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O grande crime da água dos

irmãos Rebouças e o
capitalismo tardio

A André Rebouças 2008, in memoriam:


170 anos de nascimento – Cachoeira-BA – 13 de janeiro de 1838
110 anos de morte - Ilha da Madeira – Portugal – 9 de maio 1898

por Carlos Nobre*

Depois de participarem da Guerra do Paraguai, de criarem empresas e de terem se


tornado referências na engenharia brasileira, os irmãos Rebouças (André e Antonio)
foram incumbidos pelo poder público, em 1870, de resolver um grave problema: a
persistente falta d’água na corte imperial, que sentia ainda os efeitos da seca de 1869.

Dependendo ainda do antigo chafariz público do Largo da Carioca, a população do Rio


de Janeiro sentia os efeitos dramáticos da seca. Isto porque a cidade, embora capital
imperial, não investira num sistema moderno de captação de água através de novas
metodologias da engenharia civil.

Por esse motivo, a insatisfação popular crescia devido ao fato de as famílias não
terem água para atenderem suas necessidades higiênicas, culinárias e sanitárias.

O clamor popular pela presença de água abundante tendia aumentar, cada vez mais,
a distância entre o imperador D. Pedro II e os cariocas, pois, o poder público,
impotente, não sabia como apresentar uma solução técnica para tão grave problema.
Percebendo o drama social que aumentava a cada dia, os Irmãos Rebouças se
sensibilizaram com as queixas do povo. Muitos sabiam que, grupos que conheciam
determinadas nascentes, manipulavam a venda de água clandestina à cidade. Isto
porque, ao contrário dos demais cariocas, esses grupos –- inclusive negros alforriados
– tinham pleno conhecimento topográfico da cidade e de seu entorno, principalmente
das áreas rurais, onde podiam captar água clandestinamente.

Os irmãos afrodescendentes discutiram tecnicamente, entre si, sobre o problema da


falta de água que atormentava a capital imperial. Perceberam, neste sentido, que
tinham soluções técnicas inovadoras para resolver a questão que a “engenharia
oficial” não detinha. Em vista disso, foram falar com o imperador, no Paço Municipal.

Em seu diário, que hoje faz parte do acervo do Instituto Geográfico e Histórico
Brasileiro, André disse ao monarca que ele e o irmão descobriram como resolver o
problema em pouco tempo. O imperador, feliz, argumentou para os irmãos que o
estado deveria, então, oferecer água farta e gratuita para toda a população.

Os irmãos Rebouças, no entanto, ficaram contra essa proposta. “Combatemos


também a falsa idéia, que tem o imperador, de dar água aos pobres gratuitamente nas
fontes e lhe demonstramos que é muito mais liberal e higiênico dar aos pobres água
em domicilio por um preço mínimo (1)”, escrevia Rebouças em seu diário.

Uma comissão de engenheiros sob a liderança dos Rebouças foi formada para
estudar a viabilidade técnica do projeto. Presidida por Antonio, esta comissão, chegou
a conclusões importantes. Em primeiro lugar, Antonio destacou a importância das
águas do Jardim Botânico e da Tijuca. Eram mananciais importantes. Mas como
torná-los acessíveis à população? Antonio, então, conseguiu encontrar o caminho
técnico para trazer estes mananciais para as casas dos cariocas.

Quando as obras iam a pleno vapor, o então Ministro da Agricultura chamou André às
pressas para uma reunião na Câmara dos Vereadores. O dirigente público lhe disse
que os proprietários de terras achavam “exageradas” as providências feitas pelos
Rebouças para dar água à cidade. E mais: lhe comunicou que tinha mandado sustar a
abertura dos novos poços que eram fundamentais para analisar a viabilidade técnica
da perspectiva tomada pelo engenheiros Rebouças.

Segundo Santos (1985: 160-163), “A comissão tinha a incumbência de aproveitar


mananciais, cavar poços e estabelecer adução ao centro da cidade e aos bairros
atingidos pela falta d’água. André, em seu diário, registra o sucesso do trabalho da
comissão, com a contratação do assentamento das águas do rio Macacos,
melhoramento dos poços existentes e perfuração de novos e construção da represa
do Trapicheiro”.

Na verdade, esta decisão do então Ministro da Agricultura fora a resultante da pressão


oculta feita pelos tradicionais inimigos dos Rebouças, a chamada “engenharia oficial”,
que não tinha idéias inovadoras neste campo e temia que os Rebouças se tornassem
a referência nacional neste ramo, o que já estava acontecendo. Essa “engenharia”
estava acostumada a mamar nas tetas do estado, sem lançar novas tendências
técnicas de construção civil em benefício da população.

No mesmo embalo dos inimigos ocultos dos Rebouças, outros proprietários de terras
procuraram André para se queixar das obras. Eles se mostraram céticos quanto ao
resultado do projeto. Neste sentido, não iriam permitir que suas terras fossem
perfuradas.
No entanto, contrariando os queixosos, o imperador deu ordens para que os Rebouças
continuassem seu trabalho de tornar auto-suficiente o abastecimento de água da
cidade.

