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Os riscos eticos
da globalizaçâo

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EDITORAAnLIADA
Premliu Editora

Todos os direîtos reservados. Proibida a reproduçâo, armazenaraento outransmissâo de partes deste livro,
através de quaisquer meios, sem prévia autorizaçâo por escrito do autor oueditora.
Michel Schooyans
Professor Emérito da Universidade de Louvain

Entrevistas sobre
Os riscos étioos da
globalizaçao

Prefâcio
Prof. Antonio Mourâo Cavalcante
Titular da Faculdade de Medicina da
Universidade Fédéral do Cearâ

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EDITORA
Copyright © 2003 Michel Schooyans

EDITORA

IMPRESSÂOE ACABAMENTO
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PABX: (85)281.5072-Fax: (85)283.1083
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Capa
Calasans Neto
(gravura em madeira)

Diagramaçâo
Elias Sabôia

Montagem e Gravaçâo
Carlos Antonio (Tonhâo)

S 372 e Schooyans, Michel


Entrevistas sobre os riscos éticos da
globalizaçao/ Michel Schooyans;
Prefâcio de Antonio Mourâo Cavalcante.
-Fortaleza: Premius, 2003.

104 p.

1. Ética social 2. Ética


da globalizaçao I. Tîtulo
CDU 177(047.53)
f m

Prefâcio

Michel Schooyans é um mensageiro global. Ho]e pode


estar em Roma, participando das reuniôes dos conselhos ou
academias que faz parte, assessorando na elaboraçâo de
algum documenta doVaticano. Amanhâ, em Paris ou Cidade
do Mexico, defendendo de maneira intransigente os cânones
da vida. Contra a eutanâsia, o aborto, e todos os modos de
considerar a vida humana como algo de menos. Depois, no
Rio de Janeiro, em Salvador ou Brasilia, mâquinafotogrâfica à
tiracolo, nâo perde uma conversa. Registra os dados e cifras.
Compra briga corn as teorias assépticas e desumanas da
ONU. Coragem nâo Ihe falta, nem argumentos.

Ele nâo séria apenas um mensageiro. Mensageiro


transmite as informaçôes. Na verdade, Schooyans convida
à reflexâo, induz ao questionamento, num linguajar simples,
prôprio aos grandes mestres. Nâo impôe idéias, mas nosteva
a pensar sobre estes temas tâo polêmicos e
extraordinariamente atuais, no registro intransigente da defesa
da vida.
Schooyans deixou, por força do tempo, a câtedra
da Universidade de Louvain (Bélgica), para torna-se o mestre
de todos nos. Em seus périplos constantes, inclusive em nosso.
pais, reafirma a fé inquebrantâvel no Cristo que liberta.

Faltava a publicaçâo de um livro de Michel Schooyans


no Brasil. Essa coletânea de entrevistas, obtidas em muitas
de suas viagens, registra um pouco o pensamento deste
mestre do humano. Apesar dos momentos serem bem
distintos, ela guarda uma coerência e um sentimento
pungente que ainda hâ espaço para crer nas possibilidades
do ser humano na Terra, podendo a globalizaçao ser
entendida como uma abertura para a ampla construçâo
da justiça e da paz.

Assim pensa o nosso mestre. Assim achamos que


deva ser. Boa leitura e feliz iniciaçao nessas idéias que se
nâo guardam extraordinârio ineditismo, estabelecem com
clareza, o exato peso do que deve ser o progresso e a
globalizaçao: um radical compromisso com o humano e a
vida que dele émana.

Antonio Mourâo Cavalcante


Apresentaçâo

As entrevistas aqui reunidas abordam temas centrais


nas discussôes atuais: globalizaçao, soberania nacional,
educaçâo, distribuiçâo da renda, terrorismo, direitos
humanos, democracia, contrôle da natalidade, esterilizaçôes,
aborto, eutanâsia, papel dos médicos na sociedade, nova
concepçâo do direito, relaçôes internacionais, açâo mundial
da ONU, etc.
Como esses textos sâo de acesso difîcil, amigos nos
aconselharam organizar esta coletânea. Todas essas
entrevistas foram concedidas em ocasiôes précisas,
explicadas no infcio de cada capîtulo. Quando necessârio,
o texto original foi ligeiramente retocado ou completado.
Assim mesmo, fizemos questâo de respeitar a
espontaneidade do estilooral. Os textos se completam, mas
a ordem da sua classiflcaçâotem pouca importância. Cada
entrevista é autônoma e constitui um todo. Isto explica certas
repetiçôes, que nâo quisemos eliminar. Portante, o leitor pode
começar a leitura entrando diretamente no capîtulo que mais
Ihe intéressa.

Como costuma ser, essas entrevistas sâo trabalhos de


vulgarizaçâo. Por isso, evocamos certas personalidades, mas,
para nâo sobrecarregar o texto, deixamos de lado toda
referência em nota de rodapé. O leitor interessado poderâ
aprofundar todos os pontos aqui abordados consultando
nossos outros trabalhos. Esses sâo mencionados no inïcio do
volume e comportam todas as referências desejâveis.
Salvo outra mençâo, as entrevistas foram concedidas
em português. O autoragradece efusivamente aosjornalistas
e aos amigos que recolheram essas entrevistas com a mais
alta competência: Juliana Matos Brito (O Povo, Fortaleza),
Agnès Jauréguibéhère (LHomme nouveau, Paris), Antonio
Gaspari (Zenit, Roma), Antonio Mourâo Cavalcante
(Faculdade de Medicina, UFC, Fortaleza), Frei Nuno Serras
Pereira (Infovitae, Lisboa), Josué Costa (O Libéral, Belém do
Para), Luca Fiore (// Matfino délia Domenica, Lugano), Rino
Bonvini (Faculdade de Medicina, UFC, Fortaleza). As
entrevistas publicadas em francês foram traduzidas em
português por Rui A. C. Costa.

Fortaleza e Louvain-la-Neuve, Ano Novo 2003.


Indice

Capîtulo I: A cara oculta da ONU, entrevista recolhida


por Luca Fiore para II Matfinodélia Domenica (Lugano),
24dejunhode2001 11

Capîtulo II: Prloridade do homem na era da


globalizaçao, entrevista recolhida por Josué Costa
para O Libéral (Belém do Para), 29 de junho de 2002... 19

Capîtulo III: O "crash" demogrâfico e as suas


conseqùênclas, entrevista recolhida por Antonio
Gaspari para a agência Zenit (Roma), 28 de fevereiro
a© z\j\j^L .«..<•••••• •.... ><. •• • w i

Capîtulo IV: Meninos de rua, rlqueza da naçâo,


entrevista recolhida por Antonio Mourâo Cavalcante e
Rino Bonvini, Universidade Fédéraldo Cearà (Fortaleza),
8 de dezembro de 1999 37

Capîtulo V: A funçâo social do médico, entrevista


recolhida por Juliana Matos Brito, para O Povo
(Fortaleza), 22 de Janeiro de 2002 61

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Capîtulo VI: Wâo matarâsl, entrevista recolhida pelo
Frei Nuno Serras Pereira, ofm, para a agência Infovitae
(Lisboa), 4 de maio de 2002 73

Capîtulo VII: O dossiê da eutanâsia, entrevista de


Klaudia Schank e Michel Schooyans, por Agnès
Jauréguibéhère para LHomme Nouveau (Paris), 2 de
junhode2002 93

Obras do mesmo autor. 101

Nota sobre o autor. 104


Capîtulo I

A cara oculta da ONU

Entrevista recolhida por


Luca Fiore

para // Matfino délia Domenica (Lugano),


24dejunhode2001.

Durante o Congresso sobre "Globalizaçao, Economia e


Familla", realizado em Roma de 27 a 30 de novembro de
2000 pelo Pontificio Conselho para a Familia, o senhor
expos a concepçâo da globalizaçao segundo a ONU. Essa
concepçâo é também longamente analisada no seumais
récente livro, A Face oculta da ONU, publicado pela
editora Sarment/Fayard, Paris, 2001. Para o senhor, essa
concepçâo tende a considerar que o meio ambiente tem
mais valor do que a pessoa. Do que se trata? Quai é a
sua preocupaçâo?

Globalizaçao, Mundializaçâo: dois termos que


entraram para a linguagem cotidiana; dois conceitos que
se tornaram objeto de debates e discussôes envolvendo o

11
futuro da sociedade mundial. Esses termos significam antes
de mais nada, que as sociedades humanas tornaram-se
interdependentes: por exemplo, uma desvalorizaçâo do yen
japonês repercute em toda a economia mundial. Isso
significa também que as sociedades mundiais estâo
integradas: as viagens e a mîdia ensinam os homens a se
conhecer melhor; a informaçâo cientifica é amplamente
divulgada e discutida em fôruns virtuais abertos 24 horas por
dia. Em princîpio, devemos evidentemente nos alegrar com
essa evoluçâo e é claro que ela demanda novos instrumentos
de conduçâo das relaçôes internacionais.
Tradicionalmente essas relaçôes internacionais se
organizam a partir de dois modelos. De um lado, um modelo
encarnado hoje pelos EUA. O globalismo é aï concebido a
partir do projeta hegemônico da naçâo dominante, cujo
objetivo é impor uma organizaçâo do mundo de inspiraçâo
neoliberal. Esse projeta tem de inicio uma forte conotaçâo
econômica: seuobjetivo é a globalizaçao do mercado; mas
comporta também, evidentemente, uma vontade de gerir
politicamente o mundo. Nâo pode ser realizado senâo com
a conivência das naçôes ricas. O outro modelo é herdeiro
do intemacionalismo socialista e, se insiste sobre as
necessârias reformas econômicas, coloca em primeiro piano
um objetivo polîtico: limitar a soberania dos estados e
submetê-los ao contrôle de um poder polîtico mundial. O
método para atingir esse fim nâo é mais revolucionârio; no
espîrito de Gramsci, é reformista.
Quando fala em globalizaçao, a ONU incorpora os

12
significados dessa palavra tais como viemos de recordar.
Mas aproveita-se da imagem positiva associada ao termo
para imprimir-lhe novo significado. A globalizaçao é
interpretada à lui de umanova vlsôo de mundo e do lugar
do homem no mundo. Essa visâo "holîstica" considéra que o
mundo constitui um todo dotado de maior realidade e valor
do que as partes que o compôem. Nesse todo, o surgimento
do homem nâo é senâo um avatar da evoluçâo da matéria.

O senhor igualmente manifestou sérias réservas quanto


à Carta da Terra, um documento da ONU em preparaçâo,
a ser publicado prôximamente. 0 senhor até afirma que
nele encontramos a influencia da New Age. Quais as
ligaçôes entre a New Age e esse texto?
Trata-se de um projeta de documento no quai um
dos redatores nâo é outro senâo o prôprio senhor Mikhail
Gorbatchev. O que frisa esse documento? Sendo apenas o
produto de uma evoluçâo material, o homem deve curvar-
se aos imperativos de meio-ambiente, da Natureza, da
ecologia. A influencia do filôsofo Thomas S. Khun, um dos
grandes inspiradores da New Age, é aqui évidente e
confirmada nos livros de Marilyn Ferguson sobre essa mesma
corrente. O homem deve aceitar nâo ser mais o centra do
mundo. Segundo essa leitura da natureza e do homem, a
"loi naturar, nâo é mais aquela que esta inscrita na
inteligência e no coraçâo do homem; é a lei implacâvel e
violenta que a natureza impôe ao homem. Os ecologistas
tisnados de New Age até apresentam o homem como

13
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predador. E como todas as populaçôes de predadores,
afirma-se que a populaçâo humana deve ser contida,
limitada imperativamente, dentro dos limites do.
desenvolvimento sustentàvel.

Quai a relaçâo entre essa Carta da Terra e a Declaraçâo


Universal dos Direîtos do Homem de 1948?
A Declaraçâo Universal dos Direitos do Homem, de
1948, inclina-se diante de uma verdade que se impôe para
todos. Reconhece que todos os homens tem direito à vida;
que nascem livres e iguais em dignidade; que sâo livres para
se associarem, para se atribuîrem um régime polîtico de sua
livre escolha, de se organizarem em sindicatos, de criarem
uma famîlia, aderirem a uma religiâo, etc. Todos os homens
têm o direito de participar da vida politica e da vida
econômica, pois todos têm alguma coisa de ûnicoa oferecer
aos outras homens. Todos os totalitarismos do século XX
nasceram do desprezo a esses direitos inalienâveis. Promover
esses direitos por todo o mundo é barrar o caminho aos
sistemas que reduzem o homem a nâo ser senâo uma
engrenagem do estado, um instrumenta do Partido, um
espécime de determinada raça. A grande originalidade
dessa Declaraçâo é conceber como fundamento das novas
relaçôes internacionais o reconhecimento, por todas Naçôes,
dos direitos fundamentais de todos os homens.
A Carta da Terra abandona e mesmo combate o
antropocentrismo judeo-cristâo e romano, reforçado pelo
Renascimento, e que foi levado a seu ponto de maior

14
incandescência na Declaraçâo de 1948. Ao documento
caberia nâo somente superar a Declaraçâo Universal, mas,
para alguns, deveria mesmo suplantar o prôprio Decâlogo,
modéstia à parte!

O senhor chegou a falar do projefo da ONU de instaurar


progressivamente um "super-governo mundial" que
suplantara os corpos intermediârios, as naçôes, e imporâ
um pensamento ûnico, através do contrôle da
informaçâo, da saûde, do comércio, da politica e do
direito. Nâo séria essa uma imagem do futuro muito à la
George Orwell?
A argumentaçâo ecolôgica desenvolvida na Carta
da Terra, é na realidade um artificio ideolôgico para camuflar
algo mais grave: entramos em umanova revoluçôo cultural.
De fato, a ONU esta em vias de formular uma nova
concepçâo do direito. Essa concepçâo é mais anglo-saxâ
do que latina. As verdades fundadoras da ONU, referentes à
centralidade do homem no mundo, sâo pouco a pouco
desativadas. Segundo essa concepçâo, nenhuma verdade
sobre o homem impôe-se a todos os homens: a cada um
sua opiniâo. Os direitos do homem nâo sâo mais
reconhecidos como verdades; sâo objeto de procedimentos,
de decisôes consensuais. Negociamos e ao termo de um
procedimento pragmâtico, decidimos, por exemplo, que o
respeito à vida se impôe em certas casos mas nâo em outras,
que determinada manipulaçâo genética justifica o sacrifîcio
de embriôes, que a eutanâsia deve ser liberalizada, que as

15
uniôes homossexuais têm o mesmo direito que a famîlia, etc.
Daî nascem os assim chamados ttnovos direitos do homem",
sempre renegociâveis ao sabor dos interesses daqueles que.
podem fazer prevalecer sua vontade.
Para tornar palatâveis esse unovos direitos" e sobretudo
a concepçâo do direito que Ihes é subjacente, dois eixos de
açâo devem ser privilegiados. É preciso inicialmente
enfraquecer as naçôes soberanas, pois sâo geralmente as
primeiras a protéger osdireitos inalienâveis de seus cidadâos.
Em seguida, nas assembléias internacionais, é preciso obter-
se o maior consenso possîvel, recorrendo se preciso à
corrupçâo, à chantagemouà ameaça. Uma vez alcançado,
o consenso pode ser invocado parafazer adotar convençôes
internacionais que adquirem força de lei nos estados que as
ratificaram. Esse tipo de globalizaçao, sustentado por uma
concepçâo puramente positivista do direito, justifica as mais
intensas apreensôes. Aos poucos, a ONU esta procedendo à
supranacionalizaçâo do direito e do judiciârio a fim de
extender um "direito" de ingerência - que ela usurpa.

O titulo de seu ûltimo livro é A face oculta da ONU: que


face é essa, e quem é que se esconde por detrâs?
Em dossiês tâo complexos quanta o da globalizaçao
segundo a ONU, a falta detransparência torna evidentemente
difîcil a prova direta e a demonstraçâo matemâtica. A
experiência récente, em França, dasmalversaçôes e demais
irregularidades confirma que nenhuma organizaçâo dispôe-
se a reconhecer que esta corroîda pela açâo de contrarias,

16
pela presença em seu interior de "fraternidades" e de "redes".
Contudo, tais realidades existem sem sombra de dûvida. Nos
as conhecemos nâo somente por suas açôes, mas também
pelo que alguns de seus membros dizem a seu respeito
publicamente, por exemplo na televisâo. Evidentemente,
sempre hâ pessoas prontas a negar fervorosamente as
evidências, incluso quando nem sequer sabem onde
encontrar os dossiês. Mas sera preciso esperar que os
membros da DGSE francesa (Direçâo Gérai de Segurança
Exterior) desfilem com uma braçadeira para saber que a
DGSE existe?
Na realidade, a ideologia onusiana da globalizaçao
esta plasmada em referências livre-exaministas, agnôsticas,
utilitaristas e hedonistas. Se analisarmos pacientemente as
récente reuniôes da ONU sobre questôes tâo diversas como
saûde, populaçâo, meio-ambiente, habitat, economia
mundial, informaçâo, educaçâo - para citar apenas esses
exemplos, percebemos uma notâvel comunidade de
inspiraçâo e uma igualmente notâvel convergência de
objetivos. Éclaro que sob instigaçâo das naçôes soberanas
que sâo seus membros, a ONU deveria procéder à uma
auditoria interna, sem o que darâ cada vez mais a impressâo
de estar sob influencia de uma mafia tecnocrâtica. Tenho
sobre outras a vantagem de chegar à essa conclusâo apôs
vârios anos de pesquisa. Porém, se me perguntar se vi com
meus prôprios olhos a "mâo invisîvel", devo Ihe responder
que vî somente sua sombra. Mas no casa isso é suficiente.
Traduçâo de RuiA. C. Costa.

