção de uma
realidade que não corresponde ao real, no sentido de que dela não foi ainda abs-
traída de sua essência; desse modo, a apropriação do real reduz-se a um fenômeno
isolado e descontextualizado.
A articulação da ciência com as manifestações subjetivas dos fenômenos e
dos sujeitos sociais e seu papel histórico, constitui-se num permanente desafio de
desocultamento do real, na construção do conhecimento e de intervenção social,
A interpretação do real é um processo complexo e contraditório, em que a
ação do ser humano diante da realidade tende a ser determinada e fragmentada,
e, como bem coloca Kosik (1986), a sua práxis está baseada na divisão do trabalho,
na divisão da sociedade em classes e na hierarquia de posições sociais. Porém,
alerta o autor que essa realidade além de ser multilateral, é divergente para aqueles
que efetivamente determinam as condições sociais e para os que a vivenciam.
A realidade de um fenômeno, portanto, não se manifesta de imediato ao ho-
mem. Esse se revela apenas quando da busca de sua essência, a qual permite su-
perar o mundo da pseudoconcreticidade identificada por Kosik (1986), em que os
fenômenos, os acontecimentos, penetram na consciência dos indivíduos e assu-
mem características de independência e naturalidade. Evidencia ainda o autor que
fenômeno ao mesmo tempo em que indica a essência a esconde.
Assim, para se compreender verdadeiramente um fenômeno, é preciso atin-
gir a sua essência, o que só é possível quando da sua manifestação na própria

68
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA INVISIBILIDADE DAS DOENÇAS E MORTES RELACIONADAS AO TRABALHO

atividade do fenômeno. A abordagem da realidade perpassa diferentes momentos


e movimentos, buscando na história a gênese do processo de saúde-doença, com-
preendendo, a partir de um contexto mais amplo, os seus determinantes e as suas
contradições.
Chama-se atenção para a relação de causalidade presente na análise do pro-
cesso de saúde-doença e trabalho, uma vez que, em meio à realidade objetiva, esse
é, por vezes, estudado de maneira isolada e a investigação recaindo sobre a par-
ticularidade de suas causas e efeitos. Num perspectiva crítica há uma verdadeira
conexão e sobreposição entre ambos.

Causa e efeito são representações que só têm significado como tais aplica-
das a um caso particular; mas, logo que consideramos este caso particular
na sua conexão geral com todo mundo, estas representações encontram-se
e entrelaçam-se na representação da interação universal, na qual causas e
efeitos mudam constantemente de lugar: aquilo que aqui ou agora é causa
torna-se efeito ali ou depois, e vice-versa (ENGELS, 1979, p. 21).

Certamente, o processo de saúde doença e trabalho não advêm de uma causa-


lidade naturalizante, mas se constitui em produtos de relações sociais condiciona-
das ao processo histórico, que tem como força motriz as contradições decorrentes
das relações capitalistas de produção e reprodução social, que se tornam subjeti-
vadas em meio às condições da vida social e material.
O desvendamento dos fenômenos pesquisados, a partir da compreensão de
sua totalidade, impõe a necessidade de se promover a superação de processos so-
ciais naturalizados nas relações sociais. Isso implica na construção de mecanis-
mos sociais que deem visibilidade social aos fenômenos relacionados à Saúde do
trabalhador, enquanto uma contra-hegemonia.
Entende-se, assim, que a construção social da invisibilidade do adoecimen-
to e dos acidentes de trabalho que permeiam a Saúde do Trabalhador é parte de
uma perspectiva teórico-metodológica que tem por premissa articulação do real
numa abordagem que extrapola o plano imediato, mensurável e quantitativo. Nes-
se campo de investigação, essa premissa ganha maior relevância, pois ele é per-
meado por inúmeras contradições sociais, que tornam essencialmente qualitativo
o objeto, a exemplo do que nos diz Minayo: “[...] se falamos de saúde ou doença,
essas categorias trazem uma carga histórica, cultural, política e ideológica que

69
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

não pode ser contida apenas numa fórmula numérica ou num dado estatístico”
(MINAYO, 2000, p. 21-22).
Essas categorias trazem, principalmente, significados que são indissociáveis
da condição em que os trabalhadores se encontram ao estarem suscetíveis de ado-
ecerem pelo e no trabalho. Pensar a conexão e os significados do processo de ado-
ecimento com a vida e trabalho indica que “[...] não desconectamos esse sujeito da
sua estrutura, buscamos entender os fatos, a partir da interpretação que faz dos
mesmos em sua vivência cotidiana” (MARTINELLI, 1994, p. 13).
O processo de desocultamento desses fenômenos estudados materializa-se na
abordagem metodológica da construção social da invisibilidade cujo papel central
é o de explicitar a conexão entre os fatos narrados e a estrutura social, política e
econômica que estão contribuindo de forma direta ou indireta para obscurecê-los.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A CONSTRUÇÃO DA VISIBILIDADE


DO PROCESSO DE SAÚDE-DOENÇA E O DIREITO A SAÚDE DO
TRABALHADOR

O processo de saúde-doença encontra-se ocultado e mistificado pelos dife-


rentes “ângulos mortos”, que representam, justamente, os diferentes mecanismos
e determinantes sociais que contribuem para a invisibilidade dos adoecimentos e
mortes relacionados ao trabalho. As relações sociais de produção, de forma alie-
nada, concebem a força de trabalho como uma mercadoria a ser consumida em
detrimento das condições em que essa se encontra no processo de produção ma-
terial, uma vez que sua incorporação ao capital ocorre de forma alienante e pela
lógica do mesmo.
Outra dimensão nessa análise é o lugar social ocupado pelo objeto de estudo
da saúde do trabalhador e sua importância no conjunto da sociedade. A contra-
ditória relação capital-trabalho permite demonstrar que a invisibilidade sobre as
condições de saúde e adoecimento relacionados com o trabalho são construídas
pela desigualdade social das relações sociais de produção e pelo papel atribuído
ao trabalho no processo de acumulação. A naturalização e fragmentação social da
saúde do trabalhador é parte da dinâmica de focar no indivíduo a responsabili-
dade dos impactos obscurecendo assim, a relação desigual nas diferentes formas

70
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA INVISIBILIDADE DAS DOENÇAS E MORTES RELACIONADAS AO TRABALHO

de compra e venda da força de trabalho, das diferentes expressões e formas de


precarização do trabalho, na atualidade.
As manifestações contemporâneas de precarização do trabalho se constituem
parte da precarização social, que é compreendida como um processo multidimen-
sional da institucionalização da instabilidade que é caracterizada pelo crescimen-
to das diferentes formas de precariedade e de exclusão e como produto da rees-
truturação contemporânea do capital (APPAY E THÉBAUD-MONY, 2000). Para
Seligman (2011), a precarização social conduz a produção da instabilidade social
atingindo os direitos sociais e a, consequente, precarização da saúde.
As mudanças significativas, que ocorreram no último quarteirão do século
XX que envolvem a esfera do trabalho na sociedade, tiveram grandes repercussões
na proteção social. Tais alterações são resultantes das necessidades que emergiram
das novas formas produtivas, as quais alteraram não só a natureza dos seus pro-
cessos, mas principalmente o volume de emprego e as relações de trabalho. Nesse
contexto, o desafio vem sendo o de assegurar a proteção social diante do aprofun-
damento da globalização de mercados com sua flexibilização dos processos de
trabalho, dos produtos e dos padrões de consumo.
A construção dos sistemas de proteção social correspondeu, portanto, histori-
camente aos diferentes estágios do capitalismo e da organização dos trabalhado-
res, com respostas por parte do Estado, expressando uma mediação entre classes
sociais. Assim, o trabalho vem representando a principal forma de proteção so-
cial, suplantando o direito de cidadania. Na atualidade a defesa dos direitos dos
trabalhadores, que representa na sua essência o direito a Saúde, requer um novo
patamar de proteção social. A ofensiva sobre os trabalhadores pelo capital tem
gerado a degradação de sua saúde. Esse fenômeno é ocultado socialmente, por
meio da construção de diferentes mecanismos de desigualdade sociais presentes
no sociometabolismo do capitalismo predatório ( ALVES,2010).
Assim para a garantia do direito a saúde dos trabalhadores, aponta-se para a
necessidade de proposições coletiva de instrumentos de proteção social como par-
te essencial para o enfrentamento das contradições sociais expressas nas doenças
e mortes relacionadas com trabalho. Alia-se a essa busca, a perspectiva da ruptura
com os processos sociais originários das desigualdades econômicas e sociais apro-
fundados pelo atual modelo mundial de desenvolvimento societário e, a realiza-
ção das pesquisas e discussões sobre a saúde do trabalhador com persistência ética
no enfoque critico, interdisciplinar e intersetorial.

71
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

REFERÊNCIAS

ALVES, G. Dimensões da Precarização do trabalho: ensaios da sociologia do trabalho., Bauru: Editora Práxis,
2013.

ALVES, Giovanni. Trabalho Flexível, vida reduzida e precarização do homem-que- trabalha: perspectivas do
capitalismo global no século XXI. In: Saúde do trabalhador no século XXI/ André Luís Vizzaccaro, Daniel
Pestana Mota, Giovanni Alves (org.) - São Paulo: LTr,2011.

ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho: Reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. 1ª reim-
pressão, São Paulo: Boitempo, 2010.

BRASIL, 2013. Previdência Social. Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/estatsticas. Consulta reali-


zada em 25.03.2014.

ENGELS, Friedrich. A Dialética da Natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

KOSIK, Karel. A Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1986.

MARTINELI, Maria Lúcia. O Uso de Abordagens Qualitativas na Pesquisa em Serviço Social. Um instigante
desafio. Caderno do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Identidade - NEPI, São Paulo, n.1, l994.

MARX, Karl; ENGELS, Fridierich A Ideologia Alemã. 6 ed. São Paulo: Hucitec, l987.

MENDES, J. M. R. O verso e o anverso de uma história: o acidente e a morte no trabalho. Porto Alegre: EDI-
PUCRS, 2003.

MINAYO, Maria C. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO;
São Paulo: HUCITEC, 1992.

OLIVEIRA, S.G. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 3 ed.- S. Paulo:LTr, 2001.

SELIGMANN-SILVA, Edith. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez,
2011.

THEBAUD-MONY, A O trabalho mata em silêncio, disponível em www.diplomatique.org.br/print.


php?tipo=ac&id=2043. Acesso em março de 2014

THÉBÀUD-MONY, Annie; APPAY. B. Précarisation Sociale. Paris: Institut de Recherche sur les Sociétes Con-
temporaines, 2000.

WÜNSCH, D. S. A construção da desproteção social do trabalhador, no contexto histórico contemporâneo do


trabalhador exposto ao amianto. Tese (Doutoramento) – Faculdade de Serviço Social, Programa de Pós-Gra-
duação em Serviço Social, PUCRS, 2005.

72
CAPÍTULO 3
BREVÍSSIMA HISTÓRIA DA
LEGITIMAÇÃO DA PRECARIZAÇÃO
DA SAÚDE DO TRABALHADOR NO
BRASIL MEDIANTE O SABER MÉDICO-
PSIQUIÁTRICO-TAYLORISTA

Roberto Heloani
Margarida Barreto

UMA BREVE INTRODUÇÃO:

A exploração da classe trabalhadora pela classe dominante é um fato inegável


e com certeza implica um esforço na manipulação da subjetividade dos que vivem
do trabalho. Esses procedimentos - que são vários - sempre envolveram alguma
forma de apropriação, ungindo o conceito de expropriação ao de dominação.
O controle sobre a vida e as atividades dos trabalhadores no Brasil tem sido
feito através do uso das mais variadas formas de conhecimento. Nas décadas de
1920 e 1930, o saber médico-psiquiátrico e o taylorismo marcaram respectiva-
mente a posição de exclusão da classe trabalhadora via patologismos e culpali-
zações e a de colaboração entre as classes em que os dois sujeitos historicamente
desiguais, teriam agora a possibilidade de progredir mutuamente, eliminando as
disparidades. E assim, temos o inicio da legitimação da opressão moral e simulta-
neamente a manipulação da subjetividade.

73
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

QUANDO A CIÊNCIA LEGITIMA A OPRESSÃO:

O saber médico-psiquiátrico, apesar dos seus esforços, não conseguiu pene-


trar em todos os espaços do cotidiano dos trabalhadores, em particular o da con-
testação política. Embora este saber se utilizasse dos conceitos de normalidade
e anormalidade para tentar isolar os contestadores, não tinha respostas para as
péssimas condições de vida dos trabalhadores. No espaço fabril, cabia ao psiquia-
tra, além da seleção, a orientação e a adaptação profissional. A seleção objetivava
eliminar os psicopatas e consequentemente os riscos de contaminação dos traba-
lhadores sãos. A orientação psiquiátrica visava a alocar os indivíduos nas tarefas
adequadas às suas aptidões mentais. A adaptação pretendia induzir os indivíduos
a se submeterem às determinações e aos ritmos dos trabalhos exigidos.
Assim sendo, a atuação da psiquiatria eugênica nas fábricas brasileiras repro-
duziria os processos de seleção tidos como naturais. Nestes, os indivíduos não
adaptáveis, considerados propensos aos acidentes ou a agitações seriam natural-
mente eliminados. Desta maneira, a psiquiatria converte o proletariado em objeto
de poder, delimita o seu espaço e constrói instrumentos de avaliação e punição,
embora ao nível de discurso se diga neutra e científica e, portanto, equidistante
dos conflitos de classe. Para tanto, os psiquiatras afirmavam visar apenas à racio-
nalidade do trabalho, ao aumento da produtividade e à alegria no trabalho.
Esta formulação psicopatológica das representações do proletariado tinha por
escopo enquadrar o espaço de percepção do trabalhador no interior da empresa em
relação ao conflito. Tal formulação não apenas ignorava os conflitos de classe, mas
os delimitava a espaços específicos relacionados com a não adaptação do trabalha-
dor. Em última instância, esta psicopatologia relacionava o agitador e o contestador
como responsáveis pelo conflito. Estes agitadores se convertiam em degenerados e
anormais mediante discurso psiquiátrico e como tais deveriam ser tratados.
O capital, consciente das limitações do discurso psiquiátrico, entabula um
novo discurso de poder mais adequado às suas necessidades, proveniente da orga-
nização do trabalho e que substituiria o modelo de exclusão pelo de colaboração.
Em linhas gerais, a colaboração entre trabalho e capital, através de novos métodos
científicos de organização da produção, trará benefícios para ambas às classes.
Este é o enfoque taylorista.
Fato é que a preocupação com a cooperação trabalho-capital esteve manifesta
desde o início da difusão do taylorismo no Brasil, por meio de alguns estudos e

74
BREVÍSSIMA HISTÓRIA DA LEGITIMAÇÃO DA PRECARIZAÇÃO DA SAÚDE DO TRABALHADOR NO BRASIL MEDIANTE O SABER MÉDICO-PSIQUIÁTRICO-TAYLORISTA

experiências, por volta do final da I Guerra Mundial. Dentre as primeiras tentati-


vas de implantação da organização do trabalho em bases científicas, destacamos
a conduzida por Roberto Simonsen na construção civil, a partir de 1918. Deste
modo, o taylorismo foi utilizado para recompor a normalidade das relações capi-
tal-trabalho na sociedade. A Administração Científica, deste ponto de vista, per-
mitiu também a difusão de novos mecanismos disciplinares sobre o proletariado,
como, por exemplo, a psicotécnica.
A psicotécnica converteu-se num enunciado de poder desde o momento da
seleção. A necessidade de melhor seleção e treinamento é justificada pela falta de
instrução, carência de características adequadas à racionalidade da produção e até
pela ausência de poupança por parte do trabalhador. Por meio desses enunciados,
o capital responsabiliza a incapacidade do trabalho pelas dificuldades de difusão
da Administração Científica no Brasil. Também, implicitamente, o capital insinua
a urgência de ampliar a constituição de mecanismos de gestão sobre o trabalho.
O discurso higienista das insuficiências genéticas e raciais é substituído pelos
enunciados de incompetência, dos maus hábitos e da falta de instrução. O con-
trole sobre o trabalhador brasileiro se desloca para o plano político, para inibir
as suas reivindicações e desarticulá-lo no espaço da produção. Ao contrário da
proposta originalmente difundida pela Administração Científica, de mediar às
justas reivindicações de ambas as classes pelo estudo de meios mais produtivos, a
administração brasileira encarou aumentos salariais e melhoria das condições de
trabalho como um caso de polícia.
A Administração Científica no Brasil foi utilizada de forma simplificada e até
aparentemente contrária ao conjunto dos princípios desenvolvidos pelo próprio
Taylor. A versão brasileira da Administração Científica absorveu sobretudo as téc-
nicas e conceitos relativos à construção de mecanismos disciplinares de controle
sobre o trabalhador, centralizou as decisões nos segmentos politicamente mais
leais ao capitalista e ainda assegurou os meios para aumentar a intensidade de
extração da mais-valia. O chamado taylorismo caboclo (Segnini, 1986, passim)
afastou-se, portanto, dos princípios fundamentais advogados e propagados pelo
próprio Taylor. Segundo este engenheiro, a prosperidade deveria ser comparti-
lhada por ambas as partes, patrões e empregados, por meio dos benefícios recí-
procos, isto é, o aumento e a melhoria da produção para atender os interesses do
patrão, concomitante ao acréscimo no salário dos trabalhadores. A administração
brasileira, selvagem e anacrônica, utilizou somente alguns princípios e técnicas

75
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

tayloristas de organização da produção, mormente para aumentar a extração de


trabalho não pago e não gerar a dita prosperidade recíproca.
Afonso Carlos Corrêa Fleury, docente na Escola Politécnica da Universida-
de de São Paulo, após ampla pesquisa que envolveu principalmente pequenas e
médias empresas brasileiras, constatou a existência no Brasil de um modelo de
organização do trabalho, que foi denominado Modelo de Rotinização. Embora as
condições políticas, culturais, tecnológicas e macroeconômicas, sejam diversas
das de 1978 - época em que foi desenvolvida esta pesquisa -, percebe-se nitida-
mente qual a herança que nos foi legada da Escola de Administração Científica
ou Escola Clássica, através das palavras do próprio pesquisador na caracterização
deste modelo:

Basicamente, a Rotinização do Trabalho implicava, a nível da fábrica, a


criação de um sistema de apoio à produção que planejasse a tarefa até o
ponto em que esta pudesse ser entregue a uma pessoa desprovida de co-
nhecimento sobre o produto e sobre o processo. As tarefas planejadas desse
modo, simples e individualizadas, permitiram a substituição temporária
(por falta) ou permanente (por demissão) dos trabalhadores. Ao mesmo
tempo, a Rotinização implicava a existência de altas hierarquias para as
tarefas de coordenação.

Procurando entender a lógica desse sistema, admitiu-se que, nessas fábri-


cas estudadas, o principal objetivo a ser atingido pelo esquema de organi-
zação seria evitar o conflito social, relegando a um segundo plano a própria
questão da produtividade. Isso porque, por um lado, do ponto de vista da
empresa, a utilização de um esquema de Rotinização dificultava a organi-
zação dos trabalhadores dentro da fábrica e induzia a rotatividade, o que
não só dava ao trabalhador a impressão de uma permanente transitorieda-
de como também significava a manutenção de baixos níveis salariais. Ao
mesmo tempo, permitia o uso quase indiscriminado de trabalhadores sem
qualificação, sem que houvesse a necessidade de treinamento. Por outro
lado, era um modelo tecnicamente ineficiente. (Fleury, 1985, p.59).

Como se vê, o escopo do “taylorismo caboclo” não foi proporcionar aumentos


salariais aos trabalhadores, objetivando o aumento do consumo e minimizando

76
BREVÍSSIMA HISTÓRIA DA LEGITIMAÇÃO DA PRECARIZAÇÃO DA SAÚDE DO TRABALHADOR NO BRASIL MEDIANTE O SABER MÉDICO-PSIQUIÁTRICO-TAYLORISTA

os conflitos inerentes à luta de classes, como advogava o próprio Taylor. No Brasil,


a ênfase foi nos aspectos pedagógicos - disciplinares, mirando a formação do novo
trabalhador adequado à recente industrialização.
O respeito à fisiologia humana, outro item da proposta taylorista, não foi de-
vidamente considerado, pois o controle dos riscos e fatores ergonômicos sempre
foram habitualmente considerados como dispensáveis enquanto o aumento da
jornada de trabalho e intensificação do ritmo, era uma constante. Como conse-
quência deste paradoxo, assistiremos ao crescimento de inúmeras doenças profis-
sionais e do trabalho, tal como as doenças respiratórias como a tuberculose nos
vidreiros ou a anemia nos sapateiros, devido às más condições de trabalho.

O IDORT, OU O INÍCIO DO GERENCIALISMO TUPINIQUIM:

O Idort (Instituto de Organização Racional do Trabalho) surge em 1931 com


o escopo de centralizar todos os esforços de difusão dos princípios e métodos de
administração científica. O surgimento deste instituto representou para o ideário
dos industriais paulistas o início de uma nova organização social: a sociedade de
consumo de massas. O crescimento e a institucionalização dos princípios taylo-
ristas e surgimento do fordismo, foram vistos pelo capital como os instrumentos
necessários para elevar o consumo da produção por meio da diminuição dos pre-
ços, aumento de salários e eficiência da produção.
Para divulgar estudos, idéias e propostas de interesse do Idort, foi criada a
Revista de Organização Científica cujo primeiro número circulou em janeiro de
1932. A consulta aos periódicos do período 1932-1934 mostra o tipo de orienta-
ção assumida pelo Idort, num momento em que os seus organizadores buscaram
atingir diretamente o empresariado paulista. Os industriais necessitavam da efi-
ciência na produção. Aproveitando a deflação e a estabilidade da taxa de câm-
bio do período 1924/1926, o capital moderniza o parque industrial, importando
máquinas e implementos. Esta importação do capital fixo, entretanto, não elevou
proporcionalmente a produção. Como exemplo, podemos citar a indústria têxtil,
cujo número de teares e fusos cresceu na ordem de 40% enquanto que a produ-
ção evoluiu aproximadamente 3%. Neste contexto, para evitar a queda de preços,
consequência do aumento da capacidade ociosa, os empresários pressionaram o

77
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

governo para a elevação das tarifas aduaneiras a fim de manter altos os preços dos
produtos importados.
A capacidade industrial ociosa acima referida - gerada nos anos 20 -, foi o
produto dos investimentos das grandes fábricas que se preparavam para ampliar
a concentração e centralização do capital. Este modelo concentrador de recursos
foi justificado por permitir o barateamento da produção e a massificação do con-
sumo. O fordismo, em virtude do seu apelo de intensificação da gestão disciplinar
do trabalho e da verticalização da produção, foi utilizado como suporte ideológico
deste modelo de concentração de capital. O fordismo adequou-se muito bem aos
objetivos de elevar o controle sobre o trabalho por parte dos industriais paulistas.
A disciplina dos ritmos de trabalho poderia controlar o desempenho do traba-
lhador em virtude da mecanização dos meios de transporte entre um posto de
trabalho e outro.
A burguesia paulista pretendia ampliar a atuação dos enunciados pedagógicos
de poder com base no dito bem comum. A partir do trabalho, o bem comum seria
atingido por todos os interessados: o consumidor, o trabalhador e o capitalista.
O bem comum geraria também uma sociedade harmônica na medida em que a
distribuição de lucros permitiria a conciliação trabalho/capital. Para a burguesia
paulista, outro aspecto de interesse em relação ao fordismo consistia no discipli-
namento da força de trabalho além do espaço da fábrica.
Para o capital paulista, as experiências de controle sobre o lazer dos trabalha-
dores, como o dopolavoro na Itália, representavam uma alternativa interessante de
dominação sobre as atividades políticas após a jornada de trabalho. Boas leituras,
jogos agradáveis, comedimento moral e assistência social deveriam ser os meca-
nismos de docilização, controle e educação dos operários.
O fordismo na sua versão americana não admitia legislação do trabalho, e, a
partir deste argumento, os industriais paulistas posicionavam-se contrariamente
à introdução da legislação do trabalho de 1926. Este ordenamento consistia em
inúmeras medidas tais como a lei de férias, o código do menor e o seguro contra
as doenças profissionais. Entretanto, acuados pelas pressões do proletariado que
giravam em torno do controle do mercado de trabalho, os industriais paulistas
abandonam a via americana (estado liberal) para adotar as experiências italianas
e alemãs (estado corporativista).
Como consequência deste abandono da via americana, a burguesia indus-
trial paulista reorganizava-se por meio de novas instituições sociais como CIESP

78
BREVÍSSIMA HISTÓRIA DA LEGITIMAÇÃO DA PRECARIZAÇÃO DA SAÚDE DO TRABALHADOR NO BRASIL MEDIANTE O SABER MÉDICO-PSIQUIÁTRICO-TAYLORISTA

(Centro das Indústrias do Estado de São Paulo, fundada em 28 de março de 1928),


FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (em 1930), IDORT (em
1931) e a USP (Universidade de São Paulo, fundada em 25 de janeiro de 1934).
Cada uma destas foi elaborada visando a reordenar um segmento específico da
sociedade dentro de um vasto ideário de reformulação da sociedade para o bem
comum. Este vasto programa voltado para o reordenamento da nação e do inte-
resse público foi estruturado com base no taylorismo e na racionalização (versão
alemã do fordismo). Estas influências manifestam-se com maior intensidade logo
na fundação do CIESP, que defende a gestão estatal da força de trabalho e antecipa
alguns princípios do corporativismo ( Antonacci, 1985).
O apelo ao corporativismo, realizado pelos industriais paulistas, representou
uma proposta de conciliação política no momento de crise. Nos primeiros anos da
década de 30, os reflexos da crise mundial de 1929 atingem o Brasil por meio do
cancelamento dos contratos de exportação de café e o repatriamento dos investi-
mentos estrangeiros. Como consequência, o desemprego, a compressão salarial e a
ruína de médios e pequenos produtores impuseram-se no conjunto da economia.
Em função da crise econômica, a classe operária retoma a ofensiva pelo con-
trole do mercado de trabalho (diminuição da jornada, fixação de pisos salariais,
ritmo de trabalho). O movimento sindical chega a propor o tabelamento de pre-
ços de produtos semelhantes e tais fatos levam o capital a organizar uma contra-
-ofensiva ideológica.
Para organizar este contra-ataque foi necessário elaborar um discurso político
que deslocasse as causas da crise para a desorganização administrativa que gerava o
desperdício de recursos. Afinal, o país possuía vários recursos e bastava administrá-
-los melhor. A partir daí, a luta de classes perdia sentido e poderia ser absorvida.
Não será coincidência que uma das novas instituições voltadas para o bem co-
mum, o Idort, no primeiro número de sua revista apresenta um diagnóstico sobre
a origem da crise econômica. Esta seria o produto da desorganização administra-
tiva e, portanto, a luta de classes seria inútil num país pleno de recursos (IDORT,
Revista de Organização Científica, n°1, 1932).
Após ter relacionado a desorganização administrativa e o desperdício de
recursos como responsáveis pela crise econômica, o discurso racionalizador di-
rige-se para minimizar a luta de classes. Para tanto, reduz os conflitos sociais,
aparentemente produzidos pelas tensões econômicas, às agitações reivindicató-
rias da revolução de 30. Estas agitações são apresentadas, logo em seguida, como

79
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

prejudiciais ao organismo único - o país. Por meio desta estratégia, o discurso


racionalizador do Idort classifica a luta de classes como inútil em um país pleno de
recursos e, por último, alerta que a luta entre as classes enfraquece o país perante a
concorrência internacional. (IDORT, Revista de Organização Científica, n°1, 1932).
O principal instrumento de absorção política da luta de classes dar-se-ia pelo
modelo de racionalização. Este modelo estruturava-se a partir da centralização
financeira e produtiva justificada como necessária para acelerar o circuito de va-
lorização do capital, isto é, acelerar o trajeto de fabricação ao consumo. Tal para-
digma centralizador de capital adequava-se aos interesses da burguesia industrial
que, no final dos anos 20, ensaiava um novo período de crescimento industrial
com base em um modelo centralizador de capital e concentrador da produção.
A racionalização também interessava aos industriais pelo seu aspecto disci-
plinar. Deste ponto de vista, o modelo racionalizador propõe a intervenção do Es-
tado contra as greves, tensões sociais e pequenas querelas trabalhistas. A atuação
do Estado levaria o espaço público e o privado a uma associação racional voltada
para a uniformidade de interesses. Em decorrência disto, a sociedade adquiria
uma configuração alheia a conflitos sociais. A repressão estatal garantiria a base
para a cooperação entre as classes.
A intervenção do Estado permitiria construir um modelo concentrador de
recursos; para os industriais paulistas, interessavam particularmente os subsídios
fornecidos ao setor privado. O financiamento estatal não deveria se opor à cen-
tralização das forças produtivas; ao contrário, deveria auxiliá-las. É conveniente
lembrar que na Alemanha dos anos 30 o termo racionalização se confunde com o
de economia integral. Esta se constituiria a partir do somatório da economia pri-
vada e pública e tal concepção pressupõe também a integração de todas as classes
em único corpo. Um modelo muito adequado ao corporativismo...
Na indústria têxtil, as queixas referentes às condições de trabalho provinham,
na sua grande maioria, das mulheres que representavam uma parcela significativa
do contingente de trabalhadores deste segmento industrial (58%) (Hardman &
Leonardi, 1982). O agravamento das condições de trabalho das operárias era - de
forma constante e sistemática - registrado pela imprensa operária da época que
denunciava aquilo que hoje seria admitido como casos típicos de assédio sexual
(Freitas; Heloani; Barreto, 2008).
Tal fato não se dava por acaso, pois, as mulheres, juntamente com os menores,
constituíam o setor mais desorganizado do mercado de trabalho. Exatamente aí

80
BREVÍSSIMA HISTÓRIA DA LEGITIMAÇÃO DA PRECARIZAÇÃO DA SAÚDE DO TRABALHADOR NO BRASIL MEDIANTE O SABER MÉDICO-PSIQUIÁTRICO-TAYLORISTA

o taylorismo foi empregado para reduzir as tarefas a um conjunto delimitado de


movimentos padronizados e passíveis de controle, além de permitir a incorpora-
ção de um segmento barato e desarticulado ao mercado de trabalho. As fábricas
da família Matarazzo constituem um exemplo significativo desta “ergonomia per-
versa”: chegaram a desenvolver máquinas com a metade do tamanho normal para
serem operadas por crianças operárias...
A Revolução Industrial trouxe a expropriação da força humana pela mecâ-
nica para atender a crescente demanda por todo tipo de mercadorias. O domínio
do saber fazer pelos assalariados dava-lhes certa força reivindicatória perante o
capital. Esta situação se inverte, quando, posteriormente, - numa tentativa bem
sucedida de reorganização da produção no intuito de aumentar os ganhos de capi-
tal-, procurou-se obter o saber fazer da classe que depende de seu suor. Ou melhor,
pesquisou-se – com êxito -, como transformar o saber tácito, idiossincrático, e,
portanto, único e “quase inalienável” em algo passível de assimilação, aperfeiçoa-
mento e reprodução.
Sob a hegemonia do capital, a cultura operária acumulada por décadas, trans-
mitida de geração a geração, é reformulada e reutilizada em favor da expansão do
grande capital. Os grandes modelos de organização do trabalho, frutos desta ló-
gica, foram o taylorismo e o fordismo, em suas várias fases e interpretações, como
acabamos de constatar.
O desemprego e a crescente automação ancorados na possibilidade de criação
de um alucinante trabalho industrial (e de serviços) geram uma significativa insa-
tisfação – a fuga do trabalho -, nos anos 1960. A reação a essa aparente desordem
foi a elaboração do modelo pós-fordista, com a intenção de mudar novamente “as
regras do jogo” a seu favor.
Para isso a estratégia se alicerça mediante a desindexação dos salários, a redu-
ção do Estado a uma atuação mínima em certas esferas sociais e a internacionali-
zação da economia (Heloani, 2003, p. 174).
Em nosso entender, o pós-fordismo não foi apenas um “remédio” à crise de
regulação, mas um modo de reapropriação e aperfeiçoamento da manipulação no
mundo do trabalho. Nesse “novo” paradigma de desenvolvimento da produção, a
expropriação da capacidade intelectual e emocional do trabalhador é tão importan-
te quanto o foi o domínio sobre sua capacidade física no paradigma que o antecedeu.
Os princípios – se é que verdadeiramente existem, exceto os técni-
cos – do pós-fordismo são fundamentalmente os mesmos aos da lógica

81
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

taylorista-fordista-fayolista, nada emancipadores. Portanto, não nos parece razo-


ável vermos nesta forma de se organizar o trabalho e a mente das pessoas, um
indulto à alienação, ao estranhamento e mesmo ao adoecimento daqueles que ne-
cessitam labutar para sobreviver. Tão pouco é legítima a comiseração da explora-
ção e da vergonhosa profanação do nosso espaço privado, do tipo “home office”. O
pós-fordismo e seu primogênito, o neoliberalismo, esforçam-se por apresentar-se
como concepções não políticas, oriundas de fundamentos técnicos e ideologica-
mente neutros, quando são, sim, essencialmente políticos (Heloani, 2003, p. 175).

REFERÊNCIAS

AGIER, Michel & GUIMARÃES, Antonio Sérgio. Identidades em conflito. In: SEMINÁRIO INTERNACIO-
NAL - POLÍTICAS DE GESTÃO, RELAÇÕES DE TRABALHO E PRODUÇÃO SIMBÓLICA. São Paulo: Con-
vênio USP/BID, 1989.

ANTONACCI, Maria Antonieta. A vitória da razão: o instituto de organização racional do trabalho de 1931 a
1945, 1985. Tese apresentada ao Departamento de História da USP (Doutorado). São Paulo,

BASTIDE, Roger. Sociologie des maladies mentales. Paris: Flammarion, 1985

BESANÇON, Alain. Histoire et expérience du moi. Paris: Flammarion, 1971.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico; tradução de Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1989.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.

BRUNO, Lúcia & SACCARO, Cleusa. Organização, trabalho e tecnologia. São Paulo: Atlas, 1986.

COSTA, Jurandir Freire. História da Psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1980.

DELEUZE, Gilles. Foucault; tradução de Claudia Sant’Anna. São Paulo: Brasiliense, 1988.

FIESP/CIESP. “Nossa gente, sob medida”. Desenho industrial. São Paulo, julho/agosto, nº 2, 1989.

FLEURY, Afonso Carlos & VARGAS, Nilton. Organização do trabalho. São Paulo: Atlas, 1983.

FLEURY, Maria Tereza. A produção simbólica das organizações: In: SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR -
PADRÕES TECNOLÓGICOS E POLÍTICAS DE GESTÃO: Processos de Trabalho na Indústria Brasileira, São
Paulo: 1988. Anais, USP/UNICAMP.

FLEURY, Afonso Carlos. Organização do trabalho na indústria: recolocando a questão nos anos 80. In: FLEU-
RY, Maria Tereza Leme & FISCHER, Rosa Maria (Coordenadoras). Processo e relações do trabalho no Brasil.
São Paulo: Atlas, 1985. cap.2, p. 51-66.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder; tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

82
BREVÍSSIMA HISTÓRIA DA LEGITIMAÇÃO DA PRECARIZAÇÃO DA SAÚDE DO TRABALHADOR NO BRASIL MEDIANTE O SABER MÉDICO-PSIQUIÁTRICO-TAYLORISTA

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber; tradução de Maria Thereza da Costa Al-
buquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade III: o cuidado de si; tradução de Maria Thereza da Costa Albu-
querque. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

FREITAS, Maria. Ester; HELOANI, Roberto; BARRETO, Margarida. Assédio moral no trabalho. São Paulo:
Cengage Learning, 2008.

GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1987.

GUATTARI, Félix & ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade; tradução de Ana Maria Bernardo et “alli”. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1990.

HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, Nem Patrão!: vida operária e cultura anarquista no Brasil. São Pau-
lo: Brasiliense, 1994.

HARDMAN, Francisco Foot & LEONARDI, Victor. História da Indústria e do Trabalho no Brasil: das origens
aos anos vinte. São Paulo: Global Editora, 1982.

HELLER, Ágnes & FEHÉR, Ference. Políticas de la postmodernidad: ensayos de crítica cultural; traducción de
Montserrat Gurguí. Barcelona: Ediciones Península, 1989.

HELOANI, Roberto. Gestão e organização no capitalismo globalizado: história da manipulação psicológica no


mundo do trabalho. São Paulo: Atlas, 2003.

HELOANI, Roberto. Organização do trabalho e administração: uma visão multidisciplinar. 2ª ed. São Paulo:
Cortez, 1996.

HESKETH, José Luiz & NOGUEIRA, Paulo Roberto. Prevenção de acidentes do trabalho. Arquivos Brasileiros
de Psicologia Aplicada. Rio de Janeiro, F.G.V., 32(1): 322-342, jan/mar. 1980.

IANNI, Octavio. Estado e planejamento econômico no Brasil (1930-1970). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979.

INSTITUTO DE ORGANIZAÇÃO RACIONAL DO TRABALHO. Revista de Organização Científica. São


Paulo, período de 1932-1934.

JANINE, Renato (Organizador). Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1985.

MONTMOLLIN, Maurice de & PASTRÉ, Olivier (direction). Le taylorisme: actes du colloque international sur
le taylorisme organisé por l’Université de Paris-XIII. Paris: Éditions La Découverte, 1984.

PELBART, Peter Pál. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Brasiliense, 1989.

SEGNINI, Liliana Rolfsen Petrilli. Taylorismo: uma análise crítica. In: BRUNO, Lúcia & SACCARO, Cleusa.
Organização, trabalho e tecnologia. São Paulo: Atlas, 1986, Cap. 5.

SEGNINI, Liliana Rolfsen Petrilli. A liturgia do poder: trabalho e disciplina. São Paulo: EDUC, 1988.

83
SEÇÃO 2
SAÚDE, SUBJETIVIDADE E A
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
CAPÍTULO 4
A (IN)VISIBILIDADE DOS
“(IN)CAPACITADOS PARA O TRABALHO”

André Luís Vizzaccaro-Amaral

INTRODUÇÃO

O presente capítulo permeia o eixo temático “trabalho-saúde” e tem o propó-


sito de dar visibilidade a uma nova categoria de trabalhadores que se constituiu na
linha de contorno que divide os trabalhadores formalizados dos desempregados,
sobretudo a partir da década de 2000, no Brasil. Formalizada e, portanto, com
cobertura previdenciária, ao sofrer um Acidente de Trabalho (AT) ou adoecer por
razões diversas, essa categoria de trabalhadores depara-se com o indeferimento
ou com a cessação precoce de benefícios previdenciários aos quais tem direito,
por determinações, muitas vezes, gerencialistas do órgão previdenciário brasilei-
ro, sem poder retornar à sua ocupação habitual em razão de uma “incapacidade
laboral”, temporária ou definitiva e parcial ou total, atestada por médicos assis-
tencialistas ou por médicos do trabalho de seus empregadores. Impelida a um
“vácuo institucional”, e sem qualquer fonte de remuneração, resta a essa categoria
de trabalhadores o processo judicial que, em alguns casos, restitui-lhe o direito
tardiamente ou considera sua demanda improcedente1.

1 Este capítulo difunde, no meio literário, os resultados da tese de doutoramento do autor: VI-
ZZACCARO-AMARAL, André Luís. “(In)capacitados para o trabalho”?: trabalho, estranhamen-
to e saúde do trabalhador no Brasil (2000-2010) / André Luís Vizzaccaro-Amaral. – Marília, 2013.
330 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade
Estadual Paulista, 2013. Disponível em <http://www.marilia.unesp.br/Home/Pos-Graduacao/

87
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Um dos elementos envolvidos na gênese da situação considerada neste capítu-


lo é um instrumento gerencial, por parte do órgão público previdenciário brasilei-
ro, comumente denominado de “alta programada”. Antes denominada “Cobertu-
ra Previdenciária Estimada” (COPES), foi redenominada para “Data de Cessação
do Benefício” (DCB) por meio da Orientação Interna 130/2005-INSS/DIRBEN
(Diretoria de Benefícios), de 13 de outubro de 2005, que estabelecia o prazo má-
ximo de 180 dias de benefícios, dependendo da gravidade do problema. Contudo,
foi revogada pela Orientação Interna 138/2006-INSS/DIRBEN, de 11 de maio de
2006, mantendo a DCB como um dos três tipos de decisão médico-pericial: “Tipo
1: Contrária”; “Tipo 2: Data de Cessação do Benefício (DCB)”; e “Tipo 3: Data
da Comprovação da Incapacidade (DCI)”. A Orientação Interna 138/2006-INSS/
DIRBEN possibilitou a Concessão do Benefício por até dois anos, dependendo da
gravidade do problema. Em seguida, o Decreto nº 5.844/2006, da Presidência da
República, de 13 de julho de 2006, acresceu parágrafos ao Artigo 78 do Regula-
mento da Previdência Social (outrora aprovado pelo Decreto nº 3.048/1999, de 06
de maio de 1999), dando liberdade para o INSS estabelecer prazos que entender
suficientes para a Concessão de Benefícios.
Embora o INSS tenha a “liberdade” de estabelecer prazos que entender ne-
cessários para a Concessão de Benefícios, os casos cada vez mais frequentes dos
que aqui vêm sendo designados como “(in)capacitados para o trabalho”, e o termo
popularizado como “alta programada”, sugerem a disseminação de antigas prá-
ticas, como as orientadas pela COPES, sobretudo em função do constante défi-
cit orçamentário vivenciado pela instituição. Em dados divulgados pelo próprio
Ministério da Previdência Social (MPS) brasileiro, totalizando o ano de 2010, a
arrecadação previdenciária brasileira foi de 5,63% do Produto Interno Bruto (PIB)
do país, enquanto que as despesas foram de 6,76%.
Como consequência desse cenário, de 2006 até fevereiro de 2011, havia 31
ações coletivas contra a “Alta Programada” do INSS, movidas, em grande parte,
por Sindicatos, pela Defensoria da União e pela Procuradoria Geral da República.
Outras 180 mil ações foram movidas individualmente apenas no Estado de São

CienciasSociais/Dissertacoes/VIZZACARO_A_L_DO_2013. pdf>. Acesso em 31 julho 2014, sob


orientação do Prof. Dr. Giovanni Alves.

88
A (IN)VISIBILIDADE DOS “(IN)CAPACITADOS PARA O TRABALHO”

Paulo.2 Até março de 2011, o INSS era réu em 5,8 milhões de processos, dentre os
quais, estimava-se que algo em torno de 50% a 70% fossem relativos aos auxílios,
entre eles o auxílio-doença.3
O argumento, por parte do INSS, é claramente amparado por um discurso
gerencialista e que, por esta razão, se constitui de modo racional, distanciado e
generalista, corroborando as decisões de suas perícias, em prol da manutenção
das práticas, tal como destaca o conteúdo de uma reportagem amplamente divul-
gada na mídia brasileira, ao entrevistar o então presidente do órgão, o Sr. Mauro
Luciano Hauschild:

Logo no início da implantação do modelo, nós tínhamos 1,666 milhão de


pessoas com benefício do auxílio-doença, previdenciário ou acidentário.
Hoje nós temos 1,385 milhão de pessoas. Considero o sistema eficiente.
Quando eu tenho 60% de satisfação dos beneficiários do auxílio-doença
sem pedido de prorrogação, me parece e me deixa bastante satisfeito, à pri-
meira vista, que a Previdência presta, sim, um bom serviço na área de perí-
cia médica. (...) Obviamente que o nosso papel é aperfeiçoar, nosso papel é
melhorar. Mas a situação atual, ela é bastante positiva, sempre, claro, passí-
vel de pontualmente a gente ter um problema que, às vezes, está associado a
pessoas e não é próprio à instituição e que a gente precisa, sendo notificado,
buscar, identificar qual o problema e construir soluções.

O resultado para os trabalhadores nessas condições é drástico, pois, “despro-


tegidos”, sujeitam-se à cronificação de seus problemas de saúde, à sensação de
“desproteção” perante o Estado e ao desalento, afetando suas vidas e a de seus
familiares e amigos. A situação se agrava com a realidade aviltante do mundo
do trabalho e a legião de acidentados do trabalho que cresce ano após ano, no
Brasil e no mundo, mesmo com as inúmeras subnotificações. (VIZZACCARO-
-AMARAL, 2012, p. 68-69)

2 Notícia veiculada no programa televisivo “Fantástico”, da Rede Globo, em 20/02/2011, e no seu site
em 25/02/2011. Disponível em: <http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1648949-
15605,00-BRASILEIROS+COM+PROBLEMAS+DE+SAUDE+ NAO+TEM+AUXILIODOENCA.
html>. Acesso em 20 maio 2012.
3 Notícia veiculada pela Gazeta do Povo, em 25 de março de 2011. Disponível em <http://www.
gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/ conteudo.phtml?id=1109360>. Acesso em 30 maio 2012.

89
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Esse cenário se reflete na justiça trabalhista e previdenciária brasileira. Em


2010, o sistema judicial brasileiro registrou uma despesa anual de cerca de R$ 41
bilhões, representando 1,12% do Produto Interno Bruto (PIB) e R$ 212 por cida-
dão, no total. A Justiça Estadual foi responsável por R$ 24 bilhões (0,65% do PIB e
R$ 124/cidadão), ao passo que a Justiça Federal respondeu por R$ 6 bilhões (0,18%
do PIB e R$ 34/cidadão) e a Justiça Trabalhista por R$ 11 bilhões (0,29% do PIB e
R$ 55/cidadão). No mesmo ano, o sistema judicial brasileiro contava com 16.804
juízes e desembargadores, dos quais 14,4 mil eram juízes de primeiro grau e 2,3
mil eram desembargadores (12 mil deles estavam na Justiça Estadual), além de 321
mil servidores judiciais (dos quais 207 mil eram efetivos). Ainda em 2010, foram
registrados 60 milhões de casos pendentes, 24,2 milhões de casos novos e 22,2 mi-
lhões de sentenças dadas. Em média, de cada 100 processos, 84 foram resolvidos
em primeira instância, ao longo de 2010, mas não necessariamente conseguiram
fazer valer, de fato, seus direitos, em razão dos procedimentos recursais. Entre
os desembargadores, a carga de trabalho foi de 12 mil processos/ano para cada
desembargador federal e de 2 mil para cada desembargador da justiça comum e
da justiça trabalhista, em 2010. Entre os juízes de primeiro grau, foram 5,9 mil
processos/ano para cada juiz estadual, 4,4 mil processos/ano para cada juiz federal
e 2,4 mil para cada juiz trabalhista. (CARDOSO, 2011)
Os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul
(que concentram grande parte da atividade industrial e econômica do país) res-
ponderam, juntos, por 11 milhões de casos novos, 30 milhões de casos pendentes
e 10 milhões de sentenças, sendo responsáveis, portanto, por quase a metade dos
processos judiciais do país (São Paulo, isoladamente, foi responsável por 5,3 mi-
lhões de casos novos, 16,4 milhões de casos pendentes e 4,3 milhões de sentenças).
(CARDOSO, 2011)
Em síntese, se, por um lado, a previdência social brasileira supostamente vem
“melhorando seu desempenho” administrativo, por outro, a saúde pública vem
sendo onerada pela cronificação dos problemas desses trabalhadores, o mercado
de trabalho vem perdendo, temporária ou permanentemente, seu principal fator
de produção (o trabalhador), o sistema judiciário vem sofrendo avalanches de
ações previdenciárias e trabalhistas e a sociedade vem pagando o preço, sendo
vítima e “ré”, nesse processo, sofrendo os impactos dessa realidade aviltante e, ao
mesmo tempo, pagando impostos para suportá-la, o que justifica uma cuidadosa
investigação sobre a questão.

90
A (IN)VISIBILIDADE DOS “(IN)CAPACITADOS PARA O TRABALHO”

DANDO VISIBILIDADE AOS “(IN)CAPACITADOS PARA O TRABALHO”

Os argumentos que amparam este capítulo foram detalhados em nossa tese de


doutoramento em Ciências Sociais, defendida em março de 2013, no Campus de
Marília-SP da Universidade Estadual Paulista (UNESP).
A pesquisa de doutoramento em questão não elaborou um estudo puramente
teórico, nem tampouco se propôs a uma abordagem eminentemente empírica de
um fenômeno social, uma vez que milhões de brasileiros encontram-se na condi-
ção por ela considerada. Tratou-se, antes de tudo, de uma investigação científica
amparada teórica e empiricamente, por um lado, e de um instrumento teórico-
-metodológico, por outro, caracterizando, assim, uma dupla natureza teleológica.
Enquanto investigação científica a referida tese de doutoramento teve como
objetivo geral aprofundar a compreensão da categoria de trabalhadores por ela
considerada e que, observadas as teses previstas em seus processos judiciais con-
tra o INSS, foi denominada “(in)capacitados para o trabalho”. Dentre os objetivos
específicos, procurou-se (a) analisar os possíveis elementos envolvidos na ori-
gem da questão envolvendo os “(in)capacitados para o trabalho”; (b) identificar
as garantias jurídico-institucionais de proteção social previdenciária aos traba-
lhadores brasileiros; (c) analisar o papel da perícia médica previdenciária nesse
contexto; (d) realizar uma investigação empírica acerca da realidade dos “(in)
capacitados para o trabalho”; e (e) confrontar os resultados da investigação em-
pírica com os pressupostos teóricos que foram adotados ao longo do estudo, de
modo a elaborar uma análise conclusiva.
Enquanto instrumento teórico-metodológico, por meio do paradigma qua-
litativo, do método dialético e do materialismo histórico, a tese a que se refere
este trabalho teve como objetivo avaliar o alcance dos instrumentos de coleta de
dados utilizados na pesquisa de campo: (i) abordagem biográfica; (ii) entrevista
do tipo qualitativo semi-estruturada; (iii) anamnese socioeducativa; (iv) anamne-
se clínica; e (v) análise documental de processos judiciais; bem como da técnica
de análise de dados, adaptada do método da análise de conteúdo e submetida à
confrontação cruzada entre os instrumentos de coleta de dados. Com isso, o in-
tuito foi o de contribuir para outros estudos e intervenções que considerem o eixo
temático trabalho-saúde.

91
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA PESQUISA DE CAMPO

A pesquisa de campo realizada alinhou-se à pesquisa qualitativa em ciências


sociais, caracterizada por cinco elementos fundamentais: (a) flexibilidade adap-
tativa e construção progressiva do próprio objeto ao longo da investigação; (b)
capacidade de se ocupar de objetos complexos; (c) capacidade de englobar dados
heterogêneos e, por isso mesmo, de combinar diferentes técnicas de coleta de da-
dos; (d) capacidade de descrever em profundidade aspectos importantes da vida
social; e (e) abertura para o mundo empírico. (PIRES, 2012, p. 90)
Não foi ignorado, todavia, que haja, nessa abordagem, uma herança tanto
teleológica aristotélica quanto determinística galileana (KUHN, 1987), que in-
fluenciaram as duas tendências conflitantes em pesquisa: aquela que adota a
estratégia de pesquisa modelada nas ciências naturais, por um lado (ou a pes-
quisa experimental, quantitativa); e aquela que advoga uma lógica própria para
o estudos dos fenômenos humanos e sociais, por outro (a pesquisa qualitativa).
(CHIZZOTTI, 2005).
O método do materialismo dialético e do materialismo histórico norteou a
pesquisa de campo deste estudo por meio de três procedimentos gerais: (a) con-
templação viva do fenômeno (captação do objeto em sua qualidade geral); (b)
análise do fenômeno (dimensão abstrata do objeto); e (c) realidade concreta do
fenômeno (análise do objeto). (TRIVIÑOS, 2011, pp. 73-74)
A contemplação viva do fenômeno consistiu em estabelecer a singularidade
dos “(in)capacitados para o trabalho” e de ratificar que esse fenômeno existe e
é diferente de outros. A análise, que possibilitou transpor a dimensão abstrata
dos “(in)capacitados para o trabalho”, foi realizada por meio das relações sócio-
-históricas identificadas por intermédio de instrumentos qualitativos de inves-
tigação científica. Os aspectos que estabeleceram a realidade concreta dos “(in)
capacitados para o trabalho” foram descritos, sintetizados e contrapostos entre
si e entre os pressupostos teórico-metodológicos adotados nesta pesquisa. (TRI-
VIÑOS, 2011, p. 74).
Com isso, procurou-se realizar uma análise crítica dessa realidade sem, con-
tudo, deixar de considerar a relação dinâmica entre o sujeito e o objeto no pro-
cesso de conhecimento, valorizando, assim, “a contradição dinâmica do fato ob-
servado e a atividade criadora do sujeito que observa, as oposições contraditórias

92
A (IN)VISIBILIDADE DOS “(IN)CAPACITADOS PARA O TRABALHO”

entre o todo e a parte e os vínculos do saber e do agir com a vida social dos
homens”. (CHIZZOTTI, 2005, p. 80)
Os pressupostos teóricos que nortearam a pesquisa de campo deste trabalho fo-
ram de matiz marxiano, com ressonâncias em Georg Lukács, concentrando-se nas
chaves-conceituais da “centralidade do trabalho”, desenvolvida por Antunes (2001
e 2002), e da “crise da subjetividade” e do “estranhamento”, estas últimas desenvol-
vidas por Alves (2010; 2011a; 2011b; 2012), como elementos centrais para a análise.
Tais chaves-conceituais foram contrapostas com as pré-análises realizadas
em cada um dos instrumentos investigativos utilizados para a coleta de dados,
cada qual com suas especificidades. Portanto, a análise dos resultados da pesqui-
sa de campo realizada esteve associada a cada um de seus procedimentos me-
todológicos e, por esta razão, não se separou totalmente da etapa de coleta de
dados. Ressonâncias desta perspectiva são encontradas em diversas obras desde
o início da década de 1980. (JACCOUD; MAYER, 2012, p. 273)
Desta feita, os resultados foram analisados em conformidade com as técnicas
de coleta e de análise de dados utilizadas na pesquisa de campo, como a aborda-
gem biográfica, a entrevista de tipo qualitativo semi-estruturada, a investigação
socioeducativa, a anamnese clínica e a análise documental, a partir dos elemen-
tos metodológicos presentes em Chizzotti (2005), Triviños (2011) e, sobretudo,
em Poupart et al (2012).

Os Sujeitos da Pesquisa

Considerada a dificuldade em conseguir acesso aos trabalhadores nas condições


levantadas por este estudo (dada a sua “invisibilidade”), procurou-se por trabalhado-
res nas condições aqui estudadas por toda a rede de contato desenvolvida na quali-
dade de pesquisador da saúde do trabalhador e de docente universitário, fosse pes-
soalmente, em visitas a entidades e órgãos públicos ligados à saúde do trabalhador,
pela internet ou por telefone, encontrando ressonância em um escritório de advocacia
do interior paulista, que possuía clientes com perfil semelhante ao que era buscado
investigar, e por ocasião do contato anterior de um dos sujeitos com o pesquisador.
Na sequência é apresentado um perfil básico de cada um dos sujeitos pes-
quisados de modo a fornecer algumas informações essenciais de seus contextos
socioeconômicos e a compreender alguns elementos representativos desses con-
textos em relação à população brasileira, de modo geral.

93
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Todos os nomes aqui relatados são fictícios e todas as informações pessoais


diretas e indiretas que pudessem identificar os sujeitos em questão foram devida-
mente ocultadas e/ou substituídas por pequenas explicações contextuais, quando
necessárias.

Eva, 53 anos, doméstica, informalizada

Eva nasceu em 1959, no interior do Estado de São Paulo, e é a única mulher


entre os sujeitos pesquisados. Atualmente, reside no interior do estado de São Pau-
lo, na mesma região em que nasceu. Possui um relacionamento em união estável
há 09 anos, e tem 03 filhos do primeiro casamento, uma com 38 anos, outra com
33 anos e o caçula com 29 anos de idade.
Trabalha como doméstica, informalizada, três dias por semana. Isso ocorre
porque está num processo contra o INSS por aposentadoria por invalidez e/ou por
restabelecimento de benefício de Auxílio-Doença Previdenciário (B31), devido a
seu quadro de saúde debilitado, o que não lhe permite trabalhar mais do que isso,
devido às dores que sente. Quanto ao registro, tem receio de pedi-lo a seus atuais
empregadores e perder o emprego, em razão de seu quadro de saúde, e do judiciá-
rio sentenciar desfavoravelmente à sua demanda contra o INSS.
Sua renda individual é de aproximadamente R$550,00 mensais que, somada
a de seu companheiro, chega a cerca de R$2000,00 mensais. Divide duas residên-
cias, uma própria com o filho caçula e outra da filha, com a filha do meio. A que
divide com sua filha é na cidade onde trabalha ao longo da semana, sendo que sua
residência própria fica em outro município, distante cerca de vinte quilômetros.
Nas duas casas divide as despesas com seus filhos que, ambos, possuem uma ren-
da média mensal de R$1500,00, totalizando a renda familiar em qualquer uma das
duas residências em cerca de R$3500,00 mensais.

94
A (IN)VISIBILIDADE DOS “(IN)CAPACITADOS PARA O TRABALHO”

Segundo o Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB)4, Eva pertence


à Classe C5, ou média baixa6, que concentra 18% da população brasileira. Dessa
população, 99% tem a mesma escolaridade que Eva, 48% tem renda familiar de
até três salários mínimos (ou seja, em torno de R$2000,00, bastante similar à de
Eva, quando considerados seu rendimentos e de seu companheiro, apenas), 37%
tem idade entre 45 e 59 anos, 82% estão na denominada Classe C e 21% são apo-
sentados. Pelo instrumento de investigação socioeconômica pode-se dizer que Eva
representa elementos bastante significativos da população brasileira.
Foram realizados quatro contatos, todos pessoalmente, com Eva, tanto antes
quanto para a realização da pesquisa de campo. O primeiro foi um contato fortui-
to, em razão da própria condição de Eva em relação à sua situação de trabalho e
de saúde, que permitiu tomar ciência de seu quadro geral. Os outros três contatos
para a realização da pesquisa ocorreram: (1º) para a consulta quanto ao seu inte-
resse em participar da pesquisa; (2º) para que assinasse os documentos relativos
ao Comitê de Ética em Pesquisa; e (3º) para a realização da coleta de dados da
história de vida, da entrevista qualitativa semi-estruturada, da investigação socio-
educativa e da anamnese clínica.
As coletas de dados foram realizadas na sala de estar/TV do apartamento da
filha do meio de Eva (que é professora de ensino básico sem emprego fixo, ain-
da), em um conjunto habitacional composto por blocos com 16 apartamentos, em
cada bloco, e com 04 apartamentos por andar. O apartamento é próprio, da filha
do meio, porém não quitado, sendo pago por mensalidades diretamente à antiga
proprietária do imóvel (financiado originalmente junto a programa habitacional

4 Para os três sujeitos foram utilizadas duas ferramentas que permitiram avaliar suas classificações
econômicas. Uma da Revista Veja, disponível em <http://veja.abril.com.br/blog/testes/classe-
-economica/a-que-classe-economica-voce-pertence/>, e outra do jornal Folha de São Paulo, que
traz informações do Datafolha, disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/poder/1036261-
-quiz-faca-o-teste-e-descubra-a-que-classe-social-voce-pertence.shtml>. Ambos os acessos foram
realizados em 25 janeiro 2013. Optou-se por essas ferramentas pela facilidade de acesso frente a
uma informação que foi considerada complementar aos casos estudados, e não essencial, embora
estejam pautadas em pesquisas nacionais realizadas por órgãos reconhecidos.
5 Segundo a Revista Veja. Disponível em <http://veja.abril.com.br/blog/testes/classe-economica/a-
-que-classe-economica-voce-pertence/>. Acesso em 25 janeiro 2013
6 Conforme Folha de S. Paulo. Disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/poder/1036261-quiz-
-faca-o-teste-e-descubra-a-que-classe-social-voce-pertence.shtml >. Acesso em 25 janeiro 2013.

