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Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 3

EDITORIAL ÍNDICE

Derrotar o velho: A importância dos Movimentos Sociais


Marina Barbosa, professora da UFJF e militante do ANDES-SN 4
fazer brotar o novo F
O
avelização e o Colapso Urbano 6
MTST é um movimento popular que atua para organizar Maurilio Lima Botelho, professor da UFRRJ, co-autor de “Até o último homem”
a imensa massa de trabalhadores das periferias brasileiras.
Sim, somos um movimento de estratégia territorial em A Disputa por trás do Plano Diretor de SP
luta pela construção do poder popular! Apostamos na or- Guilherme Boulos, filósofo e psicanalista,
da coordenação nacional do MTST
9
ganização e luta para realizar as transformações necessárias em nossa
sociedade e conseguirmos respirar o ar de um mundo novo.
Uma das principais tarefas na construção do novo é derrotar o ve- Os Legados dos Megaeventos
Guilherme Simões, professor de sociologia, 10
lho. E o velho é o capital. Por isso, fazemos ocupações que enfrentam da coordenação nacional do MTST
a propriedade privada e nos solidarizamos com greves que paralisam a
produção e manifestações que ameaçam a circulação de capital. Nosso Resenha:Um Mundo em Ruínas
empenho é prático na luta de classes. André Villar, filósofo e doutor em Serviço Social, co-autor de “Até o último homem” 13
Mas entendemos que o desafio é enorme. Estamos nas ruas desde
a Comuna de Paris, derrotamos o czar na Revolução Russa e fomos Um final de semana na Ocupação Copa do Povo 14
Mirela VonZuben, jornalista; Felipe Melo, fotógrafo
guerrilheiros na Revolução Cubana e Nicaraguense. Nossa luta é his-
tórica e mundial, sabemos como ela é difícil... portanto, nossa vitória
não pode ser por acidente e nem dependendo de favores das elites, que Ensaio: a MAIOR ocupação do Mundo 18
Pablo Pascual e Amanda Perobelli, fotógraf@s
jamais hesitam em esmagar aqueles que as questionarem.
Refletindo sobre essas e outras questões ao longo de nossa trajetória
de luta que já chega perto da maioridade, chegamos à conclusão de
O Anticapitalismo do MTST
que nossas trincheiras devem se ampliar. Mais do que isso: queremos
Débora Goulart, cientista social, professora na UNESP/Marília,
militante da Conspiração Socialista
22
encarar o desafio de unir prática e teoria, comumente separadas na luta
anticapitalista. O Programa Mais Médicos 25
A Revista Territórios Transversais é parte desse esforço. Com Felipe Monte Cardoso, médico de família,
militante do Fórum Popular de Saúde
ela, nosso objetivo é apresentar alguns de nossos acúmulos; debater te-
mas pertinentes à questão urbana; abrir espaços para a produção teórica
As Contradições Urbanas da Capital Federal
de apoiadores e aliados; produzir reportagens e entrevistas sobre acon- Francisco Carneiro de Filippo, economista, militante do PSOL/DF 28
tecimentos relevantes; sempre numa perspectiva crítica. Enfim, ajudar Érika Lula de Medeiros, advogada, militante do PSOL/DF
a debater e entender os rumos do capitalismo contemporâneo e fazer
ecoar o barulho das metrópoles e suas forças de resistência. Drama do Povo no Despejo da TELERJ
Para isso, criamos este espaço que, a princípio, será semestral. For-
Henrique Sater, médico, do setor 30
de comunicação e da coordenação estadual do MTST/RJ
mulação crítica, expressão política e artística e jornalismo independente
a serviço da luta social. O Poeta CHE GUEVARA
Não foi fácil. Além das dificuldades financeiras, nossa equipe não Jeff Vasques, poeta, militante do PCB 32
conta com profissionais do ramo editorial.
Fundamental: sem a solidariedade de mais de cem doadores, sejam
indivíduos ou coletividades, essa empreitada não seria possível, por isso, Conto: UM NEGÓCIO
Pedro Rocha, filósofo e professor da UNIRIO. 34
nosso mais profundo agradecimento. Devemos agradecer também ao
nosso extraordinário conselho editorial, formado por militantes, inte-
lectuais e personalidades que nos apóiam e apostam em iniciativas como Ilustrações
esta. Por fim, nenhum sentido haveria sem a existência e resistência das Batata
milhões de trabalhadoras e trabalhadores que vivem o massacre diário
do desenvolvimento capitalista nas cidades brasileiras. É para esse povo Capa
Chrysantho Figueiredo e Henrique Sater
que dedicamos o primeiro número da nossa revista.
Conselho Executivo Territórios Transversais
Quadrinhos/Charges
João da Silva, Nico e Carlos Latuff

quem faz e ajuda a fazer


Conselho Editorial: César Órtega • Débora Cristina Goulart • Eblin Joseph Farage • Elizete Menegat • Francisco
Miraglia Neto • Maria Orlanda Pinassi • Marildo Menegat • Marina Barbosa Pinto • Marina Monteiro de Castro • Neil
Larsen • Nilo Batista • Paulo Eduardo Arantes • Roberta Lobo • Valério Arcary • Terry Eagleton

Conselho Executivo: Clarice Salles Chacon • Felipe Brito • Guilherme Simões• Henrique Sater • Pedro Rocha de Oliveira
Tiragem: 1000 exemplares. Data de fechamento da edição: 29 de maio de 2014. Para assinar: www.mtst.org/territorios • facebook.com/mtstbrasil • territorios@mtst.org
4 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

Movimentos sociais e estratégia de classe


Marina Barbosa Pinto

fim de atividades laborais, desemprego estrutural,

C
precarização de contratos de trabalho, perda de
onversar sobre forças que determina a quadra defensiva da ação direitos sociais e trabalhistas, redefinição do pa-
os movimentos da classe em âmbito mundial, visto que prevalece pel dos servidores públicos no âmbito dos estados
sociais na atuali- a luta para manter conquistas básicas, para tentar nacionais a partir da reconfiguração do papel do
dade exige reco- perder menos de seus direitos já consolidados, Estado frente à questão social, redução das políti-
nhecê-los como sujeitos sociais uma vez que o avanço ideológico, político, mili- cas sociais, medidas assistencialistas, entre outras.
que ao mesmo tempo são pro- tar das forças capitalistas em todo o território pla- Cabe destacar que esse quadro, por não se
duto e produzem a conjuntu- netário se consolidou nas duas últimas décadas. circunscrever somente à economia e à política,
ra na qual se manifestam. Para A etapa atual da acumulação do capital se as- invade a totalidade da vida social, acarretando a
decifrá-los em sua integralidade senta no processo de superexploração da classe conformação de uma nova sociabilidade.
há que identificar suas deter- trabalhadora como uma expressão intrínseca à Uma racionalidade de caráter pragmático e
minações estruturais e, assim, nova configuração capitalista. Podemos perce- produtivista alça a competitividade, a eficácia e a
entender a correlação de forças ber isso de modo mais nítido e cruel na privação rentabilidade ao patamar de únicos critérios váli-
entre estes atores do processo econômica, social, política e cultural a que está dos para orientar as análises e decisões sobre a vida
histórico e também os sujeitos submetida a maioria da população, enquanto em sociedade, contribuindo para acarretar forte
destas ações. o desenvolvimento econômico, tecnológico e dessolidarização, expressa no culto ao individu-
O sistema capitalista tem, científico proporciona condições excelentes de alismo, no cultivo da concepção fragmentária
nas duas últimas décadas, em bem-estar a poucos indivíduos. do social, na desqualificação da coisa pública, na
resposta à sua crise, intensifica- Trata-se de um momento de crise e, em tais descrença no potencial emancipatório das classes
do sua ofensiva sobre o trabalho momentos, as contradições constitutivas se agu- trabalhadoras.
e sobre os processos de repro- dizam, provocando uma reorganização das re- Neste quadro de superexploração da classe
dução social. Este cenário con- lações sociais e de produção. Na atualidade, tal trabalhadora e nova sociabilidade marcada pelo
densa as reações de diferentes reorganização ocorre no sentido da intensifica- pragmatismo e pelo individualismo é que se põe
segmentos sociais em diferen- ção dos processos de mundialização do capital e em xeque a relação entre as lutas imediatas e o
tes formas organizativas, des- reconversão produtiva, e do desdobramento dos projeto estratégico de emancipação da classe. Este
de os setores mais clássicos dos pressupostos organizativos neoliberais nas rela- questionamento tem dois matizes: um que des-
trabalhadores em suas formas ções de trabalho: a reestruturação das políticas qualifica os movimentos sociais e seu potencial
também clássicas (sindicatos e sociais a partir de sua privatização e desconfigura- para organizar a reação dos trabalhadores, por-
partidos), como diferentes ex- ção das mesmas como materialização de direitos que questiona a classe como agente possível de
periências que inovam nas for- sociais coletivos, as quais dão sequência às reações organizar-se enquanto sujeito autônomo. Nessa
mas organizativas e de luta e agregam os traba- da classe dominante à crise de acumulação e ex- concepção, o conflito é deslocado para o âmbito
lhadores, desempregados, juventude em torno do pansão do capital e se traduzem para a classe tra- individual concentrando-se na ação solitária do
direito à vida expressos na luta pela saúde, educa- balhadora com a precarização de suas vidas. individuo que será o responsável pelo seu fracasso
ção, transporte, moradia, lazer, democracia. Em Nesse contexto, é reservado à classe traba- ou vitória no contexto da disputa pelo espaço na
síntese: no direito à vida na cidade plenamente. lhadora um recrudescimento da exploração por sociedade e o máximo de espaço organizativo são
Movimento social é manifestação política re- meio de novas configurações nas relações de as instituições de caráter não governamentais que
alizada por sujeitos sociais para enfrentar as con- compra e venda da sua força de trabalho, bem cumprem papel associativo ou de solidariedade
tradições político-sociais resultantes do sistema como uma destruição permanente do arcabouço civil destituído do caráter de classe. O segun-
organizado por oposição de classe, sua existência jurídico e social de reconhecimento e efetivação do matiz é a ressignificação destes movimentos
no cenário político é expressão do processo his- de direitos concernentes à sua reprodução. Des- que, em sua maioria, assumem o papel de atuar
tórico e social, e não um acidente ou uma ação tacam-se nestas estratégias do capital: a) a violên- na perspectiva de organizar a classe para ajustá-la
de grupos que têm por definição um comporta- cia institucional, ou a dominação mantida pela ao processo de acumulação em curso, destituindo
mento vândalo. coerção mais extrema; b) a contenção da reação o processo de ação do seu caráter conflituoso e
A resistência ocorre em âmbito internacional, pela assistência; c) o investimento ideológico nas marcando assim este espaços como um lugar de
com levantes por democracia, greves por direitos, propostas de empreendedorismo, empregabilida- constituição de consenso entre patrões e empre-
enfrentamento ao desemprego, reações à ação do de, inserção social, responsabilidade social, entre gados, Estado e população.
grande capital, defesa do meio ambiente, por po- outras, na maior parte das vezes feito diretamente De fato, o determinante deste processo, o que
líticas públicas universais, dentre outras bandeiras. pelos grandes grupos capitalistas, através de fun- unifica os dois matizes e os classifica como iguais
Tratam-se de respostas massivas da classe traba- dações privadas, ONGs e entidades empresariais. na diferença, é a perda da referência no projeto es-
lhadora aos cortes de direito em meio às políticas Profundas mudanças ocorrem e desnudam o tratégico de ruptura com a ordem estabelecida, o
de “austeridade”. Mas este cenário de reação ain- grau de exploração da força de trabalho: restrição que faz com que a ação dos movimentos tenda
da não foi suficiente para inverter a correlação de de postos de trabalho, diversificação de atividades, a se restringir às lutas presas em suas amarras re-
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 5

formistas no enfrentamento com o capital. esse a unidade institucional e societária entre trabalha- e direcionamento de lutas e reivindicações para se
sentido, o processo de organização e politização da dores, patrões e estado. manter os empregos e não por melhorias nas con-
classe trabalhadora – e daqueles que se caracteri- Por fim, resistiram tomando como referência dições destes. Por outro lado, b) a ilusão de que
zam como “sem-” terra, teto, etc.– acaba dissocia- para a construção deste processo a democracia, aquele governo era o governo da classe, e portanto
do da experiência de enfrentamento, organização condição para o envolvimento dos trabalhadores suas diretrizes estariam a favor de seus interesses, o
de base, desafio à patronal e ao aparato repressivo nas suas entidades, nos seus caminhos de luta e que gerou um desarme político e uma “confusão”
estatal, e da unidade com os demais trabalhadores. no projeto para o qual a ação de sua organização ideológica como se não houvesse mais distinção
O que tai experiências exigem é justamente a ação corporativa irá se direcionar. Isso é o que permi- de classes, como se todos (trabalhadores e patrões)
para além do imediato, e na direção da contribui- tirá a participação dos indivíduos na condição de pertencessem ao “mesmo lado”. Podemos até
ção estratégica para a organização da classe na luta sujeitos sociais coletivos que se unificam pela par- afirmar que viemos da mesma matéria – as lutas
pela sua emancipação. O capitalismo, neste mar- ticularidade de serem vendedores de sua força de da classe trabalhadora deste país. Porém, na mistu-
co, é assumido como única verdade possível para trabalho – único bem que os permite lutar pela ra que forjou o seu produto, aquele governo des-
organizar a vida em sociedade, portanto, caberia sobrevivência na sociedade capitalista. de seu inicio, era outra coisa, não era mais repre-
aos sujeitos submeterem-se e tentar viver o “me- A junção destes dois princípios – indepen- sentante dos interesses dos trabalhadores. Isso fez
nos pior” no contexto da ordem. dência e autonomia – propiciará que os espaços com que os principais organismos da classe, em
Nesse árido terreno de reorganização da classe, organizativos e de ação de fato representem os in- especial sua principal central sindical e seu maior
um conjunto de entidades sindicais e movimentos teresses dos que vivem do seu trabalho e que esco- partido, assim como os partidos aliados e repre-
dos trabalhadores resistiram à avalanche que reor- lheram esse lugar para atuar socialmente. Também sentantes de segmentos importantes da classe, as-
denou a ação dos movimentos sociais. Resistiram dará vitalidade à capacidade de reação frente ao sumissem um papel de correia de transmissão do
mantendo sua ação estruturada na perspectiva processo de ação da classe dominante, pois, com a governo no movimento, destituindo-se de seu ca-
da organização dos trabalhadores a partir de seus democracia, o embate das ideias e propostas estará ráter de classe e de capacidade de enfrentamento e
locais de trabalho, pois isso é o que aglutina em à disposição dos sujeitos e poderá assegurar a poli- construção das lutas perante os ataques do Capital,
torno das reivindicações relativas ao processo de tização do processo. Com a independência man- até porque alguns dos representantes do patronato,
venda de sua força de trabalho e, portanto, pro- temos a consciência de que os interesses e lugares também estavam no governo, juntamente com os
picia a construção das mediações que viabilizam das classes sociais são distintos, pois seus interesses representantes dos trabalhadores.
as lutas cotidianas para responder às necessidades são antagônicos, o que permite compreender mais Acreditamos que a base organizativa dos tra-
destes sujeitos. Mas resistiram também nos espa- profundamente o papel do Estado nesse embate. balhadores está no local onde estes exercem seu
ços de luta pela vida, com destaque para o direito Mas a junção destes princípios não é suficiente, trabalho e buscam sua sobrevivência e que a au-
à vida na cidade. Nessa luta, ao definir sua táticas, há que ter como base o projeto estratégico de rup- tonomia frente a partidos, Estado e governos é
seu local de ação direta, politizar os debates, as rei- tura com a ordem. Isso é o que permite a unidade, condição para manter o
vindicações e ações, o movimento procura o seu superando a fragmentação, para a luta da emanci- princípio da independên-
reconhecimento como sujeito, forçando sua pre- pação, partindo das necessidades objetivas e levan- cia de classe. Acreditamos
sença na arena de negociação; e busca recuperar do a luta para patamares mais amplos organizativos também que a democracia
a condição e a identidade de trabalhador de seus e programáticos. é a condição para responder
participantes, superando ilusões em relação à de- No Brasil, na atualidade, o que se verifica é que aos interesses dessa classe. Man-
mocracia liberal. o processo organizativo da classe, em consonância tendo a firmeza nestes princípios
Neste processo de resistência, é possível iden- com o processo internacional, tem confirmado o e tendo a capacidade de ler a reali-
tificar: a) que alguns movimentos sociais estão embate entre dois projetos: um que direciona essa dade e definir a unidade com os que
demonstrando novas formas de confronto com organização para o consenso entre as classes, aban- querem lutar em favor dos interesses
os interesses dominantes, expressando diferenças donando a perspectiva de ruptura com a ordem; e dos trabalhadores, sempre atuando a
frente à trajetória organizativa e a cultura políti- outro, minoritário, que mantém como horizon- partir das reivindicações reais e concre-
ca de esquerda no Brasil; b) que não é possível as te a superação da organização das relações sociais tas destes, seremos capazes de aglutinar
configurar como novas formas de representação pelo ordenamento do capital, refirmando a ruptu- forças para reverter a quadra defensiva da
coletiva da classe trabalhadora, tendo em vista sua ra com a ordem societária capitalista. classe e manter o horizonte de ruptura
metamorfose na atualidade; e c) que essas lutas e O governo Lula da Silva cumpriu um papel de- da ordem como horizonte que dá sen-
resistências se dão num quadro de ainda forte re- cisivo para esta configuração majoritária das forças tido às lutas sociais. •
fluxo e num contexto de ausência do operariado dirigentes da classe, visto que seu governo com-
da cena política, o que confere limites à interven- binou, por um lado: a) a conjuntura econômica
ção. Mas podemos afirmar que há diversos pontos mundial que desenhou
de unidade entre esses distintos movimentos or- um quadro de maior
ganizativos de segmentos da classe, tanto os “clás- fragilidade dos di-
sicos”, quanto aqueles que trazem renovação de reitos do trabalho,
método de luta e organização. Ambos resistiram com aumento do
mantendo o princípio da independência de classe, desemprego e re-
o que é o principal ordenador da organização da crudescimento da
classe para atuar em defesa de seus direitos: ter o reestruturação pro-
discernimento político e prático de que o lado do dutiva e alteração na
trabalhador é um e o do patrão é outro, uma vez relações de trabalho
que seus interesses no processo organizativo das com a precarização
relações sociais são antagônicos, de modo que não e perda de direitos,
é possível ter uma ação que tenha como horizonte gerando maior temor
6 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

favelização mundial o colapso urbano da sociedade capitalista


Maurilio Lima Botelho

V
ivemos um momento bo não são, portanto, as responsáveis dos de “baixa reputação”, utilizados improvisadas foi chamado de Morro
crucial na história urba- por essa regressão urbana mundial, por populações pobres e miseráveis, da Favela. Sendo “favela” o nome de
na: a partir de 2008, mais são as suas principais vítimas. principalmente famílias de operários uma planta que apresenta sementes
da metade da população Segundo os dados oficiais do Pro- industriais que, recebendo baixíssi- em cápsulas (fava, vagem). Assim, as
mundial vive em cidades. A informa- grama das Nações Unidades para os mos salários, tinham que se apinhar primeiras décadas do século XX, o
ção causa estranheza e choque. A vida Assentamentos Humanos (ONU em quartos alugados de casas ou edi- nome de uma comunidade específica
urbana só agora se torna uma realida- -Habitat), somente em países da pe- fícios insalubres. Associado a corti- tornou-se o substantivo genérico que
de para a maioria da humanidade e, riferia do capitalismo existem mais ços, casebres, barracos improvisados designaria todos os aglomerados ha-
no entanto, a sensação imediata, para de 800 milhões de pessoas vivendo com diversos materiais etc., o termo, bitacionais miseráveis que se erguiam
a maior parte das pessoas, é que as em favelas, o que representa 32% da com o tempo, passou a ser utilizado na cidade, principalmente nos mor-
cidades tornaram-se insustentáveis. população dessas nações (em 2010). na Inglaterra como uma definição ros. Através da imprensa, rádio e de-
Apenas essa constatação demons- Mas esse número esconde realidades técnica para “casa materialmente im- pois TV, e graças à condição de capi-
tra a intensidade dos problemas so- mais duras. Além de não englobar a própria para habitação humana”.(2) tal nacional e centro cultural do país,
ciais a serem enfrentados: a margem favelização no centro do capitalismo Contudo, essa definição é por de- essa acepção do termo se expandiu
para crescimento das cidades ainda é (situação grave hoje, por exemplo, mais ampla, e as condições que fazem do Rio para todo o país, muitas ve-
imensa, dado que um contingente de nos EUA, países do Sul e Leste Eu- com que uma casa seja considerada zes deslocando expressões regionais,
pessoas enorme ainda vive no campo; ropeu), os dados são rebaixados por imprópria variam de região para re- como vila, mocambo, etc.
no entanto, o estado das cidades é ex- relatórios questionáveis fornecidos gião, país para país e mesmo de cultu- Embora utilizado por jornalis-
tremamente crítico. Como as gigan- por países-membros que “solucio- ra para cultura. O programa da ONU tas, cientistas sociais, historiadores,
tescas aglomerações urbanas podem nam” seus problemas habitacionais para a habitação segue, então, um geógrafos e arquitetos, os órgãos de
receber continuamente novos habi- com maquiagens estatísticas ou com critério pautado na ausência de pelo pesquisa e estatística oficiais preferem
tantes se os que aí vivem já estão, em limitados programas de urbanização menos uma das seguintes característi- expressões técnicas substitutas de fa-
boa parte, em estado de penúria e em de favelas. Os próprios pesquisadores cas: a) moradia duradoura que ofereça vela, com a justificativa de que esse
habitações extremamente precárias? da ONU admitem essas dificuldades proteção contra condições climáticas termo possui conotações locais, cul-
Essa tensão traz para o primeiro em função da maleável classificação adversas (tempestades, chuvas etc.), turais e carregam juízos valorativos.
plano das reflexões sobre o futuro das utilizada por cada país para definir as- b) espaço suficiente (máximo de três Em âmbito nacional, por exemplo, o
cidades a relação entre urbanização e sentamentos precários, aglomerados pessoas dividindo um cômodo), c) IBGE utiliza a categoria de “aglome-
favelização. A evolução urbana mun- subnormais ou favelas. Assim, os nú- acesso suficiente e sem grande esforço rados subnormais”, definido como o
dial hoje é marcada por uma intensa meros oficiais da ONU apontam para à água tratada, d) acesso a instalações conjunto com mais de 51 habitações
favelização, o que bem poderia ser a chegada de 58 milhões de pessoas sanitárias adequadas (banheiro priva- carentes de serviços públicos essen-
encarado como uma regressão social: nas cidades dos países periféricos, do ou público dividido com poucas ciais, ocupando terrenos alheios (pú-
a urbanização contemporânea é, mar- entre 2000 e 2010, sendo que, desse pessoas) e, por fim, e) segurança na blicos ou privados) e estabelecidos de
cadamente, uma involução urbana. total, seis milhões foram morar em posse do imóvel (propriedade regula- forma desordenada e densa. (5)