17
Capîtulo II

Prioridade do homem
na era da globalizaçao
Entrevista recolhida por
Josué Costa
para O Libéral (Belém do Para),
29dejunhode2002.

Aos meus amigos ouvintes e telespectadores de


Semana de Estudos Sociais, Belém, junho de 2002.

A agenda de Michel Schooyans, padre hâ 47 anos,


mostra que eie nâo costuma parar no pûlpito. Nascido na
Bélgica em 1930, faz questâo de cumprir à risca uma
agenda de compromissos pelos quatro cantos do mundo. É
especialista em falar de Deus para intelectuais e
empresârios, e falar dos empresârios e intelectuaispara Deus.
Domina varias linguas e, além dos estudos seminaristicos,
fez très doutorados, em Filosofia Politica, em Teologia e em
Letras.

19
Em Belém, Schooyans palestra sobre questôes muito
actuais, que eie submete à luz dos Evangelhos. Aos
empresârios, politicos, padres e agentes de pastoral, fala
da ética nas relaçôes internacionais e da globalizaçao.
Schooyans é considerado uma das maiores autoridades
internacionais quando as questôes politicas e econômicas
exigem uma abordagem ética. O sacerdote nâo poupa
chicotadas à portados templos da Organizaçâo das Naçôes
Unidas (ONU), culpando-a por alguns dos principais
desmandos de ordem internacional. "O que vale, é o
consenso, que se oficializa nas convençôes, sem nenhuma
preocupaçâo com a busca da verdade", observa o
sacerdote.

Frente aos empresârios, Schooyans defendeu lados


positivos da globalizaçao, mas lembrou que o lucro nâo
pode ser a unica mira da açâo empresarial. "O bem-estar
de todos os seres humanos deve ser prioridade na busca
dos resultados", receita, aconselhando a classe a buscar,
em primeiro lugar, o fortalecimento da unidade federativa
da comunidade mundial e de cada naçâo em particular,
evitando, com isso, "uma soberania fragilizada num
mercado internacional, que procura servir aos caprichos do
imperialismo politico e econômico".
Avaliando os atentados do dia 11 de setembro de
2001, em Nova lorque, o monsenhor diz preferir abordar a
questâo pela ôtica dos marginalizados e excluidos.
Considerou a atitude dos terroristas como xxexpressâo dos
sentimentos de frustraçâo e Inveja", canais por onde o pobre

20
Y

revoltado se faz ouvir. Afirma que, no Brasil, muitos ricos sâo


exibicionistas. Fazem questâo de ostentar um luxo insolente,
indiferentes ao abismo gritante entre os que têm e os que
nâo têm. Essa ostentaçâo descarada da riqueza provoca
um rancor, um ressentimo que conduz à violência e ao
terrorismo urbano.
Veja o que o padre MichelSchooyans conversou com
o reporter Josué Costa:

O que o traz à Belém?


Fiz umas palestras em fevereiro do ano 2002 para
130 bispos, no centra de convençôes do Sumaré, no Rio de
Janeiro. Dom Zico, Arcebispo de Belém, e Dom Carlos, seu
Bispo auxiliar, faziam parte desta prestigiosa platéia.
Gostaram. Pediram para eu repetir as palestras em Belém.

O senhor faz duras criticas à ONU em suas palestras.


Acusa-a, por exemplo, de valorizar demais a Terra, a
"Madré Gaïa", em suas açôes, em detrimento da
valorizaçâo do homem. Valorizar, ho'je, as riquezas
naturais nâo é mais rentâvel do que valorizar o pràprio
homem?
Pode ser aos olhos de alguns, que querem
restabelecer um panteismo côsmico, um culto pagâo da
terra. A ONU jâ foi antropocêntrica. Em suas origens,
reconhecia e respeitava os direitos humanos. ADeclaraçâo
Universal dos Direitos Humanos de 1948 almejava estabelecer
novas relaçôes internacionais sobre uma verdade: todos os

21
homens sâo iguais em dignidade. A ONU exerceu entâo, com
uma autoridade respeitâvel, o papel de relevo nas relaçôes
entre as naçôes, na manutençâo da paz, na promoçâo do
desenvolvimento. Tinha méritas indiscutîveis nesses campos.
Hoje, nâo. A ONU sofreu um processo de transformaçâo do
quai somos testemunhas: os direitos humanos jâ nâo sâo
reconhecidos como verdade; sâo o resultado de um
consenso. Contracepçâo de qualquer tipo, aborto, uniôes
homossexuais, eutanâsia, par exemplo, jâ corresponderiam
a assim chamados "novos direitos humanos". Os direitos
humanos se confundem com os direitos comerciais: estamos

negociando valores como se fossem coisas. O que esta em


jogo hoje é o poder de barganha: barganham-se os direitos
humanos nas assembléias da ONU.

O contrôle da natalidade, ao que parece, é uma


caracteristica dos paises desenvolvidos...
É como se os os paîses auto-proclamados
desenvolvidos quisessem dizer-nos: uFaçam como fazemos,
e vocês, xsubdesenvolvidos\ conseguirâo o que jâ
conseguimos". Mas, o tira esta saindo pela culatra. A Europa,
par exemplo, é campeâ quando se trata de recusar a vida;
é um continente de pessoas envelhecidas. O Velho
Continente é um continente de velhos. A Rûssia perde 700
mil habitantes par ano; fenômeno anâlogo se observa na
Alemanha, na Itâlia, na Espanha. O caminho do
desenvolvimento e da felicidade nâo passa pelo contrôle
da natalidade, como se quer fazer pensar. Nos paises pobres,

22
a vida ainda é respeitada, felizmente, apesar do bombardeio
mediâtico e das crîticas de que sâo vîtimas as famîlias que
acolhem a vida. O capitalmais importante e que maispode
vlr a faltar é o capital humano, isto é o homem bem formado,
na famîlia e num bom sistema educativo. GaryBecker, chefe
da Escola de Economia de Chicago, ganhou o Prêmio Nobel
de Economia em 1992 por ter demonstrado isso.

O senhor afirma que ajustiça nâo tem mais vinculo com


a verdade. Como assim?

A justiça nâo pode ser o simples produto de


negociaçôes; deve ter relaçâo com a verdade. Somas seres
humanos Iguals em dignidade. Se deixamos de reconhecer
e proclamar isso, tudo se torna possîvel. Compete ao poder
polîtico equilibrar as desigualdades naturais ou provocadas.
Nas decisôes de algumas instituiçôes especializadas da ONU,
hoje, isto esta sendo questionado.. Éo caso da Organizaçâo
Mundial da Saûde (OMS). Nosetor da medicina, por exemplo,
a saùde é tratada como produto de mercado, que se
compra conforme o poder aquisitivo, e que se cuida de
acordo com a expectativa de vida sem invalidez.

A ONU esta sempre na mira de suas criticas. A entidade,


para o senhor, esta com a autoridade desacreditada?
Esta, sim. Esta para mim, e se o grande pûblico tivesse
canais de acesso à informaçâo honesta e crîtica, a ONU
estaria também desacreditada para muitos. O desprestigio
que afeta varias agências recai sobre o conjunto da

23
organizaçâo. Épreciso desmistificar os chavôes que nos sâo
apresentados como "verdades", mas que sâo na realidade
subprodutos de ideologias néocolonialistes e eugênicas,
Essas, por exemplo, levam hoje a programas inadmissîveis
de esterilizaçâo das massas pobres.

Esse novo perfil da ONU nâo é coerente com os valores


da modernidade?

E preocupante uma escala de valores que nâo


respeita incondicionalmente a pessoa humana. Impera uma
confusâo entre o valor do homem e o valor do mercado,
isto é, da utilidade. A ONU abandonou a centralidade do
homem nas suas reuniôes e discussôes. Nelas o homem
aparece taô-somente como produto de uma evoluçâo
puramente material. O homem é visto como um ttpredrador",
como o destruidor da natureza. O pobre, em particular, é
considerado como um ser inûtil, nocivo até, pois atrapalha o
bom funcionamento do mercado. Essa é a mensagem que
nos é inoculada por algumas das agências da ONU, como
o Fundo das Naçôes Unidas para a Populaçâo (FNUAP). Varias
dessas agências cuidam bastante dos interesses dos paîses
ricos, mais interessados no contrôle e na exploraçâo das
riquezas naturais da terra do que na promoçâo das
populaçôes das regiôes pobres.

Entâo, a apologia que se faz ao meio ambiente esconde


outros interesses?
Clara. Os paîses ricos querem monter o contrôle sobre

24
as réservas dos recursos naturais sem que os paîses pobres,
donos natos desses recursos, tenham acesso ao saber e
tecnologias para explorâ-los em benefîcio prôprio.

O senhor fala da receita para erradicar a fome. E o faz


num continente onde, de um /ado, uma minoria ostenta
riquezas abundantes e, de outro, a malaria é negada em
seus direitos mais elementares... Esse quadro dita as
normas da receita?
É verdade. Em 2001, Doha e em Durban, em 2002
em Johanesburgo, milhares de delegados reuniram-se para
discutir açôes de combate à fome. A despesa foi
extraordinâria. Uma estadia luxuosa... Assim nâo se muda
nada. Éerrado pensarque nos faltam homens compétentes
e infra-estruturas para o implemento de mudanças. Discursam
sobre programas e pianos de açâo que acabam dando
em nada. Sâo quermesses mediâticas gigantescas. Ora
bolas! O que mais falta é mudar a vontade politica e mudar
a /moral distribuiçâo de recursos entre as classes. Urge
reorientar a aplicaçâo dos recursos escandalosamente
esbanjados nos comîcios internacionais.

Quai a receita?
Nâo hâ receita pronta e aplicâvel em qualquer
espaço geopofrtico. Penso, no enfanta, que entre as açôes
comuns esta a imediata escolarizaçâo acessh/el a todos,
jovens e adultos, sem discriminaçâo. Amaior riqueza de um
pais é seu prôprio povo. Eie merece, prioritariamente, zelo,

25
dedicaçâo, empenho. Depois, hâ necessidade de mudança
radical nos programas polîticos. As açôes politicas nâo
abrangem, e muito menos alcançam a énorme massa
marginalizada. No Brasil, segundo avaliaçôes sérias, um terço
da populaçâo pertence ao sub-proletariado, tâo odiado por
Marx e consortes. Até os partidos tidos como populares
incluem principalmente os operârios urbanos. Ora, um
programa polîtico décente nâo pode se focalizar apenas
sabre os interesses da classe operâria urbana industrial. A
periferia da periferia concentra uma multidao
proporcionalmente bem maior de gente. Nâo hâ progresso
sem a integraçâo da populaçâo hoje excluida, refluida,
contida até, como se fosse um perigo para o bem-estar dos
abastados.

Na ordem das prioridades, escola ou redistribuiçâo de


renda?
Nâo hâ possibilidade de se criar uma sociedade
democrâtica sem uma escolarizaçâo generalizada. Os erras
seguidos cometidos pelasautoridades, e jâ denunciados par
Darcy Ribeiro, os pianosde açâo inadaptados, que se repisam
apesar dos seus comprovados fracassos sô sâo possîveis
graças à ignorância popular, à falta de sabere de senso crrtico.
Sâo essas algumas das grandes verdades repetidas por
Amartya Sen, que ganhou o Prêmio Nobel de Economia em
1998. Concomitantemente, convém corrigir a distribuiçâo
escandalosa da renda. No Brasil, os 20 % mais ricos tem uma
renda 33 maior do que a dos 20 % mais pobres.

26
Sobre os valores familiares que o senhor tanto défende...
Como resgatâ-los numa sociedade imediatista,
consumista, hedonista, indMdualista...?
Os programas que concernem as famîlias sâo
preocupantes. Somos pessoas, isto é indivîduos que se
relacionam. Afamîlia é a primeira célula de proximidade. É
inicialmente na famîlia que hâ encontro, unidade,
entrelaçamento. Hoje, a famîlia é reduzida a um nûcleo
privado, orientado para o bem e a felicidade dos seus
membros: pai, mâe, filhos, etc. Tudo isso é verdade, mas
além disso, é verdade que a famîlia é também um bem
para a sociedade. Importa para a sociedade que as famîlias
possam contribuir ao bem estar gérai, principalmente através
da educaçâo dos filhos, da preparaçâo do "capital humano".
Gary Becker, jâ citado, demonstrou que o interesse e o dever
do estado é de favorecer a familla e de reconhecer um
estatuto à mâe que cuida da educaçâo dos filhos.

Sobre os atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova


lorque, o senhor afirmou que os terroristas estavam
motivados por sentimentos de inveja e frustraçâo em
relaçâo as riquezas dos paises ricos. Como entender essa
posiçâo?
A riqueza no mundo se ostenta de modo insolente,
agressivo. Veja aqui no Brasil: a riqueza, par exemplo, nâo
tem vergonha de se ostentar, de se exibir, de provocar. O
contraste que se evidencia acaba acumulando um
sentimento de amargura, rancor e violência nas pessoas.

27
Os marginalizados nâo têm voz nem vez nas assembléias.
Eles buscam canais de expressâo desse ressentimento
acumulado. Eas armas preferidas dessa gente sâo as armas
do prôprio adversârio, pois chefiando essa gente, hâ
intelectuais de primeira linha. Épreciso abordar o éventa do
dia 11 na perspectiva do outra lado, a do terrorista. Nâo em
busca de justificativa, que evidentemente nâo cabe, mas
em busca da compreensâo da questâo como recado para
a humanidade. Esse povo que recorre à violência précisa
ser ouvido, ter seus apelos decifrados. Aameaça nunca vai
acabar. Amassa dos excluîdos constitui uma bomba relôgio
social que pode ser detonada a qualquer momento. No Brasil,
temos essa situaçâode perigo que se expressa noterrorismo
urbano e nas açôes dos sem terra. Aguerrilha, a guerra do
pobre, esta prestes a se alastrar à escala mundial.

O fenomeno da globalizaçao, também tâo abordadopelo


senhor, forfifica ou fragiliza o Estado?
Hâ vârios enfoques. Aglobalizaçao em si é positiva.
Essa tendência a estreitar os laços da comunidade humana
reflète um anseio universal e natural. Faz bem. O problema é
a interpretaçâo e a orientaçâo inaceitâveis dada asvezes a
essa tendência. O lucro parece ser a unica mira dos
comandantes desse barco. Percebe-se que, novamente,
uma énorme massa de homens esta excluîda dos benefîcios
do progresso. Isso é injusto, além de perigoso. Percebe-se
também que, através do consenso e das convençôes, os
Estados soberanos andam cada vez mais minados na sua

28
autonomia. Agora, sâo os Estados os organismos pûblicos
os mais indicados e melhor equipados para promover, em
primeira linha, os direitos humanos, a justiça, a saûde, a
educaçâo, etc..

O senhor fa/ou para os empresârios da Federaçâo dos


Industriais e Empresârios do Para (Fiepa), certamente
amantes do processo de globalizaçao. O que disse para
eles?
Entre outras coisas, disse, primeira, que o que faz a
riqueza dos Estados Unidos, par exemplo, paîs tido como
modelo de democracia, é o seu mercadointerna Étambém
o mercado interno que faz a prosperidade dos outras paîses
bem-sucedidos, e da Uniâo Européia. No caso do Brasil, é
essencial que haja muitomais integraçâo e intercâmbio entre
os Estados da Federaçâo. Esse é um primeira passo em vista
do fortalecimento de um povo. Integraçâo nacional deve
ser prioridade, através de uma distribuiçâo muito mais
equitativa do saber e dos recursos. Lançar-se no mercado
internacional sem essa base de fortalecimento é consolidar
o bloqueio da mobilidade social. Infelizmente, hoje em dia,
acontece frequentemente que as exportaçôes sô trazem
II benëfîcios a uma minoria nacional hostil aos mecanismos
da redistribuiçâo. Mas sobretudo, convém - em segundo
lugar - renunciar à ilusâo colonial, que incute a convicçâo
que um paîs é rico porque eie tem muitos recursos naturais.
Essa é, hoje, uma visâo "furada" da riqueza de uma naçâo.
Hoje em dia, o desenvolvimento de um paîs se aprecia em

'iS
1 29
I
funçâo da capacidade que têm os cidadâos da exercerem
sua liberdade. Épor ter demonstrado isso que Amartya Sen
ganhou o Prêmio Nobel de Economia em 1998. A liberdade
se torna objeto, e nâo mais meio, do desenvolvimento. Mas
essa liberdade nâo pode eclodir nem se exercer se nâo hâ
educaçâo generalizada. Essa, sim, desperta em todos a
capacidade de fazer as opçôes libertadoras da
personalidade.

30
r

Capîtulo III

O "crash" demogrâfico
e as suas consequências
Entrevista recolhida por
te
Antonio Gaspari
para Zenit (Roma),
28 de fevereiro de 2002.

Monsenhor Michel Schooyans, professor emérito da


Universidade Catôllca de Louvain, colaborador em diversas
I instâncias romanas e especialista em ideologias
| contemporâneas e em politicas demogrâflcas, acaba de
| publicar uma obra de grande repercussâo: O Crash
demogrâfico, pela Editora Sarment-Fayard, de Paris.
Apresentamos abaixoa entrevista que concedeu em Bruxelas
à agência ZENIT.