95
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

do governo). O apartamento tem 02 quartos, 01 sala, 01 cozinha, 01 banheiro e


01 lavanderia e fica em bairro residencial caracterizado por casas térreas e por tal
conjunto de blocos de apartamentos construídos por programas habitacionais do
governo. A rua é asfaltada, possui rede elétrica, saneamento básico e água tratada.
A região passou por obras estruturais importantes, nos últimos anos, que possibi-
litaram o acesso a vias rápidas do município e ao transporte coletivo.

Ênio, 47 anos, em litígio trabalhista

Nascido em 1965, Ênio é paulistano, tendo vivido quase toda a sua vida na
capital de São Paulo. Atualmente, reside no interior do estado de São Paulo, numa
região em que sua atual companheira possui alguns familiares. Possui um relacio-
namento em união estável há 16 anos, e tem 01 filho do primeiro casamento, com
19 anos de idade que não reside com ele.
Ênio não trabalha em decorrência de sua condição de saúde e, atualmente,
está em litígio trabalhista contra a sua antiga empregadora. Da mesma forma que
Eva, Ênio ingressou com um processo contra o INSS pleiteando sua aposentadoria
por invalidez e/ou o restabelecimento de benefício de Auxílio-Doença Acidentá-
rio (B91), devido a seu quadro de saúde debilitado após um acidente de trabalho
típico numa empresa da construção civil da capital paulista. Conseguiu realizar
dois “bicos” em condições especiais, sem registro, no interior paulista, desde que
se mudou, para tentar “ocupar a cabeça” e conseguir alguma renda extra, em casa,
mas tem dificuldades em decorrência de seu quadro de saúde.
Não possui nenhuma renda individual, mas contabilizando a de sua compa-
nheira, sua renda familiar chega a cerca de R$1000,00 mensais. Mora com sua com-
panheira em residência própria e já quitada, após esforços realizados em conjunto
com a companheira, num bairro residencial periférico da atual cidade em que reside.
Ênio pertence à Classe C7, ou média intermediária, que concentra 26% da
população brasileira e sua classificação nessa classe, em grande parte, se deu em
razão de seu nível educacional. Dessa população, 89% tem o mesmo nível educa-
cional de Ênio, 78% tem renda familiar de até três salários mínimos (ou seja, em
torno de R$2000,00, o dobro da renda familiar de Ênio), 62% tem idade inferior a

7 Seguiu-se, no caso de Ênio, os mesmos parâmetros e procedimentos adotados no caso de Eva.

96
A (IN)VISIBILIDADE DOS “(IN)CAPACITADOS PARA O TRABALHO”

34 anos, 83% estão na denominada Classe C e 15% são trabalhadores informaliza-


dos. Também no caso de Ênio, pode-se dizer que ele representa elementos bastan-
te significativos da população brasileira.
Foram realizados três contatos com Ênio, tanto antes quanto para a realização
da pesquisa de campo. O primeiro foi um contato por telefone, para a consulta
quanto ao seu interesse em participar da pesquisa, cujo número foi repassado por
um de seus advogados, em assistência judiciária. Os outros dois contatos para a
realização da pesquisa ocorreram: (1º) para que assinasse os documentos relativos
ao Comitê de Ética em Pesquisa; e (2º) para a realização da coleta de dados da
história de vida, da entrevista qualitativa semi-estruturada, da investigação socio-
educativa e da anamnese clínica.
As coletas de dados foram realizadas na sala de jantar da residência de Ênio,
no mesmo ambiente da cozinha, que é própria (quitada à vista) e está no nome de
sua companheira. Sua casa conta com 01 sala, 02 quartos, 01 cozinha, 01 banheiro
e 02 quintais (frente e fundo), sendo que o da frente inclui espaço para garagem.
Na casa foram observados 02 cães e 03 gatos. A casa fica localizada em bairro
residencial periférico da cidade, caracterizado por construções humildes e, via
de regra, inacabadas, sobretudo em relação ao chamado “acabamento”. A rua é
asfaltada, possui rede elétrica, saneamento básico e água tratada. A região passou
por obras estruturais importantes, nos últimos anos, que possibilitaram o acesso
a vias rápidas e ao transporte coletivo.

José, 47 anos, vigia, formalizado

Também nascido em 1965, José, assim como Eva, nasceu e cresceu no interior
paulista, tendo vivido em algumas cidades do interior ao longo de sua vida pro-
fissional. Atualmente, reside no interior do estado, numa cidade distante cerca
de trinta quilômetro de onde nasceu, ou seja, na mesma região em que nasceu e
cresceu. É casado com sua atual esposa, depois de dois casamentos anteriores, há
cerca de dez anos, mas com quem não possui filhos. Tem um filho de 17 anos de
idade registrado em seu nome, do primeiro casamento, mas que mora com a avó
materna, e um filho não registrado, de 15 anos, de outro relacionamento.
José é o único entre os três sujeitos aqui pesquisados que está trabalhando for-
malizado. Atua como vigia em uma empresa que vende equipamentos para o setor

97
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

de agronegócios, cuja sede fica a apenas alguns metros de sua residência. Da mesma
forma que Eva e Ênio, José também ingressou com um processo contra o INSS plei-
teando sua aposentadoria por invalidez e/ou o restabelecimento de seu benefício de
Auxílio-Doença Acidentário (B91), devido a seu quadro de saúde debilitado após
um acidente de trabalho típico numa empresa do comércio. Ficou cerca de sete anos
recebendo o benefício do INSS, intermitentemente, antes de ser demitido pela em-
presa onde se acidentou, e seu emprego atual, como vigia, é recente.
Sua renda individual é de R$1500,00, aproximadamente, mas contabilizando
a de sua companheira, sua renda familiar chega a cerca de R$2300,00 mensais.
Mora com sua companheira em residência própria e financiada junto a um pro-
grama habitacional do governo, num bairro residencial periférico da atual cidade
em que reside.
José pertence à Classe B28, ou média alta, que concentra 19% da população
brasileira. Dessa população, 75% tem o mesmo nível educacional de José, 71%
tem renda familiar entre três e dez salários mínimos (ou seja, entre R$2000,00 e
R$6500,00, faixa em que se situa José), 50% tem idade inferior a 34 anos, 70% estão
na denominada Classe B e 35% são trabalhadores formalizados, assim como José.
Também no caso de José, portanto, podemos dizer que ele representa elementos
bastante significativos da população brasileira.
Foram realizados três contatos com José, tanto antes quanto para a realização
da pesquisa de campo. O primeiro foi, também, um contato por telefone, para a
consulta quanto ao seu interesse em participar da pesquisa, cujo número foi repas-
sado por um de seus advogados, em assistência judiciária. Os outros dois contatos
para a realização da pesquisa ocorreram: (1º) para que assinasse os documentos
relativos ao Comitê de Ética em Pesquisa; e (2º) para a realização da coleta de da-
dos da história de vida, da entrevista qualitativa semi-estruturada, da investigação
socioeducativa e da anamnese clínica.
As coletas de dados foram realizadas na sala da casa de José, que é própria
(adquirida junto a um programa habitacional do governo, mas ainda não quitada).
Sua casa possui 01 sala, 02 quartos, 01 cozinha, 01 banheiro e 02 quintais (frente,
com a garagem, e fundo). A casa fica localizada em bairro residencial periférico
da cidade, caracterizado por construções padronizadas em razão de programa

8 Seguiu-se no caso de José os mesmos parâmetros e procedimentos adotados no caso de Eva e de


Ênio.

98
A (IN)VISIBILIDADE DOS “(IN)CAPACITADOS PARA O TRABALHO”

habitacional do governo. A rua é asfaltada, possui rede elétrica, saneamento bási-


co e água tratada. A região passou por obras estruturais importantes, nos últimos
anos, que possibilitaram o acesso a vias rápidas e ao transporte coletivo.
Eva, Ênio e José são, portanto, representativos de uma significativa parcela
da população brasileira e os perfis socioeconômicos aqui traçados corroboram a
proposta de que a pesquisa de campo desenvolvida por este estudo aborda impor-
tantes elementos da realidade brasileira dos anos 2000.

Considerações quanto às fontes documentais de pesquisa

Há vantagens e desvantagens de se utilizar processos judiciais como fontes do-


cumentais em pesquisas científicas. É vantajoso porque há nos processos judiciais o
compromisso das partes em relação aos fatos narrados e à tese defendida, inclusive
sob responsabilidade cível e criminal. Por outro lado, possui vieses, quando consi-
derado o ritual jurisdicional e a legislação, pois possui uma tendência a considerar e
a ordenar os fatos por meio de uma lógica jurídica e jurisdicional. Portanto, quando
os documentos “falam”, “falam” por meio de uma narrativa e de uma lógica jurídi-
cas, reorganizando, por vezes, os fenômenos da realidade concreta.
Compreendeu-se por processo judicial, no estudo realizado, aquilo que Ac-
quaviva (1998) definiu como sendo:

... o instrumento da jurisdição. É o conjunto ordenado de atos processuais


que visam a restauração da paz em cada caso concreto. Cabe distinguir
entre processo e procedimento. Este é a dinâmica do processo em ação. O
procedimento é o rito pelo qual se desenvolve o processo, é a forma pela
qual se desenrola o processo. Da mesma maneira que, na investigação cien-
tífica, ao se procurar a verdade, emprega-se, inevitavelmente, um método
e, dentro deste, uma técnica, também o processo exige uma disposição me-
tódica de atos jurisdicionais. Enquanto o método vem a ser um conjunto
de etapas ordenadamente dispostas, tendo-se em vista uma finalidade, o
cumprimento de tais etapas pode ensejar várias técnicas. As etapas do mé-
todo podem ser cumpridas de várias formas, e cada uma destas consiste
numa técnica. Pode-se afirmar, portanto, que o processo seria o método e
o procedimento a técnica, vale dizer, a melhor maneira de se levar a cabo o
disposto no processo. (ACQUAVIVA, 1998, pp. 1022-1023)

99
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Quando designadas as fontes documentais como processos judiciais, neste


estudo, referem-se ao conjunto de atos processuais que devidamente registram
não apenas os procedimentos seguidos pelos autores e pelos réus, mas, também,
aqueles realizados pelo lado julgador e pelo judiciário em si. Os documentos anali-
sados, portanto, são físicos e constam do registro físico de todos os ritos e trâmites
seguidos pelo processo até a data em que foram disponibilizados para o pesquisa-
dor, ou seja, até novembro de 2012.
Os processos judiciais aqui analisados foram classificados conforme as refe-
rências de Cellard (2012). Desta forma, foram compreendidos como sendo uma
fonte primária, pois neles constam informações produzidas por atores diretamen-
te relacionados aos fatos narrados por eles (no caso os autores e o réu), ainda que
hajam, também, atores não envolvidos diretamente. Todos os processos perten-
cem ao grupo de documentos arquivados, considerando que são documentos vo-
lumosos e organizados segundo planos de classificação, complexos e variáveis no
tempo. A natureza dos processos judiciais é pública, ainda que não seja acessível e
constituem-se como sendo do tipo jurídico. (CELLARD, 2012, pp. 296-298)
Por tratar-se de uma autarquia federal, os processos em que o Instituto Na-
cional do Seguro Social é autor ou réu, em sua maioria, são julgados pela Justiça
Federal, conforme o definido pelos Artigos 108 a 110 da Constituição da Repú-
blica Federativa do Brasil, de 19889, na vara federal da cidade sede da Agência da
Previdência Social (APS) envolvida no caso ou, inexistindo uma vara federal na
localidade, na vara federal mais próxima.
Todavia, quando se trata de demanda judicial referente a acidentes do traba-
lho, segundo a Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, em seu Artigo 12910, a compe-
tência dos litígios e medidas cautelares deve ser a Justiça dos Estados e do Distrito
Federal, em suas varas cíveis.
Na capital do Estado de São Paulo, em virtude do grande volume de proces-
sos, foram criadas oito varas especializadas em Acidentes do Trabalho até 2010.
No entanto, duas delas foram transformadas em Varas do Juizado Especial da
Fazenda Pública. Em cada uma das seis varas atualmente em funcionamento, 12
mil processos estão em andamento com uma média de 200 novos processos a cada

9 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em


25 janeiro 2013.
10 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8213cons.htm>. Acesso em 25 janeiro 2013.

100
A (IN)VISIBILIDADE DOS “(IN)CAPACITADOS PARA O TRABALHO”

mês. Em 1985, foi criada a Divisão de Perícias Acidentárias da Capital pelo Tribu-
nal de Justiça de São Paulo, para suprir os julgadores de laudos técnicos em relação
às demandas judiciais, contando com cerca de 40 médicos cadastrados e 20 clíni-
cas para a realização de exames complementares (radiografias, ultrassonografias,
ressonâncias, etc.) e, contando, ainda, com 05 funcionários e 07 salas para a rea-
lização das perícias que, em média, levam até seis meses para serem agendadas11.
Os processos judiciais aqui analisados contemplam as competências juris-
dicionais referidas, envolvendo a autarquia federal do INSS, representando, de
modo significativo, suas realidades processuais.
O processo judicial de Eva contra o INSS corre por uma das Varas Federais do
interior paulista da Justiça Federal. Isso ocorre porque não se trata de demanda
envolvendo acidentes do trabalho e, sim, o restabelecimento do Auxílio-Doença
Previdenciário (B31) e sua posterior conversão à aposentadoria por invalidez.

PROCESSO JUDICIAL CONTRA O INSS Eva . 53 anos


FONTE Primária GRUPO Arquivado NATUREZA Pública TIPO Jurídico
Ação Judicial de Aposentadoria por Invalidez ou Restabelecimento do
DESCRIÇÃO SUMÁRIA
Auxílio-Doença
ESFERA INSTITUCIONAL Justiça Federal de São Paulo (JFSP) / Tribunal Regional Federal
LOCAL DE DISTRIBUIÇÃO Uma das Varas Federais do Interior do Estado de São Paulo
10/2011 a
VOLUMES / FOLHAS 01 / 200 folhas PERÍODO
11/2012
AÇÃO 36 (Procedimento Sumário) VALOR/CAUSA R$ 15.000,00
Auxílio-Doença Previdenciário – Benefícios em Espécie – Direito Previ-
ASSUNTO
denciário
Em fevereiro de 2012 - ASSUNTO: 04.01.05 Auxílio-Doença Previdenciá-
rio – Benefício em Espécie – Direito Previdenciário; 04.01.01 Aposentado-
ria por Invalidez (Art. 42/47) – Benefícios em Espécie – Direito Previden-
RETIFICAÇÃO
ciário; 04.04.04 Concessão – Pedidos Genéricos Relativos aos Benefícios
em Espécie – Direito Previdenciário; 04.04.05 Restabelecimento – Pedidos
Genéricos Relativos aos Benefícios em Espécie – Direito Previdenciário
REQUERENTE Eva
REQUERIDO Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)

O quadro acima reúne e sintetiza as informações referentes ao processo de


Eva contra o INSS que, embora tenha sido ingressado em outubro de 2011, con-
tém informações e fatos ocorridos desde o ano 2000. É o único processo judicial,

11 Disponível em <http://www.tjsp.jus.br/Institucional/CanaisComunicacao/Noticias/Noticia.
aspx?Id=16086>. Acesso em 25 janeiro 2013.

101
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

dentre os três analisados, que não possuía uma sentença proferida pelo juiz fede-
ral, até o momento de sua análise.
Por outro lado, o processo judicial de Ênio contra o INSS corre por uma das
Varas Especiais de Acidentes do Trabalho da Justiça Comum Estadual paulista, na
capital do Estado. Isso ocorre porque, ao contrário da ação judicial de Eva, trata-
-se, no caso de Ênio, de demanda envolvendo acidentes do trabalho, mesmo com
posterior conversão à aposentadoria por invalidez.

PROCESSO JUDICIAL CONTRA O INSS Ênio . 47 anos


FONTE Primária GRUPO Arquivado NATUREZA Pública TIPO Jurídico
Ação Judicial de Restabelecimento de Auxílio-Doença Acidentário, com
DESCRIÇÃO SUMÁRIA
Pedido de Tutela Antecipada
ESFERA INSTITUCIONAL Poder Judiciário do Estado de São Paulo
LOCAL DE DISTRIBUIÇÃO Vara de Acidentes do Trabalho da Capital do Estado de São Paulo
01 / 90 folhas impressas + 37 fo- 07/2008 a
VOLUMES / FOLHAS PERÍODO
lhas eletrônicas 11/2012
AÇÃO 702 (Acidente do Trabalho) VALOR/CAUSA R$ 1.000,00
ASSUNTO Acidente do Trabalho
Em janeiro de 2013 – Restabelecimento de Auxílio-Doença Acidentário
RETIFICAÇÃO
com posterior Conversão para Aposentadoria por Invalidez
REQUERENTE Ênio
REQUERIDO Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)

Da mesma forma que no caso de Eva, o quadro acima reúne e sintetiza as


informações referentes ao processo de Ênio contra o INSS, ingressado em julho
de 2008, mas tratando de informações e fatos decorridos desde 2007. É o processo
com o menor número de folhas apensadas em 52 meses de tramitação e o único
com sentença favorável ao autor, ainda que parcial, motivo pelo qual os advogados
do autor entraram com recurso junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo, em se-
gunda instância, solicitando a aposentadoria por invalidez de Ênio.
O processo judicial de José contra o INSS corre, atualmente, por uma das
Varas Cíveis da Justiça Comum Estadual do interior paulista. No entanto, é o úni-
co processo que iniciou tramitando pela Justiça Federal e, após se aperceber de
informações pertinentes a acidente de trabalho, aquela se declarou incompetente
e remeteu o processo para uma das Varas Cíveis da Justiça Comum do interior
paulista, mesmo que a demanda envolvesse a aposentadoria por invalidez.
É o processo judicial mais complexo, dentre os analisados, por conter pro-
cedimentos envolvendo a Justiça Federal e a Justiça Comum Estadual paulista e

102
A (IN)VISIBILIDADE DOS “(IN)CAPACITADOS PARA O TRABALHO”

que melhor representa a necessidade de especialização no judiciário brasileiro em


relação às demandas referentes a acidentes do trabalho.

PROCESSO JUDICIAL CONTRA O INSS José . 47 anos


FONTE Primária GRUPO Arquivado NATUREZA Pública TIPO Jurídico
DESCRIÇÃO SUMÁRIA Ação Judicial de Concessão de Aposentadoria por Invalidez
ESFERA INSTITUCIONAL Poder Judiciário do Estado de São Paulo
LOCAL DE DISTRIBUIÇÃO Vara Cível do Interior do Estado de São Paulo
04/2005 a
VOLUMES / FOLHAS 02 / 285 folhas impressas PERÍODO
11/2012
238 (Procedimento Ordinário –
AÇÃO VALOR/CAUSA R$ 1.000,00
em geral)
ASSUNTO Benefício Previdenciário – Aposentadoria por Invalidez
Em setembro de 2006 – 04.01.01 Aposentadoria por Invalidez (Art. 42/47)
RETIFICAÇÃO – Benefícios em Espécie/Concessão/Conversão/Restabelecimento - Previ-
denciário
REQUERENTE José
REQUERIDO Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)

Tal como no caso de Eva e de Ênio, o quadro acima reúne e sintetiza as infor-
mações referentes ao processo de José contra o INSS, ingressado em abril de 2005,
mas tratando de informações e fatos decorridos desde 2004. É o processo com o
maior número de folhas apensadas em 91 meses de tramitação até sua disponibi-
lização para o pesquisador, em dois volumes, e o único com sentença favorável ao
réu. Não houve manifestação de interesse, por parte de José, em entrar com re-
curso junto à decisão em primeira instância, justamente por já estar trabalhando
e formalizado.
A pluralidade de situações envolvidas nos três processos judiciais aqui con-
siderados é bastante representativa em relação à realidade jurídica envolvendo
demandas contra o INSS e, por esta razão, constituem importantes fontes docu-
mentais a serem analisadas neste estudo.

APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS

Procurou-se reunir, a seguir, o conjunto de elementos transversais da pesqui-


sa de campo, de modo a encontrar unidades léxicas (que sintetizam o conteúdo
transcrito nos documentos e entrevistas realizados, a partir da técnica da análise

103
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

de conteúdo) que reincidam e convergências (transversalidades) que possibilitem


uma compreensão totalizadora dos casos considerados.

ELEMENTO TRANSVERSAL DAS HISTÓRIAS DE VIDA PESQUISADAS


CASOS ORGANIZAÇÃO LÉXICA
Eva violência-trabalho-sofrimento
(alcoolismo dos pais)-{(trabalho precário)+(acidente do trabalho)}-
Ênio
isolamento-sofrimento
José dificuldades-instabilidade-(expectativas futuras)-(angústia?)
ELEMENTO TRANSVERSAL

sofrimento

Ainda que haja aspectos bastante peculiares em cada história de vida aqui
analisada, é possível contrapor as organizações léxicas de cada uma delas e identi-
ficar elementos que sejam transversais às três.
Mesmo que cada organização léxica tenha garantido às histórias de vida aqui
analisadas singularidades relevantes, foi possível perceber que as infâncias e ado-
lescências de Eva, de Ênio e de José foram marcadas por dificuldades financeiras
que lhes impuseram a necessidade de trabalhar desde crianças, dificultando seus
acessos a uma formação educacional de qualidade e induzindo-os à precariedade
laboral, nos mais diversos níveis.
Foi a precariedade no trabalho, portanto, que gerou o aviltamento em suas
condições de vida, fosse em razão do adoecimento ocupacional ou do acidente de
trabalho típico, provocando-lhes drásticas consequências e gerando-lhes níveis
diversos de sofrimento. Diante disso, o sofrimento é a unidade léxica comum e o
elemento transversal em relação às suas histórias de vida e que deverá ser conside-
rado como bastante significativo na síntese analítica geral.
A entrevista qualitativa semiestruturada, utilizada como instrumento inves-
tigativo para compreender as dimensões psicossociais dos casos aqui analisados,
foi, sem dúvida, a ferramenta mais valiosa quanto à inteligibilidade dos aspectos
referentes às histórias de vida de Eva, de Ênio e de José.

104
A (IN)VISIBILIDADE DOS “(IN)CAPACITADOS PARA O TRABALHO”

DIMENSÕES PSICOSSOCIAIS CONVERGENTES


CASOS ORGANIZAÇÃO LÉXICA
trabalho-adoecimento-limitação-sofrimento-isolamento-[incompreensão]-
Eva
indignação-revolta-impotência-descrença-torpor-desalento
trabalho-autonomia-(acidente de trabalho)-limitação-isolamento-sofrimento-
Ênio
[negligência]-indignação-incerteza-desesperança-prostração
disposição-trabalho-(acidente de trabalho)-limitação-sofrimento-isolamento-
José
[descaso]-{resignação+(sofrimento embargado)}-indignação-adaptação
ELEMENTOS CONVERGENTES

trabalho-{adoecimento ou (acidente de trabalho)}-limitação-sofrimento-isolamento-


-[incompreensão ou negligência ou descaso]-indignação-(desalento/desesperança/preocupação?)

De uma maneira geral, adoecidos ou lesionados pelo trabalho, os três sujei-


tos desenvolveram algum nível de limitação que lhes gerou um sofrimento sig-
nificativo e um isolamento social importante, mas que não foram identificados
e/ou considerados pelo órgão público previdenciário brasileiro. Indignados pela
incompreensão, negligência ou descaso da Previdência Social brasileira, mesmo
após ingressarem na justiça, sentem-se, atualmente, preocupados, desesperanço-
sos e/ou desalentados em relação a seus futuros.
A necessidade de trabalhar desde criança tolheu de Eva, de Ênio e de José
a possibilidade de um desenvolvimento socioeducativo que lhes permitisse uma
inserção mais estável no mercado de trabalho.

CONTEXTOS SOCIOEDUCATIVOS COMUNS


CASOS ORGANIZAÇÃO LÉXICA
Eva (baixa qualificação profissional)-(precariedade do trabalho)-(baixa renda)
Ênio inconstância-insegurança-indefinição
José inconstância-(acidente de trabalho)-adaptação-preocupação
CONTEXTO COMUM

inconstância

A inconstância no trabalho lhes gerou, por conseguinte, a instabilidade em


seus rendimentos e em seus acessos à proteção social e, num ciclo infesto, con-
tinuou a lhes obstar seus desenvolvimentos socioeducacionais, a lhes direcionar

105
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

para trabalhos precários que, posteriormente, lhes privaram da condição plena de


saúde, e a lhes sujeitar a um futuro inseguro e repleto de preocupação.
Tanto Eva, quanto Ênio e José apresentaram um quadro clínico bastante simi-
lar, caracterizado pela debilidade, tanto em relação à saúde física quanto à mental,
e que lhes geraram algum nível de limitação em relação às suas condições de vida.
Do ponto de vista da saúde física, os três desenvolveram doenças do sistema
osteomuscular e do tecido conjuntivo, com achados radiológicos em suas colunas
vertebrais, independentemente das causas (adoecimento, trauma por queda e le-
são por compressão, respectivamente, cujas origens ou potencializações remetem
ao trabalho que desempenhavam).

QUADRO CLÍNICO PREPONDERANTE


CASOS ORGANIZAÇÃO LÉXICA
debilidade-{(doenças do sistema osteomuscular e do tecido
Eva
conjuntivo)+(transtorno mental e comportamental)}
debilidade-{(doenças do sistema osteomuscular e do tecido
Ênio
conjuntivo)+(transtorno mental e comportamental)}
debilidade-{(doenças do sistema osteomuscular e do tecido
José
conjuntivo)+(transtorno mental e comportamental)}
QUADRO CLÍNICO PREPONDERANTE

debilidade-{(doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo)+


(transtorno mental e comportamental)}

No que concerne à saúde mental, Eva e Ênio desenvolveram um quadro de


depressão, enquanto que José pode ter desenvolvido um quadro de ansiedade ge-
neralizada incipiente, em razão das inseguranças futuras, ou residual, em relação
a um eventual stress pós-traumático.
No caso de Eva, a limitação física e financeira e o sofrimento impostos pelo
trabalho podem ter atuado como potencializadores de um problema de depressão
pregressa. Porém, no caso de Ênio e de José, o acidente de trabalho aparece como
principal desencadeador de seus transtornos mentais e comportamentais.
O conceito-chave presente nos processos judiciais de Eva, de Ênio e de José foi
a “incapacidade laboral”, conceito este que é central em relação ao julgamento de
suas ações contra o INSS.

106
A (IN)VISIBILIDADE DOS “(IN)CAPACITADOS PARA O TRABALHO”

UNIDADE CONCEPTUAL NOS PROCESSOS JUDICIAIS CONTRA


A PREVIDÊNCIA SOCIAL
CASOS ORGANIZAÇÃO LÉXICA
Eva {“(in)capacidade para o trabalho”?}
Ênio {“(in)capacidade para o trabalho”?}
José {“(in)capacidade para o trabalho”?}
UNIDADE CONCEPTUAL

{“(in)capacidade para o trabalho”?}

No entanto, optou-se também por transcrever a unidade conceptual dos três


processos no formato indagativo e derivativo de modo a contemplar as nuanças
processuais e as teses envolvidas
Buscando uma compreensão geral dos três casos analisados, o quadro a seguir
procura contrapor a síntese analítica resultante entre cada um deles para delimi-
tar, na sequência, uma síntese analítica geral.
A violência doméstica, o alcoolismo dos pais e/ou as dificuldades financei-
ras familiares levaram os três sujeitos aqui analisados a terem de trabalhar desde
crianças, dificultando seus desenvolvimentos socioeducativos e conduzindo-os a
trabalhos precários ao longo de suas vidas profissionais.
Tal situação os sujeitou a acidentes de trabalho, tanto por adoecimento ocu-
pacional quanto por acidente típico, gerando-lhes profundas debilidades em ra-
zão tanto de doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo quanto de
transtornos mentais e comportamentais, e trazendo-lhes limitações significativas
que culminaram em isolamento social e em sofrimento. Indignados com a incom-
preensão, com a negligência e/ou com o descaso enfrentados em agências locais do
órgão público previdenciário brasileiro, ingressaram contra o mesmo com ações
judiciais para garantirem o direito de se recuperar de tais debilidades de modo
adequado e com dignidade.

107
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

SÍNTESE ANALÍTICA GERAL


CASOS SÍNTESES ANALÍTICAS RESULTANTES
violência + (baixa qualificação profissional) à trabalho (precariedade do
trabalho) + (baixa renda) = adoecimento {debilidade (doenças do sistema os-
teomuscular e do tecido conjuntivo + transtorno mental e comportamental)
Eva
+ limitação} à sofrimento + isolamento à [incompreensão] à indignação
+ revolta à impotência + torpor à descrença à desalento à (incapacidade
para o trabalho)
(alcoolismo dos pais) à trabalho = autonomia à inconstância + inseguran-
ça + {(trabalho precário) + (acidente do trabalho)} = debilidade-{(doenças
do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo) + (transtorno mental e
Ênio
comportamental)} + limitação à isolamento + sofrimento à [negligência]
à indignação + indefinição + incerteza + insegurança à prostração + deses-
perança à (incapacidade para o trabalho)
dificuldades à trabalho + instabilidade + inconstância + disposição à
(acidente de trabalho) = debilidade-{(doenças do sistema osteomuscular e do
tecido conjuntivo) + (transtorno mental e comportamental)} + limitação à
José
(angústias?) + sofrimento + isolamento à [descaso] à indignação + {resig-
nação + (sofrimento embargado)} à adaptação à (expectativas futuras) +
preocupação à {(in)capacidade para o trabalho?}
SÍNTESE ANALÍTICA GERAL

violência/(alcoolismo dos pais)/dificuldades à trabalho-(trabalho precário) à (acidente de


trabalho: doença ocupacional e/ou acidente típico) à debilidade-{(doenças do sistema oste-
omuscular e do tecido conjuntivo) + (transtorno mental e comportamental)} + limitação à
isolamento + sofrimento à [incompreensão/negligência/descaso] à indignação à desalento/
desesperança/preocupação à {“(in)capacidade para o trabalho”?}

No entanto, independentemente das sentenças judiciais, o desalento, a deses-


perança e a preocupação traduzem um sentimento comum de incerteza em rela-
ção ao futuro, frente às dúvidas que suas atuais condições de saúde física e mental
trazem em relação às suas capacitações para o trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final, foi observado que (1) o trabalho é central na vida dos sujeitos pesquisa-
dos, desempenhando uma função positiva, enquanto mediador de primeira ordem,
e outra negativa, enquanto mediador de segunda ordem (ANTUNES, 2001, 2002);
(2) a redução do trabalho vivo à força de trabalho enquanto mercadoria, que pode

108
A (IN)VISIBILIDADE DOS “(IN)CAPACITADOS PARA O TRABALHO”

desencadear a crise da subjetividade e da intersubjetividade do homem-que-traba-


lha (ALVES, 2011a), foi observada nos três sujeitos aqui considerados, sugerindo
tratar-se de um processo significativo da dinâmica subjetiva do estranhamento
vivenciado por eles; (3) o estado de saúde dos trabalhadores aqui analisados apre-
senta estreita relação com o estranhamento vivenciado por eles em suas condições
de trabalho; (4) a incapacidade para o trabalho, alegada pelos sujeitos pesquisados,
refere-se à incapacidade para o trabalho estranhado; (5) quanto mais especializado
foi o foro de discussão do mundo do trabalho, no sistema judiciário, mais assertivo
e efetivo foi o julgamento; (6) na medida em que o órgão público previdenciário, o
Estado e o judiciário brasileiro vêm ignorando conceitos fundamentais do mundo
do trabalho, e de sua relação com a saúde do trabalhador, maior tem sido a tendência
de crescimento das demandas jurídicas; e (7) as histórias de vida aqui analisadas
constituíram, sob vários aspectos, a história da vida em sociedade (HOULE, 2012),
reproduzindo elementos pertinentes ao homem-que-trabalha numa sociedade-que-
-vive-do-trabalho, sugerindo que os aspectos levantados por este estudo refletem o
metabolismo e a morfologia social do trabalho neste início de século XXI.

REFERÊNCIAS

ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário jurídico brasileiro Acquaviva. 9ª Ed.; São Paulo: Editora Jurídica
Brasileira, 1998.

ALVES, Giovanni. Trabalho, subjetividade e capitalismo manipulatório: o novo metabolismo social do traba-
lho e a precarização do homem que trabalha. Manuscrito. Out 2010.

_____. Trabalho flexível, vida reduzida e precarização do homem que trabalha: perspectivas do capitalismo
global no século XXI. In: ALVES, Giovanni; VIZZACCARO-AMARAL, André Luis; MOTA, Daniel Pestana.
Trabalho e saúde: A precarização do trabalho e a saúde do trabalhador no século XXI. São Paulo: LTr, 2011a,
pp. 39-55.

_____.Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boi-
tempo, 2011b.

_____. Produção do capital e a degradação da pessoa humana: notas críticas sobre a barbárie social e a preca-
rização do homem-que-trabalha. In: ALVES, Giovanni; VIZZACCARO-AMARAL, André Luís; MOTA, Da-
niel Pestana. Trabalho e estranhamento: saúde e precarização do homem-que-trabalha. São Paulo: LTr, 2012,
pp. 25-43.

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 5ª Ed. São
Paulo: Boitempo, 2001.

109
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

_____. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do trabalho. 8ª Ed. São Paulo: Cor-
tez, 2002.

CARDOSO, Maurício. Metade dos processos do país está em quatro tribunais. In: Consultor Jurídico Revista
Eletrônica. São Paulo, 1º setembro 2011. Disponível em < http://www.conjur.com.br/2011-set-01/quatro-tribu-
nais-respondem-metade-movimento-judicial-pais>. Acesso em 07 janeiro 2013.

CELLARD, Andre. A análise documental. In: POUPART, Jean et al. A pesquisa qualitativa: enfoques episte-
mológicos e metodológicos. Trad. Ana Cristina Arantes Nasser. 3ª Ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2012, pp. 295-316.
(Coleção Sociologia)

CHIZZOTTI, Antônio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 7a Ed. São Paulo: Cortez, 2005.

HOULE, Gilles. A sociologia como ciência da vida: abordagem biográfica. In: POUPART, Jean et al. A pesquisa
qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Trad. Ana Cristina Arantes Nasser. 3ª Ed. Petrópolis-
-RJ: Vozes, 2012, pp. 317-334. (Coleção Sociologia)

JACCOUD, Mylène; MAYER, Robert. A observação direta e a pesquisa qualitativa. In: POUPART, Jean et al.
A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Trad. Ana Cristina Arantes Nasser. 3ª Ed.
Petrópolis-RJ: Vozes, 2012, pp. 254-294. (Coleção Sociologia)

KHUN, T. S. Estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.

PIRES, Álvaro P. Sobre algumas questões epistemológicas de uma metodologia geral para as ciências sociais.
In: POUPART, Jean et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Trad. Ana Cristi-
na Arantes Nasser. 3ª Ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2012, pp. 43-94. (Coleção Sociologia)

POUPART, Jean. A entrevista de tipo qualitativo: considerações epistemológicas, teóricas e metodológicas. In:
POUPART, Jean et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Trad. Ana Cristina
Arantes Nasser. 3ª Ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2012, pp. 215-253. (Coleção Sociologia)

POUPART, Jean et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Trad. Ana Cristina
Arantes Nasser. 3ª Ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2012. (Coleção Sociologia)

TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em edu-
cação. São Paulo: Atlas, 2011.

VIZZACCARO-AMARAL, André Luís. Trabalho, saúde e estranhamento na primeira década do século XXI.
In: ALVES, Giovanni; VIZZACCARO-AMARAL, André Luís; MOTA, Daniel Pestana. Trabalho e estranha-
mento: saúde e precarização do homem-que-trabalha. São Paulo: LTr, 2012, pp. 68-83.

110
CAPÍTULO 5
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO
DAS DOENÇAS DO TRABALHO
E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE
TRABALHADORES

Maria Elizabeth Antunes Lima

INTRODUÇÃO

O Nexo Técnico Epidemiológico (NTEP), desde sua vigência, em 2007, vem


sendo apresentado como uma verdadeira “revolução” no campo da saúde do tra-
balhador no Brasil (Machado, Soratto & Codo, 2010).1Acreditamos que já não
restam muitas dúvidas de que, ao ser posta em prática, essa metodologia permitiu
que os problemas relativos à saúde nos contextos laborais adquirissem maior visi-
bilidade. Como disse Schwarzer (2010) no prefácio à obra acima citada, embora o
modelo seja sofisticado, a lógica do NTEP é muito simples:

“quando um trabalhador solicita auxílio-doença ao INSS e há ausência de


Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), mas existe uma forte corre-
lação estatística entre a lesão ou doença e o setor de atividade econômica à
qual o trabalhador está vinculado, o médico perito pode estabelecer o Nexo
Técnico Epidemiológico entre o agravo e o ambiente de trabalho.” (p. 8)

1 Na obra citada, os autores definem o NTEP como “uma nova metodologia de avaliação dos aci-
dentes e doenças no trabalho que se utiliza da epidemiologia para estabelecer os riscos que atin-
gem a saúde do trabalhador.” (Machado, J., Soratto, L. & Codo, W., 2010)

111
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Ao inverter o ônus da prova, liberando o trabalhador da exigência de provar


o nexo entre seu problema de saúde e o trabalho e passando a exigir da empresa
a comprovação de que as condições laborais que oferece não são as verdadeiras
responsáveis pelo problema, essa nova medida permitiu que muitos problemas, até
então ocultos, viessem à tona. No entanto, é o mesmo Schwarzer (id.) que admite
a permanência de “um grande conjunto de agravos à saúde do trabalhador não
captados pelas estatísticas oficiais, sem emissão – intencional ou não – de CAT (...).”
(p.8) É sobre essa legião de indivíduos que adoecem no trabalho, mas que não são
captados pelas estatísticas oficiais e, portanto, não identificados pelo NTEP, que
gostaríamos de tratar neste ensaio.
Essa questão foi objeto de uma tese de doutorado, apresentada recentemen-
te, na qual se lançou luz sobre essa “nova categoria de trabalhadores que vem se
constituindo na linha de contorno que separa os trabalhadores formalizados dos
desempregados” (Vizzaccaro-Amaral, 2013, p. 7). Trata-se, segundo o autor, da-
queles que, embora tendo trabalhado dentro da legalidade, isto é, com todos seus
direitos assegurados, ao sofrerem um acidente ou um adoecerem, “deparam-se
com o indeferimento ou a cessação precoce de benefícios previdenciários, aos quais
têm direito”, ficando, por esse motivo, impossibilitados de retornar à sua ocupação
“em razão de uma ‘incapacidade laboral’, temporária ou definitiva e parcial ou
total” (p.7). O autor completa seu pensamento dizendo que “impelida a um ‘vácuo
institucional’ e sem qualquer fonte de remuneração, resta a essa categoria de traba-
lhadores o processo judicial (...)”. (p. 7)
Neste ensaio, pretendemos focalizar essa “nova categoria de trabalhadores” -
já identificada e analisada por Vizzaccaro-Amaral no estudo que deu origem à sua
tese -, tomando por base um caso no qual atuamos não apenas na elaboração de
um laudo incorporado ao processo judicial como também da perícia.

1. O CASO M. 2

Nosso primeiro contato com M. ocorreu por meio do seu advogado que
nos solicitou, em 2009, um diagnóstico do seu caso. Ele já possuía um laudo de

2 Retiramos do relato do caso todos os elementos que possam permitir a identificação dos envolvidos.

112
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

acompanhamento de uma psicóloga e vinha de um longo e exaustivo período de


busca por tratamentos e de luta pelos seus direitos, após ter sofrido um assalto, em
2006, no ônibus da empresa, ao retornar para casa ao final de sua jornada de tra-
balho. Como último recurso para fazer valer seus direitos, estava recorrendo à jus-
tiça trabalhista e é sobre sua trajetória que pretendemos discorrer neste momento.
Para elaboração do laudo, cuja síntese será exposta a seguir, foram entrevis-
tados, além de M., sua mãe e sua esposa. Contamos também com outras fontes,
como laudos elaborados pela psicóloga e pelos psiquiatras que o atenderam no
período que antecedeu a procura de nossa equipe.

1.1 A história de M.3

M. tinha 33 anos quando foi iniciada a elaboração do seu laudo. Ele havia
trabalhado na área operacional na empresa D., fabricante de peças para o setor
automotivo, entre 2006 e 2007, de onde saiu com um quadro de Transtorno de
Estresse Pós-Traumático. Tinha o primeiro grau incompleto, era natural de Belo
Horizonte e, naquele momento, estava desempregado, mas trabalhando informal-
mente com um irmão.
Era o quinto filho de uma família de 11 irmãos. Viveu em Belo Horizonte até
os 13 anos de idade, ocasião em que se mudou com o irmão mais velho para o sítio
dos pais, situado em uma cidade vizinha à capital. Tinha boas lembranças de sua
infância, apesar das dificuldades financeiras vividas pela família numerosa e da
separação dos pais, ocorrida um ano antes. Esta foi a experiência mais marcante
de sua infância, embora a decisão dos pais pelo divórcio não tenha sido uma sur-
presa, já que viviam em conflito. Durante vários anos, M. presenciou a insatisfa-
ção de sua mãe com as atitudes do pai que saiu algumas vezes de casa até optar
pela saída definitiva, quando foi viver com outra mulher.
Embora previsível, a separação dos pais foi posta por ele como um aconteci-
mento marcante. Isso ficou evidente no depoimento de sua mãe, uma vez que esta
o descreveu como uma criança muito quieta e calma, que deu menos trabalho
que os outros irmãos, porém, aos 12 anos, apresentou uma alteração de humor,

3 O laudo foi elaborado por Márcia Pereira Inácio, na época aluna do 9º período do curso de psico-
logia da UFMG, sob nossa supervisão. Foi a partir dele que chegamos aos dados apresentados a
seguir.

113
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

tornando-se mais nervoso e agitado. Ela relacionou essa mudança com seu di-
vórcio do marido, dizendo também que M. nasceu em uma época em que seu
casamento já não era bom, ocorrendo “brigas e traições”.
O pai foi definido por M. como “seco e distante”. Era gerente comercial de uma
transportadora e trabalhava viajando e, por isso, não era muito presente na vida
familiar. M. presenciou, inclusive, discussões entre os irmãos mais velhos e o pai,
pois este não cooperava financeiramente como poderia, gastando seu dinheiro em
relações extraconjugais. Na visão de sua mãe, o marido era muito severo com os
filhos, repreendendo-os com frequência e tornando desagradável a vida familiar.
Ela relata, inclusive, um desentendimento maior entre M. e o pai na ocasião do
divórcio, gerando um rompimento que durou dez anos e que só se desfez após a
interferência de um irmão. M. falou sobre essa desavença, dizendo que, ao mani-
festar sua discordância sobre a conduta do pai, este foi muito grosseiro, reagindo
aos “gritos”. Embora não tenha respondido, decidiu romper com ele, preferindo
morar com a mãe. Esta foi descrita como boa e carinhosa, sugerindo haver muito
afeto no seu relacionamento com os filhos.
M. diz que sempre gostou de viver em lugares mais calmos e, por isto, quando
o pai comprou um sítio, logo se dispôs a cuidar do mesmo, apesar de estar com
apenas 13 anos. Passou a morar com o caseiro e com o irmão mais velho, rece-
bendo a visita dos pais nos fins de semana. Mas, ao tomar essa decisão, acabou
por interromper os estudos, o que era motivo de arrependimento de sua parte,
lamentando o fato de seus pais não o terem “obrigado” a permanecer na escola.
Sua adolescência foi relembrada como um período muito bom, sendo ressal-
tadas a independência e a liberdade que sentia, por viver no sítio, ao lado dos ami-
gos, participando de festas, fazendo cavalgadas e passeios nas cachoeiras. Mesmo
tendo experimentado cedo o fumo e a bebida, disse que isso não afetou sua vida
social e nem acarretou problemas de saúde. Quando o encontramos, havia quatro
anos que não fazia uso de bebida alcoólica.
M. conheceu sua esposa aos vinte anos, namoraram cerca de dois anos e de-
cidiram morar juntos, na casa de uma cunhada na Região Metropolitana de Belo
Horizonte. Após um tempo, ela engravidou e decidiram se mudar para uma cida-
de vizinha, passando a residir em uma casa pertencente ao sogro, onde ainda se
encontravam no momento em que realizamos o laudo.
Ele definiu sua esposa como uma ótima companheira e demonstrava encon-
trar nela um ponto de apoio importante. O casamento parecia estável, embora, em

114
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

2005, tenha ocorrido um sério desentendimento entre o casal. Segundo a esposa,


nesta época, M. decidiu abrir um comércio com a irmã, sem comunicá-la e ela
se sentiu traída, o que a fez se afastar do marido por um ano. Ela o definiu como
um sujeito muito fechado, meio teimoso, mas que tinha um “bom coração”, sendo
solidário com as pessoas que necessitavam dele.
O casal sempre trabalhou fora e, nos fins de semana, a família costumava ir
para o sítio do sogro. Em 1998, nasceu sua única filha e este momento foi descrito
por M. como o melhor de sua vida. Demonstrou ter uma boa relação com a meni-
na, tentando oferecer a ela tudo o que não pôde ter na sua infância. Disse preferir
não ter outros filhos para poder dar à filha o conforto que ele próprio não teve por
vir de uma família numerosa.
M. disse nunca ter tido doenças graves, afirmando ter “uma saúde de ferro”,
só vindo a adoecer após o incidente ocorrido na última empresa onde trabalhou.
Esse evento marcante em sua vida será relatado a seguir.

1.2 A vida profissional

M. se definiu como um “bom trabalhador”, cumprindo suas obrigações da


melhor e mais rápida forma possível, pois sempre acreditou que a empresa depen-
de da quantidade e da qualidade do que cada um produz. Ele procurava, então,
seguir as normas e atender às exigências de produção. Sobre sua relação com a
hierarquia, disse que, ao ocorrer um problema no trabalho, se concluísse que es-
tava errado, não discutia com a chefia, apenas acatava suas ordens. Porém, se con-
siderasse que estava com razão, procurava se defender e expor seus argumentos.

1.2.1 Atividades anteriores à Empresa D.

M. iniciou sua vida laboral no sítio dos pais, aos 13 anos de idade, onde cuida-
va dos animais e plantava para subsistência. Ainda bem jovem trabalhou também
como servente de pedreiro por poucos meses e, posteriormente, em uma trans-
portadora do pai, onde permaneceu por dois anos, realizando várias atividades
mais simples, até que esta faliu.
Em 1997, aos 22 anos de idade, teve pela primeira vez sua carteira assinada na
Siderúrgica TS. Permaneceu nessa empresa por 06 meses, pois sofreu um acidente
de trabalho e preferiu pedir demissão. Trabalhava na fundição, retirando metal

115
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

quente do forno e transformando-o em peças. O acidente aconteceu, segundo ele,


por falta de manutenção das máquinas em que trabalhava, visto que a concha com
a qual retirava o metal quente teve seu fundo perfurado devido ao calor e o metal
caiu em sua perna, queimando sua roupa. Embora tenha sofrido várias queima-
duras na perna e no pé, seu chefe não o autorizou a ir à enfermaria, o que o deixou
muito decepcionado com a empresa. Além disso, tinha medo de contaminar-se
com chumbo, visto que havia um alto índice de contaminação nessa empresa. Esse
fator, somado com o tratamento recebido na ocasião do acidente, fez com que se
decidisse pela demissão.
Após ficar cerca de dois meses desempregado, M. foi trabalhar em uma em-
presa de usinagem e caldeiraria pertencente ao sogro, onde permaneceu por quase
9 anos. Nessa firma, era operador de linha e recebia por hora de trabalho, mas, es-
tava sempre produzindo além da quota exigida. Quando terminava sua produção,
ia para outra área realizar tarefas extras.
Decidiu demitir-se devido a um desentendimento com um dos seus chefes. A
empresa pertencia a três sócios, sendo que o sogro era responsável pelo escritório e
os outros dois cuidavam da usinagem e da caldeiraria. Algumas tarefas desempe-
nhadas por M. deveriam ser realizadas em dupla, no entanto, seu chefe imediato
não designava com quem iria trabalhar, exigindo que ele mesmo resolvesse essa
questão. Portanto, era M. que deveria solicitar ao colega que deixasse seu posto de
trabalho para ajudá-lo, mesmo sem exercer qualquer cargo de liderança. Tal situ-
ação gerava desentendimentos constantes com os pares, sendo que não contava
como o apoio da chefia na resolução desses conflitos. Diante disso, passou a traba-
lhar sozinho, recusando-se a solicitar ajuda de outros, o que afetou negativamente
sua produção. Tudo isso o incomodava muito e intensificou os desentendimentos
com a chefia, levando-o a se decidir novamente pela demissão.
M. conseguiu um acordo com a direção da empresa e foi demitido, o que lhe
permitiu sair com uma boa quantia que investiu em um negócio próprio, abrindo
um bar e mercearia com uma irmã, em uma cidade próxima a Belo Horizonte. No
entanto, as dificuldades com o controle dos gastos levou à falência do negócio e,
por isto, decidiu romper a sociedade.
Foi durante esse período que se separou da esposa, mas ao abandonar a socie-
dade com a irmã, retornou para a família, sendo que, após alguns meses, começou
a trabalhar na empresa F. Lá, trabalhava em uma cabine de pintura de peças e, ao
final do expediente, tinha que limpar um forno utilizando tíner, uma substância

116
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

tóxica e proibida.4 Ele afirma que o contato com esse produto já estava prejudi-
cando sua saúde, visto que ficava tonto e, às vezes, confuso. Este fato, somado aos
roubos constantes nos armário dos vestiários dos empregados, levou-o a desistir
do trabalho com apenas dois meses de empresa. Antes de sair, solicitou ao respon-
sável pelo departamento de pessoal que fizesse alguma coisa a respeito dos roubos,
mas como este não fez nada, preferiu sair. Foi nessa ocasião, que um amigo o in-
dicou para trabalhar na empresa D.

1.2.2 O trabalho na Empresa D.

M. começou a trabalhar nessa empresa, em novembro de 2006. Era alimen-


tador de linha no setor de almoxarifado geral, sendo responsável por abastecer
quatro linhas de produção na montagem de alternador de carros. Sua jornada de
trabalho era de nove horas, iniciando às 15:48h da tarde e finalizando à 01:10h da
madrugada.
Ao ser admitido, encontrava-se em bom estado de saúde física e mental, o que
foi confirmado pelo exame admissional. Devido à preocupação com a exposição
ao chumbo e ao tíner, realizou exames de sangue, constatando que não havia sido
contaminado por esses produtos.
Era grande sua satisfação com o novo emprego, pois se tratava de uma boa
empresa para trabalhar, oferecendo remuneração satisfatória e bons benefícios.
Considerava também o ambiente bem mais “limpo” se comparado àqueles onde
atuou anteriormente. Apesar disso, achava seu trabalho “muito pesado”, pois seu
ritmo era maior do que aquele exigido aos colegas de setor, já que abastecia quatro
linhas de produção, enquanto os outros abasteciam apenas duas linhas. De acordo
com a empresa, tal diferença era justificada pelo tipo de contrato: enquanto os
colegas tinham a carteira assinada como ajudantes no almoxarifado, ele estava
registrado como alimentador de linha. Seja qual for a justificativa, o fato é que o
ritmo intenso de trabalho impedia até mesmo a satisfação de necessidades fisioló-
gicas tais como beber água e ir ao banheiro, visto que não podia parar de alimen-
tar as linhas sob sua responsabilidade. A folga maior que tinha durante a jornada

4 Tíner (do inglês thinner) é um solvente para tintas e vernizes e que contém substâncias altamente
tóxicas, sendo também inflamável.

117
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

de 9 horas, era de uma hora para o jantar e, segundo ele, se atrasasse “um minuto”
já encontrava as linhas sem abastecimento e ameaçando parar. Havia também
uma pausa de 15 minutos, mas nunca usufruía dela integralmente. Em geral, após
tomar um copo de suco e ir ao banheiro, voltava rapidamente para seu posto de
trabalho, pois se ficasse o tempo previsto, a linha poderia parar.
Apesar disso, com o passar do tempo, M. adaptou-se ao “ritmo pesado”, con-
seguindo alimentar satisfatoriamente as quatro linhas. Ele não se importava por
ter de apresentar uma produção maior do que aquela dos colegas, dizendo já es-
tar acostumado com isso, já que era comum produzir acima da média nas outras
empresas onde trabalhou. O importante era conseguir realizar um trabalho bem
feito e este parecia ser o valor maior, aquele que servia de base para sua prática
profissional: “por que eu não me incomodo, se eu dou conta de fazer, eu morro
fazendo aquilo, mas eu faço certo, entendeu?”
Seu trabalho era coordenado por dois chefes diretos, sendo um do período
da tarde e outro da noite. O primeiro foi descrito como “um sujeito rude”, que
exigia muito dos subordinados, cobrando produção e rapidez no desempenho das
tarefas. Essa pressão, às vezes, gerava pequenos acidentes entre os colegas, sendo
alguns presenciados por M. Já o chefe do turno da noite foi descrito como mais
humano, pois cooperava com os subordinados e facilitava o trabalho de todos.

1.2.2.1 O assalto ao ônibus da empresa D.

No dia 29/12/2006, aproximadamente dois meses após ser admitido pela D.,
M. sofreu um assalto enquanto voltava do trabalho, no ônibus contratado pela
empresa para transportar seus empregados. Tudo aconteceu por volta de 1h:30m
da madrugada, cerca de 15 minutos após a saída da empresa.
Segundo ele, o ônibus foi cercado por um carro de passeio, ao parar em um
local para o desembarque de uma pessoa. Naquele instante, quatro assaltantes
armados entraram e renderam os passageiros: “eles colocaram o bico da arma na
porta assim (...). O motorista abriu a porta, eles viraram pro motorista e falou: ‘mo-
torista põe uma mão na alavanca e a outra no volante e segue esse carro’.”
A partir daquele momento, seguiram-se momentos de desespero dentro do
ônibus, visto que os assaltantes gritavam, exigindo dinheiro e humilhando todos
os ocupantes. As cenas que se desenrolaram foram de terror:

118
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

“(...)Eles gritando: ‘eu quero dinheiro, vocês (...) receberam hoje , cê tá com
dinheiro’. (...) Eles pegaram uma menina com o salário dela todo no bol-
so, com 600,00 reais. Aí, eles endoidaram, queriam dinheiro de todo jeito.
Tiraram a roupa do meu colega porque pegou ele com contracheque, sabe?
Tirou a roupa dele todo, colocou ele pelado dentro do ônibus gritando: ‘eu
quero dinheiro’. Colocou revólver na cabeça dele. E um fez assim com a
camisa e foi colocando aquele tanto de coisa, encheu a camisa.”

Embora tenha obedecido a todas as ordens dos assaltantes e evitado olhar


para seus rostos, M. foi agredido por um deles, que lhe bateu fortemente com o
cabo do revólver, ao pedir-lhe o dinheiro:

“Na hora que eles entrou eu fiquei assim (olhando para baixo e com as
mãos para o alto), pra não caçar problema com eles, porque eles não gos-
tam que fique olhando, né? Aí, ele pegou e falou: ‘me dá a carteira, me dá a
carteira’, e nisso ele me bateu na costela. Eu fui e tirei a carteira do bolso e
dei eles; e no bolso tava o celular, eu tirei e dei tudo pra eles.”

Ao longo do assalto, houve um disparo acidental dentro do ônibus, levando os


assaltantes a desistir de continuar o roubo:

“(...) Tinha um moreninho (e quando ele veio) pra frente, a arma tava en-
gatilhada, aí, ele bateu na poltrona. (Ao) bater na terceira poltrona, ela (a
arma) disparou e acertou a segunda poltrona; acertou as nádegas da me-
nina que tava sentada na frente. No que disparou o tiro, eles assustaram e
falou: ‘sujou, vamos embora, abre a porta motô’. O motorista abriu a porta,
eles tomaram a chave do ônibus, desceram correndo e entrou tudo dentro
do carro e foi embora.”

Com a partida dos ladrões, os trabalhadores utilizaram um celular que não ha-
via sido roubado e ligaram para a polícia. Ao chegar ao local, os policiais levaram a
colega ferida para o hospital e solicitaram outra viatura para realizar a ocorrência.
Após tais procedimentos, o ônibus foi liberado e todos foram levados para casa.
A funcionária atingida teve ferimentos leves e M. teve escoriações na costela.
Sua esposa relata que nesse dia, ele tentou ligar durante toda a noite, porém, ela

119
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

não ouviu as chamadas. Por volta de 06h da manhã, ele chegou à sua casa com
sinais claros de nervosismo:

“Ah, ele chegou assustado falando: ‘nossa, eu te liguei um tanto de vezes,


você não sabe o que aconteceu’. Assustado, sabe? Machucado e com medo,
tremendo demais! Ele chegou, foi tomar banho e dormir. Fomos ao médico,
depois no hospital, tirou Raio X, deu um hematoma. E, depois, começou
com os sintomas de nervoso, deu diarréia na mesma semana.”

Segundo M., a partir desse acontecimento, todos os colegas passaram a ter


medo do retorno para casa. Ele mesmo, não conseguia mais dormir no ônibus,
como era seu hábito antes do assalto:

“Mais, aí, desse dia pra cá, todo mundo ficava com medo. Era todo dia,
entrava dentro do ônibus e dormia. (...) desse dia pra cá eu não dormia mes-
mo. Eu não levava celular, não levava nada, só meu crachá e minha carteira
de identidade. Ia com a roupa da firma, voltava com roupa da firma, porque
antes eu ia com roupa minha, né?”

1.2.2.2 O período posterior ao assalto: o início do quadro de Estresse Pós-


-Traumático (TEPT)

Logo após o assalto, M. começou a apresentar sintomas como nervosismo exa-


gerado, diarréia, pressão alta e febre:

“Eu já não queria entrar no ônibus de jeito nenhum, eu ia porque eu tinha


que trabalhar, mas só foi piorando. Eu comecei a sentir aquele abafamento,
passei mal na firma, me deu febre, eu tremia demais! Me mandaram pra
Unimed e eu fui embora, fui trabalhar de novo, passei mal e depois de
uns quinze dias eu fui internado de novo. Ninguém descobria o que era
e chamaram a psicóloga e ela me passou pro doutor A. (psiquiatra), aí, eu
comecei a tomar os remédios. Eu chorava, só pensava em suicídio, tinha
medo demais, só queria ficar em casa.”

120
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

Ele começou também a ter grande dificuldade para dormir, sentindo medo de
ficar sozinho em casa, além da vontade constante de chorar e o forte sentimento
de angústia:

“Já tinha acontecido o assalto quando eu parei de dormir. Foi só aumentan-


do, aí, eu comecei a trabalhar à noite e ficar o resto da noite sem dormir,
fiquei o dia sem dormir. Eu comecei a tomar suco de maracujá natural
pra ver se eu dormia, mas não consegui dormir. Fiquei duas noites e dois
dias diretos sem dormir, aí, fiquei três noites e três dias sem dormir. Eu
comecei a sentir mal, eu sentia como se eu estivesse preso, todo apertado,
abafado, aquele abafamento e deu vontade de chorar. Minha mulher levou
eu no médico e não tinha nada, mandou eu pra casa. Dentro de casa eu não
aguentava ficar, na rua eu não aguentava. Eu ficava andando no terreiro e
fui só piorando(...).”