U
Involução, não porque os novos favelas. É um número assustador e ao rizada, posse reconhecida ou prote-
habitantes das cidades, os milhões mesmo tempo subavaliado.(1) ção contra despejos forçados).(3) m dos problemas das de-

U
que chegam para se apertar entre Embora o termo slum não tenha finições formais é que,
ruelas, barracos, casebres e perseguir m dos problemas da um correspondente fiel em língua como elas dependem da
avidamente uma sub-remuneração, classificação – evidente portuguesa, é comum a sua tradução aplicabilidade da leitu-
estejam provocando uma reversão na quando se tenta reunir por favela, inclusive pelos próprios ra realizada, partem de amostras que
cultura urbana ou uma decadência realidades nacionais ou órgãos da ONU. (4) A origem da pa- muitas vezes podem encobrir a reali-
nos modos de vida da sociedade. Na regionais distintas sob um mesmo lavra “favela”, como se sabe, se deve dade: no caso do IBGE, por exemplo,
verdade, o próprio desenvolvimento conjunto de dados – é o nível de ge- ao Morro da Providência, no Rio de se um conjunto de habitações possuir
capitalista, esgotado em sua dinâmica neralização necessário para conseguir Janeiro, próximo à Central do Brasil todas as características estipuladas,
histórica, provocou um colapso ur- estabelecer identidade entre as for- e ao comando central do Exército, mas apresentar menos de 51 casas,
bano que pode ser visto em diversas mas de habitações apreendidas em onde se instalaram soldados vetera- então esse aglomerado, essa peque-
manifestações pelo mundo, mas cuja diferentes contextos. A categoria uti- nos da Guerra de Canudos que não na favela, não entra na contagem – e
face mais evidente é a exponencial lizada pelo ONU-Habitat e aplicada tinham para onde ir. Por trazerem quantas pequenas favelas dessas exis-
favelização que se alastra por todo o em relatórios sobre as condições pre- uma determinada planta da região tem nas cidades brasileiras?
planeta. As massas empobrecidas que cárias de habitação é slum, um termo do conflito ou por causa de um mor- Também as diferentes definições
engrossam ou expandem os terrenos que surgiu em Londres, no início do ro existente no sertão nordestino, o utilizadas por órgãos diversos criam
das favelas por todo os cantos no glo- século XIX, para denominar cômo- aglomerado de habitações precárias e distorções quando se agrupam dados
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thomas leuthard

Com mais de 1 milhão de habitantes, Dharavi é uma “fervilhante colméia de fabriquetas de fundo de quintal e minúsculas moradias”

gerais ou quando se avaliam políticas nessas condições consideradas precárias. mudos, descoloridos e incapazes de “Em labirínticos corredores, tão estreitos
públicas. Por exemplo, enquanto o Por mais assustadores que sejam esses expressar com um mínimo de con- e verticais que a luz do sol bate no chão
censo de 2010 indicava um quadro assus- dados, entretanto, eles são subdimen- cretude as necessidades existentes nas apenas por minutos, moradias precárias
tador de avanço da favelização no Brasil, sionados, pois em Recife, enquanto o favelas por todo o mundo. Necessida- escondem fabriquetas conectadas à econo-
um relatório da ONU sobre a situação IBGE indica 109 “aglomerados sub- des que têm se ampliado e se aprofun- mia mundial. Delas saem potes de barro,
das cidades, lançado aqui mesmo durante normais”, a própria secretaria de ha- dado por todos os lados. latões de alumínio, carteiras, sapatos, cal-

D
o Fórum Urbano Mundial de 2010, co- bitação municipal aponta para “400 ças, bonés, roupas, tecidos ultracoloridos
locava o país entre os primeiros do mun- aglomerados de baixa renda”. (7) haravi, na Índia, famosa para exportação, celulares e toda sorte de
do na “melhoria das favelas”, retirando Em São Paulo, cidade com o segundo por ter servido recente- eletroeletrônicos recauchutados. Um cemi-
10,39 milhões de pessoas das “condições maior número de moradores de favelas mente de cenário para tério de quinquilharias que ressuscita em
inadequadas de moradia” entre 2000 (atrás apenas do Rio), as discrepâncias filmes hollywoodianos, é novos produtos. É como estar num lixão,
e 2010. (6) Contudo, o órgão oficial de não são menores: em 2006, o jornal conhecida por ser um grande organis- no meio da sujeira e de odores que trazem
estatística do governo brasileiro mostrava O Estado de São Paulo comparava os mo produtivo informal, uma “fervi- à memória temidas doenças. O esgoto jorra
que, no mesmo período, as favelas tive- números do órgão nacional com os da lhante colméia de fabriquetas de fun- na frente das casas e dos barracos. Pilhas de
ram um aumento populacional de 65%, prefeitura e indicava que, enquanto o do de quintal e minúsculas moradias sacos plásticos e sucata descartada pela área
uma ampliação de 4,2 milhões de mora- IBGE tomava apenas 8,7% da popu- em que as famílias vivem, trabalham mais nobre de Mumbai encontram abrigo
dores, somando um total de 10,7 milhões lação como residente em favelas (909 e se divertem quase literalmente uma e serventia nos quartos, salas e onde mais
de pessoas vivendo nos chamados “aglo- mil moradores), a administração mu- em cima da outra”. (9) houver espaço.” (10)
merados subnormais” em todo o país. nicipal apontava para 31% da popula- A favela, com uma população es- Dharavi é a maior favela indiana
Enquanto a economia brasileira cresceu, ção paulistana vivendo em condições timada de um milhão de moradores, e a Índia é um dos países com mais
nesses dez anos, 42%, as favelas cresce- precárias (3,4 milhões). A grande desconhece a separação entre casa e grave quadro de favelização no mun-
ram, em termos absolutos, 75%. diferença se deve à metodologia em- trabalho, pois suas 15 mil residências do. A décadas de total negligência dos
Em algumas regiões metropolitanas, o pregada na definição das condições funcionam como oficinas, a maioria governos, mesclam-se os problemas
percentual de moradores em favelas é alto, de habitação, assim como a inclusão muito pequenas: por exemplo, numa habitacionais, crescimento econômi-
como em Belém, onde mais da metade de cortiços e pequenos agrupamentos casa de 20 metros quadrados podem co acelerado em determinados pólos e
dos habitantes estão em favelas (53,9%), que são negligenciados na delimitação dormir 22 membros de uma mesma zonas econômicas especiais, mas ge-
ou Salvador, onde cerca de um quarto dos “aglomerados subnormais”. (8) família. Mais de 2 bilhões de dólares ração de emprego insuficiente para a
vive em comunidades (26,1%). Mas no De qualquer modo, embora possa- por ano são produzidos em renda nes- grande maioria das milhões de pesso-
geral, pela estatística oficial, a popula- mos reduzir as distorções e as negli- sa favela, mas isso raramente se con- as que buscam anualmente uma nova
ção moradora de favelas no Brasil é bai- gências praticadas através dos levan- verte em remuneração para os pró- vida nas cidades. Mumbai (onde fica
xa, pois apenas 6% dos brasileiros vivem tamentos estatísticos, os números são prios moradores. a favela de Dharavi), antes chamada
8 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

Bombaim, é a vitrine de todos esses populações miseráveis – não bastando Davis, “em muitos casos, a popula- mercadorias, o que permitiria flexi-
problemas: maior cidade do país, as a miséria extrema, até mesmo o acesso ção rural não precisa migrar para a bilizar o seu acesso. A solução neo-
favelas são inúmeras e infindáveis: a um pequeno terreno ou um barra- cidade; a cidade migra até ela”. (13) liberal para o problema habitacional
“Qualquer pessoa que visite Bombaim se co só se torna viável, na maioria das Do mesmo modo que a rela- é na verdade o reforço da interdição
impressiona com as enormes favelas, que se vezes, através da compra. O mercado ção entre campo e cidade parece à habitação, ou seja, a consolidação
estendem a perder de vista desde a extremi- é um corpo totalitário que se interpõe ter mudado, há algo absolutamen- da moradia como uma mercadoria
dade do aeroporto – a barriga do avião chega mesmo entre os mais miseráveis – o te novo na história da urbanização que precisa ser obtida por meio de
quase roçando os tetos ondulados e enferru- acesso não-mercantil à habitação, ue em nossos dias: a urbanização do uma relação monetária. Os orga-
jados de um mar de choças empoeiradas an- parecia uma característica das áreas fim do século XX e início do XXI nismos internacionais e seus inte-
tes de transpor o alambrado da extremidade favelizadas no passado, está agora se torna-se independente da geração lectuais estimulam, por exemplo,
da pista. À noite, os sem-tetos ocupam todos tornando raro. de empregos ou do crescimento o reconhecimento, a regularização
os trechos de pavimento livre. Calçadas, en- Talvez um dos maiores desafios econômico. Enquanto a saída do e mesmo a titularização das áreas
tradas de prédios, o espaço sob viadutos em para a questão urbana no mundo con- campo, no passado da sociedade ca- ocupadas informalmente, dos as-
construção são cobertos pelos vultos ador- temporâneo seja exatamente essa am- pitalista industrial, estava associado sentamentos precários e das fave-
mecidos dos pobres. Mães abrigam bebês e pliação e consolidação de um merca- à oferta de emprego nas cidades ou las, prioritariamente como forma
criancinhas no aconchego de seu corpo, sem do imobiliário informal irregular – e mesmo ao crescimento como um de transormação em propriedade
outro meio para defendê-las. Os que têm muitas vezes ilegal – em torno das todo da economia nacional, a urba- privada, portanto em conversão da
sorte bastante para ter um charpai, uma favelas, que se expandem ou se mul- nização de hoje não apenas ocorre posse da habitação numa mercado-
cama simples de madeira e molas, se amon- tiplicam por todo o mundo. Segundo em velocidade muito superior ao ria. Pretende-se combater a carên-
toam nela, a cabeça de um ao lado dos pés a ONU, em relatório divulgado em crescimento econômico apresenta- cia habitacional estimulando-se as
do outro. Há barracões, choças e moradores 1996, a maior parte dos acréscimos re- do pelos mercados nacionais, como suas causas, principalmente as con-
de ruas ao lado de clubes de campo, colados a alizados nos estoques de moradia “na muitas vezes ocorre sem cresci- dições que tornam possível a espe-
prédios de apartamentos luxuosos.Apesar do maioria das cidades do [hesmifério] Sul mento econômico. Assim, “a ur- culação imobiliária.
vertiginoso crescimento da construção de mo- nos últimos 30 ou 40 anos” tem sido banização atual não está apoiada na Para aqueles que vivem em si-
radias, 60% dos 18 milhões de pessoas que feita pelo mercado imobiliário ilegal expansão da indústria e do emprego tuações de extrema pobreza, pre-
constituem a população de Bombaim vivem ou informal. Mas o órgão alerta que, (...). Trata-se, em geral, do parado- cariedade e insegurança econômica
em favelas ou nas ruas. Isso significa 10,8 mesmo nos países do Norte, a partici- xo de uma ‘urbanização sem cres- e residencial, é evidente que o re-
milhões de pessoas. Em Dharavi, a maior pação desse mercado tem sido impor- cimento’ econômico, ou de uma conhecimento da posse de sua mo-
favela de Bombaim, há um banheiro para tante para a oferta de novas habitações urbanização da pobreza”. (14) radia, por mais precária que seja,
cada 1.500 pessoas. De acordo com o últi- a preços baixos. (12) Por isso, a favelização é uma torna-se um passo importante para

S
mo recenseamento da Índia, feito em 2001, marca indissociável da urbanização garantir a estabilidade social. Mas o
40 milhões de habitantes das cidades india- egundo a ONU, até 2020, atual. No passado, o processo de mero reconhecimento como parte
nas vivem em favelas, apenas “49,5% das o número de habitantes das urbanização acelerado puxava con- de inclusão nos circuitos do merca-
famílias urbanas tinham água encanada em favelas em todo o mundo sigo a favelização, resultado da con- do imobiliário é uma estratégia in-
casa e somente 57,4% possuíam instalações deve chegar a cerca de 900 centração de riquezas ou da des- conseqüente que poder levar à pos-
sanitárias”. (11) milhões de habitantes. Metade de proporção entre oferta habitacional terior expropriação indireta.
Com uma tradição de tratamento todo o crescimento das favelas se e demanda crescente nas cidades. A crítica radical dessa situação,
violento do problema das ocupações deve ao crescimento interno da po- Mas a crise econômica e a miséria em que mesmo na mais extrema
irregulares (o caso mais famoso é a pulação já presente nas comunida- generalizada têm invertido a rela- pobreza o mercado acaba vencen-
decretação do Estado de Emergên- des, um quarto se deve ao êxodo de ção: em muitos lugares a faveliza- do, deve começar pela reabilitação
cia, em 1975, no governo de Indira populações do campo para a cidade, ção é que tem puxado a urbaniza- da esquecida proposta de revolução
Gandhi, para que favelas fossem des- que encontram nas favelas a única ção ou, o que é mais preciso, ocorre urbana. Nos marcos de uma so-
truídas), a Índia tenta hoje resolver o alternativa de moradia, e o outro uma favelização sem urbanização, ciedade capitalista em crise, cada
problema das aglomerações de habi- quarto do crescimento se deve à in- já que a aglomeração de barracos e vez mais excludente e destrutiva, a
tações precárias por meio de parcerias corporação de áreas rurais ao redor casebres por quilômetros sem sane- formulação imediata dos caminhos
público-privadas (PPPs), onde a força das cidades, engolfadas pela expan- amento, infraestrutura, vias de cir- dessa revolução deve ser o acesso à
também comparece. Incorporadoras e são urbana através das favelas. culação ou equipamentos públicos, moradia por fora do mercado, inclu-
construtoras são contratadas para eli- A urbanização da humanida- não poderia ser chamado de espaço sive o informal.•
minar favelas e explorar o espaço libe- de, uma realidade aparentemente urbano rigorosamente. É como se
rado, desde que forneça um teto para óbvia, mas somente agora tornada estivéssemos presenciando o nasci-
os antigos moradores em espigões com real, é o resultado da aceleração da mento de um mundo pós-urbano,
apartamento minúsculos. Dharavi está fuga para as cidades: milhões de uma urbanização sem a formação (1) Estado das Cidades do Mundo 2010/2011 –
na mira dos tratores: uma das grandes pessoas são expulsas de suas terras de cidades – os conceitos são de di- Unindo o Urbano Dividido – Resumo e Princi-
pais Constatações,
PPPs em curso no país tem por objeti- por jagunços, seguranças privados, fícil aplicação porque a realidade, (2) Slums of the World: The face of urban pover-
vo construir um grande conjunto co- paramilitares empregados dos gran- catastrófica e original, não se deixa ty in the new millennium, UN-Habitat
mercial e residencial no local da favela, des proprietários de terra ou sim- definir. (3) C.f. Slums of the World: The face of urban
assentando para isso os antigos mo- plesmente porque não conseguem Em todos os casos, a urbaniza- poverty in the new millennium, UN-Habitat,
2003.
radores em conjuntos habitacionais. concorrer com a dinâmica destru- ção quase se tornou um sinônimo (4) e (6) Estado das Cidades do Mundo
Como as residências do emaranhado tiva do agronegócio globalizado. de favelização e, no entanto, por 2010/2011.
são, no fundo, unidades produtivas, Mas há algo novo na relação entre mais crítica que seja a situação des- (5)Censo Demográfico 2010: Aglomerados Sub-
a maioria dos moradores é contra a campo e cidade: a urbanização sem sas cidades em crise, o florescimen- normais – Primeiros Resultados, IBGE.
(7) Em Pernambuco, 852 mil pessoas moram em
remoção, pois o deslocamento para limites, estendendo-se pelo hori- to do mercado imobiliário informal “aglomerados subnormais”, O Globo, 22 de de-
apartamentos deve liquidar com suas zonte (chamada por especialistas e/ou irregular é apontado por ins- zembro de 2011.
fontes de renda. de urban sprawl, ou urbanização tituições e organismos econômicos (8) SP engana: um terço vive de forma precária,
Em muitos casos, os loteamentos “esparramada”), lança suas franjas internacionais como a alternativa O Estado de São Paulo, 12 de fevereiro de 2006.
(9) e (11) Kamdar, Mira. Planeta índia: a ascen-
irregulares, sejam sobre as áreas agrí- por cima das terras antes destinadas para a carência de moradia. Orga- são turbulenta de uma nova potência global.
colas ou desérticas, são feitos por ter- à agricultura. Em muitos países da nismos como o Banco Mundial ou (10) Megacidades: Mumbai, O Estado de São
ceiros que vendem os pequenos lotes periferia do capitalismo, as fave- mesmo o ONU-Habitat, principal Paulo, 3 de agosto de 2008.
sem possuir nenhum título ou garan- las são a forma intermediária entre órgão internacional preocupado (12) An Urbanizing World: Global Report on
Human Settlements, UN-Habitat, 1996, p. 239.
tia da propriedade. Uma das caracte- as cidades propriamente ditas e o com os descaminhos das formas (13) Davis, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boi-
rísticas que acompanham a expansão campo, formando um continuum de habitação no mundo, ressaltam tempo, 2006
mundial das favelas é exatamente a rural-urbano marcado pela pobre- em seus documentos oficiais e dis- (14) Arantes, Pedro Fiori. O lugar da arquitetu-
formação de um vigoroso mercado za. Como definiu com precisão o cursos o papel da transformação da ra num “Planeta de favelas. ” In: Opúsculo 11,
2008, p. 4.
imobiliário informal voltado para as geógrafo norte-americano Mike terra, dos imóveis e das casas em
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 9

Plano Diretor de São Paulo: o leão do dia Guilherme Boulos

D
esde o fim de tão atualmente ocupadas
2013, o Plano pelo Movimento, algu-
Diretor Estraté- mas em regiões de alta
gico de São Pau- O que é o Plano Diretor? valorização imobiliária,
lo, a maior cidade do país, como a Ocupação Faixa
entrou em debate de revisão É um documento oficial que orienta a utilização do território de um município. Nele de Gaza, no Morumbi.
e aprovação. Foram dezenas estão sintetizados os objetivos de quem controla a cidade, por isso é um instrumento de Ainda em relação às
de audiências oficiais e ou- poder e alvo de disputa entre setores opostos. No Plano Diretor define-se, por exemplo, ZEIS, conseguimos de-
tras tantas mobilizações não finir uma reserva para
a quantidade, os tamanhos e onde serão as áreas para construção de moradias,
-oficiais organizadas pelo os trabalhadores mais
MTST e outros movimen-
praças, aparelhos de saúde ou lazer, etc. Define-se também o mesmo sobre centros pobres. O conceito de
tos populares para incidir no comerciais, empresariais e condomínios de luxo. Ou seja, quem exerce o poder ou tem HIS é amplo, podendo
texto e torná-lo mais com- mais influência no Estado, como é o caso do capital imobiliário, define a orientação do abranger até mesmo fa-
patível com os interesses dos Plano Diretor e se favorece dele. É um campo de batalha entre as classes que vivem na mílias com renda mensal
trabalhadores urbanos. cidade e o lado dos mais pobres que começam a reagir... de 10 salários mínimos.
Nesse processo, conse- No entanto, 70% do
guimos um avanço inicial. déficit habitacional bra-
O único interlocutor públi- sileiro é composto pela
co do Plano era – como de do Orçamento da União, principal- rão revertidos por um Plano Dire- chamada Faixa 1, isto é,
costume – o setor imobiliário. Com mente via PAC e MCMV. Podemos tor. A transformação dessa situação, famílias com renda mensal de 0 a 3
seu poder político alçado pelo fi- afirmar sem receio que foi o setor traduzida numa Reforma Urbana salários mínimos. O texto do Pla-
nanciamento maciço de campanhas econômico que mais obteve fun- Popular, não se fará por Projeto de no Diretor garantiu que no mínimo
eleitorais, as empreiteiras e incorpo- dos públicos durante os governos Lei ou Decreto. Nenhum Plano Di- 60% das habitações construídas em
radoras sempre moldaram os planos petistas. As grandes empreiteiras retor, na atual relação de forças, será ZEIS terão de ser destinadas à Faixa
diretores e a legislação urbana por tornaram-se trustes, com ações em capaz de reverter a lógica do capital 1, o que representa uma vitória do
seus interesses econômicos. Des- vários outros segmentos da econo- imobiliário. interesse popular contra o mercado.
ta vez, não foi diferente e fizeram mia, e se internacionalizaram alça- Mas pode ser parte de um pro- Segundo, conseguimos incluir
pesados lobbies para a aprovação de das pela política externa de Lula. Se cesso de enfrentamento constante pontos relevantes nas diretrizes do
suas propostas. já tinham hegemonia sobre o mo- e calcado nos movimentos popu- Plano: uma política de prevenção
Porém, agora surgiu um ator delo de desenvolvimento urbano, lares. É nesse sentido que vemos o de despejos forçados; o estímulo à
que não estava convidado. Os mo- passaram a ter controle completo. Plano Diretor como o leão do dia. construção de habitação popular
vimentos populares fizeram intensa Definições das localizações de no- É preciso “matá-lo” incorporando por gestão direta das entidades po-
mobilização no último período, es- vos empreendimentos, de regiões de ao máximo propostas de contro- pulares; e ajudamos a defender um
pecialmente em relação ao tema da crescimento e das políticas públicas le da especulação e de estímulo à ponto importante, que já constava
moradia popular, e com isso nos fir- para o setor passam essencialmente apropriação social do território, seja do PL original do Prefeito, que é o
mamos como interlocutores do pro- pelos agentes de mercado ligados ao para moradia popular seja para ser- estabelecimento da Cota de Solida-
cesso. Foram forçados a nos ouvir e setor imobiliário. viços e espaços públicos. riedade – um dispositivo que obriga
incorporar algumas de nossas ques- O resultado deste processo de Foi nessa direção que se pautou empreendimentos com mais de 20
tões. Ao invés do domínio incon- privatização da política urbana é a intervenção do MTST nos deba- mil m² de área a doarem um percen-
teste do mercado, estabeleceu-se sabido. Valorização imobiliária bru- tes do Plano Diretor de São Paulo. tual de área para habitação popular.
um conflito de forças mais aberto. tal, colonização de regiões perifé- Já havíamos tido experiências de Por último, contribuímos com
Vereadores mais diretamente li- ricas pelo mercado e expulsão dos menor monta em municípios da as propostas desenvolvidas pelo Re-
gados ao mercado e o próprio Se- mais pobres para periferias mais dis- RMSP, como Taboão da Serra e lator Nabil Bonduki no sentido de
cretário de Desenvolvimento Ur- tantes. Embu. Nestes casos conseguimos buscar dar mais eficácia aos meca-
bano (responsável pelo PL original) Os instrumentos do Estado para melhorar consideravelmente as di- nismos de combate à especulação
tiveram que ceder em pontos im- regular esse processo foram esvazia- retrizes dos Planos. imobiliária previstos no Estatuto
portantes para nós. O MTST ela- dos ou não são exercidos. Regula- Em São Paulo, a maior e mais rica das Cidades, tais como o IPTU pro-
borou uma proposta que, de forma ção urbana no Brasil não existe. E cidade do país, o jogo de interesses gressivo no tempo, a desapropriação
geral, foi incorporada no PL Substi- isto tem a ver, dentre outras coisas, é mais pesado. Mas a mobilização de áreas ociosas com títulos da dívi-
tutivo, relatado pelo vereador Nabil com o papel das construtoras e in- também o foi. Conseguimos mo- da pública e a dação em pagamento.
Bonduki (PT). corporadoras no financiamento das bilizar mais de 10 mil trabalhadores Foi um avanço, considerando as
Antes de pontuarmos estas con- campanhas eleitorais. Executivo e sem-teto nas audiências e em ma- relações de forças na sociedade e o
quistas, vale uma consideração. O Legislativo estão, de modo geral, nifestações relacionadas ao Plano. peso do setor imobiliário na econo-
poder do mercado imobiliário e da capturados pelo mercado em todos Como resultado, várias propostas mia nacional. Mas temos a clareza
construção civil e pesada no capita- os níveis. O Judiciário, por seu lado, indicadas pelo Movimento foram de que este foi apenas o leão do dia.
lismo brasileiro é desproporcional. alinha-se por seu conservadorismo contempladas. Outros virão e exigirão muito mais
Se já eram historicamente acostu- e elitismo inerentes. Em primeiro lugar, aumenta- mobilização popular. Combater a
mados às benesses do Estado, estes É nesse contexto que temos de mos a quantidade de áreas marcadas apropriação do espaço urbano pelo
setores da economia, nos últimos pensar o Plano Diretor de São Pau- como ZEIS (Zonas Especiais de In- capital exigirá um profundo acúmu-
anos, foram os maiores beneficia- lo e de qualquer outra metrópole do teresse Social), que são destinadas à lo de forças dos trabalhadores das
dos pela generosidade do crédito do país. Os interesses econômicos em moradia popular. Conseguimos in- periferias. E as grandes batalhas não
BNDES e por investimentos diretos jogo são muito poderosos e não se- clusive garantir várias áreas que es- serão vencidas com leis ou decretos.•
10 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