Mas articulações contrárias ao civismo dos Rebouças não pararam por aí. No
Senado, o conselheiro Zacarias atacou as obras e os Rebouças como se eles
estivessem fazendo um trabalho inútil e incapaz. A mídia da época publicava diversos
artigos condenando as obras e seu custo.

Entendendo o que estava se passando na casa parlamentar, André foi procurar o tal
conselheiro. Ao ouvir as argumentações do engenheiro, o senador se desculpou
dizendo que seus ataques às obras eram necessidades de “fazer política de
oposição”, e com isto, chamar a atenção da sociedade (3).

Em 30 dias de trabalho, os irmãos Rebouças conseguiram tornar real uma das obras
de grande impacto social do império: a ampliação de sistema de abastecimento de
água da cidade do Rio de Janeiro.

A população vibrou. Pouca gente, no entanto, sabia que por trás daquela grande obra
estavam dois engenheiros afrodescendentes, exceto, é claro, a classe dirigente e os
inimigos dos Rebouças.

André, depois, em seu diário, lamenta o drama da genialidade dos irmãos


engenheiros: “Cometemos o grande crime de dar, em 30 dias, 2.400.000 litros diários
de água ao Rio de Janeiro (4)”.

Em vista disso, os irmãos propõem ao imperador a criação de uma Companhia de


Águas para dar uma administração moderna ao novo sistema de abastecimento de
água na cidade. O imperador vibrou, mas novamente a “engenharia oficial” criou
embaraços de todos os tipos e a empresa não saiu do papel.

Três anos depois, André começou a escrever suas experiências com os burocratas e
oligarcas do império (5). Ele definia o Brasil da época como o “paiz de apathia e de
immobilidade”, devido à subserviência, ao subdesenvolvimento, ao analfabetismo dos
funcionários públicos encarregados de tomar decisões cruciais para a nação.

Ele, Rebouças, uma espécie de representante da modernidade capitalista que ele vira
pipocar com fulgor na Europa, durante seu estágio de dois anos para se tornar
engenheiro civil, via, agora no Brasil, uma classe dirigente medíocre tomar
corpo. Como ele escreve (1988: 370): “Uma oligarquia estulta reduziu este país
fertilíssimo a um estéril deserto, com uma só árvore – a mancenilha política – o
monopólio governamental”.

Desde esse episódio da água até 1883, André demonstrava extrema preocupação
com a capacidade da burocracia oficial de barrar obras, empresas e empreendimentos
capazes de levar o país para um novo patamar de desenvolvimento econômico e
social.

Neste sentido, se preocupou com constatar e denunciar grandes entraves político-


educacionais, que impossibilitava o país de sair do período de trevas coloniais que
ainda imperavam nas mentes das elites agrárias e urbanas.

Uma de suas críticas mais contundentes era contra espírito contrário à criação de
novas empresas num país ainda escravocrata. Ele mesmo, André, vira diversas
iniciativas empresariais suas serem barradas com argumentos os mais mesquinhos.

Vejamos, neste sentido, esses argumentos rebouçianos (1988: 344-380):

“Só as pessoas, que se acham a testa das novas emprezas em atividade no


império, fazem uma idéia justa da oposição sistemática, que ellas sofrem de
todos os lados e de toda a parte. Como se ainda fossem poucas as innúmeras
dificuldades naturaes, que são outros tantos obstáculos ao estabelecimento de
indústrias em um paiz novo, como o nosso, cada empregado público julga ser
do seu rigoroso dever combater, a ferro e fogo, as companhias. É o que eles
chamam- matar a hydra do mercantilismo!”

“ (...) o que falta a este Império, como a todos paizes do mundo, é capital, é
indústria, é trabalho, é instrução, é moralidade. Esse não-estar, que obriga a
dizer – há falta de braços – significa realmente que o paiz está tão mal
governado que não pode garantir trabalho e pão para os seus habitantes”.

Sobre o predomínio dos interesses políticos rasteiros sobre os empreendedores como


ele (1988:345), Rebouças também não mede a pena ao escrever:

“Há, cumpre não esquecer, ainda uma terceira espécie de inimigos das
companhias: são os políticos rotineiros, oligarcas, que enxergam nas
companhias outros tantos obstáculos ao seu domínio sobre todos os cidadãos;
a sua incessante aspiração de monopolisar a agricultura, a industria, o
commércio, o trabalho, todas as importações, enfim, da atividade nacional”.

“(..) nesta guerra contra as empresas, os empresários e as companhias


ocupam a vanguarda os agentes do fisco e os engenheiros officiaes. Perante a
alfândega as companhias nunca têm razão: as isenções de direitos concedidas
por lei para o material importado pelas companhias irritam sobretudo os
phariseus do fisco. Esquecem-se do progresso geral do Brazil, só vêm a
percentagem perdida nos direitos não pagos pela companhia”.

