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MICHEL SCHOOYANS

A ESCOLHA
DA VIDA
Bioetica e Populaçâo
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Grifb
A ESCOLHA
DAVIDA
MICHEL SCHOOYANS

A ESCOLHA
DA VIDA
Bioetica e Populaçâo

Grijb
Traduçâo
Guilherrnina Rebelo de Andrade
Henrique Barrilaro" Ruas
Teresa Ameal

Titulo original:
Bioéthique et population: le choix de la vie
© Librairie Arthème Fayard
© Grifo - Editores e Livreiros, Lda.
Rua dos Cegos, 34 • 1100 Lisboa •Portugal
Telef. (351-1) 886 00 91
Impresso em Portugal

EL
Apenas a necessidade
deve levar a que se empreenda a guerra;
sô hâ-de travar-se combate quando nâo se saiba
fazer a guerra de outra forma.

Sun Tsé
PROLOGO

A BOA NOVA DAVIDA

Tinha jâ este livro aparecido em francês quando Joâo


Paulo II ofereceu à comunidade dos crentes e a todos
os homens de boa vontade a magnifica enciclica
Envagelium vitae [EV\. Publicada em 25 de Marco de
1995, festa da Anunciaçâo, essa enciclica estava a ser
preparada havia cinco anos. Dizemo-lo para mostrar
com que cuidado o Santo Padre a elaborou e a
importância que lhe atribui no seu magistério pastoral.
Sâo numerosos os lugares da enciclica que aprofun-
dam temas tocados no présente trabalho. E é por isso
que nesta traduçâo remetemos para diversos passos do
texto pontifïcio.
A inserçâo dessas referências nâo é, contudo, absolu-
tamente suficiente para mostrar a pertinência do texto
pontifïcio. Pareceu-nos, pois, que séria util apresentar
em resumo as grandes linhas da enciclica, pondo par-
ticularmente em relevo a atençâo que ela dedica aos
fenômenos da populaçâo, assim como aos requisitos
morais que devem dignificar uma sociedade demo-
crâtica.
O tom da enciclica é dado desde o inïcio. Nos fïnais
do século XIX, a Igreja teve de denunciar a "miséria
imerecida" da classe operâria. Nos finais do século XX,
a Igreja nâo se pode calar quando tantos seres frâgeis
estâo a ser desprezados [J5K 5] e é ameaçada, nâo sô a
vida do ser humano inocente, mas ainda a dos povos
pobres [£1/3].

NOVAS AMEAÇAS CONTRA A VIDA


Hoje, essas ameaças contra a vida humana têm a par-
ticularidade de nâo vir apenas de actos individuais.
Vêm sobretudo de certos Estados [EV 59] que
legalizaram o aborto e se preparam para legalizar a
eutanâsia. Vêm de organizaçôes governamentais, quer
nacionais, como a USAID (Agência dos Estados Unidos
para o Desenvolvimento Internacional), quer interna-
cionais [EV59,73], como o Fundo das Naçôes Unidas
para a Populaçâo (fnuap), que publica regularmente
um éloquente Inventory dos respectivos actividades e
projectos.Vêm, ainda, das organizaçôes nâo governa
mentais (ONG), tais como a International Planned Pa-
renthood Fédération (ippf) ou o Population Council.
A Conferência Mundial sobre Populaçâo e Desen
volvimento, reunida no Cairo entre 5 e 13 de Setem-

10
bro de 1994, e a do passado Setembro (1995) em
Pequim sobre a condiçâo feminina, dedicaram-se pri-
mordialmente a levar a aceitar um programa de acçâo
distribuïdo ao longo de duas décadas e destinado a
refrear o crescimento da populaçâo mundial, sobretu
do nos païses pobres. Discutîvel tanto nos pressupostos
como nos fins, este programa nâo o é menos quanto
aos meios que recomenda. Entre estes, sugerem-se prin-
cipalmente a generalizaçâo da contracepçâo, a divul-
gaçâo dos dispositivos intra-uterinos (diu), a banaliza-
çâo da esterilizaçâo (sobretudo a feminina) e o acesso
generalizado ao aborto. Para mais, e por ocasiâo do
cinquentenârio da Declaraçâo Universal dos Direitos
do Homem, que se celebrarâ em 1998, circulam diver-
sas propostas de uma nova Declaraçâo, que se arriscarâ
a agravar as ameaças que jâ pesam sobre a vida hu-
mana.

A "legitimada" marginalizaçâo
Recorda a enciclica as correntes ideolôgicas que ' justi-
ficam" esta mentalidade oposta à vida e mascaram os
crimes mais atrozes [£1/4]. Nâo se réfère Malthus, mas
é posta em debate a ideologia liberalista na medida
em que ela da origem ao individualismo e, conse-
quentemente, ao egoïsmo [EV 4, 18ss.]. Sâo paralela-
mente defendidas as éticas do prazer ou hedonïsticas

11
[cf. EV 59], o utilitarismo [£1/64] e o materialismo
[£F22ss.].
Estes programas e estas ideologias conduzem, como
jâ aconteceu em diversos paises, à "legitimaçâo" do
aborto, as tentativas de "légitimai-" o assassinio dos
bébés que sofram de malformaçôes, à eutanâsia dos
seres "inûteis" e à esterilizaçâo por motivos econômi-
cos e sociais.
Tendo o cuidado de chamar as coisas pelos seus
nomes [EV 58], Joâo Paulo II regista, pois, que as
ameaças contra a vida dâo origem a uma guerra dos
poderosos contra os fracos [cf. EV 16ss.]. Guerra de
novo género, visto que o agressor nâo actua de rosto
descoberto e troca o mal pelo bem ou vice-versa [EV
24]. Guerra de novo género, ainda, porque apela para
os recursos das ciências biomédicas e se prevalece da
demografia para ' justificar" que os mais fortes dispo-
nham da vida dos mais fracos, quer individuos quer
nacôes.
A situaçâo actual tem, portanto, algo de contra-
ditôrio e até de surrealista. Na verdade, por um lado, é
frequentemente proclamado o alcance universal dos
Direitos humanos; por outro lado, multiplicam-se os
atentados contra a vida humana, acompanhados por
correspondentes "legitimaçôes" [EV 18]. As Decla-
raçôes dos Direitos do Homem sâo deturpadas me-

12
diante uma lista de derrogaçoes que permitem aligeirar
legalmente esses direitos. E essa mesma incoerência
que sai da pena de certos moralistas que afirma, por
exemplo, o direito fundamental de todos os homens à
vida, mas que, corn toda facilidade, se apressam a acres-
centar que é "necessârio", em certos casos, transgredir a
lei moral que proclama esse direito.
Em sïntese, a nossa sociedade, apesar das aparências,
pratica amplamente a marginalizaçâo, à custa, quer dos
povos, quer das pessoas.
A enciclica nâo se limita a registar: desce as raïzes do
mal. As causas deste podem ser descobertas à luz da
moral social e da moral fundamental. Quanto à moral
social, a Evangelium vitae retoma, sem o tornar a desen-
volver, tudo o que a Sollicitudo rei socialis e a Centesimus
annus tinham analisado.Vemos mencionadas: a incûria
culposa, as injustiças na distribuiçâo das riquezas, a cor
rida aos armamentos, a cultura da morte [EV 10].
Quanto à moral fundamental, a enciclica remete para
os ensinamentos da Veritatis splendor. Mostra que as
ameaças contra a vida nascem do relativismo [£J/20],
do proporcionalismo [EV 68], da confusâo entre o
bem e o mal [EV 24], de uma falsa concepçâo das
relaçôes entre a liberdade e a verdade [EV24, 96], das
lacunas de uma moral meramente consensual ou
processual [£1/68-71].

13
•_. ;

PARA UMA CULTURA DA VIDA

Promover uma "cultura da vida" exige, portanto, o


regresso à conformidade entre a lei civil e a lei moral.
[£)/68, 72], entre a moral - particularmente a moral
social - e a polîtica. Pelo facto da prôpna unidade do
homem, importa garantir a indisponibilidade do corpo
[EV 19, 72] e a convivência [EV 18] deve ser funda-
mentada no respeito incondicional de toda e qualquer
vida inocente [EV 77]. Duas condiçôes comple-
mentares sâo mdispensâveis para ser instaurada esta
"cultura da vida": antes de tudo, a nova evangelizaçâo,
jâ que, quando se nega Deus, a prôpria dignidade do
homem é ameaçada [EV 96]; em segundo lugar, que
seja aperfeiçoada uma larga estratégia ao serviço da
vida [£1/95].
Em vista de esta "cultura da vida", a enciclica repré
senta uni apelo ao estudo e à acçâo. Intelectuais, polïti-
cos, universidades, meios de Comunicacâo - todos têm
algum papel a desenipenhar na promoçâo de uma
economia de comunhâo [£1/91] e de um ecumenis-
mo nas obras [£K91]. O estudo hâ-de acentuar, por
exemplo, que as taxas de crescimento da populaçâo,
assim como os indices sintéticos de fecundidade, estâo
a diminuir por todo o mundo; mostrarâ, por outro
lado, mediante o esquema da transiçâo demogrâfica,
que o crescimento da populaçâo mundial é principal-

14
mente resultado da queda generalizada da mortalidade:
vivendo mais tempo, os homens sâo em maior numéro
quanto à ocupaçâo simultânea da Terra. Demonstrarâ
ainda que a "sobre-ocupaçâo da Terra" é uma noçâo
absolutamente relativa à capacidade que os homens
têm ou nâo têm de dar soluçâo aos seus problemas. E
nâo deixarâ de sugerir, na linha de Bourgeois-Pichat,
que, se a fecundidade mundial viesse a cair e se man-
tivesse constante o nïvel actual da fecundidade na Ale-
manha, o homem desapareceria dos païses industriali-
zados à volta do ano 2250 e dos païses em vias de
desenvolvimento cerca do ano 2400.
Com base nestes estudos, sera possîvel empreender
uma acçâo a favor da vida, que induira a valorizaçâo
da famîlia, célula-mâe da sociedade e da Igreja; a valo
rizaçâo da mulher em todas as dimensôes da sua
especificidade [EV 99]; a valorizaçâo de cada homem
mediante a participaçâo no saber e nas competências
profissionais, em virtude da educaçâo (cf. Centesimus
annus, 32); fmalmente, a valorizaçâo do compromisso
politico [£1/93]. Da convergência de estas linhas de
acçâo hâo-de surgir necessariamente formas de mais
larga solidariedade [£F93].
Tudo isto acentua a urgência - para teôlogos, mora-
listas e pastores - de prestar atençâo as realidades
demogrâficas. De facto, afïrma a encîclica, e com
15
cristalina clareza, que o respeito da vida humana nâo se
limita à moral sexual e familiar, mas tem de ser tam-
bém a maior preocupaçâo da moral social, econômica
e politica.
Deus —recorda Joâo Paulo II [EV 19], insistindo
aqui no ensino da Centesimus annus (CA 38) —confia
o homem ao homem. Ora, o homem esta confiado ao
homem mediante as instituiçôes polîticas, jurîdicas,
econômicas, sociais, sem esquecer as organizaçôes
nacionais e internacionais, tanto pûblicas como pri-
vadas. E no interior de estas instituiçôes e organiza
çôes que os Cristâos sâo convidados, como pessoas e
como Povo de Deus, a proclamar o Evangelho da vida
[EV19\

[Traduzido da ediçào italiana (Milâo,Ares, 1995).]

16
APRESENTAÇÂO

No século xix o maior problema, a nivel moral, social,


economico e politico, foi a miséria imerecida da classe traba-
Ihadora, àquai se veiojuntar aexploraçao colonial No tempo
em que vivemos, o maior problema, a nivel moral, social,
economico e politico, é mais grave do que o do século xix.
Trata-se do desprezo imerecido de que a vida humana é viti-
ma por todo o mundo.
Este problema foi claramente levantado desde a primeira
metade do século xx. Mas a sua gravidade extrema aparece
sobretudo desde que se assiste à campanha mundial que tem
como objectivo nâo sô secar asfontes da vida através da bana-
lizaçâo da esterilizaçâo, mas também legalizar o aborto e,
brevemente, a eutanâsia.
Esta penhora da vida apresenta-se como a ûnica soluçâo
satisfatôria para uma série de casos considerados dolorosos ou
dramâticos. No entanto, como confirma a experiência, esta
penhora levanta problemas mais numerosos e complexos do
que os que prétende résolves

17
HB55S
••

Entre outras, as perturbaçôes ocorridas na regiào de Chia


pas, no sul do Mexico, no inicio do corrente ano, deveriam ter
derrubado os antolhos mais opacos. Estes acontecimentos têm
na sua origem mais profunda a tomada de consciência, por
parte dos indios da regiào de San Cristôbal de las Casas, das
injustiças edesigualdades. E, se as mesmas causas geralmente
produzem os mesmos efeitos, torna-se urgente prévenir tais
acontecimentos, procurando solucionar as injustiças e as de
sigualdades. As campanhas internacionais afavor da esterili-
zaçdo e do aborto revelam, por parte de quem as promove,
uma rejeiçâo em solucionar essas injustiças edesigualdades.
Quando as vitimas tomarem consciência disso, a révolta
estender-se-â como um rastilho de pôlvora, cuja violência
ninguém podera contrôlât
Por outro lado, somos tocados ao ver o zelo com que a
administraçào Clinton se empenha, depois da implosâo do
bloco soviético, em prévenir a emergência de um inimigo
actual, ou simplesmente potencial Ocolapso demogrâfico que
se verifica em toda aEuropa Ocidental - ao quai nâo éalheia
aliberalizaçâo do aborto - éum petisco para oapetite impe-
rialista da métropole além-Atlântico. As futuras crianças da
Europa sâo submetidas aum programa de destruiçâo antes
mémo de poderem tornar-se rivais de uma America obcecada
com a sua segurança e expansdo.
Discutimos estes problemas em pormenor nas obras L'en
jeu politique de l'avortement eLa dérive totalitaire du
18
libéralisme, as quais nos referimos com frequência. Como
continuaçào destas obras, propomos agora um conjunto de
argumentos, destinado principalmente aos que precisam de um
instrumento prâtico para os debates em que participant.
Vamos de seguida examinar, em termos simples, alguns dos
argumentos que mais se discutem nos debates sobre o respeito
pela vida. Estas discussôes correm paralelas as questoesfun-
damentais de bioetica, mas serào tratadas àluz dosfenomenos
demogrâficos actuais. Este exame levar-nos-â assim para além
dos preâmbulos e conclusoes da liberalizaçào do aborto...

Lovaina-a-Nova, Epifania de 1994.

19
ADVERTENCIA

As remissôes no texto referem-se


ao numéro de ordem das questôes.
CAPITULO I

INTRODUCAO

1
1. No que respeita ao aborto, nâo estarâo os cristâos
a querer itnpor a sua moral as outras pessoas?

Os cristâos nâo têm o monopôlio da defesa da vida


humana. O respeito pela vida humana é um preceito
fundamental da moral Universal, proclamado por todas
as grandes civilizaçôes, e représenta o tecido de toda a
sociedade democrâtica1. Se o direito à vida nâo for
respeitado e protegido, todos os outros direitos estarâo
ameaçados (cf. 59). O exercïcio da liberdade exige o
respeito pelo direito à vida. Na Bélgica, por exemplo,
a lei de 1867, que reprime o aborto, foi votada por um
governo e uma maioria libéral. Os cristâos estavam,
nessa altura, na oposiçâo2.

'Cf. Evangelium Vitae, 91. A propôsito da democracia e da "regra de ouro",


v. Michel Schooyans, L'Enjeu politique de î'avortement, Paris, L'Œil, 1991, pp.
99ss., 112,198, e cap. iv.
2UEnjeu politique de l'avortement, cit., p. 59, n.° 4.

23
2. Existera dados sobre o numéro de abortos praticados
no mundo?

Os dados disponïveis sâo hoje mais numerosos que ha


vinte anos, mas devem ser sempre analisados com
prudência. Em primeiro lugar porque é difïcil coligi-
-los. Por outro lado, segundo as teorias a demonstrar,
assim estes dados aparecem empolados ou minguados.
Seja como for, as estatïsticas sâo, de certo modo,impos-
sïveis de confirmai:.
De acordo com os dados da Organizaçâo Mundial
de Saûde (1990), estariam a ser praticados entre 40 a 60
milhôes de abortos por ano no mundo1. Ainda que os
numéros sejam analisados com uma certa réserva,
devem merecer uma reflexâo. Quarenta milhôes é
aproximadamente o numéro de mortos da II Guerra
Mundial. Quarenta milhôes de abortos por ano é uma
hécatombe sem précédentes na Histôria. E ao mesmo
tempo um desastre demogrâfico e um desastre moral.
'Cf. Michel Schooyans, La dérive totalitaire du libéralisme, Paris, Editions Uni
versitaires, 1991, p. 75. Ver os très volumes elaborados pelo Department of
Economie and Social Development da ONU, Abortion Policies: A Global
Review, Nova York, United Nations, 1992. Sobre o caso francês, v., i.a., as
publicaçôes da Association Pour la Recherche et l'Information Démo
graphique (APRD - 12, Rue Beccaria, 75012, Paris). Cf. particularmente o
dossier colectivo L'enjeu démographique, 1981, especialmente as pp. 43ss.
Amesma associaçào publicou em 1979 um Dossier avortement: les vrais chiffres,
com introduçào de François Dumont, sobre «o dever de informai-» (pp. 2ss.).
Este famoso especialista em demografia publicou também dois artigos sobre

24

1
o mesmo problema: «Le nombre véritable des avortements. On ne doit pas
déroger à la vérité des chiffres», em La Croix-VÉvénement (3 e 4 de Marco de
1991); e «Avortement: le refus de voir», em L'Homme Nouveau, de 18 de Abril
de 1993. Sobre o caso inglês, ver o estudo.de R. Whelan, Légal Abortion
Examined. 21 Years qfAbortion Statistics, Londres, Spuc Educational Research
Trust, 1992.

25
CAPITULO n

A CRIANÇA NAO NASCIDA


3. A criança nâo nascida é um ser humano?

Mesmo as leis que liberalizam o aborto começam por


proclamar o carâcter humano do ser que em certos
casos autorizam a que se mate. O art. 1.° da lei france-
sa Veil-Pelletier é um caso tïpico desta incoerência:
«A lei garante o respeito por todo o ser humano desde
o inicio da vida. Este principio apenas poderâ ser
atingido em caso de necessidade, segundo as condiçôes
definidas pela présente lei.»1 Este processo é chamado
por vezes «tâctica da derrogaçâo»: enuncia-se um
principio indiscutivel para logo a seguir enumerar
condiçôes ou circunstâncias em que a lei define que
nâo se aplicarâ (cf. 31, 61, 65)2. Este processo repete-se,
com regularidade, em projectos e propostas de lei re-
lativas à eutanâsia.
No caso da criança concebida, é exactamente porque
ela é um ser humano que se prétende impedir que
nasça. Sabe-se que o ser que agora se anuncia sera em
brève um bébé, depois um adolescente e mais tarde um
adulto. E precisamente por ele representar uma
promessa de bébé, de adolescente e de adulto, que
querem suprimi-lo.

'Cf. L'Enjeu politique de l'avortement, cit., pp. 48, 53.


2V. Evangelium Vitae, 4,18,101.

29
4. Por que razâo certos partidârios do aborto puseram
em dûvida o carâcter humano da criança nâo nascida ?

Cada vez que o homem procura argumentos para


explorar ou exterminar o seu semelhante, coloca em
dûvida a natureza humana de certos seres.1
Na Antiguidade, os escravos eram considerados
coisas, e os bârbaros eram homens de segunda catego-
ria.2 No século XVI alguns conquistadores viam os
indios como «animais de aparência humana». Os nazis
consideravam que certos homens eram «nâo-homens»
(Unmenschen). A tais classificaçôes arbitrârias, ditadas
pelos grandes, correspondiam discriminaçôes reais que,
por seu lado, "legitimavam" a exploraçâo ou o exter-
minio (cf. 32).3

'A respeito da natureza humana da criança nâo nascida, ver Jérôme Lejeune,
L'enceinte concentrationnaire, Paris, Le Sarment-Fayard, 1990.
2Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, Paris, Éditions Universitaires, 1991,
p. 173.
*Evangelium Vitae, 60.

30
5. Os progressos da biologia permitem duvidar da
natweza humana da criança antes do nascimento ?

Em medicina veterinâria ninguém pergunta se um


embriâo de câo é dotado de vida felina, ovina ou bo-
vina.

O resultado da procriaçâo humana é um ser


humano. A natureza humana do embriâo résultante do
encontro de um homem com uma mulher foi apenas
trazido à discussâo por aqueles que queriam inventar
premissas para «justificar» o aborto ou as experiências
com embriôes (cf. 69).1
E, de resto, significativo e revelador que certos adep-
tos do método de fecundaçâo in vitro com transplante
do embriâo ('fivete') se considerem moralmente preo-
cupados com o futuro dos embriôes que permanecem
in vitro e nâo sâo transplantados in vivo.2

{Evangelium Vitae, 63.


2Examinâmos os problemas morais surgidos com a 'fivete' em Maîtrise de la
vie, domination des hommes, Paris, Éd. Lethielleux, 1986 (v. maxime pp. 53-100).
Ver também, do Dr. Philippe Gauer, Le choix de l'amour. Diagnostic anténatal,
Paris, Téqui, 1989. V. ainda a sua tese de doutoramento em Medicina de
Benoît Bayle, La destruction de l'embryon humain dans la société contemporaine
(Paris, Faculdade de Medicina Cochin Port-Royal, 1992) —depois de se
referir ao aborto, à esterilizaçâo (stérilet), à contracepçâo, à esterilizaçâo femi-
nina e à procriaçâo medicamente assistida, o autor interroga-se sobre a
«sociedade embricida» e propôe uma «contra-revoluçâo sexual» baseada no
respeito pelo embriâo humano.

31
6. Quando a criança nâo é desejada, o aborto justiji-
ca~se?

a) Nâo existe nenhum critério para dizer que um bébé


desejado sera feliz, ou que um bébé nâo desejado sera
mal-amado ou infeliz. Nâo faltam crianças felizes que
nâo haviam sido 'previstas' pelos pais; nem faltam
crianças infelizes que foram'desejadas'. Os carrascos de
crianças desejam tê-las.
Além disso, convém reparar que, mesmo se a criança
foi desejada, ela représenta sempre um risco, até
mesmo muitos riscos, tanto para os seus pais como para
a sociedade. Nâo podemos esquecer que uma criança
desejada antes do nascimento pode vir a ser indesejada
depois do nascimento, seja por causa da sua evoluçâo
(delinquência, por exemplo), seja por mudança na
relaçâo entre os pais (desentendimentos, por exemplo).
Assim, impôe-se uma educaçâo para o acolhimento.
b) Acrescente-se ainda que, nos meses de gravidez, a
psicologia da mâe passa quase sempre da contrariedade
à aceitaçâo, e da aceitaçâo ao amor. O desejo de que a
criança venha ao mundo nâo se detém no momento
em que toma forma, no inïcio da gravidez; progride,
amadurece.Talvez nem todos nos tenhamos sido dese-
jados; mas temos a certeza de ter sido acolhidos.
Para além disso, o ambiente natural de acolhimento,

32

i
para a criança, é o casai unido, onde dois seres hu-
manos constituem uma familia, ou seja, formam um
projecto que inclui duraçâo, fidelidade e confiança para
enfrentar, juntos, os imprevistos (cf. 63). Hâ todo um
clima que deve ser desenvolvido na sociedade, pois esta
muitas vezes dissuade os casais de projectar e procriar,
ou culpabiliza aqueles que têm filhos.

33
7. A criança desejada nao éfruto da paternidade respon-
sâvel ?

Aûnica paternidade digna do homem é a paternidade


responsâvel (cf. 121). Ninguém o contesta. Sendo
assim, exige-se de cada casai um certo planeamento
dos nascimentos. Mas o que vem a ser este planea
mento ? Significa dominar totalmente a fecundidade,
por todos os meios - contracepçâo radical, aborto,
esterilizaçâo, eutanâsia das crianças com deficiência ?...
De facto, se admitimos que se podem eliminar todos
os indesejados, a sociedade humana destrôi-se. Se nâo
admitimos a presença dos outros, com as suas dife-
renças, a vida em sociedade torna-se insuportâvel, tal
como Sartre a define: «O inferno sâo os outros».1

xHuis clos.

34
8. Tendo em vista as técnicas de procriaçâo medicamente
assistida, nâo e normal que os pais exijam uma crian
ça de perfeita qualidade ?

Esta é a mesma lôgica que leva a sô aceitar uma crian


ça se ela for desejada, e a sô querer uma criança se ela
for de «perfeita qualidade». Nos dois casos, a criança
torna-se desejada nâo por si prôpria —ela é querida
apenas para satisfazer o desejo do casai. Se ela nâo for
desejada, o anûncio da sua chegada contraria a vontade
do casai; se nâo for perfeita, a criança é uma desilusâo
para a expectativa do casai (cf. 122).
Nos dois casos a vida da criança encontra-se em sus-
penso: a sua vida ou a sua morte estâo totalmente à
mercê dos que delà podem dispor.

35
i f

9. Como pode o desejo de uma criança de qualidade


conduzir ao aborto ?

Quando se parte do principio de que um ser pode vir


a existir porque é resultado de um desejo, admite-se
necessariamente que um ser pode ser privado da
existência porque nâo é resultado de um desejo.
A criança nâo desejada pode ser eliminada pelo sim
ples motivo de nâo ser desejada. A criança que nâo
corresponde à qualidade requerida pode também ser
eliminada pela simples razâo de nâo apresentar as qua-
lidades que se esperam delà.
É isto que explica que as «indicaçoes» de aborto
tenham tendência a diversificar-se e a multiplicar-se
A multipHcaçâo das indicaçoes «eugenicas» ou
«ortogénicas» de aborto sâo o corolârio de uma visâo
que reduz a criança a um objecto de desejo.

36

I!
10. Tornâmo-nos sensiveis à qualidade de vida. Militas
crianças concebidas serâo infelizes e nâo terâo acesso a
uma vida de qualidade. O aborto previne e résolve este
problema.

a) Existera algumas razôes que nos levam a pensar


que o contexto social no quai o nascituro viverâ
nâo é favorâvel à sua felicidade. Face a esta m-
terrogaçâo, podemos perguntar-nos quai sera a so-
luçâo mais humana: suprimir a criança, ou esforçar-
mo-nos por lhe criar melhores condiçôes de existên-
cia?
b) A proposiçâo agora analisada parte do seguinte
pressuposto: sô vale apena viver avida apartir de um certo
nivel de qualidade. É évidente que aqui nos encontramos
no âmbito do total subjectivismo.1 O que vem a ser
essa qualidade de vida, e onde se situa o tal nivel?
Reconhecemos que o que faz a felicidade de uns nâo
faz a de outros, e que o que faz sorrir Pedro, leva Joâo
a pensar no suicidio.
c) Se é legïtirao matar um ser humano porque ele
se arrisca a tornar-se tâo pobre que mais valia nâo
ter nascido, entâo é legïtirao matar todos os que,
hoje, morrem de fome. É évidente que ninguém
ousa defender esta consequência, e no entanto ela é
verdadeira. O erro do raciocinio surge assim clara-

37
mente: a soluçâo da pobreza nâo esta na supressâo do
pobre mas em partilhar com ele (cf. 136).
d) A nossa sociedade nunca foi tâo abastada. Séria
suficiente uma polîtica de ajuda à maternidade, bem
pensada, bem aplicada, bem controlada, para que qual-
quer criança dispusesse à nascença do minimo indis-
pensâvel para lhe garantir uma vida digna.

'Cf. L'Enjeu politique de l'avortcment, cit., cap. IX.

:,

'il

il '

38
I !
11. Em nome do direito à qualidade de vida} nâo se
deveria recusar a vida a um ser votado ao sofrimento ou
a uma deficiência?

Amaior ameaça que paira sobre a saûde é a ameaça de


perder a vida. Nâo se deve identificar a vida humana e
a qualidade de vida humana (cf. 23). Estas duas noçôes
nâo estâo no mesmo nivel, assim como nâo se encon-
tram no mesmo nivel a democracia e as qualidades (ou
os defeitos) da democracia. Vive-se num sistema
democrâtico ou num sistema totalitârio, por exemplo.
O facto de vivermos num régime democrâtico nâo
impede que esse régime comporte defeitos. É ne-
cessârio combater esses defeitos, mas a pior maneira de
os combater séria destruir a democracia (cf. 40, 59).
Trata-se aqui da mesraa questâo levantada na per
gunta 42.
Do mesmo modo, se uma criança tem uma défi-
ciência ou um velho se encontra preso a uma cama,
nem por isso deixam de viver uma existência humana1.
A sua enfermidade nâo représenta qualquer modifi-
caçâo intrinseca de esta realidade fundamental.
Significa isto que os direitos do homem sâo ine-
rentes ao ser humano porque ele tem uma existência
humana. A natureza humana encontra-se marcada no
seu corpo; a existência humana inclui uma dimensâo

39
corporal que lhe é essencial. Falar de qualidades fîsicas
ou psicolôgicas deste homem sô tem sentido relativa
mente a esta existência. Relativamente significa que sô se
fala de qualidades em relaçào a uma existência real, em
dependência desta.

^Evangelium Vitac, 63.

40
12. Quando se détecta uma malformaçâo na criança,
nâo é melhor recorrer ao aborto para a poupar a uma
vida indigna do homem?

a) Esta questâo liga-se à questâo précédente (cf. 11).


Perante uma criança com deficiência, quai é a soluçâo
mais humana: suprimi-lo ou ajudâ-lo a viver da me
lhor maneira possïvel, tendo em conta as suas capaci-
dades (cf. 15) ? Se a mâe e/ou a familia nâo se sentem
com forças para assumir esta situaçâo, deve a sociedade
forçâ-la a uma soluçâo desesperada, deixando-a supor-
tar sozinha aquele fardo, ou, pelo contrario, deve tratar
de ajudâ-la1?
b) O que é trâgico é que, em certos meios, a crian
ça é relegada à condiçâo de objecto de consumo: é
desejada por uma questâo de prazer (cf. 37). E tratada
da mesma maneira que um automôvel ou uni aparelho
de video: se agrada, fica-se com ele; se nâo, aborta-se.
A criança atingida por uma malformaçâo é, contu-
do, membro intégral da espécie humana; merece viver,
como qualquer outro ser humano. Se é eliminado por
causa da sua malformaçâo, do mesmo modo se
poderâo éliminai* aqueles que nâo nascem com a cor
da pelé ou o sexo esperado. Em suma, nâo é a criança
com deficiência que nâo é desejada; a sua deficiência é
que nâo o é.

41
v n

c) Tomemos o exemplo das crianças com trissomia


21, isto é, as crianças com raongolismo. Com que
direito podemos decidir que serâo infelizes? Se inter-
rogarmos os pais, a esmagadora maioria dira que estas
crianças sâo felizes; elas passam ao lado daquilo que
para as pessoas «norraais» constitui um problema. Mais
ainda, a maioria daqueles pais déclara ser feliz por ter
aquele filho, cujos irmâos toraam conta dele (cf. 13).
Algumas crianças com trissomia 21 sâo mesmo moti-
vo de reunificaçâo de casais vacilantes.
Também sâo conhecidos casos de crianças reduzidas
a uma vida vegetativa que transformaram totalmente a
vida dos seus pais, que, ao receberem-nas de braços
abertos, hoje lutam para que nâo haja crianças
rejeitadas...
d) Esta questâo vem também somar-se as précé
dentes no sentido de que podemos perguntar-nos o
que é que faz com que existência seja considerada
digna do homem. E évidente que existem casos trâgicos
e vidas para as quais, numa perspectiva humana, é difi-
cil discernir o sentido. Mas nâo sera atrevimento
declarar que este sentido nâo existe sô porque nâo
somos capazes de apreendê-lo ? Isto nâo dependeria de
uma opçâo intelectual e moral que nâo se pode justi
ficar racionalmente até ao fim? E depois, onde
localizaremos o nivel (limiar) a partir do quai a

1I 42

i,
existência é indigna do homem? Em França, aconse-
lharam uma mulher a abortar porque a criança que ela
trazia corria riscos de ser estéril2!

'Ver o belo livro de Jérôme Lejeune e Geneviève Poullot, Maternité sansfron


tières, Paris, VAL, 1986.
2Ver o exemplo referido em L'Enjeu politique de Vavortement, cit.,
pp. 50ss., n. 9.

43
13. O diagnôstico pré-natal permite detectar os mon
goloïdes. Perante este progresso da ciência, temos o
direito de deixar viver uma criança que sera uma cruz
para os pais e cuja vida nâo desabrocharâ ?

Conhecem o famoso baixo Ruggero Raimondi? No


dia 23 de Novembro de 1989, contou o seguinte no
prograraa Radioscopie de Jacques Chancel1. Raimondi
sô canta numa sala de teatro. Sô abre uma excepçâo:
canta para o seu quarto filho, Rodrigo, «que nasceu
com um cromossoma a mais». Ora, este pequeno mon-
golôide foi aceite, acolhido pelos Raimondi - pai, mâe
e très irmâos mais velhos. «Para a minha mulher e para
mim, o Rodrigo é hoje ura présente de Deus. Ura
dora do Céu. Permitiu-nos descobrir as profundezas
da aima, das quais nâo nos apercebïamos em nos
proprios [...].Tesouros que, em circunstancias normais
da vida, nâo «vemos» porque passamos ao seu lado.» E,
com a sua sensibilidade de artista, Raimondi acrescen-
tou: «Ainda hoje, quando as pessoas ouvem o terrao
mongoloïde, pensam que é de desprezar, de nâo deixar
nascer, de meter era hospitais ou em casas especiais. Eu
acho que é um erro monstruoso. As crianças mon-
golôides precisam de crescer no ambiente da famîlia. E
preciso amâ-las, envolvê-las em carinho. Ao vosso
amor respondem centenas de vezes mais, respondera

44
ao extremo! Nâo podem imaginai* a minha felicidade
quando estou com o Rodrigo e canto para ele. Ele ali
fica, a sorrir, e abraça-me, sem querer eu acabar. É
indescritîvel. O Rodrigo cativa-nos completamente.
Talvez porque se sente aceite, tal como é...».

'Sobre esta emissào, Yvonne Somadossi escreveu um magnïfico artigo:


«Pavane pour un enfant divin», in Le Soir (Bruxelas) de 20 de Dezembro de
1989. Cf. Evangelium Vitae, 14.

45
CAPITULO m

A MULHER: ESPOSA E MÂE


14.-4 mulher nâo é senhora do seu corpo?

Excepto nas regiôes onde ainda existe escravatura,


nenhum ser humano pode tornar-se propriedade de
outro (cf. 34) ou objecto do direito de outro1. Ora, a
criança nâo nascida nâo é um ôrgâo da sua mâe; é um
ser ûnico, distinto, com uma individualidade genética
prôpria. Este ser ûnico terâ uma evoluçâo original, sem
soluçâo de continuidade. Amulher nâo pode dispor da
existência deste ser do mesmo modo que, num dado
momento da histôria, o paterfamilias romano dispunha
dos seus filhos.2
Assim, deve-se clarificar um conceito preliminar:
que tipo de sociedade quereraos promover, para que
tipo de sociedade nos queremos dirigir. Queremos
uma sociedade que acolha todos os seres humanos, des-
de o momento em que a sua presença se torne real, ou
desejamos uma sociedade que reinstaure o privilégio
dos grandes senhores com a prerrogativa de disporem
da vida de outrem? Este ûltimo tipo de sociedade
assentaria sobre bases completamente diferentes das
que inspiram as sociedades democrâticas (cf. 17, 42);
numa sociedade daquele tipo adraitir-se-ia que os seres
humanos nâo sâo, igualmente, dignos de respeito.3
}Evangelium Vitae, 22.
2Cf. L'Enjeu politique de l'avortement, cit., p. 53.
yEvangelium Vitae, 72.

49
15. Uma vez que a mulher optou por abortar, nâo tem
de se respeitar a sua decisâo ?