O senhor acaba de publicar em francês um livro intitulado


O Crash demogrâfico. É um sinal de alarme. O senhor
nâo titubeia em comparar esse "crash" àquele do Titanic.
«
Sobre quais elementos esta apoiada sua anâlise?
ï
I
31
I
Jâ se passaram uns trinta anos desde que demôgrafos
de primeira ordem chamaram a atençâo para a curva
descendente de crescimento da populaçâo. O Saudoso
Alfred Sauvy, por exemplo, um dos pais da demografia
contemporânea, discerniu muito cedo essa tendência e
sublinhou com insistência seus perigos. As anâlises ulteriores
nâo vieram senâo confirmar e precisar esse diagnôstico.
Pensamos aqui nos trabalhos de Daniel Noin, Jacques
Dupâquier, Jean-Claude Chesnais, Gérard-François Dumont,
Jean-Didier Lecailion, Pierre Chaunu - isso para citar apenas
franceses. Mas recentemente essa curva descendente foi
reconhecida por organismos internacionais, entre os quais
instituiçôes especializadas da ONU, que haviam adquirido o
hâbito de denunciar a "explosâo demogrâfica", a
usuperpopulaçâo", etc.
Éprecisamente sobre os dados fornecidos por esses
mesmos organismos que nos apoiamos. Eles mesmos têm
quese render à evidência dos fatos. ;nâotemcomoescapar
afulgurantes constataçôes. De 1955 a 1998, onuméro médio
de filhos por mulher em idade de fecundidade passou, na
Europa, de 2,6 a 1,4. Ora, seriam necessârios 2,1 filhos de
que se chama o Indice de fecundidade" para que as
geraçôes fossem substituîdas. Outra indicador: a taxa de
aumento da populaçâo mundial, que era da ordem de 2,3
% ao ano no inîcio dos anos 60 é da ordem de 1,4 %
atualmente. Econtrariamente aquilo é repetido, essas duas
tendências observam-se em todo o mundo

32
r

Se o queda demogrâfica prosseguir para o que nos


encaminhamos? Quais sâo as consequencias desse
declinio?
As consequencias do declinio demogrâfico sâo
mûltiplas. A mais évidente, é o envelhecimento da
populaçâo. Tomemos como exemplo a idade "mediana",
o que significa aquela que divide uma populaçâo em duas
partes iguais. Nos paises industrializados, ela é da ordem de
40 anos, o que significa que uma metade de populaçâo
tem menos de 40 anos e que a outra metade tem mais de
quarenta. Ora, em 2005, ouseja, amanhâ, prevê-se que essa
idade mediana seja da ordem de cerca de 55 anos em
paîses como a França, a Alemanha, a Itâlia a Espanha. Dai
as perguntas:, quantas mulheres haveriam, nesses paises, em
idade de procriar? Quantos filhos teriam? E nâo é tudo: o
envelhecimento leva à depopuloçôo. É fâcil de se
compreender: mais a populaçâo é velha, maior é a
probabilidade de morrer e mais aumenta a taxa de
mortalidade. Alias, essa é mais elevado nos paises ricos do
que nos pobres. Mais ainda: na Alemanha e na Rûssia, em
quinze paîses europeus, o numéro de falecimentos jâ supera
o numéro de nascimentos. Éfâcil entrever as consequencias
econômicas, sociais e geopolîticas que acarreta tal situaçâo.

Ouvimos corn frequência dizer que osproblemas mundiais


(guerras, forne, poiuiçâo ambiental, etc.) sâo dévidas à
superpopulaçào. Nâo é essa sua anâlise. Entâo, o que
pensa a respeito?

33
Hâ uns cinqùenta anos, a India contava corn alguns
duzentos milhôes de habitantes e sofria terriveis fomes.
Posteriormente, a india lançou a "revoluçâo verde".
Beneficiou-se dos trabalhos de um dos maiores benfeitores
da humanidade, o agrônomo Norman Borlaug. Mas quem
conhece esse Prêmio Nobel da Paz (1970)? Ora, graças aos
trabalhos de Borlaug, e também graças as boas medidas
polîticas e econômicas, a India alimenta hoje em dia mais
de um bilhâo de habitantes e exporta cereais. O que nâo
quer dizer que todos os problemas estejam resolvidos. A
crença na reincarnaçâo, o sistema de castas, por exemplo,
obstaculizam a integraçâo dos parias aos beneficios da
modernizaçâo. Mas isso mostra que hojeo problema da tome
pode ser resolvido graças à aplicaçâo de descobertas
decisivas, acompanhadas de boas medidas politicas e de
boas decisôes educativas e econômicas. Isso é confirmado
por uma outra observaçâo: as raras fomes atuais sâo
conseqûência de guerra, de conflitos, de uma ma
distribuiçâo, da corrupçâo, da incompetência ou da
ignorância. Veja por exemplo o que acontece na Etiôpia.

Quais grandes problemas co/oca o declinio demogrâfico?


O declinio demogrâfico acarreta um aumento da
proporçâo de pessoas idosas. Ora, essas pessoas dependem
da fraçâo ativa da populaçâo. Atualmente, nos paîses
industrializados, hâ 3 ativos para 1 aposentado. Se nada
mudar, em 2030 nâo haverâ mais do que 1,5 ativos para 1
aposentado. Daï o colapso previsîvel do sistema de

34
previdência social, estruturado na euforia dos anos do pôs-
guerra. Oque vai aindacomplicar as coisas, é que as pessoas
idosas vivem mais e mais tempo e, por consequência,
requerem mais e mais cuidados dispendiosos. Daî a
importância de mimar osidosos, porque seu impactoeleitoral
é muito mais relevante do que aquele dos jovens. Daî a
tentaçâo de apararos orçamentos de educaçao e pesquisa
para agradar as pessoas idosas. Daî os desequilîbrios violentas
entre os segmentas jovens e idosos da populaçâo, com os
conflitos previsîveis entre geraçôes. Daî o fantasma da
eutanâsia.

Mais do que uma constataçào alarmante, seu livro é um


verdadeiro apelo à vida e ao amor, na esperança. O que
propôe concretamente para que a vida seja em todos
lugares amada, desejada e respeitada?
É preciso reoprender a ternura, reaprender a se
desmanchar com o sorriso de uma criança. Épreciso
reaprender a cultivar a vida. Eisso deve começar a ser feito
ao nîvel do casai. A récusa à vida nova, no casai, gasta o
amor e termina as vezes por apagâ-lo. Se o cônjuge é
reduzido a um objeto de prazer, por que nâo séria a criança
reduzida a ser um objeto de direito? Contudo, o acolhimento
à vida faz nascer a comunidade humana primordial, a
primeira comunidade de base da ordem polîtica, a primeira
comunidade cristâ: a ec/es/o/a (pequena Igreja). Na famîlia,
cada um é reconhecido emsua dignidade pessoal; ninguém
ali é proprietârio de outro, nem propriedade de outro.

35
Hoje contudo, o Estado engenha-se em lisonjear o
indivîduo banalizando o divôrcio e dando sua cauçâo as
uniôes as mais estrambôticas. Assim agindo, como estudos
récentes mostraram-no, o Estado précipita os indivîduos, os
mais vulnerâveis, em situaçôes de exclusâo e de
marginalizaçâo. Ora, face a tais situaçôes, o Estado-
Previdência esta simplesmente desmunido: cria problemas
que é incapaz de resolver. Leva a seu paroxismo os excessos
do liberalismo conjugados as aberraçôes do socialismo. Por
mordiscadas insidiosas, aplica-se em destruir a famîlia,
enquanto que, em todos os lugares e desde sempre, esta
desenvolve as solidariedades naturais e é em todos lugares
o ûltimo refûgio dos excluîdos da sociedade.
A conclusâo é Clara: uma mudança radical de rota
se impôe, pois o dever do Estado coincide com seu interesse;
ele deve ajudar à famîlia. Bem para seus membros, a famîlia
é igualmente um bem para a sociedade. Somente um poder
incendiârio, ignorante ou irresponsâvel pode hoje deixar de
reconhecer que na famîlia forma-se de maneira primordial
o capital humano - aquele cujo risco de vir a faltar é maior.
O economista Gary Becker demonstrou-o em trabalhos que
Ihe valeram o Prêmio Nobel de Economia em 1992. Mas
pode-se pedir a avestruzes conhecerem Borlaug e Becker e
levarem em conta suas conclusôes?

Traduçâo de RuiA. C. Cosfa.

36
Capftulo IV

Meninos de rua, riqueza da naçâo


Entrevista recolhida por
Antonio Mourâo Cavalcante e Rino Bonvini
Professores na Faculdade de Medicina da Universidade
Fédéral do Cearâ
8 de dezembro de 1999.

O Padre Michel Schooyans é freqûentemente


convidado em Fortaleza como conferencista ou professor
visitante em cursos de pôs-graduaçôo. Nessas ocasiôes, ele
é sempre.solicitado para participar de programas de radio
oude TV para dor entrevistas nosjornais da Capital do Estado,
oupalestras na Universidade sem Fronteiras. Aentrevista que
constltui este capitulo IV oferece a particularidade de ser
inédita. Ela foirecolhida na ocasiôo de um encontro informai
e amistoso durante o quai professores universitârios do Ceara
iisabatinaram,/ o seu colega de Lovaina. Note-se que, para
a présente publicaçôo, os dados numéricos foram
atualizados.

37
Existe hoje uma tendência comum quanto ao futuro da
populaçâo mundial?
Atualmente, ao contrario do que se espalha, observa-
se em todas as partes uma tendência à queda da
fecundidade. Jâ em 1997, a prôpria DMsâo da Populaçâo
da ONU reconhece esse fato. A fecundidade é o numéro
médio de filhos por mulher no perîodo fecundo da sua vida.
Os demôgrafos costumam considerar que esse perîodo se
estende dos 15 aos 49 anos. Mais precisamente, o que se
chama a taxa de fecundidade total esta baixando. O numéro

médio de filhos por mulher esta diminuindo no mundo todo.


Agora, se o fenômeno é gérai, a rapidez que o caracteriza
varia de acordo com as regiôes, as cidades, os Estados, as
diversas partes do mundo. A tendência é particularmente
notâvel nos paîses europeus, onde o nîvel de substituiçâo ou
renovaçâo de populaçâo nâo é mais atingido; a populaçâo
envelhece; as vezes, os ôbitos superam os nascimentos. Para
que uma populaçâo se rénove, nos paîses com as melhores
condiçôes de vida, de alimentaçâo, de higiene, de cuidados
médicos, sâo necessârios 2,1 filhos por mulher. Pois bem: dos
205 paîses do mundo registrados em 2002 pelo Population
Référence Bureau de Washington DC, 74 estâo abaixo desse
nîvel. As situaçôes mais crîticas se encontram na Europa. Eis
alguns exemplos: a França tem uma taxa gérai de
fecundidade de 1,9; a Italia, de 1,3; a Espanha, de 1,2: os
dois ûltimos casos sâo dos mais dramâticos. Se pode observar
o reflexo da queda da fecundidade através de outros
indicadores. Consideremos por exemplo a taxa de

38
crescimento natural da populaçâo. Nos anos 60, ao nîvel
mundial, essa taxa era de cerca de 2,7; atualmente, a
mesma taxa é da ordem de 1,3. Prevê-se que para o ano
2005, ou mesmo antes, essa taxa poderia ser de 0,59.
Mencionemos ainda um outro parâmetro: a Idade
médiane Éa idade que divide uma populaçâo em duas
partes iguais: uma que tem mais de tantos anos, e outra que
tem menos de tantos anos. No caso da Europa Ocidental a
idade mediana atual é de 39 anos. Mas se prevê que até o
ano 2025 essa idade mediana alcançarâ cerca de 55 anos.
Donde perguntas serîssimas, como por exemplo: Quantas
mulheres haverâ em idade fecunda em 2025? Quai sera a
taxa de fecundidade total daquelas mulheres?
A evoluçâo desses très indicadores, a taxa de
fecundidade total, a taxa de acrescimo natural, a idade
mediana, confirma que nâo hâ perigo de explosâo
demogrâfico, mas antes envelhecimento e, em vârios casos,
implosdo demogrâfico. Essas tendências sâo bastante
preocupantes e redundam em algumas consequencias que
podemos considerar.

Quais sâo os pontos fortes sobre os quais se deveria


focalizar a atençâo e a missâo da Igreja nesse inicio do
Terceiro Milênio?
Esta claro que a tendência que estâvamos
descrevendo révéla um certo tédio de vida. Um certo
cansaço, Jalvez mesmo desespero. Hoje em dia
constatamos, sobretudo nos paîses autochamados

39
desenvolvidos ou nos segmentos abastados das nossas
sociadades, uma tendência ao consumismo desenfreado
que se observa especialmente no fim do ano. Isso deve
provocar uma reflexâo por parte dos catôlicos. Nos devemos
redescobrir alguns valores evangélicos. Por exemplo, uma
certa austeridade de vida. Isso nâo significa que devemos
voltar à idade das cavernas, mas que devemos ser capazes
de nâo nos tornarmos escravos de bens de consumo.
Devemos dominar, conter, controlar nossos desejos. Tomar
decisôes responsâveis e razoâveis na hora de comprar uma
casa, de instalar o mobiliârio, de comprar um carro.
Por outro lado, devemos suscitar, como recomenda
o Evangelho em todas as suas paginas, a preocupaçâo com
a partilha. Comportilhar os nossos bens. Comportilhar o que
temos. Compartilhar significa nos apartarmos de certes bens
que nos gostarîamos de conservar, mas que fazemos questâo
de dividir com os outros. Um dos problemas mais gritantes
no mundo atual é justamente a concentraçâo fabulosa de
riquezas à escala do que observamos primeiro em termos
do mundo inteiro. Uma parte da populaçâo do planeta -no
mâximo 20%- vive muito bem, enquanto que uma imensa
maioria da humanidade vive em condiçôes bastante
precârias. Inclusive nas regiôes mais pobres do mundo hâ
distorçôes muito graves entre segmentos da populaçâo. Uns
que têm muitos recursos e outros que mal dispôem do
dinheiro suficiente para comprar hoje o que corner. E
realmente uma coisa escandalosa que numa época em
que se anda na Lua, ou em que se projeta conquistar o

40
planeta Marte, haja, de acordo com dados do Banco
Mundial, mais de um bilhâo de homens e mulheres vivendo
abaixo do nîvel da pobreza absoluta. Quando existem e até
sobram recursos para alimentar essa gente, que essa seja a
situaçâo de hoje é simplesmente inadmissîvel. Etanto mais
inadmissîvel que temos a possibilidade de transformar essa
situaçâo. Essa possibilidade da quai dispomos evidencia a
existencia de um problema moral, de uma récusa de
decisôes pessoais e polîticas para enfrentar aquelas
situaçôes.

Afinal, Malthus nâo teria razâo?


A previsâo catastrôfica de Malthus é bem conhecida:
enquanto os recursos alimentîcios crescem de acordo com
uma progressâo aritmética, a populaçâo aumenta de
acordo com uma progressâo geométrica. Ao grande
banqueté da natureza, o talher nâo foi colocado para todos.
Os recursos alimentîcios sâo inexoravelmente limitados. Sô
os mais aptos conseguem aceder aos alimentos e sobreviver;
a natureza seleciona os mais fortes e descarta os menos
dotados. Por sua prôpria pobreza, os pobres -dizem-
manifestam que sâo menos dotados. Se eles teimam em
pretender ter acesso à mesa, as fatias do bolo disponîvel
vâo ficar cada vez mais reduzidas e todos vâo acabar
passando fome. A ûnica soluçâo consiste em convencer os
pobres a terem o menor numéro possîvel de filhos,
recomendando-lhes em particular o casamento tardio. Os
que, movidos por um falso sentimento de compaixâo, ou

41
que invocam o preceito evangélico de ter piedade dos
pobres, sâô irresponsâveis. Nâo respeitam a uLei da Natureza"
que ordena a sobrevivência dos fortes e a eliminaçâo dos
fracos.

Propalada primeiro nos ambientes anglo-saxônicos,


essa ideologia sempre foi espalhada e pregada por governos,
agências pûblicas ou privadas, numerosas ONGs, midia,
ambientes acadêmicos, etc.
Na realidade essas previsôes de Malthus, sempre
repetidas, foram desmentidas desde o inîcio pelos fatos.
Malthus escrevia o seu Ensaio de 1798 (com muitas ediçôes
posteriores) e nele asegurava que a Inglaterra nâo era capaz
de comportar uma populaçâo de mais de 10 milhôes de
habitantes. Ora, sabemos hoje, pela demografia histôrica,
que quando Malthus afirmava isso, a Inglaterra jâ tinha
superado a casa dos 10 milhôes de habitantes!

Voce chega a insinuar que a fome jâ nâo é o problema


mais preocupante para a comunidade humana...
Defato, hoje o problema numéro um jâ nâo é a fome.
As fomes que existem hoje sâo todas o resultado da
ignorância, da inexperiência, da preguiça, da corrupçâo e
também das guerras, como foi o caso ultimamente na
Somâlia e em vârios paîses da Âfrica ou da Âsia.
Felizmente, temos vârios exemplos em sentido
contrario. O caso da India é notâvel: até hâ uns 40 anos, era
um paîs de 250 milhôes de habitantes que padeciam de
fomes terriveis, com milhares de mortos. Hoje em dia, a India

42
se dâ ao luxo de sustentar uma populaçâo de mais de um
bilhâo de habitantes. Nâo desconheço que subsistem
problemas graves, especialmente os que estâo ligados ao
sistema de castas. Assim mesmo, convem perguntar-se a
que se deve essa mudança positiva. Basicamente ao que
se chama a Revoluçâo Verde. Aindia tomou medidas muito
acertadas do ponto de vista cientîfico, politico, econômico,
ao acolher as descobertas de um agrônomo desconhecido
da opiniâo pûblica, mas que é um dos maiores benfeitores
da humanidade no século XX. Este engenheiro norte-
americano se chama Norman Borlaug; ganhou o Prêmio
Nobel da Paz em 1970. Através de seus estudos, iniciados no
Mexico, ele conseguiu elaborar novas variedades de cereais
que foram aclimatadas na India. Essas variedades novas
permitiram à India nâo sô de alimentar sua populaçâo, mas
possibilitaram que a India se tornasse exportadora de cererais.
Isso mostra que quando o ser humano querrealmente
enfrentar a questâo da fome, ele é perfeitamente capaz de
fazê-lo. Significa que as fronteiras da criatividade humana
sâo indefiniveis: felizmente, nâo podemos fixar-lhe limites.
Outrocaso que se pode evocar é o da Uniâo Européia,
para a quai o problema nâo é a produçâo de alimentos mas a
contençâo, o contrôle e até a reduçâo da produçâo! Isso
significa, mais uma vez, que osproblemas politicos e de moral
politica estâo hoje em dia entre os mais agudos que existem.
Essa situaçâo révéla a falta de empenho. Afatta de empenho
moral que consiste, primeiro, em nâo querer enxergar problemas
solûveis, e em segundo lugar, nâo querer enfrentâ-los.