O sintoma mais grave era a ideação suicida, pois M. começou a pensar insis-
tentemente em se matar. Ao mesmo tempo em que temia que alguém o matasse,
ele sentia vontade de acabar com a própria vida:“eu pensava em morrer e ficava
com medo de morrer. Eu tinha medo dos outro me matar de covardia, com revólver,
com faca, mas coragem pra tirar minha vida eu já tive, entendeu?”
Diante disso, M. foi internado em um hospital geral, mas o médico que o aten-
deu solicitou que procurasse imediatamente um psiquiatra, indicando um colega,
conforme explicou sua esposa:

“(...) Nesse dia, ele tava muito ruim, parecendo dopado! Estava medicado
com um sossega leão, ele não conversava, tava magro, quem conheceu ele
antes e viu ele nesse dia percebeu que ele tava com um semblante de do-
ente mesmo. Até pra andar ele precisava de ajuda, pra atravessar a rua. Ele
foi internado (...), (mas) o médico falou comigo que já tinha feito todos os
exames e pelas altas que ele tinha tido e as recaídas, o sintoma era de uma
depressão ou um trauma.”

Durante a consulta, M. falou com o psiquiatra sobre a vontade que tinha de


morrer e sua esposa ficou surpresa. Ela expressou sua apreensão ao saber das
ideias que assediavam o marido e sobre as quais ele nunca lhe havia falado:

121
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

“Ele contou pro psiquiatra, comigo do lado, que lá em casa tinha um ba-
lanço na árvore, e tinha as cordas que prendiam o balanço, mas o balanço
arrebentou (e) as cordas ficavam dependuradas. E ele falou pro médico que
a vontade dele era de amarrar o pescoço na corda e tentar se matar. Eu
ficava muito preocupada, tanto é que eu pedi meu tio pra ajudar, eu tirava
tudo de perto dele... a corda... Eu fiquei muito assustada depois disso (...).”

Com o passar do tempo, M. já não conseguia mais ficar em casa mesmo na


companhia do tio, solicitando a presença da esposa e demonstrando sua incapaci-
dade de suportar aquela situação:

“Ele me ligava falando: ‘vem embora, vem embora, eu não estou aguentan-
do’. Mesmo com a presença do meu tio ali, eu sei que eu sou o porto seguro,
ao menos naquela hora, mas eu não podia desesperar perto dele, porque
ele me ligava desesperado. Eu chegava e conversava com ele, abraçava ele,
ele chorava e falava que não estava aguentando aquilo mais, não suportava
mais aquela situação.”

1.2.2.3 O agravamento do quadro de TEPT

Com o agravamento do seu quadro, M. acabou sendo internado em uma clí-


nica psiquiátrica durante oito dias. Foi um período de intenso sofrimento, tanto
para ele quanto para a família. As visitas só eram permitidas à tarde e ele tinha
muito medo de dormir sozinho. Sua esposa relata como foram esses dias, expres-
sando a angústia que sentiu ao ver o sofrimento do marido:

“Quando a gente chegava, ele queria ir embora, só ficava chorando. (...) Ele
chorava muito, mesmo. (...) Eu vou ser sincera, na hora que eu vi o lugar
que ele ia ficar eu desabei. Então, pra mim era duro eu ir, mas eu tinha
que ir porque pra ele era pior do que pra mim. Ele ficou muito assustado,
aquelas pessoas sentadas no chão, indo pra cima dele. Ele ficou num quarto
separado, mas ele ouvia os gritos. Não era um lugar tranquilo, as pessoas
ficavam no chão, eles fumavam. O M. não saía no corredor, ficava só den-
tro do quarto.”

122
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

Após essa internação, M. passou a fazer uso de antidepressivo, ansiolítico e


sonífero, mas as crises continuaram, embora de forma mais espaçada. Elas acon-
teciam, principalmente, dentro da empresa ou quando estava sozinho em casa.
Ele continuava sentindo muito medo de usar o ônibus e, assim, ir para o trabalho
ou retornar para casa era sempre difícil:“quando eu trabalhava, meu medo era só
dentro do ônibus. Na empresa, eu não tinha medo. Fora da empresa, eu tinha medo.
Na hora que eu saía, à noite, eu ficava ligado com medo de ter outro assalto.”
Já sua esposa, percebia um nervosismo maior na sua saída para o trabalho:

“(...) o que eu notava é que quando chegava a hora de trabalhar tinha dia
que ele não queria ir, parece que ele ficou agitado depois do assalto. Na hora
que ele pegava o ônibus, passava mal, suava frio, tinha que sentar, tremia
e a segurança do trabalho não deixava ele trabalhar. Isso aconteceu cons-
tantemente. Se tivesse que ir sozinho ele não ia não, tinha uma barreira.”

De acordo com M., um dos colegas que também sofreu o assalto, apresentou
sintomas semelhantes aos seus:

“Teve um menino que apresentou sabe? Mas eles mudaram ele pra manhã,
porque ele não conseguia. Ele ia, pegava serviço 15:48 e não aguentava.
Quando começava escurecer ele ficava louco dentro da firma. Ele ficava
andando, falando: ‘eu quero ir embora, quero ir embora’. Chamava um táxi
e os colega dele levava ele embora. Aí, eles trocaram ele de turno, coloca-
ram no turno da manhã.”

Inicialmente, M. achou que a solução para sua ansiedade não seria a mudança
de turno e sim a mudança do setor de trabalho, para a linha de produção. O tra-
balho repetitivo, exigiria, segundo ele, uma maior concentração, reduzindo sua
agitação, pois não teria que ficar andando para pegar as peças, como fazia ao ali-
mentar quatro linhas. Mas seu pedido não foi atendido.
Apesar de todos esses problemas, ele continuava a realizar suas tarefas nor-
malmente, apresentando a mesma produção do período anterior ao assalto:“eu
trabalhava com o corpo cansado demais por causa do remédio e o pensamento era
só na hora de ir embora, mas conseguia abastecer as quatro linhas, produzia o
mesmo tanto.”

123
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Quanto aos seus chefes, apenas quando percebiam que M. estava passando
muito mal, colocavam um colega para ajudá-lo ou reduziam sua responsabilida-
de para duas linhas de produção. No entanto, isso ocorria raramente e a maior
parte do tempo, ele tinha de dar conta das quatro linhas habituais. Além disso,
o tratamento que reservavam aos subordinados não modificou após o assalto e
sua chefia não manifestou qualquer tipo de sensibilidade em relação ao problema:

“Lá, eles não dão moleza, eles são muito ignorante, maltrata os funcioná-
rios demais, mais muito mesmo! Eles não quer saber se você está bem ou
não, eles gritam : ‘tem que fazer, tem que fazer’! E não quer que a linha
pare, quer que você produza. Eu tinha dois chefes. Eles ficavam rodando as
linhas todas. Tinha um que era o chefe geral nosso, e tinha outro que era
tipo um líder, né? Todos dois era carrasco.”

1.2.2.4 A demissão da Empresa D.

Segundo M., poucos meses após o assalto, durante uma troca do turno da
tarde para o turno da noite, haveria mudança da espessura do fio que estava uti-
lizando. Como estava no horário de café, ele logo pensou em providenciar a troca
dos mesmos para facilitar o trabalho. Porém, o pessoal do almoxarifado não havia
retirado a peça a ser usada na troca dos fios, e ele não estava autorizado a realizar
tal tarefa. Apesar disso, o líder do setor exigiu aos gritos que fizesse a troca, agin-
do de forma extremamente grosseira e fazendo uso, inclusive, de palavrões. M.
reagiu a esse comportamento insinuando que ele estava trazendo seus problemas
pessoais para o ambiente de trabalho e pedindo que aquilo nunca mais aconteces-
se. O chefe não gostou de sua atitude, levando o problema para seus superiores.
Segundo ele, esse episódio foi um dos fatores que contribuíram para sua demissão,
já que esta ocorreu aproximadamente três meses após o desentendimento. Mas
tudo indica que o motivo maior, foi o excesso de faltas ao trabalho, embora todas
tenham sido justificadas:

“Todas as minhas faltas foram com justificativa. Mas, às vezes, eu passava


mal e tinha que ir embora. Aí, ficava só três na linha e atrapalhava o traba-
lho, ficava ruim. (A demissão) foi por isso e pela briga que eu tive, porque

124
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

eles ficaram de marcação comigo, ficava nas colas, me perguntando se eu


tava dando conta de fazer o serviço, querendo tirar alguma coisa.”

Certo dia, seu chefe solicitou que levasse todos os laudos médicos e psicológi-
cos para serem analisados no setor de Recursos Humanos, visando uma remoção
para outra área mais condizente com seu estado de saúde. No entanto, após a
entrega dos laudos, M. foi demitido:

“Foi depois que eu fiquei internado na clínica. O chefe da minha área pediu
pra eu pegar os laudos dos médicos e psicólogos pra ele levar no RH pra
mudar eu de seção, pra ver se eu melhoro, pra ver se não é ansiedade do
trabalho, porque o trabalho era pesado demais! Eu levei os laudos e passou
uns 30 dias e eles me mandaram embora. Nesse meio tempo, o médico do
trabalho da empresa me deu um laudo que eu estava bem, só que ele só
mediu a pressão e me liberou falando que estava tudo bem.”

Apesar de estar sendo acompanhado por um psiquiatra e um psicólogo, com


o diagnóstico de Transtorno do Estresse pós-traumático, M. foi considerado apto
para o trabalho, pelo médico da empresa e pelo INSS. Em novembro de 2007, foi
demitido, sem qualquer explicação. Tudo se passou rapidamente: “me chamou lá
dentro da sala e falou: ‘vou ser curto e grosso porque eu não tenho muito tempo não,
a gente tá te demitindo e você assina seu aviso, nós vamos pagar tudo’. Eu só assinei
e fui embora.”

1.3 O período posterior à demissão

Desde a época do assalto, M. passou a fazer acompanhamento psiquiátrico e


psicológico, mensalmente. Após a demissão, esse quadro não mudou e, no mo-
mento em que foi realizado o laudo pela nossa equipe ele fazia uso de ansiolítico,
antidepressivo e sonífero.
Apesar de todos esses medicamentos, apresentava-se ansioso e com medo de
transitar pela cidade. Dizia não suportar ficar sozinho e ter muito incômodo com
os ruídos típicos da cidade grande. Outro sintoma que apresentava era a facilidade
para se irritar. Devido a tudo isso, privava-se do contato social, isolando-se cada
vez mais, mesmo quando estava em casa. Evitava também ver jornais na TV e se

125
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

inteirar dos problemas que ocorriam ao seu redor. Esse quadro estava presente à
época da elaboração do laudo, portanto, mais de um ano após ser demitido:

“Eu tenho medo demais de sair de casa, ainda mais desses assaltos. Eu nem
vejo televisão, porque eu tenho medo demais! Fico vendo aquele tanto de
assalto, não vejo jornal de jeito nenhum. Parece que dá mais ansiedade, dá
tipo uma pressão, aí, eu começo a passar mal, começo a pensar em besteira,
fico pensando que alguém vai me matar.”

Ele se sentia incapaz de controlar a própria vida, percebendo-se como inválido


e cada vez mais distante das pessoas e de tudo que sempre valorizou:

“Ah, pra mim é igual uma pessoa inválida que não pode fazer nada, eu não
posso fazer nada. O que eu mais gostava de fazer era pescar e ir pra roça,
mas eu não posso. Ficar com minha filha, brincar com ela, levar ela pra
escola, eu não posso fazer nada disso. Ela tá crescendo e eu tô perdendo a
infância dela toda. Eu não tenho paciência, eu não tô servindo pra nada.”

O estado constante de irritação e angústia levava-o a se desentender com os


familiares, além de alimentar o isolamento da esposa, que ficava cada vez mais
distante:

“Tem dia que me dá uma afobação, um desespero, uma angústia, eu não te-
nho paciência. Me dá um estado de nervo, aí, às vezes, eu começo a chorar
de nervo, não converso com ninguém. Ela (a esposa) sofre né?Ela não pode
falar nada, tudo é patada, eu não tenho paciência de responder nada, aí, ela
já nem conversa comigo, porque ela vai conversar e tudo é má resposta. Ela
sai de manhã, eu tô dormindo, quando ela volta, eu também tô dormindo.”

Quando M. necessitava resolver algum problema pessoal, como ir ao médico,


o medo e a dificuldade de sair de casa eram solucionados através do tio da esposa
que compartilhava o mesmo terreno onde residia. Esse tio era pago para acompa-
nhá-lo, sendo apresentado por ele como “o meu segurança.”
Sua esposa falou sobre o comportamento do marido dentro e fora de casa,
ressaltando seu isolamento e, ao mesmo tempo, seu incômodo ao ficar sozinho ou

126
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

com os ruídos da cidade:“às vezes, ele gosta de ir pro quintal, mas se ficar sozinho,
fica naquela ansiedade (...) O barulho da cidade também incomoda (...). Quem co-
nhecia ele antes estranha; ele fica agitado, estressado, querendo ir embora.”
Segundo ela, todos esses problemas afetaram os projetos que o marido tinha
para o futuro, sendo um deles a retomada dos estudos:“quando ele entrou na D.
ele tinha começado a estudar, e depois do assalto ele não conseguiu mais estudar.
Fazia o supletivo de manhã, (...) depois não conseguiu mais. Ele não tem ânimo, não
adianta querer forçar ele agora.”
M. apontou a demissão da empresa D. como um agravante do seu estado de
saúde, visto que a partir daí, passou a ficar somente dentro de casa, sentindo-
-se mais ansioso e angustiado. Relatou que tinha dificuldades em arrumar outro
emprego, tanto devido aos medicamentos que fazia uso, quanto ao medo que ele
próprio sentia de não conseguir desempenhar bem suas tarefas. Em todo caso, não
estava disposto a mentir para conseguir novo emprego:

“Tô correndo atrás, mas as firmas não chama por causa dos remédios, né?
Porque não adianta eu chegar numa firma eles vai fazer entrevista e eu falo:
‘eu tô bem, eu tô isso, eu tô aquilo’, e se de repente eu não conseguir tra-
balhar? E os horários dos remédios que eu tenho que tomar? Eles descobre
que eu tô tomando remédio, aí, não resolve nada, eu chego e falo: ‘eu tomo
isso, isso e isso, e tem as horas’. Eu não posso chegar numa firma e falar as-
sim: ‘ah, eu tô pronto pra começar a trabalhar’, sendo que eu tomo remédio
forte. Eu tomo remédio pra dormir, se eu não tomar, eu não durmo. Eu vou
chegar numa firma e vou mentir, só pra poder fichar, chegar lá e eu tomar
fritada, não adianta nada. Porque pode alegar que eu entrei de má fé, né?”

Assim, embora tentasse encontrar uma nova ocupação, M. sempre se deparava


com as dificuldades impostas pela sua nova condição. Na ocasião em que deixou
seus dados em uma consultoria de recursos humanos, foi informado que não po-
deria ser indicado para nenhuma vaga, devido ao seu estado de saúde. Diante dis-
so, sentia-se cada vez mais prostrado, o que foi confirmado pela esposa. Esta cons-
tatava que, a cada consulta, o psiquiatra tendia a aumentar a dose do ansiolítico:“a
dose do remédio aumentou, o medo está voltando tudo como era antes.”
Em abril de 2008, M. foi convidado pelo irmão para trabalhar em sua em-
presa de tintas. Ele aceitou e passou a atuar como uma espécie de “quebra-galho”,

127
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

realizando várias atividades. Mas isso exigia dele um grande esforço para vencer
o medo de sair de casa, sendo enorme a dificuldade que enfrentava diariamente
para deslocar-se até à empresa:

“Tô trabalhando o dia todo. Acordo 6h e tem dia que eu vou de carro, aí,
eu vou dirigindo. Tá legal, não tenho medo de dirigir, só não gosto de pe-
gar muito trânsito. Tem um menino que mora em Betim que vai e volta
comigo. Ele trabalha na firma. No dia que peguei trânsito fiquei nervoso,
tremendo, mas é só não afobar. O médico pediu pra eu tentar, mas eu não
posso pegar o carro o dia que eu tomo remédio, aí, se eu tomar ele eu vou
de ônibus (...). Quando eu vou de ônibus o mesmo menino vai comigo,
pego dois ônibus. No dia que eu fui de ônibus eu tive medo (...). Tenho mais
medo de ônibus que de carro. Nesse dia, eu cheguei em casa passando mal,
tremendo demais! Fico dentro do ônibus olhando pra tudo quanto é lado.
Dou pro meu amigo minha carteira e meu telefone pra ele pôr na bolsa dele.
Eu tô sentindo que se eu ficar dentro de casa é pior, aí, eu tô enfrentando.”

Na empresa do irmão, M. estava conseguindo desempenhar as atividades pro-


postas, porém, sentia-se muito cansado devido à grande quantidade de medica-
mentos. Como o ambiente de trabalho era tranquilo, nos dias em que se sentia
“mais nervoso e agitado”, procurava afastar-se das pessoas e trabalhar sem con-
versar com ninguém.
Apesar das dificuldades, após iniciar nessa nova atividade apresentou alguma
melhora no seu quadro, transitando com mais tranquilidade pela cidade, conse-
guindo utilizar o ônibus e, algumas vezes, dirigir seu carro até o local de trabalho.
Tudo isso se deu a partir da oportunidade de retomar sua vida laboral, em um lo-
cal que aceitava suas limitações, bem como os efeitos dos medicamentos e as con-
sultas psiquiátricas e psicológicas que devia fazer esporadicamente. Mesmo assim,
continuava a lutar contra a ansiedade e angústia, ainda fortemente presentes.

1.4 Discussão do caso

A história de M. e os sintomas por ele apresentados eram coerentes com o


diagnóstico de Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT) (CID-10, F 43.1),
sendo também o único em torno do qual existe consenso entre as correntes que

128
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

compõem o campo da Saúde Mental no Trabalho. Trata-se, portanto, de um trans-


torno cuja gênese pode ser identificada na situação de trabalho, o que é admitido
pelos pesquisadores, independentemente de sua filiação teórica. Ele apresentava
os sintomas descritos no Manual de Doenças Relacionadas ao Trabalho (Ministé-
rio da Saúde do Brasil, 2001) como característicos do TEPT, sendo fácil constatar
seu quadro na seguinte descrição:

“o paciente apresenta uma sensação persistente de entorpecimento ou em-


botamento emocional, diminuição do envolvimento ou da reação ao mun-
do que o cerca, rejeição a atividades ou situações que lembram o episódio
traumático. Usualmente, observa-se um estado de excitação autonômica
aumentada com hipervigilância, reações exacerbadas aos estímulos e in-
sônia. Pode ainda, apresentar sintomas ansiosos e depressivos, bem como
ideação suicida.” (p. 182).

O manual afirma ainda que esse quadro caracteriza-se por uma “resposta pro-
traída a um evento ou situação estressante (de curta ou longa duração) de natureza
excepcionalmente ameaçadora ou catastrófica e que, reconhecidamente, causaria
extrema angústia em qualquer pessoa.” (id. 181). Esclarece, também, que “ fato-
res predisponentes, tais como traços de personalidade ou história prévia de doença
neurótica, podem baixar o limiar para o desenvolvimento da síndrome ou agravar
seu curso, mas não são necessários nem suficientes para explicar sua ocorrência”
(id. p. 181)
Portanto, de acordo com o manual, qualquer situação vivida anteriormente
por M. e que porventura tivesse contribuído para reduzir seu limiar de tolerância
a situações traumáticas, não justificaria por si só o seu quadro. Sendo assim, o
trauma provocado pelo assalto deve ser considerado como a “causa necessária”
dos seus problemas de saúde. Ou nos termos do manual,

“em trabalhadores que sofreram situações descritas no conceito da doen-


ça, em circunstâncias de trabalho, o diagnóstico de transtorno de estresse
pós-traumático, excluídas outras causas não ocupacionais, pode ser enqua-
drado no Grupo I da Classificação de Schilling, em que o trabalho desem-
penha o papel de causa necessária.” (p.182)

129
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Ou seja, o manual de doenças relacionadas ao trabalho acima citado, além de


outros manuais como o CID-10 (Organização Mundial da Saúde, 1993), constata
que há situações que se configuram como traumáticas para a maioria das pessoas
e, uma vez expostas a elas, há uma grande probabilidade de desenvolverem um
quadro de TEPT. Dentre essas situações, os assaltos são citados, o que reforça
nossa hipótese diagnóstica.
Concluímos, portanto, que o caso de M. cabia perfeitamente no diagnóstico
de Transtorno Estresse Pós-Traumático provocado pelo assalto sofrido ao retor-
nar do trabalho, uma vez que tal experiência pode ser classificada como sendo
“excepcionalmente ameaçadora”, suscetível de provocar “pensamentos ou memó-
rias vividas e/ou pesadelos e/ou angústia quando da exposição a indícios internos
ou externos que lembram ou simbolizam um aspecto do evento traumático” (Minis-
tério da Saúde, 2001, p. 182). Todos esses sinais estavam evidentes, por exemplo,
nas reações que apresentava ao ter que continuar fazendo o mesmo trajeto de volta
para a casa, nas mesmas condições do dia do assalto. Vimos, também, que após
esse acontecimento, M. passou a apresentar comportamentos que reforçam esse
diagnóstico e que também estão descritos no manual, tais como: “esforços para
evitar pensamentos, sentimentos ou conversas associadas ao trauma, sentimento de
distanciamento ou estranhamentos dos outros; sentimentos de futuro curto (ele não
espera mais ter uma carreira, não tem mais vontade de continuar os estudos e não
tem expectativa de vida normal), dificuldade para dormir ou permanecer dormin-
do, irritabilidade ou explosões de raiva; dificuldade de concentração.” (id. p.182)
No seu depoimento, ele expressou a dificuldade que sentia ao relembrar o dia
do assalto, relatando as sensações corporais e o intenso medo que sentia ao falar
do que viveu. Além disso, falou sobre o distanciamento afetivo da esposa e da
filha, a impaciência e irritação extremas, a ideação suicida, a perda de perspectiva
e de projetos para o futuro. Tudo isso reforçado pelas situações frente às quais se
sentia angustiado ou reagia agressivamente por levá-lo a se relembrar do assalto.
Trata-se de um conjunto de sinais que corresponde ao que é descrito na literatura
sobre TEPT. (Vieira, 2014)
É importante ressaltar que nosso diagnóstico coincidiu com aquele ao qual
chegou a psicóloga que atendeu M. entre agosto de 2006 a dezembro de 2007. De
acordo com seu laudo, o paciente apresentava “sintomas compatíveis com o diag-
nóstico de Estresse Pós-Traumático”, “iniciados após assalto ao ônibus da empresa
em que trabalhava, durante trajeto de retorno para casa.” Ela acrescentou ainda

130
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

que, depois dessa experiência, M. passou a se sentir “ansioso e com um medo que
se transformou em fobia a eventos que remetessem ao dia e momento do assalto”,
sendo que “a contínua exposição a essas situações e a não intervenção médica e psi-
cológica no início dos sintomas, contribuíram para o agravamento do quadro (...).”
Além disso, a psicóloga ressaltou que o trabalho na empresa D. tornou-se para
M. uma fonte adicional de ansiedade, uma vez que “os sintomas da doença e a me-
dicação psiquiátrica necessária ao tratamento passaram a dificultar o desempenho
de suas funções laborais.” Nesse sentido, o horário noturno e as fortes exigências
de produção seriam outros elementos prejudiciais ao tratamento. Finalmente, in-
formou que havia solicitado à empresa a mudança do horário e do setor de traba-
lho do seu paciente, mas a resposta que recebeu veio na forma de sua demissão.
O psiquiatra que cuidou de M. durante sua internação, entre setembro e ou-
tubro de 2007, reforçou igualmente nossa hipótese diagnóstica, pois no seu laudo,
que será reportado de forma mais detalhada a seguir, informou que M. esteve
internado sob seus cuidados “em decorrência de sintomas depressivos e de estresse
pós-traumático”.
Assim, a ausência de qualquer medida tomada pelo setor de Recursos Hu-
manos da empresa D. no sentido de ajudar M. na superação do seu problema de
saúde, contribuiu para agravar seu quadro de depressão e angústia, conforme ele
mesmo relatou:

“Logo depois (da demissão) eu passei mal porque eu achei muito injusto da
parte deles, porque eu fazia o possível pra trabalhar, trabalhava ruim, mas
trabalhava. Eu esforcei bastante, atendia eles de acordo com o que eles que-
riam que eu fazia. Eu comecei a beber remédio de novo, porque o Olcadil
(antidepressivo) era só quando eu passava mal, aí, eu não estava tomando
ele. Após ser demitido eu voltei a tomar ele de novo, fiquei duas semanas
direto com ele.”

Finalmente, cabe acrescentar que M. foi demitido após adoecer em decorrên-


cia de um acidente de trabalho. Sabemos que, de acordo com a legislação vigente,
havendo suspeita ou confirmação de um quadro como o de TEPT, deve ser provi-
denciada a emissão de CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho), documento
que ele jamais obteve.

131
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

2. O TRATAMENTO JURÍDICO DADO AO CASO DE M.

Conforme dissemos, diante da total indiferença da empresa D. em relação ao


seu problema de saúde, dando-lhe a demissão como única resposta, M. não viu ou-
tra alternativa que não fosse a via judicial para tentar reclamar seus direitos. Ele
procurou um advogado e foi por meio deste que chegou até nossa equipe na UFMG.
Ao fazer parte dos profissionais convocados para a perícia realizada no âmbi-
to da ação movida por M. contra a D., destacamos um aspecto do procedimento
que chamou nossa atenção: as questões dirigidas ao periciado eram formuladas de
forma tendenciosa. Quase sempre, a ênfase recaía sobre os problemas familiares
vividos por ele durante sua infância e adolescência, em especial, o conflito que
teve com seu pai após o divórcio. Esse viés transparece no laudo da perita que será
exposto a seguir, mas antes, vejamos o que disse o médico psiquiatra que atuou
como assistente técnico a pedido de M. e seu advogado.

2.1 O parecer do médico assistente de M.

Em primeiro lugar, vale a pena trazer aqui um pequeno resumo elaborado


pelo próprio médico no qual expõe sua relação com o caso:

“M. ficou internado sob meus cuidados médicos na C. S. S. M., em Belo


Horizonte, no período de 25/9/2007 a 03/10/2007 em decorrência de sinto-
mas depressivos e de estresse pós-traumático. Demos alta hospitalar com
receitas de psicofármacos e a indicação de continuar o tratamento ambula-
torialmente.” (grifo nosso)

Vale a pena reportar também aqui sua definição a respeito dos quesitos a ele
apresentados:

“quesitos para avaliação de nexo causal entre o acidente do trabalho sofri-


do pelo Reclamante e o adoecimento mental manifestado pelo mesmo a
partir de então – e que perdura até hoje - no decorrer do qual o Reclaman-
te foi demitido sem justa causa pela Reclamada.” (grifos nossos)

132
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

Veremos que todos os aspectos ressaltados nessa definição - o nexo causal


entre o acidente de trabalho e o adoecimento, a permanência do “adoecimento
mental” e a demissão “sem justa causa” -, serão negados (ou simplesmente ignora-
dos) pela perita nomeada pelo juiz.
De início, o médico assistente avaliou como “bom”, naquele momento (junho
de 2009), o estado geral de saúde de M., mas ressaltando que apresentava, apesar
disso, “hiperatividade neurovegetativa: tremores, taquicardia e sudorese frequen-
tes”. Sobre suas limitações, apontou para a capacidade reduzida “de concentração”
e no “enfrentamento de eventos estressores”, classificando tais limitações como “de
grau moderado a grave”. Avaliou sua saúde psíquica como “comprometida” afir-
mando que M. apresentava “transtorno depressivo, episódio atual grave, CID 10
F32.2 e transtorno de estresse pós traumático, CID 10 F43.1”, sendo que ambos
limitavam “tanto sua capacidade de interação social quanto laborativa”.
Sobre os aspectos de sua vida pessoal e profissional comprometidos por esse
quadro psicopatológico, o psiquiatra enumerou: “manter capacidade de concen-
tração; enfrentamento de eventos estressores; controlar raiva/irritabilidade; inte-
ração interpessoal; redução acentuada do interesse ou participação em atividades
significativas; estado de alerta e revivência repetida do evento traumático”. Todas
essas limitações ele avaliou como sendo “de grau moderado a grave”.
Ao ser questionado sobre a natureza do transtorno apresentado por M., bem
como se se tratava de algo congênito ou adquirido, ele respondeu que se tratava de
um transtorno “adquirido”, “grave e persistente”, tendo se manifestado, pela pri-
meira vez, “após o incidente ocorrido na madrugada do dia 29/12/2006, no trajeto
do trabalho para casa”.
Quanto a um possível agravamento desse quadro, o médico respondeu afir-
mativamente, dizendo que

“houve agravamento significativo com o decorrer do tempo, em decor-


rência de o paciente ficar desempregado, com aperto financeiro, minando
sua autoestima, assistindo sua esposa trabalhar em dois empregos para ar-
car com as despesas da família”. (grifo nosso)

Sua resposta foi igualmente afirmativa ao ser questionado sobre “o nexo de


causalidade entre o quadro psicopatológico e o acidente ocorrido na madrugada do
dia 29.12.2006, relatado nos autos”. Da mesma forma, concordou que “o quadro

133
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

psicopatológico desenvolvido pelo paciente pode ter sido agravado pelas condições
relatadas” por ele “como vigentes no seu posto de trabalho na empresa D.” Estava de
acordo também com a ideia de que seu quadro poderia ter sido atenuado “através
de mudança de turno de trabalho ou outro procedimento à disposição da gestão
de recursos humanos na citada empresa”. Finalmente, avaliou que a incapacidade
identificada decorreu, “tanto da eclosão quanto do agravamento (do quadro psico-
patológico), principalmente do último”.

2.2 O laudo da perita nomeada pelo juiz

A psiquiatra nomeada pelo juiz para realizar o trabalho pericial no caso de M.,
afirmou ter extraído suas conclusões após discutir “com a assistente técnica e, so-
bretudo, após EXAME CLÍNICO PESSOAL DO RECLAMANTE.” (grifo da autora)
De início, ela expôs resumidamente o caso, dizendo que M. trabalhou na em-
presa D. durante o período de um ano como alimentador de linha, sofrendo um
assalto no ônibus da empresa, em 2006, sendo que “desse assalto lhe teria restado
uma condição mental (doença) conhecida como transtorno de estresse pós-traumá-
tico.” Segundo ela, “o quadro teria se tornado permanente e ainda (...) se faria pre-
sente, motivo pelo qual o Reclamante” estava pedindo “ressarcimento.”
Em seguida, fez alguns esclarecimentos sobre o caso, dentre eles, o fato de que
M. já havia recebido benefício do INSS, mas “do tipo doença comum, não relacio-
nada com o trabalho (B 31).” Afirmou que pretendia se apoiar nos documentos
constantes nos autos do processo, inclusive, os dois laudos reportados anterior-
mente, mas destacando o que considerava como “partes mais emblemáticas do
discurso do paciente” ou aquelas que se mostrassem “diferentes em relação ao
relato do laudo já citado.” (grifo nosso)
A perita passou, então, a expor o que considerava como trechos “emblemá-
ticos” do depoimento de M. bem como dos laudos psicológicos e dos atestados
emitidos pelos psiquiatras que o atenderam. Em seguida, citou alguns desses ates-
tados, destacando sempre aqueles que diziam que M. se encontrava em boas con-
dições e que podia retomar suas “atividades laborativas normais”. Ela ressaltou,
em especial, as situações nas quais os médicos ora o encaminhavam para o INSS
ora o julgavam apto para retornar ao trabalho, além de comunicados de deci-
são do INSS acatando ou negando pedidos de prorrogação do benefício. Trata-se
de informações encontradas na maioria dos prontuários das empresas, mas que,

134
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

nesse caso, tinham a finalidade de reforçar seu argumento final: o de que M. apre-
sentou, de fato, um quadro de transtorno de estresse pós-traumático, mas que este
já havia desaparecido. Portanto, seu pleito não se justificava.
Em seguida, fez uma descrição detalhada do histórico médico de M., informan-
do suas entradas e saídas de hospitais, medicamentos que lhe foram receitados e os
atestados encaminhando-o para o trabalho ou solicitando afastamento. Constam
também alguns relatórios de psiquiatras confirmando o diagnóstico de estresse pós-
-traumático, sendo que em um deles, observa-se a hipótese de uma possível evolu-
ção desse quadro para um “transtorno depressivo recorrente (F33.2) com episódios de
transtornos dissociativos ou conversivos (F44)”. Nesse relatório, M. é descrito como
alguém de “personalidade histriônica (F60)” e que “evolui com instabilidade.”
Conforme veremos, esse último diagnóstico servirá de base para a perita funda-
mentar sua tese de que o problema apresentado por M. era muito mais relacionado
com essa “personalidade histriônica” do que com os fatos ocorridos no dia do assalto
ou com o descaso da empresa em relação aos problemas dele decorrentes. A partir
daí, ela passou à descrição dos resultados do exame clínico realizado por ela.
Ela inicia informando suas primeiras impressões a respeito do “paciente”, sen-
do estas bastante positivas:

“Paciente apresentando bom desenvolvimento físico geral; movimentação


normal dos quatro membros; discreto tremor das mãos (quando se mos-
trava nervoso ou menos seguro na conversação); ausência de movimentos
anormais dos olhos. Corado e hidratado. Bem higienizado. Muito bom as-
pecto externo. Fácies atípica.”

A relação usual entre perito e periciado foi também registrada por ela, ao in-
sinuar que M. foi cuidadoso com as informações que passava. Embora seja essa a
forma mais comum de o periciado se comportar, uma vez que não tem qualquer
garantia do que será feito com essas informações, a perita achou necessário co-
locar a seguinte observação: “O periciado foi cooperativo, porém, não raras ve-
zes, tentava dizer apenas aquilo que considerava útil ao exame ou que devesse ser
dito. Outras vezes se mostrava prolixo, mas não acrescentava dados úteis ao exame
(além da prolixidade em si).”
Ela prosseguiu em suas considerações sempre tentando desqualificar as
queixas apresentadas por M. em torno do seu estado de saúde:“O periciado não

135
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

mencionou nem demonstrou em nenhum momento, memória intrusiva, flash-


-backs ou evitação persistente do meio de transporte que usava quando do assalto
(ônibus).” (grifo nosso) Por outro lado, foi rica em detalhes ao falar sobre o estado
favorável do periciado, dizendo que este se “mostrou orientado no tempo, no es-
paço e quanto aos dados pessoais”, apresentando “capacidade de concentração” e
“inteligência preservada”, sem “lacunas de memória” e com “raciocínio desenvol-
to”. Além disso, sua “ fala não tinha alterações na emissão de fonemas e se mostrava
parcimoniosa.”5
Seu pensamento, segundo a perita, “era claro, fluente e coerente”, não havendo
“delírios nem alterações da sensopercepção (inclusive alucinações)”, além de cons-
tatar “ausência de queixas compatíveis com tais condições no passado”. Disse tam-
bém que M. “ fazia intervenções adequadas e oportunas”, “mostrava ponderações
apropriadas” e “muito boa capacidade de participar da conversação bem como uma
capacidade normal de iniciar ou dar continuidade à mesma”, mas, segundo ela,
“sempre cauteloso na fala”. Sua “capacidade de entendimento e de determinação”
era “normal” e estava “preservada” sua “capacidade de decisão”.
Em suma, de acordo com a perita, M. apresentava “capacidade normal de ava-
liação e previsão em relação aos temas comuns (do) cotidiano”, além de “senso críti-
co geral bem preservado” e “capacidades de análise, síntese e conclusão.” Da mesma
forma, seu humor foi avaliado como “estabilizado no momento” com “ausência de
sintomas ou sinais depressivos, distímicos, maníacos ou hipomaníacos descompen-
sados”, embora, segundo ela, M. denotasse, “por vezes, um quadro ansioso.”
Ao discutir o caso, ela iniciou por uma descrição rápida do assalto sofrido por
M. e de suas consequências, mas ressaltando aspectos que pareciam minimizar a
importância do problema, como o fato de que ele “não foi alvo de encaminhamen-
to para exame de corpo de delito”, mesmo quando procurou novamente o médi-
co no dia seguinte dizendo que seu peito estava dolorido. Além disso, frisou que
“uma colega de trabalho foi ferida de raspão (no assalto) ficando três dias afastada
do trabalho”.6

5 Nesse momento, a perita parece ter se esquecido de que se referiu a M. como prolixo em certos
momentos do exame.
6 Ao citar o caso da colega, a perita parece insinuar que, se alguém sofreu uma agressão bem mais
grave e necessitou de apenas três dias de afastamento, fica difícil compreender as queixas do peri-
ciado. Ela omite, no entanto, o fato de que a continuidade do caso da colega era desconhecida por

136
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

Ela se referiu igualmente às consequências psicológicas que o assalto teve


na vida de M., levando-o a sentir medo de ir trabalhar e, sobretudo, de retornar
para casa utilizando o mesmo ônibus no qual sofreu o assalto. Citou também sua
internação em hospital psiquiátrico e o atendimento psicológico com “menção” ao
estresse pós-traumático. E ressaltou em negrito o relatório do médico assistente
principal no qual este se referiu ao mesmo quadro, dizendo que este “evoluiu com
depressão recorrente e episódios de transtornos conversivos em um paciente
cuja personalidade apresenta transtorno histriônico.” (grifos da autora). Além
disso, mencionou que o periciado havia se queixado de ter que dar conta das mes-
mas atividades na empresa, apesar de se sentir doente.
Nesse momento, ela interrompeu essas precisões para fazer três observações:
1. “O paciente relatava a sensação subjetiva de incapacidade, mas a perícia
médica do INSS, inclusive em sede de novo pedido de benefício, não
reconheceu incapacidade”;
2. “o médico do trabalho da empresa, que anteriormente já havia encami-
nhado o paciente para o INSS por pelo menos duas vezes (uma delas,
inclusive, apesar da alta previdenciária concedida) não reconheceu inca-
pacidade quando este citado retornou ao trabalho”;
3. “ambos os psiquiatras assistentes do paciente, ora periciado, foram claros
em seus atestados e disseram haver condição para retorno ao trabalho,
embora um deles de mostre um tanto dúbio na sua afirmativa (...)” (gri-
fos nossos)
Ou seja, mesmo reconhecendo que M. apresentou um quadro de estresse pós-
-traumático no período imediatamente posterior ao assalto, a perita ressaltou que
ele foi considerado apto para retornar ao trabalho, não apenas pelo INSS, mas
também pelo médico do trabalho e pelos seus psiquiatras assistentes.7

todos, incluindo a forma como esta vivenciou a experiência e seu estado após esse curto período
de afastamento.
7 Sobre essa pretensa dubiedade de um dos médicos assistentes, pensamos que a descrição do seu
parecer, apresentada no item anterior, contraria essa ideia. Vimos que, ao contrário, ele foi bastante
claro ao dizer que o problema de saúde apresentado por M. sofreu um “agravamento significativo
com o decorrer do tempo”, sobretudo, a partir de experiência do desemprego. Ou seja, em nenhum
momento ele afirmou que M. encontrava-se restabelecido. Ao contrário, constatou uma piora pro-
gressiva do seu quadro, sendo que a demissão veio contribuir para torná-lo ainda mais grave.

137
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Dando continuidade à sua análise, a perita expôs com detalhes em que con-
sistem o “transtorno de estresse pós-traumático (F43-1)”, “os transtornos dissocia-
tivos ou de conversão (F44)”, “o “transtorno de personalidade histriônico (F60.4)”
e “os transtornos de personalidade (F60)” de acordo com a Organização Mundial
de Saúde e o CID-10. Como o TEPT já foi exposto anteriormente, achamos im-
portante trazer aqui, ainda que resumidamente, em que consistem os outros três
transtornos, uma vez que servirão de base para as hipóteses que irá formular a
respeito do caso.
Segundo ela,“os transtornos dissociativos ou de conversão (F44)” se caracte-
rizam como “perda parcial ou completa das funções normais de integração das
lembranças, da consciência, da identidade e das sensações imediatas, e de controle
dos movimentos corporais”; sintomas que “tendem a desaparecer após algumas
semanas ou meses, em particular quando sua ocorrência se associou com um
evento traumático”, mas podendo se tornar crônicos “quando a ocorrência do
transtorno está associada a dificuldades interpessoais insolúveis” (grifos nos-
sos). Além disso, “admite-se que sejam psicogênicos, dado que ocorrem em re-
lação temporal estreita com eventos traumáticos, problemas insolúveis e insu-
portáveis, ou relações interpessoais difíceis”. (grifos nossos) Já o “transtorno de
personalidade histriônico (F60.4)” é caracterizado por “uma afetividade superfi-
cial e lábil, dramatização, teatralidade, expressão exagerada das emoções, sugesti-
bilidade, egocentrismo, autocomplacência, falta de consideração para com o outro,
desejo permanente de ser apreciado e de constituir-se no objeto de atenção e de
sentir-se facilmente ferido.” Já “os transtornos de personalidade (F60)” são descritos
como “diversos estados e comportamentos clinicamente significativos que tendem
a persistir e são a expressão característica da maneira de viver do indivíduo e do
seu modo de estabelecer relações consigo próprio e com os outros”; alguns desses es-
tados e comportamentos “aparecem precocemente durante o desenvolvimento
individual sob a influência conjunta de fatores constitucionais e sociais, en-
quanto outros são adquiridos mais tardiamente durante a vida”. Esses transtornos
são descritos como “profundamente enraizados e duradouros”, representando
“desvios extremos ou significativos das percepções, dos pensamentos, das sensações
e particularmente das relações com os outros (...)”; “compreendem habitualmente
vários elementos da personalidade (e), acompanham-se em geral de angústia pes-
soal e de desorganização social; aparecem habitualmente durante a infância ou
adolescência e persistem de modo duradouro na vida adulta.” (grifos nossos)

138
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

Finalmente, a perita expôs suas conclusões sobre o caso, mas não sem uma
breve ressalva na qual disse que “O caso em tela é absolutamente delicado. A deli-
cadeza do caso se prende, sobretudo, à convicção pessoal que uma parte ou outra
possa apresentar em relação às questões psíquicas envolvidas”. (grifo nosso)8
Desde o início do seu laudo, a perita revelou o tom que seria dado à sua aná-
lise, ao dizer que ficou claro para ela, “tanto quanto para o psiquiatra assistente
do reclamante”, a “existência de um transtorno de personalidade histriônica”. Ela
argumenta que “há atestados do médico assistente do periciado exatamente nesse
sentido” e que esse transtorno de personalidade “ já se podia notar desde a infância
e início da adolescência quando a própria mãe creditou alterações de humor e
de comportamento do filho à crise vivida no seu casamento.” E continua: “com
o transcorrer dos anos o paciente manteve condutas repetidas de menor adequa-
ção à imposição de normas, tinha uma tendência a se manter isolado, não acei-
tava ser chamado atenção e terminava relações de emprego por dificuldades
entre ele e as chefias.”
Nesse momento, ela se apoiou na definição oferecida pela OMS a respeito do
transtorno que atribuiu a M., segundo a qual “a personalidade compõe um estado
persistente, duradouro, que vige durante toda a vida do indivíduo, e que demons-
tra e determina a forma como a pessoa reage aos vários eventos cotidianos.”
(grifo nosso)
Conforme expusemos anteriormente, M. viveu uma crise durante a separação
dos pais, o que é comum (e até mesmo esperado) nessas circunstâncias, especial-
mente no caso de uma criança com apenas 12 anos de idade. Apesar de ter rom-
pido com o pai, em decorrência da forma agressiva com a qual este o tratou ao
ver questionado seu comportamento, M. o perdoou e reatou com ele mais tarde.
Quanto aos seus problemas com as normas e com as chefias, alegados pela perita,

8 Pode-se depreender dessa ressalva que, para a perita em questão, as conclusões a respeito do caso
decorreriam muito mais das “convicções pessoais” das partes envolvidas na sua análise do que da
força das evidências trazidas por elas. Encontra-se aí, de forma subentendida, mas facilmente iden-
tificável, uma concepção de ciência como mero espaço de contraposição de pontos de vista, saindo
vencedor aquele que apresentar o melhor argumento. Parece que não passa pela sua cabeça que,
sobretudo, em um caso tão “delicado”, nosso cuidado deve ser redobrado no sentido de apresentar
as evidências mais sólidas possíveis e, portanto, aquelas mais próximas da verdade. E isso só pode
acontecer quando nos distanciamos de nossas “convicções pessoais” e nos aproximamos da reali-
dade dos fatos. Foi exatamente isso que tentamos fazer durante a elaboração do nosso laudo.

139
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

acreditamos que ficaram bem esclarecidos no nosso laudo. Vimos que M. sempre
acatou as ordens e mesmo as repreensões vindas dos seus chefes, desde que as
considerasse justas, mas quando era alvo de injustiça, ele se defendia, o que não
pode ser considerado, no nosso entender, como um sinal de desadaptação às nor-
mas ou à hierarquia. Finalmente, cabe ressaltar que o “diagnóstico” proposto pela
perita (e mesmo pelo perito assistente) é apressado, mal fundamentado e total-
mente incompatível com a avaliação que ela mesma fez ao entrar em contato com
M., ou seja, a descrição que propôs a respeito do comportamento do periciado é
o oposto daquela da “personalidade histriônica”. Enquanto esta foi descrita como
uma “lábil”, tendendo para a “dramatização, teatralidade, expressão exageradas
das emoções, sugestibilidade, egocentrismo”, “desejo permanente de ser apreciado e
de constituir-se no objeto de atenção”, dentre outros, M. foi percebido pela própria
perita como alguém que “ fazia intervenções adequadas e oportunas”, “mostrava
ponderações apropriadas” e “muito boa capacidade de participar da conversação
bem como uma capacidade normal de iniciar ou dar continuidade à mesma”, sendo
“sempre cauteloso na fala”!
Tudo isso revela a fragilidade do diagnóstico proposto no laudo pericial, mas
o que importa aqui é mostrar que toda a argumentação desenvolvida pela peri-
ta tinha um único objetivo: atribuir o problema apresentado por M., sobretudo,
às suas características pessoais, isentando a empresa e o contexto de trabalho da
responsabilidade sobre seu desencadeamento, manutenção ou agravamento. Em
outros termos, ainda que tenha admitido, em parte, a gravidade do fato e relacio-
nado o transtorno ao assalto sofrido por M., a perita ressaltou que se tratava de
um quadro que apenas “INICIALMENTE, podia ser relacionado àquela circuns-
tância vivida”. (grifo da autora). Além disso, deixou claro que ele foi “o único a
sofrer ‘reação adversa’”, o que reforçou ainda mais sua tese de que a causa maior
do problema se devia às suas características pessoais:

“Como o paciente já tinha uma personalidade que o predispunha a reações


menos equilibradas ou mais exageradas, diante da situação (...) apresentou
um quadro, cerca de dois meses após o evento, que podia realmente ser im-
putado à vivência de uma situação constrangedora (assalto ou ameaça à
integridade física ou vida) associada à particular dificuldade de lidar com
qualquer situação que ele considerasse constrangedora ou ameaçadora
(como sempre demonstrou ao longo da vida). (grifos da autora)

140
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

A perita acrescenta ainda que o tratamento dado pela empresa D. ao problema


foi correto, pois “assim que o quadro foi diagnosticado o paciente iniciou o tra-
tamento que os médicos consideravam adequado” (grifo nosso), sendo ajustada a
medicação “sempre que necessário”. Da mesma forma, segundo ela, “as indicações
dos seus médicos assistentes quanto à permanência no trabalho ou quanto à neces-
sidade de afastamento foram devidamente observadas pela empresa (...).”
No entanto, conforme será exposto mais adiante, é discutível essa prática de
se tomar alguma iniciativa apenas após o diagnóstico de um dado transtorno. Na
verdade, espera-se dos responsáveis pela saúde e segurança das empresas que pre-
vinam os problemas e não apenas ajam sobre eles após se manifestarem. No caso
do estresse pós-traumático já é sabido que a prevenção passa pela escuta clínica
da pessoa que vivenciou uma situação potencialmente traumática (Vieira, 2014),
além das adequações na sua situação de trabalho. Vimos que, no caso de M. nada
disso ocorreu, o que está evidente nos diversos laudos, inclusive, naquele elabora-
do pela perita judicial.
Finalizando seu laudo, a perita deixou clara sua posição em relação ao caso,
isto é, a de que o transtorno desenvolvido por M. já havia desaparecido e que ele
não apresentava mais queixas compatíveis com o diagnóstico inicial:

“Após iniciado o tratamento psiquiátrico, inclusive com afastamento do


trabalho e condução ao INSS (que não reconheceu o nexo entre o quadro
havido e o afastamento) o paciente não relatou mais queixas de insegu-
rança no uso do transporte da empresa, não relatou qualquer sensação
de terror ao relembrar o dia dos fatos e começou a se mostrar melhor.”
(grifo da autora)

Assim, seus argumentos foram elaborados sempre no sentido de comprovar o


desaparecimento completo dos problemas de saúde de M.:

“Atualmente, o paciente apresenta um exame mental normal, compatível


com sua personalidade de base, mas já sem qualquer sintoma ou sinal
compatível com a existência ou persistência de um quadro de estresse
pós-traumático”. (grifo da autora)

141
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Sua conclusão, portanto, é a de que, se existem queixas atuais, estas não pos-
suem qualquer relação com o assalto sofrido por M., nem tampouco com sua situ-
ação de trabalho na empresa D, mas sim com a “dinâmica” de sua “personalidade”,
constituída durante a “infância e adolescência” e, portanto, sem qualquer relação
com o trabalho na D.:

“O cotejo de queixas trazido ao exame atual não tem mais nenhuma re-
lação com o evento sofrido (assalto) e não tem nenhuma relação com a
forma ou organização do trabalho dentro da linha de produção.”(grifo
nosso) (Esse cotejo de queixas) “guarda relação apenas com a dinâmica
pessoal sendo somente uma manifestação da dinâmica da personalidade
do Periciado, padrão esse estabelecido ainda na infância e adolescência
e que não tem relação com o trabalho”. (grifo nosso)

Em suma, ainda que a perita tenha admitido que M. apresentou um “quadro


clínico compatível com estresse pós-traumático após o acidente (...)”, sua conclusão é
a de que esse quadro teve origem, tanto no “evento ameaçador à integridade física
(o assalto em si)”, quanto “na predisposição oferecida pela própria personalidade
do paciente”, sendo esta última seu maior determinante. Portanto, pode-se depre-
ender dos seus argumentos, que, se esse transtorno de fato existiu, seus sintomas
já desapareceram, sendo as queixas atuais apresentadas por M. apenas o resultado
de suas características pessoais advindas de experiências bem anteriores ao seu
trabalho na empresa D.

2.3 A reação do “Reclamante” ao laudo pericial

O advogado de M. reagiu com veemência ao laudo pericial acima reportado.


Antes de tudo, ele ressaltou “a quase absoluta divergência entre a inteligência da
perita nomeada pelo juízo e o entendimento manifestado por todos os demais pro-
fissionais de saúde que mantiveram maior ou mais frequente contato com o Recla-
mante (...)”. Um aspecto decisivo da questão, disse ele, concerne ao fato de que al-
guns desses profissionais “tiveram a oportunidade de acompanhar o desenrolar do
adoecimento mental do Reclamante” enquanto a médica perita “esteve uma única
vez com ele, por um par de horas apenas, em situação aquém do ideal”. Essa situa-
ção foi assim descrita: “o periciado sofreu variadas pressões, na presença de quatro

142
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

psiquiatras e uma psicóloga, em ambiente estranho e inusitado.” Além disso, “esta-


va naqueles momentos, sob efeito de sua medicação, a qual inclui um antipsicótico,
um antidepressivo (...) e um ansiolítico (...).”
A divergência maior que o advogado constatou entre os outros profissionais
e a perita nomeada pelo juiz encontra-se no fato de que esta última não tenha en-
contrado em M. nada que pudesse caracterizar seu adoecimento mental, “muito
menos conexão com o acidente sofrido por este”. Além disso, considera equivocada
essa tentativa da perita de “excluir a responsabilidade da Reclamada em relação
ao acidente in itineri”, tentando, ao contrário, “atribuir culpa à personalidade do
Reclamante”. Segundo ele, “esse modo de pensar é análogo (...) ao de se atribuir a
gravidade de sequelas físicas causadas por queimaduras à facilidade da vítima de
desenvolver quelóides, ou apresentar dificuldades de cicatrização.”
Ele prossegue expondo seus argumentos de forma clara e, ao mesmo tempo,
incisiva:

“O fato é que houve um acidente in itinere, desse acidente resultou um qua-


dro psiquiátrico, agravado pela inadequada condução do caso, tudo isso
coroado pela demissão do Reclamante sem justa causa. Falhou a Reclama-
da ao desvalorizar o adoecimento mental, ao não oferecer medidas de su-
porte ao acidentado – ao menos uma mudança de turno e de tarefas – e ao
demiti-lo na vigência da doença sem justa causa.”

Um aspecto fundamental, de acordo com o advogado, concerne ao fato de que


todas as conclusões da perita foram baseadas em um contato rápido com M. e em
circunstâncias pouco favoráveis. Além disso, ela chegou a essas conclusões sem
“periciar o local de trabalho” e, portanto, sem elementos concretos para concluir
que este não trazia problemas para M. e tampouco contribuiu para o agravamento
do seu quadro.
Ainda segundo o advogado, o laudo da perita extrapolava em alguns momen-
tos, sendo um deles quando esta afirmou que o periciado “ já não apresentava
qualquer sinal ou sintoma (grifo do autor) compatível com estresse pós-traumático
ainda vigente.” Esse argumento, diz ele, não procede, já que “sintoma é um fenô-
meno subjetivo” e, portanto, é o sujeito que “relata o que sente”, cabendo ao médico
apenas reportar o que este “diz que sente”. Em outro momento, prossegue dizendo
que a perita extrapolou ao desvincular as queixas trazidas por M. do assalto que

143
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

sofreu por ele ou do seu trabalho na linha de produção, uma vez que essa visão
entra em contradição com aquela expressa pelos outros profissionais que o exami-
naram. Em suma, ele cita seis psiquiatras e dois psicólogos, todos eles convergindo
no diagnóstico de estresse pós-traumático, decorrente do assalto sofrido por M.
e cujos sintomas ainda permanecem, sendo que “somente a perita (...) parece ser
incapaz de ver ou valorizar a variada gama de sinais e sintomas insistindo em que o
Reclamante é saudável, sempre foi e apenas reagiu histrionicamente a um assalto.”
(grifo do autor)
O advogado de M. criticou, portanto, o que considera como “ forma peculiar”
de a perita nomeada pelo juiz ver e analisar aquilo que, para todos esses profissio-
nais, trata-se de um adoecimento mental decorrente de um acidente de trabalho
e “agravado pelas condições vigentes na empresa”. Adotando uma lógica simples e
direta, ele conclui que, para essa perita, “(...) sofrer violência e grande risco de morte
é coisa corriqueira – se alguém adoece por isso é porque já tinha propensão para
adoecer: um ‘indivíduo histriônico’, como se quisesse compará-lo a um fraco, por si
só responsável pelo próprio adoecimento.”
O fato de a perita ter reconhecido que realmente houve “um acidente in tine-
re”, diz o advogado, não é suficiente, uma vez que ela desenvolve toda uma argu-
mentação para concluir que M. encontrava-se saudável na ocasião da perícia e até
mesmo quando foi demitido, o que contraria a percepção dos outros profissionais
que o examinaram. Para estes, “estava em plena vigência o adoecimento mental
quando da demissão sem justa causa.!” Além disso, prosseguiu ele, é importante
acrescentar que, “na vigência do estresse pós-traumático agudo, tendo havido reco-
mendação expressa para alterações de funções/setor e horário de trabalho, esta re-
comendação foi negligenciada pela empresa”, e o que se seguiu. “ainda na presença
do quadro psiquiátrico agudo”, foi o “descarte do trabalhador, pela demissão, por
não mais se adequar à cadeia produtiva.”
O advogado finalizou seu questionamento qualificando o laudo pericial como
totalmente inadequado e solicitando ao juiz a realização de uma nova perícia,
mesmo ciente de que isso iria representar um enorme sacrifício para seu cliente
e sua família, não apenas pelas exigências de ordem financeira, mas também por
que sofreria “(...) o suplício de se ver escrutinar mais uma vez, expondo seu sofri-
mento (...).”

144
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

À GUISA DE CONCLUSÃO

O caso que escolhemos para ilustrar o tema escolhido pelos organizadores


desta coletânea - a precarização do trabalho na sua relação com a saúde e com a
invisibilidade social -, simboliza muitos outros, já que nos remete a um contingen-
te crescente de trabalhadores que se encontram na mesma condição: doentes, de-
sempregadas, desamparadas pelos sistemas de saúde e jurídico. Lançados em uma
espécie de limbo, esses indivíduos já não fazem mais parte do mundo do trabalho
e não contam com qualquer amparo do estado no sentido de ter sua sobrevivência
assegurada ou seus direitos reconhecidos. Como não conseguem sequer o reco-
nhecimento do nexo entre seus problemas de saúde e suas condições de trabalho,
estão ausentes das estatísticas dos acidentes de trabalho e se tornam praticamente
invisíveis para o sistema.
Além das repetidas humilhações que sofrem nas perícias médicas comuns -
durante as quais suas queixas são frequentemente desqualificadas -, ainda têm
que sofrer a humilhação maior ao se submeterem a intermináveis processos ju-
diciais. Sabemos que é, sobretudo, nesse último contexto que esses trabalhadores
se tornam vítimas da concepção enviesada e reducionista do transtorno mental
como decorrente de predisposições individuais, sendo este o viés que prevalece
nas perícias realizadas no âmbito judicial.
Nesse sentido, o laudo emitido pela perita nomeada pelo juiz no caso de M.,
é emblemático de uma prática que vem se tornando corriqueira no nosso país:
a de atribuir a causa maior do acidente ao próprio acidentado. Assim, são suas
fragilidades, decorrentes das experiências vividas bem antes de sua entrada para
o mundo produtivo, é que geraram o problema e não as vivências, quase sempre,
bem mais traumáticas vividas nos contextos laborais.9

9 É importante ressaltar que essa ideia é inspirada em certa leitura da psicanálise representada, no
campo da SM&T, por C. Dejours (1987). Foi a partir da entrada desse teórico nesse campo que
a polêmica em torno do nexo entre transtornos mentais e o trabalho se instalou, passando-se a
atribuir às condições laborais um papel cada vez mais secundário e priorizando-se as experiências
infantis como causas maiores desses transtornos. Vale a pena sinalizar, no entanto, que, apesar de
propor essa visão psicologizante do problema, ao tratar do Transtorno de Estresse Pós-Traumá-
tico, Dejours (1987) admitiu ser esta “a única entidade clínica reconhecidamente de origem bem
limitada à organização do trabalho.” (p. 125) Portanto, a perita que analisou o caso de M. foi além

145
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

O viés presente no laudo pericial de M. é evidente, embora se perceba um


esforço nítido no sentido de camuflá-lo com um discurso aparentemente neutro e
científico. Tal esforço não impede que se perceba, por trás do seu discurso, as re-
ais intenções da autora: retirar da empresa a responsabilidade pela segurança dos
seus empregados e, em caso de acidente, a obrigação de lhes oferecer total amparo,
além de um tratamento adequado ao seu caso bem como os ajustes necessários no
seu ambiente de trabalho.
O caso de M. ilustra todos esses aspectos: ao sofrer um assalto com violência
no ônibus da empresa, no momento em que retornava para sua casa, teve essa
vivência traumática totalmente desconsiderada pela empresa. Ao contrário, con-
tinuou a trabalhar no mesmo turno e setor, submetido às mesmas exigências de
produção, como se nada houvesse acontecido. Seus pedidos de mudança do posto
de trabalho bem como outras solicitações vindas dos profissionais que cuidavam
do seu caso foram simplesmente ignorados. Diante disso, seu quadro se agravou,
afetando os resultados do seu trabalho e tornando-o, em certo sentido, pouco útil
para a empresa, que encontrou na demissão a única forma de se ver livre de um
“problema”.
A leitura dos documentos que compõem seu processo revela uma grande la-
cuna entre as visões dos profissionais que trataram do seu caso. De um lado, te-
mos aqueles que tentaram resgatar sua história e entender seu quadro a partir da
totalidade de sua trajetória pessoal e profissional. Nesse caso, o assalto sofrido,
aparece claramente como um marco na vida de M., transformando-a radicalmen-
te e bloqueando seus projetos futuros. De outro, temos a visão da perita nomeada
pelo juiz, quase exclusivamente voltada para as vivências anteriores ao assalto,
consideradas, neste caso, como os verdadeiros determinantes do seu adoecimento.
No entanto, se olharmos toda a trajetória de M., fica evidente que as difi-
culdades pessoais que enfrentou durante a infância, adolescência e boa parte da
vida adulta, foram superadas, sendo a maior delas, o divórcio dos pais. No con-
texto profissional, da mesma forma, sempre enfrentou e superou as barreiras que
se apresentaram, saindo dos empregos que se revelaram negativos para sua saú-
de ou nos quais os conflitos pareciam de difícil solução. Isso ocorreu, inclusive,
na empresa onde permaneceu por mais tempo revelando, ao contrário do que

da perspectiva dejouriana ao atribuir seu transtorno mais às predisposições individuais do que à


experiência traumática que viveu no seu trabalho.