Se alguém vem ter connosco dizendo que se quer sui-


cidar, podemos adoptar duas atitudes.1 Uma delas con
siste em ajudâ-lo a executar essa decisâo. A segunda
consiste em tentar perceber os problemas que o
empurram para o suicidio, e ajudâ-lo a resolvê-los, dis-
suadindo-o, assira, de se matar. O mesmo sucede face à
decisâo de praticar um aborto. Como unanimemente
se reconhece, o suicidio e o aborto (bem como a
eutanâsia) tem um aspecto em comum: é que sâo sem
pre um fracasso. Ora bera, devem empregar-se todos os
esforços para evitar ura fracasso (cf. 109)2.

lEvangeliwn Vitae, 66.


2Idem,58.

50
16. O direito de abortar, o direito da mulher a dispor
livremente do seu corpo, nâo éuma reivindicaçâo essen
cial dofeminismo?
s

E o cûmulo do machismo: permitir que os horaens rou-


bem a inteligência e a vontade das mulheres, levando-
-as a tornarem-se simples objectos de consumo sexual.1
a) Este mesmo machismo interiorizado pelas mu
lheres leva-as, de resto, a desejarem a sua «hormoni-
zaçâo», a sua mutilaçâo, ou seja a sua «desmaterniza-
çâo», quer dizer, a aniquilaçâo da sua natureza mater
nai2. Em certos meios, acontece em relaçào à esterili-
zaçâo aquilo que, em vârios paises de Âfrica ou do
Médio Oriente, acontece era relacâo à excisâo: as
mulheres esterilizadas acabam por apontar o dedo as
que nâo o foram!
b) Sob a pressâo do raovimento neomalthusiano, as
mulheres do século XX renunciaram à"vantagem com-
parativa" que, desde a noite dos tempos, detinham em
relaçào aos homens. De facto, desde que o mundo é
mundo, as mulheres detinham o segredo da fecundi
dade. No decurso deste século, consentiram era renun-
ciar a tal privilégio, a alienâ-lo. Partilham com os ho
mens o dominio da sua fecundidade ou cedera-lhes o
cuidado da sua gestâo.
'Cf. L'Enjeu politique de l'avortement, cit., pp. 124-126. 2Idem.

51
17.-4 lei que pune a prâtica do aborto é odiosa para a
mulher e ignora os seus direitos.

As leis que réprimera o aborto nâo contestam de


modo algum os direitos da mulher, antes realçam o
direito à vida da criança concebida, direito este que
hoje é escaraoteado. O que estas leis afirraara é que
ninguém pode dispor da vida de um inocente (cf. 60).
Elas apenas exigem que se respeite o principio gérai
caracterîstico de todas as sociedades democrâticas: a
igualdade de direitos de todos os seres huraanos era
relaçào à vida1. Assira, o carâcter pénal destas leis é ape
nas a consequência de um direito anterior, inalienâvel, da
criança nâo nascida. É a violaçâo deste direito que requer
e justifica uma sançâo pénal.

xEvangcliuin Vitae, 72.

52

iH
18. A democracia sô e entâo possivel mediante um min-
imo de moralidade polîtica ?

Era todas as sociedades, é preciso que as pessoas con-


heçara aquilo que favorece avida em conjunto eaqui
lo que a estorva1. A desonestidade dificulta a vida numa
sociedade justa; o mesmo se deve dizer das violaçôes.
Também o mesmo é vâlido para os assassinatos, sobre-
tudo quando a vitima nâo se pode defender. A lei nâo
pode evitar as transgressées, mas ela sanciona-as, deve
puni-las. Numa sociedade democrâtica podera existir
circunstâncias atenuantes ou agravantes para um assas-
sinato ou uma violaçâo, mas ninguém tem o direito de
violar ou de matar um inocente. O aborto nâo pode
ser considerado como um direito da mulher. Nâo é pelo
facto de a lei dizer que a violaçâo e o assassinato sâo
crimes ou delitos que estas acçôes odiosas se tornam
crimes ou delitos. E por estas acçôes serem odiosas que
a lei as pune.2

[Euangelium Vitae, 17ss., 70.


2Cf. L'Enjeu politique de l'avortement, cit., pp. 32ss., 45ss., 87.

53
19. A liberalizaçâo do aborto nâo deverâ ser considera-
da uma etapa importante na longa marcha das mulhe
res rumo à sua libertaçâo?

a) Juntamente com as crianças que nâo nascem, as


grandes vitimas do aborto sâo as mulheres, des-
pedaçadas no seu corpo e na sua aima; os grandes
beneficiârios do aborto sâo os homens, e quantos reti-
ram proveitos financeiros ou outros desta operaçâo.1
Areivindicacâo da liberalizaçâo do aborto, ou seja, do
aborto totalmente livre, evidencia brutalmente as
tendências falocratas da nossa sociedade (cf. 27).
b) Esta reivindicacâo mostra, uma vez mais, que as
mulheres podem tornar-se cûmplices objectivas dos
homens que se empenham habilidosamente na sua
exploraçâo. De facto, é por um terrivel paradoxe que
algumas mulheres se associam aesta reivindicacâo. De
facto, sâo os homens que, insidiosamente, acenam com
os pretensos «direitos» da mulher, enquanto, na reali-
dade, pretendem continuar a manter sobre elas a sua
dominaçào irresponsâvel.
•Cf VEnjeu politique de lentement, cit., p. 41, n.° 8. Sobre otraumatisme
provocado pelo aborto, v. Susan M. Stanford, Unefemme blessée, Pans, Le Sar-
ment-Fayard, 1989.

54
20. A dignidade da mulher nâo é mais honrada quando
Ihe ê atribuido o direito de abortar?

A liberalizaçâo do aborto significa uma regressâo grave


na procura paciente das mulheres em fazerem reco-
nhecer a sua dignidade.
Gracas a: esta liberalizaçâo:
9 9

—os homens criam condiçôes que lhes permitem


dispor, a seu gosto, e em qualquer altura, de qualquer
mulher;
— desde o primeiro instante, os homens declinam
qualquer responsabihdade em relaçào à criança que
ajudaram a conceber;
—os homens permitem-se dispensar-se de promover
quaisquer medidas para melhorar a condiçâo da mu
lher na sociedade;
— as mulheres tornam-se objectos de exploraçâo,
sendo-lhes por vezes oferecida —ou imposta —a este-
rilizaçâo como recompensa;
—exaspera-se nas mulheres um conflito, em grande
medida atiçado pelos meios de comunicaçâo social,
entre ambiente de trabalho, consumo, lazer —e mater-
nidade.

55

m
21. .4 liberalizaçâo do aborto respeita apenas a algumas
categorias particulares de mulheres ?

Algumas pesquisas realizadas em França e Inglaterra


demonstram que sâo sobretudo as mulheres sozi-
nhas, em particular as adolescentes, que recorrem ao
aborto.
a) Em Inglaterra, em 1978, 65% das mulheres que
abortaram eram solteiras, viûvas, divorciadas ou sepa-
radas. O fenômeno nâo é exclusivo de Inglaterra; em
França acontece o mesmo1.
b) Aexperiência mostra, em particular, o modo co
mo a liberalizaçâo do aborto provoca razias entre as
adolescentes, abandonadas sem defesa, desde o despontar
da sua vida de mulheres, a inûmeras exploraçôes,
degradaçôes e humilhaçôes2. Em 1978, em Inglaterra,
2,6% das mulheres que praticaram aborto tinham
menos de 16 anos.
c) Areflexâo sobre aliberalizaçâo do aborto révéla,
deste modo, nâo apenas a vulnerabilidade extrema da
criança, mas, mais ainda, a vulnerabilidade extrema da
mulher na sociedade. Como consequência, surge a
necessidade imperiosa de nâo deixar de referir, nos
debates, a promoçâo compléta da mulher ea protecçâo
da criança que vai nascer1.
'L'Enjai politique..., p. 19. 'Idem, p.19 ecap. xin. >Evange\hun Vitae, 99.
56
22. O aborto nâo traz, apesar de tudo, um certo alivio à
angûstia da mulher?

Pondo de lado o caso aberrante das mulheres que sa-


crificam o seu filho porque o consideram um obstâcu-
lo à sua carreira, as suas férias ou aos seus prazeres, as
futuras mâes angustiadas esperam que as ajudem, nâo
que se mate o seu filho. De resto, nâo é suprimindo
uma criança que se résolve a situaçâo de angûstia da
mulher (cf. 28). Na sua maioria, as mulheres que
provocam um aborto sâo mulheres sozinhas. A pesquisa
citada, levada a cabo em Inglaterra, révéla que 65% das
mulheres que praticaram legalmente o aborto eram
mulheres sôs (cf. 21). O aborto résolve o seu problema
de solidâo ? Nâo terâ, pelo contrario, agravado, a longo
prazo, esse problema? E preciso tomar consciência de
que a liberalizaçâo do aborto desobriga a sociedade de
ajudar a mulher em dificuldades. Perante o seu drama,
a mulher terâ de suportar sozinha a dilaceraçâo do seu
corpo e da sua aima; sera empurrada ainda com maior
angûstia para a sua solidâo. De facto - para nâo falar
dos remorsos - hâ uma angûstia «brève», que a impele
à decisâo de abortar, e uma angûstia «longa», que per-
manece depois do aborto.
De onde, antes de mais, résulta que hâ medidas a
tomar, com vista a ajudar as mulheres em dificuldade e

57
garantir a essas mulheres, durante a gravidez, um
«acompanhamento» discreto, eficaz e caloroso. Po-
derâo, assim, levar a sua gravidez até ao fim, nas melho-
res condiçôes possîveis, com a perspectiva de confiar o
seu filho a pais adoptivos, se o desejarem (cf. 111,113).
No fundo, um dos dramas do raundo em que vivemos
é que existem muitas crianças sem pais e muitos pais
sem crianças (cf. 124).

58
23. Contudoy quando a angûstia da mulher é extrema, o
aborto pode ser considerado um mal menor?

a) A moral corrente e o bom senso têm por norma que


entre dois maies inevitâveis deve-se escolher o menor, e
que o fim nâo justifica os meios, ou seja, nâo se pode
praticar o mal para que dai venha um bem (cf. 24). Esta
mâxima muito simples aplica-se no présente caso. Nâo
se pode matar uma criança na esperança de que isso
melhore a situacâo da mâe ou da sociedade.
9

b) O argumento segundo o quai haveria conflito de


valores também nâo se aplica neste caso. Com efeito, a
vida é o primeiro bem, o valor que condiciona o aces-
so a todos os outros valores (cf. 11)1. O direito à vida
da criança passa à frente de qualquer outro direito que
a sua mâe tenha em relacâo a outros valores.2

lEvangelium Vitae, 68.


2Cf. L'Enjeu politique de l'avortement, cit., cap. Il e IV.

59
24. Quefazer quando a vida da mâe e/ou a do bébé cor-
rem perigo ?

Trata-se de um problema que na prâtica, felizmente, se


tornou rarissirao. No entanto, as questôes nâo cessara
de aparecer com frequência. A que princîpios nos
podemos referir?
a) O facto de uma intençâo ser boa nâo é suficiente
para modificar o valor moral de uma acçâo. De uma
maneira mais simples: os fins nâo justificam os meios\
Assim, nâo se pode executar um inocente com o
objectivo de salvar a Pâtria. Salvar a Pâtria é uma boa
finalidade, mas tal bondade nâo justifica que se sacri-
fique um inocente. As circunstancias nâo sâo sufi-
cientes para modificar o valor moral de uma acçâo;
quando muito podem atenuar ou agravar a responsabi
hdade de quem a realiza.
b) O princïpio para a soluçâo desta questâo é simples:
nâo se escolhe entre a vida da mâe e a da criança. Nâo
se pode sacrificar uma vida inocente a uma outra vida.
No entanto, ao fazer tudo o que é possîvel para salvar
a mâe e préservai" a vida da criança, esta pode perecer
no momento da intervençâo. O que se prétende, acima
de tudo, é salvar os dois, mas, ao fazer tudo o que é
humanamente possîvel, pode acontecer que se chegue
a uma consequência indesejada: que a criança morra.

60

t
c) Querer provocar a morte, mesmo indirectamente,
de ura inocente, nâo séria nunca lîcito, mesmo se o fim
fosse bom: por exemplo, salvar a mâe. Contudo, pode
suceder que uma acçâo, certamente boa, como tratar a
mâe de um cancro, possa provocar um efeito funesto,
que nâo é querido nem desejado: a morte da criança
que esta mâe traz no seio.
d) Resumindo, pode suceder que ao tentar, honesta-
mente, salvar alguéra, outra pessoa venha a ser vitima-
da. Situaçâo semelhante é aquela onde se buscam as
vïtimas de um desabamento. Pôe-se todo o empenho
em salvar tudo o que pode ser salvo.
Quando praticamos uma acçâo de duplo efeito, um
positivo e outro negativo, nunca se quer o efeito nega-
tivo, resignamo-nos a ele; nâo o desejamos, toleramo-lo
(cf. 23).

]Evangelium Vitae, 63, 68.

61
25. Promover a mulher na sociedade implica assitn pré
venir o aborto ?

É a mulher que, em primeiro lugar, reconhece em si a


presença de um novo ser humano. E ela a primeira
pessoa convidada a acolhê-lo livremente, a primeira
que solicita aos outros que também o acolham.1
Promover a dignidade da mulher implica também
restabelecer o valor do papel insubstituivel da mâe na
sociedade. Em vez de culpabilizarmos as mulheres que
têm filhos, ou de nos perdermos em questôes bizanti-
nas sobre a existência ou nâo do instinto maternai, é
necessârio criar condiçôes para 'que as mulheres
tenham verdadeiramente possibilidades de serem mâes,
mesmo que nâo queiram ou nâo possam renunciar à
sua profissâo.

'Cf. Marie Hendrickx, «Quelle mission pour la femme?», in Louvain (Nova


Louvaina), n.° 4 (Abril de 1989), pp. 15ss.V. L'Enjeu politique de l'avortement,
cit.,p.l20,n.°4.

62
CAPITULO IV

A VIOLAÇAO
26. Nào se justificarâ oaborto em caso de violaçâo?

Sera possivel remediar uma injustiça cometendo uma


injustiça mais grave ainda?
A mulher vitima de violência sexual deve ser defen-
dida pelo poder judicial, que deve dissuadir os poten-
ciais violadores. Por outro lado, o aborto induz a com-
portamentos pouco respeitadores da mulher e conduz
à banalizaçâo da violaçâo (cf. 27ss.).

65
27. Perante o numéro de violaçôes, a possibilidade de
abortar é uma segurança de que a mulher dispoe.

Em 1990 houve 100 000 violaçôes nos Estados Unidos


da America, 6% a mais em relaçâo ao ano précédente,
12 violaçôes por hora... A liberalizaçâo do aborto cria
uma mentalidade de violência em que o mais forte
tem o direito do seu lado, e o mais fraco nâo consegue
resistir-lhe. Por esta via, conduz à banalizaçâo da vio
laçâo. É por essa razâo que, de um modo gérai, a libe
ralizaçâo tende inevitavelmente a expor ainda mais as
mulheres à influência dos homens, principais benefi-
ciârios destas legislaçôes (cf. 19).
Podemos aqui citar a histôria de uma jovem que
chegou à Bélgica sem grandes meios. Antes de sair do
seu pais, ela tinha sido violada. Estava grâvida e
resolvera manter a criança. O violador nunca apareceu.
Acontece que, anos mais tarde, esta jovem encontrou o
homem da sua vida; casaram-se e o seu marido perfi-
lhou mesmo a criança, embora nâo fosse o pai. Desde
entâo, este casai feliz teve vârios filhos...

66
28. Nâo se observa que uma das causas fréquentes do
aborto é o pai nao quêter assumir as suas responsabili-
dades em relaçâo à criança ?

Esta questâo pôe em destaque uma certa cobardia mas-


culina, e a complacência discriminatôria da lei em
relaçâo aos homens. Acontece que, em gérai, uma das
causas mais fréquentes do aborto é que o pai nâo quer
assumir as suas responsabilidades em relaçâo à criança
(cf.19,27)1.
Sera esta uma razâo para encorajar as mulheres à
prâtica do aborto ?A lei, que deve protéger a criança,
deve também protéger a sua mâe e qualquer mulher.
As mulheres em dificuldades nâo esperam a supressao
dos seus bébés, mas que as ajudem (cf. 22). Com a
nossa atitude de acolhimento, poderemos contribuir a
tornar qualquer maternidade numa fonte de grande ale-
gria.

]Evangelium Vitae, 53.

67
29. Certas situaçoes excepcionais, como a SIDA em
Âfrica ou as violaçôes na ex-Jugoslâvia, nâo justiftcarâo
medidas de excepçâo?

A questâo das violaçôes é semelhante à questâo dos


doentes de SIDA. A luta contra a SIDA, com a sua publi-
cidade obsessiva centrada no uso do preservativo, serve
outras causas, diferentes das da saûde1. O doente de
SIDA é por vezes considerado, nâo tanto uma pessoa
que précisa de cuidados médicos, mas um ser de que
outros se servem para travar outra batalha. O que esta
em jogo nesta batalha é a corrupçâo radical de uma
juventude de quem se abusa fîsica e psicologicamente
é a transformaçâo do mundo num imenso lupanar.
O mesmo se passa em relaçâo à violaçâo. Como
vimos recentemente por ocasiâo das violaçôes cometi-
das na ex-Jugoslâvia, a luta contra a violaçâo serve
outras causas, diversas da da defesa das mulheres vio-
ladas. As vitimas das violaçôes sâo consideradas, nâo
tanto como pessoas que devem ser ajudadas, mas como
seres de quem outros se servem para acelerar abanali-
zacâo do aborto.
Nos dois casos, argumenta-se, «nâo temos escolha»;
aqui, apresenta-se uma «situaçâo de angustia profunda»;
acolâ, uma «situaçâo de urgência». A liberdade - asse-
guram-nos - jâ nâo tem lugar; é preciso inclinarmo-
68
-nos perante as percentagens e as situaçôes. Estas situa-
çôes sâo tào constrangedoras que tudo se torna, de
repente, permitido.

*° "°f° artig° ^an-Paul II et le sida», em Famille Chrétienne, n.° 801


(20.05.1993), pp. 14-16; cf. Evangelium Vitae, 88.

69
CAPITULO V

A EUTANASIA
30. Como e que a legalizaçâo do aborto abre caminho à
legalizaçâo da eutanâsia?

O conceito de vida humana em que se inspiram os


partidârios da eutanâsia é, fundamentalmente, o
mesmo em que se inspiram os partidârios do aborto1.
Uns e outros consideram que a prôpria vida e a do
prôximo nâo têm outro sentido que nâo seja o que
lhes é dado pelo prazer, o interesse ou a utilidade (cf.
15). Se o outro constitui um obstâculo ao meu prazer,
ou se nâo me é util, posso suprimi-lo; e se o outro nâo
pode viver uma vida de prazer, a sua vida pode ser
suprimida (cf. 142).
Este ûltimo reparo mostra que ha uma ligaçâo real
entre a eugenia - hoje em dia apelidado eufemistica-
mente de ortogenismo - e a eutanâsia; quer se trate de
uma criança ou de um enfermo, a sua existência ape-
nas é admissîvel se nâo incomodar, ou se der prazer.
Assim se vê como uma sociedade hedonista, que
maximiza a busca do prazer, dégénéra, fatalmente,
numa sociedade de violência e de morte (cf. 34-39,
142ss.).

'Evangelium Vitae, 15.

73
31. Hâ quem aftrme que do aborto se deslizafacilmente
para a eutanâsia. Mas, apesar de tudo, nâo se trata de
dois problemas muito diferentes ?

a) Enecessârio verificar um facto: nos paîses em que o


aborto jâ foi legalizado surgem, rapidamente, projectos
ou propostas de lei visando a introduçâo da eutanâsia.
Além disso, entre as pessoas que militam a favor da
eutanâsia encontram-se muitas pessoas que militaram a
favor da legalizaçâo do aborto1.
b) E sabido que, para legalizar o aborto, se começa
quase sempre por infringir a lei e desafiar os juizes -
de modo a que a norma vigente seja mudada. Ora esta
tâctica do facto consumado é retomada no caso da
eutanâsia: pratica-se primeiro, para depois se legalizar.
Este processo de legalizaçâo obedece aum esquema jâ
experimentado e posto àprova. Primeiro surgem pro
postas timidamente defendidas, que sâo combatidas e
se afastam do nosso horizonte - mas logo voltam à
superficie com uma insistência implaeâvel. Apouco e
pouco, vao tomando conta da opiniâo pûblica e pôem
termo as reticências do legislador2. E acabam, fre-
quentemente, por triunfar graças à tâctica da derro-
gaçâo (cf. 3, 65)3.
c) Ahistoria contemporânea mostra também que os
partidârios da eutanâsia usaram, por vezes, um outro
74

%
caminho para atingirem os seus fins. AAlemanha nazi,
por exemplo, regulamentava o aborto; facilitava-o para
as raças ditas impuras, proibia-o as mulheres de estirpe
ariana. Mas foi sobretudo a esterilizaçâo em larga escala
que preparou os espîritos para a aceitaçâo da eutanâsia
(cf. 137).

'Evangelium Vitae, 63, 65. Cf. L'Enjeu politique de l'avortement, cit., pp. 42, 96,
206.
Hdem, pp. 14ss., 57, e cap. vin.
yEvangéiium Vitae, 18.

75
1
t

32. Como é que a sociedade alemâfoi levada a organi-


zar o exterminio em massa ?

A ideologia nazi foi preparada, naAlemanha, por teôri-


cos que exaltavam a superioridade da raça ariana. Esta
suposta superioridade, essencialmente de ordem
biolôgica, faz da raça apresentada como a mais forte
uma raça de senhores (dominadores) (cf. 69). A raça
"superior", com a noçâo de "super-homem" que a
define, situa-se moralmente para la do bem e do mal.
Encontramos aqui um vitalismo irracional, cujo
corolârio inevitâvel é o niilismo e o fascinio da morte
(cf. 142ss.). A sociedade no seu conjunto é organizada
em funçâo da pureza da raça, sempre ameaçada de
degenerescencia pelos fracos (cf. 55). E foi a partir
desta concepçâo absurda que a Alemanha hitleriana
organizou, de acordo com critérios discriminatôrios, a
esterilizaçâo, o aborto, a eutanâsia, a "soluçâo final".

76
33. Nâo terâo alguns factores econômicos reforçado a
influencia perversa desse vitalismo irracional ?

Depois da Primeira Guerra Mundial, o maréchal Hin-


denburg instalou na Alemanha uma economia dirigi-
da, estritamente regulamentada. A aplicaçâo da regula-
mentacâo foi confiada a uma rede de burocratas
omniprésentes.
Foi nomeadamente por esta via que o maréchal
abriu caminho a Hitler - cujo pensamento estava
imbuido de vitalismo irracional. Nomeado chanceler
em 1933, por Hindenburg, Hitler encontrou à sua dis-
posiçâo o aparelho burocrâtico necessârio para contro-
lar a economia. E, servindo-se da organizaçâo que
controlava a vida econômica, nâo teve dificuldade
alguma em controlar toda a sociedade alemâ.

77
CAPITULO VI

O CORPO DISPONIVEL

1
34. Sera que o nosso ordenamento juridico tende a aco-
Iher uma concepçâo de corpo que o considéra uuma
coisa"?

Do ponto de vista histôrico, o Direito ultrapassou uma


etapa decisiva quando começou a considerar a pessoa
humana como uma unidade intangivel, indivisivel, e,
por consequência, o corpo humano como "indis-
ponivel". Esta indisponibilidade significa que o corpo
nâo pode ser objecto de contrato, ou transacçâo, ou
venda, ou instrumentalizaçâo1.
A consciência da indisponibilidade do corpo ali-
mentou os movimentos que militaram a favor da
aboliçâo da escravatura.2 Assim considera-se, e bem,
que nâo faz sentido regulamentar a escravidâo.
E também a consciência da indisponibilidade do
corpo que esta na base da contestaçâo de que é objec
to o trâfico de carne branca. E é ainda essa consciên
cia que se encontra, desde o século xix, na origem das
reivindicaçôes operârias no sentido de obterem
melhores condiçôes de trabalho: o operârio nâo é uma
mâquina. Enfim, esta mesma consciência da indisponi
bilidade do corpo é particularmente afirmada em cer-
tos movimentos feministas que se batem contra o mito
da mulher-objecto.
No entanto, a distinçâo entre o mundo dos homens

81
e o mundo das coisas é actualmente posta em causa por
alguns. E este o custo fatal de um conceito da liber-
dade, que reduz o corpo a um objecto de prazer
(cf. 61).
Esta tendência résulta também das prâticas de que
tanto se orgulha a razâo tecnicista. Com efeito, muitas
dessas prâticas tratam com desenvoltura como objectos
nâo apenas tecidos ou ôrgâos do corpo mas os prôprios
corpos.

^Evangelium Vitae, 19.


2Estasreflexôes devem muito aVincent Bourguet,«Penser l'esclavage aujour
d'hui», France Catholique, n.° 2328 (08.11.1991), pp. 23-25.

82
35. Podem citar-se exemplos que demonstrem que o
corpo é tratado como um objecto ?

Quatro exemplos bastam para ilustrar as prâticas que


atentam contra a indisponibilidade do corpo.
Para começar, a fecundaçâo in vitro com transplante
do embriâo ('fivete', cf. 5), em que o embriâo pode ser
dado, vendido, submetido a experiências e destruido1.
Além deste método, temos, também, o bébé doador: uma
criança que é concebida para que se possam obter delà
as células que serâo implantadas noutra2. Além dos
bébés doadores, conhecemos as mâes de aluguer, prâtica
em que uma mulher se compromete a por o seu
prôprio corpo à disposiçâo de um inquilino e a entre-
gar, no termo de um prazo, um outro corpo —aquele
de que foi portadora - mediante certas condiçôes con-
tratuais anâlogas as que se usam para as coisas3.
Quanto ao aborto, também este consiste em dispor
discricionariamente de um corpo como se dispôe de
um qualquer objecto.
Torna-se, assim, claramente évidente que o principio
da indisponibilidade do corpo humano é, hoje em dia,
atacado seriamente, tanto na prâtica como em teoria4.

'Sobre este problema, v. a nossa obra Maîtrise de la vie, domination des hommes,
Paris, Lethielleux (col. «Le Sycomore»), 1986, maxime pp. 53-100.
2V. Le Monde, de 18-19.02.1990 e 06.06.1991; La Libre Belgique, 08.07.1991.

83
*Evangelium Vitae, 14.
''Cf. Jean-Louis Baudoin e Catherine Labrusse-Riou, Produire l'homme: de
quel droit? Étudejuridique et éthique des procréations artificielles, Paris, PUF, 1987,
maxime pp. 185-210: «Du droit des personnes au droit des biens».

84
36. Que consequências acarreta que se ponha em causa
a indisponibilidade do corpo ?

Na medida em que este principio é contestado, se nâo


rejeitado, o caminho fica amplamente aberto a novas
formas de escravatura\ A criança é considerada como
um "bem" (cf. 12, 97) a que se tem direito - e sobre o
quai se tem, mesmo, direito de vida e de morte (cf. 14).
O pobre pode ser "canibalizado", isto é considerado
como um viveiro de implantes; os seus ôrgâos "fres-
cos" estâo sujeitos a um mercado2. Por um determina-
do preço, o pobre separa-se de um ôrgâo do seu corpo,
aliena-o, aliena-se dele, é dele alienado.
Enfim, vemos emergir este fenômeno: a reduçâo da
populaçâo humana a "gado". Demasiados corpos pre-
judicam os equilibrios ecolôgicos e é, pois, preciso contin-
gentar o seu numéro para impedir que, pelo seu
numéro excessivo, os homens deteriorem o meio am-
biente (cf. 137). E preciso, afirma-se, respeitar as leis
da economia e evitar que os homens, demasiado
numerosos, prejudiquem o bom fiancionamento do
mercado.
Em resumo, trata-se de uma dinâmica iniciada, uma
vez que estas coisas que sâo os corpos nâo sâo pessoas,
pode-se dispor deles tanto antes como depois do nasci-
mento. A gestâo do gado humano deve obedecer a

85
|3 \
\'i k

ri
j.ê
regras semelhantes as que presidem à gestâo dos outros
(if bens materiais.
1
'Para uma anâlise pormenorizada, v. La dérive totalitaire du libéralisme, cit.,
:i 3 especialmente pp. 147-156,173-178, passim.
2Evangelium Vitae, 63.
"Idem, 23, 42ss.

I !

86
37. A liberalizaçâo do aborto nâo sera consequência de
uma nova percepçâo do corpo humano?

Uma concepçâo estreita da liberdade (cf. 61) abre fatal-


mente a porta a uma concepçâo redutora do corpo.
Apesar das aparências, a verdade é que assistimos hoje
a uma desvalorizaçâo do corpo. Apesar das aparências
assistimos, hoje, à sua desvalorizaçâo bem patente no
fenômeno da canibalizaçâo: considera-se que o corpo
humano é um reservatôrio de ôrgâos que se podem
sacar para praticar implantes1. Quando desligado da
pessoa, o corpo torna-se o lugar da amoralidade. A cor-
poralidade deixa de ser vista como a dimensâo da per-
sonalidade, graças à quai o homem se situa no mundo
e no tempo e graças à quai entra numa relaçâo inter-
pessoal com os outros sujeitos.
Isto é particularmente perceptivel no comportamen-
to sexual. O corpo é reduzido a um objecto de prazer
individual. A relaçâo sexual banaliza-se porque se des-
personaliza e se transforma numa simples fonte de pra
zer. Ora, como a relaçâo se despersonaliza, os parceiros
tornam-se intermutâveis. O que conta é a variaçâo, a
variedade dos prazeres. A razâo individual, que calcula
e compara os prazeres, é também chamada a aper-
feiçoar as técnicas mais apropriadas para satisfazê-los.
Também a criança é encarada de acordo com a arit-

87
mética dos prazeres (cf. 12). É vista ou como um corpo
I .
que incomoda e a que o aborto bem depressa porâ
! I'
fim; ou como um objecto que darâ prazer aos parceiros,
ou mesmo sô a um deles.

1Evangelium Vitae, 15; cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., pp. 122ss.

88

Ml
38. Nao se correrâ o risco de rapidamente vir a consi
derar o corpo uma coisa como outra qualquer?

Uma concepçâo despersonaUzadora do corpo conduz


forçosamente à sua exploraçâo comercial.
A exploraçâo, directa ou indirecta, do prazer sexual
individual transformou-se num poderoso estimulante
da actividade econômica, cientifica e tecnolôgica. Isto
é évidente no que respeita à contracepçâo e ao aborto,
sobre os quais velam com atençâo extrema os lobbies
especializados e mesmo a Mafia1. Segundo o Fundo das
Naçôes Unidas para a Populaçâo, o aperfeiçoamento
de um novo produto, antes da sua comercializaçâo,
requer um investimento da ordem dos 200 milhôes de
dôlares2, numéros que dâo uma ideia dos interesses que
estâo em jogo.
Isto esclarece, também, as razôes pelas quais convém
alargar ao mâximo o mercado dos fârmacos contra-
ceptivos e abortivos (cf. 122). O numéro dos clientes
potenciais ainda esta muito longe do dos consumidores
efectivos, e a passagem da primeira para a segunda ca-
tegoria sera facilitada pela divulgaçâo de uma moral
hedonista, pela permissividade dos costumes, pela
pornografia, e pela iniciaçâo à libertinagem sob pre-
texto de educaçâo sexual. Por sua vez, esta divulgaçâo
contribuirâ para a difusâo précoce das doenças trans-

89
mitidas sexualmente. Ora, se estas proporcionam as fir-
mas farmacêuticas uma clientela ampla e indefesa,
criam também dramas terrïveis nos individuos e nas
famîlias e pesam imenso sobre o orcamento de toda a
sociedade. Assim, a juventude é votada à depravaçâo
por empresas possuîdas por um cinismo que confina
com a loucura, enquanto a pesquisa cientïfica e a segu-
rança social permanecem desprovidas dos meios
necessârios perante a amplitude do problema.
Esta é, fundamentalmente, a mesma lôgica que,
partindo de uma concepçâo restrita da liberdade
humana, acaba por considerar que se pode dispor do
corpo humano como se dispôe de uma coisa. O corpo
é objecto de alienaçâo. Esquece-se uma verdade ele-
mentar: é demasiado redutor dizer que nos temos um
corpo, porque nos somos um corpo. Esta formula nâo
exprime a totalidade da antropologia, mas exprime
algo de essencial.

1L'enjeu politique de l'avortement, cit., p. 41.


2La dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 69.

90
39. Mas nao houve reticências das empresas farmacêu-
ticas as investigaçoes sobre produtos contraceptivos ?

Numa obra publicada em 1979, Cari Djerassi explica


que a pressâo exercida por algumas associaçôes de con-
sumidores, descontentes com os efeitos nocivos dos
produtos contraceptivos, poderia desencorajar as firmas
que fabricam esses produtos1. As mesmas firmas eram
tentadas a recuar perante pesquisas visando o aper-
feiçoamento de novos preparados contraceptivos.
A anâlise deste autor é tanto mais intéressante quan-
to mostra que a intervençâo dos poderes pûblicos se
torna indispensâvel para contornar o impasse criado
pelas reticências das firmas privadas. Invocaram-se,
entâo, os problemas demogrâficos, com uma insistencia
inusitada (cf. 82ss.), e retiraram-se daî os argumentos
necessârios para afirmar que os poderes pûblicos
deviam intervir (cf. 97ss.).
O "establishment contraceptivo" acabou por encon-
trar o "by-pass" graças à firma Roussel-Uclaf (cf. 77),
que beneficiou do apoio do governo socialista francês
para a preparaçâo da pïlula abortiva RU 486, financia-
da igualmente pela Organizaçâo Mundial de Saûde
(cf.95ss.).
O acordo de entendimento entre os poderes pûbli
cos e a célèbre multinacional franco-alemâ aproveitou

91
os ensinamentos produzidos pelos reveses sofridos
pelas firmas farmaceuticas norte-americanas. Mostra
como podem ser tomadas a sério as ameaças de
boicote que pesam sobre as firmas privadas que pro-
duzem drogas contraceptivas.

'Cf. Cari Djerassi, Tlie politics of contraception, Nova York/Londres, W.W.Nor


ton, 1979.

92
CAPITULO v n

A LEGISLAÇAO
40. «A lei reflecte os costumes; ora o aborto entrou nos
costumes, portanto deve ser legalizado.»

O que é realmente verdadeiro, nesta matéria, é que os


costumes seguem a lei: «Modificando a lei - afirma
Simone Veil - pode modificar-se todo o padrâo {pat-
terri) do comportamento humano»1. Os melhores
observadores concordam em reconhecer que muitas
mulheres, em França, em vez de abortar teriam encon-
trado outra soluçâo se nâo existisse a lei que liberaliza o
aborto (cf. 49). Um Estado democrâtico reconhece os
direitos dos seus membros à vida, à liberdade, à segu-
rança dos bens. Nâo se arroga a prerrogativa de
declarar quem de entre os inocentes tem o direito de
viver ou pode ser condenado à morte. Assim como
também nâo se arroga o direito de définir quem teria
o "direito" de roubar, de violar ou de matar. Um Esta
do que o fizesse perderia a sua natureza democrâtica,
na medida em que a introduçâo na lei de certas
infracçôes nâo poderia senâo favorecer a sua multipli-
caçâo à custa das pessoas e dos bens. Mas a fragilidade
da democracia é tal que ela pode transformar em leis
até aquilo que pôe em perigo a sua prôpria existência2.
Tomar este caminho pode levar muito longe se se
admite a eliminaçâo das crianças por nascer; depressa se
admitirâ - e admite-se jâ - a dos recém-nascidos

95
declarados anormais, dos doentes incurâveis, dos
velhos, de "todos os que estâo a cargo da sociedade"3.

lTimest 03.03.1975.
2Cf. L'enjeu politique de l'auortement, cit., pp. 34, 55, 99ss.
*Evangclium Vitae, 101.

96

\k
41. As leis que liberalizam o aborto nâo terao, ao me-
noSy a vantagem de limitar o numéro de abortos ?

a) O que é grave é ofacto de haver abortos, com ou sem


lei, seja quai for o seu numéro. As leis que liberalizam
o aborto agravam esta situaçâo (cf. 111), porque o que
as pessoas espontaneamente esperam da lei é que ela
corresponda a uma exigência de justiça, que ela nâo
esteja em oposiçâo a um principio fundamental da
moral, nomeadamente o respeito devido à vida. Para
mais, as leis liberalizadoras do aborto incitam ao aborto,
antecipam-no, banalizam-no, fazem-no entrar nos cos
tumes1.
b) Mais grave ainda, estas leis sâo as mais funestas de
toda a histôria da humanidade, ao menos por duas
razôes:
Cfiam um espaço juridico para o crime.
Corrompem a juventude, tornando-a incapaz de dis-
tinguir o bem do mal e destruindo nela o sentido da
justiça mais elementar.