Megaeventos e capital imobiliário:


um caso de amor
Guilherme Simões

copa2014-danilo
Estádio Mané Garrincha, no Distrito Federal, é o mais caro da Copa: desvios de verbas públicas estimados em mais de 430 milhões de reais.

E
m qualquer lugar de nossa so- da vida social na cidade, o local de mo- Para supostamente diminuir o déficit para o investidor estourar o champanhe, o Índi-
ciedade capitalista global, a re- radia dos trabalhadores tornava-se cada habitacional, não é de hoje que o Estado ce Bovespa (Ibovespa), principal indicador da
alização de um grande evento, vez mais parte da assim chamada questão apresenta “soluções habitacionais”, com Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), deve
seja esportivo ou não, mobiliza social. As vilas operárias, característica objetivos para além de ajudar quem pre- encerrar o ano com alta de cerca de 80% (...)
sempre muitas questões. O público-alvo, da “solução” habitacional do período, já cisa de casa. O BNH (Banco Nacional o grande vencedor foi o setor da construção civil,
a movimentação de pessoas e mercado- não podiam dar respostas à necessidade de Habitação) durante o período militar cujas ações sobem, em média, 204%”
rias, a lucratividade, as condições para a de moradias, tanto pela quantidade de chegou a construir mais de um milhão
realização do evento em si, o intercâmbio operários atraídos pelo desenvolvimento de moradias. Entretanto, o financiamen- Não somos especialistas em econo-
cultural e mercadológico e, finalmente, econômico quanto pela valorização cada to dessa “política habitacional” era quase mia financeira, mas os dados são bastante
seus impactos e legados para a cidade que vez maior dos terrenos. exclusivamente (em 80% dos casos) para convincentes... Ora, a escolha do Brasil
o recebe. Este movimento fica evidenciado trabalhadores de renda média e alta, isto como sede de megaeventos como a Copa
Como se sabe, quanto mais indus- com a configuração da cidade e o cres- é, o foco não era habitacional, mas vol- do Mundo ou Olimpíadas não poderia
trializado um país, mais urbanizado ele cimento de sua periferia. A especulação tado para a indústria da construção civil. se dar de maneira alheia a essa dinâmica.
será, em um aprofundamento da contra- imobiliária é, justamente por essas razões, Já nos anos 2000, novamente au- Sabe-se que os promotores desses eventos
dição entre capital e trabalho. Nas me- uma atividade extremamente lucrativa, e xiliada pelo Estado, dessa vez sob égide são empresas privadas de variados ramos
trópoles, essa contradição é caracterizada não esteve e nem está isolada, sendo parte de um governo democrático-popular, (turismo, entretenimento, alimentos,
por uma profunda segregação territorial de um dos braços mais robustos do capi- a indústria da construção civil e, por etc.) que não visam nada menos que um
levada a cabo pelo Estado através dos seus talismo brasileiro, justamente porque não consequência, a especulação imobiliária evento lucrativo. Sabe-se também que
seguidos governos no sentido de garantir depende de um alto grau de desenvolvi- ganham grandes investimentos. Pacotes para que isso se viabilize, são necessárias
a lucratividade para as empresas. Nesse mento de forças produtivas para efetivar- econômicos planejados pelo governo fe- uma série de intervenções na cidade do
sentido, o Estado garantiu essa infraestru- se. Assim, o mercado imobiliário passa a deral socorrem a construção civil em ple- ponto de vista da mobilidade urbana,
tura para a ampliação da indústria; gerou determinar o crescimento da cidade, se no período de crise das bolsas de valores. etc., as quais não podem ocorrer sem ge-
os bens de consumo coletivo estritamen- apropriando de imensas áreas em volta Em 2009, após o anúncio do Minha Casa rar um grande impacto social, na medida
te necessários à reprodução da força de do centro e “liberando” áreas periféricas Minha Vida, as ações de várias constru- que alteram o cotidiano da cidade e, por
trabalho e, por fim, garantiu a ordem e o para os mais pobres, o que também não toras puxam a alta da Bovespa. O jornal conseguinte, de toda a população urbana,
controle social com a contenção de mo- é a esmo: sabe-se que, tendo onde mo- “O Globo” não poderia ser mais claro: especialmente os trabalhadores. Repõe-
vimentos reivindicatórios. Parceria fun- rar (mesmo com imensa precariedade), se de maneira mais intensa um conflito
damental entre Estado e iniciativa privada o trabalhador não receberá parte de seu “O ano de 2009 se aproxima do fim e é hora que não é inédito, mas antes é fundador
para a urbanização, ao mesmo tempo em salário que seria investido em habitação, de fazer as contas. Quem olha para trás e igno- da cidade: a avidez da multiplicação dos
que se empreendeu um profundo e de- isto é, essa dinâmica também rebaixa os ra o que aconteceu antes de janeiro nem acredita lucros contra as necessidades coletivas de
vastador processo de espoliação urbana. salários, aumenta a exploração do traba- que vivemos “a pior crise desde 1929”, como uma imensa massa de pessoas que vivem
Entretanto, com o rápido crescimento lho e, por conseguinte, os lucros. tanto se afirmou. Faltando apenas seis pregões e sobrevivem na cidade.
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 11

N
o Brasil, todas as cidade Itaquera passa a ser objeto de investimen- entorno chegava a cerca de 40%. O pre- chão, em um frio de zero grau. No lugar de col-
sede sofreram e sofrerão tos altamente lucrativos. Se bem que ain- sidente do Creci-SP, José Augusto Viana chões, papelão. O cheiro azedo de urina e suor,
importantes impactos por da preservava um inconveniente para essa Neto, em entrevista ao site monitormer- misturado a alguns restos de comida, criava uma
conta da realização da lógica: um grande número de trabalha- cantil em novembro de 2012, comemo- atmosfera nauseante. Como faltasse espaço no
Copa do Mundo de 2014. Mais adiante dores pobres e de moradias precárias. ra: “As pessoas sabem que a região vai receber chão, vários homens tinham de dormir nas es-
traremos alguns exemplos. Por ora des- A escolha (forçada) de Itaquera como obras de infra-estrutura e melhorias urbanas e cadarias do prédio. Mas os degraus estreitos não
tacaremos Itaquera, bairro periférico da sede da Copa do Mundo abre um novo isso acaba provocando uma antecipação da va- permitiam a acomodação na largura. O jeito era
Zona Leste de São Paulo, que sediará seis momento desse processo. Dezenas de lorização futura dos imóveis, cujos limites vão enrolar-se no cobertor fino e, como uma múmia,
jogos da Copa do Mundo 2014, entre obras de infraestrutura já foram feitas sendo testados à medida que essas melhorias vão tentar se equilibrar –a cabeça em degraus mais
eles, a concorrida abertura do torneio. ou estão em andamento. Obras como se materializando”. altos, os pés nos mais baixos. Qualquer movi-
Lá, está sendo concluída a obra da arena a duplicação de um trecho da avenida A valorização em 6 anos de mais de mento em falso e o corpo escorregava; às vezes
que abrigará os jogos. Além do fato de ser Radial Leste e a construção de um dos 160% para compra de imóveis é bastan- atropelando outro albergado no lugar. Cercados
um empreendimento privado (uma par- chamados parques lineares prevêem o te convincente, bem como a de quase pela polícia, os sem-teto da Igreja Metodista
ceria entre a gigante da construção civil despejo de milhares de famílias. Segundo 100% para aluguéis em menos de 4 anos. eram os últimos remanescentes da “faxina”
e pesada Odebrecht e o Sport Club Co- matéria do UOL de setembro de 2013, Novamente não é necessário ser ex- promovida pelo governo de modo a retirar da
rinthians Paulista) que está sendo quase a Prefeitura de São Paulo recebeu “do- pert em economia para entender que a cidade-sede da Copa do Mundo, os milhares de
integralmente financiado com dinheiro ação” de uma área da empresa Itaquera alegria do setor imobiliário faz com que sem-tetos que vivem nas ruas de Johannesburgo,
público, sendo R$ 400 milhões empres- Desenvolvimento Imobiliário após pagar milhares de moradores daquele bairro principalmente no centro”.
tados pelo BNDES e mais R$ 420 mi- R$ 1,8 milhões pela desapropriação de saiam e procurem outras localidades com
lhões em CIDs (Certificados de Incen- outra área da empresa. Nessas áreas se- preços acessíveis à sua renda. Locais evi- A professora Raquel Rolnik (FAU
tivo ao Desenvolvimento) dos governos rão construídas um “Pólo Institucional” dentemente mais longínquos e precários. -USP) afirma que cerca de vinte mil fa-
estadual e municipal de São Paulo, está (complexo de construções comerciais e Temos aí uma justificativa concreta mílias sulafricanas foram removidas por
em curso um rápido e atabalhoado pro- institucionais) e duas novas avenidas. O para uma ação como a ocupação “Copa conta da realização da Copa do Mundo
cesso de mudanças naquela região, algu- Complexo Viário Itaquera foi parcial- do Povo”, organizada pelo MTST em de 2010. Na Cidade do Cabo, outro im-
mas das quais veremos a seguir. mente entregue em abril de 2014, segun- Itaquera. portante centro urbano do país, por estar

S
Vale ressaltar que Itaquera é uma do previsão da Dersa (Desenvolvimento localizada numa região geopolítica e co-
região periférica que vem recebendo Rodoviário S/A), responsável pelos ser- abe-se que o Brasil forma jun- mercialmente estratégica, as obras, como
“incentivos econômicos” e se tornando viços. Importante ressaltar que: a in- to com Rússia, Índia, China e não poderia deixar de ser, também dei-
uma espécie de fronteira urbana. Ainda corporadora Itaquera Desenvolvimento África do Sul o grupo conhecido xaram seu legado. Moradores de rua do
nos anos de 1970, o bairro tinha pouca Imobiliário condicionou a doação da área como BRICS, intitulado como centro da cidade foram removidos para
infraestrutura urbana. Sua população era à desapropriação de outra; o tamanho to- as principais economias emergentes do uma favela improvisada com contêine-
composta de operários e trabalhadores tal das áreas adquiridas pela prefeitura é mundo. Nada mais se trata do que aque- res de zinco, bem longe da vista dos afi-
assalariados no comércio e no setor de de quase sete por cento do total de áreas les países da periferia do capitalismo que cionados por futebol. Conhecido como
serviços. Grande parte dessa população de propriedade da empresa; o acordo se não podem, por sua origem colonial e/ou Cidade de Lata, esse bairro (que pode ser
pagava a casa própria em parcelas a perder deu pela notória e extrema valorização de capitalismo tardio, desfrutar de uma considerado como um verdadeiro cam-
de vista. Terrenos vazios eram produtos que essas outras áreas terão em um futuro industrialização plena, tampouco de uma po de concentração) reuniu cerca de três
da especulação imobiliária e conviviam muito breve. exploração da força de trabalho comple- mil pessoas, que tiveram a promessa de
com ruas de terra e muita precariedade. Enquanto isso a valorização dos ter- tamente regulamentada. Nesses países, a construção de moradias definitivas. Tal
Seguindo a lógica de valorizar áreas cen- renos no entorno é crescente. Segundo exploração do trabalho reúne outras ca- promessa ainda não se realizou, mesmo
trais e expulsar os mais pobres para a peri- pesquisa realizada pelo Conselho Regio- racterísticas como o menor valor da for- quatro anos depois do mundial. A Copa
feria, o governo municipal inicia a cons- nal de Corretores de Imóveis do Estado ça de trabalho e a presença marcante do do Mundo foi a chance da cidade se ver
trução das Cohabs (prédios populares) de São Paulo (Creci-SP) o preço de um Estado como garantidor e mantenedor livre dos pobres inconvenientes. Era para
nos anos de 1980, causando grande ex- imóvel usado no bairro da Copa teve da economia de mercado. Em tempos ser um abrigo provisório, enquanto se
plosão demográfica no bairro. Esse pro- aumento de mais de 50% em seis me- de agudização da crise nos centros, nada construíssem habitações dignas. Mas os
cesso se agravou com a chegada do me- ses, entre janeiro e julho de 2012. Por- como grandes eventos na periferia que pobres seguem no mesmo local, “mor-
trô, obra que gera grande valorização dos tanto mais de dois anos antes do evento, tragam a recuperação para os primeiros e rendo de frio no inverno e assando no
terrenos mais próximos e também exige a construção do estádio que vai sediar os gastos para os últimos. Seja uma guerra verão”, relata Capriglione. Vale dizer
moradores com maior poder de consu- jogos da Copa em 2014, em São Paulo, ou uma Copa do Mundo... que a Cidade de Lata fica a cerca de 30
mo. Para se ter uma ideia, a implantação já teve impacto no mercado imobiliário Laura Capriglione, blogueira do site km do centro da Cidade do Cabo, onde
do canteiro de obras do Metrô dobrou o do bairro de Itaquera, mesmo sem ne- apublica visitou um alojamento de des- foi construído o suntuoso estádio Green
preço dos terrenos, em média. Estavam nhuma obra em andamento. Durante pejados por obras em Johannesburgo, a Point, com capacidade para 55 mil tor-
dadas as bases para uma constante valo- esse período, para se ter uma ideia, o va- “próspera” e “emergente” capital sulafri- cedores, ao custo de US$ 600 milhões.
rização fundiária que iria transformar lor do metro quadrado de casas de dois cana. Segue um trecho de seu artigo O Naquela região ergueu-se também um
definitivamente o bairro: de uma região dormitórios saltou de R$ 2.272,66 para “legado” da Copa na África do Sul: refinado centro comercial, bastante aves-
periférica quase inútil para a especulação R$ 3.508,06. Considerando todos os “entramos na escuridão do prédio, onde pelo so à pobreza...
imobiliária e empreendimentos privados, elementos da pesquisa, a valorização do menos duas mil pessoas acotovelavam-se no Já na China, de acordo com Ricar-

Indíce zap/FIPE
12 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

Copa 2014 (Portal Transparência)

do Ricci Uvinha, articulista da revista adas de Pequim também deixaram um sibilidade que ganham as cidades ao pro- a construção civil ao mais alto posto no
Motrivivência, esse outro membro dos legado de segregação social e territorial mover essas grandiosas festas mundiais. capitalismo brasileiro. Isso pra não tocar
BRICS, por ocasião do Jogos Olímpi- típicos da urbanização monopolista. Além desse fato óbvio e insuficiente para no fato de que algumas delas se inter-
cos em Pequim no ano de 2008, rea- Nunca é demais lembrar que Barce- o ímpeto de lucratividade está a absur- nacionalizaram nesse processo, casos da
lizou dez mil obras de infraestrutura a lona sofreu com aumento da especula- da valorização dos territórios sede. Ao Odebrecht e OAS. É evidente, portanto,
partir de 2001. Nessa conta também es- ção imobiliária; Seul despejou cerca de construir enormes redes de infraestrutu- que o enfrentamento da questão habita-
tão estádios, hotéis, avenidas, restauran- 15% de sua população; a Grécia faliu ra (metrôs, avenidas, portos, aeroportos, cional passa pelo combate ao capital imo-
tes, entre outras edificações que criaram poucos anos após sediar as Olimpíadas; túneis, hotéis, etc.) as cidades promovem biliário e, consequentemente, ao regime
grande contraste com os templos e ou- o Qatar já tem 1200 trabalhadores que outra festa: a da especulação imobiliária. da propriedade privada.
tras construções milenares daquele país. morreram durante obras pra 2022 e o Os territórios em volta dessas constru- As ocupações urbanas de luta por
No transporte, o metrô recebeu mais de país utiliza trabalho escravo de imigran- ções são valorizados, o que significa dizer moradia estão entre os principais meios
87 quilômetros de vias, com seis novas tes nas obras... No caso do Brasil e seu que, por exemplo, atividades imobiliárias de ação reivindicatória do Brasil. Não
linhas. Ao todo, estima-se que foram próximo megaevento (a Copa do mundo como o aluguel serão mais lucrativas dali apenas pelo poder potencial que carrega
gastos em torno de US$ 42 bilhões de de futebol), um dos principais impactos/ em diante, o que já demonstramos com de mobilização de grandes massas espo-
dólares para essa edição dos Jogos. legados da Copa do Mundo de 2014 são o caso de Itaquera. Mas não é só isso. A liadas pelo desenvolvimento e a tragédia
Segundo a ONG Centre on Hou- os gastos astronômicos com as obras di- outra faceta da especulação imobiliária é do capitalismo. Mas também porque
sing Rights and Evictions (COHRE), tas necessárias à realização do evento. “criar” valor para outras atividades eco- esse fato carrega outro: esses trabalhado-
1,5 milhão de pessoas foram despeja- Aeroportos, avenidas, trem, metrô, es- nômicas daquela região valorizada. O tu- res marginalizados pelo processo social
das e 300 mil casas foram demolidas tádios, hotéis, portos, segurança pública, rismo, a gastronomia, o entretenimento e vivem na imensa “unidade produtiva”
em Pequim para a realização de obras telecomunicações, etc. estão entre as de- até o transporte ficam mais caros quanto chamada cidade, concentrados nas pe-
como o Ninho do Pássaro e o Cubo mandas do mundial. Na tabela, podemos mais próximos de regiões valorizadas. O riferias e, ao mesmo tempo, espalha-
d’Água. Novamente, os dados oficiais ver com certa clareza os gastos totais que que faz com que os mais pobres fiquem dos, significam uma constante ameaça
não são precisos, mas a valorização e o chegam a quase R$ 26 bilhões, com boa cada vez mais restritos também em sua à ordem, pois para sobreviverem devem
crescimento da especulação imobiliária parte financiada (empréstimo) do gover- mobilidade. E assim a cobra come o pró- subvertê-la. E apenas organizados po-
nos territórios de Pequim foram notó- no federal (mais ou menos R$ 8 bilhões, prio rabo na perversa dinâmica urbana dem dar consequência transformadora à
rios. Para se ter uma ideia, no distrito mas com a maior parte, cerca de R$ 14 do capitalismo contemporâneo. sua existência. Nesse sentido, ainda que
de Qianmen, um dos mais antigos de bilhões garantidos como obras-legados Entre os nefastos resultados disso está carregada de contradições, a ação reivin-
Pequim, mesmo depois de a Comissão (investimento direto) dos governos fe- o fortalecimento do capital imobiliário. dicatória pode tornar-se forma para um
Municipal de Planejamento decretar um deral, distrital, estaduais ou municipais. No caso do Brasil, esse braço da econo- programa de transformação social. As
plano de conservação para proteger suas A iniciativa privada gastará em torno de mia vem se tornando cada vez mais im- ocupações podem configurar-se como
25 áreas históricas na Cidade Velha de R$ 4 bilhões resumidos aeroportos (pri- portante, como já citado. Vejamos alguns instrumento da luta contra o capital, pois
Pequim, novos “habitantes” foram apa- vatizados) e os estádios Arena da Baixada dados de como isso tem se desdobrado. escancaram o privilégio da propriedade
recendo após o anúncio dos jogos olím- e Beira Rio (menos de R$ 1 bilhão). Se De acordo com o índice Zap/Fipe do privada e seu regime de proteção (jurí-
picos. Rolex, Prada, Starbucks, Nike, apenas com o futebol, o capital sugou mercado imobiliário, São Paulo registra dico, burocrático, ideológico, etc.) de
Adidas, Apple, etc. conviviam com as tudo isso, o lema agora é: imagina nas registra alta de 195,2% no preço médio um lado, e de outro opõem a expressão
antigas estruturas e também com mora- Olimpíadas! dos imóveis entre 2008 e 2013 - isto é, o da violenta contradição produzida por
dores que, aos milhares, deram lugar à Uma das principais características dos preço praticamente triplicou em 5 anos. esse sistema: uma imensa massa de traba-
obras turísticas e de estrutura para o me- chamados legados dos megaeventos é o O aluguel variou 95,1% no mesmo perí- lhadores que não podem acessar os bens
gaevento. Foi justamente de Qianmen “embelezamento” urbano. Várias cida- odo, quase duplicando. No Rio de Janei- produzidos ou servidos por eles próprios.
que surgiram os principais protestos de des que receberam esses eventos passa- ro, o aumento no preço dos imóveis che- Apenas lutando e direcionando nossa po-
moradores despejados pelas obras das ram a ser verdadeiros objetos de desejo de gou a 234,2% e no caso dos aluguéis foi tencialidade organizativa e política con-
olimpíadas mais caras da história. Ape- empresas dos mais variados ramos. Não de 131,1%. No caso brasileiro, é evidente tra o sistema capitalista é que poderemos
sar de fazer parte do ambicioso projeto há segredo. A resposta para essa atração é que o fortalecimento do setor imobiliá- reivindicar a cidade para todos. Estamos,
modernizador do gigante asiático e, por a possibilidade de lucrar mais (e recupe- rio não se restringe aos megaeventos. As assim, diante de uma importante face da
isso, ter gasto com muito mais melho- rar taxas de lucro ameaçadas pela recessão bilionárias linhas de crédito por meio do atualidade da luta de classes. Quem disse
rias do que a média mundial, as Olimpí- mundial). E isso não se dá apenas pela vi- PAC e Minha Casa Minha Vida alçaram que ela não existe mais? •
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mundo em ru í n a s
RESENHA