146
DIFICULDADES NO RECONHECIMENTO DAS DOENÇAS DO TRABALHO E A INVISIBILIDADE SOCIAL DE TRABALHADORES

disse a perita, que persistia e tentava solucionar os problemas antes de optar pela
demissão.
Foi, portanto, na empresa D. que encontrou a dificuldade maior, aquela para
a qual não conseguiu encontrar uma saída, já que foi profundamente afetado na
sua saúde física e mental. A experiência do assalto foi um momento decisivo na
sua vida, o que nos permite pensar que, sem ela, possivelmente, prosseguiria seu
caminho pessoal e profissional sem maiores sobressaltos. O tratamento oferecido
pela empresa a essa experiência, ignorando os sinais emitidos por M. e por outros
colegas, foi fundamental para o desfecho do caso aqui analisado.
Conforme dissemos, os estudos em torno do transtorno de estresse pós-trau-
mático têm sido cada vez mais enfáticos em alertar para a necessidade de se tomar
medidas visando prevenir a instalação do quadro imediatamente após o evento.
Essas medidas vão, desde as mudanças no contexto de trabalho até o atendimento
clínico dos sujeitos que vivenciaram ou testemunharam o acontecimento poten-
cialmente traumático, sendo que, sem elas, o risco é grande de agravar o proble-
ma. (Vieira, 2014) Nada disso foi feito pela empresa em questão e M. só recebeu
algum tipo de cuidado quando o quadro já estava instalado, o que foi admitido até
mesmo pela perita nomeada pelo juiz.
Vimos também que a perita admitiu, em princípio, a ocorrência do transtor-
no, embora tenha proposto que M. já se encontrava recuperado em função dos
tratamentos recebidos. Mas não é bem isso que constatam as pesquisas em torno
do assunto. Grande parte dos estudos atuais conclui que, uma vez instalado o
quadro de TEPT, sua regressão é muito difícil. (Vieira, 2014) Ademais, no caso de
M., o tratamento oferecido foi basicamente medicamentoso e ele não recebeu um
atendimento psicoterápico adequado, não tendo tido, portanto, a oportunidade de
elaborar psiquicamente a experiência traumática. Ressaltamos também a ausência
de qualquer mudança no seu contexto de trabalho, obrigando-o a enfrentar dia-
riamente idênticas pressões por produção, bem como a mesma situação na qual
sofreu o trauma: o retorno para casa no mesmo horário e no mesmo ônibus no
qual sofreu o assalto.
Mas o que gostaríamos realmente de registrar neste momento é que o caso
exposto por nós não se trata de um fato isolado. Ao contrário, ele é representativo
de uma prática injusta e bastante disseminada no nosso país: a de tratar os aci-
dentados do trabalho como “doentes comuns” ou pior ainda, como verdadeiros
fraudadores do sistema, simulando doenças para obter ganhos pessoais. Cria-se,

147
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

assim, uma legião de indivíduos adoecidos e sem qualquer possibilidade de ter


seu problema de saúde reconhecido e, portanto, seus direitos assegurados. São
os ausentes das estatísticas e as vítimas invisíveis de um sistema que permanece
injusto e desumano.

REFERÊNCIAS

Brasil, Manual de Doenças Relacionadas ao Trabalho. Ministério de Saúde do Brasil. 2001.

Dejours, C. – A loucura do trabalho – ensaio de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Ed. Oboré. 1987

Machado, J, Soratto, L & Codo, W. (orgs.) – Saúde e trabalho no Brasil: uma revolução silenciosa. Petrópolis,
Vozes. 2010.

Vieira, C. E.C. - O transtorno de estresse pós-traumático nos contextos de trabalho: das experiências traumáti-
cas ao desenvolvimento do transtorno mental. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
do Departamento de Psicologia da UFMG. 2014.

Vizzaccaro-Amaral, A. L – (In)capacitados para o trabalho? Trabalho, Estranhamento e Saúde do Trabalhador


no Brasil (2000-2010). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em C. Sociais da Facul-
dade de Filosofia e Ciências da Unesp. 2013

148
CAPÍTULO 6
PRECARIEDADE DO TRABALHO,
PRECARIZAÇÃO DA VIDA: UMA ANÁLISE
DO TRABALHO NOS CALL CENTERS

Selma Venco

O processo de privatização das telecomunicações no Brasil no final dos anos


1990 é emblemático para se compreender a precariedade nas relações de traba-
lho. A fim de debater este processo propõe-se, neste texto, discutir as diferentes
abordagens do conceito de precariedade e seu consequente refinamento - dadas
as condições conjunturais que levaram pesquisadores a reformulá-lo. A década
de 1990 foi marcada por forte reorganização da economia, e apresenta uma nova
forma de acumulação do capital: a acumulação flexível, caracterizada pela con-
traposição à rigidez do fordismo - que inscreve os trabalhadores na perspectiva
do assalariamento e dos direitos a ele vinculados -. especialmente no que tange à
flexibilidade nas relações de trabalho e na emergência de novos setores produtivos
(Harvey,1989). A flexibilidade passa a ser compreendida como um ‘ajustamento
do trabalhador moderno à sua tarefa”(CASTEL, 1998, p.517).
Nesse contexto expande-se a informalidade do mercado de trabalho acompa-
nhada pela flexibilização das relações de trabalho, marcadas pela precariedade.
A noção de precariedade não era recorrente nos estudos dos anos 1970. Ma-
gaud (1974 apud CINGOLANI, 2005) já sinalizava que esta poderia ser compreen-
dida como a compra da força de trabalho com desrespeito aos marcos legais; Ro-
bert Linhart (1978 apud CINGOLANI, 2005), por sua vez, analisa esta categoria
sob a ótica da luta de classes, pois, para ele, a precariedade se manifesta como um
movimento que visa esfacelar os coletivos e, consequentemente, dividir a classe
operária. Robert Castel (1998) aporta importante contribuição teórica para discu-
tir a precariedade, à medida que evidencia os desdobramentos sociais atrelados à

149
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

condição dos “trabalhadores sem trabalho” (idem, p. 496). Conforme Demazière


(2006, p.3):

a precariedade do emprego significa que ele é incerto e que o assalariado


não pode prever seu futuro profissional sendo sua situação caracterizada
por uma forte vulnerabilidade econômica e uma restrição, ao menos po-
tencialmente, de direitos sociais.

A instalação de tal situação enseja o aumento de trabalhos precários a exemplo


dos temporários, tempo parcial e outras formas flexíveis de contratação, circunstân-
cias estas que contribuem para a degradação da condição salarial, ampliando a vulne-
rabilidade e suscitando um sentimento de instabilidade, que finda por afetar mesmo
aqueles cujo contrato de trabalho guarda características do trabalho formalizado.
A partir de Robert Linhart (1978 apud CINGOLANI, 2005) e Beaud e Pialoux
(1999), é possível refletir que o trabalho temporário, como característica presente
na situação de precariedade, exerce papel importante na tentativa de fragilizar o
coletivo, intensificar o trabalho e individualizar comportamentos, com vistas a
neutralizar a mobilização coletiva e generalizar o silêncio. Perspectiva reafirmada
por Danièle Linhart (2009), que analisa a condição dos trabalhadores se encontra-
rem em uma situação de perder não somente um modo de vida onde os coletivos
exercem um papel importante na socialização do trabalho, mas, igualmente, rom-
per um elo que os une à sociedade. A patologia do medo instaurada nos ambientes
de trabalho induz a condutas de dominação e ou de submissão, instaurando-se
um clima de permanente competição, tanto individual quanto coletiva, suportável
pela perspectiva da manutenção do emprego (PEZÉ, 2001,ALONZO, 2000).
Tais características revelam que a instalação da condição precária nas relações
de trabalho conduz a desdobramentos mais amplos e profundos. E, neste sentido,
a precariedade, em sua condição objetiva, conduz à precariedade subjetiva. Danièle
Linhart (2009) reflete que a vivência de condições precárias de trabalho lato sensu,
ou seja, instalada mesmo entre trabalhadores detentores de contratos estáveis, apor-
ta sentimentos que configuram a precariedade subjetiva, que segundo a autora:

É o sentimento de não estar no seu trabalho, de não poder confiar nas roti-
nas profissionais, nas suas redes, nos seus conhecimentos e no saber-fazer
acumulados graças à experiência ou à transmissão pelos mais antigos, é o

150
PRECARIEDADE DO TRABALHO, PRECARIZAÇÃO DA VIDA: UMA ANÁLISE DO TRABALHO NOS CALL CENTERS

sentimento de não dominar o trabalho que faz, e de dever, sem parar, de-
senvolver esforços para se adaptar, para bater as metas estabelecidas, para
não se colocar em perigo nem físico nem psíquico, nem moral (no caso das
interações com usuários e clientes) (LINHART, 2009, p.2).

Somam-se a estes aspectos, ainda segundo a autora, a consciência de não ter


apoio para solucionar imprevistos, sobretudo das chefias imediatas, as quais, por
sua vez, não são preparadas pela empresa para fazer frente a estas questões. Este
conjunto de situações auxilia na instalação do mal estar no trabalho, e, à medida
que ocorre há um processo de internalização do fracasso induzido pela realização
do trabalho bem feito.
As características da empresa dita moderna impõem o alcance de metas sem-
pre variáveis, a intensificação do trabalho, a ausência de orientações claras e de
formação específica para uma nova organização do trabalho e ou para a utilização
de novas tecnologias. Tais fatores configuram um tipo de precariedade subjetiva
na qual cada trabalhador não encontra os meios necessários para realização da
sua atividade, e pela atitude da gerência: dentro da empresa cada um é um ator
responsável de sua própria sorte (VENCO, BARRETO, 2010).
O mal-estar no trabalho e o medo do desemprego são, segundo Luciano Vasa-
pollo (2005, p.45): “o processo que precariza a totalidade do viver social”. Assim, é
pertinente distinguir e associar a precariedade objetiva da subjetiva.

DUPLA DIMENSÃO DA PRECARIEDADE NOS CALL CENTERS?

Esta parte do texto visa discutir os elementos presentes na organização do


trabalho dos teleatendentes e em que medida estes vivenciam a dupla dimensão da
precariedade, anteriormente apresentada.
O setor de teleatendimento tem apresentado índices de crescimento incessan-
tes, desde o final dos anos 1990, e é considerado um dos mais importantes em-
pregadores do país. Não obstante, é importante distinguir a qualidade dos postos
criados. Se por um lado – e graças à ação sindical que combateu fortemente a
contratação precária -, os empregos são prioritariamente formais, contam com
registro em carteira e os direitos sociais a ele vinculados, por outro as formas de

151
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

gestão do trabalho, sua organização e as condições em que este ocorre conformam


a dimensão da precariedade subjetiva.
O sindicato patronal, por exemplo, informa que, mesmo após a crise de 2008,
o setor apresenta dificuldades de contratação para 25.000 postos a serem preen-
chidos. Quais seriam as dificuldades de viabilizar o preenchimento destas vagas?
Declarações desta natureza associadas aos elevados índices de absenteísmo na
categoria e de demissão voluntária nos levam a construir a hipótese de que este
trabalho caracteriza-se pelo exercício de formas específicas de violência contra a
integridade dos indivíduos.
Estudos sobre o setor no Brasil e no exterior (BUSCATTO, 2002, COUSIN,
2002, VENCO, 2003, 2009) indicam que a gestão do trabalho exerce um papel im-
portante na construção da precariedade subjetiva no setor, posto que os dispositi-
vos de gestão são gradualmente refinados com vistas a lograr melhores situações
de competitividade, estas mais recentemente dispostas em nível internacional.
A tecnologia foi objeto de estudo de Karl Marx desde os anos 1840 relacionan-
do-a ao trabalho e aos trabalhadores. No livro Filosofia da Miséria, concebe seu
uso pelos capitalistas como algo nefasto ao trabalhador, em vista da possibilidade
concreta não apenas de substituir o trabalho vivo pelo trabalho morto, sem criar
formas alternativas de subsistência, mas também legando aos que permaneciam
empregados uma forma de trabalho alienada do processo produtivo. Isso se devia
em parte ao fato de as máquinas não terem sido arquitetadas pelos próprios tra-
balhadores, mas pelos que delas extrairiam, de forma mais eficaz, a mais-valia.
O que caracteriza a divisão do trabalho na oficina automática é que nela o
trabalho perde qualquer caráter de especialidade. Mas, desde que cesse qualquer
desenvolvimento especial, a necessidade de universalidade, a tendência para um
desenvolvimento integral do indivíduo começa a fazer-se sentir. A oficina auto-
mática faz desaparecer as espécies e o idiotismo da profissão (Marx, 1982, p. 126).
Para Marx, a divisão do trabalho é inseparável da criação de instrumentos de
produção, que concorrerão para a simplificação da tarefa “do operário no interior
da oficina, o capital foi reunido, o homem foi dividido ainda mais” (ibidem, p. 124).
N’O capital, Marx indica que a maquinaria tem por fim:

(...) baratear as mercadorias, encurtar a parte do dia de trabalho da qual


precisa o trabalhador para si mesmo, para ampliar a outra parte que ele

152
PRECARIEDADE DO TRABALHO, PRECARIZAÇÃO DA VIDA: UMA ANÁLISE DO TRABALHO NOS CALL CENTERS

dá gratuitamente ao capitalista. A maquinaria é meio para produzir mais-


-valia (Marx, 1982, p. 424).

Se a produtividade da máquina é mensurada por sua capacidade de substituir


a força de trabalho (idem, p. 445) e a jornada de trabalho é concebida pelo capi-
talista como o conjunto composto pela parte destinada ao trabalho necessário e a
destinada ao trabalho excedente, considerando-se ainda a pressão social pelo não
prolongamento das horas de trabalho, na época examinada por Marx, chega-se
à intensificação do trabalho possibilitada, sobretudo, pela homogeneização dos
processos de trabalho propiciados pela maquinaria, que exige, concomitantemen-
te, mais disciplina (ibidem, pp. 467-468).
É possível estabelecer nexos entre o pensamento de Marx sobre a maquinaria
e o trabalho desenvolvido nos call centers, um trabalho inteiramente subordinado
à tecnologia.
Em uma nova fase dos dispositivos tecnológicos nestes ambientes, eles vão
além do registro da distribuição automática das chamadas ou do registro das pau-
sas, das atividades realizadas, dos negócios firmados etc. O desenvolvimento da
tecnologia avança no sentido da empresa obter maior controle sobre as operações
efetuadas em tempo real e a distância.
Consoante a Périlleux (2006, p.368): “o controle pode a partir de agora ser exer-
cido sem a presença física do contramestre (...). Mas é um controle potencial, radi-
calmente diferente daqueles feitos nas oficinas”.
Os teleoperadores conhecem a existência e a precisão do controle: trata-se de
um controle mais forte e mais distanciado. Estes dispositivos são vistos pelos tra-
balhadores como uma forte fonte de pressão e demandam um esforço importante
de concentração, pois, no momento do atendimento, eles ouvem simultaneamente
o supervisor, além de anotar ou procurar informações no sistema.
A intensificação do trabalho que imprime cadência do trabalho e disciplina
à atividade profissional pouco foi alterada ao longo da história: as técnicas mu-
daram, mas não seus objetivos. A técnica auxilia a intensificar os ritmos, criando
uma onipresença (COUSIN, 2002) da gerência, que permite controlar os trabalha-
dores, mesmo a distância.

153
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

O COTIDIANO DO TRABALHO

Visto do mezanino o trabalho revela sua dinâmica: os supervisores se deslo-


cam entre os operadores fazendo a pressão para reduzir o tempo de atendimento
e ‘bater as metas’. O gestual empregado nos call centers revela um código, este
também, por sua vez, realizado sem a interrupção do trabalho. Os gestos também
são utilizados para solicitar permissão para uso dos toiletes, prática comum nas
antigas fábricas.

“Para ir ao [no] banheiro eu preciso pedir e colocar uma placa em cima do


micro. Isto só pode ser para inibir a gente de pedir para sair da P.A....por-
que o sistema já marca que eu estou na ‘parada banheiro’. Tem muita gente
que deixa de ir ao [no] banheiro por causa disso (teleoperadora).”

É importante destacar que situações desta natureza foram combatidas pelos


sindicatos e regulamentadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, mas, segun-
do os trabalhadores entrevistados, estas situações, embora em menor intensidade,
ainda acontecem nos locais de trabalho.
A introjeção do controle do tempo à rotina do trabalho acelera cada vez mais
os ritmos do trabalho. Segundo Raveyre et Ughetto (2006, p.123), construiu-se
entre os trabalhadores um sentimento de urgência para o cumprimento das tare-
fas, que, invariavelmente, provoca forte insatisfação em relação ao trabalho que
desenvolvem.
A sofisticação das formas de controle pode ser observada nos call centers. A
intensificação do trabalho promovida pela austeridade dos procedimentos visa
acelerar o ritmo do trabalho e aumentar a cadência da produção. Sociologica-
mente, o tempo é uma construção social edificada sobre as normas concebidas
e instituídas na vida cotidiana. É por esta via que David Harvey (1989) recupe-
ra a expressão ‘compressão do tempo e do espaço’, empregada por Marx (1982),
alertando que existem elementos suficientemente contundentes na história que
demonstram o quanto a lógica do capitalismo volta-se para imprimir uma velo-
cidade cada vez maior aos processos de trabalho, simultaneamente ao desenvol-
vimento de tecnologias cujo objetivo é ultrapassar as barreiras territoriais, graças
aos sistemas de comunicações.

154
PRECARIEDADE DO TRABALHO, PRECARIZAÇÃO DA VIDA: UMA ANÁLISE DO TRABALHO NOS CALL CENTERS

O historiador inglês Edward Palmer Thompson nos permite afirmar que o


tempo possui uma característica determinante e preponderante sobre a disciplina
no trabalho e, é nesta perspectiva, um fator indissociável dos processos de contro-
le dos trabalhadores. O autor coloca em evidência o papel do tempo na constitui-
ção da disciplina no trabalho, assim como a introjeção desta lógica pelos próprios
trabalhadores (THOMPSON, 1998).
Se o cronômetro teve importante função na indústria, é possível constatar
seu farto uso no setor de serviços, visto que o uso eficaz do tempo na produção,
fiel aos princípios de racionalização, é sempre um elemento chave na obtenção de
melhores índices de produtividade e de ganhos em competitividade comercial.
A fim de explicar a importância destas ferramentas, é necessário articulá-las
ao sistema de distribuição das ligações, que registra dois aspectos diretamente li-
gados ao aumento da produtividade: o controle do tempo das ligações e superação
das metas pré-estabelecidas, frequentemente alteradas em função da complexida-
de das operações.
Em entrevistas realizadas com teleoperadores, às questões concernentes ao
respeito ao tempo médio de duração das ligações a primeira resposta dos entre-
vistados era invariavelmente negativa e explicavam que as exigências mais im-
portantes das chefias concentravam-se no cumprimento da meta. Mas as contra-
dições foram constantes. De um lado, afirmavam que a pressão mais intensa era
concernente à efetivação de negócios. De outro, revelavam uma forte coerção para
realizarem atendimentos rápidos.
Segundo os entrevistados, cada vez que a chamada ultrapassa o tempo deter-
minado, os insultos e as ameaças de demissão se iniciam. Os argumentos utili-
zados são sempre respaldados nos altos índices de desemprego entre jovens e ao
grande número de currículos existente na empresa.

“Se gastamos um pouco mais de tempo em um atendimento, eles dizem


que a gente está fazendo programa com o cliente na linha...mas a gente tá
tentando convencer o cliente...e o supervisor grita do seu lado...está mar-
cando encontro com o cliente? E, aí, começa...que se gasta muito tempo,
que a gente não trabalha direito, que desse jeito não vai cumprir meta...”

Constata-se, portanto, que a pressão por maior produtividade oculta, ou ofus-


ca, a percepção dos trabalhadores sobre a compressão do tempo.

155
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

A TÊNUE SEPARAÇÃO ENTRE FORMAS DE GESTÃO, PENOSIDADE NO


TRABALHO E ASSÉDIO MORAL

Alguns aspectos relativos à organização do trabalho foram aqui abordados


objetivando debater o fato de que a compreensão das condições de trabalho nas
quais a organização se consubstancia, aportam consequências aos trabalhadores.
A organização do trabalho nos call centers é caracterizada por um ambiente
marcado pela constante tensão e pressão pela superação das metas, pela redução
do tempo de duração das ligações, por um tratamento constantemente polido,
pela realização de tarefas diferentes e simultâneas, e, sobretudo, pela adoção de
procedimentos que visam suplantar as características pessoais dos trabalhadores,
identificados pelo uso intensivo do script apresentado no sistema, pela adoção do
‘sorriso na voz’, por nunca se posicionar frente aos tratamentos desrespeitosos, ou,
ainda, de enfrentar imprevistos sem o suporte da chefia imediata.

“ eu digo para a supervisora: - o cliente está perguntando tal coisa. E ela me


responde: sei lá, te vira, nego! E eu vou com a maior educação inventar uma
desculpa qualquer para o cliente...”

Apreendeu-se durante as entrevistas a inquietude dos operadores com rela-


ção à influência do trabalho na vida privada e, sobretudo na saúde. Todos foram
unânimes em ressaltar que estamos diante de uma categoria profissional adoecida
pelas condições de trabalho. Os entrevistados indicam que, em média, 7 em cada
10 operadores sofrem ou de síndrome do pânico ou de depressão.
Estes dados vêm ao encontro da análise tecida por Ivan du Roy, sobre a em-
presa francesa de telecomunicações Orange (2009): 2 a cada 3 trabalhadores se de-
clararam estressados, 15% afirmaram encontrar-se em situação de estresse e pra-
ticamente a totalidade dos entrevistados (93%) consideraram que o trabalho não
para de se degradar. Outros sintomas ligados à situação de estresse e ou depressão
também foram apontados pelo autor: 6 em cada 10 trabalhadores se sentem irri-
tados e pouco mais da metade (51%) sentem-se cansados continuamente. Além
disso: foram registrados dez casos de suicídios na referida empresa apenas entre
janeiro e março de 2014. Contudo, o diretorde Recursos Humanos da empresa,
Bruno Mettling, procura ponderar a vinculação entre o fenômeno e o trabalho: “É

156
PRECARIEDADE DO TRABALHO, PRECARIZAÇÃO DA VIDA: UMA ANÁLISE DO TRABALHO NOS CALL CENTERS

preciso ser muito prudente neste momento sobre a análise feita de existência de
vínculos com o trabalho. Não se deve nem negar nem afirmar esses vínculos.”1
Apoiando-se em Fortino e Linhart (2011, p.37) é possível afirmar que as con-
dições de trabalho vivenciadas por teleoperadores se configuram como fonte de
fadiga física e mental, e se transformam em penosidades “que submergem os in-
divíduos ao trabalho, ao mesmo tempo em que o sentido do trabalho, ele próprio,
é atacado.” Ou seja, a penosidade, tal como compreendida pelas autoras, corres-
ponde à dificuldade para o exercício laboral. A esta condição soma-se o conceito
elaborado por Yves Clot (1999, 2008): “o trabalho impedido”, cujo sentido remete
à impossibilidade de realizar devidamente sua atividade profissional, seja porque
não recebem as orientações devidas para o pleno exercício, pela impossibilidade
de realizá-lo corretamente e, sobretudo, de ter domínio sobre o que realiza (FOR-
TINO, LINHART, 2011). Clot conclui: “este tipo de passividade imposta é uma
tensão contínua” (2008, p.88).
Situações desta natureza permitem abordar os altos índices de absenteísmo e
rotatividade no setor que, no nosso entendimento, revelam condições de trabalho
intoleráveis. No Rio de Janeiro, por exemplo, este índice oscilava entre 12 e 13%,
enquanto no Rio Grande do Sul entre 4 e 5% (MOCELIN, SILVA, LARANGEIRA,
2004). Na França, du Roy aponta que na empresa Orange a média de ausências
anuais nos call centers é de 30 a 63 dias. O autor, comparando a setores semelhan-
tes em seu país, menciona que na empresa de energia a média é de 9 dias ao ano e
entre professores do ensino fundamental, ciclo I, é de 11 dias.
Segundo análise de Lechat (2004) os teleoperadores sentem-se humilhados e
desvalorizados, tanto pelos maus tratos dos clientes quanto pelas formas de gestão
na empresa, e não vislumbram outra alternativa exceto a demissão.
As entrevistas realizadas colocam em evidência as dificuldades cotidianas a
que estes trabalhadores são submetidos e suscitam um debate teórico acerca das
fronteiras que separam as formas de gestão e o assédio moral. Podemos compre-
ender que as diferentes formas de intensificação do trabalho causam a pressão no

1 NETTO, Andrei. Onda de suicídios volta a preocupar a francesa Orange. Jornal O Estado de
S.Paulo, Caderno Economia & Negócios. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/
impresso,onda-de-suicidios-volta-a-preocupar-a-francesa-orange,1143328,0.htm. Acesso em
21.mar.2014

157
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

trabalho, seja pelo aumento do ritmo de trabalho, seja pelas práticas de gerencia-
mento orientadas principalmente pelo estímulo ao aumento da produção.
Marie-France Hirigoyen (2002) define assédio moral como sendo as atitudes
que ultrapassam a discriminação quanto à raça, sexo, orientação sexual, idade
etc –, provocando humilhação e constrangimentos. Baseando-se neste conceito,
consideramos aqui os atos que apresentam certo grau de ofensa pessoal. A partir
da formulação de Michèle Drida, Marie Pezé sugere que assédio moral é siste-
maticamente instaurado no ambiente de trabalho “ manifestando uma intenção
consciente ou inconsciente de anular ou destruir o outro ”(Drida, 1999 apud Pezé,
2001, p.30). Na concepção de Pezé, trata-se de uma “técnica de destruição que visa
de forma deliberada a descompensação do sujeito a fim de obter sua submissão
emocional aos fins econômicos ou de usufruto pessoal ” (idem, p.39).
Para os diferentes gerentes entrevistados a pressão pelo aumento da produ-
tividade é constante e, segundo eles, o teleoperador deve se adaptar a este ritmo,
dadas as características do setor, que exige rapidez. A sujeição no bojo das empre-
sas é frequente e ocorre tanto no plano individual quanto coletivo. A pressão pelo
cumprimento das metas, pelo respeito ao tempo médio dos atendimentos e pela
participação direta da supervisão no controle da produção imbricam uma incapa-
cidade gradual de tolerar as condições de trabalho.
Os insultos são provocados invariavelmente por questões quantitativas e mais
raramente pela qualidade do trabalho executado.

“Os supervisores ofendem, dizem que somos uns incompetentes...outro


dia, um supervisor, disse que não iria me trocar de equipe porque não tra-
fica droga”.

As entrevistas revelam que as mulheres são mais expostas às situações de cons-


trangimento. Os homens entrevistados demonstraram que enfrentam melhor as
ofensas, fenômeno possivelmente sustentado pela imagem da personalidade mas-
culina socialmente construída, concretizando a concepção de Helena Hirata sobre
a ‘sexuação do social’ (1997, p. 36), cujo significado remete à compreensão de que
a divisão sexual do trabalho é inseparável das relações sociais de sexo, marcadas
pela opressão, também esta marcada por forte construção social.

158
PRECARIEDADE DO TRABALHO, PRECARIZAÇÃO DA VIDA: UMA ANÁLISE DO TRABALHO NOS CALL CENTERS

Cenários como estes induzem a que, no presente texto, se vise demonstrar que
o predomínio de mulheres nesta atividade profissional não é fortuito, ao contrá-
rio: caracteriza-se como uma opção intencional de gerenciamento deste trabalho.
Expressões como ‘corredor do choro’ ou ‘os toilettes são o lugar da choradeira
nos call centers’ são reveladoras de uma situação dolorosa nos locais de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pesquisando o setor desde 1997 pudemos constatar ao menos três fases impor-
tantes de transformação, as quais ilustram a velocidade da adaptação do capital.
No final dos anos 1990 os call centers se constituíam em plataformas telefônicas,
um departamento no interior das empresas, a fim de atender seus próprios clien-
tes. No início dos anos 2000 o setor vivencia profunda reformulação passando por
um processo intenso de terceirização e criando grandes call centers: empresas de,
em média, até 5000 teleoperadores considerando-se o setor de vendas e atendi-
mento e em torno de, em média, 40.000 trabalhadores as vinculadas à telefonia.
E, por fim, vivenciamos a formação de uma cadeia internacional de terceirização
por meio da qual países centrais como França, Estados Unidos, Grã Bretanha se
vinculam por meio da exploração do trabalho aos periféricos e semi-periféricos
tais como Brasil, Marrocos e Índia (2009).
Contudo, a evolução do setor apoiou-se nos aspectos analisados, com especial
destaque para as formas de gestão marcadas pela violência nas atitudes das che-
fias. Neste sentido recuperamos a proposição de Robert Castel (1995) acerca da
instabilidade da sociedade salarial, a qual instala a vulnerabilidade social, mesmo
entre aqueles que vivenciam uma condição de emprego formal. Soma-se a esta
constatação a de que os teleoperadores estão submetidos à dupla dimensão da pre-
cariedade: a objetiva, via contratos firmados nas empresas terceirizadas, tempo
parcial, contratos por tempo determinados; e, pela subjetiva: a despeito de desfru-
tarem de empregos formais são submetidos a ritmos, pressões e humilhações que
levam ao sofrimento no trabalho.
Conclui-se que a precariedade, seja ela de caráter objetivo ou subjetivo, tem
levado a um processo de precarização da vida dos teleatendentes e o setor, sendo
um dos maiores empregadores não apenas no Brasil, deveria primar por oferecer

159
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

qualidade do emprego de melhor nível. Urge, portanto, rever as formas de gestão


caso queira dar continuidade à rota de crescimento.

REFERÊNCIAS

ALONZO, Philippe. Femmes et Salariat : l’inégalité dans l’indifférence. Paris : L’Harmattan, 2000.

BEAUD, Stéphane e PIALOUX, Michel. Retour sur la condition ouvrière. Paris : Fayard,1999.

BUSCATTO, Marie. “Les centres d’appels, usines modernes ? Les rationalisations paradoxales de la relation
téléphonique”, Sociologie du travail, Paris, 44 (1), p. 99-117, 2002.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, 1998.

CINGOLANI, Patrick. La precarité. paris; PUF, 2005.

CLOT, Yves. La fonction psychologique du travail. Paris: PUF, 1999.

_________. Travail et pouvoir d’agir. Paris: PUF, 2008.

COUSIN, Olivier. Les ambivalences du travail, les salariés peu qualifiés dans les centres d’appels. Sociologie du
travail. Paris, 44(2002) 499-520.

DEMAZIÈRE, Didier. Precarites d’emploi, precarites des condition : entre forme et norme. Texto apresentado
no Colóquio Internacional «Novas formas do trabalho e do desemprego: Brasil, Japão e França numa perspec-
tiva comparada». Universidade de São Paulo, setembro, 2006.

FORTINO, Sabine e LINHART, Danièle. Comprendre le mal-être au travail: modernisation du travail et nou-
velles formes de pénibilité. In: Revista Latinoamericana de Estudos do Trabalho. Ano 16, n° 25, 35-67, 2011.

HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Atlas, 1989.

HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. Rio de Janeiro, Bertrand
Russel, 2002.

LECHAT, Noël e DELAUNAY, Jean-Claude. Les centres d’appels : un secteur en clair-obscur. Paris : L’Harmattan,
2003.

LINHART, Danièle. Modernisation et précarisation de la vie au travail. Papeles del CEIC. Vol. 1, marzo-sin,
2009, pp.1-19. Universidad del País Vasco.

_________. Travailler sans les autres? paris:Seuil, 2009.

MARX, Karl. O Capital. Livro 1, vol. 1. São Paulo: DIFEL, 1982.

MOCELIN, Daniel; SILVA, Luís Fernando; LARANJEIRA, Sonia. NOVOS PERFIS


OCUPACIONAIS:Empregados de CALL CENTER no setor de Telecomunicações. Disponível em: http://www.

160
PRECARIEDADE DO TRABALHO, PRECARIZAÇÃO DA VIDA: UMA ANÁLISE DO TRABALHO NOS CALL CENTERS

ufrgs.br/ppgsocio/Relat%C3%B3rio%20Novos%20perfis%20ocupacionais.pdf. Acesso em 2.set. 2011.

PÉRRILEUX, Thomas. Diffusion du controle et intensification du travail. In:ASKENAZY, P. et all. Organisa-


tion et intensité du travail. Toulouse: Octares, 2006.

RAYERE, Marie et UGHETTO, Pascal. ‘On est toujours dans l’urgence’: surcroît ou défaut d’organisation
dans le sentiment d’intensification du travail? In: ASKENAZY, P. et all. Organisation et intensité du travail.
Toulouse: Octares, 2006.

ROY, Ivan du. Orange Stressé: le management par le stress à France Télécom. Paris: La Découverte, 2009.

THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

VASAPOLLO, Luciano. O trabalho atípico e a precariedade. São Paulo : Expressão Popular, 2005.

VENCO, Selma e BARRETO, Margarida. O sentido social do suicídio no trabalho. Disponível em http://perio-
dicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/10032. Acesso em 7.set.2011.

VENCO, Selma. Tempos moderníssimos nas engrenagens do telemarketing. Campinas: Arte & Escrita, 2009.

_________. Centrais de Atendimento: as fábricas do século XIX nos serviços do século XXI. Revista Brasilei-
ra de Saúde Ocupacional. São Paulo: Fundacentro, nº 114 volume 3, 2006.

_________. Telemarketing nos bancos: o emprego que desemprega. Campinas: Edunicamp, 2003.

161
CAPÍTULO 7
OS IMPACTOS DAS CONDIÇÕES DE
TRABALHO SOBRE A SUBJETIVIDADE
DO PROFESSOR DE ENSINO SUPERIOR
PRIVADO DE CAMPINAS 1

Liliana Aparecida de Lima

INTRODUÇÃO

O levantamento na literatura aponta para diversos autores2 que estudam as


condições de trabalho vividas pelos professores. Estas pesquisas referem-se tanto
aos professores das escolas públicas quanto aos das escolas privadas e abrangem os
vários níveis de ensino (da educação infantil ao ensino superior).
Há estudos que se referem às condições de trabalho vividas pelos professo-
res em instituições de educação superior no Brasil e na América Latina (Oliveira,
2003) e em nosso estudo vimos que, muitas das transformações erigidas no campo
da educação se sustentam a partir de uma concepção de Estado mínimo, preconi-
zada pela política neoliberal adotada pelo Brasil na década de 1990.

1 Este texto refere-se à tese de doutorado defendida pela autora em Novembro de 2012 – Faculdade
de Educação da UNICAMP sob a orientação da Professora Livre Docente Elisabete Monteiro de
Aguiar Pereira.
2 Para citar alguns exemplos temos CARVALHO, C. da C. Trabalho docente nas Instituições Pri-
vadas e Ensino Superior - Expressão da Precarização do Trabalho Assalariado. Disponível em:
http://nupet.iesp.uerj.br/arquivos/carvalho.pdf. Acesso em 03 de Julho de 2011 e SGUISSARDI,
V. e SILVA. JR. J.R. Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico.
São Paulo, Xamã: 2009.

163
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Oliveira et. al.3 (s/d) aponta para as reformas educacionais ocorridas na dé-
cada de 1990 no Brasil e na América Latina, impondo aos professores, tanto das
redes pública quanto privada de ensino, arrocho salarial, trabalho intensificado
e sobrecarga advinda de crescentes demandas de trabalho que muitas vezes, no
caso das escolas públicas, “ultrapassam o que é prescrito como atividade docente
(cuidar da nutrição, higiene e saúde dos alunos).” (OLIVEIRA, et. al. s/d, p. 8).
Os autores mencionam a auto-intensificação do trabalho do professor que, na
tentativa de responder às exigências externas ao seu trabalho e, não conseguindo
(muitas demandas estão além de suas possibilidades), entram em (...) sofrimento,
insatisfação, doença, frustração e fadiga.
Quanto às doenças ocupacionais nos professores, Freire (2010), em artigo que
investiga a relação entre reestruturação produtiva, assédio moral e a incidência
da síndrome de burnout4 em professores e seus impactos jurídicos e sociológicos,
identifica que as alterações no processo de organização do trabalho em geral (re-
estruturação produtiva no modo de gestão toyotista)5 e do trabalho dos professo-
res em particular, impõem um maior controle das funções docentes por parte das
instituições de ensino.
Para a autora,

Essas novas condições de trabalho podem propiciar a prática do assédio


moral, um processo de violência psicológica contra o professor, que ameaça
seus direitos humanos fundamentais. Logo, com esse rígido controle sobre
seu trabalho somado às exaustivas jornadas de trabalho crescem as taxas
de absenteísmo docente, cujas causas são, dentre outras, a síndrome de
burnout. Estima-se que 15% dos professores sofrem dessa síndrome - um
transtorno relacionado ao trabalho, causado por estresse laboral crônico
-cujos sintomas são: a baixa realização profissional, a exaustão emocional,

3 Artigo de Dalila Andrade Oliveira et. al. Não foi possível identificar a data de sua publicação.
Disponível em http://www.redeestrado.org/web/archivos/publicaciones/10.pdf. Acesso em 24 de
Outubro de 2011.
4 Burnout (do inglês, significa “queimar-se”). Esta síndrome está constituída pelos sintomas de
despersonalização, insatisfação com o trabalho e sensação de esgotamento que acarreta a perda
de motivação e desinteresse pelo trabalho.
5 Sobre o Toyotismo estaremos desenvolvendo mais adiante neste trabalho.

164
OS IMPACTOS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO SOBRE A SUBJETIVIDADE DO PROFESSOR DE ENSINO SUPERIOR PRIVADO DE CAMPINAS

e a despersonalização, que aparece na forma de endurecimento afetivo e


falta de empatia (FREIRE, 2010, p. 1).

Heloani (2004, p. 2) também se refere à reestruturação produtiva que impõe


precariedades ao trabalho, reduzindo benefícios historicamente conquistados
pelos trabalhadores, intensificação dos contratos de trabalho por tempo deter-
minado, terceirizações, ameaças aos trabalhadores, dentre elas, “a humilhação
no trabalho ou o assédio moral, que sempre existiu historicamente falando, nas
mais diferentes formas”. Em seu artigo, Heloani (2004) realiza um percurso his-
tórico do assédio moral enquanto objeto de pesquisa6 e caracteriza o assédio
moral pela

(...) intencionalidade; consiste na constante e deliberada desqualificação da


vítima, seguida de sua conseqüente fragilização, com o intuito de neutralizá-
-la em termos de poder. Esse enfraquecimento psíquico pode levar o indiví-
duo vitimizado a uma paulatina despersonalização. Sem dúvida, trata-se de
um processo disciplinador em que se procura anular a vontade daquele que,
para o agressor, se apresenta como ameaça (HELOANI, 2004, p. 5).

Os estudos desenvolvidos por Heloani (op.cit.) apontam que o assédio moral


já é referido para várias atividades profissionais, não somente válido para os tra-
balhadores de empresas e/ou indústrias sem qualificações; hoje o assédio moral é
identificado entre os médicos, professores de todos os níveis de ensino (educação
infantil, ensinos fundamental, médio e superior), funcionários do setor público e
privado, somente para mencionar alguns exemplos.
Interessante notar que Heloani (2004, p.7.) indica alternativas que podem
ser empregadas para se coibir o assédio moral, que passa pelos códigos de ética
das empresas e “a criação de espaços públicos ou espaços de discussão”7, como

6 Primeiramente na Suécia com o psicólogo do trabalho Heyns Leymann em 1996; após dois anos
com a psiquiatra e psicanalista Marie-France Hirigoyen (França) que popularizou o termo e no
Brasil, com a notável pesquisa de Margarida Barreto com trabalhadores da região da grande São
Paulo. Heloani cita ainda a pesquisadora Maria Ester de Freitas neste campo de pesquisa.
7 Heloani cita Christophe Dejours como sendo o idealizador desta concepção de espaço público ou
espaço de discussão.

165
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

um local que poderia existir dentro das empresas, onde os membros da organi-
zação pudessem expor seus problemas, angústias e expectativas”, facilitando o
entendimento de seus sofrimentos no trabalho e ainda completa que “De fato, a
saída está na organização do coletivo para que possamos transformar súditos em
cidadãos”.
Sato e Bernardo (2005), no que se refere à saúde do trabalhador, identificam
que os problemas de saúde mental e trabalho da década de 1980 ainda persistem.
As autoras desenvolvem suas reflexões a partir de um serviço público de Saúde
do Trabalhador, o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CRST) da
cidade de Campinas. O artigo passa pelo enfoque da saúde mental vista pela as-
sistência ao trabalhador, pelo espectro da saúde mental e trabalho na perspectiva
dos sindicatos, pela vigilância em saúde e atualizam o leitor na questão da saúde
mental e trabalho no contexto do ano de 2005.
Dentre as várias constatações chama a atenção à baixa notificação de proble-
mas de saúde mental no Centro de Referência, o que não indica que estes proble-
mas não existam, mas parecem mostrar a persistência da dificuldade por parte
de todos os envolvidos - empresas, profissionais de saúde e peritos do INSS - em
reconhecer o trabalho como causador de problemas de saúde mental, o que, con-
seqüentemente, reduz a busca de ajuda em serviços de referência, como os CRSTs
(SATO e BERNARDO, 2005, p. 872).
No tocante ao desgaste e adoecimento emocionais relacionados ao trabalho
dos professores, Codo (1999, p. 13) ao referir-se à síndrome da desistência (bur-
nout) fala “(...) um profissional encalacrado entre o que pode fazer e o que efe-
tivamente consegue fazer, entre o céu de possibilidades e o inferno dos limites
estruturais, entre a vitória e a frustração”
Reis e Sguissardi (2009) se referem à reestruturação produtiva pela qual pas-
sou o capitalismo e as conseqüências desta reestruturação para o trabalho em ge-
ral e para o trabalho dos professores das universidades. A pesquisa realizada por
eles, com professores pesquisadores de Instituições Federais de Ensino (IFES), no
que se refere à intensificação e a delimitação das fronteiras do trabalho docente,
indica que há a invasão do lar pelas tarefas universitárias, afetando as relações
familiares e interferindo no cotidiano da vida pessoal.

166
OS IMPACTOS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO SOBRE A SUBJETIVIDADE DO PROFESSOR DE ENSINO SUPERIOR PRIVADO DE CAMPINAS

Estes estudos, embora se refiram ao trabalho intensificado nas Instituições Fe-


derais de Ensino Superior (IFES), podem lançar ampliações e aprofundamentos às
reflexões sobre os professores pertencentes as IES Privadas e seu fazer cotidiano.8
Além das questões relativas à saúde dos professores, os mesmos autores (op.
cit.), desenvolveram reflexões sobre a intensificação e precarização do trabalho
do professor das universidades federais do sudeste, entre os anos de 1997 a 2004.
Na sociedade atual, este quadro de Mercantilização da Educação Superior Pri-
vada (processo intensificado em 1990), provoca as transformações sofridas pela
educação no contexto neoliberal e impõe reestruturações nas condições de traba-
lho dos professores neste “mercado” da Educação Superior Privada.
A partir deste cenário, a precarização atual do trabalho do professor se in-
tensifica em função das condições históricas, sociais, políticas e econômicas que
impõem a “flexibilização” das condições de trabalho a que estão submetidos os
professores da Educação Privada em geral e para o estudo em questão, mais espe-
cificamente para os professores de Ensino Superior Privado.
Recentemente9 tivemos o anúncio de que os grupos educacionais Anhangue-
ra e Kroton realizaram mais uma fusão no valor de aproximadamente de R$ 12
bilhões. Os grupos concentram mais de 800 unidades de ensino pelo país e cerca
de milhão de alunos. Com a união, surge a maior empresa do setor no mundo.
Segundo Madalena Guasco Peixoto, Coordenadora Geral da Confederação
dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino- CONTEE, “corporações de
capital aberto, negociado em bolsas de valores, lançam mão de diversas estratégias
para aumentar seus lucros e valorizar suas ações”. O fato de os dois grupos terem
parte de seus fundos oriundos de capital estrangeiro e outra do setor financeiro é
outro agravante, segundo a coordenadora. “Aí o negócio não tem mais dono, mas
uma gerência que presta contas aos acionistas, como um banco”.10

8 O Ministério da Educação e Cultura (MEC), define que as Instituições de Ensino Superior são
classificadas da seguinte forma: Públicas (Federais, Estaduais e Municipais) e Privadas (Comuni-
tárias, Confessionais, Filantrópicas e Particulares). Esta caracterização possui uma íntima relação
com a forma de financiamento que cada instituição possui para se manter no cenário da Educação
Superior.
9 Dia 22 de Abril de 2013.
10 Para saber mais sobre esta fusão e o posicionamento da CONTEE, acesse o site: http://www.con-
tee.org.br

167
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Considerando o atual contexto em que se encontram as Instituições de Edu-


cação Superior Privadas de Ensino, este texto refere-se a uma pesquisa que es-
tabeleceu como objetivo geral pesquisar, junto a professores do Ensino Superior
Privado, sindicalizados ao Sindicato dos Professores da Rede Privada de Ensino
de Campinas e Região, como as suas subjetividades se manifestam a partir de
determinadas condições de trabalho a que estão submetidos/as nas IES Privadas.
Após desenvolvermos reflexões sobre a Expansão do Ensino Superior Privado
no Brasil e a atual conjuntura desta modalidade de ensino no país; passaremos às
considerações sobre Subjetividade para compreender melhor a relação Trabalho
e Subjetividade, relação que se altera em função das formas de organização do
trabalho impostas pelo modo de produção capitalista. Finalizaremos com a apre-
sentação dos resultados expressos no estudo.

A EXPANSÃO DO ENSINO SUPERIOR PRIVADO NO BRASIL E SUA


CONJUNTURA ATUAL

A partir da concepção da educação como um bem público, um direito de to-


dos e dever do Estado, é que se torna necessária a existência efetiva de um Sistema
Nacional articulado de Educação e de um Plano Nacional de Educação que garan-
tam uma educação inclusiva, democrática e de qualidade para todos. Portanto, o
PNE, estabelecido por lei em 2010 traça metas de acesso e qualidade da educação
pública que devem ser atingidas pelos governos federal, municipais e estaduais e
a inclusão do Setor Privado de Ensino no Sistema Articulado de Educação, regido
pelos mesmos critérios de qualidade e democracia é uma grande promessa para a
educação brasileira.
Segundo Madalena Guasco Peixoto, Coordenadora Geral da Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino - CONTEE, legíti-
ma entidade representante do setor privado de ensino, “a política educacional no
Brasil é deslocada de um projeto de desenvolvimento nacional.” (PEIXOTO, 2010,
p.8). Com o neoliberalismo11 no Brasil, estabeleceu-se a liberalização da educação
privada e, acrescenta a coordenadora da CONTEE,

11 A partir da década de 1980 o neoliberalismo se impôs internacionalmente como modelo global


do capitalismo. Para os neoliberais, a crise do capitalismo é de responsabilidade das políticas de

168
OS IMPACTOS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO SOBRE A SUBJETIVIDADE DO PROFESSOR DE ENSINO SUPERIOR PRIVADO DE CAMPINAS

Entre as conseqüências dessa liberalização, vemos atualmente a venda de


ações de instituições de ensino superior na bolsa de valores, ou seja, a edu-
cação superior brasileira vem sendo transformada em negócio de capital
aberto, para o lucro de investidores nacionais e internacionais, ressaltando
a importância de intensificar a luta contra a mercantilização e desnaciona-
lização da educação no Brasil (PEIXOTO, 2010, P.8).

Para as relações de trabalho e a organização dos professores, este processo de


formação de conglomerados e a desnacionalização, segundo Peixoto (2010) é ex-
tremamente problemático e traz conseqüências, como por exemplo “Muitas vezes
o professor dá aula em Mato Grosso do Sul, mas se reporta ao RH da instituição
sediada em São Paulo.”
Oyama (2011) aborda a questão da educação na bolsa de valores e apresenta
alguns dados relevantes para compreendermos a formação de verdadeiros oligo-
pólios. A primeira instituição a negociar papéis da bolsa de valores (em 2007) foi
a Anhanguera Educacional. A segunda foi a Kroton Educacional (Minas Gerais),
a terceira foi a Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro) e a quarta foi a SEB -
Sistema Educacional Brasileiro (COC de São Paulo). A evolução patrimonial e as
capitalizações destas empresas educacionais nas operações da bolsa de valores foi
estimada em milhões de reais. Segundo Oyama (2011, p. 8).

É oportuno lembrar que a monopolização também é uma das caracterís-


ticas essenciais do capitalismo contemporâneo. Portanto, é previsível que
o mesmo aconteça com o setor da educação privada, pois a centralização
e a concentração do capital são tendências inerentes ao sistema, num pro-
cesso em que empresas mais poderosas se apropriam daquelas com menor
capacidade de sobrevivência no mercado. Assim, tudo indica que a educa-
ção vai se tornar um negócio cada vez mais centralizado, concentrado e
internacionalizado.

proteção social que incluem as leis trabalhistas. Fernando Henrique Cardoso (FHC) prometeu
acabar com a era Vargas; retirar do Estado o papel regulador do mercado; flexibilizar a legislação
trabalhista no país e favorecer a livre negociação. FHC encarnou o ideário neoliberal e atrelou o
Brasil ao Fundo Monetário Internacional (FMI).

169
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Resende (2010), cita algumas das estratégias das IES Particulares para en-
frentarem os desafios do modelo de educação capitalista e que foram observa-
das através de inserções feitas pelo autor nos meios acadêmicos, são elas: redução
sistemática do quadro de colaboradores (pautada pela reestruturação produtiva),
substituição de professores em progressão da carreira adiantada e com maiores
vencimentos, preferência pelos professores horistas (garante-se o número mínimo
de mestres e/ou doutores para atender as exigências do MEC), desqualificação dos
professores, diminuição da carga horária dos professores, racionalização de tur-
mas feita sem critério, abertura do capital da instituição para acionistas em bolsa
de valores e valorização dos aspectos individualistas (meritocracia).
O crescimento das Instituições de Educação Superior Privadas no país ocorre
sistematicamente a partir da década de 1990 e com o empenho dos grandes em-
presários do ensino, cuja concepção é a de que a educação é uma mercadoria e que,
portanto, pode ser explorada pelo capital.
A política liberalizante de Fernando Henrique Cardoso (FHC) já havia sido
iniciada por Fernando Collor de Mello, bastava agora, inserir, mais intensamente,
o país na “inexorável” globalização neoliberal. O ministro da Educação do gover-
no de FHC, Paulo Renato Souza tratou de aplicar a cartilha neoliberal na educa-
ção que também sofreu os impactos da chamada “era FHC”.
Saviani (2010) realiza um resgate histórico da expansão do ensino superior
no Brasil e aponta que, nesta trajetória histórica, é possível que se identifiquem
mudanças e continuidades.

É essa a situação que estamos vivendo hoje quando vicejam os mais dife-
rentes tipos de instituições universitárias oferecendo cursos os mais varia-
dos em estreita simbiose com os mecanismos de mercado. Aprofunda-se,
assim, a tendência a tratar a educação superior como mercadoria entregue
aos cuidados de empresas de ensino que recorrem a capitais internacionais
com ações negociadas na Bolsa de Valores. (SAVIANI, 2010, p.11).

Nesse sentido, a suposição é de que as condições de trabalho dos professores


são diferenciadas, dependendo do tipo de Instituição de Ensino Superior Privada
no tocante a sua vocação, autonomia, financiamento, avaliação, regulação, orga-
nização, gestão, modelos de carreira docente, contratação dos docentes, titulação

170
OS IMPACTOS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO SOBRE A SUBJETIVIDADE DO PROFESSOR DE ENSINO SUPERIOR PRIVADO DE CAMPINAS

exigida, jornada de trabalho, além da própria produção de conhecimento e con-


cepção de ensino, pesquisa e extensão.
Supõe-se também que esta diversidade de condições de trabalho que os pro-
fessores do Ensino Superior Privado vivenciam, geram impactos em suas subjeti-
vidades e se manifestam de diferentes formas em como estes professores se perce-
bem como sujeitos trabalhadores da Educação.
Frente a estas condições, compreende-se a importância em conhecer como
estes professores das Instituições de Ensino Superior Privadas na atualidade per-
cebem suas experiências cotidianas, como vivenciam o processo de trabalho nes-
tas instituições, como desenvolvem este papel sócio-educativo, que significado (s)
atribuem ao seu fazer enquanto professores.

TRABALHO E SUBJETIVIDADE

A concepção de subjetividade que orienta este trabalho confirma que o concei-


to de trabalho (categoria de análise no materialismo histórico e dialético) é central
nas perspectivas teóricas marxistas assumidas neste trabalho, que é a da Psicologia
Sócio-Histórica e da Sociologia do Trabalho representada por Giovanni Alves.
Cada época histórica traz uma forma de organização da sociedade e é pelo
trabalho (atividade humana vital), que o homem se relaciona com a natureza e
com os outros homens, cria as condições necessárias para a produção, reprodução
e transformação da vida humana.
Em decorrência do trabalho, o homem se relaciona com os outros homens (so-
ciabilidade), ocorre a divisão de tarefas, desenvolve-se a linguagem, a consciência.
Através do trabalho o homem não só modifica a natureza em função de suas neces-
sidades, mas garante a existência da vida individual e social, permite que as aquisi-
ções da evolução sejam transmitidas às gerações vindouras; o trabalho é uma ativi-
dade consciente de transformação do mundo e neste processo o homem desenvolve
a capacidade de simbolizar, utilizar signos constituindo o campo da cultura.
Porém o modo de produção apresenta suas contradições, uma vez que no sis-
tema de produção capitalista, a alienação configura-se na relação homem - traba-
lho; o homem se torna uma ferramenta utilizada pelo capital para sua exploração,
reduziu-se física e espiritualmente a uma máquina, quanto mais produz, menos

171
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

pode possuir, o produto do seu trabalho não lhe pertence e, para consumir, inten-
sifica seu trabalho.
Lane (1994) aponta para a dupla dimensão do trabalho, que pode tanto ser
criativo quanto pode ser rotineiro e repetitivo (alienado); quando a repetição e
a rotina se instalam, podem afetar psicologicamente o trabalhador, pode alienar
mentalmente e fazer o sofrimento psíquico se manifestar.
Martins (2007) afirma que, no sistema de produção capitalista, o trabalho
sem sentido favorece a constituição de uma subjetividade cindida (clivada), reti-
rando a possibilidade do trabalhador de viver, integralmente, o desenvolvimen-
to de suas capacidades individuais, de sua subjetividade, de manifestar-se livre e
espontaneamente.
Considerando a fundamentação teórica que sustenta a concepção de subjeti-
vidade adotada para a realização desta pesquisa,12 o desafio será o de identificar os
impactos das condições de trabalho sobre a subjetividade do professor do ensino
superior privado.
Como visto, o quadro atual de mercantilização das Instituições de Educação
Superior Privadas (IES) traz profundas alterações nos processos de trabalho vivi-
dos por seus professores.
Há registros em artigos, dissertações, teses, livros bem como através de relatos
em congressos, encontros, seminários e colóquios variados13, que os professores
que trabalham em IES privadas vivem os impactos da reestruturação produtiva
imposta pelo modelo toyotista de produção do capital.
Esta reestruturação produtiva se revela, objetivamente, através das condições
de trabalho precarizadas, da intensificação do trabalho do professor, pela falta
de tempo destinado aos afazeres docentes, pela presença de novos coletivos de
trabalhadores (os novos mestres e doutores são contratados para substituirem os
professores mais antigos na instituição e foram demitidos, desempenhando as
mesmas funções e ganhando salários mais baixos), através das formas de contra-
tação e ingresso dos professores, mediante a implantação de carreiras docentes
que são construídas destruindo a isonomia salarial entre os professores, pelas

12 Foram reunidos vários autores que tratam do tema da subjetividade sob a ótica do materialismo
histórico e dialético e é a partir desta aproximação que a pesquisa se desenvolveu.
13 Várias referências bibliográficas estão sendo utilizadas para a fundamentação teórica desenvolvi-
da neste trabalho.

172
OS IMPACTOS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO SOBRE A SUBJETIVIDADE DO PROFESSOR DE ENSINO SUPERIOR PRIVADO DE CAMPINAS

avaliações de produtividade, pela gestão coercitiva, através da implantação de


novas tecnologias etc.
Do ponto de vista subjetivo, a presença do medo do desemprego favorece con-
sentimentos trabalhistas historicamente conquistados, alienação do trabalho do
professor (pela repetição, pela rotina, pela falta de autonomia para criar os conte-
údos das disciplinas que muitas vezes são determinados pela própria instituição,
etc.), dessocialização (falta de tempo para o lazer, família, amigos) e desefetivação
(realização de um trabalho que muitas vezes não faz sentido para o próprio
professor), sintomas de exaustão emocional e física (estresse, angústia, depres-
são, ansiedade, irritabilidade, etc.).
Parto da suposição de que os impactos das condições de trabalho sobre a sub-
jetividade do trabalhador- professor não operam da mesma maneira em cada um,
até porque, mesmo pertencendo a uma mesma instituição de ensino, os profes-
sores possuem inserções diferenciadas em seu processo de trabalho e são subjeti-
vidades singulares. Sendo assim, poderemos evidenciar com este estudo, as dife-
rentes manifestações da subjetividade destes sujeitos que também são singulares.