43
Enfâo, nâo tem sustentaçâo o discurso repisado que,
para que haja desenvolvimento, é indispensavel
controlar a natalidade?
Quer na sua forma original, quer nas suas expressôes
contemporâneas, a cartilha malthusiana nâo tem cabimehto.
Uma populaçâo jovem estimula o dinamismo e alenta a
esperança. As novas geraçôes incitam as gefaçôes adultas
a investir no homem, na educaçao, na formaçâo dos filhos.
O que voudizer agora é um pouco paradoxal e chega
a ser provocador. Hoje em dia existem estudos dos mais
autorizados que evidenciam que recurso natural é uma coisa
que nâo existe pura e simplesmente. Numa visâo moderna,
contemporânea, da riqueza de uma naçâo ou da
humanidade, nâo podemos nos atera parâmetros e critérios
que vigoravam na época colonial. Minérios, por exemplo,
petrôleo, rios, florestas, o sol, vento, orla marrtima, etc. em si
nâo constituem riquezas. O que faz de uma coisa uma riqueza
é o homem. O que faz da areia uma riqueza prodigiosa é a
capacidade de seres humanos bem preparados que,
aproveitando o silîcio, transformam essa areia em
computadores com as suas inûmeras aplicaçôes, em fibras
ôticas, etc. Sâo essas pessoas que revolucionaram nâo sô
todo o sistema mundial de telecomunicaçôes, mas também
a pesquisa cientîfica em gérai, a arte dodiagnôstico médico,
banalizando exames antes muito invasivos.
Hâ muitos outros exemplos que se poderiam sugerir.
Hoje, na Alemanha, estuda-se muito a geotermia, o estudo
da temperatura nas profundidades da terra para

44
eventualmente produzir energia. Nos, aqui em Fortaleza,
temos o privilégio de ver estaçôes expérimentais que estâo
utilizando o vento. Ovento é uma coisa à toa (como sedizl),
ordinâria, banal. Mas, o ser humano, amestrando o vento,
transforma-o numa fonte de riqueza, de energia util. Todas
as grandes descobertas foram feitas desse jeito, isto é, a partir
da intervençâo do ser humano. Na histôria das ciências e da
tecnologia apareceram assim o carvâo, o petrôleo, as
hidroelétricas, o âtomo, etc. Todo desenvolvimento résulta
nâo de coisas naturais que estariam là, à nossa disposiçâo,
mas da intervençâo humana.
Em termos teolôgicos, poderiamos dizerque Deus nâo
quis nos dar um mundo perfeito, acabado. Ele nos deu,
primeiro, a nossa inteligência, a nossa liberdade responsâvel,
a nossa vontade. Em segundo lugar, nos deu um meio
ambiente no quai vivemos e do quai devemos ser bons
gerentes. Ele nos confiou a missâo de sermos bons
administradores desse tesouro, graças aos nossos talentos.

Permita-nos insistir. Convém alegrar-se com essa


capacidade inventiva do ser humano, que Vtocê destacou
com muita força. Mas isso nùo impede que os seres
humanos tenham também, ao que parece, uma
capacidade espantosa de se reproduzirem. Essa
capacidade nâo poderia chegar a comprometer os
beneficios decorrentes da criatividade humana? Em
poucas palavras, sera que a populaçâo nâo é um
obstâculo ao desenvolvimento, uma causa de pobreza?

45
Os maiores economistas contemporâneos sâo
unanimes em reconhecer que o grande perigo que résulta
das campanhas de contrôle da natalidade é que elas sâo
obstâculo à emergência do capital humano. O que poderâ
vir a faltar nâo sâo os assim chamados recursos naturais, e
sim o capital humano. Os grandes economistas da Escola
de Chicago, por exemplo, sâo unanimes em reconhecer a
importância fundamental do ser humano para um futuro feliz
da humanidade. Evidentemente, eles têm em vista o ser
humano instruîdo, preparado caracterial, moral e,
acrescentemos, religiosamente. Educado nâo apenas do
ponto de vista intelectual, mas em todas as dimensôes da
sua personalidade. Um dos mais brilhantes deles, Gary Becker,
chega a afirmar e a provar que é na familia que se forma
esse capital humano. Acrescenta que a môe na famîlia tem
um papel decisivo e primordial na preparaçâo e eclosâo
desse capital humano. O menino do quai a mâe cuida no
âmbito da famîlia vai receber no lar as grandes qualidades
que serâo apreciadas e valorizadas na sociedade: o senso
da solidariedade, o senso da colaboraçâo, o senso da
iniciativa, o respeito dos outros, a responsabilidade, etc.
Segue-se que, como diz freqùentemente o Papa Joâo
Paulo II, devemos voltar a uma culture da vida, apreciar a
vida, um dom maravilhoso de Deus. As campanhas
antinatalistas inspiram-se nas ideologias lugubres da culture
da morte. As prôprias campanhas de esterilizaçao sâo
expressôes de um fascînio da morte, do rechaço da vida.
Trata-se de uma espécie de morte preventiva, antecipada,

46
que se provoca através de prâticas violentas e totalmente
contrarias aos direitos humanos. Sera que mutilar uma mulher
é uma maneira credîvel de honrar a sua dignidade?
Circunstância agravante: consta que elevada proporçâo
dessas esterilizaçôes sâo forçadas ou coercivas. Essasprâticas
ferem gravemente o direitoda mulher à sua integridade fîsica
e à sua dignidade.
Frente àquela situaçâo, nâo devemos apenas
proclamar que a vida é belîssima, que é uma dâdiva de
Deus. Devemos ajudar aqueles que se encontram em
situaçôes precarîssimas a dispor dos recursos que Ihes
permitam aceder a um nîvel de vida mais digno da sua
condiçâo humana.

A/o discurso antinafalista aparecem igualmente


consideraçôes eco/ôg/cas. O ser humano séria o grande
responsavel pela deterioraçâo do Planeta. Dever-se-ia
portanto définir cotas de homens admitidos a ocupar a
Terra.

Hoje em dia existe efetivamente toda uma tendência


a reinterpretar a Declaraçâo dos Direitos Humanos de 1948,
em termos completamente diferentes dos que inspiraram os
redatores daquela célèbre declaraçâo. Essa era uma
declaraçâo antropocêntrica. Em sintonia com toda a
tradiçâo jurîdica ocidental desde Cîcero, e em consonância
com toda a historia polîtica, essa Declaraçâo considéra que
o ser humano é o centro do mundo. Que todo homem deve
ser respeitado, tem o direito à vida e à integridade fîsica e

47
psicolôgica; que toda discriminaçâo deve ser condenada;
que o homem tem liberdade de se associar, de se exprimir,
de praticar a sua religiâo, de se casar, de ser educado e
assim por diante.
Ora, existe atualmente, sobretudo nos meios ligados
diretamente à ONU, uma tendência a considerar que o ser
humano é apenas uma parcela no universo. Isto é, que
devemos abandonar o antropocentrismo tradicional.
Devemos considerar que o ser humano é uma partîcula fugaz,
efêmera no mundo ambiente. E, assim como o ser humano
é o resultado de uma evoluçâo puramente material, esse
mesmo ser vai desaparecer definitivamente do cenârio
ambiental, no fim da sua vida, isto é, na hora da sua morte.
Daî o interesse pela Etologia, que estuda o
comportamento das espécies animais. De acordo com esses
etologistas, descendemos de animais e para entender como
devemos nos comportar, devemos estudar o
comportamento dos animais. Tal é o rumo que nos conduzirâ
a descobrirmos uma "ética natural", nova. Evidentemente,
nessa perspectiva, a dimensâo instintiva desse
comportamento fica destacada. E no fim da vida, vamos
voltar ao nada, do quai um belo dia procedemos.
Essa visâo é a visâo ecolôgica novîssima. Como se
nota, leva forte marca do NewAge ou Nova Era. Antigamente,
havia uma ecologia mais soft, suave, que dizia com razâo
que devemos cuidar da natureza, que devemos evitar tudo
o que polui a atmosfera e o meio ambiente, que nâo
podemos disperdiçar os bens que estâo a nosso dispor.

48
Todavia a nova ecologia é radical, e totalmente atéia,
materialista, pagâ. Existe apenas uma grande realidade, uma
sô realidade, na quai o ser humano é imerso. Na quai a sua
individualidade vai se diluir definitivamente aos poucos.
Esta claro que a partir dessas primicias se tiramalgumas
conclusôes. A mais significativa delas é que o ser humano
deve se submeter ao cosmos. Ao invés de ser o gerente
responsavel do cosmos, deve se curvar a ele, se submeter ao
determinismo, à moïra dos Antigos. Deve aceitar as leis da
"moral natural" entendida num sentido inadmissîvel, pois se
trata de uma assim chamada "ética" ditada pelo meio
ambiente. O ser humano deve aceitar se submeter aos seus
instintos e tender a maximizar os seus prazeres.
Estamos aqui na presença de uma expressâo nova,
de um remake do monismo panteîstico côsmico, combinqdo
com uma nova formulaçâo de epicurismo, cuja expressâo
mais évidente se encontra hoje no New Age. De fato, essas
idéias sâo expostas, por exemplo, num livro de Marylin
Ferguson, que explicita o que acabamos de resumir,
mostrando que devemos aceitar essa nossa condiçâo. Por
conseguinte, segundo essa corrente, o discurso sobre os
Direitos Humanos clâssicos, tradicionais, deve ser posto de
lado, a favor da emergência de uma nova visâo do ser
humano, de sua situaçâo no mundo.

O quadro que voce acaba de evocar deveria trazer


repercussôes politicas graves, sobretudo nessa era da
globalizaçâo?

49
De fato, essa evoluçâo é realmente inquiétante e
deveria comporter implicaçôes polîticas das mais graves. O
que acabamos de explicar, que vale para os individuos, é
extrapolado ao nîvel das comunidades humanas,
especialmente ao nîvel das naçôes. Aqui tocamos numa
das interpretaçôes da globalizaçôo, tema hoje muito
badalado. Convém prestar atençâo as armadilhas que esse
tema pode comportar.
Em nome da globalizaçâo, os individuos devem
aceitar a situaçâo deles no cosmos; sua autonomia, sua
liberdade, mas também sua responsabilidade pessoal estâo
hipotecadas. O mesmo se dâ com as naçôes: essas jâ nâo
podem reinvindicar sua autonomia. Elas devem abandonar
sua pretensâo de serem soberanas. Também elas sâo apenas
uma rodinha na grande mâquina do cosmos. Significa que,
como os seres humanos, as naçôes devem aceitar as leis
da natureza, enunciadas por aqueles que se gabam de
conhecerem o cosmos e as suas leis. Devem se submeter
àquela tecnocracia supranacional que esta pululando
atualmente, que vai dizer uem nome do bem superior do
cosmos", eporconseguinte da humanidade, quaié o papel
que cabe a tal naçâo e a tal indivîduo.
Segundo essesdefinidores do "politicamente correto",
o Brasil, porexemplo, nâo deveria se apegar à sua soberania
sobre a Amazônia, ou até deveria ser privado da sua
soberania sobre esta imensa regiâo, sob o prétexta de que
ela é upatrimônio comum da humanidade". O Almirante
Armando Amorim Ferreira Vidigal publicou recentemente

50
brilhante estudo sobre a questâo. Argumentam da seguinte
maneira: o Brasil nâo consegue administrar bem a Amazônia,
que é um bem da humanidade; urge que se tomem.
medidas para alienar o Brasil de sua soberania sobre a
Amazônia. Esse é um refrâo que, infelizmente, se ouve com
frequência cada vez maior.
Antes, durante e depois da celebraçâo dô Millenium,
no ano 2000, varias assembléias gérais ou especiais da ONU,
reuniôes de ôrgâos especializados, fôros de ONGs
cuidadosamente selecionados, se empenharam em
conseguir um consenso mundial sobre essa nova visâo do
ser humano e do mundo.

Até agora, nossa conversa situou-se numa macro


perspectiva. Eé importante ter sempre em vista essa visâo
sintética e universel. Nâo menos importante, porém, é a
perspetiva propria do individuo. Que pode fazer um
individuo para contestar uma corrente tâo poderosa? Que
pode fazer o cristâo como individuo?
O cristâo como individuo? Confesso que nâo gosto
muito dessa expressâo. Na realidade o cristâo é sempre
membro da famîlia humana, de uma famîlia concreta, da
famîlia dos crentes, dos que têm fé, dos que se amam. Todo
ser humano faz parte da grande comunidade dos que, tendo
recebido de Deus um coraçâo feito à imagem do coraçâo^
de Deus, têm um coraçâo capaz de amar. Daî résulta que o
cristâo deve seraquele que irradia amor. Nâosô abrigaramor,
mas irradiar amor. Na epîstola aos Gâlatas, Sâo Pauloescreve

51
que o cristâo deve manifestar a eficâcia da sua fé através
doamor. Éo que diz também Sâo Joâo, com outras palavras,
em sua primeira carta. Sâo Tiago nâo diz outra coisa na sua .
ûnica carta. Afinal de contas, esta é a mensagem central
de todo o Evangelho.
Segue-se que a primeira coisa que precisamos fazer é
questionar-nos pessoalmente. Que posso fazer, eu, com as
minhas qualidades e limitaçôes? Que posso fazer graças as
minhas competências, graças as oportunidades das quais
disponho no mundo que me cerca, graças as relaçôes
privilegiadas que tenho na sociedade? Que posso fazer para
sensibilizar os outros, para informâ-los, para responsabilizâ-los?
Éum dever do cristâo comportilhar o queelesabe e
o que ele expérimenta, até mesmo do ponto de vista
cientîfico. Hoje em dia hâ muitos ambientes cientîficos que
sonegam a informaçâo. Devemos aprender a comportilhar
a informaçâo. Comunicar. Sabemos que informaçâo é poder.
Mas, justamente, a concentraçâo da informaçâo e a
ocultaçâo da informaçâo sâo novos tipos de pecado, novas
formas de avareza, que o cristâo deve denunciar. Temos uma
visâo libéral e até mercantil da propriedade intelectual. Nos
consideramos como donos do saber. Esse egoîsmo
radicalizado bloqueia a mobilidade social e deve ser
desmascarado.

Em segundo lugar, o que é fundamental é que


devemos nos organizar. O livro do Eclesiastes lamenta a
situaçâo do homem sozinho, abandonado e, portanto,
vulnerâvel. Os que estâo querendo destruir a famîlia sabem

52
disso. Ao destruir a famîlia, torna-se mais fâcil controlar a
pessoa humana e monitorar a sociedade. Por isso devemos
enfrentar os programas de engenharia social que manipulam
os indivîduos como se fossem peças num jogo de xadrez.
Muitas sâo as oportunidades ao nosso alcance para
impulsionar e organizar esse trabalho de transformaçâo da
sociedade: pressionar os polîticos, ocupar as colunas que se
abrem nos jornais, no radio, na TV. Pressionar inclusive os nossos
amigos, utilizando todas as tribunasacessîveis, parasensibilizâ-
los a essas questôes que concernem o futuro da sociedade
humana.
Devemos também continuarar a defender a famîlia.
Nâo como uma realidade puramente privada, mas como
uma realidade que intéressa à comunidade humana e
eclesial. Muitas vezes os moralistas catôlicos têm uma visâo
bastante privatizante da famîlia. Vejam, por exemplo, os
tratados de moral conjugal. Nâo se trata de subestimar essa
moral conjugal clâssica. Obviamente, convém expor as
questôes da fidelidade, da fecundidade, da paternidade
responsavel, da educaçao dos filhos, etc. Mas as vezes
esquecemos também que, além de ser um bem para os
que delà participam, a famîlia é também um bem para a
sociedade e para a Igreja. Eisso nos deverîamos dizê-lo com
muito mais força. Isso permitiria a muitos casais em
dificuldade descobrir novos motivos para consolidarem e
salvarem a sua relaçào. Descobrir o papel que uma famîlia
pode ter na sociedade é um motivo suplementar para que
a famîlia se una e para que seja fecunda, nâo apenas ao

53
nîvel restrito do lar, mas ao nîvel da comunidade e da
sociedade.