André Villar

H
á tempos que o capitalismo não cessa de chafurdar num interminável lodaçal de crise, num desabamento que só
tende a se generalizar e recrudescer. Uma teoria crítica radical do capitalismo é mais necessária do que nunca. O
último livro de Marildo Menegat, Estudos sobre ruínas, é uma importante contribuição para quem deseja compre-
ender – e transformar! – nosso mundo em escombros.
O livro consiste numa reunião de artigos e entrevistas produzidos ao longo dos últimos cinco anos sobre diversos temas: o
conceito de barbárie na tradição crítica brasileira, as transformações do caráter da universidade, a dinâmica de crise e o colapso
do capitalismo, a subjetividade fetichista no mundo da mercadoria, as prisões, a experiência com as drogas no século XX, e daí
por diante. Não seria possível resumir o rico e diverso conteúdo da obra em algumas poucas linhas. Limito-me a destacar um
argumento central e polêmico que se encontra no centro das suas reflexões do autor.
Diferentemente do que acontece na maior parte das análises críticas do capitalismo, o livro assinala que esse sistema, após um
longo curso de ascensão, atingiu os limites estruturais. A valorização do valor é a única finalidade da produção capitalista. A con-
secução desse objetivo absurdo depende da arregimentação de massas crescentes de trabalho vivo para o interior dos processos de
produção de mercadorias. Mas é exatamente isso que já não é mais possível ser cumprido desde que entraram em cena, nas últimas
décadas do século XX, os processos industriais baseados na microeletrônica. A partir de então, a força de trabalho humana passou a
ser substituída em enormes quantidades pelos novos agregados tecnológicos, sem que haja qualquer possibilidade desse movimento
ser compensado pela criação de novos produtos ou pela expansão territorial do capitalismo, já consumada. Nas palavras do autor:
Em termos da estrutura do capital, há um deslocamento importante na sua composição orgânica, com um aumento significativo do capital constante
e, em decorrência, uma redução bastante expressiva do capital variável, ou seja, da força de trabalho. Essa nova composição bate forte na razão de
existência do capital, que é a sua permanente acumulação. Para a realização desse fim é determinante incorporar quantidades crescentes de trabalho
humano, de onde se extrai o mais valor que movimenta a lógica do todo. Contudo, à medida que esse mesmo trabalho é substituído por com-
plexos sistemas de produção automatizados, a criação de riqueza perde as suas antigas bases materiais, gerando ao mesmo tempo uma imensa
crise social – que é constatável pelo desemprego estrutural – e um limite lógico para a continuidade da acumulação – que se deve à perda da sua
substância viva: o trabalho.
Menegat apresenta, então, uma formulação radical para a compreensão do estágio contemporâneo do capitalismo. Não
estaríamos simplesmente atravessando mais uma das crises do capitalismo, diante da qual poderíamos nos posicionar como quem
espera o retorno da normalidade depois de passada a tormenta. Pelo contrário. O horror social e ecológico de nossa época seria
a manifestação do caráter miserável de uma forma social cuja correspondente forma de riqueza se tornou arcaica em função dos
novos potenciais produtivos que ela própria contribuiu para criar: uma forma social que só pode ampliar seu prazo de validade através
do recrudescimento inaudito de seus impulsos destrutivos.
O autor utiliza o conceito de barbárie para designar os retrocessos que irrompem nesse contexto. A barbárie, segundo ele, é uma
característica da lógica dessa civilização, no sentido de que pertence ao seu caráter. “É o determinismo da sociedade burguesa”.
E quem são os bárbaros? “Os bárbaros não são estranhos a esta sociedade, sendo tão somente o produto de relações sociais
estranhadas. Eles são a própria identidade desta forma social”. Os bárbaros são todos aqueles que, de um modo ou de outro,
contribuem para perpetrar o horror cotidiano em que naufragamos e o mundo ainda mais sombrio que está por vir. Uma das
manifestações da contradição do capitalismo é que, como num leito de Procusto, essa forma social amputa a substância social
que sobra aos seus mesquinhos limites. E é nesse sentido que tem de ser compreendido o enorme surto de encarceramento
que explode em todo o mundo. Esse vínculo estrutural está por detrás da política do medo e das campanhas de ódio e re-
vanche que grassam em nossa época. “A sanha por mais prisões e por se prender todos os que parecem ameaçadores não tem
limites. No mundo inteiro, dos Estados Unidos à China, e desta à Europa, passando pelo Brasil, estão encarcerando
populações gigantescas. Essa tendência revela uma irracionalidade sem saída”. O descalabro se consuma através do
extermínio físico da “humanidade supérflua”, com destaque para o Brasil, que é uma das vanguardas da desintegração
capitalista. A quantidade de mortos por causas violentas no país é típica de uma situação de guerra civil, e obedece a
um corte francamente genocida: tais causas atingem prioritariamente jovens negros. “Os vínculos entre vida material
e fundamentação do poder, com as razões da punição, não podem mais ser escamoteados, sob o risco de sermos covarde-
mente coniventes com os novos genocídios que a preservação da sociedade burguesa tardia exige”. Assim, o “pessimismo”
que às vezes parece atravessar as análises de Marildo Menegat não é nada mais do que a tradução do péssimo mundo no qual
vivemos, e está articulado com a utopia da criação de uma nova e melhor forma de organização social. “Utopia é pessimis-
mo transformado em força vital”. De fato, o autor não vê grandes potencialidades no proletariado e suas antigas formas de
organização. Os antigos coveiros do capitalismo parecem não ter mais impulso emancipatório: humilhados e derrotados
sob as vagas das inovações tecnológicas, integrados ao modo de vida e consumo capitalista... Todavia, a contradição entre o que
é e o que pode ser explode com toda força. Os enormes contingentes de seres humanos “sobrantes” podem ser a base de um
amplo movimento social de emancipação. Mas tal movimento tem de ser criado conscientemente: não pode ser o resultado
de qualquer determinismo objetivo inerente à desintegração capitalista. A transformação social passa pela criação de uma
“contra-esfera pública” e de um “contra-poder” para a “autogestão das necessidades sociais de massas crescentes jo-
gadas para fora da esfera de valorização do capital”. Os potenciais produtivos desenvolvidos pela humanidade, que não
mais cabem no interior do invólucro da forma da mercadoria, devem servir à satisfação das necessidades básicas comuns
e ao tempo livre, e não mais ao insano processo de valorização do valor. Há tempos que as universidades se tornaram um
apêndice do processo global de produção de mercadorias, no qual o conhecimento é avaliado em função dos critérios de
rentabilidade. “Se a relevância de todo o conhecimento é determinado por sua capacidade emancipatória, podemos dizer
que algo de muito profundo se modificou nessa modalidade de universidade, reduzida à unidade de um ramo da produção.
Nela não importa mais para que serve o conhecimento; o importante é que ele seja vendável”. Marildo Menegat resiste
no interior dessa imensa fábrica produtora de mercadorias que se tornou a universidade brasileira.•
Marildo Menegat Estudos sobre ruínas. Rio de Janeiro:
Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2012.
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CAPA

COPA DO POVO: cadê

A ocupação Copa do Povo em Itaquera: se há dúvida que o poder popular exista, a comprovação está na
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 15

ê o gol da moradia? Mirela Von Zuben

felipe melo

N
Desde o começo

N
as ondas falhas da sintonia de
uma rádio qualquer de São o início, em dois de maio de 2014,
Paulo, o som se anuncia desse as famílias chegam ao local com
jeito: “a taça do mundo é nos- enxadas, lonas e pontaletes, pron-
sa! Quer uma promoção para ganhar qua- tos para o esforço de terem de ca-
tro convites para assistir a Copa do Mundo? pinar todo o terreno. Ali, já no primeiro dia,
(...)”. Enquanto a propaganda denuncia a uma garoa fina limpa a alma dos novos morado-
chegada de um dos eventos mais espera- res e os prepara para extensos dias de sol e calor
dos e sonhados dos últimos tempos no país intenso, mesmo no outono.
verde-amarelo, o “mundo real” há tempos Quando o primeiro raio desponta na ocupa-
desperta em frente aos olhos do brasileiro. ção, já é possível ver a dimensão do local: uma
O dono do rádio que toca o anúncio imensidão de espaço, de esperança e de vidas.
ajeita sua casa modesta – se é que pode- No entorno dali, ruas de asfalto e dois espaços
se chamar o amontoado de lonas pretas, primorosos – o Parque do Carmo, local que
seguradas firmemente por pontaletes e fi- abriga uma extensa área verde e um planetário;
tas de plástico, de casa, moradia, ou lar. O e o SESC Itaquera, polo de atrações artísticas e
aparelho, que só funciona à base de pilhas, culturais na cidade mais cinza do país.
está colocado em cima de um carrinho de Já na Copa do Povo, logo na entrada, há um
bebê tomado pela sujeira, bem em frente à espaço dedicado ao encontro dos moradores. O
entrada da barraca. Ao lado do homem, a chão, feito de cimento previamente à ocupação,
esposa e o filho pequeno ajeitam algumas é extenso e abriga em um dos cantos uma far-
madeiras sob o sol forte e o ar gélido de mácia com ervas medicinais – uma horta com
meados de maio de 2014 na região de Ita- diversas plantas cultivadas pelos próprios mo-
quera, na capital paulista. Desde o dia dois radores que as regam, inspecionam e colhem
daquele mês, 4,5 mil famílias – número posteriormente. Pouco mais ao lado, virado ao
aproximado – abrigam-se da mesma forma centro daquela espécie de praça, há um palan-
que eles. O local, denominado de Copa do que feito de madeirite, usado de palco para a
Povo por aqueles que o formam, tem nome militância durante as periódicas assembleias da
ousado, provocativo e sugestivo – e faz pra- ocupação.
ticamente um grito para um dos maiores
problemas do território brasileiro – a falta Brigadas, “rango” e cozinha

A
de moradia digna. Copa do Povo é bem extensa. Por
Formada na periferia da Zona Leste da isso, foi dividida em oito brigadas –
capital paulista, a ocupação enraizada pelo espécies de bairros dentro de uma
Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto cidade. Cada brigada, enumerada
(MTST) reivindica, além de um lar para de G1 a G8, tem sua independência dentro da
cada uma destas famílias, também a melho- ocupação. Um “gê” contém banheiro e cozi-
ria nos sistemas de saúde, educação e mo- nha próprios, utilizados e mantidos em comu-
bilidade urbana, setores da sociedade que nidade. Eles são construídos com pedaços de
mais carecem de investimento no Brasil. madeira que garantem a sustentação das pare-
O terreno escolhido por eles encontrava- des de madeirite e os fogões são fruto de doação
se ocioso há anos e, usado como forma de dos próprios moradores.
especulação imobiliária, estava registrado Nada dentro da Copa do Povo é pago. Tudo
como área rural – localizado ironicamente o que se tem ali é dado de forma voluntária. Por
bem no coração de um centro urbano. De isso, os moradores sempre deixam o que podem
acordo com o que foi apurado pelos pró- na sua respectiva cozinha. Vale desde arroz, até
prios militantes do Movimento, o proprie- carne, legumes e temperos; o importante é a
tário desta área de cerca de 160 mil m² pa- participação ativa ali dentro. Cada um que dei-
gava “abusivos” R$ 57 de imposto por mês xa entregue a comida na cozinha, tem de assi-
para manter o terreno tomado por mato e nar o nome para marcar ali a sua participação no
pés de eucalipto: um local improdutivo. que o MTST chama de “poder popular”.
a voz do povo; a voz que habita. No dia 17 de maio de 2014, a cozinha co-
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Você tem sede de quê?

S
munitária do G6 preparou feijoada. “A gente lhas – símbolo do Movimento, da ação popu-
deu a ideia e todo mundo do grupo concor- em a infraestrutura adequada, já lar e da voz do povo – e pedaços de madeira.
dou. Cada um vai trazendo os ingredientes e que a Copa do Povo carece de Em menos de duas horas, tudo fica pronto.
nós cozinhamos tudo”, conta Andreia Barbosa energia elétrica, sistema de esgo- Ali, vale a ajuda da criançada na pintura, dos
da Silva, 30 anos, uma das voluntárias daque- to, distribuição de água e ligação novos adultos no carregamento das partes pe-
la cozinha junto a Marinalva Rosa dos Santos, de telefone, os moradores têm de trabalhar sadas da estrutura e dos mais velhos e das mu-
36, e Marli Tomás de Souza, 45. Unidas, as três em equipe para que a ocupação toda seja lheres nos retoques finais. Ao lado de uma das
preparam café da manhã, almoço, café da tarde abastecida de forma justa. Para isso, nas co- paredes da mais nova cozinha, o grito, pinta-
e janta para os moradores da referida brigada. E zinhas existem pilhas de garrafas PET que do de branco em uma faixa vermelha: “Dil-
funciona da mesma forma nas outras sete. armazenam o líquido que servirá para matar ma, estamos aqui! Queremos resposta, somos
Enquanto prepara a comida, Andreia rela- a sede e garantir o cozimento correto dos ali- o seu G5 despertador!”.
ta uma das suas maiores dores na vida, afinal, As ladeiras do G3 e G4

E
mentos, além da limpeza deles, é claro.
cozinhar é uma arte e uma porta aberta para a Com o auxílio também de pallets, os ho- xceto pelos primeiros instantes de
contação de histórias, de desabafos e aumento mens – principalmente – usam sua força para existência da Copa do Povo, em dois
no círculo de amizades. carregarem as panelas e utensílios de cozi- de maio, a população da ocupação
A mulher perdeu o marido em 2009 e, des- nha para a entrada da ocupação. Lá, tudo é não viu a cor da chuva em 15 dias.
de então, cuida dos cinco filhos sozinha. A vida lavado em água corrente por eles mesmos e Seca para uns, sorte para outros. As ladeiras ín-
de seu marido foi tirada injustamente, assim há uma fila organizada entre os representan- gremes que abrigam o G3 e o G4 são perigo-
como acontece com muita gente no país. “Ele tes das brigadas para garantir que tudo esteja sas; de vielas estreitas e tortuosas, seja a noite,
trabalhava duro todos os dias, fazia entregas em limpo a tempo para a preparação das refei- seja durante o dia, são cercadas por diversos eu-
Suzano. Um dia, foi transportar uma carga de ções. Já em sacolões, as garrafas são levadas caliptos e mostram o temor iminente por um
verduras de uma esquina para a outra e parte até o mesmo local e, depois de cheias, são deslizamento de terra caso a chuva atinja o local
dela atingiu uma moto quando o caminhão entregues de volta aos seus locais de origem. de forma torrencial. No local, a própria popula-
passou por um buraco e acabou trepidando”, “A gente pede pros meninos pegarem água ção encarregou-se de construir escadas na terra,
relata com lamentação. “O motoqueiro foi in- e deixamos tudo aqui (na cozinha). Sempre mas, mesmo assim, é preciso andar sempre com
ternado e ele era da “correria”, sabe?”, conta, tem alguém que passa e pede, né”, afirma um olho no chão e outro no horizonte.
fazendo alusão ao envolvimento do homem Andreia. Bem no meio da ladeira, quem desponta é
com o crime. Os amigos dele cobraram a culpa O armário da cozinha de cada brigada, Daniel José dos Santos, 42 anos, uma verdadeira
do marido de Andreia por meses, até que foi graças à união dos moradores, está sempre máquina de construir barracas. Com problema
morto dentro de seu carro com tiros em 26 de cheio: tem arroz, feijão, açúcar, sal, macar- de mobilidade, tem uma perna mais curta que a
novembro daquele ano, sem condições finan- rão, farinha e outros itens básicos. A carne, outra, mas isso não o impede de carregar o fardo
ceiras de sustentar o homem e sua chantagem. os legumes e as verduras são entregues pou- de construtor: sozinho, já ergueu oito moradias
Já sedada pelo sofrimento que a vida lhe im- co antes do preparo, já que não existe energia – pelo menos até 18 de maio, quando foi en-
pôs, Andreia engole seco e respira fundo. Ra- elétrica para sustentar uma geladeira por ali. contrado por ali. “Quando a gente chegou, o
pidamente volta a ajeitar os talheres e pega um Mesmo assim, tem quem congele água em pessoal do MTST passou as instruções de como
pano para limpar o balcão enorme feito de ma- garrafas antes de levá-las para a ocupação, as- construir”, conta, enquanto explica de que for-
deira que é utilizado para a colocação das pane- sim é possível manter o frescor em meio ao ma ergue o lar. “Dá pra montar uma barraca em
las e ingredientes. ar seco da área. duas horas. Primeiro, faço quatro buracos na
O café da manhã é servido às oito da manhã, A vista geral

A
terra. Coloco os pontaletes e nivelo o solo, já
o almoço às 13h30; o café da tarde e a janta vêm ocupação do MTST tem uma vis- que aqui é descida. Tem também que colocar
logo em seguida. Para avisar quando a comida ta um tanto quanto privilegiada da uma madeira em volta pra evitar que entre bi-
está pronta, um jeito rústico: vai na base do gri- região de Itaquera. Localizada em cho, tipo cobra e rato. No espaço, tem que dar
to mesmo. Há alguns ainda que usam apitos e um ponto alto do bairro, da região pra caber um colchonete e uma pessoa em pé.
trombones e passam pelas vielas de terra avisan- da cozinha do G5 é possível ver a maior antíte- Depois, é só colocar a lona por cima e amarrar
do sobre a abertura do “rango” de cada dia. se do povo instalado ali: a Arena Corinthians, tudo com fita”.
Em menos de cinco minutos, a fila está for- ou Itaquerão, ou ainda Arena São Paulo. Or- Depois de dadas as instruções, ele começa a
mada. Alguns comem ali mesmo, na frente da çado em R$ 820 milhões no início de sua construir o oitavo barraco desde que entrou na
cozinha, acomodados em cima de pallets ou construção, em maio de 2011, hoje seu gas- ocupação, já no primeiro dia. Com a enxada,
de algum canto confortável, e outros preferem to já atinge os R$ 1,17 bilhão. A abertura da “liga o motor” e nivela o solo, parando no meio
ir até suas barracas para fazerem a refeição. O Copa do Mundo da Fifa deve acontecer nes- para descansar – a respiração ofegante, quase
único problema ali é a proximidade tão grande te estádio no dia 12 de junho com o jogo do nula devido a uma traqueostomia, não é sufi-
com as ruas de terra. Mesmo com a higiene em Brasil contra a Croácia. Enquanto ali as obras ciente para parar o homem que possui um terço
dia e o cuidado com os alimentos, a poeira sobe seguem naquele famoso “jeitinho brasileiro” amarrado na mão direita, mesmo membro que
muito fácil e, inevitavelmente, acaba atingindo de deixar tudo para a última hora, na Copa do dá por falta de três dedos. “Tem que ter fé, né”,
seus pratos. “É um tempero especial”, brinca Povo a população não hesita em construir, er- sorri, enquanto aponta o indicador da mesma
Andreia, que conta que, por dia, são feitos ali na guer barracas e deixar o local o mais próximo mão para o céu. Tira o boné vermelho, seca o
cozinha do G6 cerca de vinte quilos de arroz e possível do ideal e adequado para eles. suor com a manga da blusa e retoma a jorna-
quatro de feijão. E é comida da boa, viu? Tudo No dia 17 de maio, pouco antes do meio- da. Pega a enxada e continua a desempenhar sua
feito no capricho e com os temperos certeiros. dia, um grupo do G5 se ajeita e começa as primordial função por ali.
obras de finalização da cozinha comunitária.
Com a força em equipe, levam tintas verme-
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 17

Segurança garantida, ordem na vida para o G1, a equipe já se depara com uma a um gasto de R$ 550 por mês, fora o custo de uma