SOBRE A PESQUISA REALIZADA COM OS/AS PROFESSORES/AS

Os critérios adotados para a realização do estudo em questão partem do inte-


resse em pesquisar os professores sindicalizados ao Sinpro-Campinas no período
de 1990 a 2005, ativos em Fevereiro de 2012 (aposentados ou não), que pertençam
as IES da cidade de Campinas caracterizadas pelo ensino presencial e que tenham
sua jornada de trabalho como professores horistas.
Em 29 professores/as que responderam à pesquisa, 15 são mulheres e 14 são
homens; a maioria é casada; com idades entre 23 anos e 67 anos de idade; a titu-
lação é composta por mestres e doutores e no que se refere ao tempo em que os/
as professores/as estão na docência do Ensino Superior, temos que a metade dos
participantes é jovem no exercício docente com praticamente uma década de ex-
periência como professores/as.
No que se refere ao número de Instituições em que os/as professores/as traba-
lham, pode-se identificar que 15 destes professores/as trabalham em apenas uma
Instituição; 11 professores/as trabalham em duas Instituições e 3 professores/as

173
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

trabalham em três Instituições; a jornada de trabalho da maioria dos/as professo-


res/as está entre 10 e 15 horas/aula semanais.
É possível concluir que há uma relação entre as condições de trabalho e os
impactos destas na subjetividade do/a professor/a que trabalha em Instituições de
Ensino Superior Privado na cidade de Campinas; a subjetividade dos/as profes-
sores/as sofre os impactos do estresse que lidera com 88%, seguido do tempo que
o trabalho retira de lazer e de convívio com a família e com os amigos com 76%;
surgem as manifestações de adoecimento em mais da metade dos/as pesquisados/
as com 52% e o medo de perder o emprego acomete 52% dos/as professores/as;
mesmo assim, 68% dos/as professores/as não mudariam de profissão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que de novo esta pesquisa revela? Será que já não se sabe sobre tudo isso?
Que os/as professores/as trabalham muito adoecem e muitos até desistem da pro-
fissão? Claro que sim. Há muitas produções acadêmicas que versam sobre as con-
dições de trabalho dos/as professores/as e o seu sofrimento físico, emocional e
abandono da profissão.
Ocorre que para estes/as professores/as sindicalizados que trabalham em IES
Privadas na cidade de Campinas, onde há várias IES Privadas sem a regulação neces-
sária que garanta qualidade de ensino e as necessárias condições de trabalho aos/as
professores/as, este é um estudo inédito e bastante revelador, sendo necessário com-
preendê-lo para transformar esta situação atual em que vivem estes/as professores/as.
Considerando que praticamente metade dos/as participantes deste estudo tra-
balham entre 5 e 10 anos (pouco tempo de profissão); considerando que 88% se
dizem estressados/as; 76% com suas vidas privadas invadidas pelo trabalho; 52%
apresentando algum tipo de adoecimento e 52% com medo de perder o emprego,
podemos afirmar que os impactos na subjetividade deste/as professores/as são ga-
lopantes e em um tempo de exercício profissional relativamente curto (uma déca-
da), se comparado ao tempo que os/as professores podem exercer a profissão até
sua aposentadoria oficial.
Até o momento, seguimos afirmando que o capitalismo global e a precariza-
ção do trabalho que ele impõe, atinge as mentes e os corações dos trabalhadores

174
OS IMPACTOS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO SOBRE A SUBJETIVIDADE DO PROFESSOR DE ENSINO SUPERIOR PRIVADO DE CAMPINAS

assalariados; atinge a objetividade e subjetividade (mente e corpo) da classe


trabalhadora.
Subjetividade em desefetivação é uma subjetividade precarizada e que epi-
demiologicamente evidencia-se pelo estresse, já considerado pela Organização
Mundial da Saúde (OMS) a doença do século XXI. Diante destas constatações, o
que fazer?
Certamente as saídas não são individuais; para o sofrimento individual as
saídas devem ser coletivas. Ao se adotar o referencial da luta de classes, enquanto
estivermos nos marcos do capitalismo a relação corrosiva entre capital e trabalho
se manterá ancorada na exploração do trabalho humano; o capitalismo, mesmo
com suas crises, buscará se reinventar continuamente para se manter perene.
Ao se considerar que 68% dos/as pesquisados/as não mudariam de profissão,
pode-se afirmar que há um coletivo que quer manter sua identidade de professor/a.
Do ponto de vista mais geral, como atingir este coletivo que está estressado, com
sua vida pessoal invadida pelo trabalho, que adoece e que tem medo de perder o
emprego? Como proporcionar espaços de trocas entre estes sujeitos? O que mobi-
liza estes/as professores/as?
Temos convicção que algumas das respostas a estas perguntas passam pela
luta em defesa da livre organização destes/as trabalhadores/as em seus locais de
trabalho. Atualmente os/as professores/as já não se mobilizam como na década de
1980 que, em um cenário de retomada democrática pós ditadura militar, aglutina-
va contingentes de trabalhadores/as em torno de grandes greves e manifestações
públicas.
Com o neoliberalismo na década de 1990 que trouxe consequências nefastas
à organização dos trabalhadores/as em seus processos de trabalho (reestruturação
produtiva e novas técnicas gerenciais), também identifica-se um refluxo no mo-
vimento dos trabalhadores/as em geral, pois a ameaça constante do desemprego
esvazia os espaço de reivindicações coletivas (econômicas e sociais).
A existência de associações docentes, legítimas, democraticamente represen-
tativas e combativas dentro das IES é um passo importante na organização e mo-
bilização destes trabalhadores.

Quer seja um período de ofensiva ou defensiva dos trabalhadores, as di-


retorias das entidades sindicais precisam priorizar a relação com a base

175
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

sindical, realizando efetivamente o chamado trabalho de base, que implica


na sindicalização e na organização efetiva por local de trabalho.
Uma diretoria de entidade, por mais combativa que seja, pouco poderá
conquistar sem a participação efetiva da categoria. O vínculo estreito entre
a diretoria da entidade e os trabalhadores em geral constitui-se num me-
canismo fundamental da atividade sindical, visando a intensa mobilização
dos trabalhadores. A organização por local de trabalho, além de ser um
estímulo fundamental para a mobilização, contribui para a formação de
novos quadros sindicais, na medida que desenvolve a prática e aprofunda
a compreensão da realidade, através da leitura e de outras atividades de
formação (PETTA, p.1, 2009)

A existência de sindicatos classistas14 e comprometidos com a defesa intran-


sigente da classe trabalhadora como um todo, também é fundamental para o en-
frentamento necessário às políticas patronais que seguem seu caminho sem tré-
gua; a luta é no campo econômico, político e ideológico e uma concepção classista
disputa todas estas dimensões junto aos/as trabalhadores/as.

A concepção marxista considera que os sindicatos são fundamentais para


o desenvolvimento da luta econômica, porém essa luta desenvolvida sem
uma conexão com a luta política, acaba sendo muito limitada. Para Marx, a
luta econômica deve estar articulada com a luta política e com a luta ideo-
lógica, visando a conquista do poder político pelo proletariado. Neste sen-
tido, as greves são muito importantes, mas não são os únicos instrumentos
de luta. A unidade dos trabalhadores é essencial para se ter sucesso na luta
de classes. O partido político é essencial para que o proletariado conquiste
o poder político (PETTA, p.1, 2010)

Acreditamos serem possíveis ações contra hegemônicas que mobilizam re-


sistências para enfrentar ideias oficiais e dominantes, porém, para esses embates
é necessário que os/as professores/as assumam seu papel de agentes políticos de
transformação (Torres Santomé, 2003).

14 Na luta de classes, a concepção classista faz a opção pela classe trabalhadora e sua unidade inter-
nacional com o objetivo de organizar a luta anti-capitalista.

176
OS IMPACTOS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO SOBRE A SUBJETIVIDADE DO PROFESSOR DE ENSINO SUPERIOR PRIVADO DE CAMPINAS

Para mobilizar professores/as, enquanto trabalhadores/as da educação, é preci-


so ter espaço para que estas subjetividades se comuniquem, se relacionem, se cons-
tituam intersubjetividades, reafirmem suas identidades e atuem coletivamente.
Vimos até o momento defendendo, e esta pesquisa confirma, que os dramas
vivenciados entre os/as professores/as são dramas historicamente construídos e
que a defesa de um projeto nacional de desenvolvimento com valorização do tra-
balho e distribuição de renda, eleve a educação a ocupar o lugar protagônico nas
transformações que nosso país necessita implementar para se desenvolver no pla-
no cultural, social, político e ético.

REFERÊNCIAS

ALVES, G. Dimensões da Reestruturação Produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. Londrina: Práxis, 2007.

ALVES, G. Trabalho e Subjetividade: O espírito do Toyotismo na Era do Capitalismo Manipulatório. São Pau-
lo: Boitempo, 2011.

CODO, W. Educação: carinho e trabalho. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO (CONAE), 2010, Brasília, DF. Construindo o Sistema Na-
cional Articulado de Educação: o Plano Nacional de Educação, diretrizes e estratégias; Documento Final.
Brasília. DF: MEC, 2010. Disponível em: http:// conae.mec.gov.br/images/stories/pdf/pdf/documentos/ docu-
mento_final.pdf>. Acesso em 19 de Outubro de 2011.

FREIRE, P.A. 2010. Assédio Moral, Reestruturação Produtiva e Síndrome de Burnout em Docentes. Disponí-
vel em www.psicologia.com.pt. Acesso em 15 de Setembro de 2011.

HELOANI, J. R. Assédio Moral ± Um Ensaio sobre a expropriação da dignidade no trabalho. Disponível em:
www.rae.com.br/eletronica/index. V.3 n. 1 jan-jun/2004.

LANE, S. T. M. Avanços da psicologia social na América latina. In: LANE, S. T. M.; SAWAIA, B. B. (orgs.).
Novas veredas da psicologia social. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

LINHART, D. Entrevista com Danièle Linhart. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.9 n.1, p.
149-160, mar./jun.2011.

MARTINS, L. M. A formação social da personalidade do professor: um enfoque vigotskiano. Campinas: Au-


tores Associados, 2007.

OYAMA, E. R. O negócio da educação superior: da educação-mercadoria ao capital financeiro. Disponível


em http://www.ifch.unicamp.br/cemarx/ coloquio/Docs/mesas- coordenadas/gt6/o-negocio-da-educacao-
-superior.pdf. Acesso em 13 de Outubro de 2011.

177
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

PEIXOTO, M. G. Uma Conferência vitoriosa. Revista CONTEÚDO, Brasília, D. F., p. 8. n. 6, dia de Maio de
2010.

PETTA, A. C. Organização por Local de Trabalho: necessidade urgente. Disponível em http://www.vermelho.


org.br. Acesso em 11 de Setembro de 2012.

PETTA, A. C. O que é sindicalismo classista? Disponível em http://www.vermelho.org.br. Acesso em 11 de


Setembro de 2012.

RESENDE, R. E. O Ensino superior Privado no Contexto da Sociedade Capitalista Brasileira: Uma reflexão
sobre a Situação dos Docentes no Início do Século XXI. Revista Trabalho & Educação, Belo Horizonte, v.19,
n.2, p. 25- 38, maio./ago.2010.

SATO, L.; BERNARDO, M. H. Saúde mental e trabalho: os problemas que persistem. Revista Ciência & Saúde
Coletiva, 10(4): 869-878, 2005.

SAVIANI, D. A Expansão do Ensino Superior no Brasil: Mudanças e Continuidades. Poiésis Pedagógica, v. 8,


n. 2, pp. 4 ± 17, ago/dez. 2010.

SGUISSARDI, V. e SILVA. JR. J.R. Trabalho intensificado nas federais: pós- graduação e produtivismo acadê-
mico. São Paulo, Xamã: 2009.

TORRES SANTOMÉ, J. A Educação em Tempos de Neoliberalismo. Porto Alegre: Artmed, 2003.

178
CAPÍTULO 8
CORAÇÕES E MENTES
NOTAS SOBRE A MANIPULAÇÃO DA
SUBJETIVIDADE NOS PROGRAMAS
COMPORTAMENTAIS DE SAÚDE E
SEGURANÇA NO TRABALHO

Bruno Chapadeiro

“Ganhando Corações e Mentes as pessoas irão trabalhar com [saúde e] segu-


rança não porque lhes foi dito, mas porque é dessa forma que se quer e se sabe
trabalhar. O “Hearts and Minds” trata de como melhorar a Cultura de [Saúde
e] Segurança em uma organização, fazendo com que ela seja totalmente inte-
grada ao comportamento de trabalhar.” - Dianne e Mateus (Idealizadores do
programa de SST “Hearts and Minds” derivado de parceria entre a Shell e as
principais Universidades em Leiden, Manchester e Aberdeen).

SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO (SST): RES PUBLICA

Falarmos em SST hoje é pensarmos o campo também como um problema


público, isto é, que exige ações mediadoras e reguladoras do Estado (JACKSON
FILHO et. al., 2007, p.4). Os dados do AEPS - Anuário Estatístico da Previdência
Social (BRASIL, 2013) expõem que durante o ano de 2012, o número de acidentes
de trabalho atingiu 724,2 mil acidentes, o que correspondeu a um decréscimo
de 2,30% em relação a 2011. A assistência médica aumentou 6,15% e os óbitos
diminuíram 7,05% em relação a 2011. As incapacidades temporárias e permanen-
tes decresceram, respectivamente, 3,42% e 11,42%. O setor com maior número

179
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

de acidentes é o de Comércio e Reparação de Veículos Automotores, com 95.659


registros, seguido, em 2012, pelo setor de Saúde e Serviços Sociais, com 66.302
acidentes. O setor com o terceiro maior índice de registros de acidentes é o da
construção civil, que apresentou um aumento, passando de 60.415 em 2011, para
62.874 em 2012.
Mesmo com uma pequena redução nos indicadores, o total continua acima
dos 700 mil por ano, o que é ainda alarmante. Para o Sindicato Nacional dos Au-
ditores Fiscais do Trabalho (SINAIT), a realidade com que se deparam os Audi-
tores-Fiscais nos ambientes de trabalho mostra que os trabalhadores continuam
correndo muitos riscos e que o número real pode ser ainda maior. Atenta-se tam-
bém para o fato de que os acidentes de trabalho não terão de fato uma redução
significativa enquanto o quadro de Auditores-Fiscais do Trabalho for diminuto
como está hoje, com menos de três mil profissionais em atividade, e pouco mais
de 500 especializados na área de segurança e saúde no trabalho.
É sob este panorama que visamos apontar a problemática em questão nesse
nosso texto. Num breve levantamento da produção publicada na última década
em revistas indexadas, Minayo Gomez (2013) constata que os estudos sobre SST,
na sua imensa maioria, são justamente de caráter quantitativo e tratam dos agra-
vos das atividades laborais à saúde de trabalhadores. No entanto, são raras as pes-
quisas que abordam questões relacionadas à Prevenção e Vigilância.

SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO X SAÚDE OU SEGURANÇA NO


TRABALHO

O fato do campo da pesquisa científica em SST parecer estar ainda descolado


da maioria das práticas encontradas nos serviços públicos e privados, principal-
mente no que tange prevenção e vigilância, por vezes deixa o caminho livre para
modelos de abordagem nessa área que tem como foco o chamado “erro humano”
derivado dos ditos “atos inseguros”. Tais modelos comumente ancoram-se na vi-
são de um não cumprimento dos procedimentos padrões pelos trabalhadores que
operam os sistemas1. Dentro dessa visão, atribui-se o erro a uma anormalidade

1 “(...) estão sendo propostos novos sistemas de gestão da SST baseados no velho princípio de que
acidentes resultam de desvios do comportamento e faz-se necessária a gestão do comportamento

180
CORAÇÕES E MENTESNOTAS SOBRE A MANIPULAÇÃO DA SUBJETIVIDADE NOS PROGRAMAS COMPORTAMENTAIS DE SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO

dos processos mentais, tais como, esquecimento, omissões, falta de atenção, baixa
motivação e falta de cuidado.
Dejours & Bègue (2010, p. 18) no entanto, apontam outro entendimento para
o assunto aqui em pauta. Não havendo o fato concreto ocorrido, o acidente em si,
o trabalhador controla as situações de risco sem titubear, porém também sem dei-
xar o medo de lado, afinal, o mesmo está sempre ciente do que pode lhe causar um
dano - principalmente físico - em seu ambiente de trabalho. Porém não havendo
um acidente de fato ocorrido em determinado setor, o trabalhador participa conti-
do em uma estratégia coletiva de defesa que consiste em converter por vezes o risco
em escárnio (estratégia essa utilizada muitas vezes por operários da construção
civil segundo os autores), e isso por conta de provocações organizadas coletiva-
mente e da constante exaltação demonstrada nos atributos comportamentais da
coragem viril, da invulnerabilidade, da indiferença à dor etc.
Contudo, ao nos distanciarmos - nós pesquisadores da área - dos momentos
de elaboração/execução de programas prevencionistas em SST tanto no setor pú-
blico quanto na iniciativa privada, abrimos brechas para o constante desenvolvi-
mento da visão tradicionalista da área que comumente visa tal imputação da culpa
do incidente/acidente à parte hipovalente do conflito capital-trabalho: o próprio
trabalhador2.
Seríamos generalistas em demasiado se atribuíssemos a todos os pesquisa-
dores das ciências humanas e sociais que lidam com a questão da saúde do tra-
balhador uma negligência no que tange aspectos prevencionistas em segurança
do trabalho. Obviamente que quando consideramos a insígnia SST abarcamos
nesta concepção o fator que abrange o não-se-machucar atrelado à segurança,
de modo que jamais defendemos aqui a tese de que o trabalhador que perde um
membro de seu corpo, seja um dedo de uma das mãos ou mesmo todo um braço,
vivencie apenas o sofrimento físico do ocorrido, mas sim, agonize também – e
principalmente – em suas instâncias subjetivas. Desse modo, SST no contexto

dos trabalhadores” (ALMEIDA et. al., 2007, p. 5).


2 “A despeito de todas as evidências da influência de fatores sistêmicos, a predominância do enfo-
que que culpabiliza as vítimas por seus ‘atos inseguros’, muitas vezes, também é sustentada por
agentes públicos, perpetuando-se, assim, a impunidade nos acidentes do trabalho e a injustiça
social” (VILELA, R. A. G.; IGUTI A. M.; ALMEIDA, I. M., 2004, p. 570-579).

181
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

laboral deve remeter à uma seguridade psicossocial do trabalhador como direito


inalienável do mesmo.
Um número especial da Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (RBSO, v.
3 n. 115, 2007) ao tratar deste tema crucial, procurou ir além desta abordagem
tradicional, que tende a separar as disciplinas de cunho técnico dos construtos so-
ciais e políticos na explicação e compreensão dos fenômenos associados ao “meio
ambiente do trabalho”. Conforme evidenciado nos dizeres de Wooding e Levens-
tein (1999, p.12-13): “a medicina ocupacional, a higiene industrial, a epidemiologia
ocupacional – a economia – são ensinadas e praticadas sob a ficção de que as polí-
ticas e os construtos sociais são considerações separadas da, e periféricas à, ciência
dura”. Nesta coletânea, que agrupou trabalhos de pesquisadores e atores de diver-
sas instituições públicas, procurou-se, explicitamente, enfrentar “a fragmentação
e dispersão da produção científica na área” que justamente vêm prejudicando “a
importante colaboração que a academia poderia oferecer para fundamentar as
necessidades dos agentes políticos, movimentos sociais, gestores e profissionais de
saúde” (GOMES & LACAZ, 2005, p. 797).
Ora, Jackson Filho e Almeida (2007, p. 7) nos dizem que ao longo das últimas
décadas, cresceu entre nós o número de estudiosos que exploram o tema dos aci-
dentes do trabalho e que grande parte de seus estudos pode ser encontrada em
periódicos na internet e que, embora de acesso gratuito, não parecem ter sido
descobertos pelos profissionais de segurança que atuam em empresas, instituições
e organismos externos às universidades e instituições de pesquisa.
Desse modo o que se encontra ainda no interior das empresas é a contínua
dicotomização em SST dos termos “saúde” e “segurança”. Para os psicólogos e ad-
ministradores que atuam nestes espaços, “saúde” (ou na linguagem do RH: “bem-
-estar do empregado”, “qualidade de vida no trabalho” e etc.) torna-se sinônimo
da adoção de políticas de altos salários, recompensas econômicas conjugadas com
recompensas simbólicas e, por vezes, participação do trabalhador nos lucros da
empresa mediante a obtenção prévia de metas e resultados de ordem econômica
para a empresa. Já «segurança” é objeto de atenção de engenheiros do trabalho e
técnicos em segurança do trabalho que, quando muito, buscam o cumprimento de
procedimentos burocráticos como atender às Normas Regulamentadoras (NR’s)
do Ministério do Trabalho e Emprego (MTe) e a distribuição dos Equipamentos
de Proteção Individual (EPI’s) aos trabalhadores. Ainda poderíamos dividir ainda
mais o campo da SST na ramificação da “medicina ocupacional” onde médicos

182
CORAÇÕES E MENTESNOTAS SOBRE A MANIPULAÇÃO DA SUBJETIVIDADE NOS PROGRAMAS COMPORTAMENTAIS DE SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO

e enfermeiros visam tão somente cuidar dos exames admissionais e demissionais


bem como de casos - tratados isoladamente e não estabelecendo nexo com a ati-
vidade - de cefaléias, desconfortos gastrointestinais e indisposição corporal que
também procedem em rápidas medicalizações.
De acordo com as conclusões de Jackson Filho e Almeida (2007, p. 8), os aci-
dentes no trabalho são portanto encarados como fenômenos individuais ou, no
máximo, restritos a um dos componentes do sistema sociotécnico aberto envol-
vido na atividade desenvolvida pelo trabalhador. Esse componente é o alvo das
recomendações de prevenção que na verdade são táticas de se remediar algo que
às vistas da gestão, parece necessitar de conserto.
Dessa forma, o acidente deixa de ser compreendido como sinal de disfunção
sistêmica ou como revelador, seja de situações com potencial acidentogênico, seja
como fonte de aprendizado organizacional e caminhos para aperfeiçoamento des-
se sistema (REASON, 1997) ou mesmo como intrínseco à divisão e organização
do trabalho social na forma como está posto no capitalismo contemporâneo.
Essa forma de conceber o acidente como fenômeno simples foi chamada de
abordagem ou paradigma tradicional por diversos autores (CATTINO, 2002;
LLORY, 1999b; DWYER, 2000 apud JACKSON FILHO & ALMEIDA, 2007, p. 8).
Infelizmente, enquanto o usuário desse modelo de investigação vê a conclusão cen-
trada em aspectos do componente ou fator humano como mero produto de um
trabalho técnico, no mundo real, esses resultados acabam alimentando práticas de
atribuição de culpa típicas da abordagem tradicional de acidentes (VILELA, R. A.
G.; IGUTI A. M.; ALMEIDA, I. M., 2004). A culpabilização da vítima torna-se então
uma realidade perversa na lógica da gestão no modus operandi intraorganização.

SOBRE “COMPORTAMENTOS DE RISCO” E “ATOS INSEGUROS”

Vilela (2003, p. 7) observa que o uso da teoria do “ato inseguro” para configu-
ração sistemática da culpa da vítima nos casos de acidentes do trabalho constitui-
-se num modelo conveniente e útil para a descaracterização da culpa do emprega-
dor ou de seus prepostos, mantendo-se deste modo um clima de impunidade em
relação aos acidentes do trabalho. O autor verifica ainda que a parcela dos aciden-
tes de trabalho que são atribuídos tanto a “atos inseguros” dos trabalhadores são

183
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

resultado de confusões conceituais presentes na teoria monocausal, reforçando a


necessidade de reciclagem dos profissionais da área e aprofundamento da revisão
conceitual sobre investigação e causas dos acidentes do trabalho.
Do ponto de vista da prevenção, o modelo hegemônico nas organizações de
trabalho reforça a ideia e a cultura em vigor de que as medidas cabíveis para se
evitar novas ocorrências devem ser centradas na mudança do comportamento dos
trabalhadores, para que estes prestem mais atenção, tomem cuidado, etc., perma-
necendo intocadas as condições, processos e a organização do trabalho. Ativida-
des e meios produtivos que são assim naturalizados ao serem assumidos como
perigosos por si.
Normas mundiais de avaliação e certificação em SST como a OHSAS (Occupa-
tional Health and Safety Assessment Series) 18.001 que visam um funcionamento
num Sistema de Gestão Integrado à outras normas de gestão de Qualidade como
a ISO 9.001 e Ambientais (ISO 14.001), especificam os requisitos para tal funcio-
namento de sistema de gestão que as organizações devem adotar para controlar os
seus riscos de acidentes e doenças ocupacionais e melhorarem seus desempenho
e indicadores em SST3, porém, não estabelecem critérios específicos de desempe-
nho em SST que a organização deve seguir, nem ao menos fornece especificações
detalhadas para o desenho de um sistema de gestão que (re)force a necessidade de
uma transformação profunda na organização de trabalho. Principalmente sob a
perspectiva dos trabalhadores envolvidos.
Desse modo, em nome de se atingir e manter um certificação de qualidade
em SST tal como a OHSAS 18.001 - pois tê-los nas salas de troféu dos gestores faz
com que a organização seja vista no mercado como «socialmente responsável» e
«compromissada» com a SST, o que amplia também sua imagem frente à órgãos
financeiros como as bolsas de valores -; são adotadas medidas de gestão perversas
onde “os fins justificam os meios”.
Assim, amplia-se a utilização de uma abordagem tradicionalista em SST que
fica evidenciado nos constantes laudos e investigações de acidentes de trabalho in-
suficientes, subnotificações de acidentes e adoecimentos profissionais e principal-
mente em alterações na classificação de acidentes com afastamento para acidentes

3 Como se os indicadores demonstrassem a realidade. Com efeito, os procedimentos de objetivação


dos progressos realizados são, ao mesmo tempo, procedimentos de controle do investimento e da
produtividade daqueles sobre os quais eles se aplicam.

184
CORAÇÕES E MENTESNOTAS SOBRE A MANIPULAÇÃO DA SUBJETIVIDADE NOS PROGRAMAS COMPORTAMENTAIS DE SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO

sem afastamento onde o trabalhador acaba por ser realocado a outro setor em que
não se utilize do membro acidentado ou mesmo que fique encostado sem lhe ser
atribuída nenhuma atividade apenas para que não seja afastado e goze dos benefí-
cios sociais os quais tem direito.
A abordagem tradicional para se lidar com questões de SST dentro de empre-
sas pauta-se em pressupostos positivo-comportamentais em que, em nome da mo-
dificação do comportamento do trabalhador, foram (e são) tomadas providências
de diferentes naturezas, que vão da difusão de informações, à medidas disciplina-
res, passando por cursos e treinamentos. Em nossa vivência de atuação no campo
da SST em diferentes ambientes de trabalho, pudemos observar que em muitas
práticas difundidas nas organizações para esse fim, foi possível perceber a forte
presença de um mecanismo de controle bastante comum na psicologia comporta-
mental chamado de punição. Entretanto, mesmo para a psicologia comportamen-
tal, a punição por si não elimina um comportamento.
Perante à insuficiência do modelo comportamental de punição para se tratar
os casos de acidentes de trabalho devido muitas vezes à reincidência do acidente
por vezes com o mesmo trabalhador ou grupo de trabalhadores, eis que a pergun-
ta crucial que se coloca a gestão pós-fordista de “espírito” toyotista4 é: “manipular
o trabalhador por meio do controle ou por meio de escolhas?” Assim passa-se a
não mais adotar a punição como forma de extinguir os ditos “comportamentos de
risco” e os “atos inseguros” mas sim seus opostos: estratégias de gestão que visem
a influência/reforço (manipulação) dos trabalhadores a adotarem “comportamen-
tos seguros”. Dá-se a substituição de um modelo mais despótico por outro que
permita a colaboração e o envolvimento do trabalhador.

COMPORTAMENTOS “SEGUROS” E “DE RISCO” COMO ESCOLHA


MORAL

A gestão pós-fordista de “espírito” toyotista cria portanto mecanismos que


visam estimular o desenvolvimento da “iniciativa”, da “capacidade cognitiva”, do
“raciocínio lógico”, do “potencial de criação” e principalmente da “competição”,

4 Chapadeiro, 2013.

185
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

para que os trabalhadores sejam capazes de dar respostas às situações de periculo-


sidade inerentes ao ambiente laboral baseado na divisão e organização do trabalho
dentro da organização.
Da mesma forma que propicia certa autonomia e dá certo poder de decisão
aos trabalhadores para decidirem qual comportamento adotar, a gestão pós-for-
dista de “espírito” toyotista também necessita manter um controle direto sobre
a atuação dos mesmos, o que leva a fazer com que estes assimilem e incorporem
suas regras de funcionamento como elemento de sua percepção, chegando, num
último estágio, ao reordenamento da subjetividade dos trabalhadores, visando ga-
rantir a manutenção das normas empresariais. (HELOANI, 2003, p. 106)5.
Desse modo, os programas comportamentais em SST não visam mais as che-
fias externas imediatas para o controle, mas a gestão adota mecanismos de poder
mais sofisticados de forma que as normas e os valores em SST da empresa estejam
introjetados em cada um dos trabalhadores que passam a se identificar com os
mesmos objetivamente ajustando suas estruturas mentais às estruturas político-
-sociais da empresa. Heloani (2003, p. 102) nos diz que essas formas de controle
sutil sofisticam-se de tal maneira, que a dominação como meio de exercício
do poder estará mais baseada na introjeção dessas normas ou regras, pré-
-determinadas pela gestão, do que numa repressão mais explícita como o caso
das punições que atentamos. A organização pós-fordista de “espírito” toyotista
lidará basicamente com a gestão dessa dimensão psicológica de dominação.
Eis, portanto o sentido da manipulação sistêmica do capital e do novo panop-
tismo dos métodos da gestão pós-fordistas de “espírito” toyotista que também se
aplicam à esfera da SST dentro das organizações. No processo de obtenção das
metas relacionadas à SST (o fetiche pelo acidente zero é mais uma das metas irre-
ais impostas pela gestão), cada um é “carrasco” de si e do Outro-como-próximo.
Manipula-se não apenas verticalmente (capital -> trabalho = gestão -> operariado)
como também horizontalmente, não somente o Outro-como-próximo (operário
-> operário), mas também a si próprio, numa espécie de autovigilância dos pró-
prios comportamentos. É o sentido radical do dito hobbesiano do bellum omnes
contra omnes.

5 “A subjetividade é assim tomada, como um recurso a mais a ser manipulado, um engodo por parte
do capital, para que os trabalhadores, ‘crendo que sua subjetividade foi reconhecida, ponham a
serviço do capitalismo seu potencial físico, intelectual e afetivo’” (HELOANI, 2003, p. 106).

186
CORAÇÕES E MENTESNOTAS SOBRE A MANIPULAÇÃO DA SUBJETIVIDADE NOS PROGRAMAS COMPORTAMENTAIS DE SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO

Em outro trabalho nosso (CHAPADEIRO, 2013, p. 101) buscamos compre-


ender tal fenômeno subjetivo que ocorre no interior do processo intrasubjetivo
de manipulação da subjetividade pela gestão pós-fordista de “espírito” toyotista:

A lógica da manipulação reflexiva


Imputação da culpa
(cada trabalhador assume a culpa por seu próprio incidente/acidente)

Atribuição de responsabilidades
(é atribuída subjetivamente a cada trabalhador a responsabilidade pela vigilância do
comportamento do outro próximo-a-si)

Jogo de perversidades mútuas


(Internalizando os “comportamentos seguros” que a gestão idealiza no trabalhador este
pode denunciar aquele que não o faz)

Tais ideologias de gestão pautadas na modelação e manutenção de compor-


tamentos esperados torna-se um novo poder de controle que surge do desenvol-
vimento da forma de organização do trabalho adotada pela gestão pós-fordista
de “espírito” toyotista. É um poder difícil de ser contestado, pois os conflitos se
colocam no nível psicológico em termos de insegurança quanto às retaliações ad-
vindas de um possível incidente/acidente, de sofrimento psíquico, de esgotamento
profissional de perturbações psicossomáticas, de depressões nervosas.
Essa dominação gerencialista também no campo da SST prega a adesão vo-
luntária à sanção disciplinar, fazendo com que os trabalhadores atuem uns na de-
núncia dos “comportamentos de risco” e “atos inseguros” dos outros, de modo que
ao fazer, se sentem realizados por estarem alinhados com as normas, objetivos e
valores da organização. É um processo mental de difícil contestação porque opera
na subjetividade do indivíduo, o que faria com que, adotar um comportamento
contrário ao esperado pela gestão, o fizesse a contestar a si próprio6.
Gaulejac (2011, p. 100) diz que ao aceitar “entrar no jogo” os trabalhadores são
pegos a contragosto em uma construção processual que os submete a um poder
normalizador ao qual devem aderir. Ou seja, o trabalhador passa a compartilhar,

6 O trabalhador passou a confundir o interesse da firma com o seu, o que permitiu que sua força de
trabalho sofresse maior exploração (CAPELAS, NETO E MARQUES, 2010).

187
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

não sem resistências, de sua própria manipulação. Dá-se um tipo de manipulação


como escolha moral.
Assim, o que parece ser um bonita filosofia pautada no que a abordagem tra-
dicional ancorada em pressupostos positivos-comportamentais7 em SST chama
de “cuidado ativo” (eu cuido de mim, do outro e me permito ser cuidado) nada
mais evidencia perversamente que uma crise de sociabilidade que é a crise do
homem com outros homens e o dilaceramento dos laços sociais que constituem a
sociabilidade humano-genérica. Nessa lógica, o pôr teleológico secundário (ação
do homem sobre outro homem e sobre si), exposto por Lukács (2012), é compre-
endido como uma ideologia de manipulação, dominação e controle. O que deve-
ria ser compreendido como exigência sócio-ontológica da produção/reprodução
social, passa a ser recurso sistêmico de controle/manipulação social pelo capital.

CORAÇÕES E MENTES COMO MEDIADORES DE COMPORTAMENTOS

Há um lema que norteia a narrativa do filme Metrópolis (1927) de Fritz Lang


que diz que “o mediador entre as mãos e o cérebro é o coração”. A gestão pós-
-fordista de “espírito” toyotista sob a égide do capitalismo global visa manipular
não somente os comportamentos, mas também os sentimentos humanos.
Procederemos nossa análise por meio de um estudo de caso do programa in-
glês em SST intitulado Hearts and Minds8, desenvolvido pela Shell, com base em
vinte anos de incentivos financeiros injetados em pesquisa nas principais univer-
sidades inglesas, e que vem sendo amplamente aplicado tanto nas organizações do
grupo Shell como comercializado a outras empresas em todo o mundo. SST cada
vez mais atingindo a forma-mercadoria.

7 A preocupação pela objetividade é louvável. Mas colocar a realidade em uma equação jamais
permitirá compreender o comportamento dos homens e a história das organizações (GAULEJAC,
2011, p. 69)
8 Curiosamente Hearts and Minds (EUA, 1974), “Corações e Mentes” em português, é um dos mais
importantes documentários políticos da história do cinema dirigido por Peter Davis. Sua narrati-
va mostra justamente a manipulação propagandística em que se pautou o discurso ideológico que
norteou a ação do exército norte americano na Guerra no Vietnã.

188
CORAÇÕES E MENTESNOTAS SOBRE A MANIPULAÇÃO DA SUBJETIVIDADE NOS PROGRAMAS COMPORTAMENTAIS DE SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO

Este programa surgiu a partir de pesquisas patrocinadas pela Shell em progra-


mas de segurança e comportamento em universidades de Leiden, Manchester e de
Aberdeen. A ideologia do programa Hearts and Minds vai no sentido de mudar
atitudes e hábitos dos trabalhadores para que estes se comportem de forma segura
no ambiente laboral. Ele fornece à gestão técnicas práticas para intervir e manipu-
lar os comportamentos ditos “seguros” e “de risco”.
Desse modo, o Hearts and Minds é o que se pode ser chamado de um “kit-
-gestão” destinado a auxiliar as organizações a melhorem seus desempenhos em
SST se utilizando de uma variedade de ferramentas e técnicas que as assessoram
no envolvimento dos trabalhadores na gestão de SST como parte integrante do seu
negócio. Tais ferramentas e técnicas são intituladas “Hearts and Minds Toolkit”.
Eis um breve resumo - feito em tradução livre por nós - de todas as ferramen-
tas dispostas no chamado Hearts and Minds Toolkit:

1. Compreendendo sua Cultura: “Folheto utilizado em reuniões e oficinas


de gestores que lhes dá uma visão do estágio atual da cultura em SST da
empresa e qual a cultura desejada. O folheto expõe quais sãos os comporta-
mentos pessoais que os indivíduos podem adotar para reduzir a diferença
entre cultura real x cultura ideal. Há inclusive uma tabela que pontua e
ranqueia os comportamentos esperados pela organização;”
2. Saúde e Segurança: “Avaliações em SST que visa saber como os trabalha-
dores se veêm e veêm ao outro dentro de um processo de avaliação que
compara o modo como cada um se vê com a forma como as outras o
vêem. Avalia os trabalhadores em quatro aspectos de SST: (1) ‘Faça o que
eu digo. Pratique o que diz.’ (Walking to Talk); (2) ‘Grau de Entendimento’
(Informedness); (3) ‘Confiança’ (Trust) e; (4) ‘Prioridades’ (Priorites);”
3. Dando a última chance: “Quando as pessoas têm um interesse pessoal no
sucesso de um projeto, a sua gestão é fácil. O “dando a última chance” leva
essa ideia e a coloca em prática com um processo para garantir o sucesso
de projetos e iniciativas de ganhar os corações e mentes de todos os envol-
vidos. Mudanças podem variar de uma iniciativa importante, como uma
transformação cultural em toda a organização, até a implementação de
uma nova forma de trabalhar em um local de trabalho específico. As pes-
soas têm de ser conquistadas, para que queiram atingir metas.”

189
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

4. Matriz de Avaliação de Risco: “Classifica, avalia os riscos e discute quais as


mudanças precisam ser feitas para que o risco seja tão baixo a ponto de se
tornar razoavelmente possível.”
5. Condução de Excelência: “Este kit destina-se a mudar a atitude de todos os
motoristas, tanto profissionais como motoristas temporários. Os exercícios
contidos são destinadas a dois grupos principais: os motoristas (que devem
concentrar-se em perigos da estrada) e supervisores (que se concentram
também sobre os planos e cronogramas que afetam a segurança dos moto-
ristas). O ‹Condução de Excelência’ utiliza os corações e mentes para mos-
trar que há seis passos claros para se tornar um motorista mais seguro.”
6. Tomar Consciência da Situação: “Esta ferramenta utiliza uma técnica sim-
ples para ajudar as pessoas a reconhecer quando uma situação normal tem
o potencial de se tornar perigoso. Acidentes raramente acontecem por cau-
sa de uma única falha catastrófica, exceto quando que a falha está no final
de uma cadeia de falhas não-catastróficas e omissões organizacionais. Se
utiliza da ‘Regra de Três’ (vermelho, amarelo, verde) significa que os riscos
não são mais considerados isoladamente, mas em conjunto para minimizar
os incidentes”.
7. Melhorar a Supervisão: “As pessoas muitas vezes são promovidos para
o papel de um supervisor, porque eles têm a capacidade de atingir metas
de produção e tiveram formação técnica adequada. No entanto, isso não
significa necessariamente que eles tenham concluído o treinamento para
capacitá-los a se tornar supervisores de sucesso. Esta brochura tem como
objetivo ajudar tanto as pessoas de novo a este papel, e também atualizar as
habilidades daqueles que foram supervisores por algum tempo. o processo
passo-a-passo irá identificar qualquer problema com a melhoria da quali-
dade de supervisão e de unidade”.
8. Trabalhando com Segurança: “O folheto Trabalhando com Segurança for-
nece uma estrutura para a compreensão de causas do comportamento inse-
guro e enfrentá-los. Ele explica como e por que as pessoas não conseguem
agir corretamente em torno de perigos, contém ferramentas que podem
ser executados em oficinas formais ou informalmente como atividades
do dia-a-dia e ajuda a mudar as atitudes das pessoas que participam nos

190
CORAÇÕES E MENTESNOTAS SOBRE A MANIPULAÇÃO DA SUBJETIVIDADE NOS PROGRAMAS COMPORTAMENTAIS DE SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO

exercícios. Ele também dá as diretrizes para os gestores sobre como definir


expectativas claras e melhorar os sistemas de notificação de segurança”.
9. Gerenciando Quebras de Regras: “Regras e procedimentos formam uma
das principais barreiras entre perigos e eventos indesejados. O não cum-
primento destas procedimentos estabelecidos remove uma ou mais dessas
barreiras. Isso pode ser devido a erro humano, ou as regras podem ser que-
bradas intencionalmente. Em combinação com um único erro ou falha me-
cânica, violações podem levar ao desastre. A ferramenta de Gerenciamento
de Regras de quebra vai ajudar você a entender por que as pessoas quebram
as regras intencionalmente e como gerenciar e mudar isso”.

Como se vê, a falsa neutralidade do kit Hearts and Minds permite obscurecer,
primeiramente, o conflito capital-trabalho, como também os conflitos interpes-
soais ao propor um conjunto de práticas a serem utilizadas mais como recurso
ideológico utilizado pela gestão na manipulação da subjetividade do trabalhador,
no que tange a SST, do que diagnosticar e propor as transformações sociais ne-
cessárias do ambiente de trabalho9. Como nos diz Gaulejac (2011, p. 72) nesse
universo experimental, a discussão sobre o “como” tende a eliminar a questão do
“porquê”. Ou seja, tal programa não toca em estruturas hierárquicas de poder e
visa tão somente em maior instância a alienação do trabalhador no entendimento/
controle/manejo/domínio dos meios de produção. Hoje, portanto, mais do que
mediar mãos e cérebro, o processo de conquista dos «corações e mentes» tornam-
-se a fronteira final da manipulação sistêmica do capital.

9 Os trabalhadores são considerados como as engrenagens de uma máquina ou como os elementos


de um sistema. A racionalidade instrumental consiste em pôr em ação uma panóplia impressio-
nante de métodos e de técnicas para medir a atividade humana, transformá-la em indicadores,
calibrá-la em função de parâmetros precisos, canalizá-la para responder às exigências de produti-
vidade (GAULEJC, 2007, p. 72).

191
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

VIGILÂNCIA DE SI, DO OUTRO E AUTOPERMISSIVIDADE À


MANIPULAÇÃO SUBJETIVA

A lógica por detrás dos programas comportamentais em SST tais como o He-
arts and Minds não implica num olhar externo que utiliza aparatos de controle ou
informantes que observem os comportamentos “seguros” e/ou de “risco” de cada
trabalhador, mas sim, o envolvimento10 gradual de cada trabalhador num jogo de
manipulação do Outro visando atingir, com competência, o interesses ocultos da
gestão: apontar os “culpados” de cada incidente/acidente e/ou adoecimento. A ide-
ologia pós-fordista de “espírito” toyotista, base material da nova lógica de mani-
pulação reflexiva que sustenta programas tais como o Hearts and Minds, exclui a
ideia de um “vigia exterior” (chefias imediatas ou câmeras instaladas no ambiente
organizacional), ou mesmo a figura do “espião-informante” (representados pelos
engenheiros e/ou técnicos de segurança dos SESMT’s). Os verdadeiros algozes de
cada um é o Outro-proximo-de-si, e a dinâmica adotada promove um tipo de
interação espúria onde – pouco a pouco – cada trabalhador, ao mesmo tempo em
que exerce uma vigilância moral-comportamental sobre o Outro, busca convencê-
-lo de que os perigos e riscos dispostos no ambiente laboral somente existirão caso
Este não lide com os mesmos com sua máxima atenção, exigindo do trabalhador
um estressor estado de alerta constante.
A manipulação reflexiva por detrás dos programas comportamentais em SST
envolve todos os homens e mulheres que convivem dia-a-dia no ambiente laboral,
internalizando, aceitando e reproduzindo as regras do jogo impostas pela gestão.
Por exemplo ao atribuir reforços financeiros e morais às metas abusivas que bei-
ram o “zero acidentes”. Detalho: quando um trabalhador de determinado setor
na empresa se acidenta, todos os demais do mesmo setor perdem seus bônus em
Programas de Participação de Lucros e Resultados (PPLR), o que ocasiona um
controle vigilante de si próprio frente à atividade executada, porém principalmen-
te do Outro-como-próximo. Justamente por enxergar e compreender esse Outro
como um sujeito com poder suficiente de pôr a perder os chamados “benefícios”
financeiros independente das condições de trabalho à qual estão submetidos
diariamente. A lógica financeira ainda é o primado de excelência do homem de

10 Com o poder gerencialista, as ordens e as proibições são substituídas por procedimentos e por
princípios interiorizados e conformes à lógica da organização (GAULEJAC, 2011, p. 99).

192
CORAÇÕES E MENTESNOTAS SOBRE A MANIPULAÇÃO DA SUBJETIVIDADE NOS PROGRAMAS COMPORTAMENTAIS DE SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO

mentalidade burguesa, ampliando sua dessubjetivação de classe e afastando-o de


seu ser genérico e de suas relações sociais.
Tal artifício ideológico proveniente de ferramentas de SST como o Hearts and
Minds tornam invisíveis os agentes da gestão do capital ou o próprio capital. To-
dos os homens e mulheres, ao invés de voltar-se contra o sistema da manipulação
reflexiva que os joga uns contra os outros, voltam-se contra o Outro-próximo-
-de-si enxergando-o como obstáculo à meta a ser atingida. É intrínseco à lógica
da manipulação reflexiva vítimas culpabilizarem vítimas – inclusive a si próprias
– pela sua própria desgraça ampliando ainda mais um cenário de crise de sociabi-
lidade ao promover o dilaceramento dos laços sociais que constituem a sociabili-
dade humano-genérica.
A lógica dialética nos ensina que toda dominação e manipulação é processu-
al e, portanto transformadora e transformada, passível de resistência e conflitos.
Hoje a luta ocorre no plano da subjetividade da pessoa humana-que-trabalha. Por
isso, coloca-se hoje como tarefa política crucial, a disseminação de práticas de for-
mação humana no sentido da efetivação de sujeitos crítico-reflexivos capazes de
intervenção radical também no campo da SST. Esta mudança implica, nos dizeres
de Assunção e Lima (2005), numa nova visão de mundo, uma nova prática que
olhe o mundo do trabalho pelos olhos do trabalhador rompendo a visão precon-
ceituosa, autoritária e normativa que impera no mundo dos especialistas. É ainda
portanto uma luta árdua contra a manipulação sistêmica do capital que adquire
novas formas de ser em seu desenvolvimento cooptando para si também a área de
SST e suas instâncias.

REFERÊNCIAS

ASSUNÇÃO, A. A.; LIMA, F. P. A contribuição da Ergonomia para a identificação, redução e eliminação da


nocividade do trabalho. In: MENDES, R. [Org.]. Patologia do trabalho. 2. ed. v. 2. São Paulo: Atheneu, 2005.
p. 1767-1789.

BRASIL. Anuário Estatístico da Previdência Social – 2012. Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/wp-


-content/uploads/2013/12/AEPS_2012_web.pdf. Acesso em: 15 Jan 2014.

CHANLAT, J. F. Modos de gestão, saúde e segurança no trabalho. In: DAVEL, E. P. B. & VASCONCELLOS, J.
G. M. (orgs.). “Recursos” Humanos e Subjetividade. Petrópolis: Vozes, 1995.

CHAPADEIRO, B. Trabalho e gestão através do cinema. Bauru: Canal 6, 2013.

193
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

DE CICCO, F. Manual sobre sistemas de gestão da segurança e saúde no trabalho: OHSAS 18.001. São Paulo:
Risk Tecnologia, 1999.

DEJOURS, C. & BEGUE, F. Suicídio e trabalho - o que fazer?. Brasília: Paralelo 15, 2010.

GAULEJAC. Vincent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. 2ed.
Aparecida: Ideias & Letras. 2011.

HELOANI, J. R. M. Gestão e organização no capitalismo globalizado: história da manipulação psicológica no


mundo do trabalho. São Paulo: Atlas, 2003.

HUDSON, P.T.W.; PARKER, D.; LAWRIE, M.; V D GRAAF, G.C. & BRYDEN, R. How to win Hearts and Min-
ds: The theory behind the program. In: Proceedings 7th SPE International Conference on Health Safety and En-
vironment in Oil and Gas Exploration and Production. Richardson TX: Society of Petroleum Engineers, 2004.

JACKSON FILHO, J. M.; GARCIA, E. G.; ALMEIDA, I. M. A Saúde do Trabalhador como problema público ou
a ausência do Estado como projeto Rev. bras. saúde ocup., v. 32, n. 115, jan-jun, 2007, p. 4-6.

JACKSON FILHO J. M.; ALMEIDA, I. M. Acidentes e sua prevenção. Rev. bras. saúde ocup., v. 32, n. 115, jan-
-jun, 2007, p. 7-18.

LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Editora Boitempo, 2012.

MARX, K. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Editora Boitempo, 2004.

_________. O capital - Crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo:
Editora Boitempo, 2013.

MINAYO GOMEZ, C. Na produção do conhecimento em Saúde do Trabalhador é preciso ter compromis-


so. In: Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro,  v. 18, n. 11, Nov. 2013.

MINAYO GOMEZ, C.; LACAZ, F. A. C. Saúde do trabalhador: novas e velhas questões. In: Ciênc. saúde cole-
tiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 4, p 797-807, 2005.

HEARTS & MINDS. Guidance on investigating and analysing human and organisational factors aspects of inci-
dents and accidents. Energy Institute, 2008. Disponível em: <http://www.eimicrosites.org/heartsandminds/>
Acesso em: 15 Mai 2014.

REASON, J. Managing the risks of organizational accidents. Aldershot: Ashgate, 1997.

VILELA, R. A. G. Teoria da Culpa: a conveniência de um modelo para perpetuar a impunidade na investigação


das causas dos AT. In: Anais: XXIII Encontro Nacional de Engenharia de Produção, Ouro Preto- MG, 2003.

VILELA, R. A. G.; IGUTI A. M.; ALMEIDA, I. M. Culpa da vítima: um modelo para

perpetuar a impunidade nos acidentes do trabalho. In: Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 570-
579, 2004.

WOODING, J.; LEVENSTEIN, C. The point of production. Work environment in advanced industrial societies.
New York: The Guilford Press, 1999. p. 12-13.

194
SEÇÃO 3
DIMENSÕES
JURÍDICO-ADMINISTRATIVAS E
SAÚDE DO TRABALHADOR
CAPÍTULO 9
ANTROPOÉTICA

Luiz Salvador
Olimpio Paulo Filho

“O homem sendo a resposta para todas as perguntas, em qualquer atividade


do conhecimento, precisa da permanente construção e zelo da deontologia, da
ética, para resguardar a vida e os valores essenciais da pessoa humana”.
Maury Rodrigues da Cruz

1 INTRODUÇÃO

No final do Século XVII, o instituto da servidão começa a ruir e os servos


paulatinamente deixam os feudos e se aglomeraram nas cidades; e são aprovei-
tados nas primeiras indústrias que se estruturam, como relata Raymundo Faoro:

“O tear individual cedeu lugar ao tear coletivo, a roca foi substituída pela
máquina de fiar – a produção perde o caráter individual, entregue a forças
coletivas, que convertem o trabalho em mercadoria, degradando-o à con-
dição de coisa, perdida a identidade do homem na índole anônima de seus
produtos”1.

A maioria da população europeia ainda vive no campo, onde produz o neces-


sário para o sustento. Países como França e Inglaterra já possuem as manufaturas:

1 FAORO. Os donos do poder. Vol. 1. p. 21.

197
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

“grandes oficinas onde diversos artesãos realizavam as tarefas manualmente, entre-


tanto subordinados ao proprietário da manufatura2”.
Nesse contexto, surge na França um clamor social. Em poucos meses extrapo-
la os limites de Paris, e se torna, na dialética do tempo, em acontecimento de longa
duração – A Revolução Francesa. Cabeças coroadas e não coroadas são decepadas
na guilhotina, invento revolucionário do Dr. Joseph-Ignace Guilhotin, que então
se imagina ser meio eficaz de dar fim à vida do condenado sem infligir dor. O Dr.
Ghilhotin enaltece sua invenção: “O mecanismo cai como um trovão, a cabeça salta
fora, o salgue jorra e a pessoa não existe mais”3
A observação detalhada veio provar ser um método extremamente doloroso e
atentatório à dignidade do ser humano, como se constata do trecho em destaque:

“Em junho de 1905, um respeitável médico francês teve licença para fa-
zer um experimento com a cabeça cortada de um prisioneiro chamado
Languille. Seu relato diz que “imediatamente após a decapitação os mo-
vimentos espasmódicos cessaram. Então chamei em voz forte e áspera:
“Languille!” e vi suas pálpebras se levantarem lentamente com um movi-
mento regular, bem distinto e normal. Os olhos de Languille se fixaram
muito certamente nos meus, com pupilas focalizando. Eu estava vendo
olhos inegavelmente vivos olhando para mim. Depois de vários segundos,
as pálpebras se fecharam. Chamei novamente, as pálpebras tornaram a se
levantar, e os olhos vivos se fixaram em mim, talvez mais penetrantes que
da primeira vez. Depois as pálpebras se fecharam de novo e não houve mais
movimentos”. 4

Com a Revolução Francesa, surge uma nova classe social antes marginalizada
– a burguesia. A base da pirâmide social permanece inalterada, e esse é o contexto
do chamado Estado Liberal de Direito, que promove “o ideal burguês do laissez-
-faire-passer quanto aos domínios econômico e social”.5

2 BRASIL. http://www.sohistoria.com.br/resumos/revolucaoindustrial.php Acesso em 06 set. 2015.


3 MASSIE. Catarina, a Grande. p 593.
4 MASSIE. Op. cit. p. 594.
5 DELGADO. Constituição da República e direitos fundamentais – a Dignidade da pessoa humana,
justiça social e Direito do Trabalho. 2ª Ed. p 18.

198
ANTROPOÉTICA

O Estado Liberal de Direito, ao amparar o ideal burguês do laissez-faire-


-passer, considera o trabalho como coisa/mercadoria. O conceito de dignidade da
pessoa humana não existe, tanto que uma lei de 1833, na Inglaterra, a Factory Act,
aplicável às indústrias têxtil e a vapor, define “a idade mínima para o trabalho (9
anos)” e veda “o trabalho noturno aos menores de 18 anos e fixava-lhes o limite de
trabalho diário em 12 e semanal de 69 horas.6
O jurista SOUTO MAIOR questiona a realidade brasileira do início do Século
XXI, e mostra que a mentalidade egoística mudou muito pouco. Para exemplifi-
car, transcreve trecho de um depoimento no Parlamento Inglês em 1816, extraído
da obra de Leo Hubermann:

“Eram aprendizes órfãos? – Todos aprendizes órfãos.


E com que idade eram admitidos? – Os que vinham de Londres tinham
ente 7 e 11 anos. Os que vinham de Liverpool tinham 8 a 15 anos.
Até que idade eram aprendizes – Até 21 anos.
Qual o horário de trabalho? – De 5 da manhã até 8 da noite.
Quinze horas diárias era um horário normal? – Sim.
Quando as fábricas paravam para reparos ou falta de algodão, tinham as
crianças, posteriormente, de trabalhar mais para recuperar o tempo para-
do? – Sim.
As crianças ficavam de pé ou sentadas para trabalhar? – De pé.
Durante todo o tempo? – Sim.
Havia cadeiras na fábrica? – Não. Encontrei com frequência crianças pelo
chão, muito depois da hora em que deveriam estar dormindo.
Havia acidentes nas máquinas com as crianças? – Muito frequentemente”.7

A mudança de mentalidade é lenta, e só em 1919, as potências vencedoras


da 1ª Grande Guerra, reunidas em Paris, deliberam a criação da Organização
Internacional do Trabalho – OIT –, que faz a I Conferência Internacional nesse
mesmo ano e adota algumas convenções, subscritas pelos estados membros que

6 BRANDÃO. Acidente do trabalho e responsabilidade civil do empregador. p. 46.


7 SOUTO MAIOR. O Direito do Trabalho como Instrumento de Justiça Social, p.119-120.

199
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

se comprometem a segui-las: jornada em 8 horas diárias e 48 horas semanais;


proteção à maternidade; luta contra o desemprego; idade mínima de 14 anos para
o trabalho na indústria; proibição do trabalho noturno de mulheres e menores de
18 anos8 .
É pouco, mas no contexto já é bastante.

2 O TRABALHO AINDA É MERCADORIA?

O Anexo (Declaração de Filadélfia) da Constituição da Organização Interna-


cional do Trabalho (OIT), item I, letra “a”, estabelece que “o trabalho não é uma
mercadoria”.
O Brasil é país membro da OIT, e, segundo o artigo 5º, § 2º, da Constituição
Federal, as normativas constantes de tratados internacionais de que o Brasil seja
parte integra o ordenamento jurídico interno:

“§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem ou-


tros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tra-
tados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Portanto, no Brasil o trabalho não é uma mercadoria. Mas é quase letra morta,
porque não há efetividade, não há compromisso ético com o ser humano. A efici-
ência pela eficiência, o lucro, sobrepuja o ser humano.
Depois de ilustrar o exemplo de exploração de menores, transcrito acima na
Introdução deste artigo, SOUTO MAIOR traz também vários exemplos de explo-
ração de menores no Brasil nas duas últimas décadas do Século XX. São aconteci-
mentos ocorridos a menos de duas décadas, portanto, atuais:

a) “na Bahia, há um grande número de crianças menores de 14 anos traba-


lhando e 84% delas ganham menos do que R$ 30,00 por mês. Das crianças
que trabalham 53% começaram quando tinham entre 6 e 8 anos de idade;

8 OIT. Disponível em <http://www.oitbrasil.org.br/content/historia>. Acesso em 08 set.2015.

200
ANTROPOÉTICA

b) ainda na Bahia, cerca de 800 crianças adolescentes trabalham, sem qual-


quer direito trabalhista, nas pedreiras de Santa Luz. Sua função é cortar
granito bruto em pequenos pedaços, para receber de R$ 1,00 a R$ 25,00 por
semana. As crianças de 7 a 11 anos recebem R$ 1,00 por semana e cortam
pelo menos 100 Kg de brita. Além disso, os trabalhadores não recebem di-
nheiro, ganham vales que são trocados por alimentos;
c) em Rondônia, as crianças de até 5 anos trabalham debaixo de água e lama
no garimpo, com jornada que chega até 12 horas.
d) em Ribeirão Preto, São Paulo, a Fundação Pró-Menor, organizada e manti-
da pelo próprio Município mantém 470 menores de 14 anos em repartições
públicas e na Zona Azul, onde elas ficam até 4 horas em pé por dia, ganhan-
do R$ 56,00 mensais, sem qualquer garantia trabalhista;
e) No Piauí, cerca de 800 crianças entre 4 e 13 anos de idade trabalham, sem
qualquer garantia trabalhista e também sem condições de segurança, em
olarias situadas na zona norte de Teresina, para receberem em média, R$
13,00 e cumprirem jornada de até 10 horas;
f) no Brasil, ao todo, são 3,8 milhões de crianças trabalhadoras, com idade
entre 5 e 14 anos. Se a idade a ser considerada for entre 5 e 17 anos, este
número sobe para 8,8 milhões de crianças e adolescentes;
g) no Estado de São Paulo, 28 usinas de álcool na região de Catanduva, foram,
recentemente, multadas pelo Ministério do Trabalho, por terem empre-
gados trabalhando sem carteira assinada, sem equipamentos de proteção
adequados e em jornadas excessivas;
h) em Minas Gerais, meninas, menores de 18 anos, trabalham em zonas ru-
rais, aplicando produto altamente tóxico contra formigas. Não possuem
carteira assinada, não utilizam equipamentos de proteção e não recebem
qualquer benefício trabalhista, além de uma mísera remuneração”.9

O referido doutrinador segue enumerando outros exemplos de igual gravi-


dade. E isso ocorre por que? Porque não se tem respeito pelo ser humano, não há
efetividade da norma que repele a equiparação do trabalho a mercadoria.