Nâo hâ na sociedade brasileira um circulo vicioso: na sua


tarefa de formar o capital humano, a famitia deve contar
com o apoio da escola. Mas o sistema escolar, por sua
vez, esta aos braços com graves dificuldades e nem
sempre pode contar com o apoio da familia?
A dificuldade que vocês mencionam é gritante;
famîlia e escola estâo em crise, mas uma précisa da outra
para sair da crise. Questâo complexa à quai me limitarei a
propor uma resposta brève, mas que toca em um ponto
essencial, que interpela tanto os governantes como os
responsâveis da educaçao catôlica.
Fico impressionado aqui, no Brasil, com a presença
de tantos e tantos institutos de educaçao mantidos por
congregaçôes religiosas. É uma coisa maravilhosa, exceto
num ponto bem preciso que causa estranheza. Geralmente,
esses institutos atingem apenas os jovens que provêm das
classes média e alta, com poder aquisitivo relativamente alto,
inclusive capacidade de adquirir, diria até de comprar o saber.
Ora, esses dias, ao passear pelas ruas de Fortaleza,
tive um sonho. Sonhei que o governo tinha decidido entrar
em contato com as comunidades religiosas educadoras,
pedindo as congregaçôes que abram o seu recrutamento
à matrîcula dos meninos e meninas da classe pobre. A rede
escolar privada existe; esta disponîvel, com prédios,
professores e tudo. Séria tâo complicado alargar e abriressa

54
rede, dando subsîdios pûblicos de acordo com o numéro
de meninos e meninas pobres que forem atendidos? Séria
tâo difîcil fazer uma reforma tributâria para alimentar essa
reforma escolar? Séria tâo chocante condicionar o
reconhecimento oficial dos diplomas das escolas privadas
à acolhida, por elas, de um significativo contingente de
meninos e meninas de rua? Sem uma decisâo herôica desse
tipo, esses guris nunca vâo ter acesso à escola. O exemplo
vindo das instituiçôes catôlicas arrastaria o conjunto das
instituiçôes privadas. Tanto ao nîvel municipal como estadual
e fédéral, deveria haver esse tipo de abertura, com homôloga
abertura na rede escolar privada.
No caso especîfico das instituiçôes catôlicas, tal
projeta permitiria a muitas congregaçôes de voltar ao espîrito
de seus fundadores e de atrair novas vocaçôes. De fato, na
histôria dessas congregaçôes, consta que os fundadores
sempre aparecem como educadores preocupados com a
formaçâo intégral das crianças pobres.
Este foi o meu sonho. Um sonho que começava a se
tornar realidade quando caï em mim mesmo nas ruas do
BomJardim...

Quais os outros caminhos que se abrem para enfrentar


essas dificuldades enraizadas no preconceito conservador
que discrimina a priori os pobres? Por que esse pavor de
integrar os pobres? Parque nâo acabar de uma vez com
o dualismo da Belindia?
Entre as outras pistas que poderiam ser aproveitadas,

55
uma das mais importantes é que os cristâos e todos os
cidadâos de boa vontade devem se abrir muito mais ao
dlâlogo com as forças pensantes do mundo. Nesta.
perspectiva, na Academia Pontifîcia de Ciências Sociais, e
no Conselho Pontifîcio da Famîlia, fazemos experiências dds
mais enriquecedoras, sobretudo na Academia, onde se
convidam constantemente autoridades cientîficas que nâo
sâo necessariamente cristâs. Por exemplo, na Academia de
Ciências Sociais, temos o privilégio de ter um economista de
fama mundial, judeu, professor da Universidade de Stanford;
trata-se de Kenneth J. Arrow, Prêmio Nobel de Economia em
1972. No Conselho Pontifîcio para a Famîlia, contamos com
as contribuiçôes de outro economista de fama mundial, Gary
S. Becker, judeu também, professor da Universidade de
Chicago, e Prêmio Nobel de Economia em 1992.
Intercâmbios com personalidades deste nîvel nâo têm preço
para aprofundar a reflexâo cristâ e motivarem vista da açâo.
Vivemos num mundo fechado demais; devemos nos abrir
as Ciências Humanas, as Ciências Econômicas e em
particular à Geografia humana e à Demografia, domînios
surpreendentemente ignorados pela maioria dos teologos
atuais. Essa pista me parece primordial.
Outra pista que esta sendo explorada com certas
dificuldades é a pista ecumênica. Nâoséria um tanto ilusôrio
esperar uma comunhâo doutrinal total se nâo se articulam
antes certas projetas conjuntos de grande vulto? Nâo é
necessârio esperar uma unidade compléta de fé antes de
tomarmos decisôes concretas ao nîvel da açâo,

56
especialmente no domînio dos direitos humanos, da
populaçâo, da luta pelo saber, da reforma agrâria.
Éverdade que nesse particular confesso que estamos
aos braços com grandes dificuldades. Certas denominaçôes
cristas chegaram as vezes a tomar posiçôes infelizes.
Entretanto isso nâo significa que nâo haja possibilidades de
acordos e de cooperaçâo, especialmente com as grandes
confissoes protestantes luterana e calvinista, com os
anglicanos e os ortodoxos. Mas essas pistas, curiosamente
sâo pouco exploradas atualmente.
Temos também uma rede de universidades catôlicas
no mundo. Algumas sâo catôlicas apenas de nome, e pode
acontecer que tal universidade nâo valha grande coisa do
ponto de vista cientifico. Ora, tâo complexos sâo os
problemas atuais que eles mereceriam se beneficiar de uma
prioridade nas universidades catôlicas. Por exemplo, esses
problemas da famîlia, da populaçâo, da difusâo do saber,
dos direitos humanos. Certas sâo mais lugares onde se
transmite um saber que nâo mexe com o establishment, que
nâo perturba a paz acadêmica. Urge renunciar a transmitir
um saber mais ou menos esclerosado, partir à procura de
novos saberes e explorar novos campos que se oferecem à
indagaçâo cientifica para o bem da sociedade. Nos,
catôlicos, dispomos com essas universidades de um
instrumenta caro, inadaptado, e em gérai mal aproveitado.

Aesse propôsito, nâo é um tanto surpreendente constatar


que os cristâos se lançaram a fundo e sem complexos

57
nos novos me/os de comunicaçâo e em particular na
internet?

Realmente, esse entusiasmo surpreende de maneira


bastante positiva. Encanta-me observar que os catôlicos
tendem a ser muito présentes na internet. Nâo nos referimos
aqui as midias clâssicas: imprensa, radio, TV, que jâ
demonstraram o seu poder de irradiaçâo. Referimo-nos aos
instrumentas novos que facilitam de maneira prodigiosa nâo
sô a circulaçâo da informaçâo, mas os intercâmbios, a
divulgaçâo de notîcias até nos cantinhos mais distantes do
globo, onde a informaçâo mal chegava, e onde o
intercâmbio era impossîvel. Aonde quer que nos
encontremos, no mundo, podemos abrir diariamente vârios
noticiârios gérais, ou especializados em questôes relativas à
vida, à famîlia, à populaçâo. Me encanta poder ter acesso
diretamente a certas informaçôes e a numerosos sites
especializados. Penso que deveria haver um
approveitamento ainda maior dos recursos assim disponîveis,
graças, em particular, aos motores de pesquisa.

A/o Brasil, tivemos a experiência da teologia da libertaçao.


A partir dos seus estudos, quais seriam os elementos que
poderiam ajudar os teologos da libertaçao a integrarem
todos esses dados na perspectiva de uma maior
consciência e de um desenvolvimento plenamente
humano compartilhado por todos?
Penso que, antes de mais nada, o problema é
epistemolôgico. Os teologos da libertaçao poderiam tomar

58
conhecimento dos dados continuamente fornecidos pela
ONU. Esses documentos evidenciam uma situaçâo
totalmente nova, se a compararmos com o que se passou
hâ 25 ou 30 anos atrâs. A problemâtica gérai do
desenvolvimento e da pobreza evoluiu de maneira
substancial. Hoje ainda existem evidentemente situaçôes
intolerâveis de opressâo, mas a sua leltura é diferente da
que vigorava hâ duas décodas. O célèbre economista e
filôsofo indiano de Oxford, Amartya Sen, ganhou o Prêmio
Nobel de economia em 1998 por ter demonstrado que a
liberdade era o objeto do desenvolvimento, e nâo apenas o
meio que a ele conduz. O potencial de generosidade que
até hoje aparece entre os teologos da libertaçao deveria
ser voltado para essas novas colocaçoes. Urge perceber que
os parâmetros mudaram; que se renovaram as anâlises da
pobreza, e que hoje estamos vivendo novas formas sutis de
opressâo, onde as armas nâo sâo sô econômicas, mas
provêm da biologia, da medicina, da demografia, da histôria,
do direito. Sâo essas as armas novas da opressâo que o Norte
utiliza para subjugar e controlar o Sul. Éimportante levar em
consideraçâo esses fatos novos se a gente nâo quiser fazer
diagnôsticoserrados sobre a situaçâo atual e, principalmente,
sobrea situaçâo que se perfila na alvorada do novo milênio.

59
Capitule» V
/ ••

A funçâo social do medico


Entrevista recolhida por
Juliana Matos Brito
para O Povo (Fortaleza),
22 de Janeiro de 2002.

Aos meus amigos do Curso de Pos-graduaçâo em


Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade
Fédéral do Cearâ.

Soude e exclusôo social, envelhecimento e


desenvolvimentosustentâvel sôo temas que instigam o padre
belga Michel Schooyans, assessor das mais altos autoridades
vaticanas para assuntos ligados à ciência social.
Opadre Michel Schooyans é catedrâtico emérito da
Universidade de Louvain, onde ensinou Ciências politicos e
politicos demogrâficas. Émembro da Academia Pontificia
de Ciências Sociais do Vaticano e da Academia Mexicana
de BIoética. Esteve recentemente em Fortaleza e participou
de diversas palestros. Durante a entrevista, ele deu destaque

61
o uma questôo essenclal: como o medicina pode melhorar
a vida da populaçâo carente?
Parafraseando um economista que recebeu o Prêmio
Nobel de Economie Schooyans nâo cansou de afirmar que
a grande solda para o Brasil e o Planeta é investir no "capital
humano". Ao contrario do capital matériel lembra, o
homem é uma fonte inesgotavel de criatividode e vida. Além
disso, nâo poupou a ONU, que, através de varias agêneias,
esta exercendo uma politlca "anti-vida".

Juliana Matos Brito.

Como o senhor vê o médico trente aos problemas do


mundo globaiizado, em particular trente à exclusaosocial?
Isso é um problema fundamental, porque a atividade
do médico evoluiu muito nos ûltimos anos. Muitas vezes o
médico fica bastante dependente do poder polîtico e
econômico. Trabalha ttpor exemplo" em uma clinica do
Estado, do municipio; entâo fica limitado em matéria de
atendimento aos pacientes. Sô pode pedir um certo numéro
de exames. Isso, evidentemente, dificulta o exercîcio da
medicina a favor do doente. O médico tende a cuidar mais
do paciente em funçâo dos interesses da sociedade, do
municipio, ou de companhias de seguro de saûde, do que
em funçâo dos interesses dos pacientes. Isso significa que o
médico participa de um sistema de discriminaçâo social, jâ
que nâo tem a possibilidade de tratar todos os pacientes da

62
mesma forma. Pode atender melhor os pacientes mais ricos,
porque têm mais recursos. Os pacientes mais pobres, mas
que têm também uma grande necessidade de cuidados,
sâo menos bem atendidos, porque eles sâo pobres. Entâo,
a medicina participa de um processo de exclusao social.
Evidentemente, isso constitui um obstâculo a uma vida
democrâtica realmente participativa. O médico deve ser
muito atento a essas condiçôes do seu trabalho, porque
através das suas atividades, pode consolidar um sistema de
estratificaçâo social que acaba marginalizando mais ainda
os pobres.
Poderia comparar a situaçâo da medicina com a
situaçâo da educaçao, Os pobres dificilmente têm acesso
à educaçao de qualidade. Entâoconvém melhoraro sistema
de atendimento escolar, justamente para que todos os
meninos e meninas, quaisquer que sejam as suas famîlias,
sua origem social ou a cor da sua pelé, tenham o acesso à
escola de qualidade. Isso atualmente nem sempre se realiza.

A questâo econômico atrelada à medicina é o que traz o


grande empecilho ao atendimento médico pûblico?
Exatamente. E isso nâo acontece apenas no Brasil,
mas em todos os paîses do mundo. Na Europa, talvez numa
escala menor. Mas no caso da Âfrica, isso se verifica a larga
escala. Destaque especial merece o caso da Europa, onde
atualmente se discute muito a questâo da eutanâsia. Uma
das "jusîificativas" avançadas pelos partidârios da eutanâsia
é que ela séria "uma necessidade" porque os doentes, por

63
exemplo os cancerosos em fase terminal, custam caro à
sociedade; é durante seu ûltimo ano de vida que o paciente
custa mais caro à sociedade. Entâo para reduzir esta
despesa, matam-se os pacientes. Em vez de curar, matam.
Éisso o que se faz na Holanda e em vârios outros paises. Isso
révéla uma submissâo total da medicina ao sistema
econômico vigente, e uma perversâo do direito, que aprova
e legaliza essa matança.

Existe uma saida para a falta de atendimento médico


para as populaçôes mais pobres?
Antes de tudo, constatemos que os prôprios médicos
sâo os primeiros atentos a isso. Em gérai, quem escolhe a
carreira de medicina tem como motivaçâo prioritâria o
atendimento aos pacientes, a vontade de cuidar da vida,
de melhorar a saûde dos pacientes. Portanto, os prôprios
médicos devem ser sensibilizados, mas em princïpio jâ sâo
sensibilizados. Porém, deve-se também sensibilizar os poderes
pûblicos para que a medicina nâo se tome um instrumenta
de opressâo. Isso jâaconteceu muito na histôria. Por exemplo,
no tempo do comunismo stalinista na Uniâo Soviética,
psiquiatras viravam muitas vezes servidores do régime
totalitârio e pactuavam com ele. Desprogramavam os
dissidentes e os reprogramavam, tornado-os loucos,
olienando-os de propôsito para que esses ficassem escravos
dôceis do sistema. Isso é inadmissîvel. Em outros casos,
médicos cooperaram na tortura; houve casos aqui mesmo
no Brasil de médicos que cooperavam com os torturadores

64
para ajudâ-los no a refinar as suas prâticas criminosas.

Como é que se faz para sensibilizar os médicos e o poder


pûblico?
Nâo sô através de cursos, de palestras e de
conferências, mas convém que haja uma espécie de
pressâo permanente sobre o mundo médico.

Pressôes de quem?
Pressâo, sobretudo, da prôpria sociedade. Éum dos
papéis fundamentais dos jornais e da média em gérai.
Convém que haja uma pressâo nâo apenas sobre os
médicos, mas também sobre os polîticos, a fim de que
deixem de utilizar os médicos para levar à trente polrficas
inadmissîveis. Aqui no Brasil, de acordo com dados
publicados pelo prôprio governo em 1999, das mulheres que
utilizam um método qualquer de contrôle da natalidade, 43%
jâ foram esterilizadas. Médicos estâo castrando, mutilando
definitivamente mulheres, muitas vezes inocentes, pobres, que
nem sabem o que esta Ihes acontecendo. Na sua Primeira
fala ao Senado (março de 1991), Darcy Ribeiro denunciou
vigorosamente essa vergonha nacional. Isso é uma coisa
que merece um exame de consciência por parte de todos.
Nâo se résolve a questâo da pobreza através de
esterilizaçôes. Nâo se acaba com o acolismo do marido
esterilizando a sua mulher. A pobreza se résolve por medidas
voluntaristas: polîticas, econômicas, sociais, fiscais, agrârias;
por umadistribuiçâo mais equitativa da renda. Oûltimo censo

65
do IBGE revelou que o Cearâ é o Estado do Pais que tem a
pior repartiçâo da renda. isso significa uma falta de justiça
social tremenda, e nâo é através de campanhas de
esterilizaçôes que a gente vai remediar isso. Nâo se corrige
uma injustiça grave com outra injustiça grave. Ora, muitos
médicos foram levados a fazer essas mutilaçôes porque se
tornaram funcionârios do Estado ou empregados de
companhias que preconizam essas operaçôes. Resumindo:
a gente précisa ver bem claramente que o bom exercicio
da medicina faz parte de um processo de democratizaçâo.

Que relaçâo tem tudo isso com o conceifo de


desenvolvimento susfentâvel?
Essa noçâo de desenvolvimento susfentâvel é muito
ambïgua, porque, de acordo com a ONU, essa noçâo
significa que, "para respeitar o meio ambiente", devem ser
definidas certas cotas de homens admitidos a existir. Agente
nâo pode ultrapassar um certo numéro de habitantes na terra
porque essa nâo séria capaz de sustentar um numéro superior.
Agora, esse tipo de visâo maltusiana carece totalmente de
fundamento cientîfico. Ninguém é capaz de fixar limites à
criatividade humana; essa têm uma capacidade de
invençâo indeflnida e indeflnivel. Por exemplo, em matéria
de energia, diz-se que o petrôleo vai acabar: o que é
provâvel. Mas quando? Observemos: primeiro, nem sempre
os homens viveram com o petrôleo; e em segundo lugar, o
homem é capaz de descobrir novas fontes de energia. Outro
dia, estava passeando perto do Beach Park e o meu amigo

66
Mourâo Cavalcante levou-me a ver as eolianas: sâo uma
tecnologia energética nova, barata e que nâo polui.
Atualmente estamos ainda na fase expérimental, mas essa
tecnologia sera aprimorada, pois o ser humano tem
engenhosidade sem limite. Ele é capaz de transformar uma
coisa banal, o vento, em uma riqueza. Fantâstico isso! O
homem é capaz de transformar a areia em produtos
altamente sofisticados. Da areia provém toda a indûstria
eletrônica, que utiliza o silîcio para criar novos produtos como
computadores, relôgios e demais aparelhos de precisâo. Da
areia provém também as fibras ôticas que revolucionam os
sistemas de comunicaçâo e modificaram totalmente uma
série de exames médicos que antigamente eram menos
precisos e mais agressivos.