S
ob a luz da chama laranja que forma mulher bêbada. Conduzida por um amigo, a babá e perua pra Stephanny, que precisa ir pra es-
uma fumaça rala no céu, a Lua vira moradora trança as pernas enquanto afirma: cola”, conta Maria Elita, que trabalha de empregada
lâmpada no teto de estrelas da Copa “hoje é meu aniversário!”. Como um vulto, doméstica.
do Povo. A fogueira serve de aque- ela aparece em frente ao coordenador e, an- Ficaram sabendo da ocupação pela televisão, já
cedor natural das madrugadas gélidas que tes de um estalo nos dedos, desaparece entre que o foco atual da mídia fica dividido entre a Copa
tomam conta por ali. Uma pausa para um as lonas do G1. do Povo e a Copa do Mundo da Fifa. “Um amigo
cigarro. Depois do quinto copo de café, o Com os braços cruzados para trás, gola da nosso também quis vir pra cá e chegamos já no pri-
trabalho está apenas começando. Silas André blusa azul-marinho levantada, botas e lan- meiro dia”, conta Marcone. “A empresa que eu faço
dos Santos, 28 anos, o Alemão, ajeita o gor- terna na mão, Alemão parece uma raposa bico de pedreiro cedeu vários pontaletes pra gente e
ro enquanto descansa após a primeira subida andando entre as barracas. Para em cada fo- conseguimos assim erguer a barraca. O custo de vida
pela ladeira do G5. gueira e procura por vestígios da ilegalidade. em São Paulo é alto, mas ainda assim compensa mais
Com cara de poucos amigos, seriedade e “Aqui dentro da ocupação é proibido bebida ficar aqui do que voltar pro Maranhão”.
lanterna de pilha na mão, Alemão é o “che- alcoólica e uso de drogas. Se a gente vê, pede Quando questionados se concordam com a re-
fe” da segurança da ocupação. Se o Brasil pra guardar, pra apagar, senão é convidado a alização da Copa do Mundo, as famílias nunca he-
possuísse um quarto da organização que se se retirar”, afirma. sitam na resposta, que é sempre negativa. “Ao invés
vê durante as madrugadas através da colabo- Em cerca de uma hora, toda a parte bai- de fazer a Copa, não é mais justo primeiro dar saúde
ração dos próprios moradores, haveria défi- xa da ocupação é percorrida por sua equi- e educação pra quem tá dentro do país?”, questiona
cit em índices criminais, em dores de cabeça pe. Sem grandes ocorrências naquele dia, Maria Elita.
só mesmo os bêbados deram um pouco de A voz do povo é a voz que habita

A
para autoridades e população, e em choros
desesperados de mães que perdem filhos trabalho aos anjos dali. Eles param no G5 e, coordenação geral da ocupação anuncia
para o crime a cada dia. sob a luz do luar, retomam a jornada até que e o povo responde. “M-T-S-T...” – “A
Pontualmente às dez da noite, um gru- o sol desponte novamente. luta é pra valer!”. É em tom de revolta,
Mar de gente

N
po de uma média de 35 homens se reúne na força e persistência que as assembleias da
praça principal da ocupação todos os dias. a Copa do Povo, o que mais se vê são Copa do Povo tomam forma a cada nova reunião.
Ali, se dividem em equipes que farão a ronda barracas com muita gente. É o caso Neste momento, são repassados todos os recados
noturna a partir das onze, até às seis da ma- da família de Maria Gomes Ferreira, para o pessoal e a agenda de manifestações pela ca-
nhã, no que para eles é chamado de “trilha”. 55 anos, que levou consigo mais 20 pital paulista. “Um, dois, três, o quatro não se conta,
Alemão coordena tudo. Chegou na Copa do pessoas – entre filhos, genros, noras e netos – para ou dá a nossa casa ou o sem-teto toma conta”.
Povo no dia três de maio e desde então assu- a ocupação. Para a manutenção da ordem ali, cada brigada
miu essa difícil missão. É tanta gente que sua barraca parece mais um possui seus próprios coordenadores, moradores que
Os homens da segurança devem traba- hotel. Com todo o cuidado do universo, o lar tem se voluntariam para a função. Eles são encarregados
lhar de calça e sapato fechado, já que o risco diversas divisórias para garantir a privacidade de cada de manter uma lista com todas as famílias que per-
de serem picados por cobras durante a noite um ali dentro. As paredes são feitas de lona preta e, manecem vivendo no local e repassam as informa-
é muito grande e a falta de visibilidade do no que poderia ser chamado de “sala” da barraca da ções para a militância, porta-voz das 4,5 mil famílias
chão aumenta as chances de alguém sair dali família, todo mundo se reúne e ri o tempo inteiro. e ponte entre os moradores e os governos municipal,
lesionado. O trabalho é árduo, mas garante o Maria veio do Piauí, mas os filhos deram o pri- estadual e federal.
bem estar das 4,5 mil famílias que vivem ali. meiro choro da vida em solo paulistano. “Quando Na assembleia de 17 de maio, um mar de gente
“Aqui vocês vão encontrar de tudo, desde eu era pequena lá no Nordeste, comi muito feijão tomou conta da praça. Foi anunciado ali o 3º Ato
bêbados, até brigas de casais e gente usando com caldo verde. Não quero isso pros meus filhos”, “Copa sem povo, tô na rua de novo”, mobilização
drogas. A noite é imprevisível”, diz Alemão, afirma. Natanael Ferreira dos Santos, 32 anos, é o que, no dia 22 do mesmo mês, ganhou mais uma
enquanto passa as instruções para os ho- filho mais velho de oito que Dona Maria colocou vez destaque nacional. Os holofotes estão no povo e
mens. Logo depois, já sai a primeira equipe no mundo – um deles já morreu. Ficaram saben- a voz é da população também.
que tem ponto de encontro em frente à cozi- do da existência da ocupação por serem membros Estima-se que, naquele dia, 20 mil pessoas te-
nha do G5, local mais alto da ocupação. da Associação de Moradores do Jardim Helian, lo- nham comparecido na manifestação que teve início
O coordenador da segurança explica cal de onde vêm, e que fica próximo dali. “Eles (o às cinco da tarde no Largo da Batata, em São Paulo,
como é feita a abordagem. “Se a gente se de- MTST) procuraram a associação pra divulgar a ocu- capital. Ali, palavras de ordem ecoaram na cida-
para com um bêbado, por exemplo, temos pação pros moradores, mas acompanhamos tudo e de cinza e o trânsito parou. Somente com o
de conduzir ele até a sua barraca, sem fazer acabamos entrando nessa também”, conta Natanael. caos na mobilidade urbana é que se conse-
barulho. Os moradores respeitam bastante, “Nosso país precisa de mais moradia, não de Copa gue a atenção do governo.
mas são diversas situações diferentes”. do Mundo. Precisa de educação e de saúde, a gente E foi o que aconteceu. No dia seguinte,
As noites de sexta-feira para sábado e de não tem nem postinho lá no Jardim Helian”. foi dado um novo prazo para a permanên-
sábado para domingo são as que dão mais A opinião de Natanael é a mesma compartilhada cia das famílias no espaço e ficou prometida
trabalho para a segurança da ocupação. “O por milhares dos que vivem por ali. Entre os que têm uma visita da Caixa Econômica Federal na
pessoal sai do trabalho na sexta e já vai pro o mesmo pensamento, está Marcone Vieira Pereira, ocupação. Até o dia 16 de junho – quatro
bar, né. Daí acaba chegando bêbado, é nor- de 28 anos, que chegou ali na ocupação junto à sua dias após o início da Copa do Mundo da Fifa
mal isso em qualquer lugar”, pontua Ale- mulher Maria Elita Santos, 26, e à filha Stephanny, – ela estará na Copa do Povo para verificar a
mão. 6. Há três anos saíram do Maranhão e estacionaram viabilidade da construção de um empreen-
Na sua primeira saída na madrugada do suas vidas na capital paulista em busca de oportuni- dimento habitacional no local. Se há dúvida
dia 17 para 18 de maio – sábado para domin- dades. “Aqui a gente tem mais opções, mas paga- que o poder popular exista, a comprovação
go – logo ao descer a escada que dá entrada mos um aluguel de R$ 400 e, com água e luz, chega está na voz do povo; a voz que habita.•
NOVA PALESTINA
ENSAIO

a maior ocupação do mundo Fotos por Pablo Pascual(1, 2 e 3)


e Amanda Perobelli(4)

Desde novembro de 2013, oito mil famílias ocupam uma área com mais de 1 milhão de m² localizado na região do Jardim Ângela, periferia da zona
sul de São Paulo. A ocupação Vila Nova Palestina, que homenageia a histórica luta de um povo por sua terra contra o sanguinário exército de Israel,
é considerada a maior ocupação urbana de luta por moradia do mundo e está entre as dezenas de ocupações que foram feitas na maior cidade do país.
22 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

MTST: avanços e obstáculos


de uma luta anticapitalista Débora Cristina Goulart

Ato organizado pelo MTST/Resistência Urbana no dia 22 de maio reuniu mais de vinte mil pessoas pela Campanha “Copa Sem Povo Tô Na Rua de Novo”.

A
s notícias sobre as ações do de trabalho, transformando em subpro- produtivas e o neoliberalismo como um que exclui os jovens e idosos, causando
MTST aparecem cada vez letário todo trabalhador que depende da conjunto de medidas de contrarreformas uma heterogeneização, fragmentação e
mais na grande imprensa, venda de sua força de trabalho de forma que visavam conter a queda da taxa de complexificação da classe trabalhadora.
mostrando a força de mo- explícita, com o trabalho produtivo e a lucro, após a crise dos anos 1970, impac- O resultado da implantação desta
bilização deste movimento. Mas qual é valorização do valor, ou de forma camu- tou diretamente na composição da classe nova organização do trabalho tem como
sua importância na organização da classe flada, com o trabalho improdutivo pela trabalhadora no Brasil. finalidade intensificar a exploração da
trabalhadora brasileira, no campo da es- regulação do sistema de assalariamento, O desenvolvimento de uma estrutu- força de trabalho, o que dificulta man-
querda e das lutas populares? Diferente inseridos em condições precárias de tra- ra mais flexível de acumulação através da ter os direitos conquistados ao longo do
dos sindicatos e dos atuais partidos, a base balho e remuneração, instabilidade da introdução de técnicas de gestão da força tempo, por gerar uma crise nas organi-
social do MTST é o subproletariado. atividade de trabalho, jornadas ampliadas de trabalho, que desconcentra as unida- zações da classe trabalhadora ligadas aos
A expressão “trabalho informal”, e direitos do trabalho negados. Além dis- des produtivas, intensificou a terceiriza- setores produtivos. Esse processo se agra-
utilizada pela Organização Internacio- so, a competitidade entre os trabalhado- ção e recolocou o trabalho polivalente, vou nos anos 1990, com a aplicação do
nal do Trabalho – OIT, não é suficien- res isolados, sem representação sindical multifuncional. Isto, somado à entrada conjunto de contrarreformas neoliberais,
te para explicar qual é a condição dessa e sem proteção trabalhista legal, leva a em larga escala de tecnologia computa- legitimadas pelo voto popular que elegeu
parte da classe trabalhadora no Brasil. uma extrema individualização das ações dorizada na produção, gerou a diminui- governos neoliberais.
Milhares de pessoas que se encaixariam que buscam diminuir a brutalização do ção do capital variável (força de trabalho) Assim, as mudanças no processo pro-
nesse tipo de trabalho estão submetidas a trabalho diário. Por outro lado, a neces- em relação ao capital fixo (maquinário), dutivo, aliadas às políticas neoliberais,
condições muito mais duras do que sim- sidade do aumento da renda pode levar aumentando assim a produtividade. destruíram as bases de sustentação de um
plesmente “não terem carteira assinada”. a atividades ilícitas, não como atividade Daí, o desemprego estrutural se ali- sindicalismo de confronto construído ao
Deve-se levar em conta, em primeiro lu- principal, mas secundária na vida desses mentar de dois mecanismos aparente- longo da década de 1980, com a criação
gar, que este processo é uma tendência trabalhadores. mente contraditórios: a desproletariza- da CUT. Os alvos prioritários da políti-
crescente vinculada às transformações O avanço da subproletarização no ção do trabalho industrial com a redução ca neoliberal são os sindicatos e centrais
no âmbito da produção capitalista, como Brasil se dá com a desindustrialização dos trabalhadores nas fábricas e o aumen- que vinham de uma história de oposição
a reestruturação produtiva e o desem- do final dos anos 1980, expressão da re- to do subproletariado, principalmente no aos governos na década de 1980, e que
prego estrutural. Ademais, precariza a estruturação produtiva que introduziu setor de serviços, com trabalho precário, construíram, com luta, as conquistas dos
materialidade da reprodução da força o toyotismo no interior das unidades parcial, mal remunerado, mais feminino, trabalhadores. Podemos chamar essas or-
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 23

ganizações de “herdeiros do novo sindi- do Estado quanto em diversos locais da foco de ação diferente do campo: com Essas duas ocupações, que duraram
calismo”. sociedade. É formulado um método de outras motivações, organização e estraté- por volta de dois anos, representaram um
Diante da crise, a CUT reorientou democratização social que teria a capa- gias. Com a participação de alguns mili- novo patamar de organização e elabora-
suas ações na tentativa de não perder mais cidade de “incluir” grandes parcelas da tantes do MST, ocorre uma ocupação de ção interna de suas ações e prioridades do
espaço entre os sindicalizados, apostando população nas benesses materiais do ca- terreno em Campinas, conhecida como MTST. Mudou o desenho da ocupação,
em uma análise conjuntural de que não pitalismo periférico. Parque Oziel. É aí que ocorre a primeira a estrutura organizativa, as relações in-
era mais possível estar na ofensiva, com Porém, essa aposta na ampliação de experiência de ocupação na cidade, ainda ternas e a forma de negociação e pressão
ações diretas e greves, pois a capacidade conquistas pela via da cidadania já estava com traços da organização gestada pelo sobre os governos se aprimoraram. De
organizativa e mobilizatória tinha sido presente na visão dos movimentos sociais movimento rural. outro lado, o Estado aprimorou o tipo
atingida pelo aumento do desemprego no fim dos anos 1970. Ao focalizar a ação Os anos seguintes foram importantes de relação que estabeleceria com o mo-
e queda da renda. Por outro lado, uma na participação política que passa pelo para o amadurecimento das formas de vimento, passando da não aceitação das
postura unicamente defensiva poderia Estado capitalista, não questiona sua ori- luta urbanas e para a configuração de um ações e da determinação do despejo para
desgastar as bases de confiança entre os gem e dinâmica de classe. movimento com características próprias, a negociação, o que, contudo, não signi-
trabalhadores e os dirigentes, aumentan- Ainda nos anos 1990, Lúcio Flávio bastante diversas das estratégias já conso- ficou conquistas de moradias.

O
do uma insatisfação já crescente na base. Rodrigues de Almeida, professor da lidadas no campo.
A saída foi a combinação de um dire- PUC-SP, alerta para os possíveis entraves A partir do ano 2000, o movimento Encontro Estadual do
cionamento para as questões corporativas nas lutas que a ênfase na cidadania pode já tinha uma base social clara: a população MTST de 2007 decide
(produtividade, participação nos lucros, trazer. Por um lado, o Estado e as em- pobre das periferias das grandes e médias pela ampliação da atuação
abertura comercial, etc.) e a abertura presas capitalistas estão intrinsecamente cidades, e um projeto político de trans- do movimento, buscando
para a intervenção em políticas públicas ligados pela concentração e centraliza- formação social, a partir da reivindicação consolidar um “cinturão” de lutas no
(questões de gênero, étnicas, trabalho ção do capital que fragiliza as políticas por moradia e reforma urbana. Começa, estado de São Paulo, e realiza, conco-
infantil, etc.), mas tal concepção neces- que poderiam ser implementadas pelo também, a estabelecer contatos, ainda mitantemente, três novas ocupações em
sitava de espaços de negociação para que Estado. Por outro, a intensidade da de- que incipientes, entre diferentes movi- 2008, nos municípios de Embu das Ar-
essa estratégia de ação se realizasse. Daí a pendência do trabalhador em relação à mentos urbanos em algumas capitais do tes, Mauá e Campinas. A esse processo, o
aposta nos fóruns institucionais, como as empresa e a presença dos “trabalhadores país, como Rio de Janeiro e Recife. movimento chamou de “estadualização
câmaras setoriais, e a participação em es- sem trabalho”, que dependem dos traba- Seu crescimento se dá aos poucos, do MTST”, Indo além das ocupações na
paços de “oposição democrática”, onde lhos precarizados e ilegais, mostra como combinando ocupações e formação polí- região metropolitana de São Paulo, fora,
haveria “possíveis ganhos”. a dinâmica da exploração do trabalho no tica dos ativistas, do que surge um méto- feitas ocupações em cidades do interior e
O que se construiu ao longo dos anos final do século XX, foi favorecida por do de ocupação e resistência urbana. Mas ações para interrupção de transportes de
1990 foi uma forma de ação sindical que legislações aprovadas no âmbito do Es- o avanço não é linear e as experiências re- mercadorias nas principais rodovias do
aderiu ao neoliberalismo em seus prin- tado, em favorecimento da acumulação sultam em diferentes resultados. estado, conhecidas como “trancaço”.
cípios fundamentais e fez oposição cor- do capital. Assim, embora o proletariado Em 2001, ergueu-se a ocupação Ani- De todo modo, até 2008, o foco
porativa, tal como o fez, desde seu surgi- tenha crescido em número, ele está cada ta Garibaldi, em uma área de 250.000 principal das atividades do movimento
mento, a Força Sindical. vez mais fragmentado, diversificado, de- m 2, localizada na periferia da cidade, no foram as ocupações na Região Metro-
Entre os movimentos sociais também sorganizado e perpassado pela ideologia bairro Ponte Alta, próximo ao Aeroporto politana de São Paulo, aprofundando a
ocorreu uma reorientação das ações e da irreversibilidade da subordinação do Internacional de Guarulhos. Um terreno organização interna dos acampamen-
seus instrumentos, sobretudo a partir da trabalho ao capital. de propriedade particular, desocupado tos, uma vez que os “acampados” tem
metade da década de 1980 e que se apro- Porém, ao contrário da adaptação há mais de 50 anos, que vinha sendo uti- a tarefa de manutenção/proteção da área
funda nos anos 1990. Durante o período cidadã, há organizações da classe tra- lizado ilegalmente para depósito de lixo ocupada.
ditatorial a autonomia era o foco dos mo- balhadora que têm buscado construir e, segundo moradores do entorno, para A estadualização das ações de ocupa-
vimentos que se colocavam em oposição uma nova subjetividade que não admite “desova” de cadáveres. ção aprofundou a negociação com o go-
ao Estado autoritário. Com a abertura a exploração e dominação de uma classe Essa ocupação foi significativa para verno do estado de São Paulo, e além do
política, diversos movimentos passaram a pela outra, e procura a frear a “participa- o histórico do MTST, por ter sido a que já era realizado com as prefeituras das
forçar a participação política em instân- ção” na democracia burguesa. São esses primeira grande ocupação (seja pelo ta- áreas, visto que as reivindicações passam
cias do Estado, visto agora como possibi- movimentos sociais que podem nos dar manho do terreno, seja pelo número de pela parceria entre essas três instâncias
lidade de aumento das práticas democrá- algumas indicações do caminho a se- pessoas agregadas, chegando a 12.000) e para a viabilização das moradias.
ticas pela ampliação da cidadania. guir: a construção de uma subjetividade por ter se mantido sem ação de despejo, o Este processo coloca o MTST no
A consolidação da “redemocratiza- coletiva, de classe, que possa, de manei- que favoreceu o movimento a prosseguir enfrentamento direto com o governo
ção”, como resultado da promulgação da ra autônoma e antagônica a esse estado em seus objetivos de crescimento na re- do Estado, quando suas manifestações
Constituição de 1988, das eleições dire- de coisas, tentar a retomada da luta por gião metropolitana de São Paulo. podem gerar desgastes políticos ao exe-
tas, em 1989, e da redefinição do quadro transformações radicais da sociedade A primeira ocupação ocorrida no cutivo. Isso se dá porque o movimento
político-partidário, trouxe um contexto capitalista. Acreditamos que o MTST Governo Lula foi em 19 de julho de opta por ações que chamem a atenção
adequado para a aposta definitiva de um é uma dessas organizações de trabalha- 2003, quando um grupo de 300 pesso- da população e da mídia para a instância
determinado campo político no pro- dores que têm buscado um caminho de as ocupou uma área de 170 mil m² em de governo a que se quer atingir, o que
jeto participativo democratizante. Esse enfrentamento, mesmo sendo arremeti- São Bernardo do Campo em frente à fá- em geral serve para forçar uma abertura
campo formou-se com número signifi- do ao centro das políticas regressivas de brica da Volkswagen do Brasil Ltda., no de negociações. Essas ações são marchas,
cativo de intelectuais e professores uni- direitos. km 23,5 da Via Anchieta. Tinha início acorrentamentos a prédios públicos ou