'Cf. L'enjeu politique de l'avortement, cit., pp. 34, 57. A este respeito, v. o estu-
do estatistico, ûnico no género, coordenado por Robert Whelan, com uma
introduçâo de Hubert Campbell, Légal Abortion Examined. 21 Years ojAbortion
Statistics, Londres, Spuc Educational Research Trust, 1992.

97
42. «Em democracia, é a maioria que décide; o parla-
mento pode, pois, mudar a lei.»

E inexacto que a democracia se defina essencial-


mente pela aplicaçâo mecânica e cega da regra da
maioria1. Em 1931, na Itâlia, perto de 99% dos pro-
fessores universitârios prestaram juramento de fideli-
dade a Mussolini. E Hitler foi consagrado no parla-
mento.

É igualmente inexacto pretender que "democracia"


define uma sociedade em que seja quem for pode fazer
seja o que for e em que a liberdade pode transformar-
-se em licenciosidade. Os escravos, nas suas cabanas,
gozavam de uma "liberdade" sexual total.
O que caracteriza a democracia é anterior ao uso da
regra da maioria, sobre cuja base funciona um régime
desse tipo. Contudo, a democracia nâo se caracteriza
antes de mais por um modo de funcionamento das
sociedades2. No sentido moderno da palavra, a demo
cracia define-se essencialmente por um consenso fonda
mental de todo o corpo social tendo em vista o direito
de todos os homens a viverem - e a viverem com dignidade.
Este é o direito que deve ser promovido e protegido
(cf. 61, 62) antes de mais. Por consequência, é a neces-
sidade de protecçâo daquele direito primordial3 que
justifica que o legislador reprima as iniciativas dos
98
indivîduos que se arrogam o "direito" de dispor da
vida, da liberdade ou dos bens de outrem.
Quando o consenso acerca deste direito fundamen-
tal é abalado, corre-se o risco de regressar aos privilé-
gios, as injustiças e as crueldades dos séculos de ferro.
Abre-se a porta à barbarie. A ilusâo maior dos povos
ocidentais consiste em pensarem que estâo definitiva-
mente vacinados contra o regresso triunfante da bar
barie, uma vez que experimentaram todas as suas for
mas contemporâneas.
Em resumo, nâo se pode assegurar protecçâo légal
àquele que mata e privar desta protecçâo as suas vîti-
mas inocentes.

xEvangelium Vitae, 70.


2Idem, ibidem.
^Cf. L'enjeu politique de Vavortement, cit., pp. 23ss., 28,111,

99
1

43. Uma sociedade que queira proteger-se nâo pode


entâo dispensar as proibiçoes ?

Hâ que notar que uma proibiçâo nâo é senâo o rever


1 i
so negativo de uma vontade positiva de protéger um
valor, ou os indivîduos mais fracos. A proibiçâo de
roubar é o reverso da vontade de protéger os bens de
outrem.

E preciso, assim, em qualquer sociedade, que se saiba


onde se situam as transgressées; sem isso, volta-se à
selva. E preciso que haja proibiçoes, barreiras, e que
elas sejam conhecidas. Hâ sinais luminosos que devem
acender-se. Sendo os homens o que sâo, as interdiçôes
serâo, certamente, violadas; mas saber-se-â que é con
tra um bem que se caminha e que se esta a transgredir
esse bem (cf. 117).
O que hâ de perverso na liberalizaçâo e na despe-
nalizaçâo do aborto é que a lei positiva suprime as bar
reiras. Mais grave ainda: a transgressâo é apresentada
como um direito... ou mesmo um bem (legîtimo)
(cf. 18).
Résulta daï que categorias inteiras de indivîduos
humanos ficam subtraîdas à protecçâo da lei. Sera bom
augûrio para a sociedade futura ?1

xEvangelium Vitae, 90.

100
44. A leijâ nâo era aplicada. Nâo se estaria a desprezar
o Estado de direito ?

Para que exista um Estado de direito num paîs nâo


basta que neste exista uma qualquer legislaçâo e que
ela seja aplicada. Jâ para os Gregos nâo bastava a lei
como tal. Eles queriam a eunomia: a lei dévia ser boa1.
Pode acontecer que o Direito preste cauçâo à tirania
e legalize o despotismo. O facto de a China ter as suas
leis e de que elas sejam aplicadas, nâo significa que os
Chineses vivam num Estado de direito. Hâ Estado de
direito quando a lei esta ao serviço da justiça para todos
e nâo sô para o grupo mais forte ou mais numeroso2.
Se espero da lei que ela proteja a minha vida e a minha
liberdade, ela deve protéger também a vida e a liber-
dade dos outros, especialmente dos mais fracos.

xEvangelium Vitae, 90.


2Cf. L'enjeu politique de Vavortement, cit., pp. 25ss.

101
*
%

45. Hâ quem denuncie um "vazio juridico" em certos


paises. Nâo é inadmissivel que esse vazio exista ?
i '

Sempre que existe uma lei que reprime o aborto, hâ


magistrados que —por vezes na sequência de pressôes
—hesitam em aplicâ-la. Gera-se, pois, um vazio judi-
ciârio —por a lei nâo ser aplicada —e nâo juridico —uma
vez que a lei existe.
Este vazio judicial tem duas consequências. Por um
lado, priva a criança nâo nascida da protecçâo légal à
quai tem direito (cf. 43). Por outro lado, deixa as mulhe-
res desprotegidas face à impunidade habituai de que
gozam os homens (cf. 27) e face a todos aqueles a
quem intéressa incitâ-las a abortar1.

'Cf. L'enjeu politique de l'auortement, cit., cap. V.

102

m i M l u i l i j i m - l i u u i t»u . m i l — m .
46. Uma vez que hâ abortos, nâo vale mais legalizâ-los
e tornâ-los um acto medico, afim de que sejam pratica-
dos "em boas condiçoes" ?

Um acto médico nâo se define pela utilizaçâo de


instrumentos, medicamentos, instalaçôes hospitalares,
nem por se lançar mâo de conhecimentos ou técnicas,
nem mesmo, necessariamente, pelo diploma univer-
sitârio daquele que o pratica. O acto médico define-se
por uma finalidade: salvar a vida, melhorar a saûde. O
transeunte que faz respiraçâo artificial a um afogado
pratica um acto médico. O médico que colabore na
tortura nâo exécuta um acto médico. Nâo basta que o
carrasco seja substituîdo por um médico para dar a um
suplîcio a qualidade de acto médico.
Da mesma forma, o facto de o aborto ser realizado
por um médico e de as técnicas usadas serem altamente
aperfeiçoadas nâo é suficiente para transformar o abor
to num acto médico1.
Da moca à bomba de neutrôes, os homens nâo ces-
saram de "progredir" na arte de matar os seus seme-
lhantes "em boas condiçoes" (cf. 53). Em 1941, os
médicos SS de Auschwitz orgulhavam-se de ter
"humanizado" o extermïnio nos campos da morte:
tinham substituîdo o ôxido de carbono por um gâs à
base de cianeto (cf. 77). As violaçôes e os assassinatos

103
praticam-se sempre em mâs condiçoes (pelo menos
para as vîtimas).Vamos, pois, organizar centros em que
as violaçôes e os assassinatos se pratiquem em "boas"
condiçoes (para os seus autores), com supervisao mé-
dica?

'Cf. E.Tremblay, «Nature et définition de l'acte médical», in Laissez-les


vivre, Paris, Lethielleux, 1975, pp. 333-336.

104
i i
47. Pode reprovar-se que o legislador defina as condiçoes
necessârias para que o aborto seja autorizado ?

Liberalizar o aborto é sempre, em si mesmo, regula-


mentar o acto de matar. Para realizar a tarefa que se
propos, o legislador tem de estudar as modalidades
deste cerimonial funèbre. Mas a definiçâo destas
modalidades nâo conseguirâ esconder a decisâo ante-
rior de procéder à execuçâo de um ser inocente.
Séria, portanto, absurdo imaginar que a regulamen-
taçâo do aborto légitima o aborto, como que por
efeito de uma retroaccâo.

105
48. O facto é que hâ abortos clandestinos. Nâo valerâ a
pena legalizar o aborto para reduzir o seu numéro?

a) E certo e sabido que o numéro de abortos clandes


tinos foi empolado de maneira a assustar, e para levar à
mudança da lei. Como é que o sabemos1 ?
- Por declaraçôes de médicos que praticaram abor
tos clandestinos. Bernard Nathanson, por exemplo,
entende que o numéro de abortos clandestinos nos
Estados Unidos da America foi consideravelmente
exagerado2.
- Pela verificaçâo do efeito da lei sobre os indices de
natalidade, os quais diminuem apos a legislaçâo3.
b) A experiência francesa - como a de outros paîses
em que o aborto foi liberalizado - prova que a leiVeil-
-Pelletier nâo fez desaparecer os abortos pudicamente
chamados "nâo-recenseados". De acordo com algumas
estimativas, estes serâo mais ou menos tâo numerosos
quanto os abortos recenseados. O que équivale a dizer
que o numéro daqueles nâo diminuiu.
A implantaçâo de uma mentalidade abortiva incita,
inevitavelmente, as mulheres a praticarem o aborto por
motivos e em circunstâncias nâo previstas pela lei (cf.
51). Clandestinamente, pois, e em "mâs condiçoes"4.
Isto compreende-se facilmente em democracia, proibir
nâo faz sentido se nâo se previr uma sançâo; assim, a

106

JkL
despenalizaçâo contribui, inevitavelmente, para que se
crie uma mentalidade abortiva que multiplica o
numéro dos abortos legais e dos abortos clandestinos.
Foi deste modo que na Uniâo Soviética se chegou, por
vezes, a situaçôes em que havia mais abortos que nasci-
mentos.

'Cf. L'enjeu politique de Vavortement, cit., pp. 16ss., 77-98,136.


2Ibidem, p. 82.
MW.,p. 136.
AIbid.,ipp. 15ss.

107
49. Osjuizes nâo terâo poder para fazer respeitar uma
lei liberalizadora do aborto?

A experiência demonstra que a aplicaçâo das leis libe-


ralizadoras do aborto é praticamente incontrolâveP; a
manutençâo de uma legislaçâo preventiva, dissuasora e,
mesmo, repressiva é, por essa razâo, indispensâvel
—preventiva, porque hâ que prévenir uma agressâo
irreparâvel contra uma vida humana sujeita a ser eli-
minada pelos mais fortes;
— dissuasora, porque é preciso dissuadir a mâe de
tomar a decisâo de abortar, e dar-lhe soluçôes alterna-
tivas, eficazes e calorosas (cf. 28, 47, 111);
— repressiva, porque, numa sociedade democrâtica,
qualquer atentado contra a liberdade de outrem e, por
maioria de razâo, contra a sua vida, deve ser objecto de
sançôes, mesmo que, eventualmente, se tomem em
conta as circunstâncias atenuantes ou agravantes.

'Cf. L'enjeu politique de l'avortement, cit., pp. 15ss.

108
50. Nâo hâ diferença entre despenalizar o aborto (ou
seja, retirâ-lo do côdigo pénal) e liberalizâ-lo (ou seja,
tornâ-lo mais livre e mais fâcil)?

Entre a despenalizaçâo do aborto e a sua liberalizaçâo,


a distinçâo é muito precâria1. Despenalizar significa
que o aborto escapa à sançâo pénal, o que nâo quer
dizer, forçosamente, que ele seja permitido. Hâ casos
anâlogos, embora de ordem menor, bem conhecidos:
nâo se pune o roubo de um pâo cometido por um
miserâvel esfomeado; mas, seja como for, nâo se déclara
que ele é permitido. Numa sociedade democrâtica
em que, por assim dizer, é permitido tudo quanto
nâo é proibido, despenalizar o aborto équivale a
declarâ-lo nâo-punîvel e, na pratica, a autorizâ-lo, a
liberalizâ-lo, isto é, a transformâ-lo num direito
conexo as liberdades individuais. Despenalizar o abor
to significa aceitâ-lo, reconhecer-lhe direito de cida-
dania; é o mesmo que legalizâ-lo, ou seja cobri-lo
com a autoridade da lei. E, portanto, privar a criança
nâo-nascida de qualquer protecçâo légal no que
respeita à sua prôpria existência - protecçâo da quai a
penalizaçâo nâo é mais do que a consequencia lôgica
(cf. 17,43-45).
É évidente: o objectivo visado e a liberalizaçâo, isto
é, facilitar o acesso ao aborto. O meio utilizado e a

109
despenalizaçâo: promulgar uma lei que autorize o
aborto.

'Cf. L'enjeu politique de Vavortement, cit., pp. 33ss., 59,149.

110

tEÉUH
51. Nos debates sobre a legalizaçâo do aborto, por vezes
houve quem pedisse que o Estado desculpabilizasse o
aborto. Que significa este termo ?

Nâo contentes com o facto de o Estado legalizar o


aborto, hâ quem espère que o Estado desculpabilize, que
lhe retire toda e qualquer conotaçâo que évoque uma
culpa.
a) A prôpria palavra usada révéla a percepçâo confusa
de que o Estado, tal quai é concebido na nossa civi-
lizaçâo, ultrapassa a missâo que lhe esta confiada quan-
do liberaliza o aborto. Entâo, nâo hesitam em pedir a
esse mesmo Estado uma intervençâo que implica nâo
apenas um aumento das suas atribuiçôes mas também
uma mudança profunda na sua propria natureza.
O Estado ao quai se pede que diga o que é bem e o que
é mal, que diga quem pode viver e quem pode ser
eliminado, é um Estado empurrado pelos seus prôprios
cidadâos no sentido de uma dériva totalitâria}. A censura
atinge aqui, nâo sô a expressâo da verdade, mas a ver-
dade em si mesma2.
b) Instaura-se, assim, uma nova linguagem. E o triun-
fo do discurso ideologico perante o quai se devem
curvar a realidade e os comportamentos. Pode-se,
eventualmente, nâo acreditar neste discurso ideologico
— mas actua-se de acordo com ele. Esta nova gîria

111
provoca uma perversâo da razâo e da consciencia
moral que arrasta, por sua vez, à destruiçâo do sentido
de justiça (cf. 41).

'Cf. L'enjeu politique de Vavortement, cit., pp. 33ss., 122.


2Evangelium Vitae, 18, 24.

112

IL.
c a p i t u l o vni

OS ACTORES:
MÉDICOS E MAGISTRADOS
52. A pratica do aborto nâo ira modificar a imagem da
medicina ?

A legalizaçâo e a "medicalizaçâo" do aborto desenca-


deiam uma mudança radical na concepçâo que existe
do médico e da medicina1.
O médico que se vale da legalizaçâo do aborto pode
ter a impressâo de prestar um serviço à sua paciente
quando nela pratica um aborto. Mas é permitido pro-
por algumas interrogaçôes quanto à sua atitude
- Estarâ ainda este médico incondicionalmente ao
serviço da vida desde a sua origem ? Nâo estarâ ele a
por a sua arte ao serviço das conveniencias dos maisfortes
e a sacrificar aos interesses destes a existência do mais
fraco2?
- Nâo se arrisca o médico a exercer a sua arte ao
sabor das conveniencias do Estado ou de grupos domi
nantes? Nâo se torna, assim, um mercenârio preocupado
com servir um patrâo, nâo um doente3 —e nâo com a
protecçâo da vida e da saûde deste ?
- Sabe-se que existem, hoje em dia, médicos que
esterilizam, abortam (o que significa infligir torturas
terrîveis aos fetos e dar-lhes a morte), ou praticam a
eutanâsia activa, também apresentada, por vezes, como
"suicidio assistido". Verificamos, pois, uma mudança
qualitativa essencial na relaçâo médico-paciente (cf. 55)4.

115
- Além disso, estudos publicados recentemente
provam que certos médicos projectam associar-se ao
poder, participar nele e, até, realizar uma "gestâo esta-
tizada da vida". À eusta de quem se instalarâ esta tec-
nocracia médica? Das naçôes ditas desenvolvidas ? Do
Terceiro Mundo? Dos pobres5?
Daqui a necessidade de que cada médico divulgue,
sem ambiguidades, a sua posiçâo perante o respeito
pela vida e a sua posiçâo perante o poder polîtico. E a
necessidade de que os médicos que sâo servidores
incondicionais da vida se organizem no piano interna-
cional. Dar-se a conhecer é indispensâvel para ter cre-
dibilidade.

'Cf. L'enjeu politique de Vavortement, cit., cap. m.


2Idem, p. 41.
*ldem, pp. 37ss.; cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 165.
4Cf. L'enjeu politique de Vavortement, p. 39.
hldem, cap. xiv.

116
53. Poder-se-â encarar um desdobramento de personal-
idade nos médicos?

R. J. Lifton, um dos melhores especialistas contem-


porâneos no que respeita à medicina nazi, cita, a este
respeito, o doutor Miklos Nyiszli, médico prisioneiro
em Auschwitz: «De todos os criminosos e assassinos, o
mais perigoso é o médico assassino» (cf. 46, 75). R.J.
Lifton comenta: «O médico é perigoso - vemo-lo
agora, pela sua faculdade de se desdobrar de uma
forma tal que reveste de poderes especiais o seu eu
assassino, mesmo quando continua a proclamar a sua
pureza como médico»1.

'Robert Jay Lifton, Les médecins nazis. Le meurtre médical et la psychologie du


génocide, Paris, Robert Laffont, 1989, p. 502.

117
54. Nâo sera de temer uma ingerência da moral no
dominio cientijico?

A actividade cientifica é um comportamento tipica-


mente humano; e, como tal, esta subordinada a normas
morais como qualquer comportamento humano.
Como todos os homens, o cientista é um ser moral-
mente responsâvel. Deve-se denunciar o mito da
autonomia da ciência levada até ao amoralismo cientï-
fico. De contrario, chega-se a uma situaçâo na quai o
cientista tira partido das suas capacidades e dos seus
conhecimentos para se impor aos outros, ou fica a
soldo de chefes politicos que deles se servem. O gover-
no dos homens nâo pode transformar-se numa tec-
nocracia médica.

118
55. Como pode o médico ser levado a subordinar os
interesses dos indivîduos aos da sociedade?

Tem-se observado uma tendência crescente para politi-


zar a actividade médica. O que significa, aqui, politi-
zar? O médico é apresentado como sendo aquele que
conhece as leis da "ordem" e do "progresso" da
existência humana na sua dimensâo biolôgica. Por isso,
afirma-se, deverâ contribuir para a emergência de um
homem novo que melhorarâ a humanidade em gérai,
isto é, a espécie (cf. 69).
Baseado nestas premissas, o médico é levado, pro-
gressivamente, a pôr-se ao serviço do corpo social
(cf. 52);jâ nâo esta ao serviço dos indivîduos. Estes sâo
avaliados em funçâo da sua utilidade ou da sua nocivi-
dade no corpo social, que é o que importa. Diversas
categorias (cf. 56) de seres humanos —definidas, por
exemplo, segundo critérios raciais, médicos, econômi-
cos, etc. —representariam, por hipotese, uma ameaça de
degenerescência para o conjunto da espécie (cf. 32).

119
56. A pratica do aborto nâo ira modificar a imagem da
magistratura ?

A legalizaçâo e a "medicalizaçâo" do aborto prenun-


ciam uma mudança radical na concepçâo da magistratu
ra e do juiz
- A experiência mostra que, nos paises em que o
aborto foi liberalizado, os juizes nâo tem, praticamente,
nenhuma possibilidade de fazer respeitar a lei (cf. 49).
- E o que é ainda mais grave é que a maior parte das
legislaçôes liberalizadoras do aborto transferem para o
médico a competência do juiz. Estamos, aqui, perante
um novo caso de alienaçào. O juiz é desapossado da sua
funçâo primordial: fazer que a vida humana seja
respeitada, antes de fazer com que os bens sejam
respeitados.
- Disto procède que os juizes estâo, actualmente,
mais bem apetrechados para fazer respeitar a pro-
priedade do que para tutelar a vida de certas categorias
de seres humanos. Estâo até mais bem equipados para
protéger a vida de um criminoso do que a de um
inocente! Se os juizes sâo "alienados", quer dizer pri-
vados da sua competência para impor o respeito pela
criança ainda nâo nascida, ficarâo igualmente incapa-
citados quando se tratar do respeito pela vida dos
idosos, dos incurâveis, dos "incômodos", etc.

120
57. Como poderâ repercutir-se na sociedade politica a
atitude do juiz que se abstém de processar?

A atitude do juiz que se abstém de reprimir o aborto


é sempre invocada para pressionar o legislador. Este
inclina-se, entâo, para substituir-se ao juiz na apre-
ciaçâo das circunstâncias.
E o legislador nâo para neste ponto do caminho:
chega a solicitar ao executivo que recomende aos
magistrados que suspendam os processos.
Assim, a legislaçâo sobre o aborto descobre quanto é
real o perigo de confusâo dos poderes (cf. 58).

121
58. A legislaçâo liberalizadora do aborto poderâ
ameaçar a separaçâo de poderes e consequentemente a
qualidade democrâtica da sociedade?

A votaçâo das leis liberalizadoras do aborto disparou


um processo que torna precâria a separaçâo dos
poderes - a quai é um dos critérios essenciais da qua
lidade democrâtica de uma sociedade. No Direito oci-
dental, esta separaçâo é particularmente iluminada pela
distinçâo entre direitos do homem e lei positiva.
O legislador esforça-se por elaborar leis justas, ou seja,
que respeitem os direitos inalienâveis do homem.
Enuncia normas juridicas, formula direitos e deveres,
estipula penas que castigam a desobediência. A activi-
dade do legislador situa-se, pois, a um nivel de genera-
lidade que confère à lei um carâcter transpessoal. O seu
papel nâo é o de fazer com que a lei seja aplicada. Este
é o papel do juiz. E ao poder judicial que cabe apreciar
a responsabilidade subjectiva daqueles que sâo indicia-
dos por infracçôes objectivas à lei. O juiz nâo negarâ a
realidade do crime, mas, ao determinar a pena, terâ em
conta as circunstâncias atenuantes ou agravantes.
O legislador que legislasse em funçâo dos interesses
de particulares - indivîduos, grupos ou lobbies —daria
provas de parcialidade, de injustiça, de arbitrariedade,
de abuso de poder. Mas o juiz que se limitasse a uma

122

Ul
aplicaçâo mecânica e cega da lei acabaria, também, na
arbitrariedade e na injustiça.
Fica, assim, patente o risco que a legislaçâo sobre o
respeito pela vida faz correr à separaçâo dos poderes.
Se legislasse em funçâo dos interesses de uma potência
estrangeira, o legislador tornar-se-ia culpado de alta
traiçâo. Quando o legislador excède o seu poder,
alargando abusivamente a esfera da sua competência, o
juiz fica reduzido a executor das determinaçôes mais
ou menos arbitrârias do legislador. Nâo é preciso
acrescentar que este perigo é exacerbado sempre que a
lei é uma emanaçâo directa da vontade do executivo.
A lei e, com ela, a magistratura, arriscam-se a tornar-se
meros apêndices da administraçâo.

123
CAPITULO IX

O PONTO DE VISTA POLITICO


59. Como pode dejïnir-se a dimensao politica do
aborto ?

A liberalizaçâo do aborto pôe de novo em questâo a


"regra de ouro" - o principio que esta subjacente a
qualquer democracia: «Nâo faças ao outro o que nâo
queres que ele te faça a ti» (cf. 114,143)1. Este preceito
nâo é mais do que a formulaçâo pela negativa do
principio do respeito absoluto que devemos a outrem.
Qualquer derrogaçâo a este principio abala os proprios
fundamentos da democracia. A igualdade primordial
entre os homens é a igualdade de todos perante o
direito à vida.Todos os outros direitos dependem deste
(cf. I)2.

}Evangelium Vitae, 76.


2Idem, 72.

127
60. Nâo haverâ, contudo, nenhuma possibilidade de
excepçâo a esta regra?

É preciso que tenhamos présente que, quando se


décide abortar, decide-se suprimir uma vida humana.
Este ponto jâ nâo é contestado, mesmo pela grande
maioria dos partidârios do aborto (cf. 3). A questàofinal
consiste, portante, em saber se existe alguma razâo que per-
mita matar um inocente (cf. 17, 68)1.
Poderia, por exemplo, alegar-se que se dispôe do
direito de suprimir todos aqueles para quem a vida, a
nosso ver, for indigna de ser vivida (cf. 71). Foi assim
que Karl Binding, um jurista alemâo do principio do
século, fabricou um Direito "legitimando" a supressâo
daqueles «cuja vida nâo era digna de ser vivida»
doentes, idosos, déficientes - a lista poderia alongar-se,
e efectivamente alongou-se na nossa época2.

lEvaitgeîhim Vitae, 57, 77.


2Idemt 64.

128

1
61. Nâo sera essencial, para uma sociedade democrâti
ca, favorecer ao mâximo a liberdade dos indivîduos?

A vontade de liberalizar o aborto explica-se pela con


cepçâo extremamente redutora da liberdade (cf. 37)
que têm muitos dos nossos contemporâneos (cf. 118-
-121). Esta concepçâo é de tal modo extremista que jâ
nâo deixa lugar para a ideia da igualdade entre os
homens nem, por consequência, para a ideia do dever.1
a) Segundo esta concepçâo, a liberdade consiste em
que cada individuo faça tudo o que lhe parece e do
modo como lhe apetece. A consciência individual pro-
duz, a cada instante, a norma moral que lhe convém
nas circunstâncias. Esta concepçâo de liberdade leva a
considerar que os homens nâo têm de ter como refe-
rência um bem que devam procurar ou um mal a evi-
tar. Cada um defme a seu bel-prazer tanto o bem
como o mal. Foi por isso que Joâo Paulo II, na sua
enciclica .Veritatis Splendor, lembrou que a verdade é
que deve orientar a liberdade, e nâo o inverso, e que a
verdade nâo é uma "criaçâo da liberdade"2. Ninguem
pode définir o que é bem e o que é mal a seu bel-pra
zer3.
b) É por esta razâo que numa sociedade muito mar-
cada pelo individualismo tudo se torna "negociâvel",
desde o aborto à eutanâsia, passando por todas as for-

129
mas de discriminaçâo.Jâ nâo ha uma pesquisa comum
do bem;jâ nâo hâ um esforço convergente em prol da
justiça. A propria ideia do bem comum perde o sentido;
existe apenas o bem particular. Na sociedade jâ so hâ lugar
para o compromisso. O que é preciso é trocar pontos
de vista usando defair-play, usando uma tolerância total
(cf. 62) para com aquilo que cada quai considéra, no
momento présente, bom ou mau.
Para evitar ao mâximo os inconvenientes da con-
vivência com outros indivîduos, para nâo soçobrar na
anarquia, é, pois, necessârio harmonizar os interesses
particulares. Todas as opçôes sâo "igualmente
respeitâveis" —mas isso nâo impede que, por razôes de
utilidade ou de interesse, seja preferîvel ficar-se por
uma moral meramente "processual"4. E o triunfo dos
comités de ética em que se procède caso a caso sem
referência a princîpios morais normativos e universais.
Daî, a invocaçâo da tirania da maioria (cf. 42) e a tâc-
tica da derrogaçâo (cf. 3). Neste ûltimo caso, em par
ticular, transferem-se para o direito os processos da
casuistica: do mesmo modo que esta corrompe a moral,
a tâctica da derrogaçâo perverte o Direito. Recusa-se,
à partida, qualquer referência aos princîpios gérais do
Direito, por forma a que este se acomode aos prazeres
e aos interesses daqueles a quem se quer agradar5. E
opera-se o retorno triunfante da sofisticct. O que é

130
proibido aqui e agora poderâ ser permitido ali e ama-
nhâ, porque o que conta, sempre e em toda a parte, é
incomodar o menos possîvel os indivîduos, que por sua
vez desejam serem incomodados o menos possîvel.
c) Deixa, portanto, de haver espaço para uma moral
aceite por toda a gente, que seja como que a teia do
tecido comunitârio humano. Com efeito, nesta con
cepçâo da liberdade tudo é relativizado. A propria ideia
de uma declaraçâo universal dos Direitos do Homem
torna-se vazia de sentido. Nâo hâ nada mais que indi
vîduos; e a exaltaçâo, até ao paroxismo, da liberdade de
cada um é promessa segura de um futuro de divisôes
sobreexcitadas entre os homens.7
d) As democracias ocidentais enfraquecem, porque,
em vez de se referirem a valores —como a verdade, a
justiça, a solidariedade - sâo governadas a partir do con-
senso proveniente de determinaçôes puramente
"processuais". Nacionais ou internacionais, as assem-
bleias polîticas tornaram-se por assim dizer comissôes
de ética alargadas, em que os mais fortes se esforçam
por fazer prevalecer um consenso que esteja de acordo
com os seus interesses.
e) Quando se récusa o reconhecimento a todos os
homens dos mesmos direitos fundamentais, torna-se
impossïvel criar uma sociedade mais justa e mais
humana.

131
f) Em suma, esta concepçâo ultra-individualista da
liberdade volta-se contra a prôpria liberdade. Com esta
concepçâo da liberdade, a dimensâo polîtica da
existência humana é totalmente recusada e cai-se na
anarquia. Esta significa a ausência de princîpios, de autori-
dade légitima emportante, de umgoverno que cuide do bem
comum.8

lEvangelium Vitae, 4.
2Estes temas sào centrais na enciclica Veritatis Splendor, de Joào Paulo II.
(V todo o cap. il, n.°' 28-83, e especialmente o n.° 35.)
*Evangelium Vitae, 20, 96.
4Idem, 68.Ver as discussôes suscitadas pela obra deJohn Rawls A Theory ofJus
tice (cf. éd. da Oxford University Press, 1971).
5Cf. Pierre Cariou, Pascal et la casuistique, Paris, PUF, 1993.
6Cf. L'Enjeu politique de Vavortement, cit., pp. 89-101.
1Evangelium Vitae, 18.
*Idem, 72.
;•

il i1

132
62. A tolerância nâo significa que todas as opinioes sâo
respeitâveisy incluindo as dos que preconizam o aborto e
a eutanâsia?

a) As sociedades democrâticas que emergiram da Idade


Moderna fazem todas referência à universalidade dos
Direitos do Homem. E sobre esta referênciafondamen
tal que se inscrevem as diversas prescriçôes positivas
que visam garantir esses direitos1. O direito à vida, à
liberdade, à propriedade é objecto de disposiçôes legais
"variâveis", mas estes direitos, em si mesmos, sâo sem
pre protegidos. Tanto o pluralismo como a tolerância
exercem-se, sim, mas no quadro do respeito pelos direitos
fundamentais do homem (cf. 42). Neste sentido, com-
preende-se o que é a tolerância civil: nâo é mais do que
o reconhecimento e o respeito das pessoas (cf. 59).
E neste sentido que o Estado moderno é civilmente
tolérante e pluralista2.
b) E esta tolerância civil que é posta em causa por
aqueles que derrogam (cf. 3, 61), por via légal, o direito
fondamental à vida devido a todos os seres humanos; e
que, por consequência, se arrogam o "direito" de dispor
da existência das crianças nâo-nascidas e dos seres
declarados "inûteis".
c)Verifica-se, entâo, que por um curioso paradoxo, a
tolerância civil é hoje em dia atacada em nome da tole-

133
rância doutrinal ou do pluralismo doutrinal. Com efeito,
segundo estas orientaçôes, a ética é simplesmente
"processual", uma vez que todas as opiniôes sâo "igual-
mente respeitâveis" (cf. 61). Portanto, se triunfar a
opiniâo de acordo com a quai "esta ou aquela catego-
ria de seres humanos nâo é digna de viver", os seres
humanos assim catalogados - por uma maioria -
poderâo ser eliminados legalmente.
d) Esta forma de conceber a tolerância doutrinal ou o
pluralismo doutrinal marca pois, numa dada sociedade, o
desterro da tolerância civil em nome da tolerância doutrinal.

lEvangelium Vitae, 70.


2Analisâmos este problema em Droits de l'homme et technocratie, Chambray,
CLD, 1982, pp. 28-32, e em Démocratie et libération chrétienne, Paris, Lethielleux,
1985, pp. 70ss.

134
63. Porque éque o Estado tem um papel a desempenhar
a propôsito do aborto ?

A qualidade de um Estado avalia-se, antes de mais,


pela estima que demonstra pela vida humana. Quando
se agregam numa sociedade polîtica, os homens
esperam do Estado que ele proteja nâo sô os bens e a
liberdade mas, em primeiro lugar, a vida (cf. 42).
A hberalizaçâo do aborto opôe-se a esta dinâmica.
Esta hberalizaçâo significa nào sô que se récusa a
alguns seres humanos aprotecçâo da lei (cf. 41,43) mas
que se procède à destruiçâo das solidariedades naturais
antes mesmo que elas possam desabrochar'. No limite,
este processo destrôi a famiha e o tecido social (cf. 6,
123)2.
As campanhas pela hberalizaçâo do aborto jâ tinham
por objectivo, confessado por alguns, destruir acriança
porque ela é o elo mais fraco da cadeia famihar. Na
sequência do estudo encomendado ao prof. Jean-
-François Mattéi, o que se joga nos debates travados
sobre a bioética é, como fim ûltimo e principal, acele-
rar um processo de destruiçâo da famiha.
Pioneira na legahzaçâo do aborto, a França arnsca-se
a deslustrar, mais amda, a sua imagem na cena mterna-
cional ao fazer da destruiçâo da familia apnondade de
um certo messianismo repubhcano. Esta forma de gah-
135
canismo laico sô pode conduzir à destruiçâo do tecido
social —isto é, ao inferno.

]Euangelium Vitae, 93ss.


2Idem.

I 136
64. Nâo revelarâ uma perversâo do poder que o exerci-
cio deste possa custar a vida a inocentes ?

O poder totalitârio tem uma particularidade: a de nâo


admitir nenhum limite que provenha de Deus nem
contrôle nenhum proveniente dos homens sobre o
quai se exerce. Este poder utiliza todos os meios de que
dispôe para se afirmar e para ganhar terreno. Ora o
poder deve ser um serviço; ele esta ao serviço do bem
comum e é ordenado para a protecçâo de todos os
homens, a começar pelos mais fracos1.Todos os grandes
movimentos sociais que se desenvolveram a partir do
século XIX contestaram os abusos de poder cometidos
pelos mais fortes contra os mais fracos.
O sinal mais claro de que um poder, legitimo na
origem, esta a resvalar para o totalitarisme é que esse
poder ataca os inocentes. Quando essa dinamica esta
lançada, o poder degrada-se em mera força e fica pri-
vado de toda a legitimidade. Um poder assim é abusi-
vo; deve ser denunciado e combatido; faz da resistencia
activa um dever.2

]Evangelium Vitae, 52.


2Idem, 74, 89.

137
65. Se a ameaça do totalitarismo fosse real, nâo séria
manifesta para toda a gente e nâo provocaria uma
mobilizaçâo gérai contra ela ?

A histôria contemporânea ensina-nos que o totalitaris


mo se instala quer pela força, quer pela astûcia. Neste
ûltimo caso, a sua instauraçâo faz-se no mais estrito
respeito pela célèbre "tâctica do salame": acaba-se por
obter do adversârio, fatia a fatia, aquilo que ele jamais
concederia se lhe pedissem a mesma coisa por inteiro.
A "tâctica do salame" é pois muito semelhante à tâcti
ca da derrogaçâo: corrôi-se o respeito devido a um principio,
encarregando a lei de multiplicar e de banalizar os
casos em que o Direito positivo "justifica" as
excepçôes. Consente-sc na derrogaçâo.
O mal começa quando é promulgada uma lei iniqua.
E consumado sempre que essa lei é invocada para mas-
sacrar seres sem defesa1. E, nesse momento, de resto, a
procissâo pode seguir, e o catâlogo dos seres a mas-
sacrar pode inventariar novas categorias de vïtimas.
Ora, se é verdade que houve pessoas que foram con-
denadas por terem obedecido a leis iniquas, esquece-se,
frequentemente, que outras houve que foram conde-
nadas por terem intervindo a montante, isto é por terem
promulgado essas leis iniquas e as terem tornado
aplicâveis2.