Entâo, devido à sua criatividade, o homem importa mais


que os recursos naturais?
Paradoxalmente, pode-se afirmar que recursos
naturais nâo existem. O que transforma uma coisa num
recurso natural e esse numa riqueza é o ser humano, e ele
bem formado. É por essa razâo que muita gente hoje
considéra que o mais importante dé tudo, é o capital
humano. Um dos maiores economistas do mundo, Gary
Becker, lîder da escola dos economistas de Chicago (EUA),
ganhou o Prêmio Nobel de economia em 92 por causa dos
seus estudos sobre o capital humano. Ele demonstrou varias
coisas surpreendentes: primeiro, o capital humano é a coisa
que mais corre o risco de faltar com o envelhecimento

67
generalizado da populaçâo mundial; em segundo lugar, o
Dr Becker demonstrou matematicamente que o capital
humano se forma primordialmente na famîlia; em terceira
lugar, demonstrou matematicamente o papel déterminante
da mâe de familia na formaçâo do capital humano. Em
resumo, o capital humano é essencial para o bem-estar da
sociedade.

Sâo estas visôes que nâo passam nos documentas


da ONU; que nâo leva esses estudos em consideraçâo. Até
hoje o Fundo das Naçôes Unidas para a Populaçâo (FNUAP)
teima em tocar o seu disco riscado repetindo que o homèm
é o maior predador do mundo, que o efetivo da populaçâo
humana deve ser limitado, que tem que fazer campanhas
para controlar a transmissâo da vida, etc. Essa é a cartilha
do soft terrorisme em suma! Enquanto isso, outros grandes
espïritos da atualidade dizemexatamente o contrario —
inclusive na prôpria Divisâo da Populaçâo da mesma ONU.
•'.5

Como a ONU se posiciona em relaçâo ao envelhecimento


da populaçâo?
O discurso anti-vida e anti-famïlia da ONU parte
sobretudo do Fundo das Naçôes Unidas para a Populaçâo
(FNUAP). Acontece, por outro lado que a jâ mencionada
Divisâo da Populaçâo da ONU reconhece que a populaçâo
do mundo envelhece. Esse envelhecimento chega a ser tâo
preocupante que este ano, em 2002, vai haver uma reuniâo
internacional sobre essa questâo.
E o envelhecimento atinge o prôprio Brasil. A grande

68
causa do envelhecimento de uma populaçâo é a queda
do indice de fecundidade. Ora, nos ûltimos dados do IBGE,
se pode constatar a queda do indice de fecundidade no
pais, ou seja do numéro médio de crianças por mulher em
idade reprodutiva, isto é de 15 a 49 anos. Hâ 10 anos, este
indice chegava a quase 3 crianças por mulher; hoje em dia
caiu a 2,4. E para que a populaçâo se rénove, sâo
indispensâveis 2,1 filhos por mulher. Entretanto, devido ao fato
que o Brasil ainda tem 34 por mil de mortalidade infantil, o
indice de fecundidade de 2,4 é o limiar da renovaçâo da
populaçâo do pais. Vejam o caso do Rio por exemplo: o indice
de fecundidade jâ esta abaixo do indice de reposiçâo: 1,9.
Todos os paîses da Europa estâo abaixo desse limiar de 2,1.
Apopulaçâo envelhece. Entâo todo mundo se queixa
porque as caixas do socorro mûtuo e de aposentadoria vâo
secando, desde que o numéro de ativos, que as alimentam,
começam a faltar. Alem deste aspecto econômico, essa
situaçâo pode chegar a ser polîticamente desastrosa, porque
a credibilidade polîtica de um pais dépende, em parte, do
peso demogrâfico do pais em questâo. Alguns se vangloriam
porque o Brasil teria "alcançado niveis demogrâficos do
primeiro mundo". Tomara que tal afirmaçâo permaneça
duravelmente errônea!

Quais as mudanças que deveriam ser imprimidas na


dinâmica da populaçâo?
As sugestôes vâo na linha do que diz Gary Becker.
Devemos favorecer o capital humano, isto é, o homem, mais

69
precisamente, favorecer a transmissâo da vida e a formaçâo
intégral dos homens e das mulheres. O maior perigo é o que
eu chamo de ilusâo colonial, que consiste em pensar que
um pais é rico porque possui muitas recursos naturais. Isso é
uma concepçâo colonial antiquada. O que importa para o
desenvolvimento de um pais é a estrutura por idades da sua
populaçâo. O que importa é que a populaçâo seja jovem,
ativa e bem preparada. A populaçâo do Brasil é pouco
dinâmica, porque sofre a influência de muitas campanhas
—exteriores e interiores —de contrôle da populaçâo. Diz o
IBGE que 70% das mulheres brasileiras de idade fértil usam
um método qualquer de contrôle da natalidade—um dado
assustador. Isso evidentemente acaba tendo repercussôes
sobre e perfil demogrâfico do Pais, mas também sobre a
sua estatura econômica e polîtica.
Fora disto, convém que a populaçâo seja bem
escolarizada. Nesse particular, o Brasil esta numa situaçâo
bastante precâria, porquea maior riqueza do Pais sâo aqueles
meninos de rua que nunca vâo freqùentar a escola, que
mais tarde, talvez, vâo ser delinqùentes ou criminosos, porque
a sua famîlia foi desmanchada e porque nâo têm acesso a
uma escolaridade de boa qualidade. Me disseram
recentemente que a grande maioria dos alunos que entram
nas faculdades de medicina, provém de escolas particulares,
geralmente boas, mas muito caras. Isto freia a mobilidade
social e mantém um sistema discriminatôrio. Esta mâquina
educativa é discriminatôrio, e a sua injustiça ainda é
reforçada pelo fato de que esses alunos, vindo de famîlias

70
geralmente abastadas, aprovados no vestibular, vâo se
beneficiar com o ensino pouco dispendioso mas de
qualidade, dispensado nas faculdades fédérais.

Por que ter aumentado a taxa de esperança de vida no


pais é bom para o Brasil?
Ebom porque isso é um indice reveladorda evoluçâo
favorâvel da situaçâo gérai do Pais e especialmente dos
progressos notâveis da higiene e da medicina. No fim dos
anos 40, a esperança de vida no Brasil mal beirava os 50
anos; hoje ultrapassa nîtidamente os 70 anos. A esperança
de vida ao nascer é um resumo de muitos outros parâmetros.
Significa que a âgua melhorou, que tem menos doenças
epidêmicas, que tem mais médicos, que tem atendimento
médico melhor, mais remédios, que a alimentaçâo é mais
sadia... Isso significa uma porçâo de coisas boas.

Entâo nâo haveria uma contradiçâo em lamentar o


envelhecimento e regozijarse com o aumento da
esperança de vida?
Sâo dois fenômenos que muitos demôgrafos nâo
distinguem suficientemente e que a prôpria ONU mistura, por
motivos talvez pouco inocentes. O grande demôgrafo
francês, Gérard-François Dumont, que ensina na Sorbonne,
distingue, de um lado, o que ele chama a
"gerontocrescenço" e do outro o envelhecimento. A
gerontocrescenço é o aumento do efetivo das pessoas
idosas em consequência da evoluçâo favorâvel da

71
esperança de vida. Significa que a mortalidade recua entre
as pessoas idosas. Este primeiro fenômeno résulta da melhoria
das condiçôes gérais de vida: alimentaçâo, higiene, saûde,
conforme jâ indicamos. Em contraparte, o envelhecimento
résulta de uma notâvel queda do efetivo da populaçâo
jovem, devido a uma fecundidade fraca, que compromete
a reposiçâo das geraçôes.
Obviamente, nos dois fenômenos considerados, a
responsibilidade social do médico é engajada — para o
melhor, ou para o pior.

72
Capftulo VI

Nâo mafarâs!

Entrevista ao

Frei Nuno Serras Pereira, ofm,


para a agência Infovitae (Lisboa),
4 de maio de 2002,

Nos seus livros, aparece que V. é muito sensivel as questôes


ofa liberdade, e ao contrario, também do totalitarisme.
Numa das suas obras, O aborto: aspectos politicos, chega
mesmo a dizer que se prépara um "império totalitârio" sem
précédentes na histôria ofahumanidade. Eque, no entanto,
isso é disfarçado por uma ideologia que mascara a sua
verdadeira finalidade e os seus verdadeiros objetivos.
Poderia comentar e explicitar melhor essa questâo?
Estamos vivendo numa época em que o totalitarismo
sovietico foi oficialmente derrubado. Agora, acontece que
a ideologia totalîtâria soviética e de inspiraçâo comunista
sobrevive as instituiçôes soviéticas nas quais este totalitarismo
estava encarnado. Ao mesmo tempo em que se assiste a
aquele fracasso do sistema sovietico de governo, nos

73
estamos assistindo ao surto da tendência totalitâria da
ideologia neo-liberal.
Agora, quando vemos as duas ideologias - digamos
a comunista de um lado, a neo-liberal do outro lado -
constatamos que à primeira vista, tem uma grande diferença
entre as duas, que tem quase uma oposiçâo. Entretanto, na
realidade, tem um traço comum, uma caracterîstica comum
as duas ideologias: as duas ideologias exaltam a luta, exaltam
uma forma de sobrevivência do mais forte, A luta de classes,
por exemplo, no sistema comunista, consagra a vitôria do
mais forte, De acordo com Marx, os burgueses, numa certa
fase da histôria, tiveram razâo porque eles conseguiram
derrubar a nobreza; mas logo a seguir, o proletariado esta se
tornando cada vez mais forte, e vai acabar com a burguesia,
motivo pelo quai ele vai ter razâo na histôria. Esta idéia da
luta de classes é muito central no sistema marxista e na sua
encarnaçâo comunista,
Entretanto, quando vemos o que se passa na
ideologia neo-liberal, encontramos exatamente a mesma
dinâmica: vemos a dinâmica da concorrência ferrenha, da
sobrevivência. Oque é o mercado? Éumcampo de batalha
onde se opôem as forças das diversas, as forças dos mais
fracos e dos mais poderosos. E quem sobrevive, quem tem
direito de sobreviver nesse mercado sâo justamente aqueles
que têm a capacidade de consumir e de produzir. ttOs outros
que se danemi", como se diz famiiiarmente. Entâo
precisamos perceber com muita clareza que hoje em dia
estamos numa situaçâo onde o dinamismo da ideologia

74
comunista soviética e o dinamismo da ideologia neo-liberal
se conjugam, se somam, para constituir uma espécie de
consagraçâo da violência institucionalizada.
Eé justamente onde a situaçâo do cristâo é crucial,
porque a dinâmica do Evangelho é exatamente o contrario
daquilo. A dinâmica do Evangelho é uma dinâmica de
defesa do mais fraco, o que recusam tanto a ideologia
comunista como a ideologia neo-liberal. Para essas duas
ideologias, a natureza é violenta e deve consagrar a vitôria
do mais forte através de uma seleçâo natural e/ou artificial,
através da luta de classes, através da concorrência. Mas em
todos os casos, trata-se de consagrar a supremacia do mais
forte, enquanto que para os cristâos, e inicialmente para o
prôprio Cristo, o que importa é a dignidade de todos os seres
humanos qualquer que seja a sua condiçâo fîsica, o seu
tamanho, a cor de pelé, a idade, e assim por diante. Basta
observar os textes que se lêem na liturgia dos domingos.
Aparecem muitas vezes relates de curas. Jésus se aproxima
dos doentes, se aproxima daqueles que a sociedade rejeita,
e essa gente procura Cristo, justamente porque eles
percebem que uma coisa nova e boa esta acontecendo
na histôria. Enquanto que os doentes, os aleijados, os pobres
estavam afastados, expulsos da sociedade, Cristo se
aproxima deles. Ele é o Bom Samaritano que se aproxima,
que toma a iniciativa de se aproximar deles.
É justamente o drama do nosso tempo, que a
sociedade rejeita esta mensagem de Cristo. Porque de
acordo com a "vulgata" ideolôgica dominante, o pobre, o

75
marginal, o aleijado, nâo valem nada jâ que sâo inûteis na
sociedade. E nos cristâos, justamente o que devemos fazer
é o que Cristo fez, isto é, restituir àquela gente, reconhecer
àquelas pessoas marginalizadas, fracas, doentes, aleijadas,
uma dignidade igual à dignidade de todos os demais seres
humanos. A nossa ética cristâ, nesse particular, é uma ética
que contraria terminantemente a ética hédoniste, a ética
utilitarista, que a gente encontra tante na tradiçâo marxiste,
como também na tradiçâo libéral,

Costuma-se dizer que o problema tatvez mais grave dos


dias de hoje é o problema do aborto e da sua legalizaçâo,
e que isso, de algum modo, corrompe ou destrôi mesmo
a democracia. Quer desenvolver esta questâo e mostrar
porque é que conduz ao tal totalitarismo sem précédentes
na histôria? Que diferença hâ entre este totalitarismo que
se prépara e o Estado totalitârio que foi, digamos assim,
combatido ao longo do século passado?
Na linha do que acabamos de comentar, aparece
de fato a questâo do aborto, Essa nâo é apenas uma questâo
entre muitas outras na reflexâo sobre a evoluçâo dos
costumes, a evoluçâo das leis e assim por diante. O caso do
aborto é realmente paradigmatico, é exemplar, é revelador
de uma evoluçâo altamente preocupante na sociedade e
na sua maneira de pensar, De fato, quando se estuda um
pouco a histôria da democracia, constata-se que a
caracterîstica essencial da democracia consiste justamente
no reconhecimento da igual dignidade de todos os seres

76
humanos, Ea questâo da universalidade dos direitos humanos,
Universalidade proclamada solenemente em 1948, na
Declaraçao Universal dos Direitos Humanos e em muitos
documentes constitucionais ou legais. Agora, quando uma
sociedade que se prétende democrâtica, décide que o ser
humano nasoituro, como se diz, isto é antes do seu
nascimento, que este ser humano pode ser abortado,
eliminado, esta sociedade introduz na dinâmica democrâtica
uma exceçâo que, na realidade, destrôi o princîpio da
universalidade dos direitos humanos, A partir de tal decisâo,
hâ uma categoria de seres humanos — os nascituros — que
nâo tem a mesma dignidade que os demais, jâ que a lei,
em vez de protegê-los, autoriza a sua eliminaçâo.
Mas uma sociedade onde isso acontece é uma
sociedade que Jâ entrou num processo de totalitarismo,
porque esta se réserva o direito de définir e decidir quem
pode viver e quem pode ser eliminado. E se este "direito" se
extende ao caso do nâo nascido, nâo hâ motivo para que o
catâlogo das exceçôes nâo se multiplique, o que de fato se
observa. Por exemplo, na Holanda, na Bélgica e em vârios
paîses da Europa ocidental, jâ se pratica a eutanâsia de
pessoas idosas, e nada impede que mais tarde se eliminem
os menos vâlidos, os déficientes de todo o tipo, e os
dissidentes polîticos,..

Entâo, o Direito, em vez de protéger o ser humano, se


perverte e se co/oca ao serviço do neototalitarismo?
De fato. Do que acabamos de explicar résulta que a
nossa sociedade entrou realmente numa dinâmica de tipo

77
totalitârio e a ilustraçâo disso, a concretizaçâo disso, se verifica
na evoluçâo do Direito, O Direito torna-se simplesmente um
positivismo juridico, isto é émana simplesmente da voz dos
mais fortes, da voz da maioria. A maioria que tem esse poder
de impor a sua vontade, décide quem é admitido a viver e
quem pode ser encaminhado para a morte, É uma
sociedade realmente totalitâria. É um totalitarismo brando,
manso, sutil, que esta sendo propalado, mas é um
totalitarismo de tipo novo que eu chamo, alias, um "ultra-
nazismo", porque esse totalitarismo consagra, potencializa,
o totalitarismo nazista com o totalitarismo comunista e o neo-
liberal.

Hâ uma perversào nâo sa no Direito mas também na


Medicina...
Hâ também uma perversào da Medicina, de fato,
Mas antes de abordar este tôpico, gostaria de insistir ainda
sobre a perversào do Direito. Na perspetiva do positivismo
juridico, que acaba de ser evocado, nâo hâ mais distinçao
entre o Direito Natural e o Direito Positivo. Quando se fréquenta
os grandes autores que fizeram as primeiras teorias da
democracia européia, se nota por exempte que, no caso
do filôsofo Locke, do século XVII, o homem tem direitos na
sociedade de natureza; tem direitos naturais. E quando este
mesmo ser humano entra na sociedade polrtica, ele mantém
os direitos que ele tinha na sociedade natural. Entâo, a
sociedade civil e a sociedade politica têm como
incumbência protéger aqueles direitos que o ser humano

78
tem na sociedade natural. Isto significa que na base da
democracia ocidental, o homem é reconhecido como titular,
como sujeito de direitos inatos, de direitos dos quais ele nâo
pode ser privado, e que esses direitos devem ser protegidos
pelas instituiçôes polîticas e juridicas, Hoje em dia, isso tudo
esta sendo questionado em nome, justamente, de um
positivismo juridico que considéra que os direitos humanos
sâo simplesmente o produto de uma espécie de concessâo
da maioria. Isso significa que a democracia entrou num
processo de perigo, esta periclitando.

O mesmo pode se dizer em relaçâo à Medicina?