Rebouças ainda não perdoa o país do atraso. Mostra como inexistiam estatísticas
oficiais para desencadear trabalhos de peso; critica a falta de uma educação básica
para ampliar o conhecimento do brasileiro; bate de frente contra a permanência do
sistema escravocrata e sugere medidas de impacto –- como o incentivo à imigração
européia –- para desenvolver o país vasto, apático e incapaz de dar uma volta por
cima apesar da riqueza natural incomensurável. Além disso, se bate firme pela
educação e critica violentamente a tendência ao engodo, à preguiça e ao desmazelo
da jovem nação tropical (1988:323):

“Tudo isso demonstra que é necessário educar a geração que cresce, para a
agricultura, para a indústria, para o comércio, para o trabalho em uma só
palavra! Até aqui a educação era meramente política. Sahia-se da academia
para os collégios eleitorais, e muitas vezes para as assembleas legislativas
provinceaes, e até para o parlamento nacional. Dahi essa repugnância geral
para o trabalho produtivo”.

E, por fim, ele ataca ainda uma instituição que sobrevive impoluta e poderosa até os
dias de hoje: o gasto supérfluo e inexplicável (1988:313)

“Sim, é verdade, quanto dinheiro que figura como divida da lavoura foi
esbanjado no jogo, em eleições, em bailes, em banquetes e em toda a sorte de
dissipações? Quem não sabe que houve senhor de engenho que cortava a
canna ainda verde, reduzia-a a aguardente para poder ocorrer imediatamente
ás dividas do jogo?”

O LEGADO DE ANDRÉ REBOUÇAS

1 - Sua insistência na importância dos portos e estradas ressurgiu, em escala


amplificada, no Brasil moderno, com os chamados “corredores de exportação”,
implementado nos anos 1980 com a finalidade de embarque de mercadorias, como ele
previra.

2- Saneamento da Baixada Fluminense. Sua proposta de transformá-la numa Nova


Amsterdam não se concretizou. Mas surgiram inúmeras cidades sem os requisitos
sanitários e urbanísticos que ele recomendou.

3- Propôs a criação de estradas inter-oceânicas que se concretizaram no século


seguinte.

4 - Recomendou a criação de parques florestais pelo país. Hoje, há inúmeros


parques. Sua recomendação fora baseada por uma obra que lera sobre “Yellow-Show
Park”, nos Estados Unidos.

5 - Se preocupou com o saneamento das baías de Guanabara e Sepetiba, no Rio


de Janeiro, que hoje causam problemas ambientais.

6 - Propôs a criação de um sistema habitacional humanizado e amplo para as


populações de baixa renda.

7 - Defendeu a reforma agrária – um de seus precursores no Brasil –- e se bateu


contra o latifúndio.

8 - Defendeu a imigração européia e ficou contra a imigração asiática.

9 - Criou a proposta da higiene pública para tornar a cidade mais habitável, limpa e
confortável para seus habitantes.

10 - Foi o primeiro engenheiro brasileiro a realizar ensaios para suas obras com
cimento, impermeabilizantes para estacas e com madeiras para o mesmo fim.

11 - Teve ampla visão do emprego da madeira para o futuro das obras no país.

12 - Incentivou a navegação no interior aumentando, assim, as possibilidades


marítimas do Brasil.

13 - Copiando o que os ingleses fizeram na Índia, no combate às secas, propôs


a criação de uma malha ferroviária densa no nordeste, para facilitar o êxodo e a
remessa de recursos aos flagelados. Essa proposta mais tarde se concretizou.

Foi precursor e solidarizou-se com as seguintes questões:


- A cremação de cadáveres
- A conservação de áreas florestais
- O imposto territorial como meio de nacionalização do solo
- Construção de restaurantes para operários de obras
- A difusão de cooperativas
- A descentralização governamental
- A liberdade de comércio e abolição de direitos protecionistas
- Investimentos públicos e privados no sertão
- A arbitragem nos conflitos internacionais
- Foi introdutor de diversas técnicas na engenharia militar, florestal, portos,
navegação, ferrovia e hidrovias
- Criou inúmeras cadeiras de engenharia na antiga Escola Politécnica do Largo
de São Francisco no Rio de Janeiro.

NOTAS
1 - SANTOS, Sydney M. G. dos. André Rebouças e seu tempo. Vozes, Rio de
Janeiro: 1985.
2 - Idem, ibidem.
3 - Idem, ibidem.
4 - Idem, ibidem.
5 - Idem, Ibidem.
6 - REBOUÇAS, André. Agricultura nacional: estudos econômicos, propaganda
abolicionista e democrática. Setembro de 1874 a setembro de 1883. Fundação
Joaquim Nabuco, Recife: 1988.

*Carlos Nobre é Jornalista; Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de


Janeiro - PUC-Rio; Pesquisador de Segurança Pública, Direitos Humanos e Processo
Abolicionista. Autor de Mães de Acari – Uma história de protagonismo social (2005)

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