138
Assim, quando se chega a pedir ao Estado que diga
quais sâo os inocentes que podem ser eliminados,
quando o autoriza a lei, e quando dispôe um ministro
de meios para prover à sua execuçâo —entâo, jâ é tarde
demais para que alguém se interrogue se ainda se vive
em régime democrâtico.

]Evangelium Vitae, 11.


2Idem, 68.

139
CAPITULO X

RUMO AO ULTRANAZISMO ?
66. O aborto sera um método moderno de discrimi-
naçâo ?

A histôria abunda em exemplos de discriminaçâo


(cf. 4). Ela ensina-nos também que a contestaçâo dessas
discriminaçôes e dos privilégios que as acompanham,
foi um potente motor para o estabelecimento de
sociedades mais democrâticas.
Ora discriminar é sempre invocar razôes pelas quais se
votam seres humanos à servidâo ou à morte. Por vezes,
discriminar é reiterar uma fraqueza objectiva através de
uma fraqueza légal.
O régime nazi discriminou os Judeus, os Ciganos, os
"nâo-homens" (cf. 60). Em Nuremberga, chamou-se a
isto "crime contra a humanidade"; desde entâo, a
memôria dos homens aliviou o peso destas recor-
daçôes incômodas.1
Outros régimes discriminaram os contestatârios ou
opositores, enviando-os, por exemplo, para asilos
psiquiâtricos. Actualmente, discriminam-se nâo sô as
crianças - e certamente, os adultos - atingidos por
malformaçôes ou deficiências graves (cf. 7, 67), mas
também os pobres (cf. 80-93).
A Hberalizaçâo do aborto legaliza uma discri
minaçâo nova: aquela de que podem ser vitimas,
impunemente, seres humanos que se encontram

143
num estado extremo de fraqueza e de depen-
dência.

xLa dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 265.

il
I
•!

1 I
i :

144
67. A ideologia em que se inspiram os partidârios do
aborto nâo é, ainda assim, diferente da ideologia nazi?

Hâ ao mesmo tempo diferenças de expressâo e uma


profiinda comunhâo de inspiraçâo. As justificacôes
explicitas sâo apresentadas sob embalagens diferentes,
mas as praticas nas quais vâo resultar sâo finalmente as
mesmas (cf. 142). Quando se trata de eliminar alguém
- judeu, cigano, déficiente, criança nâo-nascida ou
nâo-desejada, adulto doente-incurâvel - os motivos
invocados podem diferir, mas o horror é o mesmo.
Que importa que as ideologias sejam diferentes se as
praticas sâo iguais ?

145
68. No entanto, nâo importarâ concéder que, se as prati
cas sâo as tnesmasjâ as ideologias apresentam grandes
diferenças ?

As ideologias forjadas para "legitimar" o nazismo e o


aborto nào recorrem à mesma formulaçâo, mas têm
em comum que ambas "légitimant" discriminâmes total
mente arbitrârias entre seres humanos.1
Daï os pontos comuns aos ideôlogos do genocidio e
aos partidârios do aborto: nos dois casos, ooutro nâo é
reconhecido como um ser humano; nos dois casos, a
vitima é inocente (cf. 60, 64); a grande diferença con
siste em que os abortistas matam muito antes.
A isto é preciso acrescentar que, a acreditar nas
estatisticas da Organizaçâo Mundial de Saûde (cf. 2), as
vitimas anuais do aborto sâo incomparavelmente mais
numerosas que as vitimas do genocidio perpetrado
pelos nazis.

lEwmgelitim Vitae, 8.

146
69. Que ligaçâo hâ entre os ideôlogos da discriminaçâo
e os engenheiros biomédicos?

a) Os ideôlogos da discriminaçâo cozinham pseudo-


-morais nas quais explicam a engenheiros-médicos
complacentes que estes têm "justificaçâo" para eliminar
os seres humanos que nâo correspondam as "normas"
impostas pela ideologia.
Estes ideôlogos precisam que os engenheiros bio
médicos têm ' procuraçâo" para operar selecçôes
implacâveis "para o bem" de certos indivîduos, ou
de certa raça, ou da sociedade, ou da espécie -
dépende...
Assim, apôs ter procurado acabar com uma segre-
gaçâo fundada sobre as "classes sociais", o nosso século
aplica-se actualmente no instaurar de uma nova segre-
gaçâo fundada sobre "classes genéticas".1
b) Os ideôlogos da discriminaçâo conferem portan
to uma pseudo-legitimaçâo a mûltiplos abusos de
poder. Desprezîvel é o abuso do poder econômico,
polîtico, judicial. Mais desprezîvel ainda é o abuso do
poder médico. Mas o mais desprezîvel de todos, é o
abuso de poder intelectual, pois fere o homem na sua
inteligência, pela quai é o mais semelhante a Deus
(cf. 140).
Os tecnocratas da nova ordem mundial sâo usei-

147
ros e vezeiros destas formas refinadas de abuso de
poder.

1Evangelium Vitae, 63.

148
70. Nâo encontramos aqui, invocados em proveito da
sociedade, critérios anâlogos aos que sâo invocados em
proveito dos casais?

Os argumentos invocados pelas mulheres, ou seus par-


ceiros, em favor do aborto fundam-se sobre o interes
se, a utilidade, o direito ao prazer sem risco. A eficâcia
deve ser total quando se trata de evitar o "mal" que é
a procriaçâo - consequência eventual desse "bem" que
é o prazer (cf. 122). Os mais fortes podem portanto
conciliar o direito com as suas conveniências e "legiti
mar" o aborto.
a) Os interesses da sociedade humana sâo definidos
pelos mais fortes, concretamente pelos que vencem
e/ou se impôem. Aqueles que nâo vencem sâo um
estorvo à felicidade dos que conseguem obtê-la.
Ameaçam mesmo a sua segurança. Consideram os
ricos que a sua segurança é o fundamento do seu direi
to, e que têm justificaçâo para se defenderem contra as
ameaças vindas dos mais pobres, que, pelo seu grande
numéro, constituem um perigo para eles (cf. 137). É
portanto necessario conter a sua proHferaçâo por todos
os meios (cf. 107), até porque sâo insolventes sobre o
mercado mundial (cf. 97-99).
b) Foi uma diligência anâloga que se desenvolveu em
benefîcio, se assim se pode dizer, da sociedade (cf. 69).

149
Isto verificou-se desde 1926, na URSS, onde o aborto
foi legalizado para que a populaçâo pudesse ser total
mente submetida à exigência de planificaçâo imperati-
va pelo Estado. A URSS foi assim o primeiro paîs a
legalizar o aborto por razôes de Estado.
c) Em suma, e contrariamente ao que pensam os
ricos, verificamos que eles é que constituem uma
ameaça para os pobres.

150
71.-4 récusa de qualquer risco précipita portantoy
impiedosamente, numa espiral da pura eficâcia?

Intolerâvel para os parceiros sexuais, o risco é-o igual-


mente para a sociedade. É por isso que, partindo da
contracepçâo, a lôgica da eficâcia conduz ao aborto e
depois à eugenia (cf. 30), para finalmente desembocar
na eutanâsia (cf. 31)1.
Uma ideia comum esta subjacente a estas diferentes
praticas: quando se acha que uma vida humana nâo
corresponde a certas "normas de qualidade" e que nâo
vale a pena ser vivida, esta vida - conclui-se - pode ser
suprimida pelos meios mais eficazes ao dispor (cf. 123).

]Evangelium Vitae, 63.

151
72. Pode-se falar, a propôsito do aborto, de "crimes
imprescritiveis contra a humanidade"?

Apôs a II Guerra Mundial, uma vez melhor conhecida


a amplitude das atrocidades nazis, denunciaram-se os
"crimes contra a humanidade"1. Ao lado dos crimes de
guerra e dos crimes contra a paz, foi sobretudo esta
acusaçâo que foi posta à cabeça do processo de
Nuremberga.
A estes crimes ligam-se os assassînios, a exterminaçâo
em massa, o genocîdio, a tortura, a prisâo arbitrâria, etc.
Desde a Convençâo adoptada em 26 de Novembre de
1968 pela Assembleia Gérai das Naçôes Unidas, estes
crimes contra a humanidade sâo considerados como
imprescritîveis. E sâo-no porque devem sempre ser
condenados em nome de uma lei inscrita no coraçâo
dos homens e anterior a toda a legislaçâo positiva. E,
pelo contrario, esta legislaçâo positiva que é submetida
à sançâo da lei inscrita no coraçâo do homem.
O que foi sublinhado em Nuremberga é que os
crimes nazis contra a humanidade nâo podem prescre-
ver porque foram cometidos em nome de leis iniquas.
E estas leis eram iniquas porque nâo respeitavam os
direitos inalienâveis de todo o ser humano2.
A Declaraçâo Universal dos Direitos do Homem de 1948
tirarâ os ensinamentos desta guerra e deste processo de

152
Nuremberga. Ela explicita, déclara as razôes ûltimas pelas
quais era preciso —e ainda é - lutar contra o nazismo,
condenar os seus crimes e prévenir a sua revivificaçâo.
A Hberalizaçâo do aborto remete portanto em
questào os prôprios princîpios sobre os quais se fundou
a condenaçâo do nazismo.

^Evangelium Vitae, 90.


2V. Maurice Torelli, Le médecin et les droits de l'homme, Paris, Berger-Levrault,
1983, pp. 236-238.

153
73. Sera imaginâvel que nos esqueçamos de tirar as
liçoes} alias évidentes, que decorrem da experiência
nazi ?

Os homens têm uma capacidade prodigiosa de ocultar


o passado, inclusive o récente, mesmo se o sofreram na
sua propria carne. Pratica-se a damnatio memoriae: a
memôria é condenada, pois o passado é visto como
perigoso, dado que o seu conhecimento permitiria jul-
gar o présente (cf. 76 s.).
Assim, dificilmente nos damos conta de que, sob o
pretexto de obedecer as leis do III Reich e a "ordens
superiores", medicos e outros carrascos executaram em
massa inocentes. Tâo-pouco nos damos conta de que
quem nos salvou do nazismo foram os resistentes que
desobedeceram as leis porque eram iniquas. Verifiquemos
também que, por um macabro retorno da histôria,
alguns, que sobreviveram aos horrores nazis graças a
tais resistentes, se dedicam hoje a restaurar leis iniquas
em tudo semelhantes àquelas a que os seus libertadores
tinham recusado obediência, precisamente para os sal-
var...

Ora, como estes factos da histôria contemporânea


sâo ocultados, oculta-se evidentemente também que a
histôria se répète ou, se o preferirmos, prolonga-se.
Com efeito, é em nome de leis jâ nâo impostas por um

154
tirano, mas votadas por parlamentares, que se continua
a executar inocentes.

155
74. A Jidelidade à memôria das vitimas bastarâ para
nos vacinar contra uma nova barbarie ?

a) Entre aqueles que se dedicam a fazer aprovar leis


iniquas em nome das quais se matam seres indefesos,
figuram pessoas que censuram —justamente —os car
rascos nazis por terem obedecido a leis criminosas.
Ontem, ou seja, em Nuremberga, os acusados
entrincheiravam-se por detrâs da lei inîqua para tentar
desculpar os seus crimes; hoje, pede-se ao legislador
que de a crimes semelhantes a cauçâo da lei.
b) Séria aberrante que alguém invocasse o sacrifïcio
de inocentes do passado para se considerar autorizado
a introduzir, hoje, o principio de novas discriminaçôes
legais entre os seres humanos. O sacrifïcio dos martires
dos totalitarismos passados é uma coisa sagrada.
Ninguém se pode entrincheirar por detrâs da memôria
dos seus mortos para se julgar imune contra os desvios
totalitârios actuais.
c) Era desejâvel que nenhum dos que sofreram a bar
barie nazi rejeitasse, nem na teoria nem na prâtica, os
argumentos sempre actuais, invocados - em seu favor e
contra os seus carrascos —por quantos testemunharam,
para là de toda a distinçâo, que todos os homens têm a
mesma dignidade, o mesmo direito à vida e à liber-
dade.

156
75. Como explicar esta inconsequência que leva a
legalizar hoje prâticas ontem condenadas por serem
ilegitimas ?

A inconsequência analisada atrâs (cf. 73) é dramâtica,


pois révéla que, em certos meios, nâo se compreendeu
a malicia profunda do nazismo. E a razâo pela quai se
encontra tâo aberta a porta ao ultranazismo. Por este
termo entendemos o nazismo levado ao seu estâdio
supremo, mundializado e inscrito nas prâticas, nas leis,
nas instituicôes e mesmo na ética.1
a) Nâo se compreendeu que esta malicia nâo residia
principalmente no régime que caracterizava o nazismo,
mas sim na sua natureza profunda. Nâo se viu que a
essência do nazismo é a sua natureza totalitâria, ou seja,
a sua vontade de destruir o eu, tanto fïsico como psi-
colôgico. O nazismo é obcecado pela vontade de infli-
gir a morte (cf. 142).
b) Apesar das ruidosas negaçôes daqueles que as ani-
mam, as correntes que, depois de terem feito legalizar
o aborto, se empenham actualmente em legalizar a
eutanâsia (cf. 30-32), inscrevem-se objectivamente nesta
tradiçâo, consumando a sua perversâo, ou seja, indo
além do nazismo. Com efeito, infligir a morte nâo é
simplesmente um "direito" que a sociedade pode
exercer sobre aqueles que estima terem uma vida

157
indigna de ser vivida2 (cf. 60); é também um "dever",
e a mesma sociedade tem de garantir a sua execuçâo
para aqueles que desejam "morrer com dignidade",
por considerarem que a sua vida é indigna de ser vivi
da (cf. 30).
À consideraçâo do Direito da sociedade a infligir a
morte aos seres cuja vida é indigna de ser vivida, tipi-
ca do nazismo (cf. 60),junta-se pois, aqui, aquela outra,
tipica do liberalismo, do direito do individuo a "mor
rer com dignidade".
c) Mas nos dois casos, de facto, e para là dos tra-
vestismos ideolôgicos, o acto de infligir a morte é
coberto pela lei e a sua execuçâo confiada ao pessoal
médico. Em suma, a lei légitima o assassînio médico
(cf. 46, 53).
d) Por estas mesmas razôes, quando um Estado dâ aos
pais o "direito" de matar os seus filhos, acaba rapida-
mente por dar aos filhos o "direito" de matar os pais
(cf. 30-32, 46, 52).
Assim, nestes diferentes casos, a "lei" é chamada
a "legitimar" a "medicalizaçâo" do homicidio (cf. 46,
53).
Esta aliança totalitâria entre a mentira e a violência
foi implacavelmente denunciada por André Frossard:
«O mentiroso sabe que mente, o criminoso esconde
ou nega o seu crime, e os sistemas politicos mais dia-
158
bolicamente injuriosos para a espécie humana julgam-
-se obrigados a enfeitar com a dignidade da justiça as
suas ignominias, e a macaquear o direito cada vez que
o violam».3

'V. L'Enjeu politique de l'avortement, cit., pp. 179-187; La dérive totalitaire du


libéralisme, cit., pp. 265-268.
2V. L'Enjeu politique..., cit., pp. 14, 132; La dérive totalitaire..., cit., pp. 127ss.;
Cf. RJ. Lifton, Les médecins nazis, cit., pp. 64ss.
3Cf. André Frossard, Défense du Pape, Paris, Fayard, 1993, p. 48.

159
76. A evocaçâo do passado pode incomodar alguns. Mas
para os que hoje préparant^ fabricant e distribuent dro-
gas abortivasy nâo sera também incômodo verificar a
eftcâcia dos seus produtos?

a) É sabido que os homens se inclinam facilmente para


"justificaçôes", aparentemente coerentes, que inspiram
as suas condutas, enquanto hesitam em olhar de frente
as motivaçôes profundas que os animam. Este tipo de
comportamento é bem conhecido dos psicôlogos, que
falam, a este propôsito, de "racionalizaçâo" de uma
conduta. Os homens podem, de forma mais ou menos
voluntâria, ocultar a si mesmos ou aos olhos dos
outros, os verdadeiros motivos que animam o seu com
portamento.
b) É o que acontece por vezes com certos propa-
gandistas do aborto quimico. Conforme as circunstân-
cias, eles nâo insistem demasiado sobre as "virtudes"
essencialmente abortivas dos seus produtos (cf. 96).
Pelo contrario, pôem nos pîncaros a sua eficâcia - real
ou suposta - nos casos de cancro do seio, de en-
dometriose, de tumor cérébral, de doença de
"Alzheimer, de depressâo, etc.1
c) Como se pode verificar, esta "racionalizaçâo" faz
lembrar a damnatio memoriae, a condenaçâo da me
môria (cf. 73). Aqui, oculta-se um passado embaraçoso;

160
ali, ocultam-se as motivacôes actuais incômodas. Estes
dois processos entrelaçam-se muitas vezes, reforçando,
assim, o efeito de ocultaçâo.

'V. o dossier de Carlo Gallucci «La pillola maldetta», in L'Espresso (Roma), de


20.10.1991, pp. 156-165, maxime p. 163.

161
77. Nâo sera apesar de tudo pouco verosimil que aque-
les que préparant e comercializant métodos de aborto
quimico tâo eficazes sejam totalmente insensiveis as
liçoes do passado?

O fenômeno da damnatio memoriae, a condenaçâo da


memôria, é caracteristica de todos os grupos que tem
ma consciência (cf. 73, 76).
a) Apaga-se primeiro o passado de que se tem ver-
gonha. Antigas potências imperiais bloqueiam ainda
hoje o acesso aos arquivos relativos as suas conquistas.
Colônias, independentes hâ muito, destruïram a quase
totalidade dos documentos relativos à escravatura.
Mas apaga-se também o passado porque se teme que
este ilumine e permita julgar o présente. Este medo é
particularmente fréquente nas sociedades com forte
conotaçâo totalitâria. Mao Tsé-Tung purgou a histôria
da cultura chinesa porque os chineses da China comu-
nista ai teriam encontrado ampla materia para
desmistificar a ideologia do "Grande Timoneiro". O
conhecimento do passado e a sua evocaçâo sâo recusa-
dos porque permitem o acesso a uma tomada de cons
ciência alarmante. A reactivaçâo da memôria, pelo lem-
brar da histôria, é portanto vista como inoportuna,
impertinente mesmo, porque pode desmascarar brutal-
mente as certezas mentirosas da ma consciência.

162
b) No caso que nos ocupa, esta reactivaçâo poderia,
por exemplo, levar a perguntarmo-nos se um novo
genocidio nâo se esta a preparar. Este genocïdio nâo
teria jâ como vïtimas as visadas pelo nazismo "histôri-
co"; teria sobretudo como alvo, hoje em dia, a imensa
multidâo dos pobres. Observador tâo perspicaz como
interessado, o doutor Baulieu afirma que, «de acordo
com a Organizaçâo Mundial de Saûde, a firma
Hoechst decidiu que nos paises do Terceiro Mundo,
que representam os verdadeiros, os grandes mercados,
a pilula (RU 486) séria vendida a um preço muito
baixo ou mesmo cedida gratuitamente».1
c) No caso do laboratôrio Hoechst que, com Rous-
sel-Uclaf, produz o RU 486 (cf. 95 s.), o medo desta
representaçâo do passado foi cuidadosamente analisado
pelo mesmo doutor Baulieu. Numa entrevista à revista
italiana L'Espresso, notava ele: «Sâo precisamente os
dirigentes da filial norte-americana da Hoechst que
influenciaram a opiniâo da casa-mâe da Alemanha.
Hilger, o seu présidente, mesmo sendo um catôlico
bâvaro, nunca foi contra a pilula (RU 486). Mas hoje
em dia tem medo. E os seus temores sâo alimentados
também por certos velhos fantasmas do passado
A firma Hoechst nasceu apôs a guerra, do desmantela-
mento da sociedade IG-Farben, o gigante industrial
que, entre outros, tinha produzido o gâs para os cam-

163
pos de extermînio nazis. Hilger fica aterrado com a
ideia de que grupos anti-abortos desencadeiem uma
campanha para acusar a Hoechst de continuar a matar
como no tempo de Hitler»2 (cf. 46).
Se se compreende, certamente, este "terror", sâo
menos compreensïveis os bloqueios que limitam a per-
cepçâo ao présidente da firma.

'V. o dossier de Carlo Gallucci, «La pillola maldetta», in L'Espresso (Roma), de


20.10.1991, p. 163.
2Id., Ibid., p. 161.V também aentrevista de Edouard Sakiz com o Dr.J.Y. Nau,
Le Monde, 27.04.1993; nesta entrevista, nota-se o medo que inspira o boicote
do RU 486 nos EUA, bem como a atitude do prof. Hilger. Sobre o papel da
firma IG-Farben sob o régime nazi, v. Robert Jay Lifton, Les médecins nazis,
cit.; cf. indice, p. 602.

164
78. Nâo é chocante que se sugira um paralelo entre os
verdugos do régime nazi e os abortadores dos nossos dias?

As pessoas imaginam muitas vezes que o nazi tipico é


um individuo feroz e sanguinârio. Este tipo de nazi
existiu, é certo, e indivïduos ignôbeis rivalizaram no
requinte da humilhaçâo, da tortura e nos diversos
modos de infligir a morte.
Mas o nazi clâssico nâo era geralmente um ser bru
tal e cruel. Na sua maioria, os nazis eram pessoas
aparentemente sem histôria, como a maioria das pes
soas de hoje em dia. Eles tinham simplesmente entra-
do tranquilamente no "sistema". De concessâo em
concessâo, de cobardia em cobardia (cf. 65), e por inte
resse, tornaram-se zelosos funcionârios do régime. Ao
executarem as ordens, acreditavam executar o seu
dever.1
O maior perigo que a liberalizaçâo do aborto faz
pesar hoje sobre as nossas sociedades, nâo deve ser
procurado antes de mais nas acçôes de indivïduos
notoriamente cînicos e impiedosos. Ele encontra-se na
falta generalizada de coragem perante a "banalidade do
mal"2.

'Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 267.


Udem, pp. 266-268.

165
CAPITULO XI

OS ASPECTOS DEMOGRAFICOS
79. Que podemos dizer actualmente sobre a populaçâo
mundial ?

a) Em Junho de 1994, a populaçâo mundial era esti-


mada em 5.609.000.000 de habitantes.1
b) «Depois de se ter mantido estâvel em 1,7% ao ano
desde 1975, espera-se que o crescimento da populaçâo
mundial baixe para 1,6% ao ano durante o perïodo
1995-2000. Esta taxa de 1,6% ao ano deverâ ser a mais
baixa desde o fim da II Guerra Mundial. Mas depois
do ano 2000 espera-se que o crescimento da popula
çâo mundial décline regularmente até 1% no periodo
2020-2025».2
c) O fenômeno do crescimento espectacular da
populaçâo «sucedeu-se a um ritmo acelerado nos pai-
ses do Sul no século XX. Este ritmo, no entanto,
começou a baixar. Isto porque a fecundidade mundial
diminui a uma velocidade que nâo é negligenciâvel
nos païses do Terceiro Mundo: 6,1 filhos por mulher
em 1962, cerca de 3,8 filhos por mulher em 1990»3.
Praticamente por todo o lado, os indices sintéticos de
fecundidade (cf. 85) estâo em queda4.

'Cf. Population Today (Washington, Population Référence Bureau), v. 22,


n.° 7-8 (Julho-Agosto de 1994), p. 6.
2Wbrld Population Monitory, 1993, p. 67 - publicado em 23.02.1994, réf.
ESA/P/W.121 da Population Division da ONU (NovaYork). Cf. tb. Guy Herz-
lich, «Le couple population-développement», in Le Monde, 14.12.1993.

169
•^Gérard-François Dumont, «Révolutions démographiques», in Le Spectacle du
monde, n.° 361 (Abril de 1992), pp. 80ss.
4Sobre estas questôes v. o nosso trabalho Para entender las evoluciones demogrâ-
ficas, Mexico DF, IMDOSOC, 1995.

170
80. Pelo menos um quinto da populaçâo vive numa
situaçâo de pobreza absoluta, em condiçoes infra-
-humanaSy indignas do homem. No interesse destas pes
soas e suas familiasy nâo sera preferivel impedi-las de
terfilhos ?

a) Os malthusianos afirmam que ha disparidade entre a


progressâo geométrica da populaçâo e a progressâo arit-
mética dos recursos alimentares. Os neomalthusianos
combinam esta tese com a do direito ao prazer sexual
individual sem risco de procriaçâo. As teses neomalthu-
sianas —apresentando a contracepçâo, a esterilizaçâo, o
aborto, etc., como novos "direitos do homem" - sâo
muito frequentemente utilizadas como um logro para
mascarar as motivacôes malthusianas daqueles que con-
sideram que o contrôle estrito da populaçâo é um
"dever" tâo urgente como imperioso (cf. 88).
Estas teses entrecruzadas sâo espalhadas no mundo
inteiro por aqueles que nelas vêem a defesa dos seus
interesses.1
b) A pobreza nâo é uma fatalidade, tal como o nâo é
a fome. Os excedentes alimentares, por exemplo, nunca
foram tâo relevantes. O mesmo acontece com a espe-
rança de vida à nascença, que nunca foi tâo elevada em
todo o mundo. Mas hâ graves problemas de dis-
tribuiçâo, nâo somente no que diz respeito aos recur-

171
sos alimentares, mas também no que respeita, por
exemplo, aos conhecimentos relativos à agricultura, à
saûde, à higiene, à regulaçâo natural dos nascimentos,
etc. - sem contar com a corrupçâo2. O que os pobres
esperam é que os ajudem a sair da sua miséria, nâo que
os deixem atolar-se depois de lhes terem "oferecido"
abortos e esterilizaçôes.
c) A esterilizaçâo em massa dos pobres, tal como é
praticada actualmente, esta provocando consequencias
terrïveis3. Uma vez que sejam velhos, estes pobres con-
tinuarâo igualmente pobres, mas jâ nâo terâo filhos
com quem contar. Serâo abandonados, e a violência
exercida pela sociedade acelerarâ a sua morte, tal como
faz jâ morrer crianças da rua recusando cuidar delas.
d) Apresentadas nos dias de hoje sob uma nova
embalagem, as teses de Malthus sâo mais que nunca
um instrumento idéal para todos os reaccionârios que
se opôem a qualquer reforma social. Os malthusianos
de hoje intoxicam a opiniâo internacional fazendo-a
"engolir" a ideia de que a pobreza nâo é causada nem
por injustiças sociais, nem erros economicos, nem
incompetência politica, nem aberraçôes ideolôgicas.
Segundo eles, a pobreza é originada pela proliferaçâo
vertiginosa dos prôprios pobres. E ôbvio que na medi-
da em que esta tese, apesar de falsa, é inculcada e rece-
bida como uma ofuscante "evidência", as autênticas

172
exigências relativas à justiça e ao desenvolvimento
podem ser ignoradas e pode continuar, sem escrupulos,
a exploraçâo dos pobres.
e) Malthus tornou-se assim, hoje, bandeira de todos
os que se opôem à justiça social - tanto entre os
homens como entre as naçôes -, à fraternidade univer-
sal, à igualdade, à liberdade para todos, ao respeito dos
mais fracos, dos mais pobres, dos déficientes, dos doen-
tes, etc. Para os malthusianos da actualidade, os pobres,
os fracos, os Negros, os Indianos, e outros ainda, sâo de
desprezar; a igualdade de todos os homens, o direito de
todos à liberdade, o acesso de todos aos bens materiais,
intelectuais e espirituais sâo, para eles, objectivos inad-
missïveis e que importa combater. Cuidar dos fracos,
promover a igual dignidade de todos os homens per
turba, segundo eles, o equilibrio querido pela Natureza,
que selecciona os melhores e élimina os mais fracos.
Em suma, as ideias malthusianas inspiram as versôes
contemporâneas da moral, naturalista e nietzschiana,
dos senhores. Neste sentido, estas ideias sâo totalmente
incompatïveis com o Cristianismo.

'Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 146.


2Cf. Les Spectres de Malthus, coord. Francis Gendreau, Paris, Études et Docu
mentation Internationales, 1991; cf., por exemplo, o cap. dedicado ao
Bangladesh, pp. 273-278. V. tb. A obra dir. por Sylvie Brunel, Tiers-Mondes.
Controverses et réalités, Paris, Economica, 1987.
*Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., pp. 157ss.

173
81. Nâo se contribuirâ para a felicidade dos pobres ao
facilitar-lhes o acesso à esterilizaçâo e ao aborto ?

Os ricos parecem dispor de um misterioso engenho


chamado "hedonemômetro", aparelho que permitiria
medir a felicidade; a sua apreciaçâo, na verdade, baseia-
-se nas estatisticas relativas ao rendimento1.A partir daï,
os ricos estimam que a vida dos pobres nâo tem senti-
do porque estes tem um fraco rendimento; é preciso,
portanto - dizem eles -, impedir os pobres de ter filhos
(cf. 10). A vida dos pobres valeria a pena se estes
tivessem acesso ao prazer e à riqueza que lhe abre as
portas. Recomenda-se-lhes assim o aborto e a esterili
zaçâo, fazendo-os crer que serâo menos pobres e
sobretudo que terâo, como recompensa, acesso ao pra
zer.

Além disso, tal como para os indivïduos, nâo ha pior


humilhaçâo para as naçôes que a esterilizaçâo massiva
dos seus cidadâos. Esta mutilaçâo résulta frequente
mente de uma mentira, uma vez que se "oferece", a
tïtulo de "ajuda aos paîses pobres", aquilo que na
métropole por vezes se impôe a tïtulo de castigo, aos
condenados por crimes sexuais.
'Sharon L. Camp nào hesitou em publicar um opûsculo onde se expôe The
Human Suffering Index (Washington, Population Crisis Committee, 1987).

174
82. Nâo existe essa terrivel ameaça que pesa sobre a
humanidade, a "explosâo demogrâfica" do Terceiro
Mundo ?

Esta ideia remonta as teorias malthusianas1. Segundo


Malthus (1766-1834), a populaçâo cresce segundo
uma progressâo geometrica e os recursos alimentares
segundo uma progressâo aritmêtica (cf. 80). Esta teoria
ressurge, hoje em dia, sob uma forma ligeiramente
modifîcada: «As pessoas sâo pobres porque sâo demais».
Esta afirmaçâo é difundida pelos média que se esforçam
por impor como uma evidência que "ser muitos é ser
pobres"2.
Ora nâo devemos dizer que as pessoas sâo pobres
porque sâo demasiado numerosas, mas sim que sâo
demasiado numerosas porque sâo pobres (cf. 83). Restringir
energicamente a natalidade a fim de por termo à
pobreza, é pegar no problema ao contrario.
O excesso de populaçâo mede-se sempre em relaçâo
a uma situaçao précisa, concreta, variâvel. A pobreza
avalia-se sempre apartir da capacidade do homem para
enfrentar o seu meio; uma naçâo é pobre porque nâo
sabe alimentar a sua populaçâo (cf. 92). Neste sentido,
é a pobreza que é a causa do sobrepovoamento, e nâo o
inverso; o sobrepovoamento é sempre relativo a uma
dada situaçao3. Ora esta situaçao pode ser modifîcada pela
175
intervençâo do homem, sob condiçào de que para isso haja
vontade moral epoUtica. Ha casos onde as pessoas estâo
de tal modo subequipadas material, intelectual e
moralmente que nâo têm apossibilidade de dedicar-se
convenientemente à agricultura, e de facto nesta situ
açao modificâvel, ela édemasiado numerosa. Mas jus-
tàmente, o homem pode alterar estas situaçôes pela
organizaçâo, oensino, os equipamentos (cf. 137)4.
Isto nâo significa que os fenômenos.demogrâficos
nâo devam ser tomados em linha de conta: aqui ha
declînio, ali crescimento5. Os poderes pûblicos devem
portanto preocupar-se com este problema. Mas, aqui e
em todo o lado, é preciso respeitar o principio da sub-
sidiariedade, base de toda a democracia6. Axntervençâo
dos poderes pûblicos deve fazer-se dentro do respeito
dos direitos fundamentais do homem. Nâo pode fazer-
-se por qualquer meio e a qualquer preço.
]Evangelium Vitae, 16.
2Idem, 17.
•'Cf L'enieu pu
kjl. uenjui politique
* de Vavortement, cap. XIV. totalitaire du Uberal-
4Sobre os problemas abordados nesta secçao, v. e lm un ,..,,«• v^
isme Ver tb. Sylvie Bruncl, Tiers-Mondes. Controverses et redites, Pans, Eco-
noniica 1987. Cf. particularmente «La croissance démographique, fam... ou
"de développent», porJean-Claude Chesnais, com colab. de Alam
Destexhe Claude Albagi eAlain Guilloux, pp. 119-177.
So notâvel dossier «Démographie» na revista Défense Nationale de Abnl de
1993 pp. 19-75, com colaboraçâo de Gérard-FrançoK Dumont («La popu
lation au xx.e siècle», pp. 19-35; «Démographie et geopolmque», pp. 37-54 ,
Yves Montenay («Les politiques de natalité dans le «™»^W"^
Jean-Didier LecaiUon («Les démographes se trompent-Js?»,pp. 67-74). Sobre
176
os fenômenos demogrâfîcos, v. a obra de Gérard-François Dumont Démogra
phie. Analyse des populations et démographie économique, Paris, Dunod, 1992, e
ainda Jacques Véron, Arithmétique de l'homme, Paris, Seuil, 1993.
6Segundo o principio da subsidiariedade, os poderes pûblicos devem ajudar os
indivïduos e os corpos intermédios, como afamîlia, atomar as iniciativas que
lhes cabem, mas sem se lhes substituirem. Sobre a subsidiariedade, v. a nossa
obra Initiation à l'Enseignement social de l'Église, Paris, Emmanuel, 1992.

177
83. Ha quem faie mesmo de uma "bomba demogrâfica >>

pronta a explodir.

Aos olhos dos ideôlogos da segurança demogrâfica, ser


numerosos significa ser pobres. Mas a bomba do 3.°
milénio é a pobreza dos païses doTerceiro Mundo, nâo
os pobres. Aqui, como noutras casos, é necessârio nâo
errar no diagnôstico, nem confundir o efeito e a causa
(cf. 82, 137, 141).
a) Nâo se suprimem as causas da pobreza esterili-
zando os pobres (cf. 82, 107) - tal como nâo se reme-
deia a doença através da eutanâsia dos doentes (cf. 30
s.). Para remediar as causas da pobreza, é urgentissimo
que todas as crianças que nascem recebam uma educaçâo que
lhes permita, uma vez adultos, fazer face as suas neces-
sidades, e é para isso que precisam de ajuda (cf. 82).
b) É bem difïcil encontrar exemplos histôricos de
um desenvolvimento que se tivesse seguido a uma
queda da natalidade.
c) No Brasil, de 1960 a 1990, a taxa de fecundidade
gérai, ou seja, o numéro anual de nascimentos em
relaçâo ao numéro de mulheres em idade de procriar
passou de 6,3 para 3,13; a taxa de crescimento
demogrâfico passou de 2,89% para 1,8%. Pode-se dizer
que, no mesmo espaço de tempo, a pobreza tenha
diminuido da mesma forma ?

178
84. Este medo do desenvolvimento do Terceiro Mundo
visa alguns paises em particular?

a) O relatôrio do National Security Council, também


chamado Relatôrio Kissinger (cf. 100-102) explica que
os paises em vias de desenvolvimento devem ser os
primeiros alvos para as campanhas antinatalistas «O
acento deveria ser posto prioritariamente sobre os
maiores paises em vias de desenvolvimento e que
crescem mais rapidamente, e onde o desequilibrio
entre o numéro crescente de habitantes e o desen
volvimento potencial traz os mais sérios riscos de
mstabilidade, de inquietaçâo e de tensôes. interna-
cionais. Estes paises sâo a îndia, o Bangladesh, o
Paquistâo, a Nigeria, o Mexico, aIndonésia, o Brasil, as
Filipinas, aTailândia, o Egipto, aTurquia, a Etiopia, a
Colômbia»1.
b) Por mais importante que seja, este relatôrio nâo é
ûnico no seu género, e numerosos outros documentos
confîrmam a constante determinaçâo manifestada
pelas autoridades norte-americanas2.