O caso da Medicina é muito parecido. Quando existe
esta discriminaçâo entre os seres humanos, evidentemente
a Medicina também vai se aproveitar daquela situaçâo, ou
vai ser utilizada nessa mesma situaçâo, para favorecer a
transmissâo da vida dos seres supostamente mais
capacitados, mais uûteis" na sociedade de produçâo e de
consumo. Vai se dedicar também à eliminaçâo dos mais
fracos, Isto significa que a Medicina vai ser o artifice de uma
sociedade onde vai predominar o eugenismo e onde a
prôpria transmissâo da vida vai ser dominada por critérios
totalmente ideolôgicos, hédonistes, utilitârios e mercantilistas.
Segue-se que numa sociedade como esta, o médico
jâ nâo esta mais à serviço dos mais fracos, como era o caso
desde a Antiguidade, com Hipôcrates, por exempio. Daqui
em diante, o médico vai dedicar os seus cuidados de acordo
com os interesses dos mais fortes, dos mais ricos, ou inclusive,

79
em alguns casos, de acordo com os interesses da sociedade
e do Estado. Nâo podemos esquecer que durante o século
passado, eu quero mencionar aqui o século XX, muitos
médicos se dedicaram a tratamentos psiquiâtricos
dégradantes, na Uniâo Soviética, por exemplo; que outros,
na Alemanha nazista, se dedicaram à seleçâo, à
esterilizaçâo, à eutanâsia, à eliminaçâo dos considerados
como inûteis; que em muitos paîses da Âsia, da America
Latina e também da Europa, médicos se dedicaram ao
serviço da tortura. Hâ também médicos que, priorizando os
interesses do mercado e do lucro, se dedicam a experiências
inadmissfveis sobre seres humanos. Quer dizer que, muitos
médicos em vez de se empenharem ao serviço e ao cuidado
dos mais vulnerâveis, se dedicam aos interesses do poder
ou da sociedade. E hoje em dia, nâo se trata apenas de se
dedicarem aos interesses dos poderosos ou da sociedade;
mas aos interesses de companhias comerciais. Certa
medicina tornou-se wum bom negôcio".
Mais ainda: hojeem dia, quando se acompanha temas
discutidos no âmbito da Organizaçâo Mundial de Saûde,
constata-se que alguns estâo querendo outorgar os cuidados
médicos proporcionalmente ao poder aquisitivo, muito variâvel,
da gente, da populaçâo, das populaçôes. Isso significa que
na mentalidade de alguns dos lideres da Medicina atual, a
saûde séria uma espécie de produto que se compra de acordo
com o poder aquisitivo que se tem. Isso, evidentemente,
significaria que a Medicina setornaria um instrumente poderoso
de contrôle e de dominaçâo dos mais pobres.

80
Aliâs, é bom destacar que, agora mesmo, nas regiôes
pobres de America Latina, por exempte, médicos estâo sendo
utilizados para esterilizar massivamente populaçôes femininas
consideradas como pobres e como inûteis no mercado de
trabalho, Denûncia feita hâ anos, no Brasil, por Darcy Ribeiro,
Mulheres consideradas como indignas de transmitir uma vida
que séria uma vida inûtil, que séria um pesadelo para a
sociedade... Das mulheres brasileiras que utilizam um método
qualquer de contracepçâo, de contrôle da natalidade, mais
de 40% jâ foram esterilizadas, O mesmo se dâ no Mexico.
Isto significa que tem muitos médicos que cooperam com
este tipo de programa discriminatôrio, que em vez de acabar
com a pobreza, préfère acabar com os pobres.

Os defensores do aborto faiam em nome da proteçâo da


mulher, faiam sempre de casos dramaticos e de situaçoes
limite. Contudo, se o entende bem, o problema
fundamental do aborto nâo é este. Obedece a estratégias
internacionais, em particular a dos controiadores
demogrâficos, e hâ aqui uma espécie de vioiencia
absoluta que se impôe de maneira subrepticia na
sociedade...
Sim, sim. Seguramente o problema do aborto,
fundamentalmente é um problema muito simples: é a
questâo de saber se vamos rechaçar o preceito inscrite no
coraçâo de todosos homens, isto é, nNâo materas!". OSanto
Padre, na sua viagemao Monte Sinai, destacou este preceito.
Em substância, ele disse o seguinte: se nâo respeitamos o

81
preceito "Nâo matarâs!", a sociedade humana se torna
impossivel, a convivência humana se torna impossivel, porque
se cada um se réserva, se outorga o direito de dispor
Ivremente" da vida dos outros, entâo a sociedade se torna
anârquica. Ora, uma sociedade anârquica é
necessariamente uma sociedade onde prevalece a vioiencia
dos mais fortes; é uma sociedade sem norma ética a nâo
ser a vioiencia; é uma sociedade bârbara.
Entâo devemos considerar que as formas exteriores
da barbarie podem evoluir; jâ nâo sâo mais necessariamente
as formas évidentes que a gente conheceu na histôria
récente, Hoje em dia tem novas expressôes, novas
manifestaçôes, da mesma dinâmica bârbara. Eé justamente
uma das nossas responsabilidades chamar a atençâo sobre
essas novas formas.

Agora, no que respeita ao caso especifico do aborto,


gostaria de mencionar uma coisa que é fundamental. Porque
o caso do aborto é um caso ûnico na problemâtica dos
direitos humanos, jâ que o aborto é a morte deliberadamente
infligida ao ser humano mais inocente. É isso que, muito
curiosamente, nas nossas sociedades se conseguiu
transgredir. Alguns espîritos "valentes", celebrados,
homenageados pela mîdia, celebraram a transgressâo: TMâo
matarâs!". Alguns espîritos "intrépidos" começaram a impor
a morte ao ser humano mais inocente que se possa imaginar.
E nâo é sô isso: este ser inocente, totalmente indefeso, foi
acusado de maies! O ser inocente nâo nascido foi acusado
de ser o resultado de uma gravidez nâo desejada; foi

82
acusado de ser um empecilho à prosperidade, à carreira;
foi acusado de todos os maies da humanidade, inclusive
pelo atraso em matéria de desenvolvimento,
Tudoisso é profundamente escandaloso, e nos mostra
mais uma vez o quanto a humanidade é sensîvel à imitaçâo.
Éo desejo mimético, o famoso desejo de imitaçâo. uOs outros
fazem isso". Projetamos a culpabilidade num bode expiatôrio
- no caso particular "que mencionamos" é o caso do
nascituro, da criança nâo nascida - e entâo, essa criança
inocente é apresentada como culpada de uma situaçâo,
ou de varias situaçoes, na quai a responsabilidade dessa
criança é nula! Mas se invoca, se acusa essa criança de ser
responsâvel pela situaçâo em questâo e, por conseguinte,
condena-se e elimina-se a criança, e se considéra que
podemos dispor dessa vida, apresentada como a causa de
muitos maies da humanidade. Isso se chama a "vioiencia
primordial". Quando uma lei autoriza o massacre dos
inocentes, quando uma lei numa sociedade democrâtica
autoriza isto, nos devemos constater que esta sociedade jâ
se tornoutotalmente bârbara, na quai tudo se torna possîvel.
Ede fato, é isso que acontece. Hoje em dia considera-se a
esterilizaçâo massiva dos pobres uma coisa muito normal,
Hoje em dia considera-se que a eutanâsia é umacoisa muito
normal. Hoje em dia considera-se que a experimentaçâo, a
vaidade do pesquisador, a fome do lucro justificam todas as
manipulaçôes. Evamos ver que nessa sociedade onde todos
seguem o quediz a maioria, imitando a maioria, vai acabar,
e jâ esta acabando, dando como resultado, uma sociedade

83
totalmente desumana. Esta vioiencia primordial contra o
nascituro deve entâo ser a mâe de todas as formas de
insegurança.

Confrontados a essa situaçâo, os cristâos devem


desempenhar um papel imprescindivel. Para defender a
humanidade do homem, devem recorrer aos recursos
oferecidos pela razâo, pois os cristâos nâo tem o
monopolio da defesa da vida humana. Entretanto, eles
tem uma contribuiçâo especifica a oferecer, um
testemunho...

Claro! No caso especifico dos cristâos, o nosso dever


é de considerar a situaçâo do prôprio Cristo, porque o Cristo
era o inocente, um inocente absoluto, sem mancha, o
Cordeiro de Deus, Ele foi martirizado, Ele foi crucificado,
precisamente porque Ele era inocente. Ainocência d'Ele era
uma coisa intolerâvel para os fariseus, para osescribas, para
o establishment da época, Aatençâo que Ele dava aos mais
fracos, aos mais débeis, era uma coisa totalmente inusitada,
escandalosa para aquela gente.
Mas o que fez o Cristo é aquilo que nos também
devemos fazer: ir a contra-corrente numa sociedade que
nâo quer aceitar a inocência do inocente, a inocência
primordial do ser nâo nascido, que justamente grita pelo seu
prôprio silêncio, que grita a sua inocência e que esta
esperando da nossa parte apenas uma coisa: que nos nos
ternemos para ele o Bom Samaritano, Isto é, que imitemos o
triste, porque na parâbola o Cristo seapresenta sob os traços

84
do Bom Samaritano, Eque é que faz o Bom Samaritano? Ele
nâo se réfugia numa casuîstica de definiçôes para saber
quem é ou quem nâo é o prôximo. Ele toma a atitude prâtica
de quem se aproxima e de quem reconhece neste ser înfimo,
neste ser nos primôrdios da sua existencia, neste ser cuja
existencia individual jâ conseguimos felizmente detectar
muito cedo, o Samaritano - digo - reconhece, o cristâo
reconhece um ser que tem a mesma dignidade que a minha
dignidade. Como eu, este ser recebeu de Deus a existencia.
Entre ele e eu, nâo hâ uma fraternidade por decreto, Ele é o
meu irmâo, porque justamente ele como eu recebemos a
existencia do mesmo Deus cheio de bondade. Isto,
evidentemente, vai contra a ética naturalista da quai tanto
falamos, isto é, uma ética da força e da violencia. Aqui
estamos na presença de uma ética do amor e da ternura.
Essa é a ética do Cristo. Nâo é uma coisa teôrica; é uma
atitude: Ide, e haja da mesma forma".

Concluo daquilo que V. acaba de dizer que hâ nâo sô


uma perversâo do Direito e da Medicina, mas que
também hâ da propriapolitica. Nesse sentido os politicos
tem uma responsabilidade grave na legislaçâo. Gostava
de perguntar se nâo Ihe parece que hâ umacooperaçâo
formai no mal a quem ace/fa, ou vota, ou défende leis
que legalizam o aborto?
É uma coisa totalmente inadmissivel que um
legislador, seja ele cristâo ou nâo, admita uma lei que, de
certa forma, organiza o aborto, isto é, a eliminaçâo covarde

85
de um ser humano na sua situaçâo de total inocência e de
total falta de defesa. De tal modo que convém chamar a
atençâo dos polîticos sobre isso. Sera que eles vâo ser
medrosos até legalizar este tipo de açâo ou de gesto? É
uma coisa inimaginâvel mas que infelizmentese verifica em
alguns paîses. Agora, acontece que devemos considerar
sobretudo que isso nâo é primeiramente um problema de
ética cristâ; é um problema de ética natural, porque todas
as nossas sociedades civilizadas sâo fundadas sobre o fato

que a vida humana deve ser respeitada. O caso de


Hipôcrates é muito significativo, e a obra de Cicero, por
exemplo - para citar exemplos muito famosos - gira em torno
disso. Toda a nossa sociedade, o Direito Pénal, mas também
o Direito Civil, sâo todos organizados em torno do respeito
pela vida humana e do respeito, alias, da instituiçâo familiar,
na quai a vida normalmente é acolhida e educada.
Entâo, a tarefa magnïfica que têm os polîticos hoje, é
de serem os protetores deste capital extraordinârio que é a
vida humana. A nobreza da tarefa do homem pol'rtico de
hoje, do représentante polïtico de hoje, do deputado, do
senador, é justamente de ser aquele que résiste as pressôes
do ambiente, que résiste ao mimetismo dominante, que
résiste à violencia contagiosa, imposta muitas vezes de fora
através dos média, que banalizam a violencia, o divôrcio, o
aborto. A nobreza da tarefa do polïtico é de ser guardiao do
valor fundamental que é a vida humana.
Neste particular, o polïtico deve ser um pouco um
contestatârio das idéias e das tendências atualmente

86
dominantes. Se ele nâo fizer isso, se ele forapenas uma caixa
de ressonância do que diz a massa, a quai imita e repercute
os brados bélicos gritados contra os mais débeis, entâo nâo
vale a pena se engajar na politica, porque a massa jâ vai
fazer este serviço. Os représentantes do povo nâo sâo meros
seguidores do povo; eles sâo lideres do povo. Eles devem
indicar ao povo os caminhos do respeito do ser humano e
devem indicar também aos cidadôes, as naçôes, as
populaçôes, os becos sem saîda e os caminhos que podem
levar a uma sociedade bârbara de novo estilo.
Me parece que isso merece ser destacado também
jâ que a ttlei da maioria" deve ser manejada com muito
cuidado. Porque, veja, no ano de 1931 em Itâlia, 90% dos
professores universitârios apoiaram Mussolini. Aqueles que
deviam ter sido os profetas, os vigias, chamando a atençâo
sobre os perigos que estavam se perfilando, em vez disso,
eles caïram na imitaçâo da massa e fizeram como todo o
mundo fazia, istoé, aprovaram os programas de Mussolini. Eo
mesmo aconteceu também na Alemanha. Isto significa que
a maioria por si sô nâo é um critério, e muito menos uma
garantia de verdade. A maioria pode votar uma lei perversa.

Nos as vezes ouvlmos dizer que o aborto é uma questâo


da consciência de cada um. Alguns polîticos argumentam
assim...

Isso é uma argumentaçâo idiotae inadmissivel porque


entâo, se tal for o critério, eu posso também dizer: wBom, eu
vou roubar o meu vizinho porque a minha consciência me

87
autoriza a roubar o meu vizinho"; "Eu vou envenenar a minha
sogra porque a minha sogra me enche a paciência". Isso
sâo critérios de uma debilidade mental total, porque a gente
nâo pode governar uma sociedade a partir de uma récusa
de principios morais elementares como é o principio que
reza o respeito a vida humana. Porque se o respeito da vida
e dos bens do meu vizinho depender da minha consciência
subjetiva, isto significa que nâo hâ mais nenhuma norma ética
na sociedade, e que a lei é - voltamos ao que estâvamos
dizendo - simplesmente o reflexo da vontade dos mais fortes.
Mas nesse caso, os mais fracos nâo têm future nâo têm mais
existencia, nâo têm mais direito nenhum.
Entâo a gente deve saber quai é a sociedade que
queremos. E nâo podemos ter uma sociedade de
solidariedade e de liberdade para todos se nâo houver uma
relaçâo intima entre a lei e a moral. Isso é uma coisa muitas
vezes negada hoje. Evidentemente, a lei nâo résolve todos
os problemas, de acordo. Mas tem alguns principios
fundamentais, como o respeito de todos os seres humanos,
a igualdade de todos os seres humanos, que numa
sociedade civilizada e democrâtica devem ser respeitados
e protegidos pela lei.
O documenta ao quai me referia antes, a Declaraçâo
Universal dos Direifos Humanos de 1948, nâo é a bem dizer
um documenta jurîdico; é um documenta moral. Mas é um
documenta moral que convida a varias aplicaçôes no setor
das legislaçôes nacionais. Por exemplo, o respeito à vida de
todo o indivîduo humano - é o artigo 3° da Declaraçâo -

88
esse direito de todos os indivîduos humanos à vida deve ser
traduzido em todas as legislaçôes nacionais, mas é sempre
a mesma referência ao mesmo valor, isto é, a vida humana,
que esta protegido através da legislaçâo.

Hâ algumas circunstâncias em que um politico catolico,


digamos assim, possa votar umalei abortista? Nenhuma,
nenhuma, nenhuma circunstância? A vida do ser humano
inocente deve ser respeitada: pronto! Nâo tem como
discutir isso, tal é a posiçâo da Igreja étalé a sua posiçâo.
Entretanto, alguns invocam o numéro 73 da Enciclica
Evangelium Vitae do Papa Joâo Paulo II, para afirmar que
os catolicos, por exemplo os parlamentares, podem votar
uma lei liberalizando o aborto, ou a eutanasia, para conter
o aborto dentro de certos limites.
Esse n° 73 de Evangelium Vitae muitas vezes sofre com
uma interpretaçâo totalmente distorcida e nâo raramente
sofîsticamente distorcida. Muitas vezes apresenta-se esse
parâgrafo como dando a aprovaçâo do Santo Padre à assim
chamada "lei do mal menor". Isto é, que um politico catolico
poderia, por exemplo, votar uma lei autorizando o aborto,
digamos, até 15 semanas, para evitar uma lei que autorizasse
o aborto, digamos, até 20 semanas - isso para explicar
simplesmente ocaso. Mas é évidente que a gente nâo pode
preconizar uma lei ruim, no caso uma lei criminosa, para
evitar uma lei mais criminosa ainda.
Alias nâo é bem isso que diz o texto da Evangelium
Vitae no seu n° 73. Quando a gente le atentamente, e com

89
boa fé, aparece com perfeita nitidez uma coisa diferente. O
que diz o n° 73 é o seguinte: se existe uma lei autorizando,
digamos, o aborto a 20 semanas, o deputado, o politico
catolico pode lutar para que o prazo de 20 semanas venha
a ser reduzido a 15 semanas, justamente para diminuir,
através desta modificaçâo da lei, o alcance nocivo de uma
lei na quai ele nâo colaborou inicialmente. Éisso que diz o
famoso n° 73 da enciclica, muitas vezes utilizado de maneira
desonesta, inclusive por catôlicos, nâo sô politicos.

Fora dessa circunstancia, o politico catolico que vota ou


que défende uma lei abortista coopéra formalmente no
mal...

Éclaro; ele dâ uma cobertura légal ao assassinio, à


eliminaçâo de um ser humano inocente, o que é uma coisa
totalmente imoral. Nessas matérias temos interesse em ter
uma grande clareza. Essa clareza é libertadora; nos livra de
uma casuistica que acaba justificando tadas as formas de
novas opressôes, de opressôes escondidas que começam
com as palavras assassinas, e depois se passam no sigilo
das salas de operaçâo, ou que se passam em outros
contextes parecidos.