O
versitários, que tiveram grande papel na a ocupação Santo Dias, que, em dias, em áreas públicas e greves de fome em
divulgação desse projeto, sobretudo por embrião da sua constru- atingiu quatro mil pessoas e confirmou locais de grande circulação.
sua vinculação a universidades Esses pro- ção do MTST ocorre no a previsão dos militantes de uma boa Apenas um ano depois das ocupa-
fessores eram majoritariamente vincula- interior do Movimento adesão dos moradores das favelas e dos ções em nível estadual, o movimento se
dos ao Partido dos Trabalhadores. Mas é dos Trabalhadores Rurais morros do bairro de Ferrazópolis, onde lança ao objetivo de nacionalizar o movi-
preciso também destacar que muitos se Sem-terra(MST), e se acentua durante a se situa o terreno ocupado. mento, formando grupos de atuação em
tornaram dirigentes de ONGs e, após a Marcha Popular Nacional de 1997, que Não houve qualquer abertura para estados diferentes, mas sob uma única
eleição de Lula, ocuparam cargos nas se- passou por várias cidades, e cujo intuito negociação e, em menos de um mês, organização e procurando unificar uma
cretarias dos Ministérios. era estabelecer vínculos mais organizati- houve o despejo. Depois desta ocupação carta de princípios políticos e de atuação.
Forma-se uma “frente” política que, vos entre os movimentos do campo e da o movimento procura aprofundar suas A manifestação que inaugura essa nova
articulada pelo Partido dos Trabalhado- cidade. No município de Campinas, no formas de atuação e intensifica a forma- fase é o acorrentamento de militantes aos
res, sobretudo, propõe focar as ações na estado de São Paulo, militantes do MST, ção dos militantes para avançar em novas portões do prédio de apartamentos em
construção da cidadania através da di- estreitaram laços com militantes, vindos ocupações, o que ocorre apenas em 2005 que o presidente Lula tem um imóvel,
minuição da exclusão econômica e do de movimentos urbanos. Esta aproxima- com o acampamento João Cândido, em na cidade de São Bernardo do Campo
aumento da participação política da so- ção gerou um grupo que passou a inves- Itapecerica da Serra e Chico Mendes, em em julho de 2009. Foram oito dias até a
ciedade civil organizada, tanto nas esferas tigar os problemas sociais urbanos, como Taboão da Serra. abertura das negociações com o Ministé-
24 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

rio das Cidades. O resultado foi o com- seria necessário fortalecer a parcela mais da moradia, a reforma urbana e a trans- O MTST faz uma crítica às propostas
promisso do governo federal em incluir à esquerda dentro do governo. De nossa formação social pela via da construção de reforma urbana que se limitam à me-
as famílias acampadas no programa habi- parte, concordamos com outros autores de uma identidade coletiva. Embora não lhoria da qualidade dos serviços urbanos e
tacional Minha Casa, Minha Vida. que afirmam que o governo do PT, po- haja um aprofundamento desses objeti- à conciliação com os interesses privados,
A escolha pela interpelação direta ao rém, conseguiu agregar definitivamente vos, fica claro que a única “saída” a ser que fariam concessões à pressão da popu-
presidente Lula foi construída interna- o apoio da burguesia industrial e agrária, considerada é a superação desse estado de lação organizada por acesso a algum direi-
mente no MTST, como forma de ace- quando “iniciou sua política agressiva coisas, através da formação de militantes to de forma pontual. Segundo o MTST,
lerar as negociações, mas também ocorre de exportação centrada no agronegócio, qualificados para a ação responsável, e da a reforma urbana proposta é um projeto
pela construção de uma rede de alianças nos recursos naturais e nos produtos in- construção de uma identidade coletiva “de classe, de enfrentamento à cidade
com outras organizações de trabalhado- dustrializados de baixa densidade tecno- que faça com que, como diz a Cartilha do capital”, tendo, como contraposição,
res para a construção de uma resistência lógica” cuja sustentação se dá pelo saldo do Militante, “o povo explorado perceba a apropriação coletiva do espaço, a partir
que possa avançar em conquistas tanto positivo da balança comercial, do supe- que [...] eles são o time dos oprimidos e dos seguintes eixos: “crítica à cidade-
corporativas quanto da classe, questio- rávit primário e da superexploração do que o único time com quem eles devem mercadoria, combate ao capital imobili-
nando o papel do governo federal lidera- trabalhador. brigar e competir é o time dos opresso- ário em todas as suas formas, defesa das
do pelo PT nestes avanços. Se, por um lado, o governo do PT res”. expropriações de terras, questionamento
Partindo de uma caracterização de conseguiu ampliar as medidas neolibe- Ao se apresentar como um movi- das políticas de cidadania participativa”.
crise da esquerda, identificada com a rais, favorecendo o conjunto da burgue- mento que não é de moradia, mas que A proposta de construção do poder
ruptura do PT e da CUT com os inte- sia, entre os trabalhadores não perdeu se organiza a partir da moradia, o MTST popular aparece de várias formas nos do-
resses da classe trabalhadora, e da difi- apoio: ao contrário, apenas aumentou. afirma que a luta contra cada um dos cumentos do movimento, ora como ob-
culdade dos sindicatos de organizarem a Mas como, ao ampliar as medidas neoli- problemas que desumaniza o trabalhador jetivo, ora como bandeira e ainda como
parcela de trabalhadores fora do mercado berais, o governo Lula pôde agradar tam- no capitalismo é uma “luta contra o con- princípio organizativo. Isso porque ne-
formal de trabalho, o MTST se vê como bém os trabalhadores? Se de um lado o junto”. Esse conjunto é o capitalismo, nhuma proposta pode ser efetivada plena-
a organização que pode realizar esse tra- governo fez uso de políticas de desenvol- que aparece indiretamente em vários do- mente sem que passe por uma construção
balho de formação política junto a uma vimento interno e distribuição de renda cumentos, geralmente, pautado pela do- coletiva realizada desde as relações coti-
parcela da classe trabalhadora. Para isso com a ampliação dos programas sociais minação e ausência de qualidade de vida dianas até as propostas de transformação
ressalta a necessidade da unidade entre (Bolsa Família, entre outros), de outro, a dos trabalhadores. mais abrangente. Ao mesmo tempo em
as organizações que não abandonaram a esquerda anticapitalista representados nos No Programa de Ação do MTST, que o poder popular deve estar presente
perspectiva anticapitalista. Sendo assim, partidos, sindicatos, movimentos sociais, a sociedade atual é apresentada como o na formação e dinâmica dos grupos nos
envolveu-se com a formação de uma organizações, etc., se viu frontalmente “conjunto das relações e formas bárba- acampamentos, deve também se efetivar
nova central, em meados de 2004, con- afetada pelos governos do PT. Em pri- ras de opressão que marcam a vida social no enfrentamento do caráter mercadoló-
juntamente com setores do sindicalismo meiro lugar, porque parte dessa esquerda contemporânea”. Em outro momento, gico do espaço nas cidades. O poder po-
e do movimento popular que buscavam demorou a se desvencilhar da “história” como “uma sociedade que transfor- pular como prática política e organizativa
reconfigurar as lutas dos trabalhadores no do partido, sua representação popular, ma tudo e todos em mercadoria (que) é uma “experiência de discutir e fazer
Brasil. Desse esforço nasceu a Coordena- enfim, das expectativas no governo do não vê problemas em atirar bilhões de nós mesmos”, ou seja, a construção da
ção Nacional de Lutas (CONLUTAS) PT. Em segundo lugar, porque aqueles trabalhadores ao lixo quando não são “organização das massas em espaços de
que, em 2010, passou a ser Central Sindi- que não viam possibilidades de mudança mais úteis ao seu consumo vampiresco”. reflexão e decisão coletivos” capaz de ex-
cal, intitulada Central Sindical e Popular no eixo neoliberal já demonstrado pelo Concluem, portanto, que este sistema pressar uma “crítica ao Estado capitalista
(CSP Conlutas). governo, não entendiam ainda a gravida- social não serve aos trabalhadores e que e apontar para formas políticas realmente
Com o mesmo intuito, a forma- de do problema para as organizações da a solução não é “aumentar o preço do ser democráticas”.
ção da Frente de Resistência Urbana se classe trabalhadora. Em terceiro, porque humano, limitando-se a tornar a miséria Mas as contradições que enfrenta-
inscreve na avaliação da necessidade de aqueles que a entendiam, não sabiam mais suportável; queremos uma vida dig- ram outros movimentos no passado, es-
uma ação nacional unificada. Mais do ainda como agir neste novo contexto. na e livre”. tão presentes também no MTST, como
que oposição ao governo do PT, os mo- O balanço desta “batalha de ideias” foi a É apenas no Relatório da Reunião a tensão entre base e direção, o conflito
vimentos sociais urbanos que integram a desqualificação da esquerda, ainda “en- Nacional do MTST de 2009 que o ca- entre a necessidade imediata, neste caso
Frente de Resistência Urbana, o fazem carnada” no PT, que adotara as mesmas pitalismo é citado diretamente como de a moradia, e as conquistas mais amplas
por partilharem da centralidade da luta formas de agir dos governos anteriores. E “natureza contraditória e opressora (que) e a longo prazo, como a luta antineo-
direta como instrumento de ação coleti- mais, as alianças levaram antigas figuras impede um acesso da maioria ao poder liberal e anticapitalista, e a relação entre
va e da proposta de uma Reforma Urba- da política conservadora e reacionária e às riquezas sociais” e sua superação é o movimento e outras organizações e
na anticapitalista. Nos termos da Frente aos quadros do governo como sua base nomeada como “construção de uma so- partidos, incluindo aí o PT. O papel do
de Resistência Urbana, as obras do PAC, de apoio. ciedade socialista”. petismo em algumas prefeituras tem se

O
o programa Minha Casa, Minha Vida, Outra gravíssima conseqüência para mostrado ambíguo. Ora como repressor
são parte de uma contrarreforma urbana, a esquerda anticapitalista é a interpelação debate sobre as limitações das ocupações, ora como único canal de
que evidencia a aliança perversa entre Es- direta do governo com os trabalhadores do capitalismo e da propo- negociação que, inclusive, pode garantir a
tado e capital imobiliário, reproduzindo pela via das políticas compensatórias atra- sição do socialismo como entrada do movimento em programas so-
uma lógica excludente e repressiva de de- vés da figura pessoal do presidente Lula, horizonte do movimento ciais, arrefecendo as enormes dificuldades
senvolvimento urbano. que desorganiza a classe trabalhadora e aparece mais clara e profundamente nos de organização de uma base em extrema
Mas não nos esqueçamos que a his- desqualifica também suas organizações. documentos internos do movimento. condição de pobreza.
tória do MTST foi construída, quase Os vínculos historicamente constru- Este fato não está relacionado à ocultação Pretendemos neste espaço de divul-
que integralmente, nos governos do PT, ídos entre os movimentos sociais e o PT, de suas posições políticas, mas à crítica gação e debate mostrar uma parte de nos-
revelando que seu crescimento tem rela- se apoiou na construção de um “projeto ao que é chamado de “bandeiras vazias”, so trabalho de doutorado, como forma
ção direta com as condições de vida dos de nação” que aos poucos, como vimos, em várias passagens dos documentos. O de contribuir na publicização de infor-
subproletários, em cuja luta por moradia se transforma em projeto de classe, da MTST tem uma concepção de militân- mações e diálogo com interlocutores na
se engajam. Tal engajamento é sinal de classe dominante, implementado pelo cia fincada na realização do trabalho de esquerda anticapitalista.•
um acertado posicionamento crítico em PT, recém convertido em partido da or- formação da base social como instru-
relação às políticas federais. dem. mento de transformação social, sem o
Lula, eleito com mais de 65% dos Neste cenário, o MTST defende que qual qualquer bandeira política seria in- ALMEIDA, L. F. Corrosões da cidadania: contradições da
ideologia nacional na atual fase de internacionalização do ca-
votos, confunde a esquerda, que tem ca- os movimentos populares urbanos de- fértil e inconsistente. Com uma posição pitalismo. Revista Lutas Sociais, São Paulo, n. 1 Xamã, 1996.
racterizações muito diferentes sobre seu vem traçar uma estratégia de ação, com estratégica de superação do capitalismo e Atas da reunião coord. nacional, cartilha do Militante e Pro-
gramade ação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto.
governo. Para alguns, o PT já era neoli- vistaa objetivos abrangentes, formas de buscando a construção de uma base social BEHRING, E. R. Brasil e Contra-reforma: desestruturação
beral antes de chegar a ser governo, en- ação contundentes e organização au- autônoma e consciente, o MTST propõe do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003.
GOULART, D. C. Entre a denúncia e a renúncia: a
cerrando o ciclo de hegemonia do PT na tônoma, duradoura e qualitativamente bandeiras que articulem a ação do dia a APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do
esquerda brasileira. Para outros, a tese da superior ao que vem sendo realizado até dia e os os objetivos mais amplos. Essas Estado de São Paulo) frente às reformas na educação pública
na gestão Mário Covas
“herança maldita” dos governos anterio- então. Na Cartilha do Militante, os obje- bandeiras são: a reforma urbana e o poder
res, colocava o governo sob “disputa” e tivos estratégicos traçados são a conquista popular.
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 25

SAÚDE

a saúde além dos médicos


para um debate sobre o
Programa Mais Médicos

Felipe Monte Cardoso

C
aminho com a agente comu-
nitária de saúde (ACS) e com
o residente de Medicina de
Família e Comunidade em
um bairro da periferia de Campinas (SP)
numa cálida tarde de fevereiro último.
Sob sol de 40 graus da mais crítica onda
de calor dos últimos 50 anos, a vida segue: que impôs a imunização obrigatória con- ce de segregação social entre as clas-
crianças tomam banho de caixa d’água, tra a varíola, estopim da rebelião popu- ses dominantes, os setores remediados
moradores se refugiam sob as escassas ár- lar de 1904 no Rio de Janeiro, também e os segmentos mais pauperizados das
vores, as jovens perambulam pelas ruas, apadrinhou a prática secular de contágio classes trabalhadoras. O lulismo, fru-
mesmo após início do período letivo. A proposital de populações indígenas com to também dessa diferenciação social,
ACS fala sobre os personagens da comu- a mesma doença, “presenteando-as” com soube trabalhar com essa questão, de
nidade, enumera os problemas de saúde roupas contaminadas pelo vírus. No Bra- um lado garantindo enormes lucros às
mais comuns dali: a falta de saneamento sil, paradoxalmente, a guerra biológica e operadoras de planos de saúde, de ou-
básico, a dengue (o bairro foi epicentro de seu antídoto foram armas descarregadas tro lado comprando o apoio popular
uma epidemia no ano passado), a polui- contra o povo. (ou o “consentimento passivo”, segun-
ção de uma fábrica de asfalto e os reflexos Este passado ainda está vivo hoje. Num do Ruy Braga) através da ampliação do
do crime organizado na vida das pessoas. país em que o carro é prioridade ante o acesso dos trabalhadores aos planos de
Antes de ser ACS, trabalhou na produção direito coletivo à mobilidade, em que saúde.
de uma metalúrgica. Confidencia que, os empregos vão se esgotando cada vez Quando a vida se mostrou claramen-
dentro da linha de montagem, jamais se mais, que o acesso a alimentos saudáveis te insuportável para milhões, o edifício
imaginou lidando diretamente com o é sacrificado em nome do agronegócio, ideológico da “cidadania via consumo”
público. O generoso sorriso ao apresentar em que a especulação imobiliária esmaga desmoronou. Um de seus pilares era o
“sua área” denuncia o orgulho que sus- o direito à moradia, as condições de saúde consumismo de saúde, desmoralizado
tenta seu trabalho. são prejudicadas. Não é à toa que quase pelo protestos. O governo Dilma, após
Há milhares de Roses nas quebradas e metade dos entrevistados apontam a saú- se refazer do choque e garantir que nada
zonas rurais Brasil afora. A Estratégia de de como sua maior preocupação (3). A iria mudar substancialmente (ainda em
Saúde da Família, criada (com o nome de relevante – porém insuficiente – redução junho, desistiu da reforma política e as-
Programa de Saúde da Família) em 1994, dos níveis de desemprego consolidaram segurou à banca internacional que con-
é responsável por atender cerca de 110 mi- esse cenário a partir do segundo governo tinuaria a desfrutar das prioridades de

N
lhões de brasileiros (1). Embora haja um Lula. sua política econômica), resolveu agir
batalhão de trabalhadores e trabalhadoras ão foi surpresa, portanto, na saúde.
da chamada Atenção Primária à Saúde no a enorme popularidade Estava no fim das férias quando veio à
Brasil, foi apenas com o polêmico Mais dos lemas em defesa da tona o pacotaço denominado Mais Mé-
Médicos, resposta oficial às Jornadas de saúde durante as Jornadas dicos, no sugestivo dia 09 de julho. Na
Junho, que este tema chegou ao centro de Junho. O que surpreendeu muitos semana anterior, havia acompanhado
do debate público em anos recentes. ativistas foi uma defesa generalizada do à distância as mobilizações de algumas
O mal estar com a saúde no Brasil é direito à saúde (sintetizada na palavra entidades médicas, cuja pauta transita-
fenômeno antigo. Antes de existirem os de ordem “põe os R$0,20 no SUS”). va de um corporativismo conservador
modernos sistemas de saúde, a gente se vi- Durante a era dourada do lulismo, o à franca hostilidade xenofóbica e elitis-
rava: rituais místicos, ervas medicinais ou crescimento econômico possibilitou a ta, que assustaram setores expressivos
prescrições alimentares sempre fizeram fantasia de que seria possível promo- da sociedade brasileira. Desde abril, o
parte de nossa chamada medicina popu- ver “inclusão social” através do consu- governo ameaçava finalmente enfrentar
lar. No entanto, desde o período colonial, mo. Um dos símbolos da mal chamada a carência de médicos no SUS, com a
as péssimas condições de vida impunham “nova classe média”, junto com o carro “importação” de estrangeiros para re-
altas taxas de adoecimento e mortalida- próprio e as tralhas eletrônicas, era o giões de difícil fixação de profissionais
de (2). Não raro também o povo foi vis- acesso a planos de saúde. brasileiros. Essa era a maior razão da
to como empecilho para a produção de Historicamente, o uso de serviços enorme grita das entidades.
riqueza: a mesma sanha agroexportadora privados de saúde serviu como índi-
26 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

O
s médicos, como demais trabalhado- No ano
res da saúde, enfrentam piora das suas de 2011, o Brasil tinha 1,9 médicos por 1000 ha-
condições de trabalho. Sua jornada bitantes, índice semelhante ao do Canadá, mas
média aumentou consideravelmente menor que EUA, Reino Unido, Espanha e Cuba
entre 2002 e 2006 (estão entre as maiores, per- (segundo dados do Banco Mundial). Fica evidente
dendo para caminhoneiros, motoristas e executivos que a proporção não é ínfima, mas está longe de
de grandes empresas), frequentemente trabalham representar superpopulação de médicos, conforme
em mais de um emprego. No entanto, os médi- querem setores das entidades da categoria. O estu-
cos, comparados com as demais profissões da saú- do mostra ainda que durante a ditadura o ritmo de
de, ainda gozam de um status melhor, com maiores crescimento de profissionais graduados aumentou
salários (4) e condições de trabalho menos insa- e se mantém até o presente. Chama a atenção o fato
lubres. Resumindo: a situação está piorando, mas de que há menos de 10 anos predominam as mu-
não está tão ruim para os médicos, se comparado lheres entre os recém-formados..
a outras categorias profissionais. Há vários moti- Este estudo evidenciou grandes disparidades ge-
vos para isso: o prestígio de que desfrutam por seu ográficas: a maior parte dos médicos se concentra
papel frente ao sofrimento e a morte ou sua im- nas capitais e nos estados mais ricos, em geral no
portância para as grandes empresas da doença. Mas Sul e Sudeste, além do Distrito Federal. Outra va-
gostaria de destacar dois elementos que considero riável chave é a concentração de médicos no setor
fundamentais: a falta de profissionais e o tipo de privado. Embora apenas 25% da população tenha
profissionais formados. planos de saúde privados, na disponibilidade de
As enormes dificuldades de acesso da maior médicos essa estatística se inverte: há 4 vezes mais
parte do povo à assistência à saúde esbarram, entre médicos na rede privada que no SUS. Está aí o cer-
outros fatores, na falta de trabalhadores nos servi- ne do problema.
ços públicos. O poder público, fiador da política Suas origens remontam a ditadura de 1964.
de restrição dos gastos sociais ao mínimo, desde a Nesse período, quando foi consolidada a separação
criação do SUS (em 1988) não se compromete com entre público e privado na saúde – coisa que o pe-
a expansão de um mercado de trabalho estatal ne- ríodo dito democrático não foi capaz de modifi-
cessário à consolidação do direito à saúde. Some-se car – o mercado de trabalho na medicina precisou
a isso a expansão desordenada do ensino superior, se adequar às necessidades dos negócios na saúde.
que criou um grande contingente de profissionais Naquele momento, houve uma expansão no rit-
de saúde formados, levando ao enorme contrassen- mo de formação de novos médicos, com abertura
so que é ter carência de atendimento e elevada taxa de novas faculdades. A medicina liberal perdeu o
de desemprego de determinadas categorias, como monopólio para novas formas de trabalho; mesmo
profissionais de enfermagem, psicólogos, nutricio- assim, o assalariamento e a prestação de serviços ao
nistas, fisioterapeutas, entre outros. No caso dos setor público e ao privado não mudaram o prestígio
médicos, cuja escassez frequentemente representa (e as vantagens econômicas) da prática da medicina
as dificuldades de acesso nas reclamações da popu- subordinada aos interesses empresariais.
lação, a situação é um pouco diferente. O negócio na saúde se expandiu através do
Nos recentes estudos patrocinados pelo Conse- modelo de atendimento baseado no hospital, nas
lho Federal de Medicina (CFM) e Conselho Re- tecnologias mais avançadas, no trabalho médico
gional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e co- especializado e fragmentado. O Brasil começou a
ordenados pelo Prof. Mario Scheffer, da Faculdade absorver a compra de máquinas modernas (como
de Medicina da USP, foi possível traçar um quadro tomógrafos, aparelhos de ultrassom de última ge-
mais exato dos problemas do mercado de trabalho ração), medicamentos recém-lançados, etc. Copiar
dos médicos (5). os padrões de medicina dos países ricos – uma ob-
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 27

sessão até hoje – nos levou a privilegiar a Em síntese, as mudanças que Dilma caso da saúde, devemos retomar a noção
incorporação tecnológica no lugar da re- preparou foram: ampliação de vagas em de que apenas mudanças profundas serão
solução das grandes questões nacionais cursos de medicina, especialmente em capazes de derrotar a indústria da doença,
da saúde: baixo acesso das populações universidades privadas; criação de postos da modernização ao custo da pobreza da
pobres aos serviços de saúde, os proble- de trabalho na atenção primária à saúde maioria, e de um sistema educacional tí-
mas da urbanização (como saneamento com vínculos trabalhistas precários (sem pico de uma nação dependente. Isso cer-
e moradia), as periódicas epidemias (que direito a férias ou 13º salário, por exem- tamente colocaria em cheque a mentali-
ainda nos atormentam, como a dengue plo), baseado principalmente na “impor- dade – e as práticas – senhoriais de parte
e a tuberculose) ou o péssimo padrão de tação” de profissionais estrangeiros, após da categoria médica, como ocorreu nas
alimentação. a baixa adesão de profissionais nacionais; profundas reformas sanitárias do Rei-
Tanto no setor privado, como no setor precarização da política de formação de no Unido da década de 1940 e de Cuba
público, a ideia fixa pela modernização médicos de família e comunidade, ao nas décadas de 1960 e 1970. Nesses dois
orientou o mercado de trabalho e, mais preferir as especializações em serviço no casos, os dilemas nacionais foram en-
grave ainda, as faculdades de medicina. lugar da residência médica (8). frentados, cada qual de acordo com suas