'O documente NSSM 200, conhecido pelo nome de "Relatôrio do


National Security Council" ou "Relatôrio Kissinger", tem por tïtulo Impli
cations of Worldwide Population Growth for US Security and Overseas Inté
rêts. Foi elaborado em 1974, a pedido de Henry Kissinger, entào Secre-
tâno de Estado, e tornado pûblico quinze anos depois. Chamâmos a
atençào para este relatôrio em La dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 85.
Este mesmo relatôrio ocasionou um excelente dossier sobre demografia

179
publicado em Le Temps de VÉglise (Paru), n.» 8(Abnl de 1993,VV- 2M&
=Limitamo-nos a mencionar alguns documentes ma* recen'es s0^e °
"Relatôrio Kissinger": GtoW 2000.The Report to the Prévenu coonl. Gerald
O Barnev pref limmy Carter, Arlington, Seven Locks Press, 1991 (1. éd.
?980 sK Conly./joseph Spe.del, Sharon L. Camp, US PopuMon As,s-
tance' Issues for the 1990s, Washington, Populaaon Crms Connu tee, 1991
estTinstituïçào éaactual Population Action International); Users Guide to
éeOiSl Potion, january 1993, Office of Population/Bureau for
Reselh and D^evelopment/US Agency for ^"^E***^
Washington 1993.Ver tb. OStatement apresentado a11.05.1993 por limo
TeX"h, représentante dos EUA na segunda Comissâo Preparatona da
Conferência Internacional do Cairo (5-13.09.1994) sobre aPopuaçâo eo
gstXmento. Este texte>J»^^£^£&ÏZ
eign Policy», in Covert Action, n.° 39 (Inverno 1991-1992), pp. 26-30.

180
85. Como se apresenta a situaçao demogrâfica do lado
da Europa?

Para assegurar a renovaçâo das geraçôes nos paises


"desenvolvidos", é necessârio que o indice de fecundi
dade seja de 2,1 filhos por mulher. Calcula-se este
indice para um ano determinado adicionando os quo-
cientes de fecundidade por idades. Isto merece ser
explicado: relaciona-se o numéro de crianças nascidas
durante um determinado ano com o numéro de
mulheres existentes com idades dos 15 anos aos 49
anos no dia 1 de Janeiro do ano considerado, e adi-
cionam-se os quocientes parciais.
Por exemplo, para uma dada regiâo, divide-se o
numéro de crianças nascidas em 1990 pelo numéro de
mulheres com 15 anos no dia 1 de Janeiro de 1990;
obtém-se entâo um quociente parcial, chamado tam
bém quociente de fecundidade por idade ou ainda taxa
de fecundidade parcial. Refaz-se o mesmo câlculo,
sempre para as crianças nascidas em 1990, mas nascidas
de mulheres com 16 anos no dia 1 de Janeiro de 1990,
e assim sucessivamente até aos 49 anos. Faz-se entâo a
soma destes quocientes de fecundidade por idade, para
um dado ano, obtendo-se assim o indice sintético de
fecundidade para esse ano1.
Praticamente em toda a Europa, este indice de

181
fecundidade esta daramente abaixo do limiar necessârio à
substituiçao das geraçôes2. Para a Comunidade Europeia,
os dados publicados em 1993 pela Eurostat dào conta
de um indice de fecundidade que era de 2,61 em 1960
e que desceu a 1,51 em 1991. Sô a Manda, com um
indice de 2,10, assegura a renovaçâo das geraçôes. Para
que cada um julgue por si, sempre segundo aEurostat,
o ûltimo indice de fecundidade disponivel é de 1,82
para a Grà-Bretanha; 1,62 para aBélgica; 1,33 para a
Alemanha; 1,33 para aEspanha; 1,26 para a Itâlia3, mas
os mais récentes dados do Istituto Centrale di Statisti-
ca revelam que em 1994 o indice de fecundidade
desceu para 1,19 filhos por mulher. Para a França, a
mesma Eurostat (1993) da o numéro de 1,78, indice de
1990. Mas um estudo mais récente do INSEE, apresen-
tado por Guy Herzlich no Monde de 10 de Fevereiro
de 1994, dâ o indice de 1,65 para 1993.
A derrocada é ainda mais espectacular nos paises da
Europa oriental: «o numéro de filhos por mulher caiu
abruptamente na Alemanha de Leste; de cerca de 1,6
em meados de 1990, desceu para 0,83 em 1992.
ARûssia caiu em 2anos de 1,9 para 1,56. [...] Acatôli-
ca Polônia [...] voltou a 1,95 filhos por mulher, tal
como a Eslovâquia [...]. Na Rûssia, desde o final de
1991, o numéro total de mortes ultrapassa mesmo o
dos nascimentos»^ Até aos anos 1965-1970, o indi-
182
cador sintético de fecundidade na Europa era em quase
todo o lado superior a 2,1. A tïtulo de comparaçâo, é
de notar que este indice, que déclina praticamente em
todos os continentes desde 1965 (cf. 79), estima-se em
3,3 para o conjunto do mundo, e em 3,7 para o Ter
ceiro Mundo5.

'Sobre este indicador sintético, v. a obra exemplar de Gérard-François


Dumont, Démographie. Analyse des populations et démographie
économique, Paris, Dunod, 1992, pp. 129ss.
2Ver particularmente o dossier elaborado por Gérard-François Dumont, La
population de la France en 1992 (Paris, Association pour la Recherche et l'In
formation Démographiques, Marco de 1993). Cf. questâo 2, nota.
3Ver Eurostat. Statistiques démographiques, doc. 3A, Luxemburgo/Bruxelas,
Office Statistique des Communautés Européennes, 1993, p. xni.
^Guy Herzlich, «Quand l'Est se "dépeuple"», in Le Monde, 09.11.1993.
5Ver World Population Data Sheet of the Population Référence Bureau, Inc.,
Washington, 1993.

183
86. Como chegou a Europa a tal colapso demogrâfico ?
As causas desta implosâo demogrâfica sâo, evidente-
mente, complexas. Em todo o caso, hâ uma que
merece ser sublinhada. Para fazer aceitar a contra-
cepçâo, oaborto eaesterilizaçâo no Terceiro Mundo,
aEuropa dévia "dar oexemplo". Odiscurso que diri-
gia aos paises pobres nâo teria sido credivel se ela
prôpria nâo tivesse começado a adoptar e alegalizar
estas prâticas. Em 1973, o agrônomo René Dumont
escrevia: «Medidas limitativas autoritârias da natalidade
vâo [...] tornar-se cada vez mais necessârias, mas nâo
serâo aceites anâo ser que comecem pelos paises ricos e pela
educaçâo dos outros»'.
O exemplo europeu provocou efeitos de imitaçâo
no Terceiro Mundo, mas teve principalmente um
"efeito de boomerang" na prôpria Europa. Éuma nova
versâo da histôria do feitiço que se virou contra o feiti-
ceiro: a Europa foi e continua a ser a primeira vitima
das prâticas "anti-vida" que queria exportar para asse-
gurar o contrôle do Terceiro Mundo.
'V. René Dumont, L'Utopie ou la mort, Paris, Seuil, 1973, pp. 49ss. (Sublinhado
no texto.)

184
87. Os eua nâo conhecem tambétn uma queda
detnogrâjica comparâvel à da Europa ?

Apesar das aparências, do ponto de vista demogrâfico


a situaçâo dos Estados Unidos da America é diferen-
te daquela em que se encontra a Europa. Antes de
mais, o seu indice sintético de fecundidade (cf.85) de
2,0 é sensivelmente superior ao da Comunidade
Europeia, onde este nâo passa de 1,51 (cf. 85). Além
disso, é sabido que esta fecundidade difere segundo os
grupos étnicos. Ela é, por exemplo, mais elevada entre
os Negros ou os grupos de origem latino-americana,
do que entre os WASP (ou seja, os "brancos, anglo-
-saxônicos e protestantes"). Note-se também que a
pirâmide de idades nos EUA é mais equilibrada e a pro-
porçâo de jovens mais elevada que na Europa1.
E ainda necessârio frisar que os movimentos em
favor da vida humana sâo muito mais activos e melhor
organizados nos EUA que na Europa. A sua influência
sobre os média é muito importante; os votos dos seus
membros pesam na altura das eleiçôes; estes movimen
tos demonstraram jâ varias vezes o uso temivel do
boicote, contra as firmas farmacêuticas (cf. 39). Prési
dentes récentes, como Reagan e Bush, tiveram de os
ter em linha de conta.

'Ver World Population. Fundamentals ofGrowth,Washington, 1990.

185
88. A implosâo demogrâjica da Europa poderâ preocu-
par os eua ?

A diversidade das questôes demogrâficas, quando se


trata do Terceiro Mundo ou da Europa, encontra o seu
reflexo na ambiguidade das relaçôes entre a Europa e
os Estados Unidos da America.
a) Os EUA e o mundo anglo-saxônico em gérai
foram pioneiros no dominio da contracepçâo, da este-
rilizaçâo e do aborto. As grandes teses malthusianas
e neomalthusianas continuam a ser largamente di-
vulgadas a partir de centros cujas bases se encontram
nos EUA e na Inglaterra. Estes paises contagiaram a
Europa com a sua obsessâo pela "segurança demogrâ-
fica" face ao Terceiro Mundo, cuja expansâo é temida
por todos.
Esta comunidade de interesses leva a Europa e os
EUA afazerem uma frente comum para evitar o cresci-
mento demogrâfico do Terceiro Mundo, nâo hesitan-
do em recorrer à alavanca das instituiçôes interna-
cionais para atingir este objectivo. Procuram mesmo
no novo antagonismo Norte-Sul o cimento de uma
coesâo que jâ nâo é assegurada pelo antigo antagonismo
Este-Oeste.
b) No entanto, para além desta comunidade de inte
resses, torna-se cada vez mais claro que os EUA, obceca-
186
dos que sâo pela prôpria segurança, querem prévenir a
emergência de qualquer novo rivaV
O Terceiro Mundo em gérai é, a prazo, um rival
potencial cuja emergência é necessârio controlar
(cf. 84). Evoquemos rapidamente dois exemplos:
- primeiro, a China: "bénéficia" de uma "ajuda" ao
contrôle demogrâfico da quai a extensâo e eficâcia
foram recentemente denunciadas (cf. 106, 125);
- em seguida, o Mexico: pais que se desenvolve ao
ritmo das métropoles, deve ser vigiado de perto; por
isso foi integrado num "mercado livre" que agrupa os
Estados da America do Norte.
Diversamente preocupante, contudo, é a afirmaçâo
do poder europeu, com a organizaçâo da Uniâo
Europeia.
c) Podemos entâo perguntar-nos se a Europa nâo
esta em vias de destruir ela prôpria a sua capacidade de
intervençâo em favor do desenvolvimento do Terceiro
Mundo. Consentindo no seu declinio demogrâfico, a
Europa deixa toda a liberdade de acçâo aos EUA.
Todavia, ela teria podido oferecer aos paises pobres
uma soluçâo alternativa de parceria —se nâo se tivesse
deixado, ela mesma, cair na armadilha.
d) Vendo as coisas deste ponto de vista, torna-
-se évidente que os EUA têm todas as razôes do mundo
para se alegrarem com a derrocada demogrâfica da

187
Europa; tal como com o seu "envelhecimento"2, que,
além de mais, provocarâ inevitavelmente problemas
sociais a partir do momento em que se ponham em
causa as politicas de assistência social, de saûde-
-invalidez e de reforma - problemas estes, alias, jâ
largamente enunciados.
Sob a influência de lideres de opiniâo talvez pagos, a
Comunidade Europeia, enfeitiçada, apressou-se a inte-
grar a ideologia neomalthusiana do direito ao prazer,
de origem principalmente anglo-saxônica. Mas o inte
resse dos EUA é que a prôpria Europa, cedendo aos
comportamentos malthusianos, restrinja (cf. 93, 96) estri-
tamente o crescimento da sua prôpria populaçâo (cf. 80). Os
EUA devem portanto sorrir perante a solicitude com
que os Europeus interiorizam as teses que eles tanto
divulgam! Como exemplo de colonizaçâo ideologica,
nunca se fez melhor...
e) É chegado o momento, portanto, para a Europa e
para o Terceiro Mundo, de se lembrarem da sentença
atribuïda a Disraeli: «O Império britânico nâo tem
amigos permanentes, nem inimigos permanentes. Nâo
tem senâo interesses permanentes.»

'Esta preocupaçâo («Prevent the Re-Emergence ofaNew Rival») surge num


memorando de 46pp., preparado pelo Secretariado de Defesa. Este memo-
rando foi apresentado pelo New York Times de 08.03.1992 e resumido por
Barton Gellman no Washington Post de 11.03.1992 sob o titulo «Keeping the
US First. Pentagon Would Preclude a Rival Superpower».

188
2Na Revue des Deux Mondes de Marco de 1993 foi publicado um dossier inti-
tulado La retraite et les retraites. V. nomeadamente o artigo de G.-F. Dumont
«Le vieillisssement, un phénomène social majeur», pp. 104-124.

189
89. Sendo tào grave a situaçâo demogrâfica da Europa,
porque preocupa tâo poucos politicos ?

A falta de atençào de que dâ mostras a maioria dos


politicos europeus face aos problemas demogrâficos é
com efeito assombrosa. Hâ para isto diferentes razôes.
Antes de mais, a maioria dos politicos encara os pro
blemas do respeito pela vida humana, nâo emfunçào do
bem comum mas emfunçào do seu eleitorado? Se prédo
minasse entre eles a preocupaçâo pelo bem comum,
privilegiariam o longo prazo e dariam aos problemas
demogrâficos o justo lugar que merecem. Mas os
politicos sâo em gérai mais sensiveis ao curto e ao
médio prazo. Preocupam-se primeiro com o seu
prôprio bem particular, asua reeleiçào; depois com o
agradar aos eleitores que é necessârio seduzir em vista
da prôxima campanha.
Mesmo os politicos cristàos, que teriam razôes
especificas para se preocuparem com estas questôes,
dào muitas vezes provas de apatia nestas matérias2 (cf.
116). Os parlamentos nacionais e o Parlamento
Europeu têm disso dado numerosos exemplos. E, em
particular, perfeitamente escandaloso que politicos
cristàos tenham posto a sua assinatura em "leis" que
regulam o aborto.
Enfim, temos que ter présente que a ignorância culti-
190
vada é aforma superior de servidâo voluntâria, apesar
de termos que reconhecer que esta encontra temiveis
rivais na mâ-fé, na corrupçâo e na falta de coragem3...
]Evangelium Vitae, 72.
2Idem, 69,90, 93, 95.
Ver Alfred Sauvy, «Démographie et refus de voir», in L'enjeu démographique
Paris, aprd, 1981. * '

191
90. Como se apresenta o problema do aborto nutn pais
como ojapao, ondefoi banalizado?

O aborto é, com efeito, correntemente praticado no


Japâo, onde se estima em meio milhâo por ano1. E, no
entanto, preciso notar que esta banalizaçâo do aborto
nâo apaga o sentimento de culpa naquelas que a ele
recorreram. Existem mesmo cemitérios de crianças
nâo-nascidas onde milhares de figurinhas representam
as pequenas vitimas do aborto2.
O Japâo - onde poucas mulheres trabalham - esta
contudo em vias de se por graves questôes a propôsito
da sua demografia. O indice de fecundidade é de 1,5 e
o envelhecimento da populaçâo tem-se vindo a acen-
tuar3.
Até agora, o Japâo preveniu ou contornou o seu
declinio demogrâfico implantando certas indûstrias no
estrangeiro. Mas os dirigentes nipônicos apercebem-se
de que a expansâo comercial do Japâo arrisca-se a ser
hipotecada devido as dificuldades previsïveis por causa
da sua dinâmica demogrâfica.
É por isso que o Japâo tomou recentemente medi-
das estritas para impedir as mulheres de recorrerem à
contracepçâo.
É também a razâo pela quai Tôquio tenta atrair para
oJapâo os emigrantes japoneses ou os seus filhos. Este
192
refluxo migratôrio tem por objectivo contribuir para a
resoluçâo do problema da carência de mâo-de-obra no
Império do Sol Nascente.

'Sobre acrise da maternidade no Japào, v. MurielJolivet, Un pays en mal d'en


fants, Paris, La Découverte, 1993.
2Cf. Europe Today (Bruxelas), n.° 111 (23.03.1993), p. 8.
3Segundo o World Population Data Sheet ofthe Population Référence Bureau, Inc.,
1993. Sobre o indice de fecundidade, v. questào 85.

193
91. Tem-se alguma ideia das consequências da queda da
fecundidade nos paises desenvolvidos ?

Estas consequências serào mûltiplas, e varias, desde jâ,


sâo previsiveis. De uma forma gérai, um desequilibrio
demogrâfico entre oNorte eoSul nâo pode ser visto
como um dado tranquilizador para o futuro da
sociedade humana. Aderrocada demogrâfica do Norte
trarâ certamente uma debilidade generalizada na vita-
lidade do conjunto da humanidade.
Duas consequências merecem, porém, ser postas em
relevo, pois dizem respeito ao futuro da Europa, e em
particular da Europa ocidental:
a) Aprimeira éque aqueda demogrâfica da Europa
encoraja as tendências migratôrias das populaçôes extra-
-europeias, apesar da "ajuda", que visa fixâ-las nos seus
paises de origem. Isto é particularmente verdade no
que respeita as relaçôes entre aEuropa eoMagreb.
Enquanto no Velho Continente aforça de trabalho se
contrai, a populaçâo magrebina, mais jovem e mais
fecunda, exercera uma pressâo cada vez maior sobre a
Europa, em particular sobre a Europa latina. Esta
populaçâo sera ou subempregada na sua regiâo de
origem, ou introduzida nos circuitos de produçâo
europeus. Nos dois casos, os problemas arriscam-se a
ser extremamente difîceis de gerir, até porque a expe-
194
riência do passado récente mostra que aEuropa nâo se
apressou a favorecer a integraçâo dos trabalhadores
magrebinos jâ estabelecidos no seu territorio.1
b) Asegunda consequência é de longe a mais gra
ve; é também a menos facilmente perceptîvel pelo
grande pûblico. Esta consequência, sobre a quai Pierre
Channu repetidamente insistiu, é a extenuaçâo da
tradiçâo cultural e cientifica.2 Com efeito, o homem é,
ao fim de contas, o ûnico vector de cultura e de saber.
A cultura, a ciência, as morais, as religiôes sô se trans-
mitem pela intervençâo dos homens que as enrique-
cem sem cessar. A memôria da humanidade é uma
memoria viva, ou seja, criativa e inventiva. Os docu
ments escritos, os ' monumentos" diversos sâo reali
dades mortas se nâo tiverem ninguém que os interpele,
que com eles dialogue para ir mais longe (cf. 142).
O maior risco que corre a Europa é que, à mïngua de
homens, a cultura definhe. Na ausência de numerosas
trocas que uma populaçâo numerosa e densa estimula,
a cultura e a ciência correm um risco duplo e mortal:
o da estagnaçâo repetitiva primeiro, o do naufrâgio
depois.
Finalmente, se a Europa soçobrar no aspecto
demogrâfico, o seu naufrâgio petrificarâ o Terceiro
Mundo no seu subdesenvolvimento e/ou colocâ-lo-â
sob a tutela discricionâria dos EUA.

195
'V. a este respeito Bichara Khader, Le Grand Maghreb et l'Europe. Enjeux et
perspectives, Paris, Publisud, 1992.
2V. por exemplo Pierre Chaunu, Trois millions d'années, Paris, Robert LafFont,
1990. Este ponto também é sublinhado por Hannah Harendt em Condition
de l'homme moderne (1958), trad. fi\, Paris, Calmann-Lévy, 1988 (reimpr.),
p. 43.

196
92. Pelo seu numéro, os homens nâo se tornaram
nocivos para o meio ambiente?

Esta claro que os homens tem uma capacidade fantâs-


tica para destruir o ambiente1.
a) Se todos os homens consumissem tanto e tâo
anarquicamente como os habitantes dos paises ricos,
o planeta bem depressa se transformaria num deserto.
b) O incêndio dos poços de petrôleo, na regiâo do
Golfo, provou que esta capacidade destrutiva pode ir
até à demência2. A prazo, o saque da Amazônia nâo é
menos preocupante.
c) Efeitos igualmente desastrosos, apesar de em
menor escala, sâo produzidos onde os recursos naturais
sâo explorados segundo métodos arcaicos ineficazes,
nocivos para o ambiente.

Por outro lado,


a) O progresso da agronomia, por exemplo, compro-
va felizmente que o homem também tem uma capaci
dade espantosa para bem-gerir o meio ambiente e os
recursos naturais. Segundo a opiniâo da prôpria fao, os
problemas de alimentaçâo sâo menos problemas técni-
cos que problemas politicos e portanto morais (cf. 82,
128).
b) Além disso, é a educaçâo e o enriquecimento da
197
populaçâo que permitem uma regulaçâo dos nasci-
mentos e nâo o inverso.
c) Finalmente, respeitar o ecossistema é antes de mais
respeitar o coraçâo do meio ambiente, ou seja, o ser
humano. Como é possîvel respeitar um elefante ou um
bébé foca se nâo se respeita nem sequer a carne da sua
prôpria carne ?
O que acontece demasiadas vezes é que, movidas
pela ânsia desfreada do ganho, certas pessoas destroem
os equilïbrios naturais, e depois, com extraordinârio
cinismo, declaram que hâ gente déniais no planeta e
que este sobrepovoamento polui o ecossistema (cf.
137); deteriora-se a Amazônia, depois diz-se que hâ
gente a mais no Brasil.3
lEvangelium Vitae, 10.
2Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., pp. 20, 32.
"Idem, p. 51. Em Les spectres de Malthus (cit.) sào estudados os casos de diver-
sos paises do Terceiro Mundo cujas situaçôes demogrâficas sâo regular-
mente... Entre estes paises figuram o Togo, a Nova Guiné, o Gabâo, o
Equador, as Ilhas da Sociedade, os Camarôes, a Costa do Marfim, o Zaire,
Moçambique, a Guatemala, oVietname, a Indonésia, a Nigeria, o Gana.
O caso do Bangladesh, apresentado frequentemente como particularmente
«dramâtico», é analisado por B.K. Jahangir e B. Hours (pp. 273-278). Deste
estudo sobressai claramente que os numerosos pobres do Bangladesh sao
bode-expiatôrio das desgraças que atingem este pais. Sào vitimas da cor
rupçâo, da incompetencia eda falta de preocupaçâo com obem comum por
parte dos dirigentes.

198
CAPITULO xn

AS ORGANIZAÇOES
INTERNACIONAIS
93. Evoca-se comfrequência uma campanha dos ricos e
poderososy que se empenhariam em limitar apopulaçâo
mundial pobre, afim de nâo serem obrigados a parti-
lhar as suas riquezas. Nâo sera uma visâo um tanto
sombria da sociedade e do futuro do mundo?

Basta 1er as publicaçôes especializadas, acessiveis ao


grande pûblico, para nos apercebermos dos meios
énormes empregues pelos paises ricos no intuito de
"conter", quer dizer, de restringir a populaçâo pobre1.
Publicaçôes da mesma proveniência expôem igual-
mente com uma clareza cruel, a escandalosa concen-
traçâo da riqueza, assegurando, no entanto que o Sul
faz pesar uma ameaça sobre o Norte (cf. 82 s., 96).
Sem negar a complexidade dos problemas, pode-se
dizer que a ajuda ao Sul é muitas vezes condicionada pela
aceitaçâo de campanhas antinatalistas cultural e moral-
mente chocantes2. Alguns propôem mesmo que o Ter
ceiro Mundo aceite o contrôle da sua populaçâo em
troca de uma renegociaçâo da sua divida! Os ricos
pôem decididamente mais ardor na luta contra os
pobres que contra a pobreza (cf. 99)!

'V. por exemplo Inventory of Population Projects in Developing Countries Around


the World. 1991-1992, Nova York, United Nations Population Fund, 1993.
2Evangelium Vitae, 16.V. por exemplo Population and the World Bank. Implica
tions from eight case studies, Washington (dc, eua),The World Bank / Opéra
tions Evaluation Department, 1992.A propôsito do Sénégal, u£.,lê-se (p. 58)

201
que a «recomendaçào» pela quai se convidava o Banco Mundial a concentrai*
a acçao na ajuda ao governo senegalês para que este desenvolvesse uma
polîtica demogrâfica global «foi aceite e por fini executada, fazendo-se da
sequência de tal declaraçào polîtica uma condiçào para libertar a segunda
fatia do terceiro ajustamento estrutural do empréstimo». Outra consequên
cia da boa aceitaçào desta polîtica e do papel do Banco Mundial foi o
«desenvolvimento de um Projecto de Recursos Humanos para o Sénégal,
aprovado pelo Conselho de Administraçào em Abril de 1991. Uma das
condiçôes de negociaçào era a libertaçâo das restriçôes à prestaçâo de
serviços de planeamento familiar. (...) Uma das condiçôes de aprovaçà'o era a
adopçào oficial do Programa Nacional de Planeamento Familiar». Ver tam
bém o estudo do mesmo Banco Mundial, Sub-Saharan Africa: Front Crisis to
Sustainablc Growth, Washington, The World Bank, 1989, p. 6.

202
94. Como é possivel que tais publicaçôes sejam tâo
pouco conhecidas?

O que é consternador é que as pessoas —inclusive os


politicos - sejam muitas vezes desenvoltas quando se
trata de se informar e de criticar a informaçâo. Isso nâo
as impede, porém, de se pronunciarem a propôsito de
materias delicadas que nâo se dâo minimamente ao
trabalho de estudar.

203
95. Pode-se estabelecer a existência desta campanha
citando alguns factos ?

Um primeiro facto é-nos oferecido pelo Fundo das


Naçôes Unidas para a Populaçâo no seu relatôrio
de 1991'. Este relatôrio recomenda a vasta divulgaçâo
dos métodos contraceptivos quïmicos, mecânicos
e cirûrgicos. O RU 486 nâo é mencionado explicita-
mente, mas é-lhe feita alusâo quando sâo evocadas
as "novas aproximaçôes à contracepçâo pôs-coito"
(cf. 96). Precisa-se no relatôrio que os obstâculos
juridicos opostos à divulgaçâo destes métodos devem
ser afastados.
O segundo facto vem da Organizaçâo Mundial de
Saûde2. No seu relatôrio de 1992, esta agência espe-
cializada da Organizaçâo das Naçôes Unidas explica
porquê e como patrocina investigaçôes sobre a repro-
duçâo humana3. Torna-se nïtido neste relatôrio que a
Organizaçâo Mundial de Saûde dâ cobertura com a
sua autoridade e financia com os seus recursos a
preparaçâo de drogas de grande difusâo destinadas a
controlar a populaçâo dos paises pobres (cf. 96). Entre
estas drogas figuram preparados que tem a capacidade
de provocar um aborto précoce (cf. 96).
Apesar de estas instituiçôes se defenderem da
acusaçâo, elas patrocinam explicitamente a prâtica do

204
aborto ligando-o aos métodos de contencâo da natali-
dade4(cf.39).

]La dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 67.


Hdem, p. 74.
3V Reproductive Health: a Key to a Brighter Future. Biennial Report 1990-1991.
Spécial 2Oth Anniversary Issue, Genebra, OMS, 1992.
AEvangelium Vitae, 73.

205
96. E neste quadro que aparece a ptlula abortiva RU
486?

Segundo as declaraçôes do prôprio dr. Baulieu, a quem


é atribuîda a composiçâo do RU 486, esta pïlula
abortiva foi feita com o apoio da Organizaçâo Mun
dial de Saûde1. A OMS faz, alias, referência a este tipo de
preparado quando fala de "contracepçâo pôs-coito"
(cf. 95).
O mesmo doutor Baulieu explica, de resto, que uma
das "justificaçôes" do programa de investigaçâo que
resultou no RU 486, é a "contencâo", ou antes a li-
mitaçâo da populaçâo pobre do Terceiro Mundo (cf.
76).

'V. Étienne-Émile Baulieu, Génération pilule, Paris, Odile Jacob, 1990. Sobre
a RU 486, v.Janice G. Raymond, Renate Klein, Lynette J. Dumble, RU 486.
Misconceptions, Myths and Morals, Cambridge, Institute on Women and Tech
nology, 1991.

206
97. Signifîcarâ isto que instituiçoes especializadas da
ONU, e talvez apropria ONUy estâo implicadas em cam-
panhas antinatalistas nos paises pobres ?

A grande preocupaçâo que aparece actualmente nestas


instituiçoes internacionais é a organizaçâo de um mer-
cado mundial1 (cf. 137). No mercado planetârio com
que alguns sonham, o homem nâo é simplesmente
produtor e consumidor. O homem é produzido segun
do critérios de utilidade, de interesse, de prazer, de
capacidade para pagar2 (cf. 99).
Nas publicaçôes récentes destas instituiçoes especia
lizadas, a Organizaçâo das Naçôes Unidas —com o
Banco Mundial3 —dâ uma atençâo cada vez maior ao
desenvolvimento deste mercado planetârio4.
E segundo as conveniências deste mercado que o
homem é admitido ou nâo à existência e à transmissâo
da vida. Nâo é verdadeiramente homem senâo o indi-
vïduo solvente, capaz de consumir e de produzir.

'Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 60.


2Evangelium Vitae, 64.
•^Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 58.
4Idem, pp. 60,133.

207
98. Custa a acreditar que uma instituiçâo tâo prestigia-
da como a onu avalize politicas de "contencâo"
demogrâfica que comportam a prâtica do aborto.

Desde a Carta de Sâo Francisco (1945), sabe-se que a


Organizaçâo das Naçôes Unidas (onu) é uma organi
zaçâo inter-estadual, composta de Estados soberanos.
Ora, em matéria demogrâfica e médica, as instituiçoes
especializadas da onu comportam-se cada vez mais
como se a ONU fosse uma organizaçâo supra-estatal, isto
é, com autoridade sobre os estados soberanos seus
membros1.
Tendo o cuidado de nâo teorizar, a onu esta a por
em prâtica uma nova versâo da doutrina da "soberania
limitada". Abandona pouco a pouco o seu papel de
ôrgâo de diâlogo e de concertaçâo para se transformar
em ôrgâo directivo que tende a limitar a soberania dos
seus Estados-membros.
Trata-se aqui de um verdadeiro abuso de poder.
Através da polîtica demogrâfica que elas discutera,
sugerem e pôem em prâtica, as instituiçoes especiali
zadas da ONU induzem uma mutaçâo na prôpria
natureza desta organizaçâo2. Elas tendem a fazer da
ONU uma autoridade supra-nacional ao serviço de um
grande mercado mundial, de uma "nova ordem mun
dial"3.

208
Indïcios convergentes einquiétantes levam apensar
que a ONU, com as suas agências especializadas, se este-
ja a transformar numa imensa mâquina manipulada
pelos Estados mais ricos do mundo, a começar pelos
EUA, para edifîcar um governo mundial4 que se exerça em
seu proveito.

'Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 82.


Hdem, p. 79.
'Ibidem.
'Sobre este tema, v., v.g., William F. Jasper, Global Tyranny... Stepby Step. The
Umted Nattons and the Emerging New World Order, Appleton, Western Island
Pubhshers, 1992. Cf. também James Perloff.The Shadows ofPower.The Coun-
cil on Foreign Relations and the American Décline, id., 1990.

209
99. Quemganha com esta mutaçâo?

Esta mutaçâo aproveita, antes de mais, a todos os ricos


do mundo inteiro: os ricos dos paises desenvolvidos e
os dos paises do Terceiro Mundo. «Milionârios de
todos os paises, uni-vos!»
Estes ricos do mundo inteiro têm interesses particulares
em virtude dos quais pode haver tensôes entre eles.
Mas eles têm sobretudo interesses comuns a defender, e é
por isso que se organizam numa espécie de nova
nomenklatura para fazer uma frente comum face ao
"perigo" que representam, aos seus olhos, os pobres de
todo o mundo (cf. 70).
Assim, no termo de uma confusâo trâgica, em vez de
atacarem a pobreza - o que exigiria sacrifîcios da sua
parte - eles atacam os pobres (cf. 83, 93, 103).

210
100. Esta mutaçâo aproveita a algumas naçôes em par
ticular?

O relatôrio do National Security Council, preparado


em 1974 sob a direcçâo de Henry Kissinger, oferece
sobre este ponto uma luz perturbadora (cf. 84). Secre-
to até 1989, este relatôrio considéra indispensâvel para
a segurança dos EUA, por em prâtica uma polîtica de
contrôle demogrâfico nos paises do Terceiro Mundo
(cf. 137). Ao lado da pîlula e da esterilizaçâo, é também
mencionado o aborto (cf. 101).
O relatôrio, além disso, faz também subtilmente
notar que
«Os Estados Unidos podem minimizar a suspeita de
céder a uma motivaçâo imperialista, que se encontraria
por detrâs do apoio que dâo as actividades demogrâfi
cas. Para isso, é necessârio repetir frequentemente que
a posiçâo norte-americana provém de uma dupla
preocupaçâo, a saber:
a) o direito de cada casai determinar livremente e
de forma responsâvel o numéro de filhos, e o espaça-
mento entre eles, assim como o acesso à informacâo, à
educaçâo e aos meios necessârios para agir de tal
modo; e
b) o desenvolvimento fundamental, social e eco-
nômico de paises pobres, nos quais o râpido cresci-

211
mento da populaçâo é simultaneamente causa e conse
quência de uma pobreza propagada.»1
'Relatôrio, p. 115. Ver também, no mesmo Relatôrio, pp. 22, 101, 117, etc.
Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 85.

212
101. O relatôrio Kissingerfala do aborto?

a) Lê-se particularmente neste Relatôrio:


«Apesar de as agências participantes neste estudo nâo
terem recomendaçôes especïficas a propor no que
respeita ao aborto, considera-se que as questôes
seguintes sâo importantes e que devem ser conside-
radas no contexto de uma estratégia global da popula
çâo.»

Aborto
1. Prâticas mundiais do aborto
«Alguns factos relativos ao aborto devem ser apre-
ciados.

«- Nenhum pais reduziu o crescimento da sua popu


laçâo sem recorrer ao aborto.1
«- Calçula-se que trinta milhôes de gravidezes sâo
interrompidas anualmente pelo recurso ao aborto em
todo o mundo [...]. [Segue-se uma brève tipologia das
legislaçoes.]
«- As leis sobre o aborto, em muitos paises, nâo sâo
aplicadas rigorosamente [...]. A falta de pessoal médico
e de instrumentas, ou atitudes conservadoras entre os
médicos e os administradores de hospitais, podem efi-
cazmente diminuir o acesso ao aborto, especialmente
por parte das mulheres economicamente ou social-
mente mais desprovidas [...].»

213
2. A législaçâo dos EUA e suas politicas relativas ao aborto
«[...] O programa da AID [Agenda norte-americanapara
o Desenvolvimento International].
«A parte prédominante do programa de assistência
da AID concentrou-se sobre os métodos de contra-
cepçâo ou de prevençâo. Todavia, a AID reconheceu
que, nas condiçôes dos paises em desenvolvimento, os
métodos de prevençâo nâo sô sâo frequentemente difi-
ceis de praticar, como muitas vezes falham devido à
ignorância, à falta de preparaçâo, a uma errada utiliza
câo ou à sua nâo utilizacâo. Por causa destas condiçôes,
um numéro crescente de mulheres, no mundo em vias
de desenvolvimento, recorreu ao aborto, habitual-
mente em condiçôes perigosas e muitas vezes fatais. Na
realidade, hoje em dia o aborto, légal e ilegal, tornou-
-se o método mais propagado de contrôle da fertili-
dade no mundo. Dado que no mundo em vias de
desenvolvimento, a prâtica cada vez mais divulgada do
aborto é muitas vezes feita em condiçôes precârias, a
AID esforçou-se, através da investigaçâo, por reduzir os
riscos de saûde e outras complicaçôes que sâo causadas
pelas formas ilegais e precârias do aborto. Um resulta-
do foi o desenvolvimento do kit de regulaçâo mens-
trual, que é um meio simples, barato, seguro e eficaz de
contrôle da fecundidade, e que é de fâcil utilizacâo nas
condiçôes dos paises subdesenvolvidos.»