Para terminar gostaria de Ihe par uma pergunta sobre a


relaçâo entre a contracepçâo é o aborto. Hâ pessoas
que afirmam que a melhor forma de prévenir e combater
o aborto séria promover a contracepçâo.
A contracepçâo e o aborto... Primeiro, vamos ver o

90
que aparece a partir das estatisticas. Nos paîses onde a
contracepçâo esta mais difundida - na Europa sâo paises
como a Itâlia, a Espanha, a França - constatamos que a
divulgaçâo massiva da contracepçâo nâo diminuiu o
numéro de abortos. Na França, por exemplo, onde a
porcentagem das usuârias de contracepçâo é um dos mais
altos do mundo, observamos também um dos mais altos
niveis de ocorrencias de abortos. Isto, mais de vinte cinco
anos apôs a legalizaçâo do aborto.
Mas tem uma explicaçâo muito mais simples e muito
mais compreensîvel do ponto de vista psicolôgico: a
contracepçâo deve ser totalmente eficaz; se ela nâo for
eficaz, a gente deve poder recorrer ao aborto. A lôgica do
aborto e a lôgica da contracepçâo sâo duas lôgicas que se
complementam. Éuma coisa muito simples. Quando falham
os processos contraceptivos, o aborto aparece como a
soluçâo que se impôe. De tal modo que é da mesma atitude
fundamental de récusa à vida que procedem tanto a
contracepçâo como o aborto.
Isto é confirmado por estudos que justamente
evidenciam que o numéro elevado de abortos résulta de
contracepçôes fracassadas. Entre as duas coisas, hâ uma
relaçâo que ninguém hoje pode negar. Eu sei que tem gente
que esta querendo ocultar essa relaçâo ou dissociar
totalmente as duas coisas, porque tal é o seu interesse. Mas
a anâlise séria desses dois tipos de comportamento révéla,
ao contrario, a complementaridade quase que natural entre
esses dois procedimentos.

91
Consta também que muitos desses contraceptivos
acabam sendo abortivos...

Sim, sim. Isto é uma coisa que ninguém contesta hoje


em dia. Atualmente, a maioria das preparaçôes
contraceptivos hormonais podem apresentar efeitos abortivos
muito précoces, que a mulher nâo percebe. Dependendo
do momento do ciclo, os contraceptivos atuais podem
impedir a fecundaçao; podem - ao modificar o muco
cervical - obstar ao encontro do espermatozôide e do ôvulo;
podem impedir a nidaçâo e podem também provocar a
expulsâo do ser humano recém-concebido ou recém-
nidado. Agora, evidentemente, como a mentira impera em
muitos setores, e que costuma andar de mâos dadas com a
violencia, as bulas de contraceptivos sonegam essas
informaçôes. Resultado: muitas mulheres abortam de fato
sem saber exatamente o que Ihes acontece.

92
Capitule VII

O dossiê da eutanâsia

Entrevista de
Klaudia Schank e Michel Schooyans
por

Agnès Jauréguibéhére
para LHomme Nouveau (Paris),
2dejunhode2002.

Klaudia Sohank é bacharelem Direito, bacharel em Relaçôes


Intemaoionais e adogada. Miohel Schooyans é professor
emérito da Unh/ersidade de Louvain é jâ é oonheoido de
nossos leitores. Responderam as perguntas que Ihes fizemos
sobre a obra perturbadora que aoabam de publicar sobre
a eutanâsia, Euthanasie. Le dossier Binding-Hocha pc/b//caab
em Paris pela editora "Éditions du Sarment'.

Quem sâo os autores dessa obra?


O livro que traduzimos é obra do jurista Karl Binding e
do psiquiatra Alfred Hoche; a primeira ediçâo é de 1920 e a

93
segunda de 1922. Binding, nascido Frankfurt-sobre-o-Mainz,
era um eminente professor de direito. A obra de peso que
deixou apôs sua morte em 1920, desperta até hoje um
grande interesse. Hoche, nascido em 1865 em Wildenhain,
era professor de psiquiatria. Tornando-se escritor ao fim de
sua vida, suicida-se em 1943. A obra conjunta insere-se na
lôgica da evoluçâo das ciências com a concepçâo
cientificista e materialista do homem dai résultante. Reduzido
à sua dimensâo corporal, o homem torna-se um ser
unidimensional, desprovido de toda abertura à
transcendência.

Por que um livro desses naAIemanha de 1922?


É sobretudo na Alemanha que se desenvolvem, a
partir da segunda metade do século XIX, diferentes
movimentos cientîficos que contribuem ao surgimento do
nacional-socialismo. Uma das principais origens desses
movimentos encontra-se na teoria da evoluçâo exposta na
obra de Charles Darwin. Aplicada por Darwin aos seres vivos,
a idéia de evoluçâo foi pouco a pouco sendo também
aplicada à sociedade. Esta é comparada a um organismo
no quai o homem esta reduzido a ser apenas um membro.
Nesse contexte nasce a idéia segundo a quai o ser humano
tem uma responsabilidade pessoal quanta à evoluçâo. Toda
açâo que vai de encontro ao principio de luta pela vida e
da seleçâo dos mais aptos conduz infalivelmente à
degeneraçâo da espécie humana e consequentemente
àquela da cultura alemâ.

94
E para lutar contra essa degenerescência, e para
preveni-la, que os "higienistas" da raça alemâ propunham
medidas visando a melhoria do patrimônio hereditârio.
Rapidamente, suas propostas foram transformadas em
reivindicaçôes eugênicas e raciais. Somente aqueles que
fossem julgados aptos, teriam o direito a se reproduzirem.
Influenciados pela ciência da raça, com seu postulado da
superioridade da raça nôrdica, esses whigienistas" limitavam
sua missâo à conservaçâo do povo alemâo.

Poderiam expor em grandes linhas a argumentaçao


desenvolvida?
A exigência de Binding e Hoche, visando liberalizar a
destruiçâo de uma vida indigna de ser vivida, constitui um
prolongamento das idéias que acabamos de lembrar. Eles
também se outorgavam o direito de determinar o valor de
um ser humano e de relativizar sua dignidade.
Para Binding, o homem é o soberano de sua vida. Daî
a legitimaçâo moral e juridica do suicidio que, segundo ele,
conduz logicamente à liberaçâo da eutanâsia. Essa
liberaçâo deve inicialmente incidir sobrea "eutanâsia" pura,
que substitui simplesmente a causa da morte por uma outra
causa de morte, e depois, sobre a eutanâsia dos doentes
incurâveis que pedem com insistência para serem libertos
de seus sofrimentos e, enfim sobre a eutanâsia dos déficientes
mentais. A decisâo de se procéder à destruiçâo, tomada
por um Comité de Liberalizaçâo, fundamenta-se em um
dever légal de compaixâo. Aeventualidade de umadecisâo

95
tomada erroneamente em nada preocupa nossos autores.
Hâ tanta gente que morre por erro, que uma pessoa a mais
ou a menos, nâo pesa na balança. Hoche, por sua vez,
desenvolve toda uma argumentaçao que tende sobretudo
a justificar do ponto de vista médico o homicidio dos
déficientes mentais. Estes sâo por ele colocados no mesmo
piano dos animais. Aos seus olhos, os déficientes mentais nâo
podem portante fazer valer um direito à vida subjetivo. Hoche,
sem titubear, caracteriza-os como uexistencias-peso-morto"
e uconchas humanas vazias".

Segundo vocês, grande parte da argumentaçao dos


atuais defensores da eutanâsia jâ se encontra no dossiê
de 1922. Poderiam citar alguns exemplos?
Quase todos os argumentas invocados hoje em dia
a favor da eutanâsia, de uma forma ou de outra, jâ se
encontram na obra de Binding-Hoche. Um grande numéro
de "razôes" invocadas por esses autores, sâo hoje reutilizadas:
autonomia, liberdade, dignidade, cura, compaixâo,
inutilidade econômica, peso para a sociedade, qualidade
da espécie, etc.

Para vocês, ao fornecerem uma justificaçao juridica e


médica da eutanâsia, Binding e Hoche têm uma parte de
responsabilidade no estabelecimento da "soluçâo final"
pelo Terceiro Reich. Os nazistas se referiam a eles
explicitamente?
A argumentaçao de Binding e Hoche teve um

96
impacto considerâvel sobre o curso da histôria. A
responsabilidade direta desses universitârios na elaboraçâo
e execuçâo de programas de extermînio de déficientes,
adultos e crianças, esta fora de qualquer dûvida. Por aï,
abriram largamente o caminho ao Holocausto e à
banalizaçâo do ttdom da morte" por motivo de incorreçâo
polîtica ou de nâo conformidade biolôgica. Por ocasiâo da
chegada do nazismo ao poder, desencadeia-se na
Alemanha um debate pûblico sobre a eutanâsia. Éna revista
Ethik que os diferentes protagonistas tomam a palavra. Os
adeptos da eutanâsia, entre os quais um teôlogo chamado
Rose, referem-se frequentemente à obra de Binding e Hoche.
O prôprio Hoche interveio diretamente nesse debate. Como
jâ se estabeleceu que toda essa discussâo era seguida de
perto pela Administraçâo do Estado nazista, podemos afirmar
sem medo que os dois autores prepararam os burocratas,
os médicos e psiquiatras nâo somente à aceitaçâo, como
também à execuçâo dos assassinatos em massa à partir de
1939, e mesmo antes.

E a eutanâsia hoje?
Todas as idéias que evocamos permanecem no
centro do debate sobre a eutanâsia. Sem cair em um
reducionismo cego, coloquemo-nos algumas questôes.
Quais sâo atualmente os perigos que resultariam de uma
legitimaçâo juridica da eutanâsia? Essa legitimaçâo estaria
totalmente isenta de motivaçôes econômicas e sociais? Essa
mesma legitimaçâo nâo nos colocaria em um piano

97
inclinado escorregadio? Nâo somos envolvidos, sem nossa
vontade, em inumerâveis situaçôes que nos impulsionam a
fazer um julgamento a respeito da dignidade humana? Nâo
chegamos assim a criar categorias de homens cuja vida
nâo se bénéficia mais do direito à uma proteçâo légal? Na
Bélgica, por exemplo, alguns jâ nâo estâo considerando o
debate sobre a eutanâsia dos déficientes graves?

Quai entâo, para vocês, o coraçâo ofo problema?


Devemos nos colocar claramente a questâo da
definiçâo de um ato eutanâsico, Um médico que administra
analgésicos com o ûnico objetivo de aliviar as dores de um
moribundo cumpre seu dever de médico. Quando a doença
tornou-se incontrolavel, nâo se mata; a açâo terapeutica
muda de objeto e se concentra em cuidar da dor. O médico
assume, é verdade, o risco de encurtar assim a vida, mas
aquilo que ele quer e faz, é escolher a medicaçâo adequada
para cuidar da dor, nâo para matar. Nesse caso, nâo hâ
portanto eutanâsia. A eutanâsia é levar à morte de modo
intencional, supostamente sem sofrimento, por meio de
técnicas médicas. Éa Tôtung de Binding-Hoche. Ora, quem
sou eu para declarar que uma vida humana nâo vale a pena
ser vivida e consequentemente, que pode ser destruida
livremente?

Resta saber o significado real da compaixâo. O


pedido de eutanâsia traduz um profundo desalento, um
sentimento de abandono. Traduz o fracasso dramatico de
uma comunicaçâo, graças à quai, se ocorresse, o doente

98
perceberia que sua dignidade continua sendo reconhecida
pelos outros. O que mais falta sem dûvida aos moribundos,
é portanto o carinho: uma comunicaçâo em cujo coraçâo
o paciente se descobre amado. Amelhor maneira de ajudar
alguém a morrer dignamente consistiria em dar-lhe a morte?

Traduçâo de RuiA. C. Costa.

99
Obras do mesmo auîor

O oomunismo e o futuro da Igreja no Brasil, Herder, Sâo Paulo,


1963.
O desafio da secularizaçâo, Herder, Sâo Paulo, 1968.
Chrétienté en contestation: l'Amérique latine, Le Cerf, Paris,
1969.
Destin du Brésil. La technocratie militaire et son idéologie,
Duculot, Gembloux, 1973.
La provocation chinoise, Le Cerf, Paris, 1973. (Traduçao
italiana).
Lavortement problème politique, Université catholique de
Louvain, Département de Science politique, Ie éd.:
1974; 2e éd.: 1981. (Traduçôes italiana e inglesa).
Demain le Brésil?, Le Cerf, Paris, 1977. (Traduçao espanhola).
Droits de l'homme et technocratie, CLD, Chambray-lès-Tours,
1982.
Université et liberté. LUniversité catholique dans la société et
dans l'Église, FIUC, Paris, 1985. (Com Jean Ladrière).
Démocratie et libération chrétienne. Principes pour l'action
politique, Lethielleux, Paris, 1986.
Maîtrise de lavie, domination deshommes, Lethielleux, Paris,
1986. (Traduçao inglesa). Traduçao brasileira:

101
Dominando a vida, Manipulando os homens, IBRASA,
Sâo Paulo, 1993.
Théologie et libération. Questions disputées, Le Préambule,
Longueuil, Québec, 1987.
Lenjeu politique de l'avortement, 2aed., OEIL, Paris, 1991.
(Traduçôes espanhola, italiana e polaca). Traduçao
brasileira: O aborto: aspectos polîticos, Marques-
Saraiva, Rio de Janeiro, 1993.
De "Rerum novarum" à xxCentesimus annus", Pontificio
ConselhoJustiça e Paz, Città del Vaticano, 1991. (Com
Roger Aubert). Traduçao brasileira: Da Rerum Novarum
à Centesimus annus, Loyola, Sâo Paulo, 1993.
Initiation à l'Enseignementsocial del'Église, L'Emmanuel Paris,
1992. (Traduçôes espanhola, eslovaca, italiana,
inglesa e chinesa).
Bioéthique et Population, Fayard, Paris, 1994. (Traduçôes
inglesa (USA), espanhola, italiana, eslovaca, alemâ e
chinesa). Traduçao portuguesa:/\ escolha da vida.
Bioética e Populaçôo, Grifo, Lisboa, 1998.
El imperialismo contraceptivo. Sus agentes y sus vitimas,
livrinho, ALAFA, Caracas, VHI, Miami, 1994.
La dérive totalitaire du libéralisme, obra honrada com uma
Lettre de Sua Santidade o Papa Joâo Paulo II, 2a éd.,
Marne, Paris, 1995. (Traduçao inglesa (USA); traduçôes
italiana, espanhola; traduçao brasileira em
preparaçâo).
Pour comprendre les évolutions démographiques, 2aed.,
Université de Paris-Sorbonne, APRD, Paris, 1995.

102
(Traduçao espanhola (Mexico); traduçôes inglesa e
brasileira em preparaçâo).
LEvangile face au désordre mondial, Prefacio do Cardeal
Ratzinger, 2aed., Fayard, Paris, 1998 (Traduçôes inglesa
(USA), espanhola (Mexico) e italiana).
Le crash démographique, Le Sarment-Fayard, Paris, 1999
(Traduçao inglesa (USA); traduçôes alemâ e italiana
em preparaçâo).
La face cachée de l'ONU, Le Sarment-Fayard, Paris, 2000,4a
impressâo, 2002. (Traduçôes inglesa (USA) e espanhola
(Mexico); traduçao italiana em preparaçâo).
Le Chemin de Croix du Jubilé des Familles, Prefacio de Daniel-
Ange, Le Sarment-Fayard, Paris, 2001. (Traduçôes
inglesa, italiana, espanhola, alemâ, inglesa).
Euthanasie. Le dossier Binding-Hoche (1922), Traduction de
l'allemand, présentationet analyse, em colaboraçâo
com Klaudia Schank, Le Sarment-Fayard, Paris, 2002.

No prelo

Nouvelle initiation à l'Enseignement social de l'Église.

103
a sobre o autor

Michel Schooyans é sacerdote da arquidiocese de


Bruxelas. Professor emérito da Universidade de Louvain e antigo
professor da Pontificio Universidade Catôlica de Sâo Paulo.
Tem como âreas de pesquisa a Filosofia polftica, as Ideologias
contemporâneas, as Polîticas demogrâficas. Éautor de uma
vintena de livros, traduzidos em diversas linguas. Consultor do
Pontificio Conselho para a Famîlia, é membro de diversas
sociedades cientificas, da Academia Pontificio de Ciências
Sociais, da Academia Pontificio para a Vida, da Academia
Pontifîcia Sancti Thomae Aquinatis, da Academia Mexicana
de Bioética (Mexico), do Population Research Institute
(Washington), do Instituto de Demografia Polîtica (Paris).

E-mail: <schooyans@mora.ucl.ac.be>

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Universidade Sem Fronteiras
Rua Nunes Valente, 919 - Aldeota
60120-070 - Fortaleza-Cearâ
Fone: (85) 264.4504.

104
ESTA OBRA FOI COMPOSTA EM AVANTGARDE
BK BT, PROCESSADA EM LASER FILM E
IMPRESSO EM PAPEL 24 KG. IMPRESSAO E
ACABAMENTO NA PREMIUS EDITORA EM
FORTALEZA/CE JANEIRO DE 2003.
Essa coletânea de entrevistas,
obtidas em muitas de suas viagens,
registra um pouoo o pensamento
deste mestre do humano.
Apesar dos momentos serem bem distintos,
ela guarda uma coerencia e um sentimento
pungente que ainda hâ espaço para crer
nas possibilidades do ser humano na Terra,
podendo a globalizaçâo ser entendida
como uma abertura para a ampla
construçâo da justiça e da paz.

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