E
Este modelo de saúde voltada aos negó- possibilidades e limites históricos. Muito
cios e à modernização passou a dominar ssas medidas se destinam a diferente do nosso cenário político atual,
os currículos dos cursos de medicina. “inundar” (metáfora que ouvi em que o grande esforço do governo é
Até hoje, as especialidades gerais (como de diversos colegas em postos salvar a Copa do naufrágio iminente.
a medicina de família e comunidade ou de mando no Ministério da Nesse sentido, o SUS, fruto da tran-
pediatria) representam a minoria dos Saúde) o mercado de trabalho de médi- sição pelo alto (expressa pela “Nova Re-
médicos com especialização ou residên- cos; reservar para os profissionais brasi- pública”), embora tenha proporcionado
cia. Esta realidade não foi modificada leiros os postos de trabalho no setor pri- mudanças no atendimento à saúde, não
pelas sucessivas tentativas de reformas vado, em um primeiro momento, até que foi capaz de subverter a lógica acima
das Diretrizes Curriculares Nacionais a expansão desordenada das vagas de me- mencionada. Como na política urbana
do curso de medicina e é agravada pela dicina – pois não respondem às necessi- ou na questão da segurança pública, o
distribuição e preenchimento das vagas dades regionais e do SUS – seja capaz de Brasil ainda está amarrado aos termos ge-
de Residência Médica, que termina por gerar um abundância relativa. Isso ten- rais legados pelo regime ditatorial. Ain-
definir a posição do médico no mercado derá a rebaixar os salários e aumentar o da hoje, a saúde no Brasil é uma com-
de trabalho. subemprego, como já ocorre com as de- binação entre a prioridade na expansão

P
mais categorias da saúde. É fundamental dos grandes negócios e a mitigação das
or essas razões, o Mais Médicos frisar que o Mais Médicos, sob o absurdo enormes tensões sociais. A ideia de di-
é aquele remédio que alivia a pretexto de pagar “bolsas” aos profissio- reito à saúde segue embelezando a Carta
dor, mas não resolve o proble- nais que aderiram ao programa, torna-se Magna, a produção técnica e acadêmica
ma. Ele se inscreve no projeto novo paradigma de precarização do ser- brasileiras, mas definitivamente não con-
lulista de combinar expansão dos grandes viço público. Outro aspecto que salta aos templa o sentimento popular, que só tem
negócios e pequenas migalhas para apa- olhos é que o governo sequer dá a impor- levado tiro, porrada e bomba, ao invés de
ziguar as enormes contradições sociais tância devida aos demais profissionais de saúde, educação, transporte e moradia.•
brasileiras. Basta lembrar da previsão do saúde, cujas péssimas condições de for-
então ministro da saúde, Alexandre Padi- mação e trabalho inviabilizam a melhora
lha: a porcentagem da população usuária geral das condições de trabalho no SUS.
(1)(http://dab.saude.gov.br/dab/historico_cobertura_sf/his-
de planos de saúde iria passar dos atuais O governo Dilma acaba por reforçar a fe- torico_cobertura_sf_relatorio.php)
25% para 40% em 2022 (7). É precisa- tichização da categoria médica como so- (2) CONRAD, RE Tumbeiros: o tráfico de escravos para o
Brasil – São Paulo: Brasiliense, 1985
mente dentro do projeto de privatização lução mágica para os graves problemas de ( 3 ) h t t p : / / w w w 1. f o l h a . u o l . c o m . b r / s e m i n a r i o s -
do SUS que precisamos entender o pro- saúde do povo brasileiro (9). fol h a / 2 014 / 0 3 / 14 3 247 8 - d at a fol h a - ap ont a - s aud e - c o -
mo-principal-problema-dos-brasileiros.shtml
grama. Por fim, as mudanças propostas na (4) Escassez de médicos, Neri, M (org.). Rio de Janeiro:
A pesquisa “Demografia Médica no formação nem apontam para a superação CPS/FGV, 2008; O médico e seu trabalho: aspectos metodoló-
gicos e resultados do Brasil. Brasília: Conselho Federal de Me-
Brasil” mostra que, entre 2005 e 2009, o do paradigma especializado e medicali- dicina, 2004
ritmo de expansão das vagas de trabalho zador, pois a prioridade não é para es- (5) Demografia Médica no Brasil: Resultados gerais e des-
crições de desigualdades. Coordenação: Mário Scheffer; Aure-
no setor privado cresceu muito mais que pecialidades gerais, nem vem combina- liano Biancarelli Alex Cassenote. São Paulo: Conselho Regio-
os médicos formados e que os postos de das com medidas que subvertam a lógica nal de Medicina do Estado de São Paulo e Conselho Federal de
Medicina, 2011
trabalho no SUS. Mais grave ainda: ha- dos negócios. Mesmo depois de junho, o (6)http://www.redebrasilatual.com.br/saude/2014/04/se-
via, em 2011, vagas no setor privado para bloco lulista insiste com a “convivência tor-privado-e-perfil-das-faculdades-afasta-jovens-medicos-da-
medicina-de-familia-4148.html
ocupar praticamente todos os médicos harmônica” das grandes empresas da do- (7) Revista Carta Capital, edição 696, 09 de maio de 2012
brasileiros. Isso explica a agudeza da cri- ença, que tem franco acesso aos salões do (8) sobre o trabalho dos médicos estrangeiros, pode-se ler os
interessantes relatos das dificuldades, críticas e reconhecimento
se da escassez de médicos, com que sem- poder (10), e do SUS. Esse projeto, sín- dos méritos destes profissionais ao programa, nos seguintes links:
pre sofreu o SUS, mas que passou a afe- tese do arranjo conservador da Consti- http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=-
com_content&view=article&id=9440:manchete200314&cati-
tar parte do setor privado em expansão. É tuição de 1988, mostrou claramente que d=25:politica&Itemid=47; http://remediosdirce.blogspot.com.
nesse contexto que o governo vinha pre- não serve ao povo brasileiro. Na discus- br/2014/02/os-estrangeiros-os-pacientes-e-os.html
(9) O setorial de saúde do PSOL debateu este tema, confor-
parando, já antes de junho passado, um são sobre quantos e quais médicos o país me os textos a seguir: http://www.psolsaude.com.br/159; http://
programa nos moldes do Mais Médicos, precisa, a resposta deve passar por supe- www.psolsaude.com.br/52#comment-95
(10)http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/95986-u-
acelerado em virtude da pressão das ruas. rar nossos grandes dilemas sociais. No niao-quer-ampliar-acesso-a-planos-de-saude.shtml
28 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

Ensaio sobre a política habitacional no DF


Francisco Carneiro de Filippo
Érika Lula de Medeiros

O
Distrito Federal, principal- dura militar, que ocorre a construção de Roriz tem muita responsabilidade sobre A hegemonia da
mente se considerarmos a mais uma série de cidades-satélite. Além isso. especulação imobiliária

E
população do entorno, é das já citadas Gama e Sobradinho, tam- Ao se deparar com este enorme fluxo m 2006, a dupla Arruda/Paulo
hoje a unidade da federação bém é projetado o Guará. Porém, a his- populacional associado às grandes exten- Otávio assume o Governo do
com a maior desigualdade social do Brasil. tória da luta por moradia nesse período sões de terras públicas no DF, Roriz não Distrito Federal. Inicia-se ali
E certamente não se explica esta realidade é marcada pela resistência e consolidação titubeou em armar uma política habita- um novo processo de gestão de
sem compreender a política habitacional. do Paranoá (vila de trabalhadores do iní- cional que lhe garantisse o domínio polí- terras no DF, bastante vinculado ao ciclo
A luta por moradia no Distrito Fede- cio da construção que reage às tentativas tico e econômico sobre o DF. A política imobiliário, que se consolidou nas últimas
ral sempre esteve bastante vinculada aos de remoção) e pela Campanha de Erra- habitacional permitia a ocupação das ter- duas décadas como um dos setores mais
principais projetos de poder estabelecidos, dicação de Invasões, série de remoções ras públicas por parte da população que dinâmicos do capitalismo brasileiro. A elei-
cada qual ao seu modo, seja durante os forçadas das ocupações da Vila IAPI; das chegava ao DF, mas colocava a maior par- ção de 2006 abriu as portas para esse setor
anos de gestão Roriz, com o domínio dos Vilas Tenório, Esperança, Bernardo Sayão te das famílias numa relação de dependên- desbravar o quadrado da capital.
processos de grilagem, seja a versão mais e Colombo; dos morros do Querosene e cia econômica e política para com o grupo Bons elementos não faltavam para a
moderna do capital imobiliário como do Urubu; e Curral das Éguas e Placa das Rorizista: as ocupações não garantiram expansão imobiliária. Fartas terras públi-
protagonista da política fundiária a partir Mercedes, totalizando mais de oitenta mil a titularidade do terreno. Construiu-se cas, parcela relevante da população com
das gestões Arruda/Agnelo. De coinci- moradores. uma enorme demanda por regularização alto poder aquisitivo, uma cidade já mar-
dente, os dois modelos traziam a tentativa Desse processo de remoção das ocu- de lotes no DF, que até hoje não está re- cada pela segregação geográfica e social
do domínio dos movimentos de moradia, pações nasceu a Ceilândia que, desde o solvida; as famílias deveriam, via de regra, (não sendo necessárias grandes remoções),
seja pela cooptação ou pela repressão. O início, foi marcada por uma série de con- estar vinculada a alguma cooperativa; a uma burguesia ávida por um novo projeto
recente protagonismo do MTST, colo- flitos.Em especial, no início, tais conflitos maioria dessas cooperativas eram coor- capaz de articular seu domínio e a ausên-
cando em xeque a política de moradia e estouraram em resposta à negligência, denadas por capangas de Roriz (Pedro cia de um projeto de esquerda realmente
garantindo a autonomia do movimento por parte do Governo do Distrito Fede- Passos, José Edmar, Paulo Roriz, Roney alternativo. Assim, rapidamente a propos-
frente ao governo, é um marco na luta por ral (GDF), em garantir a infraestrutura Nemer, etc) que extorquiam política e ta de domínio da especulação imobiliária
moradia digna no Distrito Federal. Para da cidade. Posteriormente, já nos anos economicamente as famílias; a desistência ganhou consenso com a classe média e
tentar entender esse marco, faremos um 70, houve revolta quando o GDF tentou de algum cooperado implicava a retirada com a burguesia do DF. Um jargão im-
breve resumo da política habitacional do forçar os moradores a pagar o lote inicial- ou envio do nome para o final da lista da portante foi criado: “combater os grileiros,
Distrito Federal que, em conjunto com mente calculado pelo valor de mercado regularização. Esse processo de definição os invasores da terra pública”. A Agência
as demais políticas, são responsáveis pelas daqueles anos, em descumprimento das da ordem na fila para regularização, por de Fiscalização do Distrito Federal (AGE-
mazelas sociais em que vivemos e pelo al- próprias normas da fundação da cidade. razões óbvias, não era transparente, garan- FIS) fortaleceu o poder de repressão. A
tíssimo déficit habitacional que, hoje, é de Não à toa, é da Ceilândia que surgem tindo o domínio político. Terracap (Agência de Desenvolvimento
praticamente 50% da população. muitos dos processos de resistência ao go- As ocupações ocorriam em regiões do Distrito Federal) consolida-se como o
verno militar naquela época e, até hoje, é de pouca ou nenhuma infraestrutura ur- grande balcão de negócio dos empreitei-
A construção de Brasília e a fonte de resistência e luta. No que tange bana e também vieram acompanhadas do ros. Para consolidar o quadro, a aprovação
expulsão dos trabalhadores(as) à moradia em particular, nos anos 70-80 desemprego estrutural, gerando enorme

C
do Plano Diretor de Ordenamento Terri-
omo diversos documentários, ganhou a Associação dos Incansáveis de demanda por outras políticas públicas. torial (PDOT), sob as marcas da caixa de
livros e relatos já mostraram, Ceilândia conseguiu derrotar o governo Quase toda conquista de direitos, todavia, Pandora, tirou os entraves legais que ainda
Brasília foi construída gra- militar. Hoje, nos anos 10 do século XXI, ainda que fruto de um abaixo-assinado ou restavam para a transformação do direito à
ças a uma forte migração de o MTST, que tem na Celândia sua maior passeata, era, ao fim, associada a um favor moradia em mercadoria de alto valor.
trabalhadores e trabalhadoras para o Pla- base no DF, vai fazendo história e con- de Roriz e/ou seus capangas para o povo. A transformação causada pelo projeto
nalto Central. Durante a construção, de quistando vitórias. Infelizmente, a esquerda à época não trazido por Arruda e paulo Otávio (um
acordo com o censo de 1960, a popula- Assim, desde o primeiro momento, a soube identificar a melhor forma de com- dos maiores especuladores do DF) foi forte
ção chegara a 140 mil pessoas, e cresceria construção do DF já traz a marca da se- bater esse processo. Ao denunciar tudo, e sobreviveu à crise política do governo. A
mais nos anos seguintes. É o primeiro dos gregação geográfica como co-irmã da passou também a criminalizar o único fraudulenta construção do Noroeste é um
três grandes fluxos populacionais ao DF. segregração social. O argumento de que elemento positivo de todo o processo símbolo mais visível do processo, mas que,
Num primeiro momento, a maior parte Brasília seria uma cidade para todos fica que era a justa ocupação das terras. Hoje, atingiu em cheio também muitas das cida-
desses trabalhadores foram instalados nas para trás em menos de 20 anos de cidade. por exemplo, Agnelo se utiliza de termos des-satélite (como Ceilândia, Taguatinga,
cidades próximas a Brasília, notadamente pejorativos como “grileiros” para tentar Samambaia, Guará e Gama, pra não dizer
a Candangolandia e o Núcleo Bandei- A consolidação da segregação associar o MTST às cooperativas do pas- todas). Diversos foram os grupos removi-
rantes além das já existentes Planaltina e sado. dos de forma bruta, com o oferecimento
social e o domínio coronelista

A
Brazlândia. Relatos mostram que a cons- No início dos anos 90, muitas destas da “passagem de volta pra casa”. Restrin-
partir dos anos 80 surge no DF ocupações tornaram-se novas cidades sa-
trução da Vila Taguatinga, ainda no final a figura de Joaquim Roriz, ge-se e controla-se o território. Os centro
dos anos 50, já ocorrera a partir da pressão télites: Samambaia (em 89), Santa Maria, das cidades são disputados pelos novos do-
que, entre governador biônico Recanto das Emas, Riacho Fundo, São
dos trabalhadores. Nos primeiros anos da e eleito, governou o DF por 15 nos do DF.
década de 60, são construídas Gama e So- Sebastião, que havia sido fundada como A lógica era muito simples. Do con-
anos. Esse período entre 1988 e 2006 con- Agrovila ainda no início da construção do
bradinho. centra as principais transformações sociais junto de terras públicas existente no DF,
Após a realização das construções, DF. Ao longo dos anos, é verdade, parte grande parte não será mais ocupada pelas
na região. Primeiramente, constata-se que da estrutura urbana (asfalto, saneamento,
que permitiram realizar a inauguração do o fluxo migratório continuou intenso. A famílias pobres. Elas serão vendidas nas li-
Distrito Federal, com a vinda da Admi- água e luz) chegou à maior parte destas citações mensais da Terracap para os em-
população dos anos 80, aumento em 50% regiões. Porém, a política de exclusão e
nistração Pública Federal e a série de novas em 1996, atingindo 1,8 milhões de habi- preiteiros. Existe uma demanda constante
oportunidades e propiciado pela grande segregação geográfica deixaria sua marca por moradia na população mais rica do
tantes. com o crescimento cada vez maior da de-
processo migratório dos anos 70, o DF vê Em 1988, ano em que Roriz assume, DF, e esse mercado está aí para ser ocupa-
também saltos enormes no crescimento sigualdade e do acesso ao conjunto de be- do. Outra parte das terras será destinada
o DF era a 13ª unidade da federação no nefícios destinado ao Plano Piloto, Lagos e
populacional. No espaço de vinte anos, ranking brasileiro de desigualdades. De lá aos demais empresários aliados por meio
entre 1960 e 1980, a população multipli- outras regiões de moradia da alta burgue- do Pró-DF. As famílias pobres que neces-
pra cá, o índice não só piorou, como o DF sia da cidade.
ca-se por 10, atingindo 1,2 milhões de assumiu a pior colocação do país. A polí- sitem de moradia popular, serão empurra-
pessoas. É nesse cenário, em meio à dita- tica de moradia implantada por Joaquim das para o entorno, para onde também irá
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 29

a repressão da Força Nacional. demonstra a própria empresa.


A eleição de Agnelo em 2010 dá Mas o que o custo do Estádio tem a
continuidade a esse processo. Tentando ver com a política de moradia no Dis-
se diferenciar, cria uma versão rebaixada trito Federal? Muita coisa, e o centro
do Minha Casa Minha Vida, o “Morar da resposta encontra-se na mesma Ter-
Bem” que, tal como o federal, atua como racap, empresa pública que é responsá-
complementar a política especulativa, vel pela gestão das terras no DF e pelo
buscando os terrenos, a preço de merca- desembolso dos gastos do estádio: En-
do, onde possam ser alocadas as famílias. tre 2011 e 2014 a Terracap realizou 35
O primeiro cadastro do Morar Bem editais de licitação de terrenos no Dis-
mostra a falência da política habitacional trito Federal. Boa parte deles em áreas
no DF, desde os tempos de Roriz. Cerca de habitação, que foram adquiridas por
de 50% da população, 330 mil famílias, empresas do setor de construção. A
apresenta-se como demandante por mo- média das licitações gira em torno de
radia. O “Morar Bem”, nesses quatro 60 lotes vendidos e R$100 milhões a
anos, tornou-se uma falácia burocrática e receber ao longo de 180 meses.
peça de propaganda. Atendeu realmente Desse monte de número, podere-
apenas 2 mil famílias nos extratos sociais mos tirar duas conclusões importantes:
mais altos do programa, pois só estas têm I – A receita arrecada pela Terracap
condições de pagar a mensalidade do fi- é muito menor que o volume de gastos
nanciamento. A maioria dessas famílias com o estádio. Ou seja, a construção
foi para o Jardim Mangueiral que inclu- do estádio está falindo a empresa. Por
sive já sofre com a falta de infra-estru- isso, em alguns momentos, o GDF
tura (transporte público, escolas, centros remanejou recursos de outras áreas
de saúde ou comércio, entre outros. Os sociais, como a saúde, para custear a
moradores ficam, ainda, reféns da Ode- construçãodo estádio:
brecht, gestora da Parceria Público-Pri- II – A cada mês, o número de áreas
vada, mostrando que o ciclo da história destinadas à moradia popular vai dimi-
se repete. nuindo, em virtude justamente da pri-
Para os demais que são chamados (o vatização das terras no DF.
GDF já convocou quase 100 mil pesso- Como todo processo social, o fato ca, unificada está apenas a política de re- ro de participantes e aumenta a força do
as), encontram um processo caro e bu- do GDF priorizar construir estádio para pressão por parte da polícia do DF e GO movimento.
rocrático para conseguir todos os docu- a Copa e vender terrenos ao invés de ga- e da Força Nacional. A partir da ocupação do Novo Pi-
mentos e, quando se apresentam, lhe são rantir a moradia pública tem importan- O que se vê, em suma, é a expulsão nheirinho na Ceilândia, em 2012, e em
oferecidas parcelas cujo prestação inicial tes consequências. Em primeiro lugar: de famílias para longe do DF aliada ao Taguatinga, em 2013, no centro do ca-
fica acima do valor do aluguel tradicio- a mentira do governo: existem mais de crescimento desordenado da cidade, vol- pital imobiliário, o MTST conseguiu
nal. Se alguém não consegue todos os 330 mil pessoas cadastradas no programa tado apenas pra atender as grandes em- mostrar pro GDF que a criminalização
documentos ou não tem como pagar Morar Bem do Distrito Federal. Com preiteiras e com a ausência de políticas não iria interromper as lutas forçando o
a prestação, é retirado do programa e o cerca de 5 (cinco) mil moradias no DF sociais. O DF terá o estádio mais caro do GDF a iniciar um processo de negocia-
GDF diz assim estar “diminuindo a lis- contempladas até o momento, fica claro país e, ao mesmo tempo, a maior desi- ção. Conquistas vieram desde então, a
ta”. A todos, aprovados ou não, a fala de que o programa não é prioridade. Mas o gualdade social -- a maior distância entre melhoria do auxílio emergencial, a cria-
sempre: “esperem quietos que chegará a GDF fica insistindo que já chamou mais ricos e pobres, entre aqueles que têm di- ção do auxílio aluguel, os cadastros das
sua vez. Mas não se mobilizem, pois isto de oitenta mil pessoas pra entregar os do- reito à cidade e às suas estruturas, e aque- famílias, a promessa de regularização do
é coisa de grileiro e poderá ser punido”. cumentos e tenta convencer de que isto les que que são cotidianamente excluídos Nova Planaltina. Nem com as primeiras
De fato, o combate e a repressão estatal basta. Em segundo lugar: a exclusão das dela. Enquanto isso, os leilões no grande vitórias, o Movimento parou de fazer
às ocupações durante a gestão Agnelo pessoas. O programa, sem perspectiva balcão de negócios da Terracap seguem luta. A cada entrave no cadastro era mais
seguiu diretrizes semelhantes da política de avançar, busca excluir as famílias pe- religiosamente todo mês. uma pressão no na Companhia de De-
de Arruda. las duas formas já citadas: primeiro pelo senvolvimento Habitacional (Codahb).
excesso de burocracia, exigindo muito A luta popular como alternativa Também se promoveram ocupações na

O
tempo dedicado para as famílias conse- real: a experiência do MTST/DF própria Terracap.
E a Copa do Mundo com isto?