214
[Seguem-se entâo consideraçoes relativas as restriçoes feitas
pela administraçào norte-americana da época, à utilizacâo de
fundos da AID para o aborto. Estas consideraçoes terminam
desta formai]
«Os fundos da AID podem continuar a ser usados
para a investigaçâo respeitante ao aborto, dado que o
Congresso decidiu especificamente nâo incluir esta
investigaçâo nas actividades proibidas.
«Um dos maiores efeitos desta emenda e da decisâo
polîtica é que a AID nâo sera mais implicada no desen
volvimento ulterior ou na promoçâo do kit de regula-
çâo menstrual. Contudo, outras entidades ou organiza-
çôes poderâo interessar-se em promover com os seus
prôprios fundos a divulgaçâo deste prometedor méto-
do de contrôle da fecundidade.. .»2
b) Esta determinaçâo dos EUA foi confirmada em
1993 e expressa com maior clareza por Timothy E.
Wirth, représentante dos EUA, no texto citado acima
(cf. 84 e nota).
«O Présidente Clinton esta profundamente em-
penhado em colocar o problema da populaçâo na
primeira linha das prioridades internacionais da
America. [...] O governo dos EUA crê que a Confe-
rência de Cairo (5-13 de Setembro 1994) faltarâ ao
seu dever se nâo elaborar recomendaçôes e linhas de
conduta relativas ao aborto. A nossa posiçâo consiste

215
em apoiar a escolha reprodutiva, incluindo o acesso ao
aborto seguro.»

' Sobre este ponto, v. Stephen Mumford e Elton Kessel, «Rôle of Abortion
in Control of Global Population Growth», Clinics in Obstetrics and Gyneaco-
logy, 1.13, Marco de 1986, pp. 19-31.
2 Cf. Relatôrio, pp. 182-184.

216

J-i^..
102. Haverâ algutna relaçao entre esta politica
demogrâfica dos eua e a mutaçâo que se observa na
natureza da onu?

Verifica-se antes de mais que a maioria das recomen-


daçôes que se encontram no Relatôrio 1991 do fnuap
apareciam jâ no documento redigido em 1974 sob a
direcçâo de Henry Kissinger (cf. 84,100). Sabe-se tam
bém que a Agência norte-americana para o Desen-
volvimento Internacional (usaid) ajudou organismos
privados e pûblicos a realizar eficazmente programas
de planeamento familiar.
Dai a pensar-se que o governo dos EUA possa utilizar
estes diversos organismos para pôr em prâtica o seu
programa de contençâo demogrâfica, vai um pequeno
passo, que alguns jâ deram1. Outros vâo ainda mais
longe: porque é que, perguntam-se, os EUA nâo uti-
lizariam igualmente, com o mesmo fim, outros orga
nismos - como por exemplo o Banco Mundial, o
Fundo das Naçôes Unidas para a Populaçâo, a Organi-
zaçâo Mundial de Saûde, e a prôpria Organizaçâo das
Naçôes Unidas - para levar por diante a sua politica no
âmbito demogrâfico?

'Ver, por exemplo, no Relatôrio Kissinger, as pp. 113ss., 150, 159, 164-166.
Em La Dérive totalitaire du libéralisme (cit.) estudamos em pormenor questôes
que aqui sô afloramos.V. também William F. Jasper, Global Tyranny..Step by
Step,Appleton,Wisconsin, Western Islands, 1992.

217

a
103. Como explicar que as democracias ocidentais sejam
cûmplices dos EUA na restriçâo do crescimento demogrâ-
fico do Terceiro Mundo ?

As estatïsticas publicadas pelas instituiçôes especializa-


das da Organizaçâo das Naçôes Unidas revelam que as
democracias ocidentais estâo largamente de acordo
com os Estados Unidos da America quanto a por de pé
um programa mundial de contençâo da natalidade no
Terceiro Mundo1.
Estas democracias tornam-se assim verdadeiras alia-
das num projecto impérial do quai os EUA reservam
para si o dominio ûltimo (cf. 88).2
Esta aliança objectiva explica-se sem dûvida em
parte pelo facto de muitos dirigentes das democracias
europeias ignorarem, se nâo a existência, pelo menos o
significado e a vastidâo destas campanhas.
Mas esta aliança explica-se também pelo facto de os
ricos do mundo inteiro - inclusive as burguesias do
Terceiro Mundo - considerarem do seu interesse fazer
uma frente comum para restringirem juntos a
"ameaça" que aos seus olhos os pobres constituem para
a sua segurança.3
Assim, os ricos consideram que a sua segurança é o
fundamento do seu direito, e nlo recuam perante ne-
nhum meio para protéger a cidadela de egoismo na
quai se muraram (cf. 137).

218
xEvangelium Vitae, 12.
2V James Kurth, «Hacia el Mundo Posmoderno», in Facetas, Fevereiro de
1993, pp. 8-13. (Ed. original publ. em Tlte National Interest,VzxZo de 1992.)
>V.Êxodo, 1,8-21.

219
104. A atitude destes ricos e partilhada por todos os
cidadàos dos EUA e das democracias ocidentais ?

Nos Estados Unidos da America, ainda mais que na


Europa, os movimentos que defendem o respeito pela
vida humana sâo cada vez mais activos e organizam-se
cada vez melhor (cf. 87). Graças a eles opera-se uma
tomada de consciência anâloga àquela que se passou
no século xix a proposito da questâo social. Nessa
época, uma minoria de cidadàos tornou-se sensivel à
injusta miséria da classe operâria. Hoje em dia, um
numéro cada vez maior de cidadàos, e também de
polïticos, tornou-se sensivel ao desprezo imerecido de
que a vida humana é vïtima por todo o mundo.
Tanto no piano nacional como mundial, estes grupos
"consciencializados" organizam-se e articulam as suas
accôes. A sua eficâcia aumenta de forma notâvel sobre
diversos pianos. No piano econômico, estes grupos
ensinaram as grandes firmas farmacêuticas produtoras
de drogas abortivas e/ou esterilizantes que a arma do
boicote era para ser levada muito a sério. No piano
politico, estes mesmos grupos levaram os ûltimos pré
sidentes dos EUA a cortar as subvençôes governamen-
tais destinadas a financiar campanhas abortivas no Ter
ceiro Mundo, e a nomear para o Supremo Tribunal
juizes conhecidos pela sua determinaçâo em por o

220
direito ao serviço da vida dos inocentes. O Présidente
Clinton, que sobre estes pontos rompeu com os seus
dois predecessores, deverâ ter estes grupos em conta
cada vez mais.

221
105. Nâo ha incoerência das naçôes ocidentais ao
exportarem produtos abortivos, continuando simulta-
neamente a proclamar-se campeoes da democracia e do
desenvolvimento ?

Era preciso que as naçôes ocidentais, tâo prontas a


apresentarem-se como "modelos" para o mundo
inteiro, explicassem de uma vez por todas a forma
como conseguem conciliai" a dupla missâo que se
arrogam: por um lado, a que consiste em proclama-
rem-se paladinos da ajuda ao desenvolvimento1 e
arautos dos direitos do homem para todos e em todo
o mundo; por outro, a que consiste em "medicalizar"2,
em proveito do establishment, os problemas politicos,
economicos e sociais, oferecendo a esse mesmo estab
lishment a arma absoluta contra os "indesejâveis".
Aos olhos do mundo, esta ambiguidade hipoteca a
credibilidade destas naçôes. A que tïtulo, por exemplo,
um Estado que dâ cobertura à produçâo de uma pïlu-
la abortiva poderâ continuar a ufanar-se de ser o
padrâo da democracia, o farol para os paises do Terceiro
Mundo ? Como é que um Estado que dâ cobertura à
distribuiçâo deste produto (ou de outros similares)
poderâ ainda ser levado a sério quando prétende
"arrepender-se" perante a lembrança dos seus antigos
erros ?

222
'Ver o livro espantoso de Graham Hancock, Lords ofPoverty. Tlie Power, Pres
tige, and Corruption of the International Aid Business, Nova York, The Atlantic
Monthly Press, 1989.
2C£ La dérive totalitaire du libéralisme, cit., pp. 157-172.

223
106. Quem sdoy em ûltima anâlise, os verdadeiros
responsâveis e verdadeiros instauradores do totali-
tarismo contemporâneo ?

Esta questâo crucial deve corn efeito ser posta.


Podemos por exemplo interrogar-nos francamente
sobre a boa fé de certos governos ocidentais que pôem
à disposiçâo dos dirigentes chineses armas contracepti-
vas; toda a gente sabe que, devido ao régime polîtico
em vigor, Pequim as usarâ de forma coerciva e gene-
ralizada1. Como duvidar de que estes governos parti-
cipam assim no totalitarisme e de que as mâos dos seus
dirigentes estâo manchadas de sangue?
Mais ainda, como nâo suspeitar que estes mesmos
governos sejam além disso capazes de controlar as
organizaçôes internacionais e de se servirem destas
para impor a sua concepçâo muito particular da "nova
ordem econômica mundial"2? (cf. 98)

'Cf.J.S.Aird, Foreign Assistance to Coerciue Family Planning in China. Response


to Récent Population Policy in China, Canberra,Terence Hull, 1992.
-Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., pp. 85ss., 128-131, 207.

224

Li
107. Em suma: se nenhuma acçao pela vida humanafor
desenvolvida a nivel mundial, perfilar-se-â uma nova
guerra ?

Durante decénios o mundo esteve dividido em dois


blocos, e vimos defrontarem-se Leste e Oeste. Esta
"bipolaridade" nâo morreu, mas esta hoje relegada
para segundo piano, sendo suplantada por um con-
fronto Norte-Sul, uma guerra dos ricos contra os
pobres. Nesta guerra actualmente em curso sâo usadas
armas novas, entre as quais, na primeira linha, figuram
as armas biomédicas, cuja utilizaçâo foi "justificada"
por uma leitura facciosa dos dados demogrâficos. Estas
novas armas devem dar a soluçâo final à ameaça dos
pobres, ou mesmo à existência da pobreza. Por isso,
quando a contracepçâo falha, recorre-se à esterilizaçâo
e ao aborto.
Aqui passa-se o mesmo que com os parceiros em
busca do prazer: os meios visando o impedimento da
procriaçâo devem ser de uma eficâcia absoluta (cf. 70,
122). E por isso que o aborto e a esterilizaçâo se
inscrevem inevitavelmente na lôgica desta guerra nova
e silenciosa.

225

^m
108. Nào sera excessivo falar de guerra a propôsito do
aborto ?

As guerras tradicionais matam os homens em vista da


conquista de territôrios, da aquisiçâo de vantagens
diversas, da protecçâo de interesses, de assegurar a livre
circulaçao, do acesso a recursos, etc.
Com a liberalizaçâo do aborto, a supressâo da crian-
ça nâo nascida é apresentada como a condiçâo para
que outros homens vivam e sejam felizes. Mata-se, e
faz-se que a lei diga que éjusto matar, porque é assim
que cada um faz prevalecer o seu direito. Aqui o
homem é visto como o obstâculo por excelencia à
felicidade do homem. É por isso que esta guerra é mais
cruel que qualquer outra, e portanto mais mortifera. E
amaiorguerra da histôria, eamais injusta (cf. 122 s., 139).
Como é que asociedade humana poderâ sair incôlume
de uma tal carnificina1 ?

'Sobre estas questôes, v.Tony Anatrella, Non àla société dépressive, Paris, Flam
marion, 1993.

226
CAPITULO xni

PREVENÇAO - REPRESSAO
- ADOPÇÂO -
109. Nao existe ao menos um ponto sobre o quai os
partidârios e os adversârios do aborto estejam de acor-
do?

Todos estâo de acordo em dizer que o aborto é sem-


pre um rêvés, um pouco como o suicîdio. Face a um
acto que se sabe à partida ser um falhanço, duas ati-
tudes sâo possiveis. Por um lado, podemos resignar-nos
a esse rêvés, tomar o seu partido, e mesmo regulamen-
tâ-lo. Por outro lado, pode-se estimular a acçâo con
vergente dos homens de boa vontade para prévenir esse
rêvés (cf. 15). De facto, este nada tem de fatal; é evitâ-
vel.

229
110. Em vez de reprimir o aborto, nâo valeria mais pre-
veni-lo ?

É claro que é preciso criar condiçôes que permitam a


todas as mâes trazer no seu ventre a criança que espe-
ram no melhor ambiente possivel. E o que alguns
legisladores têm tentado fazer desde hâ anos, recla-
mando cuidados de saûde, consultas pré-natais, serviços
de alojamento, uma educaçâo apropriada, abonos de
familia, etc.
Porém, mesmo as leis que sâo apresentadas como
repressivas por punirem o aborto têm ultimamente o
mesmo objectivo: preveni-lo, oferecendo protecçâo
juridica à criança nâo nascida (cf. 17).
Uma comparaçâo corn a segurança nas estradas é
esclarecedora: os poderes pûblicos têm razâo quando
organizam campanhas de prevençâo dos acidentes, e
estas campanhas felizmente dâo frutos. Mas estas medi-
das preventivas nâo dispensam a puniçâo dos infrac-
tores que pôem em perigo a vida de terceiros.

230

«Lisi.
111. As legislaçôes liberalizadoras do aborto nâo terâo
um papel preventivo ?

Como negar que é indispensâvel criar condiçôes que


dissuadam as mâes de recorrer ao aborto ? Todavia, as
legislaçôes que o liberalizam sâo, por sua prôpria
natureza, incentivadoras (cf. 41). As legislaçôes anteriores
tinham uma funçâo largamente preventiva: a ameaça da
sançâo pénal tinha um efeito dissuasor real (cf. 49). É
reconfortante verificar hoje que medidas positivas -
traduzidas num acompanhamento caloroso, no acolhi-
mento, na adopçâo, numa fiscalidade apropriada —con
tribuent para a sua prevençâo.
E necessârio contudo verificar que, do papel preven
tivo, as leis liberalizadoras nâo conservam mais do que
uma conversa prévia, preliminar, puramente formai, se
nâo inexistente. Sabe-se o que entâo se passa: marca-se
um encontro para fazer o aborto (cf. 110).

231
112. É entâo necessârio continuar a reprimir o aborto?

A criança nâo nascida précisa de uma protecçâo juridi-


ca eficaz, e é por esta protecçâo que trabalham princi-
palmente politicos1 ejuristas2. É preciso que o direito
de todo o ser humano à vida seja garantido pela lei e
que o desrespeito deste direito seja punido (cf. 110).
É preciso portanto viver e deixar viver, e usar de rigor
contra os que impedem outros de viver.
Porém, se a dissuasâo é necessâria e indispensâvel, ela
Ù também insuficiente. É preciso além disso ajudar as
mulheres em dificuldade e mesmo criar condiçôes tais
que a espéra de um filho seja o menos possîvel causa
de perturbaçâo.
É portanto necessârio nâo confundir os objectivos
dissuadir e ajudar. Alguém acusava um dia a Madré
Teresa de Calcutâ por esta nâo dar escolaridade sufi-
ciente as crianças de que se ocupava. «Eu dou-lhes de
corner, respondeu ela, cabe avos fazer o resto». Dar de
corner, permitir viver: é a tarefa primordial, que nâo
dispensa as outras. O problema é nâo somente ajudar
certas crianças a escapar ao aborto, mas também criar
uma sociedade onde todas as crianças possam ser aco-
lhidas. É preciso punir os automobilistas infractores,
mas é também preciso prévenir os acidentes na estra-
da.

232
"A este respeito, note-se a acçào corajosa de Christine Boutin, deputada por
Yvelines (França), que ilustra beni a sua obra Pour la défense de la vie, Paris,
Téqui, 1993.
2Cf. L'enjeu politique de l'avortenient, cit., pp. 27, 51.

233
113. A adopçâo oferece uma iCalternativayy ao aborto?

a) Se uma mâe nâo se sente com forças para amar e


fazer feliz o seu filho, existem tantos casais e mulheres
que choram por adoptai* uma criança, amâ-la e fazê-la
feliz...
b) Muitos casais lamentam nâo poder ter filhos e
desejam adoptar um. Além disso, muitas mulheres
renunciariam ao aborto se estivessem mais bem infor-
madas das possibilidades de deixar o seu filho, logo à
nascenca, a uma familia que o reconheceria e amaria
como seu1. Facilitai- as formalidades para fazer adoptar
e para adoptar contribuiria portanto para prévenir o
aborto, contribuindo assim para a criaçâo de uma
mentalidade acolhedora para todas as crianças aban-
donadas, de qualquer origem.

xEvangcUum Vitae, 63, 93.

234
CAPITULO XIV

A IGREJA E A NATALIDADE
114. Que diz a Igreja sobre o aborto?

Antes de mais é preciso que os Cristâos se lembrem da


"regra de ouro" atestada em todas as grandes tradiçôes
morais da humanidade1 e retomada por vârios filôso-
fos2 de entre os maiores. Esta "regra de ouro"3 é reafir-
mada e levada à perfeiçâo no Evangelho: «Tudo o que
quiserdes que os homens vos façam fazei-lho vos tam
bém» (cf. 59, 143).
E preciso também que os Cristâos se lembrem de
que, segunda a Escritura, os assassinos nâo entrarâo no
Reino de Deus.4
Finalmente, é preciso que saibam que o aborto nâo
é uma falta entre outras ao respeito devido à vida
humana, mas que, devido à fraqueza extrema da viti-
ma, é um "crime abominâvel".5

'«O que tu considéras detestâvel, nâo o faças ao teu prôximo» (tradiçâo


judaica); «Esta é a suma do dever; nào faças aos outros o que, a ti, te faria
mal» (tradiçâo hindu); «Nào ofendas outrem da forma que te ofende-
ria» (tradiçâo budista); «Nào façais aos outros o que nào quereis que eles
vos façam» (tradiçâo confucionista); «Nenhum de vos é um crente se nâo
deseja para o seu irmâo o que deseja para si mesmo» (tradiçâo islâmica), etc.
(cf. A. Fossion, Passion de Dieu, Passion de l'homme, Bruxelas, De Boeck, 1985,
p. 22).
2Em filosofia, a "regra de ouro" esta no centro da moral de Kant (1724-
-1804): «Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa
como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e
nunca simplesmente como meio». E, como as grandes tradiçôes morais da
humanidade, Kant pôe em relevo o alcance universal desta regra: «Age ape-
nas segundo uma mâxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se
torne lei universal.» (Immanuel Kant, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten,

237
trad. port, de Paulo Quintela: Fundamentaçào da Metafisica dos Costumes, Lis-
boa, Edicôes 70,1995 (rééd.), pp. 69, 59.)
>V por exemplo Mt 5,38; 7,12; 22,34. Le 6,31; Jo 13, 34ss.
'Cf. Gen 4, 10; Ex 20,13; Dt 5,17; Sg 2, 24; Rm 1,29-32; Jo 8,39-44; IJo
3 12-15; Ap 21,8; 22,15.V. Gaudium et Spes, 27.
sCf. Gaudium et spes, 51; Cânone 1398. O ensino da Igreja sobre o aborto
encontra-se exposto nos n.m 2270-2275 do Catecismo da Igreja Catôlica.

238
115. Sobre o respeito da vida humana} e em particular
sobre o respeito pela criança nâo nascida, nâo se verifi-
ca que muitos cristâos estâo em desacordo aberto com a
Igreja ?

O respeito da vida humana é fundamental na definiçâo


da identidade cristâ. Reconhecer o valor infinito de
todo o indivîduo humano é essencial a toda a moral
cristâ, qualquer que seja a sua formulaçâo1. Reconhe
cer este valor é a condiçâo para entrar na moral cristâ. Nâo
se trata de uma escolha deixada ao discernimento de
cada um no interior da ética cristâ. Esta verdade, objec-
tivamente fundada, é por assim dizer o pôrtico de toda
a moral cristâ.

'Esta tese encontra-se magistralmente exposta por Jean-Marie Hennaux em


Le droit de l'homme à la vie, de la conception à la naissance, Bruxelas, Institut.
d'Etudes Théologiques, 1993.

239
116. Nâo se arriscam os cristâos de hoje a ser censura-
dos por uma falta de coragem tâo lamentâvel como
aquela de queforam acusados alguns cristâos no passa-
do?

Dias virâo —e nâo vâo tardai" —em que se censurarâ o


silêncio ou a cegueira de certos cristâos, tornados alia-
dos objectivos, ou mesmo cûmplices activos, daqueles
que declararam guerra aos mais fracos (cf. 89). Para
eles, o julgamento da histôria sera mais severo que para
os condenados de Nuremberga ou para os cristâos que
o fumo acre de Dachau nâo incomodou —precisa-
mente, porque agora ninguem ignora o que aconteceu
em Nuremberga e em Dachau.1

'V. L'enjeu politique de l'auortement, cit., p. 72.

240
117. Nâo deveria a Igreja Catôlica ter em conta a
evoluçâo dos costumes e adaptar a sua concepçâo do
pecado ?

Se a Igreja perdoa os pecados, todavia nâo os autoriza.


Cristo delegou-lhe o poder de perdoar aos pecadores
arrependidos, nâo o de negar a existência do pecado.
Graças a Deus, sempre houve pecadores que reco-
nheceram os seus pecados. A histôria da Igreja esta
cheia deles.
O elemento novo que o debate sobre o aborto fez
aparecer, é que presentemente se nega o pecado. Nega-
-se a transgressâo (cf. 43) da moral natural, primeiro, e da
lei divina: chamando bem àquilo que é mal, o homem
usurpa o lugar de Deus e substitui-se-Lhe (cf. 18, 51)1.
Nâo sô ele récusa ver e reconhecer o mal que faz,
como déclara esse mal um bem para si. O perdâo que
Deus oferece ao homem torna-se portanto sem objec-
to2. Assim, ao tornar-se cego sobre a sua falta, o homem
fecha-se à salvaçâo que Deus lhe oferece. E este, talvez,
o pecado contra o Espïrito.

xEvangelium Vitae, 24,104.


2Cf. L'enjeu politique de l'auortement, cit., pp. 33, 62, 91.

241
118. Porque é que a Igreja récusa a contracepçao
Zn7>

É sempre importante distinguir cuidadosamente os


problemas. A contracepçao artificial tem por objectivo
prévenir eficazmente uma gravidez; o aborto tem por
objectivo destruir uma criança concebida (cf. 122).
A Igreja pede aos casais que nâo dissociem ra-
dicalmente sexualidade e procriaçâo porque considéra
que a relaçâo conjugal é um acto humano, irredutivel
a um comportamento puramente instintivo. Mais pre-
cisamente, a Igreja nâo aprova os meios de contracepçao
artificial porque, de uma maneira gérai, estes desviam a
sexualidade de um dos seus fins essenciais. Contudo, ao
mesmo tempo a Igreja encoraja os Cristâos a
crescerem, corn a graça, na prâtica da sua liberdade e da
sua responsabilidade. Sexualidade, liberdade, responsa-
bilidade sâo, portanto, englobadas numa visâo intégral
do homem. Reconheçamo-lo: os pedidos da Igreja
nestes domïnios sâo exigentes, como o é todo o Evan
gelho.

242
119. Nâo haverâ que distinguir cuidadosamente a con
tracepçao hormonal da esterilizaçâo ?

a) Antes de mais é preciso nâo perder de vista que


muitos produtos contraceptivos sâo igualmente anti-
nidaçâo, ou seja, abortivos (cf. 122). Sublinhado isto, é
preciso verificar que a maior parte dos métodos con
traceptivos clâssicos têm em principio um efeito tem-
porârio, enquanto a esterilizaçâo se quer defxnitiva.'-p, que
as técnicas de reversibilidade sâo, como se sabe, muito
aleatôrias.1
b) Mas é justamente o carâcter temporârio e pro-
visôrio da contracepçao que cria um problema parti
cular. O mecanismo psicolôgico que intervém aqui é
bem conhecido daqueles que estâo atentos ao com-
portamento humano. A contracepçao dissocia a pro-
criaçâo do prazer, mas nâo é usada, proclamam, para
recusar definitivamente a transmissâo da vida, mas para
a deixar eventualmente para mais tarde. O prazer esta
la, com a sua potencialidade geradora, mas esta poten-
cialidade é suspensa, e, psicologicamente falando, a
procriaçâo é diferida ou adiada.
c) Uma coisa é que os esposos recorram a meios
honestos para adiar um nascimento quando circuns-
tâncias particulares justificam esta decisâo; é mesmo, se
se der o caso, uma maneira de exercerem a paternidade

î 243
responsâvel. E contudo completamente diferente o
instalarem-se numa atitude habituai de adiamento da
procriaçâo. Tal atitude, com efeito, tem os seus riscos,
pois na prâtica cada um sabe por experiencia prôpria
que adiar uma acçâo pode por vezes significar pura e
simplesmente nâo agir. Sabemos, por exemplo, o que
acontece com certos fumadores que dizem querer
deixar de fumar: se adiam constantemente a sua
decisâo, acabam por nunca renunciar ao tabaco. O
exemplo do que se passa com os estudantes univer-
sitârios é ainda mais éloquente: alguns adiam incessan-
temente a sua decisâo de começar a estudar para um
exame e quando por fim se decidem é demasiado
tarde.
d) Em matéria de contracepçao, intervêm mecanis-
mos psicolôgicos anâlogos. Muitos casais jovens disso-
ciam prazer e procriaçâo, afirmando que o fazem, para
diferir esta ûltima. Ora, à medida que o tempo passa,
insinua-se nestes casais uma perplexidade crescente:
«Nâo estamos a ficar demasiado velhos para ter filhos?»
E quando a mulher se aproxima dos 35 anos, uma
outra consideraçâo confirma-a na sua perplexidade
psicolôgica. Explicam-lhe que na sua idade aumenta o
risco de por no mundo uma criança anormal.
Assim se contrai o periodo de fecundidade efectiva
dos casais que praticam a contracepçao. Enquanto a

244
fecundidade da mulher se estende naturalmente dos 15
aos 49 anos, aproximadamente, o perîodo de fecundi
dade destes casais diminui para poucos anos e por vezes
desaparece totalmente.
E portanto évidente que a banalizaçâo da contra
cepçao é uma das maiores causas da quebra demogrâ
fica dos paises ditos desenvolvidos.

'Sobre os aspectos psicologicos dos problemas abordados nesta questào,


v. Marie-Magdeleine Chatel, Malaise dans la procréation, Paris, Albin Michel,
1993.

245
120. Quem diz paternidade responsâvel diz contra
cepçao. Ora, a Igreja opoe-se à contracepçao.

A transmissâo da vida associa o homem e a mulher à


acçâo criadora de Deus. E um actor de amor porque
prolonga o acto de amor de um Deus que é todo
Amor e por isso totalmente livre1. Aos olhos da Igreja,
a sexualidade humana é menos instintiva do que a
moral hedonista faz crer. Ela entra no dominio da
liberdade e da responsabilidade humana; nâo pode ser
delegada em técnicos nem deixada ao seu arbitrio
(cf. 122).

yEvangelium Vitae, 43.

246
F

121. A Igreja poe as pessoas na necessidade de recor-


rerem ao abovto povque se opoe à contracepçao.

A corrente malthusiana inculcou na opiniâo pûblica a


ideia de que a contracepçao é a mesma coisa que pro-
criaçào responsâvel ou que a limitaçào dos nascimentos. Esta
identificaçâo procède de um abuso de linguagem
escandaloso.
a) A Igreja considéra que a paternidade e a mater-
nidade responsâveis estâo inscritas nos designios de
Deus1. A Igreja é-lhes favorâvel e por isso encoraja os
métodos naturais de regulaçâo dos nascimentos. Mas a
Igreja récusa o meio que é a contracepçao artificial.
Porquê ?2
Primeiro porque - sem ter em conta aqui as conse-
quências demogrâficas (cf. 125 s.) - a contracepçao
faz-se sempre em prejuïzo de um membro do casai,
por vezes do homem (por exemplo, vasectomia); na
maior parte das vezes da mulher (por exemplo,
ingestâo de hormonas, stérilet, esterilizaçâo)3. Alias
somos obrigados a verificar que na Comunidade
Europeia as vacas sâo bem mais protegidas contra o
emprego de hormonas do que as mulheres...
Depois, a contracepçao artificial expulsa a verda-
deira liberdade do campo da sexualidade humana.
Ora a sexualidade humana nâo é puramente ins-
tintiva; ela é responsâvel e dôminâvel.

247
b) A vontade dos esposos de evitar a procriaçâo pela
contracepçao artificial, e ainda mais pela esterilizaçâo,
repousa sobre um discurso implicito fâcil de reconsti-
tuir. Tudo se passa como se o marido dissesse à sua
mulher, habitualmente a principal interessada: «Queri-
da, eu amo-te, mas nâo como tu es, ou seja, fecunda.
Eu amo-te na condiçào de tu seres infecunda, ou mesmo
estéril.Tens de te modelar segundo o meu desejo para
que eu possa ter-te quando quero». E de resto contra
este tipo de discurso fantasma que as mulheres
começam a insurgir-se4.
c) Em suma, a Igreja recomenda aos casais que
respeitem o laço essencial entre sexualidade e amor.
Este laço supôe durabilidade, ou seja compromisso e
fidelidade (cf. 135).A procriaçâo inscreve-se no quadro
deste projecto concertado de vida conjugal.
O que muitos têm dificuldade em perceber é que a
Igreja quer salvar a liberdade como dimensâo constitutiva
da existência humana. Esta liberdade nâo pode ser
reduzida à ausência de constrangimentos fïsicos ou
morais; ela nâo é abandono as pulsôes egoistas do
instinto sem peias. Esta liberdade é capacidade de con
sentir valores (como o bem ou a justiça) que a razâo
pode descobrir; é capacidade de se abrir a outrem, ou
seja, de amar.
O mïnimo séria reconhecer que a posiçâo da Igreja

248
é coerente e que ela leva a sério a liberdade e a res-
ponsabilidade do homem, assim como a dimensâo cor-
poral do amor humano.

'V. Gaudium et spes, n.os 50ss.; Donum vitae, n.° 5.


-Evangelium Vitae, 97.
3Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., pp. 307ss.
4Cf.A.-M. de Vilaine, L. Gavarini, M. Le Coadic (coord.), Maternité en mou
vement. Lesfemmes, la reproduction et les hommes de science, Montréal, Saint-Mar
tin, 1986.

249
122. Uma contracepçao ejtcaz nâo sera o melhor meio
de prévenir o aborto ?

a) Os partidârios do aborto levaram a opiniâo pûblica


a identificar a prevençâo do aborto com a contra
cepçao1. Ora o hâbito da contracepçao engendra uma
mentalidade abortiva: se a pilula falha, recorre-se facil-
mente ao aborto como solucâo.
Isto é um facto reconhecido e bem compreensivel2.
A mentalidade contraceptiva consiste, com efeito, em
separar totalmente nas relaçôes sexuais humanas, a
finalidade unitiva, ou seja, a felicidade dos esposos, da
finalidade procriativa, ou seja, a transmissâo da vida.
Daqui résulta por um lado que a uniâo fisica é vista
como um bem que se deseja, e por outro que a pro
criaçâo é um risco que é preciso évitai", ou mesmo um
mal que é necessârio afastar (cf. 70, 123).
A separaçâo total entre a uniâo sexual e a fecundi-
dade, ou seja a contracepçao, é no entanto apresentada
como a maior vitôria da mulher à procura de liber-
taçâo (cf. 19). Ora é preciso apercebermo-nos de que
a contracepçao nâo é intéressante senâo na medida em
que é totalmente segura. Na mentalidade contraceptiva,
esta separaçâo deve ser tâo eficaz e tâo segura quanto
possïvel. Donde duas consequências: primeiro, a res-
ponsabilidade do comportamento sexual e das suas

250

l:
consequencias —a transmissâo da vida —é delegada na
técnica (cf. 120); segundo, em caso de falha contracep
tiva, recorre-se ao aborto de "correcçâo".
b) Todavia, a coisa mais grave a notar agora, é que a
contracepçao se confunde cada vez mais com o aborto5. Com
efeito, muitas das pilulas actuais têm a capacidade de
produzir très efeitos distintos:
—O primeiro é contraceptivo, ou seja, previne a fecun-
dacâo.
—O segundo é um efeito de barreira: ao modificar a
composiçâo do muco cervical, a substância "contra
ceptiva" impede os espermatozôides de passarem ao
utero e as trompas para ai encontrar o ôvulo.
—O terceiro é antinidatôrio (ou "contragestivo"), ou
seja, provoca um aborto précoce.
Os dois primeiros efeitos sâo preventivos; exercem-se
apriori, impedindo que um ser seja concebido. O ter
ceiro é consecutivo-, exerce-se a posteriori, destruindo um
ser concebido. Mas, por razôes fisiolôgicas évidentes, sô
um destes efeitos é produzido. A pilula ora âge apriori,
ora âge a posteriori. Ou a concepçâo nâo se deu, e o
efeito é preventivo; ou a concepçâo deu-se, e o efeito
é antinidatôrio ou "contragestivo". Todavia, qualquer
que seja o caso, nâo se tem um meio de saber o que
aconteceu.

Daqui résulta, do ponto de vista moral, que a

251
mulher, nâo sabendo nunca verdadeiramente o que se
passa, se encontra totalmente espoliada de qualquer
responsabilidade moral, tanto em relaçâo ao filho que
pode eventualmente ter concebido, como em relaçâo
ao seu parceiro. A eficâcia total junta à ignorância total na
quai ela é mantida significa a sua total alienaçâo: ela é o
objecto de um processo quimico determinado,
impiedoso.
c) Em conclusâo, nâo se é coerente consigo prôprio
quando se afirma ser a favor da contracepçao e contra o
aborto, dado que muitos dos preparados apresentados
como contraceptivos sâo também, se necessârio,
abortivos. Dai que para acabar com o flagelo do abor
to seja necessârio abandonar a contracepçao e pro-
mover os métodos naturais que favorecem a pater-
nidade responsâvel.

lEvangelium Vitae, 13.


2Cf. L'enjeu politique de Yavortement, cit., pp. 81, 166-168.
lCf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., pp. 76ss.

252
123. Quais sao as consequencias da dissociaçao entre
sexualidade e procriaçâo na uniâo conjugal ?

A dissociaçao radical entre os dois fins da uniâo con


jugal tem duas consequencias. Primeiro, ela pôe em
perigo a prôpria existência da célula familiar, princi-
palmente favorecendo o amor livre antes do casamen-
to. Depois, ela conduz insensivelmente a um estado de
espirito que récusa a vida, e que é mesmo assombrado
pela morte (cf. 142 s.). Como a procriaçâo é um mal
que é preciso evitar a todo o custo, é preciso inevi-
tavelmente matar aquele que se torna um obstâculo ao
ûnico bem que se procura no acto conjugal: a uniâo
carnal e o prazer que lhe esta ligado (cf. 107,122).

253
CAPITULO XV

A IGREJA E A DEMOGRAFIA
124. Como é que a contracepçao praticada por alguns
casais tem uma dimensâo politica ? Nâo é um assunto
puramente privado ?

a) O que é politicamente preocupante é que a separa


çâo radical entre sexualidade e procriaçâo permite a
intervençâo de um terceiro - por exemplo de um
médico, mandatado ou nâo - na mais intima relaçâo
interpessoal. O contrôle do comportamento sexual dos
esposos, ou seja a fecundidade, arrisca-se a ser trans-
ferida para uma nova classe de tecnocratas ou para o
Estado. Os exemplos da China ou do Vietname sâo
infelizmente bem conhecidos, mas negligencia-se a
reflexâo sobre eles. Particularmente a China, chega ao
ponto de fixar prazos durante os quais as mulheres,
devidamente munidas da licença de procriaçâo, sâo
autorizadas a dar à luz. A transmissâo da vida deve sub-
meter-se ao calendârio gérai da prôduçâo nacional.
O numéro de nascimentos admitidos obedece a quo
tas variâveis segundo os sexos, critérios eugénicos e
diversos outros paramétras definidos por tecnocratas
impiedosos.1 Negligencia-se do mesmo modo a
reflexâo sobre outros exemplos igualmente inqui
étantes, como os do Brasil2 e do Mexico. Segundo um
estudo mencionado pelo ippf (pouco suspeito na
materia!), mais de 40% das mulheres brasileiras em

257
idade de procriar e utilizadoras de contraceptivos
encontrar-se-iam esterilizadas.3 No Mexico, o panora
ma é semelhante. Uma das demôgrafas mexicanas de
maior renome informa que so no ano de 1982 foram
esterilizadas 1 358 400 mulheres.4 Numa publicaçâo
oficial, o prôprio governo mexicano révéla dados rela-
tivos a 1992. Naquele ano, de entre as mulheres que
utilizavam contraceptivos, 17,7% tinham um dispositi-
vo intra-uterino (diu) e 43,3% haviam sido esteri
lizadas.5
b) Assim, a nossa sociedade é testemunha de duas
novas formas de alienaçào.
Nela encontram-se muitas crianças sem pais e
muitos pais sem filhos (cf. 22).Os filhos nascidos fora
do casamento, da niesma mâe mas de pais diferentes,
sâo maioritârios em vârios paises da America Latina.
Privados do afecto de uma famïlia, tornam-se delin-
quentes, traficantes de droga, criminosos; prostituem-
-se. É o drama dos meninos de rua. A este propôsito é
notôrio que, se as crianças nascidas fora do casamento
sâo a expressào de um aspecto significativo dos fenô-
menos demogrâficos no Terceiro Mundo, é ai urgente
trabalhar para a revalorizaçâo da familia.
Por outro lado, se nâo é raro que crianças sejam
desapossadas dos pais, écada vez mais fréquente que os
esposos sejam espoliados desta consequência natural do
258
seu comportamento que é a procriaçâo. Assistimos
aqui à eclosâo de uma situaçâo inversa à denunciada
por Marx. Para este, com efeito, a proie, os filhos, eram
a ûnica riqueza dos trabalhadores, aquela de que nâo
eram espoliados. Os proletârios descntos por Marx
eram espoliados do produto do seu trabalho, nâo dos
seus filhos6. Os casais do século xxi arnscam-se a ser
espoliados da sua progenitura (cf. 132).