9 SOUTO MAIOR. Op. cit. p. 10-121.

201
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

A Constituição Federal estabelece, entre outros, como fundamentos do Esta-


do Democrático Brasileiro: 1) o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º,
III); 2) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa ( 1º, IV); 3) a construção
de uma sociedade justa e solidária (3º, I); 4) a erradicação da pobreza, da margina-
lização e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III); 5) a promo-
ção do bem comum (art. 3º, IV); 6) a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II);
7) a igualdade de todos perante a lei (art. 5º, I); 8) a função social da propriedade
(art. 5º, XXIII); 9) os direitos sociais (art. 6º - educação, saúde, lazer, segurança,
previdência social, proteção à maternidade). E além desses fundamentos éticos,
a Constituição Federal elenca no artigo 7º um amplo rol de direitos trabalhistas.
No entanto, em que pese os sólidos fundamentos éticos e garantia de direitos
sociais postos a nível constitucional, não há efetividade desses direitos. O traba-
lhador tem que buscar na justiça a efetivação do seu direito, e esbarra na dificul-
dade de produzir provas.

3 TRABALHO DIGNO

“A palavra trabalho é um monólito que deve ser decomposto.


Em sentido estrito, recobre as profissões que requerem energia física daque-
les que, precisamente, se denominam trabalhadores, sejam urbanos (operá-
rios da indústria, carpinteiros, entalhadores) ou rurais (operários agrícolas,
meeiros, colonos, etc.).
Em sentido mais amplo, refere-se a todas as atividades profissionais, inclusi-
ve as do escrivão ou do artista que “trabalham” em sua obra.
Ela recobre o trabalho subserviente ou dependente.
Recobre o trabalho dirigente, o trabalho autônomo, as profissões liberais.
Há o trabalho penoso, o trabalho perigoso; o trabalho fastidioso e sem inte-
resse para quem o suporta; o trabalho com o qual pessoa se identifica e pode
oferecer imensas satisfações (o do artista, do escrivão, do político, do pesqui-
sador científico, com frequência o do advogado, do engenheiro, etc.), em uma
única palavra, que pressupõe uma parte de iniciativa, isto é, de criação”.10

10 MORIN. A via para o futuro da humanidade. p. 313.

202
ANTROPOÉTICA

Num voo a um tempo distante, ao fim do período chamado Pleistoceno,


é possível constatar que o homem começa a abandonar o hábito nômade, a do-
mesticar alguns animais, a espalhar sementes, e a colher os frutos; e a partir
daí passa a conviver em sociedade, em pequenos aglomerados humanos.
Segundo informa a antropologia, quem faz a descoberta da agricultura é a
mulher, uma vez que o homem está sempre ausente, ou apascentando o gado,
ou em atividades de caça, enquanto que a mulher cuida dos filhos, planta
sementes de alimentos e colhe os frutos11, marco acontecimental que ocorre
a aproximadamente 10 ou doze mil anos, uns 5 mil anos antes da sentença
metafórica bíblica – “Comerás o teu pão com o suor do teu rosto” – que data de
aproximadamente 5.680 anos.
Embora a sentença criacionista ao impor o dever do trabalho para a sub-
sistência venha revelada num contexto místico, ela é inseparável do princípio
da dignidade do ser humano. O homem só cresce e só amplia os seus horizon-
tes pelo trabalho.
A grandeza da metáfora foi esquecida pela humanidade ao longo de mi-
lênios, e se procurou terceirizar o trabalho braçal, impondo-o pela força aos
povos conquistados e escravizados.
Em pleno Século XXI, no Brasil se convive com trabalho em condições
análogas às do instituto da escravidão, tanto que o Ministério do Trabalho fez
editar em 15/10/2004, a Portaria nº 540, criando no âmbito do Ministério do
Trabalho e Emprego – MTE –, o Cadastro de Empregadores que tenham mantido
trabalhadores em condições análogas à de escravo, e a OIT divulgou um docu-
mento sobre o trabalho escravo no Brasil:

“No Brasil, há variadas formas e práticas de trabalho escravo. O conceito


de trabalho escravo utilizado pela Organização Internacional do Trabalho
(OIT) é o seguinte: toda a forma de trabalho escravo é trabalho degradante,
mas o recíproco nem sempre é verdadeiro. O que diferencia um conceito
do outro é a liberdade. Quando falamos de trabalho escravo, estamos nos
referindo a muito mais do que o descumprimento da lei trabalhista. Esta-
mos falando de homens, mulheres e crianças que não têm garantia da sua
liberdade. Ficam presos a fazendas durante meses ou anos por três princi-

11 ELIADE. Tratado de história das Religiões. p.208.

203
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

pais razões: acreditam que têm que pagar uma dívida ilegalmente atribuída
a eles e por vezes instrumentos de trabalho, alimentação, transporte estão
distantes da via de acesso mais próxima, o que faz com que seja impossí-
vel qualquer fuga, ou são constantemente ameaçados por guardas que, no
limite, lhes tiram a vida na tentativa de uma fuga. Comum é que sejam
escravizados pela servidão por dívida, pelo isolamento geográfico e pela
ameaça às suas vidas. Isso é trabalho escravo”.12

A maioria das pessoas nas grandes cidades brasileiras já não se sensibiliza


ao se deparar com um ser humano, maltrapilho, revirando o lixo em busca de
comidas, e não se sensibiliza com notícias de trabalho em condições análogas
à de escravo, de modo que o que deveria ser exceção se torna corriqueiro,
como, por exemplo, o fato noticiado no site UOL, em 01/05/2014: “Confecção
que atendia grifes famosas usava trabalho escravo em SP, diz MPF”.
A notícia diz que o Ministério Público Federal teria denunciado “à Justiça
Federal de Americana (a 127 km de São Paulo) quatro pessoas acusadas de manter
em condições análogas a de escravos 51 trabalhadores, 45 deles bolivianos”. Esses
trabalhadores/escravos produziam “roupas para grifes como a espanhola Zara,
dentre outras, como Ecko, Gregory, Billabong, Brooksfield, Cobra d’Água e Tyrol”,
e eram mantidos em alojamentos no próprio local de trabalho, em jornadas de até
14 horas por dia, recebendo valores equivalentes a R$ 0,12 a R$ 0,20 por peça. Nos
três primeiros meses nada recebiam; o dinheiro era retido para cobrir os custos da
viagem, e eles eram mantidos em regime de cárcere privado no local de trabalho,
com os portões fechados com cadeado, em péssimas condições de higiene, de ali-
mentação e de acomodação no alojamento.13
No III Congresso Internacional de Ciências do Trabalho, Meio Ambiente,
Direito e Saúde, promovido pela Associação Latino Americana de Advogados
Laboralistas (ALAL), pelo Ministério Público do Trabalho – MPT – e pela FUN-
DACENTRO-SP, realizado no Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP,
em São Paulo, de 24 a 28 de agosto de 2015, o Auditor fiscal do Trabalho, Dr.
Luís Alexandre de Faria, informou aos congressistas que numa diligência feita

12 BRASIL. < http://www.oit.org.br/node/315>. Acesso em 06 set. 2015.


13 BRASIL. <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/05/01/por-trabalho-escra-
vo-mpf-denuncia-4-pessoas-de-confeccao-da-zara.htm>. Acesso em 07 set. 2015.

204
ANTROPOÉTICA

recentemente numa indústria do vestuário em São Paulo foram encontrados 1100


trabalhadores em condições análogas às de escravos, e entre eles havia uma traba-
lhadora boliviana que não recebia salário, porque tinha que pagar sua dívida de
deslocamento da Bolívia para o Brasil. Ela tinha um bebê, que era acomodado em
uma caixa entre duas máquinas. O auditor informou que que o Sindicato Nacio-
nal dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT) tem estatísticas que mostram que
82% dos trabalhadores encontrados em condições de escravidão nos últimos 20
anos são trabalhadores terceirizados.
O Ministério Público do Trabalho tem desempenhado um trabalho intenso
no combate ao trabalho escravo, mas, devido à extensão territorial do Brasil, há
ainda muito a ser feito.
Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional o PL 432/2013, que
“Dispõe sobre a expropriação das propriedades rurais e urbanas onde se localizem a
exploração de trabalho escravo e dá outras providências”, atualmente em mãos do
Relator designado, Senador José Medeiros. O PL define o que é trabalho escravo, e
determina apreensão de bens ou de valores obtidos com a exploração de trabalho
escravo; possibilita que os imóveis rurais e urbanos em que se constate trabalho
escravo sejam vendidos e os valores sejam destinados à reforma agrária ou à habi-
tação popular, além da responsabilização penal dos responsáveis. No Senado, o PL
já está sendo alvo de propostas flexibilizadoras do conceito de trabalho escravo.
O trabalho é necessário, a Constituição Federal acolhe o princípio da digni-
dade da pessoa humana, reconhece os valores sociais do trabalho e destaca os
fundamentos da construção de uma sociedade justa e solidária, mas a menta-
lidade cultural estruturada faz desses princípios e fundamentos letra morta. É
o velho que não quer morrer e não deixa o novo nascer. Cada vez mais o lucro
fácil torna mais distante a efetivação da metáfora construtiva de “resguardar a
vida e os valores essenciais da pessoa humana”, e é preciso que a velha mentalidade
se biodegrade, morra e sirva de adubo para que a nova mentalidade desabroche.
Os princípios já estão firmados, e compete a nós provermos a terra já fecundada
dos adubos necessários ao florescimento do novo, dignificador do ser humano.

205
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

4 DOENÇAS OCUPACIONAIS

O médico Italiano Bernardo Ramazzini, considerado o pai da medicina do


trabalho, no final do século XVII, observou, descreveu e publicou em livro os
estranhos sintomas de algumas patologias dolorosas de que se queixavam alguns
escritores e escrivães:

“No final do século XVII, Bernardo Ramazzini, o pai da medicina, já des-


crevia no seu livro Articulum Diatriba (1700) a doença do escrivão. Nessa
época, as doenças eram nomeadas conforme a atividade profissional. No
período de 1830 até 1880, ressalta Dembe (...) os jornais médicos publica-
ram mais de 40 estudos de casos de enfermidades relacionadas ao trabalho
com nomes como paralisia de marteleiros, câimbras de leiteiros, câimbras
de compositores, câimbras de leiloeiros, câimbras de pianistas, câimbras
de violinistas, espasmos de costureiras, câimbras dos alfaiates (DEMBE,
1936:35). Desde o início os sintomas apresentados pelos trabalhadores ma-
nuais eram semelhantes, caracterizados por dores em membros superiores
e incapacidade para realizar serviços manuais”. 14

A rigor, as patologias ocupacionais já eram conhecidas a aproximadamente


450/500 a.C.:

“Quando falamos em História da Medicina do Trabalho o primeiro nome


que nos vem à memória é Bernardino Ramazzini, cientista renomado, o
qual ficou conhecido como Pai da Medicina do Trabalho. Isto se deu ao
fato de que foi o primeiro a relacionar doenças com ocupações profissio-
nais de seus pacientes. Introduziu a pergunta “qual a sua profissão”, em
suas anamneses. Em meados de 1700 em sua obra “Morbis Articulum Dia-
triba”, descreveu doenças várias, consideradas sistêmicas fazendo relação
das mesmas com as atividades laborativas de seus pacientes. Porém, nossa
história não tem seu início neste período. Muito antes da nossa era (460 e
375 a.C.) Hipócrates referiu em sua obra “Água, Ares e Lugares” casos de
intoxicação por chumbo (satúrnica). Já em nossa era, Plinius, no ano 23

14 FARACO. Perícias em DORT. 2ª Ed. p.67.

206
ANTROPOÉTICA

d.C., observou que escravos de minas de enxofre trabalhavam utilizando


como proteção respiratória a poeiras ali existentes máscaras confecciona-
das com bexigas de carneiro. Calcula-se que esta seja a primeira referên-
cia a equipamentos de proteção individual descrito na história. Outros se
seguiram, como George Bauer (1556) e Celsius (1576), os quais também
descreveram patologias de caráter ocupacional”.15

Na década de 1980, os bancos brasileiros dão início ao processo de informati-


zação de suas agências e departamentos administrativos. Iniciado o processo, em
pouco tempo os trabalhadores bancários desenvolvem uma patologia que passa
a ser conhecida como LER (Lesão por Esforços Repetitivos) – DORT (Distúrbios
Osteomusculares Relacionados ao Trabalho).
Os bancos, financeiras e empresas de processamento de dados fazem signifi-
cativos investimentos no processo de informatização, sem qualquer preocupação
quanto ao aspecto ergonômico do ambiente de trabalho (móveis e equipamentos),
e em consequência uma grande quantidade de trabalhadores passa a desenvolver
lesões osteomusculares, entre as quais a tenossinovite (Movimentação limitada de
uma articulação; inchaço articular na área afetada; dor e sensibilidade ao redor da
junta, especialmente na mão, pulso; dor ao movimentar uma articulação; verme-
lhidão no comprimento do tendão; febre, inchaço e vermelhidão podem indicar
uma infecção, especialmente se uma punção ou corte tiver ocasionado esses sin-
tomas16), a sinovite (Inchaço; aumento da temperatura local, vermelhidão e dor
na articulação; dificuldade em movimentar a junta afetada17), e a síndrome do
túnel do carpo (dormência ou formigamento do polegar e dos dois ou três dedos
seguintes, de uma ou de ambas as mãos; dormência ou formigamento da palma
da mão; dor que se estende até o cotovelo; dor no punho ou na mão, de um ou dos
dois lados; problemas com movimentos finos dos dedos (coordenação) em uma
ou ambas as mãos; desgaste do músculo sob o polegar (em casos avançados ou
de longa duração); movimento de pinça débil ou dificuldade para carregar bolsas

15 BUONO. Perícias judiciais na Medicina do Trabalho. 3ª edição. p. 219-220.


16 BRASIL. <http://www.minhavida.com.br/saude/temas/tenossinovite>. Acesso em 08 set. 2015.
17 BRASIL. <http://www.abc.med.br/p/sinais.-sintomas-e-doencas/335000/sinovite+quais+as+caus
as+e+os+sintomas+como+sao+o+diagnostico+e+o+tratamento.htm>. Acesso em 08 set. 2015.

207
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

(uma queixa comum); fraqueza em uma ou ambas as mãos)18, patologias que cau-
sam muita dor e frequentemente são causas de incapacidade laboral temporária
ou permanente. O estranho é que o indivíduo aparentemente é saudável: a dor é só
dele. É uma dor latejante, com ferroadas intensas, e não há sinais externos.
As doenças e as lesões osteomusculares não surgem de um dia para o outro,
surgem despercebidas e vão minando o organismo ao longo dos anos, e o tra-
balhador tenta esconder “o fato dos outros, também da família e dos vizinhos”. O
trabalhador mais consciente, aquele que procura auxílio médico logo no início, é
tido como preguiçoso19
A Dra. Maeno traz algumas luzes:

Os meses e anos vão passando, os músculos, tendões e articulações conti-


nuam sendo exigidos para sustentar o corpo e executar movimentos repe-
titivos, vão se desgastando e começam a provocar fadiga e dor, que inicial-
mente nem são percebidos pela pessoa. Depois, são percebidos durante a
execução de movimentos, passando a invadir noites e fins de semana, dan-
do a sensação de que os períodos de repouso são insuficientes. Geralmente,
quando se tornam mais fortes, passam a incomodar e a causar sofrimento,
dificultando a realização de atividades de rotina. Muitas pessoas relatam
que perceberam pela primeira vez que havia algum problema quando pas-
saram a ter dificuldades para abrir uma garrafa, ou para lavar alguns pra-
tos ou mesmo para pegar algum objeto em uma altura superior aos ombros.
(....)
Os principais sintomas são dor, formigamento, dormência, sensação de
peso, fadiga, fraqueza, queimação, repuxamento, choque. Esses sintomas
geralmente aparecem insidiosamente, isto é, vão se instalando vagarosa-
mente. Podem estar presentes em diferentes graus de intensidade e podem
estar presentes ao mesmo tempo.
(...)
As pessoas com LER relatam que as maiores dificuldades ocorrem para
realizar algumas atividades de rotina, tais como limpar azulejo, abrir latas,

18 BRASIL. <http://www.minhavida.com.br/saude/temas/sindrome-do-tunel-do-carpo>. Acesso


em 08 set. 2015.
19 DEJOURS. A Loucura do Trabalho, 5ª edição ampliada, 9ª reimpressão. P. 29 -30.

208
ANTROPOÉTICA

polir panelas, torcer, estender e passar roupas, segurar o telefone, escolher


feijão, abotoar roupas, lavar cabelos longos, segurar bebês, dirigir, carregar
compras, trocar lâmpada, fazer pequenos consertos caseiros.20

Os sintomas são semelhantes aos relatados por Ramazzini:

“Conheci um homem notório de profissão que ainda vive, o qual dedicou


toda a sua vida a escrever, lucrando bastante com isso; primeiro começou a
sentir grande lassidão em todo o braço e não pôde melhorar com remédio
algum e, finalmente contraiu uma completa paralisia no braço direito. A
fim de reparar o dano, tentou escrever com a mão esquerda, porém a cabo
de algum tempo, esta também apresentou a mesma doença. Em verdade
martiriza os operários o poderoso e tenaz esforço de ânimo, necessitando
para o seu trabalho grande concentração de todo o cérebro, contenção dos
nervos e fibras.... Bernardino Ramazzini”. 21

O mobiliário deve ser adequado quanto às exigências de ergonomia (do grego


ergon = trabalho; nomos = regras, leis naturais), de modo a prevenir possíveis le-
sões osteomusculares:

A Norma Regulamentadora 17, do Ministério do Trabalho, entre outras coi-


sas, ela estabelece que:
• o mobiliário deve proporcionar conforto ao (à) trabalhador (a) para
executar suas atividades;
• para atividades que exijam que o (a) trabalhador (a) fique em pé, de-
vem ser previstos assentos para descansos durante as pausas;
• devem ser incluídas pausas para descanso nas atividades que exijam
sobrecarga muscular estática ou dinâmica do pescoço, ombros, dorso
e membros superiores e inferiores, a partir de análise ergonômica;
• quando do retorno ao trabalho, após qualquer tipo de afastamento
do trabalho, por mais de 15 dias, a exigência de produção deverá per-

20 MAENO. “Lesões por Esforços Repetitivos – LER”, p. 12-13. Disponível em http://www.coshne-


twork.org/sites/default/files/caderno8%20ler.pdf. Acesso em 08 set. 2015.
21 BUONO. Op. cit. p. 217.

209
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

mitir um retorno gradativo aos níveis de produção vigentes na época


anterior ao afastamento;
• nas atividades de processamento de dados, o empregador não pode
promover sistemas de avaliação dos trabalhadores envolvendo remu-
neração e outras vantagens; o número máximo de toques reais exigi-
dos não pode ultrapassar 8.000 por hora trabalhada; o tempo efetivo
de trabalho de entrada de dados não deve exceder o limite máximo
de 5 horas e nas atividades de entrada de dados deve haver pausas de
10 minutos a cada 50 minutos trabalhados, não deduzidos da jornada
de trabalho22.

As lesões por efeitos repetitivos são corriqueiras também em atividades como


as de cabeleireiros (barbearias e salões de beleza), corte de costura, estaleiros, fu-
nilarias, indústrias alimentícias e de conservas de carnes (abate de animais, lim-
peza, corte, seleção de refugos, etc.), montadoras de veículos (construção de car-
rocerias, chassi, montagem de carrocerias, acabamento, polimento, etc.), indústria
de calçados (corte, costura, pregação, colocação de solas, limpeza, tingimento, po-
limento, etc.), indústria cerâmica, indústria de cimentos, construção civil, indús-
tria moveleira, restaurantes (na cozinha), enfim em toda a cadeia produtiva onde
haja necessidade de movimentos repetitivos.
Normalmente, as empresas não emitem a CAT (Comunicação de Acidente de
Trabalho) e o trabalhador tem que se afastar para tratamento de saúde como se
estivesse com uma doença comum (Auxilio Doença B31), e não de origem laboral
(Auxílio Doença Acidentário – B91). Os medicamentos indicados mais corriquei-
ros são corticoides, que apresentam graves efeitos colaterais: pressão alta; glico-
se aumentada; crescimento de pelos no rosto; problemas de coração; infecções;
candidíase oral; osteoporose; problemas de estômago; a pele fica mais fina que o
normal; queda de cabelo; alterações no ciclo menstrual; glaucoma; infertilidade;
obesidade23. A justificativa é a de que o uso controlado seria benéfico, e aí a exce-
ção se torna regra, e não se avalia a extensão do risco-benefício, o que apressa a
perda da capacidade laboral e torna difícil uma vida saudável.

22 MAENO. Artigo citado.


23 BRASIL: <http://www.tuasaude.com/efeitos-colaterais-dos-corticoides>. Acesso em 08/09/2015.

210
ANTROPOÉTICA

Resta ao trabalhador lesado a opção de buscar uma reparação pecuniária na


justiça. A maioria das ações indenizatórias em andamento ou já liquidadas na
justiça do trabalho ou na justiça cível se refere a doenças laborais por LER/DORT:
tendinite de flexores e extensores dos dedos, bursite de ombro, tenossinovite de
DeQuervain, tenossinovite do braquio-radial, síndrome do túnel do carpo, ten-
dinite de supraespinhoso, tendinite de biciptal, epicondilite, lombalgia, cervical-
gia, hérnias. Mas há também doenças laborais graves resultantes de contamina-
ção química ou mineral (indústria química, petrolífera, mineradoras, indústria
do cimento, de telhas de amianto, etc.), consistente em dermatoses ocupacionais,
afecções pulmonares (doenças obstrutivas das vias aéreas, doenças granulomato-
sas, pneumonite química, pneumoconiose, asbestose, formação de placas pleurais
hialinas, mesotelioma maligno, carcinoma brônquico, etc).
Para contextualizar, é importante o relato de Ramazzini, ainda atual:

“Tampouco se devem desprezar os distúrbios mórbidos que atacam os


operários nas pedreiras, estatuários, britadores e artesões desse gênero.
Enquanto retiram o mármore da rocha embaixo da terra, cortam-no e o
talham a escalpelo para esculpirem estátuas e outras obras, saltam áspe-
ras lascas angulosas e cortantes que, penetrando nas vias respiratórias, os
obrigam a tossir; contraem afecções asmáticas e ficam tísicos. Atinge-os
um vapor metálico despendido do mármore, do tufo e outras pedras com
manifesto prejuízo do nariz e do cérebro; assim os trabalhadores que la-
vram pedra perto da Lídia, aspirando continuamente seu pesado odor, sen-
tem dores de cabeça e de estômago, e são levados a vomitar; nos cadáveres
dissecados desses artífices, encontram-se os pulmões cheios de pequenos
cálculos”.24

Desde então, pouca coisa mudou.


O trabalhador adoecido, ao se sentir alijado do mercado de trabalho e limita-
do nas relações sociais, com frequência é acometido de transtornos mentais rela-
cionados ao trabalho, a chamada depressão.
Os transtornos mentais podem ser desencadeados pela submissão ao trabalho
penoso, por excesso de jornada e por rigor excessivo imposto pelos prepostos,

24 BUONO. Op. cit. p. 13.

211
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

ou por assédio moral no ambiente de trabalho. Os diagnósticos mais comuns de


trabalhadores submetidos a essas condições de trabalho são: Transtornos de per-
sonalidade e do comportamento devido a doenças, a lesão e a disfunção cerebral
– CID F 07; Episódios depressivos - F 32; Reações ao stress grave e transtornos
de adaptação – CID F43; Reação aguda ao Stress – CID F43.0; Estado de stress
pós-traumático – F 43.1; Transtornos de adaptação, F. 43.2; Outros transtornos
neuróticos – F 48; Transtornos do sono devido a fadigas emocionais – F 51.25
O Ministério da Saúde editou a Portaria 1339/1999-MS, contendo uma lista
indicativa, não exaustiva, de prováveis doenças ocupacionais, e editou também o
Manual de Doenças Relacionas ao Trabalho26, uma ferramenta indispensável aos
advogados, juízes e peritos, para possibilitar o reconhecimento ou não do nexo
causal ou concausal.
Infelizmente, as lesões ocorrem com frequência porque as normas de saúde
e segurança não são cumpridas. A CLT contém um capítulo inteiro (Capítulo V
– Título II – Das Normas Gerais de Tutela do Trabalho, artigos 154 a 201, Pará-
grafo único) destinado à segurança e medicina do trabalho, e parece letra morta.
O Ministério do Trabalho divulgou 35 Normas Regulamentadoras de observân-
cia obrigatória, e não se consegue observância, porque a lógica perversa do homo
economicus faz o informal se sobrepor ao formal, e o trabalhador é tido como
máquina, mercadoria que pode ser descartada por apresentar defeito (doença/aci-
dente), e substituído por outro (trabalhador mais sadio). É mais vantajoso arcar
com uma eventual condenação na justiça do trabalho do que fazer investimento
em segurança.

5 PERÍCIAS

Os princípios éticos, fundamentais da medicina, estão elencados no Capítu-


lo I do Código de Ética Médica (Resolução CFM Nº 1931/2009); são princípios

25 Idem, p. 332-337.
26 MINISTÉRIO DA SAÚDE DO BRASIL. Doenças Relacionadas ao Trabalho – Manual de Proce-
dimentos para os Serviços de Saúde. EDTORA MS: Brasília, 2001.

212
ANTROPOÉTICA

cogentes, voltados à dignidade do ser humano. A simples transcrição de alguns é


suficiente para enaltecer a classe dos médicos:

I - A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da cole-


tividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.
II - O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefí-
cio da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade
profissional.
.....
IV - Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da
Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão.
V - Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e
usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente.
VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre
em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofri-
mento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir
e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.
.....
VIII - O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum
pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer
restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção
de seu trabalho.
IX - A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exer-
cida como comércio.
X - O trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com objeti-
vos de lucro, finalidade política ou religiosa.
....
XII - O médico empenhar-se-á pela melhor adequação do trabalho ao ser
humano, pela eliminação e pelo controle dos riscos à saúde inerentes às
atividades laborais.
XXIII - Quando envolvido na produção de conhecimento científico, o mé-
dico agirá com isenção e independência, visando ao maior benefício para
os pacientes e a sociedade.

213
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Em que pese a relevância, na maioria das perícias médicas, seja no INSS ou em


juízo, esses princípios têm sido descartados, ou flexibilizados para usar o vocábulo
da moda. Tornou-se corriqueiro o perito descartar o nexo causal ou concausal de
patologias osteomusculares ao simples argumento de tratar-se de doença degene-
rativa, porque o artigo 20, § 1º, letra “a” da Lei 8213/1991 exclui a doença degene-
rativa da origem laboral; às vezes, são laudos já formatados, onde se altera apenas
o nome do trabalhador e o CID 10 da patologia e se lança a conclusão costumeira:
NÃO HÁ NEXO CAUSAL. A PATOLOGIA É DE ORIGEM DENENERATIVA,
e se descarta inclusive as recomendações dos Protocolos de Complexidade Dife-
renciada LER/DORT do Ministério da Saúde, que recomenda o reconhecimento
do nexo concausal quando a atividade do trabalhador exigir movimentos repetiti-
vos, má postura, carregamento de peso, ou se o mobiliário for inadequado, o meio
ambiente impróprio etc., condições que certamente agem como disparador das
patologias, que podem ou não vir a se manifestar, mas que nos casos em exame
pelo perito se manifestaram em face das condições desajustadas de trabalho.
É certo que o organismo envelhece e alguns músculos e tendões tendem a so-
frer efeito degenerativo. É raro ocorrer em indivíduos jovens. Quando ocorre com
indivíduos jovens, é preciso estudar melhor sua história de vida, e nas perícias não
ocorre nada disso. É sempre a palavra mágica atentatória aos direitos dos lesiona-
dos: causa degenerativa.
O médico não pode desconhecer que não existe causa única, que as causas das
patologias são sempre multicausais e o trabalho pode agir como concausa.
Se o trabalhador na admissão faz exame médico admissional e se encontra
em boa condição de saúde, e ao longo da prestação laboral desenvolve alguma
patologia que pode estar relacionada com o trabalho, isso é suficiente para re-
conhecer o nexo concausal, desde que não se prove nenhuma outra excludente.
É ônus do empregador a prova do fato excludente. Basta fazer o cruzamento do
CNAE (Classificação Nacional de Atividades Econômicas) da empresa empre-
gadora com o CID da patologia. Se a atividade da empresa for considerada de
risco para o desenvolvimento da patologia, mesmo que haja certa predisposição
degenerativa, o perito pode e deve aplicar o Nexo Técnico Previdenciário (Lei nº
11.430/2006 e anexos do Decreto nº 3048 e Instrução Normativa INSS/PRES Nº
31, DE 10/09/2008), e reconhecer a doença como de causa laboral por cruzamento
do CNAE da empresa com CID da doença, como autorizam os artigos 3º, I, II e
IV, e 4º da IN INSS/PRES nº 31/2008:

214
ANTROPOÉTICA

Art. 3º O nexo técnico previdenciário poderá ser de natureza causal ou não,


havendo três espécies:
I - nexo técnico profissional ou do trabalho, fundamentado nas associações
entre patologias e exposições constantes das listas A e B do anexo II do
Decreto nº 3.048, de 1999;
II - nexo técnico por doença equiparada a acidente de trabalho ou nexo téc-
nico individual, decorrente de acidentes de trabalho típicos ou de trajeto,
bem como de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele
relacionado diretamente, nos termos do § 2º do art. 20 da Lei nº 8.213/91.
.III - nexo técnico epidemiológico previdenciário, aplicável quando houver
significância estatística da associação entre o código da Classificação In-
ternacional de Doenças-CID, e o da Classificação Nacional de Atividade
Econômica-CNAE, na parte inserida pelo Decreto nº 6.042/07, na lista B
do anexo II do Decreto nº 3.048, de 1999;
Art. 4º Os agravos associados aos agentes etiológicos ou fatores de risco de
natureza profissional e do trabalho das listas A e B do anexo II do Decreto
nº 3.048/99; presentes nas atividades econômicas dos empregadores, cujo
segurado tenha sido exposto, ainda que parcial e indiretamente, serão con-
siderados doenças profissionais ou do trabalho, nos termos dos incisos I e
II, art. 20 da Lei nº 8.213/91.

A preocupação do médico-perito deve ser com a saúde do periciado e com a


patologia que o atormenta:

“É com a patogenicidade da ocupação do homem que a medicina do tra-


balho se preocupa. O meio ambiente está se tornando cada vez mais evi-
denciado como fator desencadeante ou determinante de agravos à saúde
do homem. Na maioria das vezes, é o ambiente de trabalho o responsável
pelos principais efeitos na saúde do homem. Cerca de 1/3 da vida de um
homem é gasto no trabalho. Bastam essas razões para que nenhum médico,
qualquer que seja a sua especialidade venha negligenciar a profissão de seu
paciente”.27

27 BUONO. Op. cit. p. 11.

215
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Mas os médicos peritos têm resistência em seguir esses princípios e aplicar o


novo, como, por exemplo, o Nexo Técnico, e continuam com o ultrapassado en-
tendimento de “causa degenerativa”. Com essa postura, prestam um mau serviço,
ferem o Código de Ética, e boa parte dos juízes, por comodismo, acolhem esses
laudos superficiais, inconsistentes, que atentam contra a dignidade do trabalha-
dor, e o impede, de certo modo, de obedecer ao comando cogente que emana da
sentença criacionista: “Comerás o teu pão com o suor do teu rosto”.

6. CONCLUSÃO

A antropoética envolve o indivíduo e o seu fazer responsável na Terra, portan-


to é a uma ética da humanidade. E neste estágio de disjunção, de individualismo
exacerbado, de acúmulo de riqueza em detrimento do bem-estar da coletividade,
é necessário pensar em antropoética, na vida, no homem, nos valores essenciais
da pessoa humana. Toda produção humana deve voltar-se em benefício do ser hu-
mano. A mesma lógica que leva a indústria farmacêutica a lançar medicamentos
novos no mercado por preços às vezes vinte ou trinta vezes superiores aos simila-
res já existentes sem qualquer comprovação de superioridade, leva a indústria ex-
trativa de minerais, a indústria metalúrgica, a indústria química, a da construção
civil, as montadoras, etc., a manter equipamentos sucateados, perigosos, desde
que a lucratividade se mantenha alta. A produção tem que ser sempre destinada
ao homem, ao bem-estar da humanidade, e não ao enriquecimento de uns poucos.
É justo que o investimento financeiro receba os bônus da iniciativa, mas não se
pode esquecer jamais de que é preciso “resguardar a vida e os valores essenciais da
pessoa humana”.
É difícil? Sim, é difícil. Um dia muda, porque nada é permanente, tudo muda.
Cada um no seu ofício faz a sua parte, porque

“O homem que vive a consciência do bem, da dignidade, do caráter, não usa


de meios ilícitos, vis, para vencer as dificuldades do cotidiano”.28

28 CRUZ. Maury Rodrigues da. Amor – A linguagem silenciosa da vida. p. 18

216
ANTROPOÉTICA

Quem viver assim, de conformidade com a sabedoria racional desse enuncia-


do lógico, moral e ético, estará fazendo antropoética.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Cláudio. Acidente do trabalho e responsabilidade civil do empregador. 4ª edição. LTr, São Paulo:
2015.

BRASIL. MAENO, Maria. “Lesões por Esforços Repetitivos – LER: Disponível em <http://www.coshnetwork.
org/sites/default/files/caderno8%20ler.pdf>.

BRASIL. Revolução Industrial:

<http://www.sohistoria.com.br/resumos/revolucaoindustrial.php>

BRASIL: OIT: <http://www.oitbrasil.org.br/content/historia>.

BRASIL: Trabalho escravo :< http://www.oit.org.br/node/315>.

BRASIL. Trabalho escravo: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/05/01/por-trabalho-


-escravo-mpf-denuncia-4-pessoas-de-confeccao-da-zara.htm>.

BRASI: Tenossinovite: <http://www.minhavida.com.br/saude/temas/tenossinovite>.

BRASIL. Sinovite: <http://www.abc.med.br/p/sinais.-sintomas-e-doencas/335000/sinovite+quais+as+causas+


e+os+sintomas+como+sao+o+diagnostico+e+o+tratamento.htm>.

BRASIL: Síndrome do túnel do carpo: <http://www.minhavida.com.br/saude/temas/sindrome-do-tunel-do-


-carpo>.

BRASIL. Corticoides: <http://www.tuasaude.com/efeitos-colaterais-dos-corticoides>.

BUONO NETO, Antonio; BUONO, Eliaine Arbex. Perícias judiciais na Medicina do Trabalho. 3ª edição. LTr:
São Paulo, 2008.

CRUZ, Maury Rodrigues da. Amor – A linguagem silenciosa da vida. SBEE: Curitiba, 1997.

DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho, 5ª edição ampliada, 9ª reimpressão. Cortez: São Paulo, 2005

DELGADO, Maurício Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. Constituição da República e direitos fundamen-
tais – a Dignidade da pessoa humana, Justiça social e Direito do Trabalho. 2ª Edição. São Paulo: LTR, 2013.

ELIADE, Mircea. Tratado de história das Religiões. Tradução de Fernando Tomaz e Natália Nunes. Martins
Fontes: São Paulo, 2008.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder. PubliFolha: São Paulo, 2000.

217
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

FARACO, Sérgio Roberto; Perícias em DORT. 2ª Edição. LTr: São Paulo, 2010.

MASSIE, Robert K. Catarina, a Grande. Tradução de Ângela Lobo Andrade. Rocco: Rio de Janeiro, 2011.

MORIN, Edgar. A via para o futuro da humanidade. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi
Bosco. Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 2014.

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O Direito do Trabalho como Instrumento de Justiça Social. LTr: São Paulo, 2000.

MINISTÉRIO DA SAÚDE DO BRASIL. Doenças Relacionadas ao Trabalho – Manual de Procedimentos para


os Serviços de Saúde. EIDTORA MS: Brasília, 2001.

218
CAPÍTULO 10
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E
MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES
NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO
E DA CONSTRUÇÃO CIVIL 1

Grijalbo Fernandes Coutinho

1. INTRODUÇÃO

Os órgãos e entidades governamentais (IBGE, MTE, Previdência Social, entre


outros), ao elaborarem cadastros, estudos e outros documentos públicos, quando
não ignoram simplesmente a terceirização, sem destinar nenhum campo a esse
modo de utilização do trabalho humano, olham para a referida estratégia de ges-
tão empresarial sob foco extremamente limitado, como se a terceirização fosse
apenas aquela prática correspondente ao recrutamento de mão de obra para ati-
vidades internas empresariais. Em sentido um pouco mais amplo, passam a com-
preender como terceirização o conteúdo das declarações espontâneas prestadas
pelas empresas como “trabalho subcontratado” em documentos como a CAT e
nos cadastros do Cnae e do Cnis. Cada empresa se declara no CNAE da forma que
lhe aprouver, sem nenhum tipo de controle da veracidade da atividade econômica
efetivamente desenvolvida.

1 Parte de texto atualizado e bem reduzido de “ Terceirização: Máquina de Moer Gente Trabalhado-
ra - A inexorável relação entre a nova marchandage e degradação laboral, as mortes e mutilações
no trabalho”, in: Coutinho, Grijalbo Fernandes, São Paulo:LTR, 2015.

219
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Com efeito, realizar pesquisa com o objetivo de aferir quantitativamente os


níveis de acidentalidade relacionada ao trabalho terceirizado, em todo o Brasil,
implica a formatação da base de dados capaz de desconstruir os pressupostos fa-
lhos das informações que hoje alimentam parte dos cadastros governamentais.
Há necessidade, sobretudo, de tempo longo destinado a coletivo de especialistas
interessados em desvelar evento razoavelmente escamoteado, de forma proposital
ou não.
Por outro lado, setorialmente – como são os casos dos eletricitários, petrolei-
ros e trabalhadores da construção civil –, há destacadas pesquisas quantitativas e
qualitativa (principalmente nos estudos de caso) sobre a relação entre terceiriza-
ção e acidentalidade no trabalho.
É mais seguro e confiável examinar o tema da presente discussão em seto-
res econômicos, porque os elementos da pesquisa podem ser obtidos em fontes
primárias mais específicas ou conferidos diretamente por outros meios assegu-
radores de elevado rigor metodológico e conceitual, bem distante do ambiente de
transtornos gerados com base em informações oficiais fornecidas aleatoriamente
sem atentar para o verdadeiro sentido e a natureza da terceirização, muito menos
para o seu contributo (ou não) para a acidentalidade do trabalho.
É o que se fará a seguir.

2. TERCEIRIZAÇÃO NO SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO:


MATADOURO DE TRABALHADORES TERCEIRIZADOS – MORTES,
DECEPAMENTO DE MEMBROS DO CORPO HUMANO E OUTRAS
MUTILAÇÕES RELACIONADAS AO TRABALHO

É possível afirmar que o setor elétrico brasileiro possui o melhor banco de


dados decorrente do cruzamento de informações sobre terceirização com as de
acidentalidade do trabalho.2 Antes da terceirização se tornar essa forma avassala-
dora e precarizante da contratação de trabalhadores, a Fundação Coge – à época
mantida pelo sistema elétrico predominantemente estatal, sob a denominação de
“Comitê de Gestão Empresarial Coge” – já coletava e sistematizava dados sobre a

2 Fruto da riqueza de pesquisa realizada por profissionais integrantes da Fundação Coge dedicados
à produção de estatísticas anuais acerca dos acidentes de trabalho no referido segmento.

220
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

acidentalidade de empregados próprios das estatais do sistema elétrico. Com a pri-


vatização e o alargamento da terceirização, a entidade passou a examinar também
em suas pesquisas os trabalhadores das empresas subcontratadas.3
Mantendo estreito vínculo de parceria com o sistema Eletrobras, de natureza es-
tatal, a Fundação Coge, por intermédio de técnicos qualificados integrantes do seu
quadro de pessoal, muito deles com décadas de serviços prestados na área, continua
atuando com extrema isenção no levantamento de dados relativos aos acidentes de
trabalho entre trabalhadores efetivos e terceirizados do sistema elétrico.
Sequer foi possível encontrar qualquer estudo ou pesquisa cuidando da aci-
dentalidade que atinge os eletricitários brasileiros sem mencionar os “Relatórios
de Estatísticas de Acidentes no Setor Elétrico”, produzidos anualmente pela Fun-
dação Coge, frente aos irrepreensíveis levantamentos contidos nos documentos
disponibilizados na página daquela entidade na rede mundial de computadores.
Quanto ao setor elétrico, não será diferente. Todos os dados apresentados têm
como fonte primária os relatórios anuais de estatísticas de acidentes de trabalho
elaborados pela Fundação Coge.
A Tabela 1 mostra a composição da força de trabalho no setor elétrico brasi-
leiro, no período de 2003 a 2008.

3 “Constituída em 05 de novembro de 1998 na cidade do Rio de Janeiro, onde tem sua sede e foro,
por 26 empresas do setor de energia elétrica brasileiro, a Fundação COGE veio suceder o Comitê
de Gestão Empresarial – COGE.A integração e o intercâmbio técnico que constituíam a ênfase
dos projetos desenvolvidos de forma coletiva pelos profissionais das empresas participantes do
Comitê foram substituídos pela nova filosofia de atuação da Fundação COGE, uma instituição de
caráter técnico-científico voltada para a pesquisa, ensino, estudo e aperfeiçoamento dos métodos,
processos e rotinas do Setor Elétrico do Brasil. Atualmente, a Fundação COGE reúne em seu
quadro de parceiras 67 empresas públicas e privadas do setor de energia elétrica, responsáveis, em
seu conjunto, por mais de 90% de toda a eletricidade gerada, transmitida e distribuída no Brasil.
Relação das 67 Empresas Parceiras da Fundação Coge” (FUNDANÇÃO COGE, [online]).

221
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Tabela 1 – Composição da força de trabalho do setor elétrico brasileiro (2003-2008)


Ano Trabalhadores Trabalhadores Força de trabalho
próprios terceirizados
2003 97.399 39.649 137.048
2004 96.379 76.972 173.551
2005 97.991 89.238 187.229
2006 101.105 110.871 211.976
2007 103.672 112.068 215.735
2008 101.451 126.333 227.784

Fonte: DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICAS E ESTUDOS SOCIOECO-


NÔMICOS. Terceirização e morte no Trabalho: um olhar sobre o setor elétrico brasileiro.
Estudos e Pesquisas, n. 50, mar. 2010. Disponível em: <www.dieese.org.br>. Acesso em 26
jul. 2014.

A reestruturação produtiva capitalista se fez sentir fortemente no setor elétri-


co brasileiro, no tocante à substituição dos “empregados centrais” por trabalha-
dores terceirizados, segundo se extrai dos quantitativos expostos na Tabela 17. No
espaço de cinco anos, entre 2003 e 2008, o crescimento dos trabalhadores próprios
foi extremamente reduzido (de 97.399 para 101.451), ao contrário da contratação
de trabalhadores terceirizados, que cresceu três vezes mais em relação ao seu
quantitativo de 2003 (de 39.649 para 126.333).
Na Tabela 2, comparam-se os acidentes fatais envolvendo os trabalhadores
próprios e os terceirizados, nos anos de 2002 a 2011.

222
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

Tabela 2 – Acidentes fatais envolvendo contratados e terceirizados do


setor elétrico brasileiro (2002-2011)

Acidentes Acidentes
Média de Média de Total da força Total de
Ano fatais de fatais de
contratados subcontratados de trabalho acidente fatal
contratados subcontratados
2002 96.741 23 – 55 – 78
2003 97.399 14 39.649 66 137.048 80
2004 96.591 9 76.972 52 173.563 61
2005 97.991 18 89.283 57 187.274 75
2006 101.105 19 110.871 74 211.976 93
2007 103.672 12 112.068 59 215.740 71
2008 101.451 15 126.333 60 227.784 75
2009 102.766 4 123.704 63 226.470 67
2010 104.857 7 127.584 72 232.441 79
2011 108.125 18 139.043 61 247.168 79

Fonte: SILVA. Luís Geraldo da. Os acidentes fatais entre os trabalhadores contratados e sub-
contratados do setor elétrico brasileiro. Estudos do Trabalho, ano VI, n. 12, 2013. Disponível
em: <www.estudosdotrabalho.org>. Acesso em: 26 jul. 2014.

Não sendo tendência circunstancial a relação apresentada pela Tabela 1, o


tempo de onze anos (2002 a 2011) demonstra que a força de trabalho própria do
sistema elétrico mudou muito pouco, ao contrário do vertiginoso crescimento do
quadro de trabalhadores terceirizados (acima de três vezes mais), passando a su-
perar inclusive a força de trabalho principal, em mais de 20%, segundo expõe a
Tabela 2. Outro dado expressivo desta tabela, objeto mais específico da presente
investigação, revela a grande desproporção de acidentes fatais de trabalho entre
os trabalhadores próprios e os terceirizados. Com forças de trabalho próximas
de uma equivalência (20% a mais em favor das subcontratadas), os terceirizados
compõem a parte extremamente vulnerável aos acidentes de trabalho fatais.
Nos relatórios de 2006 e 2008, a Fundação Coge relaciona diretamente o au-
mento da acidentalidade fatal com crescimento da terceirização do setor elétrico,
senão vejamos trechos dos respectivos anuários transcritos nos estudos do Dieese.
No relatório de 2006:

Relembramos, por exemplo, que no ano de 1994 o setor elétrico contava


com 183.380 próprios e registrou 35 acidentes fatais, menos da metade do
valor de 2006 […].

223
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

E no relatório de 2008:

Os serviços terceirizados têm influência marcante nas taxas de acidenta-


lidades no Setor Elétrico Brasileiro. especialmente na taxa de gravidade,
tendo sido registrados 60 acidentes com conseqüências fatais em 2008. Esse
valor, apesar de mostrar uma estabilização dos acidentes em relação ao ano
anterior (59), trata de vida humana que sabemos não tem preço, continu-
ando muito alto se comparado às 15 ocorrências de acidentados de conse-
qüência fatal com empregados próprios [...].

Cumpre observar, especialmente, o processo de terceirização das atividades


no setor e naquelas de maior risco, iniciado em 1995.4

Recentemente a Fundação Coge divulgou os dados do relatório da estatística


de acidentes de trabalho do ano de 2012, no setor elétrico brasileiro, conforme se
constata do Gráfico 1.

Fonte: FUNDAÇÃO COMITÊ DE GESTÃO EMPRESARIAL. Relatório de estatísticas de acidentes no setor


elétrico brasileiro. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <http://www.funcoge.org.br>. Acesso em: 5 ago. 2014.

Notas: 2012 - Total da força de trabalho própria : 108.133


2012 - Total da força de trabalho terceirizada: 146.314

4 DEPARTAMENTO..., 2010.

224
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

Em 2012, para 9 acidentes fatais entre os trabalhadores próprios morreram 58


trabalhadores terceirizados em decorrência do desempenho de atividades laborais
no setor elétrico brasileiro, ainda que a quantidade da força de trabalho em cada
um dos segmentos não guarde proporção tão desigual (35% a mais de pessoal no
âmbito das subcontratadas). É o que apresenta o Gráfico 1, elaborado pela própria
Fundação Coge. Os números da força de trabalho de 2012 antes informados cons-
tam do Relatório da Fundação Coge de 2012.
É elevadíssimo o índice de acidentes fatais entre os trabalhadores terceiriza-
dos do setor elétrico brasileiro, sobretudo quando comparado com os números
absolutos bem menores – mas não menos graves porque perder vidas humanas em
razão do trabalho é sempre socialmente trágico.
Com a finalidade de apontar a realidade estatística dos acidentes fatais en-
tre trabalhadores próprios e terceirizados do setor elétrico, pretende-se realizar
levantamento capaz de levar em consideração a proporcionalidade da força de
trabalho nos dois segmentos (contratada e subcontratada). Para tanto, foram ela-
boradas e formatadas tabelas para analisar a evolução das mortes decorrentes de
acidentes dos trabalhadores próprios e terceirizados.
Sinteticamente, pretende-se evidenciar a seguinte relação: para cada vida
perdida entre os trabalhadores próprios quantas foram as vidas de trabalhado-
res terceirizados roubadas no trabalho, ou seja, para cada acidente fatal entre os
trabalhadores efetivos das concessionárias, geradoras, transmissoras e distribui-
doras, quantos terceirizados são mortos no exercício de suas funções laborativas?
Procede-se à resposta do questionamento com números absolutos de acidentes
fatais e com a proporcionalidade da força de trabalho em cada segmento (própria
e terceirizada) (Tabela 3), a fim de encontrar o trágico fator da morte da gente
trabalhadora do setor elétrico brasileiro.

225
Tabela 3 – Sistema elétrico brasileiro: trabalhadores próprios, terceirizados e acidentes fatais (2003-2012)

Relação entre força de Relação entre acidentes


Trab. próprios Trab. terceirizados
trabalho fatais
Total da Total de
Ano força de acidentes Relação#
Acidentes Acidentes trabalho† fatais‡ § §§ & &&
Npróprios* Nterceirizados** Próprios Terceirizados Próprios Terceirizados
fatais fatais

2003 97.399 14 36.649 66 134.048 80 0,73 0,27 0,18 0,83 4,71


2004 96.591 9 76.972 52 173.563 61 0,56 0,44 0,15 0,85 5,78
2005 97.991 18 89.283 57 187.274 75 0,52 0,48 0,24 0,76 3,17
2006 101.105 19 110.871 74 211.976 93 0,48 0,52 0,20 0,80 3,89
2007 103.672 12 112.068 59 215.740 71 0,48 0,52 0,17 0,83 4,92
2008 101.451 12 112.068 59 213.519 71 0,48 0,52 0,17 0,83 4,92

226
2009 102.766 4 123.704 63 226.470 67 0,45 0,55 0,06 0,94 15,75
2010 104.857 7 127.584 72 232.441 79 0,45 0,55 0,09 0,91 10,29
2011 108.825 18 139.043 61 247.868 79 0,44 0,56 0,23 0,77 3,39
2012 108.133 9 146.314 58 254.447 67 0,42 0,58 0,13 0,87 6,44
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Fonte: FUNDAÇÃO..., 2012.

*
Npróprios = número de trabalhadores próprios. **Nterceirizados = número de trabalhadores terceirizados. †Total da força de trabalho = Npróprios + Nterceirizados. ‡Total de acidentes
fatais = (acidentes fatais com trabalhadores próprios) + (acidentes fatais com trabalhadores terceirizados). §Npróprios/(Total de força de trabalho). §§Nterceirizados/(Total de
força de trabalho). &(Acidentes fatais com trabalhadores próprios)/(Total de acidentes fatais). &&(Acidentes fatais com trabalhadores terceirizados)/(Total de acidentes
fatais). #(Acidentes fatais com trabalhadores terceirizados)/(Acidentes fatais com trabalhadores próprios).
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

Os dados da Tabela 4, contendo os quantitativos da força de trabalho, dos


acidentes fatais e da relação, em número de vezes, das mortes mais frequentes
entre os terceirizados, dissipam quaisquer dúvidas a respeito da presença do ma-
tadouro de trabalhadores instalado com o modelo de subcontratação de pessoal
no setor elétrico brasileiro. A Fundação Coge havia registrado, nos relatórios de
2006 e 2008, que a terceirização tinha contribuído decisivamente para o aumento
expressivo do número global de vítimas fatais nesse segmento econômico. Por seu
turno, a Tabela 19 demonstra que os trabalhadores terceirizados vão velozmente
para o “matadouro elétrico” em lotes de massa humana conduzidos por empresas
geradoras, transmissoras e distribuidoras de energia elétrica.
Na prática, a vida do trabalhador terceirizado do setor elétrico vale muito
pouco. Além das graves deformidades físicas geradas em inúmeros terceirizados
sobreviventes dos acidentes de trabalho – cujos pedaços humanos (dedos, mãos,
braços e pernas) são arrancados como reflexo direto do rebaixamento extremado
das condições de trabalho –,5 eles são vítimas de acidentes fatais em uma propor-
ção extremamente elevada, no confronto com o mesmo tipo de evento entre os
trabalhadores das empresas principais.
Para cada morte de trabalhador próprio o número de acidentes fatais entre
os terceirizados é exponencialmente mais elevado. Seja qual for o ângulo, a vida
do empregado terceirizado do setor elétrico brasileiro vale muito menos do que a
do seu colega de profissão integrante do quadro de pessoal da empresa geradora,
transmissora ou distribuidora de energia elétrica. Uma vida de trabalhador pró-
prio equivale a quantas vidas de trabalhadores terceirizados? A resposta está na
coluna Tabela 20.

5 Na página eletrônica do Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores na Indústria Energética de


Minas Gerais (Sindieletro/MG), há fotos chocantes de vítimas de mutilações físicas ocasionadas
pela prestação laboral terceirizada para a CEMIG, pedaços humanos dilacerados pela ânsia do
lucro e da mais-valia empresariais. Disponível em: <http://www.sindieletromg.org.br/plus/modu-
los/fotos/miniaturas.php?id=28>. Acesso em 5 set. 2014.

227
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Tabela 4 – Relação de acidentes fatais (trabalhador próprio/ trabalhador terceiro) no setor elétrico

Ano Próprios Terceiros


2003 1 4,71
2004 1 5,78
2005 1 3,17
2006 1 3,89
2007 1 4,92
2008 1 4,92
2009 1 15,75
2010 1 10,29
2011 1 3,39
2012 1 6,44

Fonte: Elaboração própria, com base em FUNDAÇÃO..., 2012.

Em determinado ano, para cada trabalhador próprio morto seis são as víti-
mas fatais entre trabalhadores terceirizados do setor elétrico brasileiro. Em outros
anos, a perversa relação oscila bastante, indo de número superior a três para quase
alcançar a quantia de dezesseis. Somente nos últimos dez anos de apuração, de
2003 a 2012, a média anual corresponde a 6,33.
A alta taxa de mortalidade dos trabalhadores terceirizados demonstra, sem
subterfúgios, quão perigoso é o ambiente de trabalho por eles frequentado, cuja
saída diária de casa para garantir a subsistência familiar resulta no enfrentamento
de uma “guerra civil”, deixando pelo caminho sequelados, mutilados, mortos e
muitos traumas familiares.
Em outros termos, o número de acidente fatais com trabalhador terceiriza-
do em empresa do setor elétrico – tomando como referência a média anual do
período de uma década (2003 a 2012) – é 5,33 maior do que o com trabalhador
próprio. Cada vez que um trabalhador próprio morre no exercício de suas fun-
ções laborativas, pela média anual da década apurada, morrem 6,33 trabalhadores
terceirizados.
No âmbito da Cemig, uma das maiores empresas do setor elétrico brasileiro
e também com os mais altos índices de acidentalidade no trabalho, os terceiriza-
dos, afora as profundas mutilações consistentes em braços e pernas arrancados,

228
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

possuem taxas de acidentes fatais ainda mais impactantes, conforme se conclui


pelos resultados da Tabela 5.

Tabela 5 – Número de acidentes trabalhistas na Cemig versus terceirizadas

Ano Cemig Terceirizadas


2011 0 6
2010 0 7
2009 1 5
2008 1 8
2007 1 8
2006 2 10
2005 4 8
2004 0 5
2003 0 6

Fonte: BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho (3. região). 4. Vara do Trabalho (Belo Horizonte). Ação Civil
Pública n. 147300-43.2003.5.03.0004. [em tramitação].

De 2003 a 2011, 63 trabalhadores terceirizados da Cemig perderam a vida


no exercício de suas funções laborativas. Dos empregados próprios da Cemig, no
mesmo lapso temporal, foram 9 as vítimas fatais.
E a Fundação Coge – desde os anos 1980 com a sua autoridade inquestionável
e insuspeita no levantamento de dados sobre acidentalidades no setor – assinala,
destaque-se novamente, que o acréscimo das mortes e outros graves acidentes de
trabalho no setor elétrico brasileiro possui relação direta com o volumoso incre-
mento da terceirização promovida desde os anos 1990.
Poder-se-ia alegar que as atividades do setor elétrico envolvem naturalmente
risco mais elevado. Entretanto essa premissa não se sustenta para justificar o ani-
quilamento de vidas – ou mutilamento de tantas outras – do trabalhador terceiri-
zado, em nome das margens de lucro. Segundo a Fundação Coge, o aumento dos
acidentes fatais e das mutilações em todo o sistema está diretamente associado ao
incremento da terceirização nos anos 1990. O panorama internacional, mesmo
com a lógica capitalista de produção de bens e valores, não possui números tão
elevados de acidentes fatais entre os trabalhadores do setor elétrico, como se veri-
ficar da Tabela 6.

229
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Tabela 6 – Acidentes de trabalho fatais no setor de energia elétrica por países

País 2005 2006 2007 2008 TOTAL


Brasil 75 93 71 75 314
EUA 30 53 34 37 154
Alemanha 5 15 3 2 25
França 4 1 2 2 9

Fonte: SILVA, 2013.

Os EUA, na média anual, sequer alcançam metade dos acidentes de trabalho


fatais das ocorrências de igual natureza verificadas no Brasil, no setor de energia
elétrica. Além disso, a população estadunidense é muito mais numerosa do que
a brasileira – 350 milhões de estadunidenses contra 200 milhões de brasileiros,
em seus últimos censos –, o que implica a suposição de que a força de trabalho
humana no setor elétrico também seja maior. Os números da Alemanha, país com
menos da metade da população brasileira (86 milhões), são 12 vezes menores que
os do Brasil. A França, com pouco mais de um terço da população brasileira (70
milhões), tem uma relação ainda mais desigual, qual seja, 34 vezes menos aciden-
tes de trabalho fatais no setor elétrico.
No Brasil e nos países retratados na Tabela 6, em quaisquer segmentos eco-
nômicos, todos os parâmetros são numericamente inferiores aos níveis de mortes
e mutilações ocorridas entre trabalhadores do setor elétrico brasileiro, quando se
compara o desenvolvimento do mesmo tipo de tragédia com os trabalhadores das
empresas principais.
As elevadas taxas de mortalidade dos trabalhadores terceirizados do setor
elétrico brasileiro apontam as precárias condições de trabalho a eles oferecidas,
agravadas pelos riscos das atividades propositalmente não debelados, sob pena de
inviabilidade financeira da terceirização como um dos elementos estruturantes
do capitalismo global manipulatório.
Nos acidentes típicos de trabalho, embora a relação tenha diferença menor,
também os terceirizados são as vítimas mais frequentes, conforme se extrai das
Tabela 7, relativa aos anos de 2009 a 2012.

230
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

Em todos os anos pesquisados, de 2009 a 2012, percebe-se, pelos números da


Tabela 8 , a maior incidência de acidentes típicos de trabalho entre os trabalhado-
res terceirizados do setor elétrico brasileiro.
Levantando em conta os quantitativos da força de trabalho contratada e sub-
contratada e dos acidentes típicos de trabalho, a relação se mostra novamente des-
favorável aos trabalhadores mais frágeis, do ponto de vista político e econômico.

231
Tabela 7 – Sistema elétrico brasileiro: trabalhadores próprios, terceirizados e acidentes típicos (2009-2012)
Relação entre força de Relação entre acidentes
Trab. próprios Trab. terceirizados
trabalho típicos
Total da Total de
Ano força de acidentes Relação#
Acidentes Acidentes trabalho† típicos‡
Npróprios* Nterceirizados** Próprios§ Terceirizados§§ Próprios& Terceirizados&&
típicos típicos

2009 102.766 781 123.704 1.361 226.470 2.142 0,45 0,55 0,36 0,64 1,74
2010 104.857 741 123.704 1.283 228.561 2.024 0,46 0,54 0,37 0,63 1,73
2011 108.005 753 137.527 1.479 245.532 2.232 0,44 0,56 0,34 0,66 1,96
2012 108.133 696 137.525 1.245 245.658 1.941 0,44 0,56 0,36 0,64 1,79

Fonte: DEPARTAMENTO.., 2011; FUNDAÇÃO..., 2012.