D
guirem comprovar o cadastro. Segundo, MTST, desde 2008, vem O MTST vai fazendo história. Des-
urante sua campanha pra trabalhando no DF com a de os Incansáveis de Ceilândia e passan-
Governador do DF de 2010: pelo preço da parcela do financiamento.
A uma família que ganha 6 (seis) salá- perspectiva de se consoli- do pela luta pela regularização, nos anos
Agnelo Queiroz prometeu dar como um movimento recentes, é o primeiro movimento de
entregar 100 mil moradias rios, algo como R$ 4.400,00 por mês,
é oferecido um apartamento de 2 quar- social na luta por moradia a partir de luta por moradia (e não só regularização)
populares ao longo de seu mandato. Essa princípios importantes: a independência com força e comprometido com a luta
promessa seria refeita em 2011 e 2012. tos no Jardim Mangueiral cuja parcela é
R$ 1 mil! As famílias que ganham até 3 de classe, frente aos governos e diversos dos trabalhadores. Seu exemplo é inspi-
Até o início de 2014, o número de casas grupos políticos; o respeito às famílias ração para sindicatos, movimentos estu-
entregues não chegou a 5 mil. salários mínimos, maior parte dos que
demandam, pouco ou nada foram con- como protagonistas de forma a não criar dantis, advogados populares, partidos de
Também no início de seu mandato, a dependência econômica ou o assédio esquerda e artistas populares.
Agnelo autorizou o crescimento da ca- templadas até agora justamente porque
não conseguem garantir o pagamento moral por parte da direção; a luta popu- Ainda falta muito por se conquistar
pacidade do Estádio Mané Garrincha de lar como método de conquista e avanço no DF. A força da especulação imobili-
42 mil para 70 mil pessoas. O objetivo das prestações. Por fim: expulsão para
o entorno. Na falta de perspectivas, está dos direitos; a solidariedade de classe aos ária, e o discurso de que é necessário o
era, mais uma vez, curvando-se à FIFA, diversos setores e segmentos que lutam. uso da força para combater as ocupações
entregar a ela o direito de escolher a cida- ocorrendo hoje em nossa região uma
saída grande de famílias para o entorno. Com esses princípios, o MTST ga- urbanas ainda segue dominante. Porém,
de que faria a abertura da Copa do Mun- nhou respeito e força. Hoje, é o princi- frente à máquina da morosidade e da fal-
do. O critério de escolha era a cidade que Deveria ser obrigação do GDF ajudar as
cidades próximas em suas políticas so- pal movimento popularl no DF. Desde sa propaganda do Morar Bem, a experi-
fizesse os melhores mimos para os reis. o início vem promovendo ocupações, de ência do MTST é aquela que conseguiu
São Paulo foi escolhida e Brasília ficou ciais. A política de saúde, de educação,
de assistência social, de moradia e trans- forma a denunciar a política habitacio- abrir brechas de lutas e criar a expecta-
chupando dedo. Menos mal: na épo- nal pró-especulação, criando uma nova tiva de que é possível reverter esta longa
ca o custo estimado do Estádio era em porte deveriam ser unidas de forma. Pelo
contrário, até mesmo por parte do Go- cultura nas famílias: ao invés de esperar a história de 54 anos de exclusão social a
torno de R$ 700 milhões. Bem abaixo burocracia do governo ou das cooperati- partir da moradia no Distrito Federal e
dos dois bilhões de reais que a Terracap já verno se vê o argumento de que a culpa
dos problemas da saúde e educação são vas, ocupar a terra e lutar por direitos. A entorno.•
desembolsou até o momento, conforme cada nova ocupação, aumenta o núme-
devidos à pressão do entorno e, na práti-
30 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

A ocupação e o despejo da “TELERJ”


drama do povo na cidade dos megaeventos
Henrique Sater

C
onforme amplamente noticiado presentantes da empresa OI (suposta pro- sa, mas convite algum chegou à coordena-
no dia onze de abril deste ano, prietária do terreno) e da prefeitura e estado ção da ocupação. Uma comissão foi forma-
na calada da madrugada, mais de do Rio de Janeiro. A “lista de convidados” da e, mesmo com muitos constrangimentos
1600 policiais da Tropa de Cho- para conversar sobre a ocupação não era pe- à normalidade daquela audiência, conseguiu
que e do Bope iniciaram a violenta reinte- quena: havia ali representantes das Secreta- acompanhar a discussão que poderia definir
gração de posse da ocupação da Telerj, no rias de Habitação e de Direitos Humanos, o futuro das famílias ocupantes. E começa-
bairro do Engenho Novo, Zona Norte do do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil ram os preparativos: rapidamente se apon-
Rio de Janeiro. do Estado do Rio de Janeiro, das Secretarias tava quem levaria as munições e bombas
Três dias antes, numa terça-feira, a juíza Municipais de Habitação e de Desenvolvi- em número suficiente, quem ia arcar com
Maria Aparecida Abreu realizou uma audi- mento Social, Secretário de Governo e do as despesas e quem cuidaria das crianças. A
ência no Fórum Regional do Méier, com Conselho Tutelar, além da Polícia Militar. verdade é que não parecia ter havido muita
quase todos os envolvidos no processo: re- A notícia da audiência chegou à impren- organização para o que estava por vir na sex-
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 31

ta, dia 11, e até o coronel Rogério Leitão, mas crianças que inalaram gás lacrimogênio lógica o surgimento de uma ocupação ur-
comandante do 1º Comando de Policia- em excesso. bana espontânea e numa área muito próxi-
mento de Área, parecia hesitante em decidir Muitos maus-tratos foram denunciados ma ao Maracanã. Trata-se da resposta mais
datas, tamanho do operativo e complexida- pelas famílias que moravam no complexo de concreta e extrema dada pelos trabalhadores
de da operação. prédios e terrenos ocupados havia 12 dias. frente a um modelo de cidade que joga os
Em alguns momentos, o desejo por um O conflito não se restringiu à ocupação e a mais pobres para cada vez mais longe.
massacre transbordava pelo caráter formal de imprensa nacional e internacional narraram A sequência dos fatos é pedagógica: ten-
configurar aquela audiência como um mero uma manhã extremamente tensa. Diversos ta-se atribuir a iniciativa a criminosos; se
momento técnico para operacionalizar o veículos queimados, ações policiais trucu- não for possível, insiste-se na teoria cons-
despejo com o “mínimo de danos possível”: lentas nas comunidades vizinhas e descon- piratória de que “forças ocultas” iniciaram
“Vamos fechar as ruas em volta para impedir trole completo da ação transformaram o a ocupação e incansavelmente nega-se que
que novos oportunistas entrem!” “Que tal Engenho Novo num palco de atrocidades e a responsável pela iniciativa é a necessidade
cortar água e luz para ver se eles desistem!” violência contra os trabalhadores mais po- real de moradia. Nesse meio tempo, apres-
“Não é melhor tirar as crianças antes, para bres. A questão habitacional mais uma vez sa-se com todos os recursos necessários a
evitarmos tragédias?” “Se tivesse tido algum virava caso de polícia, confirmando o reca- aprovação jurídica do despejo e, como fosse
tipo de ação mais forte no início, as famílias do que o atual governador do Estado, Pezão, alternativa, coloca-se como opção um abri-
não teriam tido coragem de entrar!” deu no dia seguinte ao povo carioca: “foi go sem dignidade alguma.
A transcrição exata da audiência revela- feito o que tinha que ser feito.” O poder público conseguiu em grande
ria muito das entranhas de um poder pú- Numa rápida resposta ao massacre, as fa- parte o que queria: realizou um despejo rá-
blico que mal titubeia em escolher entre a mílias decidiram na própria sexta-feira à tar- pido, não se comprometeu com nenhuma
“ordem” e a vida. Perla, 30 anos, uma das de protestar em frente à prefeitura do Rio das famílias com solução digna e, de manei-
coordenadoras presentes na sala, sintetizou de Janeiro. Mesmo após uma manhã trau- ra sorrateira, confundiu a coordenação e as
o cheiro nauseante da indiferença à vida dos mática, tiveram forças para chegar à Cidade famílias, prometendo um cadastro no pro-
mais pobres em uma única frase: “Eles fa- Nova e pedir algum tipo de garantia digna grama Minha Casa Minha Vida, que além
lam da gente, das seis mil famílias, como se às famílias afetadas. Nenhuma resposta foi de não representar garantia nenhuma, con-
fôssemos animal pro abate.” A audiência dada, nenhum representante do poder pú- tinha uma declaração assinada pela família
terminou conforme esperado, com a rein- blico sequer as recebeu e a dramática situ- que havia cometido uma invasão de pro-
tegração de posse previamente autorizada, ação não apontava para solução alguma. As priedade. Além de tudo, impediu a partici-
não houve nenhum indicativo nem de di- famílias optaram por permanecer acampadas pação do MTST (que apoiava a ocupação)
álogo com as famílias, muito menos de um em frente à prefeitura e passaram um final de nas negociações.
prazo exato para o dia do despejo. Havia, no semana ao relento, pois a Guarda Municipal O que era uma ocupação espontânea,
entanto, um tom de urgência no pronuncia- foi orientada a não permitir nenhum tipo que possuía uma coordenação e organização
mento da juíza e uma indefinição do que se de barraca ou proteção aos acampados. Um internas, num local abandonado há mais de
daria nos próximos dias. grande ato foi marcado para segunda-feira e, 20 anos, tornou-se novamente um local va-

E
mesmo sob forte chuva, uma grande pres- zio, cercado e vigiado sob o manto sagrado
m algum lugar, conjecturas a par- são contra a prefeitura foi respondida com da propriedade privada.
te, (onde o poder se situa acima repressão da Guarda Municipal e uma total Após serem literalmente enxotadas do
dos poderes e das forças sociais, ausência de propostas por parte do governo. entorno do prédio da prefeitura, algumas
onde é mais vontade do que in- À noite, as famílias foram impedidas de dor- dezenas de famílias ainda desabrigadas fo-
teligência ou racionalidade), foi decidido mir na frente da prefeitura e ficaram acua- ram até a Catedral Metropolitana, no centro
executar-se um despejo, a toque de caixa, das. A movimentação policial era intensa. da cidade pedir ajuda humanitária da igreja,

S
inconsequente e irracional do ponto de vista que fechou as portas para os mais necessita-
dos que afirmam a vida digna como hori- e parássemos a narrativa da ocupação dos. O calvário estava se completando.
zonte. E o que foi visto no dia onze, ainda da Telerj nesse ponto, talvez o que Mesmo tratando os mais pobres como
que dificilmente inédito para as seis mil fa- continuasse chamando a atenção é a coisas descartáveis, o Estado não pode e não
mílias que ocupavam o local, mais uma vez violência do Estado contra os mais conseguirá esconder o déficit habitacional
evidencia o estado de exceção permanente pobres. Nesse sentido, o descaso e cinismo do Rio de Janeiro e a violência da especu-
que o espaço urbano periférico vive diaria- personificados pelos poderosos, entrelaçados lação imobiliária. A estimativa de 220 mil
mente. a um aparelho repressivo que atua absoluta- moradias necessárias apenas no município
A Comissão de Direitos Humanos, pre- mente fora da lei (sob o pretexto de tentar do Rio de Janeiro e os preços abusivos dos
sidida pelo deputado Marcelo Freixo, apu- garanti-la), aparecem como peças-chave aluguéis por toda a cidade produzem uma
rou alguns dados do massacre com os hospi- para compreender o que ocorreu na manhã panela de pressão, que às vezes dá sinais que
tais que atenderam os feridos. Apenas como do dia onze de abril. vai estourar com ocupações como a da Te-
amostra da sexta-feira sangrenta no En- O que não salta aos olhos, mas é central lerj.
genho Novo, podemos citar duas vítimas: para compreendermos esse tipo de processo, Novamente, a questão da moradia está
Maycon Gonçalves Melo, 25 anos, levou é a lógica que o espaço urbano carrega en- na ordem do dia no Rio de Janeiro. A insu-
um tiro de bala de borracha no olho e per- quanto produz-se e reproduz-se enquanto ficiência e as contradições do Minha Casa
deu a visão; Regina Teixeira Vieira, 55 anos, tal. Minha Vida e a nova espoliação urbana
levou 6 pontos na mão ao tentar se proteger Quando a capa do jornal O Globo anun- ocorrida para sediar os megaeventos empur-
de uma bomba. Além disso, dezenas de feri- cia exatamente uma semana antes da sexta- ram a situação para o nível do insuportável.
dos deram entrada na UPA Engenho Novo feira, “Como nasce mais uma favela”, fica O legado da Copa pode ser de muitas lutas
e no hospital Souza Aguiar. Entre eles, algu- evidente a importância que tem para esta na cidade nada maravilhosa para o povo.•
32 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

na garganta do futuro Jeff Vasques


“En la lucha de classes / todas las armas son buenas / Piedras noches poemas” (Paulo Leminski)

P
ara para a lutadora e para o lutador, qual seria a utilidade da ainda que de forma embrionária, novos valores, novos sentimen-
poesia que precisa, todo dia, a todo instante, lidar com si- tos, novos dilemas que demandam novas palavras, novos canais de
tuações urgentes, duras, tensas, concretas? De que servem expressão! Todo esse movimento subjetivo e singular precisa vir à
essas palavras soltas, muitas vezes difíceis de entender ou tona, tornar-se palavra comum, imagem compartilhada, símbolo e
descoladas de nossa realidade, abstratas? Por que perder o precioso questionamento coletivo, permitindo a construção da identidade do
tempo da luta com poesia? Quantas batalhas já foram ganhas com ser revolucionário.
um verso? Parece que as imensas tarefas colocadas diante de nós sim- Cantar a vida e a luta!

P
plesmente não combinam, não rimam, com poesia... or tudo que foi dito, é preciso fechar o punho, mas abrir o cor-
Pois, imagine um lutador em meio a uma guerrilha na selva, fa- po: botar pra fora o que querem que apodreça aqui dentro como
minto, exausto, com asma... tendo que dar conta, diariamente, de amargura e desgosto, como ânsia e medo, como vão heroísmo
questões de vida-ou-morte... se nossa luta cotidiana parece não dei- ou culpa católica. Por isso, é preciso dançar outros corpos, que
xar espaço para poesia, muito menos essa, não? Pois esse guerrilhei- não os das propagandas; entoar outras canções, que não as do esqueci-
ro não só dedicava muito de seu escasso tempo à leitura de poesia, mento; pintar outros rostos; escrever nossa própria história e poesia, com
como escrevia em seus cadernos surrados poemas em meio à bata- nossas palavras, com nossos corpos marcados pela luta e com nosso novo
lha. Esse guerrilheiro-poeta era Che Guevara. espírito nascente. Precisamos criar juntos sentidos ao mundo. E a arte de
Che carregava consigo, ao ser aprisionado na Bolívia, três cader- luta, a poesia de luta, pode nos ajudar nisso! Que nos tornemos as e os
nos: um diário de guerra, um caderno de reflexões e um caderno “poetas do futuro” como foram Che e tantos outros, que superaram a
verde em que tinha anotado, ao longo de anos, 69 poemas preferi- terrível separação entre o sonho e a ação.•
dos. Sua fama de grande leitor de literatura e poesia era muito bem
conhecida por todas as companheiras e companheiros combatentes.
Quando Che assumia o grupo de vanguarda, todo mundo já ficava
tenso porque alguém teria que carregar suas pesadas mochilas cheias
de livros. À noite, ao redor da fogueira, enquanto outros dormiam,
durante os poucos descansos, era comum encontrar Che perdido
entre páginas, lendo incansavelmente. Chana, amiga
campesina, dizia que Che, nesses momentos, “ficava
caladinho, meio ido, com a cara muito suavezinha e
como se estivesse em outro mundo”. Em vários ou-
tros momentos, Che falava nas rodas aos soldados e
camponeses de Victor Hugo, Rubén Dario, Tago-
re, Neruda. Um jovem de catorze anos, chama-
do Acevedo, se surpreendeu ao fuçar os livros na
mochila de Che: “Não havia Mao, nem Stalin,
e sim o que eu menos esperava, ‘Um ianque na
corte do Rei Arthur’”, livro do escritor nor-
te-americano Mark Twain. Che não leu só os
escritores sociais ou mais politizados, mas tam-
bém se apropriou da leitura dos clássicos.

Pra quê?

M
as qual seria o papel da poesia para as pessoas revo-
lucionárias? Há, claro, uma função mais direta e
mais reconhecida: instrumento de propaganda da
luta e de denúncia da miséria capitalista. Mas há
outra fun;ão, muito esquecida, e ainda mais importante: ser um
instrumento para compreensão das contradições específicas
que um militante revolucionário enfrenta, um instrumen-
to para compreensão de si e do mundo, da luta que trava
externa e internamente (pois, sim, o inimigo também é
íntimo e pode colonizar nosso peito e coração).
O militante que luta para superar o capitalismo e
construir uma nova sociedade enfrenta situações ex-
traordinárias, desafios únicos em seu momento his-
tórico. Por isso mesmo, sofre de alegrias, tristezas
e angústias igualmente únicas na busca por se fazer
um novo homem e uma nova mulher. Vivenciamos,
Alberto Korda
Velha Maria, vais morrer
(Che Guevara, tradução de Jeff Vasques)
Velha Maria, vais morrer: “Deixe-me dizer-lhes, mesmo correndo o risco de
quero falar contigo seriamente.
parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é
Tua vida foi um rosário completo de agonias,
não houve homem amado, nem saúde, nem dinheiro,
guiado por grandes sentimentos de amor. [...] Talvez
apenas a fome para ser compartida. seja este um dos grandes dramas do dirigente político.
Quero falar de tua esperança,
das três distintas esperanças É preciso que ele alie, ao espírito apaixonado, uma
que tua filha fabricou sem saber como. inteligência fria, tomando decisões dolorosas,
Toma esta mão que parece de menino sem contrair um só de seus músculos [...] Nestas
nas tuas, polidas pelo sabão amarelo.
Abriga teus calos duros e os nós puros de teus dedos
condições, é necessário ter muita humanidade, um
na suave vergonha de minhas mãos de médico. grande sentido de justiça e de verdade, para não
Escuta, avó proletária: cair em um dogmatismo extremo, em uma fria
crê no homem que chega,
crê no futuro que nunca verás. escolástica, para não se isolar das massas.” Che Guevara
Nem rezes ao deus inclemente
que a vida toda mentiu tua esperança;
nem peças clemência à morte
para ver crescer suas pardas carícias;
os céus são surdos e o escuro manda em ti,
terás uma vermelha vingança sobre tudo,
te juro pela exata dimensão de meus ideais:
todos os teus netos viverão a aurora.
Morre em paz, velha lutadora.

Vais morrer, velha Maria:


trinta projetos de mortalha
dirão adeus com o olhar
num destes dias em que te vais.

Vais morrer, velha Maria:


ficarão mudas as paredes da sala
quando a morte se conjugar com a asma
e copularem seu amor na tua garganta.

Essas três carícias construídas de bronze


(a única luz que alivia a tua noite),
esses três netos vestidos de fome,
chorarão os nós dos dedos velhos
onde sempre encontravam algum sorriso.
Isso foi tudo, velha Maria.

Tua vida foi um rosário de magras agonias,


não houve homem amado, saúde, alegria
apenas a fome para ser compartida.
Tua vida foi triste, velha Maria.

Quando o anúncio do descanso eterno


turvar a dor de tuas pupilas,
quando tuas mãos de eterna faxineira
absorverem a última ingênua carícia,
pensas neles… e choras,
pobre velha Maria!

Não, não o faças!


Não ores ao deus indiferente
que toda uma vida mentiu a tua esperança,
nem peças clemência à morte,
que tua vida foi horrivelmente vestida de fome, Contra o vento e a maré
acaba vestida de asma. (Che Guevara, tradução de Jeff Vasques)
Mas quero anunciar-te,
na voz baixa e viril das esperanças, Este poema (contra o vento e a maré) levará minha assinatura.
a mais vermelha e viril das vinganças, Te dou seis sílabas sonoras,
quero jurá-lo pela exata um olhar que sempre carrega (como um pássaro ferido) ternura,
dimensão de meus ideais. um anseio de água morna e profunda,
um escritório escuro em que a única luz são desses versos meus,
Toma esta mão de homem que parece de menino um dedal muito usado para suas noites de enfado,
nas tuas mãos, polidas pelo sabão amarelo. uma fotografia de nossos filhos.
Abriga teus calos duros e os nós puros de teus dedos A mais linda bala desta pistola que sempre me acompanha,
na suave vergonha de minhas mãos de médico. a memória inesquecível (sempre latente e profunda) das crianças
que, um dia, você e eu concebemos.
Descansa em paz, velha Maria,
E o pedaço de vida que me resta,
descansa em paz, velha lutadora:
todos os teus netos viverão a aurora. isto eu dou (convicto e feliz) à revolução.
EU JURO! Nada que nos possa unir terá maior poder.

(Poema dedicado a uma velha mexicana a que (Poema dedicado à esposa Aleida)
uevara tentou ajudar na cidade do México em 1954)
34 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

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POR QUE ATÉ O ÚLTIMO HOMEM
Felipe Brito e Pedro Rocha (org.)
OCUPAMOS? o processo de “legitimação” das Unidades de Polícia
Guilherme Boulos Pacificadora (UPPs) em um quadro de colapso e dissolução
Militante do MTST introduz da sociedade perante a ocupação militar das favelas cariocas.
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brasileira entre a construção da identidade nacional, os impactos
urbanísticos e as transformações dos megaeventos esportivos ao
longo da história. Inclui texto do MTST. www.boitempo.com.br

um negócio Pedro Rocha

E
ncolhida junto à mureta da bica, numa posição que, a nós,
teria sido extremamente incômoda, havia uma esfarra-
pada que escondia o rosto com uma mão entrelaçada de
cabelos. Tivemos a impressão de que ela fazia isso porque
seus olhos não estavam dispostos em seu rosto de forma simétrica.
Naturalmente, não queria que percebêssemos aquilo. Mas nada es-
capa ao nosso olhar que, por sua vez, é absolutamente reto e frontal.
Saímos dali tão logo satisfizemos através da bica nossas necessida-
des. Mas, à noite, reencontramos a mulher. Sob a treva completa,
suas imperfeições não seriam perceptíveis mesmo ao nosso olhar
penetrante; mesmo assim, ela continuava escondendo o rosto.
Aproximou-se e nos propôs um negócio. Os termos nos parece-
ram razoáveis, e concordamos, embora nos repugnasse contratar
algo àquela noite, naquele lugar, com aquela criatura que sabíamos
muito bem ser disforme. Ela estendeu uma das mãos para coletar
seu pagamento que, conforme acordado, deveria ser efetuado ime-
diatamente. Deixou, no entanto, a outra mão sobre o rosto. Quando
as moedas e outros objetos começaram a transbordar a concha sulcada
de sua palma, pensamos que ela retiraria a mão do rosto para apará-los,
mas não o fez. Ao invés disso, esperou que terminássemos de despejar
o que lhe era devido, enfiou o que pôde nos numerosos sacos de
suas vestes, e depois se ajoelhou na terra úmida para recolher o
que caíra. Foi-lhe difícil realizar tal coisa com apenas uma das
mãos. Enfim, levantou-se, mas hesitou um instante. Disse-
mos-lhe, então: “Vamos, mulher, é tua vez de entregar tua
parte.” Então, sem relutar, mas sem jamais deixar-nos a
possibilidade de lhe entrever os olhos tortos, ela fez vir a
ter em nosso meio, envolta em lenços e trapos, a más-
cara maravilhosa de um rosto perfeito de mulher.•

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