'Sobre este assunto, v.John S. Aird, Foreign Assistance ta Coercive Family Plan
ning in China. Rcsponse to Récent Population Policy in China, Canberra,Terence
Hull, 1992; também se deve a este grande especialista um estudo intitulado
Family Planning, Women, and Human Rights in (lie People's Republic of China,
Taipei, Meeting on Family and Demography in Asia and Oceania (Setembro
de 1995).
2Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 157.V. também Délcio da Fonse-
ca Sobrinho, Estado e Populaçào. Uma histôria do planejaniento familiar no Brasil,
Rio de Janeiro, Rosa dosTempos/FNUAP, 1993. Sobre a atitude dos EUA e do
governo militer brasileiro, v. pp. 91-100. V. ainda Carlos Penna Botto,
«Explosào demogrâfica», in Revista Maritima Brasilcira (Rio de Janeiro),
vol. 113,Janeiro-Março de 1993, pp. 103-113.
3Ver a revista Open File (Londres, ippf), n.° de Novembro-Dezembro de
1996, p. 15.
4Cf. Marïa-Eugenia Cosio-Zavala, Changements defécondité au Mexique et poli
tiques de population, Paris, Institut des Hautes Études de l'Amérique Latine,
1994; v. quadro IV.ll, p. 151.
5Programa Nacional de Poblaciôn, Mexico DF, Poder Ejecutivo Fédéral, 1995;
v. quadro II.5, p. 24.
'Hannah Harendt consagrou paginas notâveis as relaçôes entre trabalho e
procriaçâo em Condition de l'homme moderne, éd. fi\, Paris, Calmann-Lévy,
1988 (v.,v.g.,pp. 133, 152ss.).

259
125. Com a sua moral, nâo terà a Igreja uma pesada
responsabilidade no crescimento demografïco mundial?

a) E preciso antes de mais notar que païses como a


India ou a China, onde as situaçôes demogrâficas sâo -
segundo se diz —sérias e complexas, nâo sufocam sob
a influência da Igreja e da moral cristâ1. Indira Gandhi
sofreu uma derrota eleitoral retumbante em 1977
porque com o seu filho Sanjay tinha querido impor
aos Indianos medidas anti-vida, principalmente a este-
rilizaçâo coerciva2. Os Indianos aperceberam-se de que
estas medidas eram intolerâveis porque desumanas, e
nâo precisaram da Igreja para fazerem esta descoberta.
b) A Igreja nâo nega alias minimamente a existência
de questôes demogrâficas mundiais; ela diz mesmo que
estas devem ser examinadas seriamente (cf. 82, 85,
132). Mas o que a Igreja afirma sobretudo é que os
problemas postos tanto pelo crescimento como pela
implosâo demogrâficas, sâo antes de mais de natureza
moral. Mais exactamente, a sua soluçâo torna-se difïcil
devido a "estruturas de pecado", que provocam
inûmeras distorçôes no processo de desenvolvimento.
É esta afirmaçâo que incomoda e que muitos recusam.
Para a Igreja, o subdesenvolvimento e a pobreza tem
a sua fonte no egoismo, no materialismo, nas injustiças,
na incompetência, na preguiça, na corrupçâo, nos

260
desequilîbrios na distribuiçâo da riqueza, na ma orga-
nizaçâo, etc. Mas a Igreja acrescenta îmediatamente
que para estes problemas hâ soluçôes, e que estas
soluçôes se chamam direitos do homem, respeito,
justiça, paz, solidariedade, amor.

'O caso da China foi recentemente estudado por um dos maiores especialis-
tas da demografia deste pais, John S.Aird, Foreign Assistance to Coercive Family
Planning in China. Response to Récent Population Policy in China, Canberra,
Terence Hull, 1992.
2Cf. Britannica Book qf (lie Year, 1978, Chicago, Encyclopaedia Britannica,
p. 434.

261
126. Porque é que muitos rejeitam a mensagem da Igre
ja sobre a miseria do Terceiro Mundo ?

Face aos pobres, os ricos tem ma consciência e, segun


do um processo clâssico, procuram um bode expiatorio
para explicar as disfunçôes da sociedade actual.
Consideram entâo que os pobres sâo responsâveis
pela sua prôpria pobreza (cf. 83). Ao mesmo tempo, os
ricos fecham-se a todo o discurso que os levaria a ver
que uma das maiores causas da miseria se encontra na
dureza do seu coraçâo. O drama é que eles se recusam
a mudar de vida.

262
127.-4 moral conjugal da Igreja nâo é natalista?

A moral conjugal da Igreja é fundamentalmente aber-


ta ao acolhimento da vida, mas isso nâo significa que a
Igreja seja energeticamente natalista (cf. 121). No seu
ensinamento constante, a Igreja recomenda a pater-
nidade responsâvel (cf. 130). A Igreja nâo pede aos
Cristâos que tenham o mâximo possîvel de filhos, mas
pede-lhes que tenham todos os filhos que possam
razoâvel e generosamente acolher e educar, nas cir-
cunstâncias reais da sua vida.1

'Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 308.

263
128. Segundo certos especialistas, a posiçâo da Igreja em
materia de contracepçao e de demografia vai engendrar
consequencias dramâticasy principalmentefornes.

Segundo a prôpria FAO e o FNUAP, dos quais é co-


nhecida a acçâo para o contrôle demogrâfico, hâ
actualmente comida mais do que suficiente para ali-
mentar o planeta (cf. 80, 82, 102). O problema essen-
cial nâo é nem de ordem demogrâfica, nem de ordem
agronômica; é de natureza moral, polïtica e organiza-
cional (cf. 92).
Isto nâo impede certos demôgrafos ou agrônomos
alarmistas de preconizarem a "licença de procriar",
como existe na China. Quando se faz notar que esta
ideia foi jâ proposta por Hitler no Mein Kampf, hâ pes-
soas que ficam furiosas. É no entanto a verdade e séria
bom que dai tirassem conclusôes...

264
129 Porque haveria de se instaurât uma C(licença de
procriaçâo" nos paises ricos, onde a baixa natalidade
torna jâ proporçoes inquiétantes?

Aresposta a esta questâo é dada com toda a clareza por


partidârios da planificaçâo demogrâfica. O que dizem
eles em suma ?Antes de mais é preciso fazer admitir o
aborto ou seja, o condicionamento da permissâo de
viver nos paises ricos (cf. 143). Em seguida, aproveita-
-se o exemplo destes paises para fazer admitir estas
prâticas e generalizâ-las no Terceiro Mundo1. Alias,
porque é que um pais que nâo hésita em matar os seus
prôpnos filhos hesitana em matar os dos outros ? (Cf.
86, 103, 107.)
Que a longo prazo estas prâticas sejam suicidas para
os paises ricos, é algo que nâo parece preocupâ-los
nainimamente... Destmadas ao Terceiro Mundo, estas
campanhas suicidas acabam por se virar contra os pai
ses ricos que as lançaram (cf. 86). Este efeito de
boomerang repercute-se até no prôprio Terceiro
Mundo, onde sâo as mmonas mais educadas e instrui-
das, e portanto as mais preciosas para estimular o
. desenvolvimento, que tem acesso à mentalidade anti-
natalista.

1Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 166.

265
130. Onde esta afonte do ensinamento da Igreja sobre
a populaçâo ? Nâo é numa moral conjugal natalista ?

O que diz a Igreja sobre as questôes demogrâficas


encontra-se sobretudo no seu ensinamento social, que,
sobre este ponto, recebe da moral conjugal uma luz par-
ticular1. De resto, como explicâmos (cf. 23), esta moral
conjugal esta orientada para a paternidade responsâvel.
Contudo, muitos nâo percebem que a moral social
cristâ é tâo exigente como a moral conjugal da Igreja2.
Ora, o que diz antes de mais a Igreja no seu ensina
mento social, é que o homem nâo é feito para o mer-
cado; é o mercado que é feito para o homem. A vida
do homem nâo pode ser organizada principalmente —
ou mesmo exclusivamente —em funçâo dos impera-
tivos do mercado tal como ele é concebido pela ide-
ologia libéral.
A Igreja acrescenta que os problemas do desenvolvi-
mento e da populaçâo resultam do egoîsmo gérai
daqueles que se recusam a por em causa o seu estilo de
vida, a converter-se (cf. 126), e que por isso sâo leva-
dos a por em causa o direito dos mais fracos à vida (cf.
137).

'O ensinamento sobre a vida dado por Joào Paulo II nos primeiros dez anos
do seu pontifîcado deu origem a uma compilaçào de mais de oitocentas
paginas: Dieci anni per la vita (organizaçào de Giovanni Caprile e apresentaçào

266
de Carlo Casini, Roma, Soc. Coop. Centro Documentazione e Solidarietà,
1988).V. também Le droit à la vie, Solesmes (col. «L'Enseignement des Papes»),
1981; e, na colecçào «Ce que dit le Pape» das ediçôes Le Sarment-Fayard,
De la Sexualité à l'amour (n.° 15), Se préparer au mariage (n.° 7), L'euthanasie
(n.°ll).
2É o que sublinhajoào Paulo II na enciclica Veritatis Splendor,nr 95-101.

267
131. Nâo estarâ a Igreja a negligenciar completamente
osproblemas demogrâficos quando enuncia os seus belos
principios sobre o desenvolvimento?

A Igreja diz que é inadmissïvel que, no estudo do


desenvolvimento, se ponha o acento tônico na
importância do factor demogrâfico e que se queira agir
principalmente sobre este, sem querer mudar os outros
em profundidade. E inadmissïvel que se esteja muito
menos disposto a tocar noutros parametros. Que
parametros, por exemplo ? As despesas excessivas com
armamentos e burocracias pletôricas; insuficientes para
o ordenamento do territôrio, a agricultura, a saûde;
irrisôrias para a educaçâo. Sem entrai" noutras consi-
deraçôes, a Guerra do Golfo, por exemplo, custou um
biliâo de dolares por dia.

268
132. Em materia de demografia, nâo estarâo de mâfé os
moralistas catôlicos ? Com efeito, dizem que o desen
volvimento leva à queda da natalidade, mas ocultam que
esta queda da natalidade é obtida, nos paises desen-
volvidos, através de métodos que a Igreja condena.

a) É certo que é em parte devido a métodos condena-


dos pela Igreja que a demografia rétrocède nos paises
ricos. A melhor prova de que estas técnicas sâo mâs, e
que a Igreja tem o direito e o dever de as condenar, é
justamente o facto de os paises onde sâo mais em-
pregues terem caîdo abaixo da taxa de fecundidade
necessâria à substituiçâo das geraçôes1. Nos paises ricos,
esta taxa é de 2,1 filhos por mulher em idade de pro-
criar (cf. 85).Vê-se bem que estes métodos sâo maus
pelos resultados a que conduzem. Se continuarem a ser
aplicados como agora, as naçôes onde sâo usados em
larga escala vâo desaparecer2. De 1960 a 1990, o nu
méro de filhos por mulher em idade fértil passou de
2,37 a 1,45 na Alemanha; de 2,41 a 1,26 em Itâlia; de
2,57 a 1,60 na Bélgica. Em França, passou de 2,56 a
1,62, mau grado a importância da imigraçâo. A quai,
por seu turno, pôe diversos problemas3. Exagera-se en-
tâo quando, neste caso, se fala de suicidio de um povo?
Nâo se espère portante da Igreja que aprove estes
métodos! Vale mais tomar nota da devastaçâo que

269
fazem nos paises onde sâo largamente aplicados e
reconhecer portanto que nâo sâo bons.
b) Pelo contrario, é totalmente certo dizer que, num
pais onde nâo hâ absolutamente nenhuma protecçâo
eficaz dos pobres, a pobreza exacerbada aumenta
formidavelmente o desejo de ter muitos filhos,porque é
o ûnico meio de sobreviver. Todos os que trabalham no
terreno sabem que os pobres dizem muitas vezes
«Haverâ pelo menos um ou outro dos meus filhos que
me alimentarâ e cuidarâ de mim quando eu for velho».
Como nâo dar razâo à Igreja ? Diz a Igreja que nas
sociedades que nâo protegem as camadas pobres da
populaçâo, é a propria pobreza que leva a esta condu-
ta de sobrevivência baseada no afecto de um filho.
A razâo profunda, e de resto ûnica, que inspira esta con-
duta, e que foi perfeitamente identificada por... Marx, é
que o filho é a ûnica riqueza do pobre (cf. 124). Ter
muitos filhos é o ûnico recurso de que dispôem os
pobres para subsistir no futuro.
Quando nâo hâ segurança social, quem vai alimentai-
os velhos, senâo os seus filhos ? E como estes filhos sâo
eles mesmos vïtimas de uma taxa de mortalidade
muito elevada, porque sâo mal cuidados e nâo comem
o suficiente, é preciso ter muitos para sobreviver.
É assim perfeitamente lôgico dizer que quando se
luta eficazmente contra a pobreza, esta procura de

270
segurança - baseada na progenitura - perde a sua razâo
de ser. Esta situaçâo nova diminui desde logo o desejo
e a necessidade de ter uma descendência numerosa.
c) Os defensores da moral catôlica nâo tem portan-
to nenhuma razâo para esconderem uma tal situaçâo.
Eles devem, pelo contrario, denunciâ-la e con-
tribuirem para Ihe dar remédio. Aos que Ihe pedem
que aprove os seus métodos "modernos", a Igreja
recomenda: «Verificai vos prôprios aonde leva o quefazeis.
Disseram-vos que esses métodos eram maus; vede: a
prôpria Natureza vos mostra que fazeis mal a vos mes-
mos e aos outros».

d) A Igreja porém nunca pretendeu que séria fâcil


obter uma regulaçâo dos nascimentos, em determina-
da populaçâo, através dos métodos correctos (cf. 121).
Ela sublinha contudo um facto normalmente ocultado,
a saber, que quando sâo usados métodos desonestos e
desumanos, se corre para a catâstrofe. Ou nâo résulta, ou
mata-se (matamo-nos).
Acabaremos portanto por perguntar-nos se a
acusaçâo de hipocrisia nâo deve antes ser dirigida a
outra morada.

'Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., pp. 33ss.V. outros dados na resposta
à questào 85.
-'Sobre este assunto v. a comunicaçào apresentada (18.10.1993) por Gérard-
-François Dumont à Académie des Sciences Morales et Politiques de Paris
sob o titulo De "l'explosion" à "l'implosion" démographique?

271
•'Cf. Eurostat (1993), quadro ElO, p. 98. Segundo os dados de Eurostat, «por
comparaçào com 1975, frequentam hoje as escolas primârias dos paises da
Comunidade Europeia menos sete milhôes de alunos, aproximadamente».V.
Europe Today (Bruxelas), n.° 111 (23.03.1992), p. 1.

272
133. Nâo se é irrealista ao imaginât que os métodos
naturais possam ser largamente divulgados e uti-
lizados ?

Para a Igreja, a aprendizagem dos métodos naturais de


contrôle de natalidade deve fazer parte da educaçâo de
base à quai todos os homens e mulheres tem direito
(cf. 100, 110).E pela generalizaçâo destes métodos que
se pode esperar atingir uma natalidade equilibrada no
respeito da especificidade da sexualidade humana, das
pessoas e dos casais1.
Os meios fâceis divulgados actualmente pela
sociedade de consumo tem por caracteristica o desen-
cadear perturbaçôes demogrâficas catastrôficas (cf. 132)
e serem agressivos para os conjuges que os empregam
(cf. 121). Além disso, como confirmam as prâticas
actuais, estes meios fâceis expôem a reproduçâo
humana a uma planificaçâo imperativa, privando os
casais de toda a liberdade responsâvel.
Fica-se consternado ao ver que a China, contra-
-exemplo mâximo de pais em vias de desenvolvimen
to e bastiâo de um completo totalitarismo, seja citada
elogiosamente por ocidentais defensores dos métodos
contraceptivos, pela eficâcia bârbara das suas campa-
nhas anti-vida (cf. 124, 128).
1Evangelium Vitae, 88.

273
134. Nâo haverâ ingenuidade - se nâo provocaçâo - da
parte dos Cristâos ao preconizarem o recurso aos méto
dos naturais?

A situaçâo mundial, onde a violência âge sob as formas


mais diversas1, incita os Cristâos a estudarem, aper-
feicoarem e fazerem conhecer os métodos naturais de
contrôle da fecundidade2. Estes tem a énorme van-
taeem de serem menos "agressivos" e menos escra-
vizadores para a mulher (cf. 16, 121). Consequente-
mente, estes métodos respeitam mais a harmonia do
casai3, além de que predispôem os conjuges ao exercï-
cio da sua liberdade responsâvel na sociedade politica e
na vida econômica4.
Estes métodos naturais, demasiadas vezes mal co-
nhecidos e desacreditados, provaram de resto a sua
capacidade para fazerem diminuir eficazmente o
crescimento da populaçâo, onde o problema se pôe.
Madré Teresa recebeu de Rajiv Gandhi uma das mais
altas distinçôes da îndia porque, em Calcutâ, teve
sucesso onde os técnicos da "contracepçao moderna"
tinham falhado clamorosamente (cf. 125).

•Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., pp. 231-236.


Hdem, pp. 170, 306-308.Vtambém Joseph Rôtzer, La régulation naturelle des
naissances, Paris, Médiaspaul, 1987.
yEvangclium Vitac, 97.
'Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., pp. 170-172.

274
135. As discussoes sobre os métodos naturais remetem,
portanto, para uma reflexâo de fundo sobre o desen
volvimento humano ?

Se o idéal do desenvolvimento humano é concebido


como a corrida ao consumo e à facilidade, os métodos
ditos "modernos" de contracepçao vâo evidentemente
nesse sentido (cf. 20).
a) Todavia, como jâ sublinhâmos, estes métodos
tiveram e tem por resultado uma queda catastrôfica da
natalidade e um envelhecimento da populaçâo (cf.
132). Os seus efeitos fazem-se jâ sentir nos paises ditos
desenvolvidos, e começam jâ a ser perceptïveis em cer
tos paises do Terceiro Mundo. Esta depressâo demogrâ
fica e este envelhecimento criarâo inevitavelmente
graves dificuldades, especialmente de ordem social e
econômica, as prôximas geraçôes; além de que exacer-
barâo inevitavelmente as tensôes ocasionadas pela imi-
graçâo.
b) Pelo contrario, se o idéal do desenvolvimento é
visto principalmente como a educaçào das pessoas para a
responsabilidade, a fraternidade e a generosidade, entâo o
domînio da fecundidade pode muito bem ser obtido
fora dos métodos que a Igreja reprova (cf. 134).
c) Os homens tem portanto à escolha entre meios de
responsabilidade e meios que violentam (cf. 121).

275
A discussâo relativa aos métodos admitidos ou rejeita-
dos pela Igreja conduz-nos assim a repor o problema
da qualidade do desenvolvimento humano, e em consequen-
cia, o da qualidade das relaçôes no seio do casai.

276
136. Quai é entâo o cerne deste ensinamento social da
Igreja sobre a demografia?

Todo o ensinamento social de Joâo Paulo II é um


apelo à solidariedade de todos os homens, tanto no
espaço como no tempo. Hâ alimentos bastantes (cf.
128), recursos, conhecimentos e capacidade suficientes
para tirar os pobres da sua miseria1. Mas é indispensâ-
vel que naja vontade eficaz de partilhar e de elevar o
nivel de vida dos pobres para que em consequência
sejam eles prôprios a dimmuir a sua fecundidade.
Além disso, aos olhos da Igreja, a diminuiçâo da
natalidade sô pode ser feita por uma atitude respon
sâvel, o que exclui a mentira, a coacçâo ou a violência2.
Para ela, as questôes demogrâficas sô podem ser
resolvidas no respeito da dignidade de cada ser
humano. Tudo o que se assemelhe a uma policia
demogrâfica deve ser rejeitado com menosprezo.

]Evangclium Vitae, 91.


:Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., p. 308.

277
137. Povque é que os ideôlogos da segurança demogrâji-
ca dâo tanta atençao aos problemas ecolôgicos ?

Nas suas diferentes formulaçôes, a ideologia da segu


rança demogrâfica1 retoma, modernizando-a, a doutri-
na bem conhecida do espaço vital Foi, entre outras
coisas, em nome do direito da raça ariana (cf. 32) ao
espaço vital que lhe era - pretensamente - indispen-
sâvel, que o Estado nazi se lançou em guerras com fins
expansionistas.
a) Quando os ideôlogos da contracepçâo e da con-
tragestaçâo recheiam os seus discursos com avisos
relativos à "deterioraçâo do meio ambiente" e "ao
esgotamento dos recursos naturais"2, ha que redobrar a
vigilância (cf. 92). Paralelo ao discurso sobre a
demografia, o discurso sobre o ecossistema é regular-
mente chamado em ajuda do discurso antinatalista.
Com risco de dissimulai- os mesmos objectivos e de ser
chamado a "légitimai-" os mesmos programas de
restriçâo da populaçâo pobre.
Como no tempo de Malthus, cala-se a capacidade do
homem de "acrescentar" à natureza, e assegura-se que
o"gado humano" (cf. 36) deve ser estritamente conti-
do dentro de limites que os tecnocratas se dedicam a
définir,
b) Os poderosos do mundo inteiro fazem aqui
278
actuar, em seu proveito, a doutrina do espaço vital que
os seus precursores invocavam em favor da raça (cf. 31
s.)- Contudo, esta invocaçâo do direito ao espaço vital
vai mais longe do que îa no principio do século. Com
efeito, os ricos e os fortes querem nâo somente préser
va)' o seu bem-estar actual, como fazem valer de certo
modo, em favor dos seus descendantes, uni direito de
preferência sobre todos os recursos naturais assim como
sobre os meios que permitem tratâ-los (cf. 92, 103).
Sabendo bem que os pobres nâo terâo capacidade para
lhes acrescentar valor, os ricos reservam de antemâo
para si a sua exploraçâo. De certo modo, fazem expo-
liacâo do future
c) Esta concepçâo do espaço vital permite em par-
ticular aos Estados Unidos da America reinterpretar a
ideia que têm da suafronteira3, vista como uma zona em
movimento constante, conquistada por exploradores
que pretendem aï substituir-se aos "indîgenas" —por
vezes matando-os —a fini de se apropriarem do bene-
ficio dos recursos naturais que, segundo eles, os «indï
genas sâo incapazes de explorai* convenientemente».
Esta fronteira deslocou-se para Sul (onde esteve na
origem da Guerra de Secessâo) e para Oeste; deslocou-
-se também para Sudoeste pela anexaçâo de territôrios
pertencentes ao Mexico. Mas estafronteira nâo cessa de
se deslocar até hoje, em particular em direcçâo ao

279
sub-continente latino-americano, considerado - desde
o présidente Monroe - como o "quintal" dos EUA. Um
"quintal" que nâo para de se estender, sob um contrôle
reforçado.
d) Os paises ricos estendem o seu direito de preferência
ao saber e ao saber-fazer. Guardam ciosamente para si os
sectores de ponta. Por exemplo, tendo a maioria na
OMC (a Organizaçâo Mundial do Comércio, ex-GATT)
seleccionam cuidadosamente os conhecimentos que
estâo dispostos a partilhar. Os EUA retiraram-se da
UNESCO quando se aperceberam de que os paises do
Terceiro Mundo reclamavam uma "nova ordem mun
dial" da informaçâo. Como eles, os outros paises ricos
sabem que uma populaçâo numerosa, se bem educada e
instruida, é fonte de desenvolvimento porque é propi-
cia as trocas. Mas como esquecer que todos os totali
tarismes se empregam em empobrecer estas trocas,
congelando assim os povos no seu subdesenvolvi-
mento ?
e) Assim aparece a conexâo estreita que existe entre as
campanhas de contrôle da vida humana e a mentalidade
conservadora. Os poderosos deste mundo consideram
que a sua segurança é o fundamento dos seus direitos
(cf. 70); nâo sô do seu direito a controlar o conjunto
da populaçâo mundial, mas também do direito de con
trolar o conjunto dos recursos, inclusive intelectuais.
280
Ora esta obsessâo pela segurança engendra, nos indivî-
duos como nas sociedades, uma avareza de um tipo
novo e uma inibiçâo da criatividade. Esta avareza con
siste em invocar a mundializaçào da sociedade humana
e do mercado, para subtrair aos paises pobres a possi-
bilidade de disporem dos seus recursos naturais (cf.
100). Os ricos e os fortes querem perpétuai" o présente;
nâo fazem senâo previsôes. Fazem contudo mas pre-
visôes, porque, à força de sublinharem que uma crian-
ca custa, perdem de vista que vira normalmente um dia
em que produzirâ. Como todos os avarentos, os ricos
pensam o futuro como a rîgida consolidaçâo do seu
bem-estar actual. Recusam-se a indicar a menor
prospectiva, dado que esta os levaria a por generosa-
mente em questâo as prâticas de hoje em nome de um
mundo mais justo e mais solidârio que se desejaria ver
eclodir amanhâ (cf. 136).

'Cf. L'enjeu politique de l'avortement, cit., pp. 189-208.


:Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., pp. 57-86.
(Cf. Peter Bauer, The Development Fronder, Harvard University Press, 1991.

281
CAPITULO XVI

RESUMO E CONCLUSOES
138. A despenalizaçào do aborto e a liberalizaçao que
na prâtica dai decorre fazem entao pesar sérias ameaças
sobre a nossa sociedade?

A filôsofa Simone Weil (1909-1943) escrevia a


Bernanos: «Quando as autoridades temporais e espiri-
tuais colocam toda uma categoria de seres humanos à
parte daqueles cuja vida se preza, matar torna-se a coisa
mais natural para o homem. Quando se sabe que é
possïvel matar sem incorrer em castigo ou sofrer
reprovaçâo, mata-se; ou, pelo menos, rodeia-se os que
matam de sorrisos encorajadores. Se, por acaso, no
começo se expérimenta alguma repuisa, guarda-se
silêncio e bem depressa se abafa com receio de ser acu-
sado de faltar à vinlidade.»1

'Citado, entre outros textos igualmente intéressantes, por Jacques Verhaegen


na nca recolha que organizou sobre Licéité en droit positif et références légales
aux valeurs, Bruxelas, Bruylant, 1982. Os excertos encontram-se nas pp. 158-
-167; a nossa citaçào é da p. 166.

285
139. Estaremos nos a ser testemunhas da execuçao de
um programa cientiftco de engenharia social ?

Os meios de que se dispôe actualmente para destruir a


vida humana ou para lhes secar as fontes sâo incom-
paravelmente mais eficazes do que aqueles de que dis-
punham os régimes totalitârios, fascista, nazi e comu-
nista.Virâ rapidamente o tempo em que aquilo que é
jâ, para muitos, uma evidência se imporâ a todos com
a clareza dos factos, ou seja que os maies feitos actual
mente pelas organizaçôes que atacam a vida humana
ultrapassam largamente os levados a cabo por Hitler e
Estaline juntos. E é normal que assim seja, porque
quem se ocupa disso, actualmente, sâo verdadeiros
managers que executam um programa de engenharia
social cujo objectivo é programar cientificamente a
destruiçâo de futuros-inimigos-eventuais.

286
140. Mas a capacidade da Terra para suportar a vida
nâo terâ atingido os seus limites com uma populaçâo de
cerca de seis bilioes de habitantes ?

a) Tal como o "excesso de populaçâo", a capacidade de


sustento da Terra é uma noçâo totalmente relativa (cf.
82, 137). Os seus limites sâo rigorosamente indefinfoeis,
porque sâo, falando com rigor, indefïnidos: é impossivel
determinâ-los.
E porque é que é impossivel determinâ-los ? Muito
simplesmente porque é impossivel déterminai" qual-
quer espécie de limite para a capacidade de inter-
vencâo do homem no mundo.
Sem querer, de maneira alguma, impor um para-
doxo, pode afirmar-se com o economista Sheldon
Richman que, ao fim e ao cabo, nâo existem recursos
naturais (cf. 92, 137).]
b) Os indios do Texas viveram, durante séculos, sobre
jazidas de petrôleo que nâo souberam explorai". Enquan-
to estava simplesmente ali, o petrôleo nâo passava de
uma coisa. Sô se tornou recurso natural a partir do
momento em que os homens se interessaram por ele e
o transformaram numa fonte de energia e na base de
inumerâveis produtos quimicos.
O Titânio, descoberto no fim do século xvm, sô se
tornou um recurso natural em 1947, quando pela sua

287
leveza, a sua dureza e a sua resistência à corrosâo
começou a ser aproveitado pela indûstria aeroespacial,
pela investigaçâo submarina e, mais tarde, na cirurgia.
De todos os elementos quimicos que se encontram na
Terra, o Titânio é um dos mais abundantes; ocupa a 9.a
posiçao. O que fez dele um recurso natural foi o génio
do homem.
O Silicone foi descoberto no fim do século xvm.
Depois do oxigénio, é o elemento quimico mais abun-
dante na Terra, apresentando-se sobretudo sob a forma
de areia. Utilizado tradicionalmente para a cerâmica,
ele é largamente aproveitado na metalurgia. Entretan-
to, hâ apenas algumas décadas é que se tornou na base
da revoluçâo electrônica.Ainda mais recentemente, sob
a forma de fibras ôpticas, revolucionou os métodos de
diagnôstico médico, assim como as telecomunicaçôes.
Alguns técnicos, os "motoristas", aplicam-se a aper-
feiçoar motores de aviâo por forma a que consumam
menos. Quando produzem um motor que consome
30 % de querosene a menos do que o mesmo motor
da geraçâo précédente, estes "motoristas" aumentam,
na mesma proporçâo, as réservas de petrôleo.
O vento é utilizado hâ séculos pelos Holandeses,
primeiro para secar os polders (isto é os territôrios con-
quistados ao mar) e para moer o trigo e, depois, para
produzir a electricidade.

288

il-
As pesquisas no campo da agronomia e da zootécnica
estâo em constante progresso (cf. 104, 126). Nos pai
ses do Terceiro Mundo, sô os que continuam apega-
dos a uma visâo arcaica da agricultura e da criaçâo
de gado continuam a gerir a terra como se os ho-
mens fossem gado (cf. 36) e como se a rentabilida-
de dos solos estivesse condenada a ser o que sempre
foi.
c) Ofapâo, considerado, nos anos cinquenta, um pais,
ainda, subdesenvolvido, compreendeu muito cedo que
o recurso primordial - e ûnico, por assim dizer - de
que dispunha era o homem. Por isso realizou - e con
tinua a realizar - um trabalho exemplar de educaçâo e
formaçâo profissional da sua juventude.
d) Pode concluir-se dizendo que o recurso principal —
se nao o ûnico, realmente —do homem, é a sua inteligência e
a sua vontade livre, pelas quais ele manifesta explicita-
mente a sua semelhança com Deus. Graças a esses dons
emmentes, o homem tem a capacidade de aperfeiçoar
constantemente a sua relaçâo com a natureza, de dar
aos seus elementos um valor acrescentado, de transfor-
mar simples materiais em bens, de organizar melhor a
sociedade2. Apresentar o homem como um consumi-
dor predisposto a destruir o meio ambiente, ou como
um predador programado para a defesa do seu espaço
vital, é mjuriar a sua dignidade.

289
'Cf. Sheldon Richman, «Population is no Threat to Progress», in Freedom
Daily (Washington), Julho de 1993, pp. 18-23.
2EvangeHinn Vitae, 34, 42ss.

290
141 . Enfim, hâ que deixar de falar de populaçâo em
excesso r

Um amigo americano com quem se conversava sobre


esta questâo chegou a uma conclusâo simples que
merece ser partilhada.1
a) O que é o excesso de populaçâo ? E o desequilîbno
entre o numéro de homens e o volume de bens
disponiveis. O que é apobreza ?E o desequilîbno entre
o numéro de homens e o volume de bens disponiveis.
As expressôes "excesso de populaçâo" e "pobreza" têm
um significado idêntico sempre que sâo usadas para
descrever a mesma situaçâo social. Mas, no entanto,
comportam juizos de valor muito diferentes. Na reali
dade, a expressâo "excesso de populaçâo" tornou-se
uma forma pejorativa de désignai" a "pobreza".
b) Quando se mvoca a situaçâo dos "paises pobres",
tende-se a ajudâ-los a produzirem mais bens e a dis-
tnbui-los melhor. O que se preconiza é o desenvolvi-
mento na educaçâo e na economia, assim como a
justiça social (cf. 115).
Mas quando se fala desses mesmos paises em termos
de "excesso de populaçâo", a soluçâo proposta —que se
tem o descaramento de apelidar de "ajuda"! - consiste
em estenlizar as pessoas, em levai* as mâes a abortar,
porque esses homens e mulheres sâo apresentados

291
como sendo a causa dos problemas sociais de que
sofrem (cf. 83). Isto dispensa interrogaçôes pertinentes
sobre as suas condiçôes de vida.
c) Quando se fala de "pobres pessoas", o nosso
coraçâo comove-se e insurgimo-nos contra as situa-
çôes de injustiça de que os pobres sâo vitimas; mobi-
lizamo-nos para exprimir-lhes a nossa solidariedade (cf.
63).
Mas quando se fala de "excesso de populaçâo", os
ricos sentem-se ameaçados na sua segurança (cf. 70,
137). A elementar preocupaçâo de justiça derrete-se
como neve ao sol. Em vez de querermos manifestar a
nossa solidariedade (cf. 10), persuadimo-nos - usando
uma boa dose de mâ-fé - e persuadimos os infelizes -
baralhando a sua capacidade de ajuizar - de que devem
aceitar a contracepçâo organizada, a esterilizaçâo em
massa e o aborto "para o seu bem e de toda a sociedade
humana" (cf. 69, 80).
Em resumo, mais preocupados com a sua segurança
do que com a solidariedade, os ricos invocam o
"excesso de populaçâo" para "justificar" a coerçâo
exercida sobre os pobres.

'Evangelium Vitac, 16. Cf. Michael Schwartz, «Overpopulation and the War on
the Poor», comunicaçào à"Third International Conférence ofthe Family of
the Americas Foundation" (Caracas,Venezuela, Outubro de 1985).

292

J
142. Sera a ucultura da morte" uma caracteristica do
nosso século ?