232
*
Npróprios = número de trabalhadores próprios. **Nterceirizados = número de trabalhadores terceirizados. †Total da força de trabalho = Npróprios + Nterceirizados. ‡Total de acidentes
típicos = (acidentes típicos com trabalhadores próprios) + (acidentes típicos com trabalhadores terceirizados). §Npróprios/(Total de força de trabalho). §§Nterceirizados/(Total
de força de trabalho). &(Acidentes típicos com trabalhadores próprios)/(Total de acidentes típicos). &&(Acidentes típicos com trabalhadores terceirizados)/(Total de
acidentes típicos). #(Acidentes típicos com trabalhadores terceirizados)/(Acidentes típicos com trabalhadores próprios).
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

Resta descrever, finalmente, a proporção da desigualdade, na verdade, da


maior exploração dos terceirizados. Em síntese, quantos acidentes com trabalha-
dores terceirizados equivalem a um acidente com trabalhador próprio? A resposta
está na Tabela 24.

Tabela 8 – Relação de acidentes típicos (trabalhador próprio/ trabalhador terceiro) no setor


elétrico

Ano Próprios Terceiros


2009 1 1,74
2010 1 1,73
2011 1 1,96
2012 1 1,79

Fonte: Elaboração própria, com base em FUNDAÇÃO..., 2012.

Embora a relação última esteja longe de se aproximar do quadro constatado


nos acidentes fatais, não é possível relegar o fato de que os acidentes típicos com
trabalhadores terceirizados do setor elétrico correspondem a quase duas vezes o
número desses acidentes com trabalhadores próprios da empresa principal.
Segundo relatório de estatísticas de acidentes com trabalhadores próprios do
setor elétrico brasileiro, no período de 1999 a 2012, em cada universo de 100 mil
trabalhadores, tal força de trabalho sofre quase duas vezes mais acidentes fatais
típicos em comparação com a infortunística presente na força de trabalho geral
desenvolvida no Brasil nos demais setores econômicos.6 Caso fossem considera-
dos os terceirizados, a maior incidência de acidentes no setor elétrico seria muito
potencializada. É o que diz a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Depar-
tamento de Segurança e Saúde no Trabalho (DSST), do MTE, por intermédio da
Nota Técnica n. 02/2012/DSST/SIT:

Considerando apenas as mortes nas empresas contratadas do setor elétrico


em 2011, a taxa de mortalidade é igual a 44,35 óbitos por 100 mil trabalha-
dores. Isto significa que a taxa de mortalidade entre as empresas contrata-

6 FUNDAÇÃO..., 2012.

233
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

das do setor elétrico é quase seis vezes a taxa de mortalidade do Brasil, que
foi de 7,7 mortes por 100 mil trabalhadores em 2010.

Parece ser objeto de reduzida controvérsia o fato de que a precaridade absoluta


das condições de trabalho é o elemento mais geral determinante da epidemia da
acidentalidade de trabalho entre os empregados terceirizados no Brasil.
A lógica do regime da acumulação flexível capitalista guiada pelo espirito
toyotista é a força motriz do estabelecimento de uma verdadeira morbidez no tra-
balho, longe de ser o adoecimento e a mortes laborais apenas eventos meramente
acidentais. Os terceirizados sentem os seus efeitos com maior intensidade porque
eles foram os escolhidos para dar sentido ao mundo da extrema precariedade la-
boral e da superexploração da força de trabalho. A subcontratação, em tal seara,
é pressuposto inarredável na atualidade do modelo de produção dependente da
superacumulação de riquezas materiais concentradas nas mãos de poucos grupos
econômicos monopolistas e oligopolistas.
E como se implementa a precariedade das condições de trabalho dos tercei-
rizados do setor elétrico brasileiro, responsável pelos números alarmantes de aci-
dentes fatais e típicos?
Enquanto alguns dos seus elementos são inerentes ao regime global de acu-
mulação flexível de espírito toyotista, outros simplesmente agregam a esses as
especificidades da natureza do capitalismo brasileiro, marcado pela superexplo-
ração da força de trabalho, dada a sua origem colonial-escravista dependente das
nações de capitalismo avançado.
Do contexto internacional vinculado ao modelo flexível de produção, diver-
sos fatores provocam mortes, mutilações e adoecimentos laborais, entre outros:
polivalência do trabalhador, que reduz a sua capacidade de dominar ou conhecer
melhor as partes executadas por ele dentro da cadeia produtiva; alta rotativida-
de de mão de obra; jornadas extenuantes de trabalho nos períodos de pico para
atender às necessidades dos públicos de maior renda (sistema kanban e just-in-
-time); intensividade da jornada, que leva ao esgotamento físico e mental; fixação
de metas e pressão patronal para o seu cumprimento; captura da subjetividade do
trabalhador, que passa a não ter vida social ou política fora do domínio da em-
pregadora; tensão das relações de trabalho sufocada por mecanismos intimidató-
rios; isolamento e invisibilidade sociais dos terceirizados; tantas outras condições
de trabalho degradantes analisadas no desenvolvimento deste trabalho (salários

234
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

irrisórios, discriminação salarial e política, além da submissão ao trabalho em


condições análogas às de escravo).
Na realidade brasileira, soma-se a tudo que foi relatado no último parágrafo
um fator relevante: défice histórico de civilização nas relações entre o capital e o
trabalho bem como de justiça social em todas as dimensões na vida da parte mais
numérica de sua sociedade bastante estratificada pela concentração desmesurada
de renda por parte da burguesia nacional e internacional – industrial, financeira
e rural.
Desdobrando parte do flagelo presente no ambiente laboral dos trabalhadores
do setor elétrico brasileiro, o MPT-MG tem instaurado procedimentos adminis-
trativos e ajuizado ações civis públicas contra a Cemig, com a finalidade precípua
de preservar a saúde e a integridade física daqueles empregados, por intermédio
de providências destinadas a cessar a terceirização na atividade-fim da empresa
de energia elétrica mineira.
Em 2003, na exposição da peça processual de ingresso, a Procuradoria Re-
gional do Trabalho da 3ª Região, nos autos da ação Ação Civil Pública (ACP) n.
147300-43.2003.5.03.0004, informa ter chegado à conclusão – com base nos laudos
da engenharia e da medicina e em diversas inspeções realizadas in loco por audi-
tores-fiscais do MTE, algumas delas contando inclusive com a presença do MPT
– de que as mortes e outros acidentes ocorridos frequentemente na Cemig entre
os trabalhadores terceirizados estavam relacionadas diretamente com as precá-
rias condições de trabalho, aliadas ao desprezo patronal ao conjunto de normas
de proteção e segurança no trabalho. Julgando o pleito ministerial, a 4ª Vara do
Trabalho de Belo Horizonte proferiu sentença, confirmada em todas as instâncias
judiciais, para reconhecer a veracidades das alegações do MPT, enumerando as
causas nucleares dos graves acidentes de trabalho que têm atingido os trabalhado-
res da Cemig. Entre outros motivos, declarou a Justiça do Trabalho que os eventos
estavam acontecendo, na sua compreensão, por inteira responsabilidade da Cemig
e de suas subcontratadas, conforme trechos do acórdão a seguir destacado:

Finalmente, quanto aos acidentes de trabalho, a r. sentença teve o cuida-


do de descrever alguns deles. Demonstrou, através dos documentos que se
encontram, nos autos, que eles ocorreram, por descumprimento, por parte
da ré, das empreiteiras e das prestadoras de serviços, de Normas Regula-
mentadoras, por falta de treinamento específico dos empregados, por má

235
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

condição de funcionamento de veículo (freios), por culpa delas, por falta


de capacitação e de qualificação profissional dos empregados, por falta de
experiência e de conhecimento de eletricidade, por falta de reciclagens pe-
riódicas, por falta de fornecimento de EPI e EPC.
Registre-se que um empregado laborava, sozinho, na zona rural, e aciden-
tou-se. Sabe-se que o trabalho, em condições de risco acentuado, à luz da
NR-22, deverá ser executado, por duas pessoas qualificadas.
Igualmente, os Fiscais do Ministério do Trabalho verificaram a inexistên-
cia de CIPA e o funcionamento irregular das existentes. Constataram a
falta de implementação do PCMAT e de PCMSO. Portanto, estas e aquela
deixaram de observar o conteúdo da NR-4, subitem 4.1 e da NR-5, subitens
5.2, 5.16, alíneas ‘a’ e ‘b’, 5.32, 5.38 e 5.40, alíneas ‘c’ e ‘e’. Averiguaram,
ainda, que as contratadas não realizam exames admissional e periódicos
de seus empregados, e de que havia ausência de primeiros socorros. [...] Por
fim, percebe-se que, embora descumpra a lei (terceirizando, ilicitamente, e
descuidando da segurança e da saúde dos empregados), a ré deseja que tudo
continue, sem mudança, sob pena de desemprego, de falência das presta-
doras de serviços e das empreiteiras e de tarifas mais elevadas, a cargo do
consumidor!
Como se vê, ela coloca, para proveito seu, o acessório sobre o principal.
Valoriza, ilogicamente, aquele, em detrimento deste, data venia. Em suma,
não importa que a lei continue sendo violada.
Nega-se provimento.

O descumprimento da decisão judicial antes transcrita e outras nuances pro-


cessuais levaram o MPT, passados dez anos do ajuizamento da ACP n. 147300-
43.2003.5.03.0004, a ingressar com nova ação civil pública contra a Cemig, adu-
zindo, em síntese, o seguinte:

Reiteradas fiscalizações realizadas pela Superintendência Regional do Tra-


balho em Minas Gerais na CEMIG e suas subsidiárias atestam que os aci-
dentes são motivados pela terceirização ilegal, somada à negligência das to-
madoras de serviços na escolha e fiscalização das terceirizadas, bem como
também pela incúria e ineficiência das empresas contratadas, incapazes de
dar cumprimento a normas básicas trabalhistas, especialmente relaciona-

236
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

das a saúde e segurança do trabalho (DOC´S. 04, 05 e 06)[...]. Há ainda


ofícios da Justiça do Trabalho com peças extraídas de processos judiciais
onde atestadas condições degradantes de labor, com trabalhadores atuando
sem registro, sem equipamentos de proteção, utilizando alojamentos pre-
cários, totalmente incompatíveis com as exigências mínimas previstas nas
Normas Técnicas.
Ações regressivas movidas pela Advocacia Geral da União contra as Rés
igualmente atestam a conduta ilícita das demandadas, que vem sendo res-
ponsabilizadas pelo custo previdenciário acarretado pelos acidentes graves
e fatais ocorridos (DOC. 09). Entretanto, a despeito dos fatos acima rela-
tados a terceirização persiste e avança a passos largos, com a contratação
de mais e mais empresas com os variados objetivos sociais, selecionadas
apenas tendo como norte o menor preço, totalmente despreparadas para
o exercício das atividades altamente perigosas que envolvem a manuten-
ção da rede elétrica. Com efeito, resultado de ação fiscal realizada após
o aforamento da ação civil pública em 2003, demonstrou notável redução
do quadro de empregados na CEMIG: de 18.594 (dezoito mil, quinhentos
e noventa e quatro) trabalhadores em 1993 para 11.693 (onze mil, seiscen-
tos e noventa e três) trabalhadores em 2002. Os trabalhadores terceiriza-
dos não são preparados, capacitados e/ou qualificados para as tarefas, e,
como agravante, não raro, são exercidas sem a supervisão adequada e sem
a adoção de prevenções mínimas necessárias previstas na regulamentação
vigente. O resultado desta equação: acidentes de trabalho demonstrando
inadmissível reincidência dos mesmos fatores de causa, atestando a ine-
xistência e/ou total ineficiência dos mecanismos adotados até agora para
tentar impedir novas ocorrências. As Rés demonstram total descaso com
os acidentes ocorridos, pois além de não adotar medidas de prevenção para
evitar novas ocorrências, desamparam as vítimas, os trabalhadores e suas
famílias, não reconhecendo sua responsabilidade sequer na esfera judicial,
como se demonstram as peças extraídas das ações individuais e negativa
das empresas em promover e quitar as indenizações devidas (DOC´S 08
e 14). Os trabalhadores vítimas da terceirização ilegal ainda suportam a
precarização em termos salariais e de benefícios, muito distantes dos aufe-
ridos pelos empregados próprios das Rés, que, no entanto, exercem funções
semelhantes ou idênticas e atuam lado a lado com os terceirizados.

237
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

A realidade vivenciada há mais de duas décadas na Cemig é o retrato das


relações de trabalho terceirizadas na totalidade do setor elétrico brasileiro, tendo
a fiscalização do MTE, o MTP e a Justiça do Trabalho, em todos os graus de ju-
risdição, constatado que aspectos como falta de preparo para exercer as atividades
laborais e de fiscalização adequada na sua execução, alta rotatividade da mão de
obra, multifuncionalidade do trabalhador, jornadas extraordinárias, ausência de
isonomia, discriminação salarial e social, precariedade absoluta das condições de
trabalho, informalidade e ausência de observância das normas de proteção à saú-
de do empregado terceirizado são os fatores primordiais das mortes e mutilações
provocadas pela política precarizante laboral da Cemig.
Sem que se elimine a própria a terceirização, não há política de relações hu-
manas capaz de desviar o rumo do matadouro construído pelo sistema elétrico
brasileiro para os seus trabalhadores terceirizados. A subcontratação somente se
justifica, em primeiro lugar, pelo maior lucro gerado com a exploração da força
de trabalho. Fornecer condições de trabalho dignas, ou pelo menos iguais àquelas
oferecidas aos trabalhadores próprios, significa, na prática, matar a essência do
instituto. A terceirização existe para aumentar a margem de lucros das empresas
principais, de modo que a isonomia, em sua integralidade, tornaria desinteres-
sante a sua adoção, ao menos do prisma econômico. Em outros termos, qualquer
terceirização sempre redundará em algum tipo de precariedade nas condições de
trabalho em relação ao pessoal contratado diretamente pelos donos dos negócios
mais lucrativos. Precariedade laboral é sinônimo de mortes, mutilações, acidentes
e adoecimentos laborais.
Há outro dado relevante a ser pontuado no caso da terceirização brasileira. No-
ta-se, pelos números elevados da subcontratação no setor elétrico brasileiro (mais da
metade da força de trabalho), bem como pelos relatos anuais da Fundação Coge e
das ações civis públicas ajuizadas pelo MPT, que está se terceirizando maciçamente
o risco. É para as atividades de risco que os trabalhadores terceirizados, especial-
mente para os setores específicos de maior perigo, têm sido designados para atuar, o
que também se verifica no âmbito da Petrobras e da construção civil.
Com efeito, envolto pela mais absoluta precariedade laboral, o terceirizado
brasileiro atua majoritariamente nas atividades de risco cercadas do máximo de
perigo. Basta comparar os números da terceirização geral no Brasil, ou em diver-
sos setores econômicos, com os quantitativos de terceirizados no setor elétrico
brasileiro, na Petrobras e na área de segurança e vigilância patrimoniais. No setor

238
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

elétrico, o número de terceirizados supera em 30% o de empregados próprios (vide


tabelas desta seção). Na Petrobras, como será apresentado na próxima subseção, a
quantidade de terceirizados vai além de três vezes o número de empregados efeti-
vos. Na segurança e vigilância, quase 90% da mão de obra utilizada pelos patrões
é terceirizada, percentual incrementado pelo histórico da legislação específica que
regula a matéria desde o início dos anos 1980.
Eletricidade, inflamáveis, extração de petróleo e utilização de armas de fogo,
na divisão do trabalho privado brasileiro, estão destinadas, como atividades emi-
nentemente de risco, a serem precipuamente operadas por trabalhadores tercei-
rizados, cujas condições de trabalho precisam necessariamente da presença do
requisito da precariedade laboral, sob pena da perda da utilização do instituto,
uma vez que sua razão é fundada na maior lucratividade das empresas principais.
A combustão está armada: atividades de risco e precariedade laboral andando
juntas produzem mortes, mutilações, acidentes e adoecimentos laborais em lar-
ga escala relacionados ao trabalho terceirizado, passando a preservação de vidas
obreiras a ser apenas um detalhe de menor importância no espectro do sistema
produtivo. Tanto é assim que essas vidas desparecem ou são terrivelmente mutila-
das na mesma proporção do aumento da terceirização.

3. TERCEIRIZAÇÃO NA PETROBRAS: OS TRABALHADORES


TERCEIRIZADOS COMO VÍTIMAS FATAIS PREFERENCIAIS DAS
ATIVIDADES DESENVOLVIDAS NA MAIOR EMPRESA BRASILEIRA
E A TERCEIRIZAÇÃO DO RISCO EM JOGO

Muito do que se disse quanto à terceirização no setor elétrico brasileiro aplica-


-se também ao processo de subcontratação de trabalhadores pela Petrobras, espe-
cialmente na questão alusiva à política de transferência gradativa das atividades
de maior risco para os terceirizados, em condições de trabalho totalmente precá-
rias, quando não simplesmente degradantes. Essa coincidência parcial das táticas
empresariais, nas esferas privadas e estatais, implica o desenvolvimento desta sub-
seção de forma bem sintética, porque parte substancial da sua explicação como
fenômeno da economia globalizada encontra-se nas seções e subseções anteriores,
especialmente a de número 6.5, que analisou a terceirização no setor elétrico.

239
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Entretanto os números da terceirização na Petrobras são bem distintos da-


queles analisados do setor elétrico brasileiro, além das particularidades próprias
de cada atividade econômica apresentada, quando se empreenderam esforços para
compreender setorialmente a dinâmica do processo produtivo. Por isso mesmo,
dar-se-á atenção especial ao impacto dos números da terceirização e dos acidentes
de trabalho fatais entre os trabalhadores da Petrobras, efetivos e terceirizados.
Nas Tabelas 09 e 10 constam, respectivamente, os números de trabalhadores
efetivos e terceirizados da Petrobras (1995-2013) e os quantitativos de acidentes
fatais nesse período.

240
Tabela 9 – Evolução do efetivo e terceirizado da Petrobras (1995-2013)
Petrobras
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Contr.*
Efetivo 46.226 43.468 41.173 38.225 36.391 34.320 32.809 34.520 36.363 39.091 40.541 47.955 50.207 55.199 55.802 57.498 58.950 61.878 62.692
Terceirizado 29.000 35.000 51.000 57.000 – – – – – – – – 189.914 238.600 274.661 271.049 304.034 322.720 320.152
Sistema
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Petrobras
Efetivo – – – – – 38.908 38.483 46.726 48.798 52.037 53.933 62.266 68.931 74.240 76.919 80.492 81.918 85.065 86.108
Terceirizado – – – – – 49.217 59.128 121.000 123.266 146.826 155.267 176.810 211.566 260.474 295.260 291.606 328.133 360.372 360.180
Relação
terceir. vs. – – – – – 1,26 1,54 2,59 2,53 2,82 2,88 2,84 3,07 3,51 3,84 3,62 4,01 4,24 4,18
efet.*

Fonte: RUOSO JR., 2014.

241
*
Petrobras Contr. = Petrobras Controladora.
Relação terceir. vs. efet. = Relação terceirizados versus efetivos.
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL
Tabela 10 – Sistema Petrobras: trabalhadores efetivos, terceirizados e acidentes fatais (1995-2013)
Relação entre força de Relação entre acidentes
Trab. próprios Trab. terceirizados Total da Total de trabalho fatais
Ano força de acidentes Relação#
Acidentes Acidentes † ‡ § §§ & &&
Npróprios* Nterceirizados** trabalho fatais Próprios Terceirizados Próprios Terceirizados
fatais fatais
1995 46.226 3 29.000 15 75.226 18 0,61 0,39 0,17 0,83 5,00
1996 43.468 5 35.000 11 78.468 16 0,55 0,45 0,31 0,69 2,20
1997 41.173 3 51.000 13 92.173 16 0,45 0,55 0,19 0,81 4,33
1998 38.225 1 57.000 22 95.225 23 0,40 0,60 0,04 0,96 22,00
1999 36.391 1 50.000 27 86.391 28 0,42 0,58 0,04 0,96 27,00
2000 38.908 4 49.217 14 88.125 18 0,44 0,56 0,22 0,78 3,50
2001 38.483 12 59.128 18 97.611 30 0,39 0,61 0,40 0,60 1,50
2002 46.723 3 121.000 18 167.723 21 0,28 0,72 0,14 0,86 6,00
2003 48.798 3 123.266 16 172.064 19 0,28 0,72 0,16 0,84 5,33
2004 52.037 3 146.826 15 198.863 18 0,26 0,74 0,17 0,83 5,00

242
2005 53.933 0 155.267 18 209.200 18 0,26 0,74 0,00 1,00 18,00
2006 62.266 1 176.810 8 239.076 9 0,26 0,74 0,11 0,89 8,00
2007 68.391 1 211.566 15 279.957 16 0,24 0,76 0,06 0,94 15,00
2008 74.240 4 260.474 14 334.714 18 0,22 0,78 0,22 0,78 3,50
2009 76.619 1 295.260 6 371.879 7 0,21 0,79 0,14 0,86 6,00
2010 80.492 3 291.606 7 372.098 10 0,22 0,78 0,30 0,70 2,33
2011 81.918 3 328.133 14 410.051 17 0,20 0,80 0,18 0,82 4,67
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

2012 85.065 1 360.372 13 445.437 14 0,19 0,81 0,07 0,93 13


2013 86.108 0 360.180 4 446.288 4 0,19 0,81 0,00 1,00 4

Fonte: Elaboração própria, com base em RUOSO JR, 2014.


*
Npróprios = número de trabalhadores próprios. **Nterceirizados = número de trabalhadores terceirizados. †Total da força de trabalho = Npróprios + Nterceirizados. ‡Total de acidentes
fatais = (acidentes fatais com trabalhadores próprios) + (acidentes fatais com trabalhadores terceirizados). §Npróprios/(Total de força de trabalho). §§Nterceirizados/(Total de
força de trabalho). &(Acidentes fatais com trabalhadores próprios)/(Total de acidentes fatais). &&(Acidentes fatais com trabalhadores terceirizados)/(Total de acidentes
fatais). #(Acidentes fatais com trabalhadores terceirizados)/(Acidentes fatais com trabalhadores próprios).
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

De 1995 a 2013, o quadro efetivo da Petrobras cresceu de 46.226 para 86.108


empregados, ou seja, praticamente dobrou. O número de trabalhadores terceiri-
zados foi elevado de 29.000 para 360.180, tendo crescido dez vezes mais, passando
a constituir, portanto, mais de dois terços do total da força de trabalho explorada
pelo sistema Petrobras. Naquele interregno de 19 anos, 52 trabalhadores efetivos
e 268 terceirizados efetivos foram vítimas fatais de acidentes enquanto desenvol-
viam as suas atividades em prol da Petrobras, no Brasil e no exterior.
Utilizando a mesma metodologia de análise das tabelas anteriores, procede-
-se ao levantamento da realidade estatística dos acidentes fatais entre efetivos e
terceirizados do sistema Petrobras, de acordo com o peso da proporcionalidade da
força de trabalho nos dois segmentos (contratada e subcontratada). Enfim, quan-
tos acidentes fatais com trabalhadores terceirizados equivalem a um acidente fatal
com trabalhador próprio? A resposta está na Tabela 11.

Tabela 11 – Relação de acidentes fatais (trabalhador próprio/ trabalhador terceiro) na Petrobras


Ano Efetivo Terceiro
1995 1 5,00
1996 1 2,20
1997 1 4,33
1998 1 22,00
1999 1 27,00
2000 1 3,50
2001 1 1,50
2002 1 6,00
2003 1 5,33
2004 1 5,00
2005* 1 18,00
2006 1 8,00
2007 1 15,00
2008 1 3,50
2009 1 6,00
2010 1 2,33
2011 1 4,67
2012 1 13,00
2013* 1 4,00

Fonte: Elaboração própria, com base em RUOSO JR, 2014.


*
Considerado o valor total, pois não houve acidente na força própria

243
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

No ano de 1995, para cada trabalhador efetivo da Petrobras morto, cinco eram
as vítimas fatais entre os trabalhadores terceirizados. Nos outros anos, há bastan-
te variação, indo de 1,50 a 27,00. Observando os 19 anos de apuração, de 1995 a
2013, a média anual da “taxa de mortalidade” é 7,23 vezes maior entre os terceiri-
zados do que a ocorrência de idêntica tragédia com os empregados efetivados da
Petrobras.
Esse elevado índice entre os trabalhadores terceirizados demonstra, assim
como no setor elétrico brasileiro, o ambiente de trabalho perigoso. Ora, cada vez
que um trabalhador efetivo morre no exercício de suas funções laborativas, pela
média anual extraída dos 19 anos, morrem 8,23 trabalhadores terceirizados do
sistema Petrobras.
Um exemplo contundente da precariedade laboral se deu no acidente fatal na
P-37, que resultou na morte de dois trabalhadores terceirizados pela falta de equi-
pamentos adequados para o desempenho de suas atividades em área de risco. O
MPT – Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região-RJ – instaurou inquérito
civil público e depois, no ano de 2001, ajuizou a ACP n. 0153000-84.2001.5.01.0049
contra a Petrobras e as suas subsidiárias. Alegou o MPT que as condições inade-
quadas de trabalho presentes naquela terceirização foram determinantes para o
acidente de trabalho na P-37, conforme parte das razões da petição inicial trans-
critas abaixo:

A Ré apresentou o contrato de terceirização e a conclusão de relatório


pela comissão apuradora formada pela própria empresa, protestando pela
posterior juntada do relatório da CIPA, que, segundo a Ré, não havia sido
ainda concluído. Após afirmou que errara, e que não havia relatório da
CIPA, que havia sido substituído pelo relatório da comissão designada pela
empresa. O relatório conclui, na fl. 146 do Inquérito Civil Público, aponta
como causas imediatas ‘a presença de gás sulfídrico por ocasião da inver-
são da figura oito na tomada do tanque de drenagem limpo e a emissão
de permissão para trabalho (PT) com recomendações insuficientes aos
riscos presentes.’ Em seguida aponta as causas básicas: ‘Desconhecimen-
to por parte dos emitentes da PT, da possibilidade de presença do gás
sulfídrico no slop tanque de boreste (limpo). Avaliação insuficiente por
parte dos diversos segmentos envolvidos dos riscos presentes. Inexis-
tência de padrões técnicos referentes a trabalhos envolvendo presença

244
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

de gás ácido. Presença de gás sulfídrico dissolvido em água, função da


interligação do slop tanque de boreste com o slop tanque de bombordo,
onde o gás sulfídrico já era conhecido.’ E aponta, finalmente, como CAU-
SAS ADMINISTRATIVAS: ‘Elaboração de projetos que não contemplam
a possibilidade de geração de gás sulfídrico em tanques de drenagem,
carga e lastro. Inexistência de ações e rotinas específicas de identificação
da formação de H2S, visando diminuir os riscos potenciais envolvidos.
Falhas de divulgação de um histórico de casos conhecidos de presença
de H2S em unidades Petrobras e sua geração em diversos meios’.[...] O
depoimento de fl. 185 demonstra que ‘não havia nenhum equipamento de
detecção nem máscaras portáteis de H2S na plataforma, ao contrário da
outra plataforma onde trabalhou (plataforma de pampo –ppm1)’. De-
monstra-se, assim, que, sendo notório entre os trabalhadores da existência
de ácido sulfídrico na plataforma, e de conhecimento da chefia (conforme
comprovam os documentos de fls. 197/198), deveria ter a Ré fornecido aos
trabalhadores o Equipamento de Proteção Individual para o caso, o que
não foi realizado, embora em outras plataformas ela cumpriu essa obri-
gação. A negligência por parte da Ré é demonstrada no documento de fl.
198, onde Maurício A. de Souza informa aos seus superiores ‘que foram
constatados 180 PPM de H2S no SLOP de Bombordo e 20 PPM no Slop de
Boreste. [...] Sugiro que seja solicitado um estudo sobre as causas, conse-
qüências e ações que possam servir de controle ou extinção da formação
desse gás.’ (…). O depoente de fl. 185 afirmou que ‘o trabalho com a equi-
pe de segurança incompleta é comum; que já trabalhou com 180 pessoas
a bordo, sendo o depoente o único segurança a bordo’. A existência de
tal falha é confirmada pelo documento assinado pelo próprio depoente e
o Sr. Silvio Marcio A. Sarmento, na fl. 192 do ICP, demonstrando que por
várias vezes já tinha, por correio eletrônico, solicitado o cumprimento da
norma quanto ao quinto técnico de segurança. A própria Ré confessa a
existência do descumprimento, pois a ata de reunião de análise crítica de
fl. 210, no item ‘Segurança’, assume o ‘Risco de falha de liberação de PT’s
e treinamentos. Ação: Solicitar Quinto Técnico de Segurança’. Há que se
explicar a questão do ‘quinto técnico de segurança’. Pelo Quadro II da NR
4, os estabelecimentos com mais de 100 trabalhadores devem ter sempre
no mínimo 02 (dois) Técnicos de Segurança do Trabalho. Os empregados
da Ré, como é notório, trabalham em jornadas de 14 dias embarcados por

245
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

21 dias de descanso, necessitando daí um ‘quinto’ técnico de segurança


para que seja observado o mínimo da norma. A situação alarmante que
se encontra a plataforma em questão é verificada pela ata de reunião de
fls. 204/211. Dentre os vários problemas de seriedade incontestável estão:
‘Risco de impossibilidade de resgate de homem ao mar. Bote resgate com
cabo danificado.’ (fl. 210); ‘Risco de descontrole operacional da planta
de processo’ (fl. 211); ‘Risco de descontinuidade operacional por falta de
treinamento de pessoal’ (fl. 211); ‘Risco de descontrole em caso de incên-
dio no convés devido sistema de canhões remotos operando com restri-
ções’ (f. 211); ‘Risco de acidente devido Sistema Interno de TV inoperan-
te’ (fl. 211); ‘Risco de poluição do mar por deficiência do Sistema SAAB’
(fl. 209). Além desses, outros riscos não menos importantes são verificados
ao longo do documento.

No que tange à acidentalidade não fatal, o pesquisador Anselmo Ernesto Ru-


oso Jr, com base em auditoria promovida pela Federação Única dos Petroleiros
(FUP), declara que 84% dos acidentes de trabalho com lesão afetam os trabalha-
dores terceirizados da Petrobras, recaindo as lesões mais graves também entre os
empregados das subcontratadas. 7
Inúmeras pesquisas acadêmicas foram realizadas nos últimos 15 anos com a
finalidade de averiguar e desvelar os sentidos da terceirização na Petrobras. Do
ponto de vista da medicina, saúde e segurança no trabalho, como também da
sociologia do trabalho, todas as investigações convergiram para o encontro de
um exacerbado quadro de condições de trabalho degradantes dispensadas aos
trabalhadores terceirizados do sistema Petrobras. Verificaram-se ali discrimina-
ção, humilhação, invisibilidade social, isolamento familiar, violação de direitos
imateriais, desespero com o desemprego constante, disputa acirrada entre tercei-
rizados por postos temporários, assédio moral, precariedade laboral absoluta e
altos índices de acidentes de trabalho de enorme gravidade. Além disso, há a ex-
posição exagerada ao risco de acidente e morte relacionados ao trabalho, sem as
mais elementares medidas preventivas de segurança como condição sine qua non
da terceirização. As atividades perigosas são cada vez mais executadas exclusiva-
mente por terceirizados, que não medem esforços, colocando a integridade física

7 RUOSO JR., 2014.

246
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

e a vida em jogo para auferir o dinheiro do sustento familiar. Por outro lado, cabe
aos efetivos cuidar da gestão, coordenação e fiscalização dos grandes projetos da
maior estatal brasileira.
Citem-se, na linha desenvolvida nesta seção, as pesquisas de campo de Aní-
sio Araújo8,9, Marcelo Figueiredo10 , Zéu Palmeira Sobrinho11 , Carlos Souza12 e
Telma Gil13.
Tem-se que a terceirização na Petrobras também serve para ocultar o trata-
mento indigno conferido aos trabalhadores não efetivos, imensa maioria da força
de trabalho ali utilizada, com a falsa premissa de que todo esse pessoal não pos-
sui nenhum vínculo com a estatal brasileira, como se o terceirizado fosse apenas
mercadoria descartável adquirida de fornecedores que também precisam ganhar
dinheiro com a triangular operação.
Os níveis estarrecedores de acidentes fatais entre os trabalhadores terceirizados,
dentro de tal panorama, exprimem a névoa de corrosão de direitos humanos esca-
moteada por artifícios jurídicos a serem criticamente analisados na próxima seção.
Nos moldes do setor elétrico brasileiro, a precariedade das condições de tra-
balho dispensadas aos terceirizados pela Petrobras instala a morbidez e fortifica o

8 ARAÚJO, Anísio José da Silva. Paradoxos da modernização: terceirização e segurança dos traba-
lhadores em uma refinaria de petróleo. 2001. 359 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública)–Escola
Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2001.
9 ARAÚJO, Anísio José da Silva. PORTO, Marcelo Firpo de S. Trabalho e vida na periferia do capi-
talismo: terceirizados na indústria de refino de petróleo. In: ARAÚJO, Anísio José da Silva; AL-
BERTO, Maria de Fátima; NEVES, Mary Yale; ATAHYDE, Milton (Org.) Cenários do trabalho:
subjetividade, movimento e enigma. Rio de Janeiro: 2004, DP&A.
10 FFIGUEIREDO, Marcelo. A face oculta do ouro negro: trabalho, saúde e segurança na indústria
petrolífera offshore Bacia de Campos. Niterói: 2012, Editora da UFF.
11 PALMEIRA SOBRINHO, Zéu Palmeira. Reestruturação produtiva e terceirização: o caso dos tra-
balhadores das empresas contratadas pela Petrobras no RN. 2006. 259 f. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais)–Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2006.
12 SOUZA, Carlos Augusto de. Análise de acidentalidade de trabalho em indústrias de processo con-
tínuo: estudo de caso na Refinaria de Duque de Caxias. 2000. 106 f. Dissertação (Mestrado em
Segurança e Saúde no Trabalho)–Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz,
Rio de Janeiro, 2000.
13 GIL, Telma Fernandes Barreto Nuevo. Impactos da reestruturação produtiva à saúde e à segu-
rança: percepções de petroleiros em São Paulo. 2000. 146 f. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais)–Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.

247
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

matadouro da gente trabalhadora mais humilde no ambiente laboral. Do terceiri-


zado, mais do que de qualquer empregado efetivo, exige-se o desenvolvimento de
várias atividades, sem o preparo e a fiscalização pertinentes – especialmente nas
atividades de risco –, além da realização de jornadas extensas e intensas, tendo
como contrapartida o oferecimento, pelas empresas, de outras péssimas condições
de trabalho.
Tudo está inserido, evidentemente, no contexto mais geral do modelo produ-
tivo em curso no capitalismo global, aqui no Brasil agravado pela natureza de seu
desenvolvimento capitalista hipertardio e dependente, sem romper com as raízes
coloniais-escravistas. Em outras palavras, o padrão produtivo é o agente causador
das mortes e mutilações ocorridas na Petrobras, sendo a terceirização a correia de
transmissão mais eficiente para gerar o lucro patronal em tempos de acumulação
flexível guiada pelo toyotismo, trazendo consigo necessariamente o destroçamen-
to do trabalho humano.
Terceirizando o risco, a Petrobras jamais assume a responsabilidade social e
criminal pelas mortes e mutilações dos seus trabalhadores terceirizados. Tanto é
assim que divulga enfaticamente nos meios de comunicação da grande mídia os
seus extraordinários lucros auferidos anualmente e as suas novas descobertas de
fonte de riquezas materiais – como é o caso do pré-sal – sem contar ao público, no
entanto, que os êxitos financeiros deixaram largos rastros de sangue, dor e lágri-
mas pelo caminho tortuoso da terceirização.

4. TERCEIRIZAÇÃO NA CONSTRUÇÃO CIVIL: SUBCONTRATAÇÃO


GENERALIZADA EM OBRAS DIVERSAS – A REALIDADE DA
EDIFICAÇÃO DE ARENAS ESPORTIVAS PARA A COPA DO
MUNDO DE 2014 –, PRECARIZAÇÃO LABORAL E MORTES DE
TRABALHADORES TERCEIRIZADOS

Não raro, a fiscalização do MTE tem declarado que os empregados tercei-


rizados estão mais expostos a acidentes de trabalho, inclusive porque são eleitos
prioritariamente para exercer funções em áreas de risco. A matéria jornalística
transcrita abaixo expõe tal opinião de maneira incisiva:

248
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

O aumento da terceirização no Brasil preocupa quem acompanha questões


relativas a segurança do trabalho no país. Segundo Rinaldo Marinho, di-
retor do Departamento de Saúde e Segurança do Trabalho do Ministério
do Trabalho e Emprego, os terceirizados são os que estão mais expostos a
acidentes. As empresas, afirma, têm terceirizado as atividades mais perigo-
sas, fato agravado pela constatação de que as contratadas dificilmente têm
planos de prevenção bem elaborados. ‘A contratante tem mais capacidade
de mudar o ambiente de trabalho do que a empresa contratada para prestar
um serviço pontual”, explica […]. Em 2010, foi na construção civil onde
aconteceu o maior número de acidentes que têm como conseqüência in-
capacidade permanente, ou seja, seqüelas que impedem a pessoa de voltar
ao trabalho. Foram 454 acidentes incapacitantes na construção de edifícios
em 2010, número que supera o do setor de transporte rodoviário de cargas,
em segundo lugar com 412.14

Desde 2005, no âmbito do MTE, são emitidos alertas de que a terceirização


provoca acentuado número de acidentes e mortes relacionados ao trabalho, com
a informação do órgão ministerial do Poder Executivo de que oito em cada dez
acidentes de trabalho são registrados em empresas terceirizantes, e quatro em
cada cinco mortes atingem empregados terceirizados, mesmo sem a indicação da
respectiva base de dados eventualmente consultada para esse fim. Comentando
os números apontados pelo MTE, a pesquisadora da Fundação Jorge Duprat e
Figueiredo (Fundacentro), médica e professora, Maria Maeno, afirma que os aci-
dentes acontecem “porque a empresa se compromete a cumprir prazos pelo menor
preço, e o empregado não escolhe o modo de trabalhar”, além da “intensificação
do trabalho com longas jornadas e a imposição de condições perigosas e penosas
revelam a precarização laboral”.15

14 PYL, Bianca. Terceirizado está mais sujeito a acidente de trabalho, diz MTE. Repórter Brasil, [on-
line], 26 abr. 2012.Disponível em: <http://reporterbrasil.org.br/2012/04/terceirizado-esta-mais-
-sujeito-a-acidente-de-trabalho-diz-mte/>. Acesso em: 11 ago. 2014.
15 CÔRTES, Lourdes. Acidentes de trabalho têm mais impactos sociais na população jovem. Re-
portagem de Lourdes Côrtes. Secretaria de Comunicação Social do TST, [online] 21 out. 2011.
Disponível em: <http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/acidentes-de-
-trabalho-tem-mais-impactos-sociais-na-populacao-jovem?redirect=http%3A%2F%2Fwww.tst.
jus.br>. Acesso em: 11 ago. 2014.

249
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Embora não figure legalmente entre as atividades de risco, o labor executado


na área da construção civil, ao menos a partir do “boom” no mercado imobiliá-
rio dos anos 1970 nas grandes cidades brasileiras, sempre esteve associado a um
elevado número de acidentes de trabalho, tendo liderado durante razoável espaço
de tempo a taxa de mortalidade, produzindo, em decorrência das precárias condi-
ções de labor, a maior quantidade de vítimas fatais. Não foi por acaso que o Brasil
liderou em 1974 a triste estatística de campeão mundial em acidentes de trabalho.
O passar dos anos alterou parcialmente o quadro, com outros segmentos con-
correndo fortemente pelo título de maior causador de acidentes e adoecimentos
laborais. Quanto à mortalidade, no entanto, a construção civil continua ocupando
posição de destaque na condição de um dos setores econômicos responsáveis pelo
elevado número absoluto de acidentes fatais entre os seus trabalhadores formais
(com registro do contrato de trabalho na CTPS), ficando quase sempre entre os
primeiros lugares. Em 2011, por exemplo, com 177 óbitos em diversos canteiros
de obras espalhados pelo Brasil, perdeu o primeiro lugar, em termos absolutos,
apenas para a área de transporte rodoviário de carga. Os números dos anos mais
próximos a 2011 também superam a centena de trabalhadores mortos, sendo 124
em 2010 e 138 em 2012.16
Prorrogações constantes e abusivas da jornada de trabalho, ausência do inter-
valo intrajornada, remuneração exclusiva à base de comissões, ausência de ano-
tação da CTPS, concessão de férias, condições ergonômicas, fornecimento dos
equipamentos de proteção individual e de treinamento adequado para operar má-
quinas novas, além do profundo desrespeito às normas e às condições de trabalho
dignas, entre outras agressões ao meio ambiente de trabalho, são as causas mais
frequentes dos acidentes de trabalho e das doenças laborais verificados no âmbito
da construção civil.
A terceirização na construção civil potencializa os riscos de acidentes de tra-
balho graves, diante da precariedade laboral que lhe é inerente como fundamento
nuclear de sua própria existência, a ponto de ser utilizado, em tal setor econômi-
co, extensa mão de obra em condições análogas às de escravo, conforme ficou

16 BARONI, Larissa Leiros. Construção é o 2º setor com o maior número de mortes em acidentes de
trabalho no país. UOL, [online], 5 set. 2014. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/
ultimas-noticias/2013/12/06/construcao-e-o-segundo-setor-com-o-maior-numero-de-mortes-
-em-acidentes-do-trabalho.htm>. Acesso em: 6 set. 2014.

250
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

explicitado na subseção 5.2.1.1. Pesquisando o tema por esse enfoque, mediante


o cruzamento de dados disponíveis no Cnae da construção e da contagem dos
acidentes de trabalho por meio da conferência individual das respectivas CATs
emitidas, os professores Graça Druck e Vítor Filgueiras demonstram que os traba-
lhadores terceirizados da construção estão muito mais expostos a acidentes fatais
de trabalho, envolvidos, pois, em altas taxas de mortalidade.
Com extrema precisão, apontam Druck e Filgueiras a metodologia utilizada e
os índices encontrados, senão vejamos:

Para tornar a análise mais precisa, selecionamos três CNAE da Constru-


ção informados nas CAT e contamos, um a um, quantos mortos em 2013
eram terceirizados em relação ao total de vítimas, e a chance de morrer
nesses CNAE em relação à probabilidade média de morrer trabalhando no
país. Os resultados são os seguintes: Em obras de acabamento, houve 2,32
vezes mais incidência de fatalidades entre seus trabalhadores, comparada
à incidência do conjunto do mercado formal. Em números absolutos, fo-
ram 20 trabalhadores mortos, dos quais 18 eram terceirizados. Em obras
de terraplanagem, cuja chance de morrer foi 3,3 vezes maior do que no
restante do mercado de trabalho, dos 19 mortos, 18 eram terceirizados e
apenas 1 contratado diretamente. Nos serviços especializados não espe-
cificados e obras de fundação, morreram 30 terceirizados e 4 contratados
diretamente, tendo o setor 2,45 vezes maior índice de mortes em relação
aos empregados formais da economia como um todo. Com base na RAIS,
fizemos essa comparação para dois CNAE que realizam as mesmas fun-
ções, mas que claramente discriminam terceirizados e contratados dire-
tos, quais sejam: produção florestal (empresas principais) e atividades de
apoio à produção florestal (terceirizados). Este último, apesar de ter menor
quantidade de trabalhadores, registrou maior quantidade de mortos em
2013. Comparando os resultados com o conjunto do mercado de trabalho,
a chance de morrer na Produção Florestal era 32% maior, enquanto que nas
Atividades de Apoio à Produção Florestal, 148% superior à média nacional.
Ou seja, há fortes indícios da relação entre CNAE com maior incidência de
mortes e o predomínio de terceirizados entre as vítimas. Vale ressaltar que
os dados se referem apenas aos acidentes comunicados, quando um núme-
ro imenso omitido, e envolvem tendencialmente terceirizados, mesmo em
casos amplamente divulgados pela mídia, como o desabamento da obra do

251
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

sorteio da COPA do Mundo na Bahia, que matou Zilmar Neri dos Santos,
e o infarto sofrido por José Antônio da Silva Nascimento, em outra obra da
COPA, em Manaus. Como afirmado, a questão fundamental que explica
essa maior vitimização dos terceirizados é a externalização dos riscos ocu-
pacionais. A terceirização é um escudo para as empresas tomadoras dos
serviços. Ao nominar outra pessoa física ou jurídica como responsável pelo
trabalhador, a contratante quase sempre se exime, na prática, da adoção
de medidas para preservação da sua integridade física. Mesmo quando a
tomadora efetua alguma medida, é sistematicamente aquém do que ofe-
rece aos empregados que formaliza. Quando existem, as ações tendem a
ser insuficientes e pautadas pela transferência da responsabilidade ao ente
interposto, primeiro nominado por qualquer infortúnio.17

Solapando vidas obreiras, a terceirização adotada na construção civil gera


mortes de 2,32 a 3,3 vezes maior do que no restante do mercado de trabalho, cons-
tituindo na prática um espaço destinado ao trabalho perigoso para o desempenho
das funções de pedreiro, mestre de obras, servente, carpinteiro, marceneiro, ele-
tricista, ladrilheiro, pintor, serralheiro, vidraceiro e para a execução de outras tan-
tas tarefas que poderiam ser incluídas, com base nos dados coletados por Druck e
Filgueiras, no rol das atividades de risco, ao menos para a edificação das obras de
grande porte, incluindo os prédios comerciais e residenciais.
Uma pequena amostra do mundo perigoso da construção civil para os traba-
lhadores terceirizados verificada pelo relato dos acidentes fatais ocorridos durante
a construção das arenas esportivas destinadas ao evento Copa do Mundo 2014,
além de outros dois estádios erguidos durante o mesmo período em prol dos clu-
bes de futebol Sociedade Esportiva Palmeiras e Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense.
Na Arena Corinthians (“Itaquerão”), em São Paulo, três trabalhadores mor-
reram no exercício de suas funções, todos eles empregados terceirizados na obra
erguida pela construtora Odebrecht.
No dia 27 de novembro de 2013, “Três estruturas metálicas da Arena Corin-
thians caíram na parte de trás do estádio em construção, causando a morte de duas
pessoas. As estruturas foram atingidas por um guindaste que estava colocando a

17 DRUCK, Graça; FILGUEIRAS, Vítor. A epidemia da terceirização e a responsabilidade do STF.


Revista do TST, Brasília, v. 81, p. 150-161, jul./set. 2014.

252
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

última treliça, de 500 toneladas, sobre o prédio leste”18, na Arena Corinthians. As


vítimas, Fábio Luiz Pereira e Ronaldo Oliveira Santos, descansavam no horário
de almoço quando foram atingidos pelo guindaste de 11 metros, com capacidade
para suportar 1.500 toneladas, que desabou sobre as suas cabeças, atingidos fatal-
mente sem que soubessem sequer o que acontecera. Fábio Luiz Pereira, 42 anos,
motorista/operador de munck, era empregado formal da empresa terceirizante
BHM Transportes, tendo deixado a esposa e três filhos. Ronaldo Oliveira Santos,
44 anos, era montador da empresa terceirizante Conecta, deixou uma filha órfã.19
Em 29 de março de 2014 ocorreu mais um acidente fatal na construção da
Arena Corinthians, na cidade de São Paulo, na obra da Odebrecht. Morreu Fábio
Hamilton Cruz, 23 anos, trabalhador terceirizado por intermédio de múltiplas
subcontratações empresariais. Fábio era empregado formal da WDS Engenharia,
contratada pela empresa FAST, que havia sido contratada pela AMBEV, para tra-
balhar na montagem de arquibancadas provisórias exigidas pela Fifa para aumen-
tar temporariamente a capacidade do estádio (durante a realização da Copa do
Mundo de 2014). Fábio Hamilton Cruz caiu de uma altura de 15 metros, segundo
estimativa do Corpo de Bombeiros de São Paulo; levado ao hospital, não resistiu
aos ferimentos.20
Na construção da Arena Amazônia, quatro trabalhadores morreram durante
as obras executadas pela construtora Andrade Gutierrez. Um deles sofreu infarto
após ver o seu colega de trabalho morto em acidente de trabalho. Todos laboravam
como terceirizados. A primeira vítima fatal foi Raimundo Nonato Lima Costa, 49
anos, pedreiro, trabalhador terceirizado na obra da Andrade Gutierrez, que caiu
de andaime, sofrendo traumatismo craniano, no dia 29 de março de 2013. Em se-
guida, no dia 14 de dezembro de 2013, Marcleudo Melo Ferreira, 22 anos, também

18 TRAGÉDIA na Arena Corinthians: estruturas desabam e matam dois. Globo Esporte, [online],
27 nov. 2013. Disponível em: <http://globoesporte.globo.com/futebol/times/corinthians/noti-
cia/2013/11/acidente-na-arena-corinthians.html>. Acesso em 12 ago. 2014.
19 CANÔNICO, Leandro; FABER, Rodrigo; GANDOLPHI, Sergio. Identificadas as vítimas fatais da
tragédia na Arena Corinthians. Globo Esporte, [online], 27 nov. 2013. Disponível em: <http://glo-
boesporte.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/2013/11/identificada-primeira-vitima-
-da-tragedia-na-arena-corinthians.html>. Acesso em: 12 ago. 2014.
20 LAVIERI, Danilo. Operário do Itaquerão não resiste a ferimentos e morre no hospital. UOL, [online],
29 mar. 2014. Disponível em: <http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2014/03/29/opera-
rio-do-itaquerao-nao-resiste-a-ferimentos-e-morre-apos-queda.htm>. Acesso em: 12 ago. 2014.

253
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

empregado de empresa subcontratada pela Andrade Gutierrez, foi vítima de aci-


dente fatal quando caiu de uma altura de 35 metros, no desempenho de atividades
laborais durante a madrugada (às 4h00min), mais especificamente na cobertura
da arena que precisava ficar pronta no prazo exigido pela Fifa.
A terceira vítima foi Antônio José Pita Martins, de nacionalidade portugue-
sa, 55 anos, terceirizado na obra da Andrade Gutierrez. Ele sofreu acidente de
trabalho no momento em que realizava a desmontagem de um guindaste, tendo
sido atingido na cabeça por um equipamento, no dia 7 de fevereiro de 2014. Pro-
vavelmente na qualidade vítima indireta, também morreu no exercício de suas
funções laborais o empregado terceirizado na obra da Andrade Gutierrez José
Antônio Nascimento Souza (50 anos). Ele faleceu após mal súbito sofrido na obra
do Centro de Convenções que integrava o complexo Arena Amazônia, no dia 14
de dezembro de 2013. Há relatos de que ele teria sentido forte impacto ao tomar
conhecimento do acidente fatal que atingiu o seu colega de trabalho Marcleudo
Melo Ferreira. A imprensa noticiou que todos os trabalhadores vítimas fatais na
construção da Arena Amazônia eram empregados de empresas subcontratadas
pela Andrade Gutierrez, sem indicar, no entanto, os nomes das prestadoras de ser-
viços. É certo também que o MPT move ação judicial contra a empresa principal
pela responsabilidade nos acidentes.21
A arena Pantanal fez uma vítima fatal. No dia 8 de maio de 2014, Mahamed
Ali Maciel, 32 anos, empregado formal da empresa ETEL, subcontratada do Con-
sórcio Santa Bárbara-Mendes Júnior, sofreu uma descarga elétrica quando insta-
lava luminária no corredor de acesso aos camarotes no setor leste do estádio.22
No Estádio Nacional Mané Garrincha, em Brasília, morreu José Afonso de
Oliveira Rodrigues, 21 anos, ajudante de carpinteiro, no dia 11 de junho de 2012.
José Afonso, empregado do Consórcio Nacional Brasília 2014, liderado pela cons-
trutora Andrade Gutiererez, sofreu acidente quando trabalhava no ponto mais

21 FARIAS, Elaíze. Andrade Gutierrez enfrenta ação do MPT por acidentes de trabalho. Repórter
Brasil, [online], 4 abr. 2014. Disponível em: <http://reporterbrasil.org.br/2014/04/andrade-gutier-
rez-enfrenta-acao-do-mpt-por-acidentes-de-trabalho/>. Acesso em: 12 ago. 2014.
22 COSTA, Guilherme; SEGALLA, Vinicius. Operário morre na Arena Pantanal, na sede da Copa do
mundo em Cuiabá. UOL, [online], 8 maio 2014. Disponível em: <http://copadomundo.uol.com.br/
noticias/redacao/2014/05/08/operario-morre-na-arena-pantanal-sede-da-copa-do-mundo-em-
-cuiaba.htm>. Acesso em: 12 ago. 2014.

254
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

alto da construção, no anel de compressão, tendo despencado de uma altura de


30 metros (na laje que fica entre o teto e a arquibancada), após uma madeira ce-
der.23 Segundo se extrai das notícias publicadas pela imprensa, dos trabalhadores
vítimas de acidentes fatais em arenas esportivas para a Copa do Mundo de 2014,
somente José Afonso de Oliveira Rodrigues era trabalhador próprio do consórcio
responsável pela execução daquelas obras.
Também em obra da Copa do Mundo de 2014, Zilmar Neri dos Santos, 19
anos, sofreu acidente de trabalho fatal, ao receber o impacto do desabamento da
estrutura que estava sendo montada pelo banco Bradesco para o sorteio daquele
evento esportivo na Costa do Sauípe, no dia 13 de fevereiro de 2013, em um com-
plexo de hotéis no litoral baiano. Zilmar Neri dos Santos era empregado terceiri-
zado, segundo revela trecho da reportagem a seguir transcrita: “A TV1 eventos,
empresa responsável pela montagem da estrutura, disse por meio da assessoria de
imprensa que o rapaz era ligado a uma terceirizada, mas não revelou o nome da
empresa”.24
Além das arenas destinadas a jogos da Copa do Mundo de 2014, dois outros
estádios de futebol foram construídos no mesmo período (estádios do Palmeiras
e do Grêmio) nos quais outros acidentes fatais vitimaram exclusivamente traba-
lhadores terceirizados.
Na Arena Palestra do Palmeiras morreu, em 14 de abril de 2013, Carlos de
Jesus, 34 anos, empregado formal da empresa TLMX, subcontratada do Consór-
cio WTORRE, responsável pela execução da obra. Carlos de Jesus foi atingido
por uma viga de três toneladas quando laborava em um dos camarotes da Arena
Palestra, sentindo sobre a sua cabeça o peso da estrutura que começou a ruir.25

23 BRITO, Marcondes. MP quer multa de 200 milhões por morte de operário na Arena do DF.
Band Notícias, [online], 29 nov. 2013. Disponível em: <http://blogs.band.com.br/marcondesbri-
to/2013/11/29/mp-quer-multa-de-200-milhoes-por-morte-de-operario-na-arena-do-df/>. Acesso
em 12 ago. 2014.
24 JOVEM que morreu em desabamento no Litoral Norte é velado em Salvador. G1, [online], 14 fev.
2013. Disponível em: <http://g1.globo.com/bahia/noticia/2013/02/jovem-que-morreu-em-desa-
bamento-no-litoral-norte-e-velado-em-salvador.html>. Acesso em: 16 ago. 2014.
25 PRADO, Marcelo. Operário morto em acidente na Arena Palestra será enterrado na Bahia. Glo-
bo Esporte, [online], 16 abr. 2013. Disponível em: <http://globoesporte.globo.com/futebol/times/
palmeiras/noticia/2013/04/operario-morto-em-acidente-na-arena-palestra-sera-enterrado-na-
-bahia.html>. Acesso em: 12 ago. 2014.

255
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Na Arena Grêmio ocorreram dois acidentes fatais que atingiram trabalha-


dores terceirizados. Em 23 de janeiro de 2013, Araci da Silva Bernardes, 40 anos,
empregado formal da empresa EPPLAN, subcontratada da construtora OAS, res-
ponsável pela execução da obra, sofreu uma descarga elétrica quando realizava a
manutenção do sistema de iluminação em uma área anexa ao estádio destinada a
ser o escritório administrativo da OAS.26
O outro acidente fatal ocorreu no dia 2 de outubro de 2011. José Eias Macha-
do, 40 anos, terceirizado, enquanto se deslocava da obra para o dormitório, foi
atropelado na BR 290, no horário noturno. Os seus colegas de trabalho realizaram
protesto contra a construtora principal, OAS, por instalar dormitórios em local
cujo acesso exige o atravessamento de uma das rodovias federais mais movimen-
tadas do país, além de greves contra as péssimas condições de trabalho da obra do
Grêmio executada pela construtora.27
Não é mera coincidência o fato de que dos 12 empregados mortos na constru-
ção de estádios de futebol para a Copa do Mundo 2014 da Fifa – e em outros cam-
pos destinados a grandes agremiações esportivas brasileiras e aos preparativos
para o maior evento esportivo do futebol –, 11 deles eram trabalhadores terceiri-
zados das maiores construtoras do país o que resulta em um percentual acima de
90%, alcançando vítimas fatais entre os terceirizados. Assim, verifica-se que é ele-
vadíssimo o risco a que é exposto o trabalhador terceirizado na construção civil.28
A execução do plano adotado por empresas construtoras e por seus consórcios
cuida de garantir intensa redução dos custos com o trabalho. A terceirização cum-
pre essa função primordial radicalizando na política de precarização das condi-
ções de trabalho, sendo extremamente útil também para receber o labor nas áreas
de risco com a finalidade de esconder a face, sob variadas perspectivas políticas,

26 FUNCIONÁRIO morre em Arena do Grêmio; empresa lamenta com nota. Lancepress, [online],
24 jan. 2013. Disponível em: <http://www.lancenet.com.br/gremio/Funcionario-Arena-Gremio-
-Empresa-lamenta_0_853114744.html>. Acesso em: 12 ago. 2014.
27 OPERÁRIO da Arena do Grêmio morre atropelado, e colegas protestam com incêndio. ESPN.com.
br, [online], 3 out. 2011. Disponível em: <http://espn.uol.com.br/noticia/218114_operario-da-arena-
-do-gremio-morre-atropelado-e-colegas-protestam-com-incendio>. Acesso em: 12 ago. 2014.
28 FILGUEIRAS, Vítor Araújo. Terceirização e os limites da relação de emprego: trabalhadores mais
próximos da escravidão e morte. [online], 15 ago. 2014. Disponível em: <http://indicadoresdere-
gulacaodoemprego.blogspot.com.br/>. Acesso em: 16 ago. 2014.

256
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

jurídicas e econômicas, do verdadeiro dono do negócio causador das mortes e


mutilações relacionadas ao trabalho.
Assim como no setor elétrico e na Petrobras, a área da construção civil ter-
ceiriza o risco, realizando múltiplas subcontratações empresariais na sua cadeia
produtiva para construir o caminho do precipício destinado aos trabalhadores
terceirizados.
O alto índice de mortes entre os trabalhadores terceirizados nas obras centrais
da Copa do Mundo de 2014 da Fifa é o “retrato ¾” da realidade brasileira das rela-
ções de trabalho vigentes no âmbito da construção civil: farsa, na estratégia jurídica
da burguesia de transferir a qualidade de empregador para terceiro; tragédia, na
quantidade de mortos provocados com a subcontratação empresarial. E pior, esse é o
único pedaço de “história” que se repete no cotidiano das frações da classe trabalha-
dora mais expostas aos riscos criados pelo próprio sistema capitalista de produção.

5. IMPACTOS E REPERCUSSÕES DA TERCEIRIZAÇÃO COMO FATOR


RELEVANTE DAS MORTES E ACIDENTES RELACIONADOS AO
TRABALHO: IMPACTOS HUMANOS E SOCIAIS E REPERCUSSÕES
ECONÔMICAS NAS CONTAS PÚBLICAS

Provocando mortes em rotação acelerada, a terceirização desmorona o sen-


tido de sociedade pautada pelo respeito aos direitos humanos da classe trabalha-
dora. O seu propósito é exatamente conferir efetividade ao “direito humano” por
excelência do capital, que é o da garantia de máxima exploração do proletariado
– conceito este extraído de Marx, para quem, a “exploração da força de trabalho é
o primeiro “direito humano do capital”29.
Quando não mata pela sua vocação natural de produzir acidentes de traba-
lho, a terceirização deixa pelo caminho um exército de mutilados e outros graves
sequelados – fruto da superexploração da força de trabalho, relegando, por via de
consequência, à condição desumana mulheres e homens submetidos ao regime
da fragmentação da cadeia produtiva implantada para superar a crise estrutural e
existencial do sistema capitalista de produção.

29 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1996. v. 1, p. 405.

257
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Enfim, a sociedade da terceirização é aquela que reconhece no lucro a pre-


sença da personalidade humana, sujeito, portanto, dos “direitos fundamentais”
de matar e mutilar o coisificado trabalhador no desempenho de suas atividades
laborativas – quando não trocado ou descartado como se fosse objeto de pequena
serventia que se quebrou ou que esgotou sua capacidade de gerar o resultado pro-
posto quando foi concebido.
A terceirização, na qualidade de fenômeno gerador de mortes e adoecimentos
laborais, provoca destacados impactos nas despesas públicas, diante dos gastos
decorrentes da concessão de benefícios previdenciários previstos em lei e despesas
hospitalares públicas.
Estimativas do Ministério da Previdência Social apontam os custos anuais
da União em R$56,8 bilhões (ano 2009) com os acidentes de trabalho, compreen-
dendo o pagamento de benefícios previdenciários e das despesas de saúde e afins,
quantia superior ao somatório do produto interno bruto (PIB) de cinco estados
brasileiros em 2009 (Acre, Roraima, Amapá, Tocantins e Piauí), sem considerar,
no entanto, as despesas indiretas com a acidentalidade laboral.30
As raras ações judiciais regressivas ajuizadas pelo Poder Público contra os
causadores dos acidentes de trabalho não conseguem devolver praticamente nada
aos cofres públicos, em decorrência dos prejuízos financeiros causados ao erário.
Com mais de 700 mil acidentes de trabalho por ano, o Estado propõe menos de
400 ações regressivas, ou seja, raramente demanda para ressarcir a Previdência
Social.31 Ainda que alcançasse sucesso em todos os processos judicializados, o
Poder Público estaria diante de ressarcimento ínfimo.
Provocadora mais expressiva dos acidentes de trabalho, do ponto de vista da
apuração das respectivas taxas, a terceirização contribui significativamente para
os gastos do Estado com os custos anuais da União antes apresentados. Por isso
mesmo, impõe-se reconhecer que, além de causar danos irreparáveis aos direitos

30 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Perfil do trabalho decente no Brasil: um


olhar sobre as unidades da federação. (Relatório). Brasília, 21 maio 2012. 400 p. Disponível em:
<www.oit.org.br>. Acesso em: 12 ago. 2014.
31 SORANO, Vitor. Governo cobra menos por acidentes de trabalho. Portal IG, [online], 26 fev. 2014.
Disponível em: <http://economia.ig.com.br/2014-02-26/governo-cobra-menos-de-empresas-por-
-acidentes-de-trabalho.html>. Acesso em: 12 ago. 2014.

258
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

humanos da classe trabalhadora, o modo de produção terceirizante deixa a conta


dos prejuízos financeiros advindos da alta acidentalidade para o Poder Público.

6. CONCLUSÃO

Está demonstrado que a terceirização mata e mutila sistematicamente traba-


lhadores. Ainda assim, reitere-se, essa infame tragédia social pode ser intensifi-
cada, ao menos se depender do êxito das iniciativas patronais levadas a cabo no
Parlamento e no Poder Judiciário.
O projeto de lei em curso sobre terceirização aprovado na Câmara dos
Deputados(PL n. 4.330), ora tramitando no âmbito do Senado Federal(PLC nº
30/2015) e a repercussão geral em debate no Supremo Tribunal Federal (ARE n.
713.211/MG) conseguem piorar o que, na prática, já é muito ruim para a classe tra-
balhadora e para a sociedade brasileira. Qualquer uma dessas iniciativas aprovada
resultará na legitimação e legalização da terceirização em todos os setores produ-
tivos e atividades econômicas, implantando-se a verdadeira merchandage histori-
camente repudiada pelo Direito do Trabalho. O trabalho passará a ser mais um
insumo banal da produção capitalista, comprado de intermediários nas cidades e
de capatazes ou “gatos” no campo brasileiro. Será a autorização para todo tipo de
exploração selvagem do trabalhador. A legalização da triste figura do “gato” nas
fazendas será o fomento ao trabalho em condições análogas às de escravo.
A terceirização é incompatível com o respeito aos Direitos Humanos dos tra-
balhadores. A terceirização sempre desafia o Direito do Trabalho. Aceitar a tercei-
rização larga como fenômeno inevitável é naturalizar a opressão do forte sobre o
fraco, é também banalizar a exclusão e miséria sociais.
É imprescindível remar contra a maré da ideologia dominante que nos apre-
senta um único modo de vida na sociedade, qual seja, o da absoluta conformação
com os valores do neoliberalismo e de todos os seus vorazes tentáculos inibido-
res da emancipação e criatividade humanas. Torna-se relevante jamais hesitar
na intransigente defesa do primado do trabalho digno e do Direito do Trabalho
fundado em princípios, pelas razões históricas que o fizeram surgir como ramo
social do Direito, concebido para se contrapor, em alguma medida, à gigantesca
desigualdade material entre o capital e o trabalho. É preciso rechaçar o conteúdo

259
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

propagandístico voltado para atribuir ao valor trabalho humano e ao Direito do


Trabalho conceitos declaradamente pejorativos ou jurássicos, porque, na verdade,
essa prática comunicativa visa destruir polos de resistência ao exacerbado arbítrio
da globalização de mão única, da globalização despreocupada com o destino so-
cial de milhões de explorados, oprimidos e excluídos no planeta.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Anísio José da Silva. Paradoxos da modernização: terceirização e segurança dos trabalhadores em
uma refinaria de petróleo. 2001. 359 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública)–Escola Nacional de Saúde Pública
da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2001.

ARAÚJO, Anísio José da Silva. PORTO, Marcelo Firpo de S. Trabalho e vida na periferia do capitalismo: ter-
ceirizados na indústria de refino de petróleo. In: ARAÚJO, Anísio José da Silva; ALBERTO, Maria de Fátima;
NEVES, Mary Yale; ATAHYDE, Milton (Org.) Cenários do trabalho: subjetividade, movimento e enigma. Rio
de Janeiro: 2004, DP&A.

BARONI, Larissa Leiros. Construção é o 2º setor com o maior número de mortes em acidentes de traba-
lho no país. UOL, [online], 5 set. 2014. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noti-
cias/2013/12/06/construcao-e-o-segundo-setor-com-o-maior-numero-de-mortes-em-acidentes-do-trabalho.
htm>. Acesso em: 6 set. 2014.

BATISTA, Eraldo Leme Batista. Terceirização no Brasil e suas implicações para os trabalhadores. Campinas:
Pontes, 2013. p.71-95.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 4.330, de 26 de outubro de 2004. Dispõe sobre o contrato de
prestação de serviço a terceiros e as relações de trabalho dele decorrentes. Autor: dep. Sandro Mabel (PL/GO).
[em tramitação]. Disponível em: <www.camara.gov.br>. Acesso em: 8 set. 2014.

BRASIL. Consolidação das Leis Trabalhistas (1943). Decreto-lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943 Aprova a Con-
solidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 9 ago. 1943. Disponível em: <www.
planalto.gov.br>. Acesso em: 8 set. 2014.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado; 1988. Dis-
ponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 8 set. 2014.

BRITO, Marcondes. MP quer multa de 200 milhões por morte de operário na Arena do DF. Band Notícias,
[online], 29 nov. 2013. Disponível em: http://blogs.band.com.br/marcondesbrito/2013/11/29/mp-quer-multa-
-de-200-milhoes-por-morte-de-operario-na-arena-do-df/>. Acesso em 12 ago. 2014.

CANÔNICO, Leandro; FABER, Rodrigo; GANDOLPHI, Sergio. Identificadas as vítimas fatais da tragédia
na Arena Corinthians. Globo Esporte, [online], 27 nov. 2013. Disponível em: <http://globoesporte.globo.com/
futebol/times/corinthians/noticia/2013/11/identificada-primeira-vitima-da-tragedia-na-arena-corinthians.
html>. Acesso em: 12 ago. 2014.

260
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

CÔRTES, Lourdes. Acidentes de trabalho têm mais impactos sociais na população jovem. Reportagem de
Lourdes Côrtes. Secretaria de Comunicação Social do TST, 21 out. 2011. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/
noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/acidentes-de-trabalho-tem-mais-impactos-sociais-na-populacao-jo
vem?redirect=http%3A%2F%2Fwww.tst.jus.br>. Acesso em: 11 ago. 2014.

COSTA, Guilherme; SEGALLA, Vinicius. Operário morre na Arena Pantanal, na sede da Copa do mundo
em Cuiabá. UOL, [online], 8 maio 2014. Disponível em: <http://copadomundo.uol.com.br/noticias/reda-
cao/2014/05/08/operario-morre-na-arena-pantanal-sede-da-copa-do-mundo-em-cuiaba.htm>. Acesso em: 12
ago. 2014.

DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS; CENTRAL


ÚNICA D OS TRABALHADORES. Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha – dossiê sobre
o impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir igualdades de direitos. São Paulo:
CUT, 2011.

DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICAS E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. O processo


de terceirização e seus efeitos sobre os trabalhadores no Brasil. (Relatório). Brasília, DF, 2003. 101 p. Disponível
em: <www.dieese.org.br>. Acesso em: 21. jul. 2014.

DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICAS E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. Terceiri-


zação e morte no Trabalho: um olhar sobre o setor elétrico brasileiro. Estudos e Pesquisas, n. 50, mar. 2010.
Disponível em: <www.dieese.org.br>. Acesso em 26 jul. 2014.

DRUCK, Graça; FILGUEIRAS, Vítor. A epidemia da terceirização e a responsabilidade do STF. Revista do TST,
Brasília, v. 81, p. 150-161, jul./set. 2014.

FARIAS, Elaíze. Andrade Gutierrez enfrenta ação do MPT por acidentes de trabalho. Repórter Brasil, [online],
4 abr. 2014. Disponível em: <http://reporterbrasil.org.br/2014/04/andrade-gutierrez-enfrenta-acao-do-mpt-
-por-acidentes-de-trabalho/>. Acesso em: 12 ago. 2014.

FIGUEIREDO, Marcelo. A face oculta do ouro negro: trabalho, saúde e segurança na indústria petrolífera
offshore Bacia de Campos. Niterói: 2012, Editora da UFF.

FILGUEIRAS, Vítor Araújo. Terceirização e os limites da relação de emprego: trabalhadores mais próximos da
escravidão e morte. [online], 15 ago. 2014b. Disponível em: <http://indicadoresderegulacaodoemprego.blogs-
pot.com.br/>. Acesso em: 16 ago. 2014.

FUNCIONÁRIO morre em Arena do Grêmio; empresa lamenta com nota. Lancepress, [online], 24 jan.
2013. Disponível em: <http://www.lancenet.com.br/gremio/Funcionario-Arena-Gremio-Empresa-lamen-
ta_0_853114744.html>. Acesso em 12 ago. 2014.

FUNDAÇÃO COMITÊ DE GESTÃO EMPRESARIAL [website]. Rio de Janeiro, [atualizado em 2014]. Dispo-
nível em: <http://www.funcoge.org.br/>. Acesso em: 5 set. 2014.

FUNDAÇÃO COMITÊ DE GESTÃO EMPRESARIAL. Relatório de estatísticas de acidentes no setor elétrico


brasileiro. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <http://www.funcoge.org.br>. Acesso em: 5 ago. 2014.

GIL, Telma Fernandes Barreto Nuevo. Impactos da reestruturação produtiva à saúde e à segurança: percepções
de petroleiros em São Paulo. 2000. 146 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)–Universidade Estadual
de Campinas, Campinas, 2000.

261
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

JOVEM que morreu em desabamento no Litoral Norte é velado em Salvador. G1, [online], 14 fev. 2013. Dispo-
nível em: <http://g1.globo.com/bahia/noticia/2013/02/jovem-que-morreu-em-desabamento-no-litoral-norte-
-e-velado-em-salvador.html>. Acesso em: 16 ago. 2014.

LAVIERI, Danilo. Operário do Itaquerão não resiste a ferimentos e morre no hospital. UOL, [online], 29 mar.
2014. Disponível em: <http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2014/03/29/operario-do-itaquerao-
-nao-resiste-a-ferimentos-e-morre-apos-queda.htm>. Acesso em: 12 ago. 2014.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1996. v. 1, p. 405.

OPERÁRIO da Arena do Grêmio morre atropelado, e colegas protestam com incêndio. ESPN.com.br, [online],
3 out. 2011. Disponível em: <http://espn.uol.com.br/noticia/218114_operario-da-arena-do-gremio-morre-
-atropelado-e-colegas-protestam-com-incendio>. Acesso em: 12 ago. 2014.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção n. 111. Conferência Internacional do


Trabalho, 42., 15 jun. 1960, Genebra.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção n. 155. Conferência Internacional do


Trabalho, 67., 11 ago. 1983, Genebra.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Perfil do trabalho decente no Brasil: um olhar sobre


as unidades da federação. (Relatório).  Brasília, 21 maio 2012. Disponível em: <www.oit.org.br>. Acesso em:
12 ago. 2014.

PALMEIRA SOBRINHO, Zéu Palmeira. Reestruturação produtiva e terceirização: o caso dos trabalhadores
das empresas contratadas pela Petrobras no RN. 2006. 259 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais)–Universi-
dade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2006.

PARREIRAS, Mateus; RIBEIRO, Luiz; CASTRO, Grasielle. Trabalho escravo no Brasil agora é terceirizado.
Jornal Estado de Minas, [online], 14 maio 2013. Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/econo-
mia/2013/05/14/internas_economia,386873/trabalho-escravo-no-brasil-agora-e-terceirizado.shtml>. Acesso
em: 29 jul. 2014.

PRADO, Marcelo. Operário morto em acidente na Arena Palestra será enterrado na Bahia. Globo Esporte, [on-
line], 16 abr. 2013. Disponível em: <http://globoesporte.globo.com/futebol/times/palmeiras/noticia/2013/04/
operario-morto-em-acidente-na-arena-palestra-sera-enterrado-na-bahia.html>. Acesso em: 12 ago. 2014.

PYL, Bianca. Terceirizado está mais sujeito a acidente de trabalho, diz MTE. Repórter Brasil, [online], 26 abr.
2012.Disponível em: <http://reporterbrasil.org.br/2012/04/terceirizado-esta-mais-sujeito-a-acidente-de-tra-
balho-diz-mte/>. Acesso em: 11 ago. 2014.

PYL, Bianca. Trabalhadores são escravizados na construção de pedágio. Repórter Brasil, [online], 3 dez. 2009a.
Disponível em: <http://reporterbrasil.org.br/2009/12/trabalhadores-sao-escravizados-na-construcao-de-pe-
dagio/>. Acesso em: 4 set. 2014.

RUOSO JR. Anselmo Ernesto. A terceirização e os acidentes de trabalho no setor petroleiro. In: SEMINÁRIO
TERCEIRIZAÇÃO NO BRASIL, 1., 14-15 ago. 2014, Brasília, DF.

SILVA. Luís Geraldo da. Os acidentes fatais entre os trabalhadores contratados e subcontratados do setor
elétrico brasileiro. Estudos do Trabalho, ano VI, n. 12, 2013. Disponível em: <www.estudosdotrabalho.org>.
Acesso em: 26 jul. 2014.

262
TERCEIRIZAÇÃO: MORTES E MUTILAÇÕES DE TRABALHADORES NOS SETORES ELÉTRICO, PETROLEIRO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL

SINDICATO INTERMUNICIPAL DOS TRABALHADORES NA INDÚSTRIA ENERGÉTICA DE MINAS


GERAIS [website]. Belo Horizonte, [atualizado em 5 set. 2014]. Disponível em: <http://www.funcoge.org.br/>.
Acesso em: 5 set. 2014.

SORANO, Vitor. Governo cobra menos por acidentes de trabalho. Portal IG, [online], 26 fev. 2014. Disponível
em: <http://economia.ig.com.br/2014-02-26/governo-cobra-menos-de-empresas-por-acidentes-de-trabalho.
html>. Acesso em: 12 ago. 2014.

SOUZA, Carlos Augusto de. Análise de acidentalidade de trabalho em indústrias de processo contínuo: estudo
de caso na Refinaria de Duque de Caxias. 2000. 106 f. Dissertação (Mestrado em Segurança e Saúde no Traba-
lho)–Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2000.

TRAGÉDIA na Arena Corinthians: estruturas desabam e matam dois. Globo Esporte, [online], 27 nov. 2013.
Disponível em: <http://globoesporte.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/2013/11/acidente-na-are-
na-corinthians.html>. Acesso em 12 ago. 2014.

263
CAPÍTULO 11
O AMANHECER DA REESTRUTURAÇÃO
PRODUTIVA: OS PROGRAMAS DE
METAS E O RECRUDESCIMENTO
DOS RISCOS PSICOSSOCIAIS1 NO
SETOR BANCÁRIO

Luciana Veloso Baruki

1. INTRODUÇÃO

A análise das consequências advindas do regime de acumulação flexível na


saúde do trabalhador passa obrigatoriamente por uma compreensão da crise es-
trutural pela qual passou o capitalismo em sua vertente mais acentuada, a saber: a
partir de 1973. A ofensiva desse sistema de produção veio tomar forma com a bus-
ca de alternativas capazes de fazer com que os níveis de acumulação retornassem.
Surgem assim as novas formas de gestão e controle do trabalho, com o intuito de

1 Segundo a Agência Européia para a Segurança e Saúde no Trabalho (2014), os riscos psicosso-
ciais decorrem de deficiências na concepção, organização e gestão do trabalho, bem como de
um contexto social de trabalho problemático, podendo ter efeitos negativos a nível psicológico,
físico e social tais como stress relacionado com o trabalho, esgotamento ou depressão. Eis alguns
exemplos de condições de trabalho conducentes a riscos psicossociais: cargas de trabalho exces-
sivas; exigências contraditórias e falta de clareza na definição das funções; falta de participação
na tomada de decisões que afetam o trabalhador e falta de controlo sobre a forma como executa
o trabalho; má gestão de mudanças organizacionais, insegurança laboral; comunicação ineficaz,
falta de apoio da parte de chefias e colegas; assédio psicológico ou sexual, violência de terceiros.

265
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

ampliar a exploração da força de trabalho, através da chamada mais-valia relativa


(inovação tecnológica) e da mais-valia absoluta (ampliação do ritmo de trabalho).
O presente artigo é uma proposta de problematização da questão do assé-
dio moral institucionalizado que ocorre hodiernamente nos bancos brasileiros.
O tema representa um desafio e a questão já não é exatamente uma novidade, no
entanto, ainda é preciso avançar mais no enfrentamento deste problema, tendo
em vista que a fila de adoecidos não cessa de aumentar.
Os riscos psicossociais e o stress relacionado com o trabalho representam uma
das questões que mais desafios trazem em matéria de saúde e segurança no tra-
balho. O impacto na saúde de trabalhadores, nas organizações e na economia de
modo geral é de magnitude enorme. Adoecimentos, dias de trabalho perdidos,
desajustamento social, dentre diversas outras questões fazem parte do dia-a-dia
do trabalhador que se vê exposto a um ambiente de trabalho permeado por velhos,
mas sobretudo por “novos” riscos. Tudo que diz respeito à saúde mental é fonte
de incompreensão e estigmatização. Todavia, a abordagem destes problemas sob o
enfoque organizacional e não sob o ponto de vista individual sugere que tais riscos
possam ser controlados como qualquer outro tipo de risco relacionado à saúde e
segurança nos locais de trabalho.

2. A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NO SETOR BANCÁRIO

No final da década de 60, o regime de acumulação fordista encontrava-se em


declínio. As empresas começavam a apresentar perdas de lucros considerável, o
que veio se somar à crise do petróleo e ao aumento das taxas de juros, em meados
da década de 70. A diminuição de investimentos logo começou ter reflexo no em-
prego e na renda. O sistema capitalista passou então a ser alvo de questionamen-
tos. É nesse contexto que surge a acumulação flexível, como forma de superação,
uma vez que o paradigma toyotista/fordista dava sinais de não mais funcionar.
O esteio da chamada acumulação flexível se encontra na “ flexibilidade dos
processos de trabalho, dos mercados, dos produtos e padrões de consumo” (HAR-
VEY, 1995, p.140). O neoliberalismo e a soberania do mercado faz com que o pro-
cesso de trabalho comece a sofrer profundas transformações já na década de 80

266
O amanhecer da reestruturação produtiva: os programas de metas e o recrudescimento dos riscos psicossociais no setor bancário

nos países tidos à época como de primeiro mundo, o que veio ocorrer uma década
mais tarde no Brasil.
A reestruturação dos processos produtivos no setor bancário teve início há
duas décadas. Segundo Pochmann (2010, p.37) “a estrutura bancária brasileira so-
freu três importantes alterações desde a adoção do receituário neoliberal na década
de 1990”. A primeira alteração proposta pelo autor estaria relacionada a um mo-
vimento que pregou o esvaziamento do papel do Estado na regulação e controle
das atividades e dos serviços bancários. Vinte anos depois, já no final da década
de 90, sociólogos do trabalho e estudiosos do tema reconheciam que se tratava de
um fenômeno ainda não consolidado, isto é, que ainda se encontrava em franco
desenvolvimento (LARANGEIRA, 1997, p.129).
Sob o argumento de que o enfraquecimento do Estado levaria a um fortale-
cimento do setor privado nacional, teve início o processo de privatizações. Em
1996, o Brasil possuía 32 bancos públicos passando a ter apenas 13 bancos nessa
condição e em funcionamento no ano de 2007. Em 1996, existiam 157 bancos
privados no Brasil, número este que passou a ser de 87 em 2007. A diminuição de
bancos públicos e privados nacionais foi acompanhada pelo aumento da presença
de instituições privadas estrangeiras.
Ao contrário da diminuição de bancos públicos e privados nacionais, verifica-
-se ter ocorrido o aumento de instituições privadas estrangeiras. Em cerca de 11
anos, observa Pochmann (2010, p.37), “a presença destas passou de 41 para 56,
levando o país a depender em mais de 1/4 de todas as operações de crédito das
instituições financeiras multinacionais”. O fato é que a oferta de crédito por parte
de bancos estrangeiros, até o início da década de 90, não excedia os 10%. Assim, é
possível concluir que “a experiência neoliberal de privatização do setor público bra-
sileiro implicou, por consequência, em um decréscimo do setor privado nacional”
(POCHMANN, 2010, p.37).
A segunda alteração importante diz respeito ao intenso processo de concen-
tração bancária ocorrido nas últimas décadas. Além da diminuição do número
de bancos em atividade no Brasil (de 230 em 1996 para 156 instituições em 2007),
85% da quase totalidade do crédito no Brasil concentrou-se em apenas 20 bancos.
“Com tão poucos controlando a oferta de crédito, a competição interbancária foi
se tornando cada vez mais imperfeita. O resultado não poderia ser outro, com a

267
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

expansão dos lucros cada vez mais potencializados pela prática oligopolista de mar-
gens crescentes2” (POCHMANN, 2010, p.37).
Em última análise, a terceira alteração principal na estrutura bancária iden-
tificada por Pochmann (2010, p.37) “encontra-se associada às suas implicações no
processo de exclusão social. Ou seja, as maiores dificuldades de tornar a qualidade
e a quantidade dos serviços bancários de fato um direito pleno de todos os brasilei-
ros”. Em que pese a modernização notória ocorrida nos serviços bancários, com
importantes avanços tecnológicos, teria havido uma forte diminuição da quanti-
dade de agências bancárias, especialmente nas regiões e municípios mais pobres.
Segnini (1999) destaca três aspectos que marcaram a reestruturação produ-
tiva no setor bancário (o que seria confirmado pela pesquisa de outros autores
como Grisci e Bessi (2004) que acompanharam o desenrolar do fenômeno nos
anos 2000): aumento do desemprego, precarização do trabalho e intensificação do
ritmo laboral. Em todo caso, o que importa ressaltar é que o impacto da reestru-
turação produtiva na organização do trabalho bancário foi de enorme magnitude.
Os trabalhadores remanescentes tiveram que se adaptar à nova organização
prescrita e lograr êxito em compensar a carga de trabalho daqueles que foram
demitidos. O medo crescente de perder o emprego fez com que os trabalhadores
submetessem-se voluntariamente às novas exigências (REGO, 2011, p.55). É a par-
tir do ano 2000, no entanto, que os programas de metas começam a configurar
o que a doutrina chama de straining ou gestão por stress, tendo em vista que a
pressão para atingir metas a qualquer custo se torna uma realidade.
Em tempo, cabe ressaltar ainda que a reestruturação produtiva continua. É
bem verdade que os processos gerenciais no âmbito bancário passou por uma re-
visão com a inclusão dos programas próprios de metas, mas a verdade é que existe
ainda outro movimento em curso: está sendo colocada em prática uma reestrutu-
ração com o intuito de diminuir funcionários.
Portanto, o amanhecer da reestruturação produtiva iniciada nos anos 90 tal-
vez representa um acirramento do processo lá iniciado. Isto porque a reestrutu-
ração que está em curso nesse momento não passa apenas pela automatização de

2 “Quando se comparam os preços das operações de crédito realizadas por bancos que operam no
Brasil e também no exterior, percebe-se que o usuário nacional pode pagar quase dez vezes mais
pelo mesmo serviço existente em outras praças bancárias do exterior, segundo estudo do Ipea”
(POCHMANN, 2010, p.37).

268
O amanhecer da reestruturação produtiva: os programas de metas e o recrudescimento dos riscos psicossociais no setor bancário

muitas atividades, mas também por uma redistribuição do trabalho. Essa redis-
tribuição significa que a mesma quantidade de trabalho ou uma quantidade de
trabalho maior ainda será realizada por menos pessoas. Esse aumento do trabalho
significa também não apenas um aumento do desgaste mental, mas também do
trabalho em si e do próprio esforço físico. Ficou para trás o tempo em que o ge-
rente tinha um cargo específico e funções específicas. Essa figura hoje acumula
tarefas as mais diversas, inclusive administrativas.

3. A GESTÃO EM INSTITUIÇÕES VAREJISTAS E O DISCURSO


IDEOLÓGICO

Horst et al. (2013, p.14) afirmam que “as políticas de gestão de pessoal, como
dispositivos operacionais, têm a função de interiorizar certas condutas e princí-
pios que as legitimam”. Dessa forma, os nomes dados a programas utilizados pelas
instituições bancárias para gerenciar pessoas e resultados estão intrinsecamente
ligados à ideologia que pretende mascarar o conflito de interesses histórico exis-
tente entre o capital e o trabalho. Assim os bancos desenvolveram rituais com a
finalidade de replicar esta ideologia. Os dispositivos operacionais se encarregam
da difusão de idéias que a instituição pretende incutir em seus empregados, os
quais propositadamente prefere chamar de “colaboradores”.
A propósito, o termo “colaborador” sugere exatamente esta distorção, uma
vez que tenta fazer parecer que existe uma parceria entre o banco e o empregado,
quando, na verdade, o que existe é uma relação de emprego, isto é, de venda da for-
ça de trabalho, nos exatos termos da CLT, e com todas as implicações que este tipo
de vínculo atrai. O pensamento de Martins (2012, p. 284) vem ao encontro desta
argumentação à medida que este autor reconhece que “por trás da categoria cola-
borador subjaz um conjunto de valores que tenta ser transmitido ao trabalhador”.
Ao examinar o discurso organizacional atual, o sociólogo conclui ser este um ins-
trumento de controle ideológico e psicossocial que tem por finalidade descons-
truir a identidade social e influenciar a forma de agir e sentir dos trabalhadores.
Exemplos de dispositivos operacionais que ao mesmo tempo interiorizam
condutas e princípios que as legitimam são alguns dos bordões utilizados pelos
bancos. “Nosso jeito de fazer”; “todos pelo cliente”; “paixão pela performance”;

269
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

“liderança ética e responsável”; “craques que jogam para o time”; “foco na inova-
ção e inovação com foco”; “processos servindo pessoas”; “ágil e descomplicado”;
“carteirada não vale”; “brilho nos olhos”; “sonho grande”, apenas para citar alguns
(ITAÚ-UNIBANCO, 2014). Ao mesmo tempo em que esses bordões são difun-
didos, a apregoada abertura participativa é, na prática, inexistente, à medida em
que se dá apenas nos níveis de informação, recomendação e consulta facultativa e
obrigatória a um ombudsman, por exemplo.
A verdade é que não há influência do trabalhador nos processos de avaliação
que influenciam a sua produção e portanto suas condições de trabalho, pois ao
mesmo tempo em que se exige a capacidade de realizar diagnósticos e tomar deci-
sões, o trabalhador é engessado numa organização de trabalho rígida representa-
da pelos programas próprios ou programas de remuneração que são desenhados
de forma descolada da realidade e, não raras vezes, descolada inclusive dos princí-
pios éticos que devem reger as relações de consumo (IDEC, 2015).
Não é incomum que o bancário se veja às voltas com o conflito ético diante da
necessidade de atingir metas. A venda de produtos de previdência para um idoso,
ou ainda a venda de um seguro de empréstimo sem que o cliente seja informado
de que o seguro não é obrigatório são exemplos de situações que ocorrem todos os
dias nas diversas agências bancárias existentes no Brasil.
Apesar de se tratar de um setor da economia que não passa por dificuldades e,
ainda que tais práticas configurem infração ao Código de Defesa do Consumidor,
uma vez que este diploma proíbe ao fornecedor “valer-se da ignorância de uma
pessoa para vender-lhe produto ou serviço” (art. 39, IV), o fato é que estas condutas
estão disseminadas e são incentivadas por muitos gerentes. Ainda, não raras ve-
zes, empregados que ousam manter seus princípios éticos e valores apresentando
assim resultados menores do que o de colegas que desistem de fazê-lo, passam a
ser perseguidos por seus pares e superiores.

4. OS PROGRAMAS DE METAS NO SETOR BANCÁRIO: O ASSÉDIO


INSTITUCIONALIZADO PELA GESTÃO POR STRESS

A atividade bancária não é uma atividade essencialmente comercial. Dentre


as funções típicas de um bancário poderiam ser destacadas: atender bem o cliente,

270
O amanhecer da reestruturação produtiva: os programas de metas e o recrudescimento dos riscos psicossociais no setor bancário

realizar abertura de contas, responder a e-mails dos clientes, tentar evitar que o
cliente retire a conta do banco (retenção) e também vender produtos.
É fato que o bancário está acostumado a vender produtos. Faz parte da rotina
e do dia-a-dia desta categoria há muito tempo. No entanto, a distorção instala-
da no setor parece residir exatamente na avaliação de desempenho focada quase
que exclusivamente no fator “vendas”. E isto não é razoável, sobretudo quando a
exigência em relação às metas é exagerada, e quando a atividade apresenta outras
demandas que consomem tempo e esforço.
Os programas próprios de metas têm sido cada vez mais adotados pelos ban-
cos de varejo. Os maiores expoentes deste tipo de programa talvez sejam o SINER-
GIA, do Banco do Brasil e o AGIR (AGIR – Ação Gerencial Itaú Pró-Resultados),
do Itaú-Unibanco. Tratam-se de programas gerenciais muito parecidos. Por meio
de um modelo de gestão que denominam meritocrático essas instituições impõem
aos funcionários longas jornadas de trabalho com programas de remuneração que
não levam em conta nem a qualidade de atendimento aos clientes nem as condi-
ções de trabalho. Nesses programas há um cunho político e ideológico neoliberal
e uma forte intensificação da disciplina do trabalho. Dessa forma, não apenas a
vida laboral mas também a vida pessoal dos bancários é atingida.
Alguns aspectos merecem ser pontuados no que diz respeito a esses progra-
mas de metas. O primeiro deles é que existem metas que não dependem do ban-
cário. Se por alguma razão faltam dois caixas em uma agência e o banco não
consegue repor esses empregados as reclamações que sobrevierem em razão de
tais ausências não serão sopesadas com o fato de que havia um contingente menor
de caixas.
Um segundo exemplo diz respeito aos caixas eletrônicos em agências bancá-
rias. Se por acaso ocorrerem problemas técnicos e o gerente, mesmo ligando para
o departamento responsável, não receber pessoal qualificado para manutenção,
as reclamações de clientes que decorrerem deste fato serão computadas de forma
negativa na pontuação, ainda que se trate de questão totalmente alheia à esfera de
ingerência do gerente. Situações como esta não são levadas em conta. Há, portan-
to, um sentimento de injustiça e este sentimento de injustiça fixa bases para que
se tenha um terreno fértil onde brota o assédio organizacional e o adoecimento.
Um segundo ponto que deve ser falado é que em alguns bancos as metas fun-
cionam como uma “miragem”. Isto porque as regras do jogo mudam quando o
termo de avaliação está próximo, isto é, quando as metas já foram ou estão sendo

271
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

quase cumpridas. A conclusão a que se chega é que, nestes casos, o banco presume
que se os trabalhadores estão conseguindo atingir a meta ela não estaria fixada
em seu máximo.
Além do fato de que a fixação de metas de maneira distorcida da realidade do
mercado é algo extremamente cruel do ponto de vista da organização do trabalho,
é preciso ressaltar que a mudança das regras do jogo, isto é, a mudança dos pata-
mares de meta estabelecidos previamente às vésperas de seu aferimento é simples-
mente um absurdo. Imaginando um programa cuja aferição seja semestral, não
parece razoável que no quintos mês, quando a meta estabelecida está quase sendo
atingida o valor seja aumentado de forma que até o fim do período estabelecido os
trabalhadores não consigam mesmo atingi-lo.
As avaliações individuais de desempenho são colocadas por Dejours (2008)
como um dos pilares para que se tenha chegado ao nível de adoecimento mental
relacionado ao trabalho nos dias atuais (este aspecto será abordado mais adiante).
Nesse sentido, cabe falar das metas previstas nos programas próprios do bancos
como sendo a representação maior de tal tipo de avaliação. As metas de fato não
são todas elas individuais. É verdade que existem nesses programas algumas me-
tas que são coletivas. Estas seriam, por exemplo, as metas de agências, de regiões,
de departamentos.
Ocorre que as metas coletivas acabam se transformando em metas individu-
ais porque frequentemente irá surgir uma cobrança, que pode ser sutil ou não,
por parte de supervisores e colegas (relação horizontal) sobre uma determinada
pessoa que esteja contribuindo pouco para a meta coletiva. Assim, os sinais de
que o bancário que produz pouco para a meta coletiva seria um estorvo para a
equipe e para os gestores começam a ser emitidos das formas as mais variadas. É
aí que surge o assédio moral organizacional horizontal porque se o gestor não está
preparado para lidar com a situação (maior parte dos casos3) ele passa a assediar
ou a corroborar com quem pratica assédio. Frequentemente, este gestor também
sofre assédio por parte de superiores, o que revela um assédio em cadeia que, em

3 Muitas vezes, os bancários que não conseguem cumprir as metas têm sido frequentemente desco-
missionados, nos bancos públicos, enquanto que nos bancos privados, a consequência é a perda
efetiva do emprego.

272
O amanhecer da reestruturação produtiva: os programas de metas e o recrudescimento dos riscos psicossociais no setor bancário

última análise, denomina-se straining4, assédio moral organizacional ou institu-


cional ou ainda gestão por stress.
Apoiando-se em extensa literatura Maciel et al (2007, p.119) tratam dos an-
tecedentes do assédio moral no trabalho da categoria bancária e confirmam que:

No que se refere aos antecedentes organizacionais do assédio moral, há um


consenso de que estes se originam de condições de trabalho que levam ao
estresse, tais como a pressão pela produção, gerenciamento do trabalho
através de metas e objetivos e outros aspectos geralmente relacionados ao
processo de reestruturação produtiva e a introdução de novas tecnologias
de gestão. (Einarsen, 2005; Liefooghe & Davey, 2001; Salin, 2005; Zapf,
1999, entre outros).

Os bancos procuram justificar a adoção desses programas próprios de metas


argumentando que as metas seriam apenas desafiadoras. No entanto, esse discur-
so não corresponde à verdade. Na prática, se o bancário atende bem o cliente – isto
é, se este sai satisfeito do banco após o atendimento – todavia não vendeu nenhum
produto, não fechou nenhum negócio, o banco entende que este atendimento foi
um fracasso. Em outras palavras, para o banco, essa pessoa não trabalhou, não
produziu, porque ele passa a ser avaliada apenas por isso, isto é, pelo que vende
para os clientes.
Outro ponto a ser destacado é que as metas de vendas crescem exponencial-
mente. Se a pessoa atinge, por exemplo, 100 cartões em um mês, no mês seguinte
ela tem que atingir 200 cartões, e no outro 300. As metas são definidas com o
intuito de levar as pessoas ao limite para atingir a maior lucratividade possível
mesmo que isto custe romper os limites da saúde mental e da ética. O relatório
“100% não é mais o limite: riscos psicossociais no trabalho bancário” elaborado
pelo Sindicato dos Bancários do Distrito Federal (2015), em parceria com a UNB,
após pesquisa realizada junto à categoria, mostra muito bem isso.

4 O straining é um termo atual trazido para o cenário jurídico brasileiro pela magistrada e dou-
trinadora Márcia Guedes (2010, p. 168) que estudou a questão por ocasião de suas pesquisas em
nível de doutorado na Universidade de Roma. Para referida autora, straining seria o termo mais
apropriado para se definir o que se denomina assédio moral organizacional ou institucional.

273
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

A discussão que surgiu em torno do assunto tem chegado ao Poder Judiciário


trabalhista. Ações Civis Públicas e ações individuais têm sido propostas questio-
nando exatamente esta lógica de superexploração que tem levado não apenas ao
adoecimento, mas também ao suicídio em alguns casos5. O Banco do Brasil foi con-
denado recentemente na Ação Civil Pública (ACP) nº 0001017-23.2011.5.05.0034.
A referida condenação se deu pela prática de assédio moral contra os emprega-
dos, tendo sido o montante da indenização por danos morais coletivos fixados em
R$2 milhões. Foram determinadas ainda outras medidas de reparação e estipula-
da multa de R$50 mil em caso de descumprimento de cada uma das obrigações.
A decisão é válida em todo o território nacional. A ACP fora proposta em 2011,
a partir de denúncia recebida pelo Sindicato dos Bancários do Estado da Bahia.

Durante o inquérito instaurado pelo MPT para apurar a denúncia enca-


minhada pelo Sindicato dos Bancários em 2009, ficou comprovado que a
Superintendência Regional do BB empregava condutas ofensivas à inte-
gridade moral dos empregados para aumentar o volume dos negócios do
banco, dentre as quais ameaça de perda de cargo comissionado, pressão
para prática de atos contrários a normas internas da instituição financeira,
ridicularização pública, isolamento e quebra da comunicação do trabalha-
dor com os demais empregados e colocação de apelidos depreciativos (difi-
cultador, travador de crédito, dentre outros impublicáveis). A investigação
apontou ainda que a instituição não só omitia-se perante esses fatos como
legitimava essas práticas. (REPÓRTER BRASIL, 2014).

O procurador do trabalho responsável pela propositura da ação afirmou que


“a prática do assédio moral contou com a ciência e tolerância do banco, que se reve-
lou omisso e tolerante ao processo de desestabilização moral que abalou o ambiente
de trabalho” e que os abusos psicológicos “afetaram a saúde e a autoestima dos
trabalhadores, ensejando-lhes um quadro de estresse, depressão e ansiedade, o que
os obrigou a afastar-se do trabalho para tratamento médico-psicológico” (REPÓR-
TER BRASIL, 2014).

5 Estudos mostram que há uma tentativa de suicídio por dia no setor bancário brasileiro, sendo que
dessas, uma se consuma a cada 20 dias (SANTOS, SIQUEIRA e MENDES, 2010).

274
O amanhecer da reestruturação produtiva: os programas de metas e o recrudescimento dos riscos psicossociais no setor bancário

O teor da sentença é interessante posto que determina que o banco tome me-
didas que deveriam estar sendo tomadas por todos os bancos, a saber:

...a realização de campanha interna de conscientização com distribuição de


cartilha, palestras periódicas sobre o tema a cada seis meses e pelo período
de dez anos, afixação de cartazes e criação de meios para recebimento e
processamento de denúncias sobre assédio moral. Também foi determi-
nado ao BB que publique nota nos jornais de grande circulação pedindo
desculpas aos funcionários atingidos com as práticas institucionais de co-
brança e humilhação (REPÓRTER BRASIL, 2014).

Assiste razão à ONG Repórter Brasil (2014) quando diz que:

A condenação do Banco do Brasil nessa ação põe luz ao grave problema


do assédio moral em instituições bancárias. No setor, as metas estipula-
das pela cúpula de cada banco e as práticas para forçar os empregados
a atingi-las impõem um desafio diário e muitas vezes degradante. Em
uma consulta com a participação de 37 mil trabalhadores do setor feita pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf),
66,4% reclamaram de assédio moral6 (original não grifado).

Em julho de 2014 o mesmo Banco foi condenado em 1a. Instância a pagar


uma indenização por dano moral coletivo no valor de R$ 5 milhões nos autos de
uma ação Civil Pública que corre na Justiça do Trabalho do Estado do Piauí. Mais
recentemente, ainda o Banco do Brasil foi condenado em última instância, pelo
Tribunal Superior do Trabalho, a pagar indenização por dano moral coletivo no
valor de R$ 600 mil reais. Neste último caso entendeu o Tribunal que, além de es-
tar comprovada pelos documentos juntados aos autos pelo Parquet, que o assédio

6 Este cenário motivou o senador Inácio Arruda (PCdoB-CE) a apresentar o Projeto de Lei do Se-
nado (PLS 80/2009), que pretende alterar a Lei de Licitações (Lei n.º 8.666/1993) incluindo, entre
os requisitos exigidos para habilitação de uma empresa no processo licitatório, a comprovação de
que não há registros de condenação por assédio moral contra seus empregados nos últimos cinco
anos. A matéria seguirá direto para a Câmara dos Deputados depois de passar pela CCJ, caso não
haja recurso do Plenário do Senado.

275
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

moral é uma realidade dentro do Banco do Brasil, ficou evidenciado ainda que os
casos não são investigados pela instituição.
Outra decisão interessante foi proferida em 2013, porém em sede de ação indi-
vidual em que o Itaú-Unibanco figura como réu e foi condenado por assédio mo-
ral organizacional. A decisão se baseou na constatação pelo juiz de que as metas
abusivas, as pressões constantes e as ameaças contra os empregados configuraram
assédio moral organizacional. Proferida pela 2º Vara do Trabalho de São Bernardo
do Campo, a ação foi proposta pelo Sindicato dos Bancários do ABC, em favor a
um ex-caixa da instituição. Conforme o texto da decisão:

O assédio moral flagrado no Itaú caracteriza-se pela utilização abusiva


das prerrogativas patronais, executadas de forma reiterada e camuflada,
com o objetivo de retirar a maior produtividade possível em detrimento
da saúde física, mental e social do trabalhador, gerando, na maioria das
vezes, doenças de cunho laboral [metas abusivas]. (...) O banco reclamado
imputa carga de estresse aos seus empregados por conta, única e exclusi-
va, de adoção de política organizacional voltada, primordialmente, para
o contingenciamento de custos, o que não se admite ante a lucratividade
líquida aferida pelo réu na atualidade. (...) O banco empregador abusou do
seu direito de dirigir a prestação dos serviços (artigo 187 do CC). A prova
do dano é desnecessária, sendo presumida da própria violação à personali-
dade do trabalhador”, afirma a sentença (CONTRAF, 2013). (original não
grifado)

A decisão foi emblemática e talvez até pioneira. Seu teor mostra que o Poder
Judiciário “começa a compreender essa nova forma de assédio existente no siste-
ma financeiro. Trata-se de uma gestão baseada no estresse, cuja consequência é o
adoecimento em série da categoria bancária” (CONTRAF, 2013). Há juízes que
argumentam ser “preciso aumentar o conhecimento sobre o problema, melhorando
o registro de dados, incentivando a formação de especialistas no tema, e ampliando
a divulgação de informações a respeito”, uma vez que seriam necessárias “mudan-
ças no sistema judiciário que, muitas vezes ainda fecha os olhos frente à violência
psicológica” (REPÓRTER BRASIL, 2014).
É bem verdade que os bancários ganham quando atingem as metas. No en-
tanto, a perda da saúde, seja por excesso de jornada, seja por uma baixa qualidade

276
O amanhecer da reestruturação produtiva: os programas de metas e o recrudescimento dos riscos psicossociais no setor bancário

de vida, seja pela pressão exagerada é uma realidade neste setor. Por outro lado
quando as metas não são atingidas, as consequências sobre a saúde são ainda pio-
res. Em todo caso, ao contrário do que apregoam os bancos e federações que os
representam, as metas se revelam abusivas sim, não sendo desafiadoras como pre-
tendem defender7.

5. SAÚDE MENTAL E TRABALHO BANCÁRIO: UM BREVE


DIAGNÓSTICO

Quando confrontados com os crescentes adoecimentos entre bancários os


representantes dos bancos procuram negar a relação entre o trabalho e o adoe-
cimento, em um primeiro momento. Significa dizer que tentam a todo momento
individualizar o problema, buscando fazer uma análise fundada no enfrentamen-
to individual do stress e não na organização do trabalho. Não é incomum que
diante de conflitos no ambiente de trabalho o banco tente responsabilizar o gestor
responsável de forma individual, isto é, eximindo-se de toda e qualquer responsa-
bilidade. Em geral, sempre que surge uma questão relacionada a assédio organiza-
cional, pressão por metas e etc. a primeira atitude dos bancos é tentar dizer que o
problema é um ponto isolado, isto é, uma questão própria de uma agência especí-
fica, por conta da gestão de um gerente específico, quando se sabe que o problema
é sistêmico e permeia todo o sistema de bancos de varejo brasileiros.
Outra reação por parte dos representantes dos bancos é a desqualificação
do problema. Nesses casos os problemas de saúde mental são atribuídos à glo-
balização, enquanto ente despersonalizado e incapaz de responder por qualquer
consequência. O discurso padrão passa a ser então de que hoje as pessoas estão
mais sozinhas e que o mundo está mais rápido e globalizado e por isso as pessoas
estariam todas mais pessoas sujeitas à depressão. Essas teorias são utilizadas pelos
bancos para tirar o foco da organização do trabalho bancário e das práticas noci-
vas que se tornaram lugar comum neste setor.

7 Oportuno ressaltar que o termo “desafiadoras” vem ao encontro de outros que vêm sendo utiliza-
dos na cultura corporativa com a finalidade de mascarar uma relação que é de exploração da força
de trabalho.

277
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

Os problemas de saúde mental relacionados ao trabalho são uma epidemia no


mundo ocidental. Christophe Dejours, um estudioso do tema do sofrimento men-
tal relacionado ao trabalho desde a década de 1970, classifica estas patologias em
grupos: primeiramente fala das patologias de sobrecarga (sobrecarga de trabalho
mesmo, físico e mental) como Karoshi (morte por excesso de trabalho), Burnout,
patologias musculoesqueléticas; em segundo lugar fala do stress pós traumático,
em terceiro lugar fala das patologias do assédio (isto porque a reação pessoal ao as-
sédio pode variar bastante não podendo se estabelecer uma correlação entre tipo
de assédio sofrido e patologia desenvolvida) e, em quarto lugar, das depressões,
suicídios e tentativas de suicídios.
Dejours (2008) identifica então três elementos como sendo os responsáveis
para que a relação saúde mental e trabalho tenha se deteriorado de forma tão notá-
vel. O primeiro destes elementos é a gestão pela qualidade total, por ter criado um
padrão inatingível pelos trabalhadores. O segundo elemento seria representado
pelas avaliações individuais de desempenho, por serem responsáveis pela instala-
ção de um clima organizacional muito prejudicial à saúde mental e chamado por
Dejours de chacun pour soi (cada um por si). Em uma configuração organizacio-
nal como esta os chamados mecanismos de defesa coletivos encontram-se total-
mente minados, de modo que a capacidade de resistência e mesmo a solidariedade
entre os pares deixa de existir. Por fim, um terceiro e último elemento, identifi-
cado por Dejours como responsável pela situação que hoje se vive em termos de
adoecimento mental pelo trabalho, seria a tolerância do Estado vis à vis a todas
estas transformações ocorridas nos últimos anos.
Hodiernamente o que se assiste em larga escala dentro dos bancos são práticas
que incentivam competições agressivas entre seus trabalhadores, até mesmo nas
relações sociais. Há um exagero. Os bancos de varejo brasileiros perderam a refe-
rência do razoável e isto ocorre porque não há propriamente uma competição8.
Em outras palavras, alguns poucos acabam ditando as regras não apenas no que
diz respeito às relações de consumo (preços e práticas), mas também no que diz
respeito a metas (margens de lucro) e condições de trabalho.

8 Atualmente a quase totalidade do mercado de bancos de varejo é dominada por seis bancos:
HSBC, Itaú-Unibanco, Caixa Econômica, Bradesco, Santander e Banco do Brasil. Este cenário
é muito grave tanto para o consumidor quanto para os trabalhadores porque permite que estes
bancos ditem a política no setor.

278
O amanhecer da reestruturação produtiva: os programas de metas e o recrudescimento dos riscos psicossociais no setor bancário

Não é por outra razão que há na seara bancária uma altíssima incidência de
problemas de saúde mental relacionado ao trabalho, mas também de casos de
LER/DORT. Estas últimas são doenças que sabidamente têm um componente psi-
cológico muito importante tendo em vista que a análise biomecânica do problema
das doenças osteomusculares é atualmente um paradigma superado, sendo neces-
sária uma análise do ponto de vista biopsicossocial para compreender essas lesões
que estão de fato relacionadas a uma expressão somática do sofrimento. A esse
respeito discutiu-se em outra ocasião que:

Deveras, “os modelos explicativos sobre os efeitos das demandas físicas no


sistema musculoesquelético, baseados nos conhecimentos da biomecânica,
são discutidos há mais de uma década” (FERNANDES et al., p.938), tendo
sido suas limitações reconhecidas progressivamente de modo a dar lugar a
estudos mais modernos e que se coadunam mais com os riscos psicosso-
ciais no meio ambiente do trabalho. Estes estudos mais recentes abrangem
“o estresse gerado pelas demandas psicossociais no trabalho e seu impacto
sobre o sistema musculoesquelético” (FERNANDES et al., p.938). É curio-
so notar que há quase 15 anos Borges (1999) já chamava a atenção para
a relação existente entre o sofrimento psíquico em caixas bancários e as
Lesões por Esforços Repetitivos. Chaves et al. (2004, p.47) apontam que
referido autor verificou tanto a presença quanto a associação de distúrbios
psicoemocionais e osteomusculares naquela população. Na mesma época,
também Barros e Magalhães (1999, p.61) já advertiam que “os portadores
das lesões apresentam sintomas de depressão, tais como: desânimo, baixa
autoestima, irritabilidade, incapacidade de visualizar perspectivas positi-
vas, distúrbio do sono” (BARUKI, 2014, p.504).

No caso de organizações que impõem a seus empregados metas abusivas ou


simplesmente um ritmo de trabalho alucinante, a mudança para enfrentamento
dos riscos psicossociais deve ter um caráter preventivo, a partir de mudanças na
organização do trabalho. Vale lembrar que a Norma Regulamentadora n.º 17 de-
fine no item 17.6.2 a organização do trabalho como sendo composta pelas normas
de produção, pelo modo operatório, pela exigência de tempo, pela determinação
do conteúdo de tempo, pelo ritmo de trabalho e, por fim, pelo conteúdo das tare-
fas. As decisões judiciais discutidas aqui mostram que a questão começa a ser vista

279
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

com outros olhos por parte dos magistrados. A Justiça do Trabalho, tão acostu-
mada a lidar com questões mais triviais relacionadas ao contrato de trabalho se
vê agora às voltas com ações em que a organização do trabalho se tornou alvo de
questionamentos.

6. CONCLUSÃO

A gestão por “meritocracia” realizada pelos bancos é perversa na medida que


produz muitos efeitos colaterais, tanto para aqueles que não conseguem atingir as
metas quanto para aqueles que conseguem. Só há perdedores: uns perdem no cur-
to prazo – a remuneração, o emprego, por vezes a saúde; outros perdem no médio
ou longo prazo porque suas metas vão se tornando cada vez mais altas, além de
haver uma exigência clara de que este indivíduo seja cada vez mais egoísta, que
assedie inferiores hierárquicos pelo cumprimento de metas e passe a viver uma
crise de valores.
Ao analisar as atitudes do gestor, podemos concluir que são banais, pois re-
velam o cumprimento de ordens, o cumprimento de metas. Esta é a banalidade
do mal e do sofrimento, traçando um paralelo com o julgamento de Adolph Eich-
man, um sujeito descrito por Arendt (1999) como sendo incapaz de refletir, e que
por conta dessa incapacidade de refletir foi de cabo da SS a chefe de um depar-
tamento da Gestapo responsável pelas execuções. Hannah Arendt se decepciona
com a figura de Eichman pelo fato de o mesmo não ostentar nenhuma monstru-
osidade e ter se revelado um burocrata. É nesta reflexão que ela forja o conceito
de banalidade de atos do mal e que, em última análise, é o que se assiste hoje no
contexto organizacional dos bancos.
O gestor que passa por uma crise de valores ou pelo que Sawaia (2001) deno-
mina de sofrimento ético-político, passa então a não mais refletir sobre seus atos
como forma de defesa, para se manter no emprego. O mal não é uma categoria
ontológica. Ele é político, ele é histórico: é produzido por homens e se manifesta
quando há espaço institucional para isso. A violência se torna trivial quando há
vazio de pensamento, quando não há espaço para reflexão.
Eichman não refletia sobre seus atos. Cumpria ordens porque também se
não as cumprisse outro as cumpriria em seu lugar. Era no fundo uma questão de

280
O amanhecer da reestruturação produtiva: os programas de metas e o recrudescimento dos riscos psicossociais no setor bancário

sobrevivência. Quando só se pensa em sobreviver e não há espaço para reflexão,


a banalidade do mal se instala. Refletir nesse caso significa dar vazão a toda a
pressão que traz um sofrimento ético-político: a estratégia de defesa é então não
pensar e agir como um burocrata, no entanto, o ser humano é feito para pensar
e quando o bancário imerso neste contexto pensa ele sofre e quando ele sofre ele
adoece.

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA EUROPÉIA PARA A SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO. Stress e riscos psicossociais. 2014.
Disponível em: <https://goo.gl/JDjZrm>. Acesso em: 06 mai. 2014.

ARENDT, Hannah. Eichman em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.

BARUKI, Luciana Veloso. Uma nova modalidade de riscos no meio ambiente do trabalho: a emergência dos
riscos psicossociais. In: CONPEDI/UNINOVE. (Org.). Direito do Trabalho II (Tema: Sociedade Global e seus
impactos sobre o estudo e a afetividade do Direito na contemporaneidade). 1a ed. Florianópolis: FUNJAB, 2014,
p. 487-516.

CONTRAF. Justiça condena Itaú por assédio moral organizacional em São Bernardo, 2013. Disponível em:
<http://goo.gl/DQRbVN>. Acesso em: 18 nov. 2013.

DEJOURS, Christophe. Travail, usure mentale. Bayard: Paris, 2008.

GRISCI, Carmem Ligia Iochins; BESSI, Vânia Gisele. Modos de trabalhar e de ser na reestruturação bancária.
Sociologias. Porto Alegre. Vol. 6, n. 12, p. 160-200, 2004.

HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1995.

HORST, Ana Carolina; SOBOLL, Lis Andréa Pereira; CICMANEC, Edna. Prática de gestão e controle da sub-
jetividade dos trabalhadores: a ideologia de encantamento em uma empresa de varejo. Cadernos de Psicologia
Social do Trabalho, v. 16, n. 1, p. 9-23, 2013.

IDEC (INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR). Bancos praticam venda casada ao


conceder empréstimo pessoal para o consumidor, aponta pesquisa do IDEC. 5 setembro 2014. Disponível em:
<http://goo.gl/JVKXNK>. Acesso em 10 set. 2015.

ITAÚ-UNIBANCO. Cultura Corporativa: conheça os valores e as atitudes que guiam o nosso jeito de fazer o
nosso trabalho dentro do Itaú Unibanco. Disponível em: <https://goo.gl/KDYFIW>. Acesso em 6 maio 2014.

LARANGEIRA, Sônia M.G. Reestruturação produtiva no setor bancário: a realidade dos anos 90. Educação &
Sociedade, v. 18, n. 61, p. 110-138, 1997.

MACIEL, Regina Heloisa et al. Auto relato de situações constrangedoras no trabalho e assédio moral nos

281
A HÝBRIS DE SATURNO: PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, SAÚDE DO TRABALHADOR E INVISIBILIDADE SOCIAL

bancários: uma fotografia. Revista Psicologia & Sociedade, v. 19, n. 3, 2007, p.117-128.

MARTINS, Fernando Ramalho. O Discurso Organizacional como um instrumento de controle: a (des) cons-
trução de identidades sociais em uma montadora do abc paulista. Revista Eletrônica de Ciência Administrati-
va, v. 11, n. 2, 2012.

POCHMANN, Marcio. Trajetória recente dos bancos no Brasil. Fórum, São Paulo, p. 37, 30 set. 2010.

REGO, Vitor Barros. Adoecimento Psíquico no Trabalho Bancário: da prestação de serviços à (de)pressão por
vendas. Brasília: Ex Libris, 2011.

REPÓRTER BRASIL. Ação do MPT leva Banco do Brasil a pagar R$2 milhões por assédio moral. Disponível em:
<http://goo.gl/QKm52P>. Acesso em: 10 set. 2014.

REPÓRTER BRASIL. Assédio moral e metas abusivas ameaçam saúde de bancários, 08 de janeiro de 2014.
Disponível em: < http://goo.gl/QBdXu2>. Acesso em 6 mai. 2014.

SANTOS, Marcelo Augusto Finazzi; SIQUEIRA, Marcus Vinícius Soares; MENDES, Ana Magnólia. Tentati-
vas de suicídio de bancários no contexto das reestruturações produtivas. Revista Administração Contemporâ-
nea (RAC), v. 14, n. 5, p. 925-38, 2010.

SAWAIA, Bader. O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão. In: SA-
WAIA, Bader (Org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social, v. 5, p.
97-119, 2001.

SEGNINI, Liliana Rolfsen Petrilli. Reestruturação nos bancos no Brasil: desemprego, subcontratação e inten-
sificação do trabalho. Educação & Sociedade, v. 20, n. 67, p. 183-209, 1999.

SINDICATO DOS BANCÁRIOS DO DISTRITO FEDERAL. 100% não é mais o limite: riscos psicossociais no
trabalho bancário. Brasília, 2015. Disponível em: <http://goo.gl/AYudEJ>. Acesso em 10 set. 2015.

282
Sobre o livro
Formato 15,5 x 23 cm
Tipologia Minion Pro (texto)
Raleway (títulos)
Papel Pólen 80g/m2 (miolo)
Supremo 250g/m2 (capa)
Projeto Gráfico Canal 6 Editora
www.canal6.com.br
Capa e Diagramação Erika Woelke

Você também pode gostar