No decurso do século XX expandiram-se ideoloo-ias


que consideravam que a Razâo encarnava no Estado,
na "raça supenor", no Partido (cf. 67-69). O Estado,
por exemplo, "tinha razâo" ao exigir dos mdivïduos
uma submissâo total, e era "razoâvel", para os mdivï
duos, a submissâo total ao Estado que os transcendia.
Ao apresentarem-se como as verdadeiras encarnacôes
da Razâo, o Estado, a Raça ou o Partido, ficavam ha-
bilitados a dizer quem podia viver e quem dévia mor-
rer; o Estado, a Raça ou o Partido, eram os senhores da
vida e da morte (cf. 60). Os esbirros do régime nazi -
por exemplo -, arvoravam uma caveira no seu uni
forme - que era como que uma sîntese simbolica do
seu programa. O régime, do quai eles eram, ao mesmo
tempo, a expressâo e os instrumentos, esperava deles
que desprezassem a prôpria vida, colocando-a incondi-
cionalmente à disposiçâo do Estado —e que, igual-
mente, desprezassem a vida dos outros.
As ideologias totalitârias que sacralizavam o Estado, a
Raça ou o Partido apresentavam um ponto comum;
ensinavam os individuos a libertarem-se de todo o vin-
culo material e intelectual e de qualquer referência
moral. Colocavam-se para la do bem e do mal (cf. 32,

293
51); e o serviço do Estado, da Raça ou do Partido exi-
giam do individuo a disposiçâo de se esvaziar de si
mesmo até na morte. Expor a prôpria vida à morte e
infligir a morte a outrem eram como que a expressâo
paroxïstica da liberdade suprema ao serviço da Causa,
fosse a do Estado, da Raça ou do Partido.
Destas ideologias, e da ideologia neo-liberal, de que
vamos falar, Hegel (1770-1831) é, ao mesmo tempo,
uma fonte e uma chave de interpretaçâo.1
b) Nas suas expressôes paroxisticas actuais a corrente
neo-liberal nâo pode ser compreendida senâo integra-
da no cortejo funèbre das ideologias totalitârias que o
século XX viu desfilar. Com efeito, para esta nova cor-
rente ideolôgica, a afirmaçâo, por excelência, da liber
dade soberana do individuo encontra-se no consumo
desenfreado, ou seja na possibilidade de desperdiçar, o
que significa destruir sem ter de dar contas aninguém.
Consumir, desperdiçar, é, assim, uma maneira de se
libertar de qualquer espécie de vinculo material e de
toda e qualquer referência moral ou juridica. E uma
forma de afirmar a soberania do eu.
Ora, como vimos, esta afirmaçâo da soberania do eu
leva o individuo a desejar dispor da vida de outrem (cf.
8s., 70). Disponho da vida da criança, do déficiente, da
do velhote acamado, ou da do pobre, se eles me forem
inûteis2. Pelo contrario, produzirei"criznças" se os cofres
294
da segurança social correrem o risco de se apre-
sentarem vazios na altura em que eu atmgir a idade da
reforma (cf. 30). Admitirei os pobres se eles me permi-
tirem, pelos seus baixos salânos, que continue a con-
sumir e a desperdiçar, isto é a afirmar-me como dono
e senhor (cf. 97).
c) Estamos prestes a atmgir, pouco a pouco, o limite
possïvel desta evoluçâo. E quanto atesta o cammho do
desvio agressivo descrito acima, em direcçâo ao desvio
suicida observado na sociedade ocidental rica (cf. 129)3.
Esta quer afirmar a sua liberdade soberana de duas for
mas complementares Queima o seu passado, ao tornar
impossivel a transmissâo - tradiçâo do seu patrimônio
por falta de homens que o recolham (cf. 77, 91).
E queima o seu futuro ao recusar povoâ-lo e ao sacri-
ficâ-lo totalmente ao présente (cf. 137).
Os mdivïduos caracteristicos desta sociedade que-
bram as solidariedades naturais (cf. 63) sincrônicas
(entre indivïduos ou sociedades contemporâneas) e
diacrônicas (entre indivïduos ou sociedades ligadas
pelas geraçôes)4 por forma a nâo terem de responder
senâo perante si proprios pela sua vida e pela sua
morte. Fabricam, pois, instituiçôes e "direitos" que
apoiem a afirmaçâo do que eles consideram como
sendo a expressâo soberana da sua liberdade: dar a
morte e, mesmo, matar-se.5

295
Georges Bataille, que neste ponto ultrapassa Sade,
résume perfeitamente um tal niilismo: «A vida é a busca
do prazer, e o prazer é proporcional à destruiçâo da
vida. Por outras palavras, a vida atinge o mais alto grau
de intensidade na negaçâo do seu princïpio».6
d) E, portanto, a "cultura da morte" que explica nâo
apenas os lugubres régimes que o nosso século co-
nheceu, mas também a obstinaçâo posta na legalizaçâo
do aborto e da eutanâsia, assim como a banalizaçâo da
esterilizaçâo em massa. A expansâo da SIDA encontra
aqui uma das suas explicaçôes mais évidentes. A raiz
comum de todas estas manifestaçôes da "cultura de
morte" é o niilismo (cf. 32), ele mesmo fundado na
révolta contra a finitude humana7. Os homens dâo a
morte e matam-se porque pensam ser impossivel
verem plenamente realizado o seu desejo de um além
- ainda que esse desejo se encontre gravado profunda-
mente, bem no centro da sua aima. Imaginam, entâo,
poder libertar-se desse desejo por meio desse gozo
supremo que procuram na morte. Ora a morte, conce-
bida assim, é, na realidade, a suprema expressâo do
desespero. De acordo com a nova ideologia libéral, é ao
fim e ao cabo desse desespero que se torna necessârio
que os pobres partilhem para que sejam subjugados.
Haverâ no mundo alguma tarefa mais exaltante,
especialmente para os Cristâos, e mais portadora de
296
alegria do que aquela que consiste em mostrar porque
é que se deve escolher a vidaH?

'Para compreender a influência de Hegel nestas ideologias, podemos recor-


rer aAlexandre Kojève, Introduction à la lecture de Hegel, Paris, Gallimard, 1968,
especialmente pp. 529-575 («L'idée de la mort dans la philosophie de
Hegel»). Pode ler-se nomeadamente: «A aceitaçao sem réservas do facto da
morte, ou da finitude humana consciente de si mesma, é a fonte ûltima de
todo o pensamento hegeliano (...). De acordo com este pensamento, é acei-
tando voluntariamente o perigo de morte numa Luta de puro prestigio que
o Homem surge pela primeira vez no Mundo natural; e é resignando-se à
morte, revelando-a pelo seu discurso, que o Homem chega finalmente ao
Saber absoluto ou à Sabedoria, acabando assim a Histôria. Porque é partin-
do da ideia da morte que Hegel élabora a sua Ciência ou a filosofia "abso-
luta", que é a ûnica capaz de tomar fïlosoficamente conta do facto da
existência no Mundo de um ser finito consciente da sua finitude e tendo-a
por vezes à sua disposiçâo». (Cf. p. 540.)
2Evangelium Vitae, 64.
yIdcm, 66.
4Ibidem, 43.
^Georges Bataille, L'érotisme, Paris, Minuit, 1957, II parte, il e III, apud Jeanne
Parain-Vial, Tendances nouvelles de la philosophie, Paris, Centurion, 1978,
pp. 128ss.
"Evaugelium Vitae, 43.
'Idem,21.
7Cf. La dérive totalitaire du libéralisme, cit., pp. 139-141, 312ss.; L'enjeu politique
de l'avortement, cit., pp. 206-208.
*Cf. Deuteronômio, 30, 15-20.

297
143. Mas as manipulaçôes genéticas, em vez de se
inscreverem na "cultura da morte,}, nâo estarâo orien-
tadas pava o serviço da vida ?

a) Diversos projectos ou propostas de lei estâo actual


mente a ser discutidos em conexâo com as manipu
laçôes genéticas. Um aspecto dâ nas vistas, à partida,
quanto as discussôes em curso: uma vez mais, apela-se
à tâctica da derrogaçâo (cf. 3), sofisma-se sem fim a
propôsito das condiçôes a estabelecer para que o
embriâo escape à protecçâo que a lei tenta assegurar-
-lhe.
•^r No piano dos principios, estas discussôes nâo sâo
fundamentalmente diferentes das que precederam a
legalizaçâo do aborto. Elas provam, em todo o caso e
de uma forma ainda mais reveladora, o fascïnio que a
cultura da morte exerce hoje em dia1. O direito do ser
humano à vida a partir do (s) seu (s) inïcio(s) mais secre-
to(s) esta, cada vez mais, dependente de uma decisâo
processual (cf. 61). E esta decisâo sera tomada por
homens de laboratôrio dispostos a considerar moral
qualquer manipulaçâo possïvel.
O fascïnio da morte mostra-se, aqui, sob todos os
seus aspectos. Considera-se que o individuo humano,
desde o seu estado embrionârio, nâo tem dignidade
prôpria; nâo impôe respeito. Esta récusa do reconheci-

298

jii _
mento da dignidade do embriâo exerce-se, primeiro,
no piano prâtico e, depois, no piano teôrico - porque
os médicos e cientistas envolvidos se apressam a fa-
bncar "legitimidades" teôncas. Desde as suas mais
sécrétas origens, a vida do ser humano permanece sus-
pensa; o embriâo fica totalmente disponivel (cf. 34-38).
Como o professor Jérôme Lejeune fez notar, o
embriâo é tratado como um simples produto do corpo
humano; é colocado no mesmo piano do que o ôvulo
ou os espermatozoides, apesar de ser jâ um ser
humano.
O futuro deste ser humano é hipotético no mais forte
sentido da palavra: a eventualidade desse futuro é total
mente subordinada à qualidade que sera ou nâo reco-
nhecida ao embriâo, ou entâo à utilidade que ele repré
sentait.
b) Este duplo critério - qualidade, utilidade - é uma
das expressôes ou mâximas da "moral do senhor", isto
é da moral do dono perante o seu escravo (cf. 32, 142).
O senhor, o dono, imagina ter o direito de dar a morte
uma vez que é capaz de suscitar a vida2. Esta moral do
senhor, de que mostrâmos as raïzes hegelianas (cf. 142),
considéra que a expressâo suprema da liberdade do ser
finito, que é o homem, consiste em desenvolver um
dominio absoluto e arbitrârio sobre a vida e sobre a
morte3.

299
Este domïnio "senhorial" da vida exprime-se de
diversas formas. Da lugar, para começar, a um canibalis-
mo celular — como condiçâo preliminar da recons-
truçâo, pelo manipulador, de um ser que seja rigorosa-
mente a incarnaçâo do seu prôprio projecto sobre ele.
Da lugar, em seguida, a um canibalismo histologico que
—para jâ e enquanto outros objectivos nâo tem —
recorre aos tecidos cerebrais das crianças abortadas
para os enxertar, por exemplo, em pacientes atingidos
pela doença de Parkinson. Dâ lugar, ainda, a um cani
balismo académico ou "cientïfico", mediante o quai o ser
humano sera manipulado, triturado, imolado, no altar
da Pesquisa Cientîfica colocada sob o signo de uma
Liberdade Académica completamente subtraîda a qual
quer referência moral e que nâo tem de prestar contas
a ninguém. Dâ lugar, enfim, a uma eugenia tecnicizada,
por comparaçâo com o quai as eugenias atestadas pela
histôria nâo passam de incipientes balbuciamentos.
Esta eugenia, que apresenta resultados de loucura, abre
aos médicos e aos cientistas do ultranazismo (cf. 75)
perspectivas de uma segregaçâo cientîfica implacâvel.
Com efeito, a tipologia da selecçâo e da discriminaçâo
fica completamente ao arbîtrio dos manipuladores. Em
resumo, o homem nâo se arroga somente o direito de
ser a fonte das normas morais; prétende, além disso,
afirmar-se como o senhor da prôpria existência.

300
]Evangelium Vitae, 21, 24, 26.
-Idem, 22.
"Ibidem, 52, 96.

301
144. Poder-se-ao prever as consequências destas mani-
pulaçoes e das legislaçoes que visam "legitimâ-las"?

Hâ, pelo menos, duas consequências terriveis como


preço previsïvel destas manipulaçôes e das "justifi-
caçôes" com que as querem encobrir.
a) A primeira consiste em que a corporaçâo médica,
no seu conjunto, é, cada vez mais, submetida a pres
sées que transformam insidiosamente os médicos em
artesâos da morte. Obras de morte é o que fazem
jâ inûmeros ginecologistas que praticam o aborto e
participai!! em campanhas contraceptivas; é o que
fazem jâ os cirurgiôes que esterilizam, é o que fazem
os médicos de clînica gérai, os anestesistas, os cance-
rôlogos que praticam a eutanâsia. Obra de morte, é
nela que serâo implicados, cada vez mais, os geneticis-
tas manipuladores. Em resumo, a cultura da morte
esta a começar a précipitai" uma porçâo apreciâvel
da corporaçâo médica no campo dos inimigos da
vida (cf. 75). Se o mundo médico - e, com ele,
as enfermeiras e todos os intervenientes dos serviços
de saûde - nâo reentrarem em si, nâo fugirem dessa
espiral enfeitiçadora, toda a corporaçâo ficarâ sob
suspeiçâo; o capital mais precioso da profissâo - a
confiança - sera definitivamente arruinado. Privados
de protecçâo légal eficaz, os mais fracos dos seres

302
humanos ficarâo sem ajuda médica que lhes inspire e
mereça confiança.
b) A segunda consequência é, no entanto, a mais
dramatica que possa imaginar-se. Tendo em conta que
elas sâo permeadas pela cultura da morte e que sobre
esta assentam, as mampulaçôes genéticas e as leis que
pretendem avalizâ-las, desembocam nâo sô na destrui-
çâo da vida mas na destruiçâo do amor e dafamilia que é
o centro vivificante de uma e de outra1. Retoma-se,
assim, uma tradiçâo anti-familiar que remonta a
Friedrich Engels. A lôgica destas mampulaçôes é, efec-
tivamente, muito simples, e o seu carâcter "senhorial"
aï se révéla uma vez mais. A motivaçâo profunda de
que émana a vontade manipuladora pode exprimir-se
nos seguintes termos: «Eu sou suficientemente forte e
poderoso para nâo precisar de ninguém que me ajude
a ser eu prôprio. Nâo tenho, pois, motivo algum para
correr o risco de descobrir-me pobre - nem aos olhos
de outrem nem, muito menos, aos meus prôprios
olhos. Porque, entâo, arriscar-me à aventura de amar e
ser amado ? Qualquer espécie de amor verdadeiro que
sentisse ou exprimisse a alguém séria a marca insupor-
tâvel de uma fraqueza e de uma pobreza, o sinal supre-
mo da minha finitude - aquela, precisamente, que
quero recusar e negar2. Portanto, e uma vez que me
reconheço esse poder, disporei à minha vontade dos

303
outros ou transformo-os, segundo a minha conveniência,
de acordo com os critérios de qualidade que me convêm
e em funçâo da utilidade para que os destino.
E assim aparece o encadeamento em que a cultura da
morte prende e destrôi a sociedade humana.
Perante este desafio, do quai nâo hâ précédente
conhecido na histôria, nâo hâ senâo uma resposta: aco
lher alegremente a quotidiana experiencia da nossa
pobreza, que, se acolhida, é como que o ancoradouro
da nossa esperança. Paradoxalmente, é esta a condiçâo
que nos permite amar e abrir-nos ao Amor - acolher
e ser acolhidos. É este o preço que teremos de pagar
para redescobrir um sentimento que parece assustar
muitos dos nossos contemporâneos - a ternura.
Todas as contas feitas, em vez da cultura da morte,
porque nâo arriscar a cultura da vida ?

]Evangelium Vitae, 92.


2Idem, 55.

304
145. Além das razoes enunciadas, haverâ razoes par-
I ticulares que incitent os Cristaos apromover orespeito
pela vida ?

Amoral cristâ subscreve sem réservas a"regra de ouro"


da moral umversal: «Nâo faças aos outros o que n^o
desejanas que te fizessem» (cf. 59, 114).
Além disso, o Cristâo nâo se mterroga sobre quem é
digno de ser o seu prôximo; o que ele pergunta a si
mesmo é como podefazer-se prôximo dos outros (cf. Le.
10,25-37)'.
Enfim, o Cristâo crê que as forças do mal estâo acti
vas no mundo e que foi para delas salvar todos os
homens que Jésus veio à Terra. Pela sua violência, as
campanhas a favor do aborto e da eutanâsia visam atm
gir o homem, mas visam igualmente Deus. Impotentes
para destruir Deus, as forças do mal querem destruir o
homem, que é a imagem viva de Deus do prmcîpio ao
fini da sua vida terrena2. Para o Cristâo, todos os
homens receberam a existência do mesmo Deus e épor
isso que sâo irmâos. Por consequência, qualquer homem
deve ser nâo apenas respeitado mas amado, porque
manifesta algo da bondade e da beleza de Deus e
porque esta destinado à vida eterna.

lJEvangelium Vitae, 27, 41.


:Wn/^21,33,34.

305
146. Finalmente: sera a vida humana um sinal de espe
rança para todos os homens ?

Deixaremos a Hannah Arendt, uma das maiores filôso-


fas polïticas do nosso tempo, a responsabilidade de
responder a esta ûltima pergunta1.
«O milagre que salva o mundo, o dominio do
empreendimento humano, da ruina normal, "natural",
é, ao fim e ao cabo, o facto da natalidade, no quai se
enraïza ontologicamente a faculdade de actuar. Por
outras palavras, é o nascimento de homens novos, o
facto de eles comecarem de novo, a acçâo de que eles
sâo capazes por direito de nascimento. Somente a
experiencia total desta capacidade pode doar aos
empreendimentos humanos a fé e a esperança, essas
duas caracteristicas essenciais da existência, que a
Antiguidade grega ignorou completamente, removen-
do a fé na quai via uma virtude muito estranha e de
nenhum valor, e ao arrumar a esperança entre as ilusôes
perniciosas da caixa de Pandora. Foram esta esperança
e esta fé no mundo que encontraram, sem dûvida, a sua
expressâo mais sucinta e gloriosa na pequena frase dos
Evangelhos ao anunciar a "Boa Nova" do advento:
"Uma criança nasceu, um filho nos foi dado."»
•Cf. Hannah Harendt em Condition de l'homme moderne (1958), trad. fr., Pans,
Calmann-Lévy- 1988 (reimpr.), p. 314.

306
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312

l
!

LISTA DAS QUESTÔES

I. INTRODUÇÀO
1. No que respeita ao aborto, nâo estarâo os Cristâos a querer impor a
sua moral as outras pessoas ?
2. Existem dados sobre o numéro de abortos praticados no mundo ?

II. A CRIANÇA NÀO NASCIDA


3. A criança nâo nascida é uni ser humano?
4. Por que razâo certos partidârios do aborto puseram em dûvida o
carâcter humano da criança nâo nascida?
5 Os progressos da biologia permitem duvidar da natureza humana da
criança antes do nascimento ?
6. Quando a criança nâo é desejada, o aborto justifica-se ?
7. A criança desejada nâo é fruto da paternidade responsâvel ?
8.Tendo em vista as técnicas de procriaçào medicamente assistida, nâo
é normal que os pais exijam uma criança de perfeita qualidade ?
9. Como pode o desejo de uma criança de qualidade conduzir ao abor
to ?
lO.Tornàmo-nos sensiveis à qualidade de vida. Muitas cnanças conce-
bidas serâo infelizes e nâo terâo acesso a uma vida de qualidade. O abor
to previne e résolve este problema.
11. Em nome do direito à qualidade de vida, nâo se deveria recusar a
vida a um ser votado ao sofrimento ou a uma deficiência ?
12. Quando se détecta uma malformaçâo na criança, nâo é me-
lhor recorrer ao aborto para a poupar a uma vida indigna do ho-
mem ?
13. O diagnôstico pré-natal permite detectar os mongolôides. Perante

313
este progresso da ciência, temos o direito de deixar viver uma criança
que sera uma cruz para os pais e cuja vida nào desabrocharâ ?

CAPITULO III. A MULHER: ESPOSA E MÀE


14. A mulher nào é senhora do seu corpo?
15. Uma vez que a mulher optou por abortar, nào tem de se respeitar a
sua decisào ?
16. O direito de abortar, o direito da mulher a dispor livremente do seu
corpo, nào é uma reivindicaçào essencial do feminismo ?
17. Alei que pune a prâtica do aborto é odiosa para a mulher e ignora
os seus direitos.
18. A democracia sô é entào possîvel mediante um minimo de morali-
dade politica ?
19. A liberalizaçâo do aborto nào deverâ ser considerada uma etapa
importante na longa marcha das mulheres rumo à sua libertaçâo ?
20. A dignidade da mulher nào é mais honrada quando Ihe é atribuîdo
o direito de abortar ?
21. A liberalizaçâo do aborto respeita apenas a algumas categorias par-
ticulares de mulheres ?
22. O aborto nào traz, apesar de tudo, um certo alîvio à angûstia da
mulher ?
23. Contudo, quando a angûstia da mulher é extrema, o aborto pode ser
considerado um mal menor ?
24. Que fazer quando a vida da màe e/ou a do bébé correm pe-
rigo ?
25. Promover a mulher na sociedade implica assim prévenir o abor
to ?

CAPÎTULO IV. AVIOLAÇÀO


26. Nào se justificarâ o aborto em caso de violaçào ?
27. Perante o numéro de violacôes, a possibilidade de abortar é uma
segurança de que a mulher dispôe.
28. Nào se observa que uma das causas fréquentes do aborto é o pai nâo
querer assumir as suas responsabilidades em relaçâo à criança ?
29. Certas situaçôes excepcionais, como a sida em Âfrica ou as violacôes
na ex-Jugoslâvia, nào justificarào medidas de excepçâo ?

314
CAPITULO V. A EUTANÂSIA
30. Como é que a legalizaçào do aborto abre caminho à legalizaçào da
eutanâsia ?
31. Ha quem afirme que do aborto se desliza facilmente para a
eutanâsia. Mas, apesar de tudo, nào se trata de dois probîemas muito
diferentes ?
32. Como é que a sociedade alemà foi levada a organizar o extermînio
i
em massa ?
33. Nào terâo alguns factures econômicos reforçado a influência per-
versa desse vitalismo irracional ?

CAPITULO VI. O CORPO DISPONIVEL


34. Sera que o nosso ordenamento jurîdico tende a acolher uma con-
cepçào de corpo que o considéra "uma coisa" ?
35. Podem citar-se exemplos que demonstrem que o corpo é tratado
como um objecto ?
36. Que consequências acarreta que se ponha em causa a indisponibili-
dade do corpo ?
37. A liberalizaçâo do aborto nào sera consequência de uma nova per-
cepçâo do corpo humano ?
38. Nào se correrâ o risco de rapidamente vir a considerar o corpo uma
coisa como outra qualquer ?
39. Mas nào houve reticências das empresas farmacêuticas as investi-
gaçôes sobre produtos contraceptivos ?

CAPITULO VII. A LEGISLAÇÀO


40. «A lei reflecte os costumes; ora o aborto entrou nos costumes, por-
tanto deve ser legalizado.»
41. As leis que liberalizam o aborto nào terâo, ao menos, a vantagem de
limitar o numéro de abortos ?
42. «Em democracia, é a maioria que décide; o parlamento pode, pois,
mudar a lei.»
43. Uma sociedade que queira proteger-se nâo pode entào dispensât as
proibiçôes ?
44. Alei jâ nâo era aplicada. Nâo se estaria a desprezar o Estado de direi
to ?

315
45. Hâ quem denuncie um "vazio jurîdico" em certes paises. Nâo é
inadmissivel que esse vazio exista ?
46. Uma vez que hâ abortos, nào vale mais legalizâ-los e tornâ-
-los um acto médico, a fini de que sejam praticados "em boas
condiçôes" ?
47. Pode reprovar-se que o legislador defina as condiçôes necessârias
para que o aborto seja autorizado ?
48. Ofacto éque hâ abortos clandestinos. Nào valerâ apena legalizar o
aborto para reduzir o seu numéro ?
49. Os juîzes nào terào poder para fazer respeitar uma lei liberalizadora
do aborto ?
50. Nào hâ diferença entre despenalizar o aborto (ou seja, retirâ-lo
do côdigo pénal) e liberalizâ-lo (ou seja, tornâ-lo mais livre e mais
fâcil)?
51. Nos debates sobre alegalizaçào do aborto, por vezes houve quem
pedisse para oEstado desculpabilizar oaborto. Que significa este termo?
CAPITULO VIII. OS ACTORES: MÉDICOS E MAGISTRADOS
52. Aprâtica do aborto nào ira modificar a imagem da medicina ?
53. Poder-se-â encarar um desdobramento de personalidade nos médi-
cos

54. Nào sera de temer uma ingerência da moral no domînio cientifico?


55. Como pode o médico ser levado a subordinar os interesses dos indi-
vîduos aos da sociedade ?
56. Aprâtica do aborto nào ira modificar a imagem da magistratura ?
57. Como poderâ repercutir-se na sociedade polîtica a atitude do juiz
que se abstém de processar ?
58. Alegislaçâo liberalizadora do aborto poderâ ameaçar aseparaçâo de
poderes e consequentemente a qualidade democrâtica da sociedade ?

CAPITULO IX. O PONTO DE VISTA POLÎTICO


59. Como pode definir-se a dimensào polîtica do aborto ?
i i.i
60. Nào haverâ, contudo, nenhuma possibilidade de excepçâo a esta
! :i regra ?
61. Nào sera essencial, para uma sociedade democrâtica, favorecer ao
mâximo a liberdade dos individuos ?
I 1

316
62. A tolerância nào significa que todas as opiniôes sào respeitâveis,
incluindo as dos que preconizam o aborto e a eutanâsia ?
63. Porque é que o Estado tem um papel a.desempenhar a propôsito do
aborto ?
64. Nâo revelarâ uma perversào do poder que o exercicio deste possa
custar a vida a inocentes ?
65. Se a ameaça do totalitarisme fosse real, nào séria manifesta para toda
a gente e nâo provocaria uma mobilizaçâo gérai contra ela ?

CAPITULO X. RUMO AO ULTRANAZISMO ?

66. O aborto sera um método moderno de discriminaçâo ?


67.A ideologia em que se inspiram os partidârios do aborto nâo é ainda
assim diferente da ideologia nazi ?
68. No entanto, nâo importarâ concéder que se as prâticas sâo as mes-
masjâ as ideologias apresentam grandes diferenças ?
69. Que ligaçào hâ entre os ideôlogos da discriminaçâo e os engenhei-
ros biomédicos ?
70. Nâo encontramos aqui, invocados em proveito da sociedade,
critérios anâlogos aos que sâo invocados em proveito dos casais ?
71. A récusa de qualquer risco précipita portanto, impiedosamente,
numa espiral da pura eficâcia ?
72. Pode-se falar, a propôsito do aborto, de "crimes imprescritiveis con
tra a humanidade" ?
73. Sera imaginâvel que nos esqueçamos de tirar as liçôes, aliâs évi
dentes, que decorrem da experiência nazi ?
74. A fidelidade à memoria das vitimas bastarâ para nos vacinar contra
uma nova barbarie ?
75. Como explicar esta inconsequêneia que leva a legalizar hoje prâti
cas ontem condenadas por serem ilegïtimas ?
76. A evocaçâo do passado pode incomodar alguns. Mas para os que
hoje preparam,fabricam e distribuem drogas abortivas, nâo sera também
incômodo verificar a eficâcia dos seus produtos ?
77. Nâo sera apesar de tudo pouco verosîmil que aqueles que preparam
e comercializam métodos de aborto quîmico tâo eficazes sejam total-
mente insensiveis as liçôes do passado ?

317
78. Nào é chocante que se sugira um paralelo entre os verdugos do
régime nazi e os abortadores dos nossos dias ?

CAPITULO XI. OS ASPECTOS DEMOGRÂFICOS


79. Que podemos dizer actualmente sobre a populaçào mundial ?
80. Pelo menos um quinto da populaçào vive numa situaçào de pobreza
absoluta, em condiçôes infra-humanas, indignas do homem. No interes
se destas pessoas e suas famîlias, nào sera preferîvel impedi-las de ter
filhos ?
81. Nào se contribuira para a felicidade dos pobres ao facilitar-lhes o
acesso à esterilizaçào e ao aborto ?
82. Nào existe essa terrîvel ameaça que pesa sobre a humanidade, a
"explosào demogrâfica" do Terceiro Mundo ?
83. Hâ quem fale mesmo de uma "bomba demogrâfica" pronta a
explodir.
84. Este medo do desenvolvimento do Terceiro Mundo visa alguns pai-
ses em particular ?
85. Como se apresenta a situaçào demogrâfica do lado da Europa ?
86. Como chegou a Europa a tal colapso demogrâfico ?
87. Os EUA nào conhecem também uma queda demogrâfica compa-
râvel à da Europa ?
88. A implosâo demogrâfica da Europa poderâ preocupar os EUA ?
89. Sendo tâo grave a situaçào demogrâfica da Europa, porque preocu-
pa tâo poucos polîticos ?
90. Como se apresenta o problema do aborto num paîs como o Japâo,
onde foi banalizado ?
91.Tem-se alguma ideia das consequências da queda da fecundidade nos
paises desenvolvidos ?
92. Pelo seu numéro, os homens nâo se tornaram nocivos para o meio
ambiente ?

CAPÎTULO XII. AS ORGANIZAÇÔES INTERNACIONAIS


93. Evoca-se corn frequência uma campanha dos ricos e poderosos, que
se empenhariam em limitai- a populaçào mundial pobre, a fini de nâo
serem obrigados a partilhar as suas riquezas. Nâo sera uma visao um
tanto sombria da sociedade e do futuro do mundo ?

318
94. Como é possïvel que tais publicaçôes sejam tào pouco conhecidas ?
95. Pode-se estabelecer a existência desta campanha citando alguns
factos ?
96. É neste quadro que aparece a pilula abortiva RU 486 ?
97. Significarâ isto que mstituiçôes especializadas da ONU, e talvez a
prôpria ONU, estào implicadas em campanhas antinatalistas nos paîses
pobres ?
98. Custa a acreditar que uma instituiçào tào prestigiada como a onu
avalize politicas de "contençâo" demogrâfica que comportam a prâtica
do aborto.
99. Quem ganha corn esta mutaçào ?
100. Esta mutaçào aproveita a algumas naçôes em particular ?
101. O relatôrio Kissinger fala do aborto ?
102. Haverâ alguma relaçào entre esta polîtica demogrâfica dos EUA e a
mutaçào que se observa na natureza da ONU ?
103. Como explicar que as democracias ocidentais sejam cûmplices dos
EUA na restriçâo do crescimento demogrâfico do Terceiro Mundo ?
104. A atitude destes ricos é partilhada por todos os cidadâos dos EUA e
das democracias ocidentais ?
105. Nâo hâ incoerência das naçôes ocidentais ao exportarem produtos
abortivos, continuando simultaneamente a proclamar-se campeôes da
democracia e do desenvolvimento ?
106. Quem sâo, em ûltima anâlise, os verdadeiros responsâveis e ver-
dadeiros instauradores do totalitarisme contemporâneo ?
107. Em suma: se nenhuma acçào pela vida humana for desenvolvida a
nivel mundial, perfilar-se-â uma nova guerra ?
108. Nâo sera excessivo falar de guerra a propôsito do aborto ?

CAPITULO XIII. PREVENÇÂO - REPRESSÀO - ADOPÇÂO


109. Nâo existe ao menos um ponto sobre o quai os partidârios e os
adversârios do aborto estejam de acordo ?
110. Em vez de reprimir o aborto, nào valeria mais preveni-lo ?
111. As legislaçôes liberalizadoras do aborto nâo terâo um papel pre-
ventivo ?
112. É entâo necessârio continuât a reprimir o aborto ?
113. A adopçâo oferece uma "alternativa" ao aborto ?

319
CAPITULO XIV. A IGREJA E A NATALIDADE
114. Que diz a Igreja sobre o aborto ?
115. Sobre o respeito da vida humana, e em particular sobre o respeito
pela criança nào nascida, nào se verifica que muitos cristàos estao em
desacordo aberto corn a Igreja ?
116. Nao se arriscam os cristàos de hoje a ser censurados por uma falta
de coragem tào lamentâvel como aquela de que foram acusados alguns
cristàos no passado ?
117. Nào deveria a Igreja Catôlica ter em conta a evoluçao dos cos
tumes e adaptar a sua concepçào do pecado ?
118. Porque é que a Igreja récusa a contracepçào ?
119. Nâo haverâ que distinguir cuidadosamente a contracepçào hor
monal da esterilizaçâo ?
120. Quem diz paternidade responsâvel diz contracepçào. Ora, a Igreja
opôe-se à contracepçào.
121. A Igreja pôe as pessoas na necessidade de recorrerem ao aborto
porque se opôe à contracepçào.
122. A contracepçào eficaz nào sera o melhor meio de prévenir o aborto ?
123. Quais sào as consequências da dissociaçâo entre sexualidade e pro
criaçào na uniào conjugal ?

capîtulo xv. A Igreja e a demografia


124. Como é que a contracepçào praticada por alguns casais tem uma
dimensâo polîtica ? Nâo é um assunto puramente privado ?
125. Corn a sua moral, nâo terâ a Igreja uma pesada responsabilidade no
crescimento demogrâfico mundial ?
126. Porque é que muitos rejeitam a mensagem da Igreja sobre a
miséria do Terceiro Mundo ?
127. A moral conjugal da Igreja nâo é natalista ?
128. Segundo certos especialistas, a posiçâo da Igreja em matéria de
contracepçào e de demografia vai engendrar consequências dramâticas,
principalmente fomes.
129. Porque haveria de se instaurai- uma "licença de procriaçào" nos paî
ses ricos, onde a baixa natalidade toma jâ proporçôes inquiétantes ?
130. Onde esta a fonte do ensinamento da Igreja sobre a populaçào ?
Nao é numa moral conjugal natalista ?

320
131. Nâo estarâ a Igreja a negligenciar completamente os probîemas
demogrâficos quando enuncia os seus belos principios sobre o desen-
volvimento ?
132. Em matéria de demografia, nào estarâo de ma fé os mora-
listas catôlicos ? Com efeito, dizem que o desenvolvimento leva à
queda da natalidade, mas ocultam que esta queda da natalidade é
obtida, nos paîses desenvolvidos, através de métodos que a Igreja con-
dena.
133. Nâo se é irrealista ao imaginât que os métodos naturais possam ser
largamente divulgados e utilizados ?
134. Nâo haverâ ingenuidade - senào provocaçâo - da parte dos cristàos
ao preconizarem o recurso aos métodos naturais ?
135. As discussôes sobre os métodos naturais remetem, portanto, para
uma reflexâo de fundo sobre o desenvolvimento humano ?
136. Quai é entâo o cerne deste ensinamento social da Igreja sobre a
demografia ?
137. Porque é que os ideôlogos da segurança demogrâfica dâo tanta
atençâo aos probîemas ecolôgicos ?

CAPITULO XVI. RESUMO E CONCLUSÔES


138. A despenalizaçâo do aborto e a liberalizaçâo que na prâtica daî
decorre fazem entâo pesar sérias ameaças sobre a nossa sociedade ?
139. Estaremos nos a ser testemunhas da execuçâo de um programa
cientîfico de engenharia social ?
140. Mas a capacidade da Terra para suportar a vida nâo terâ atingido os
seus limites com uma populaçào de cerca de seis biliôes de habitantes ?
141. Enfim, hâ que deixar de falar de populaçào em excesso ?
142. Sera a "cultura da morte" uma caracteristica do nosso século ?
143. Mas as manipulaçôes genéticas, em vez de se inscreverem na "cul
tura da morte", nâo estarâo orientadas para o serviço da vida ?
144. Poder-se-âo prever as consequências destas manipulaçôes e das
legislaçôes que visam "legitimâ-las" ?
145.Além das razôes enunciadas, haverâ razôes particulares que incitem
os cristàos a promover o respeito pela vida ?
146. Finalmente: sera a vida humana um sinal de esperança para todos
os homens ?

321
INDICE ANTROPONÎMICO

Airdjohn S., 106, 125 Clinton, B., 100,104


Albagi,A.,82 Conly, S., 84
Anatrella,T, 108 Destexhe,A.,82
Arendt,H.,91,124, 144 Disraeli, B., 88
Barney, G. O., 84 Djerassi, C, 39
Bataille, G., 142 Dumble, L.J.,96
Baudouin, J.-L., 35 Dumont, G.-E, 2, 79, 82,
Bauer,P, 137 85,88,132
Baulieu,É.-É.,77, 96 Dumont, R., 86
Bayle, B., 5 Engels, F., 144
Bernanos, G., 133 Estaline, L, 139
Bindmg, K., 60 Fonseca Sobrinho, D., 124
Botto, C. P., 124 Fossion, A.,114
Bourguet,V, 34 Frossard, A., 75
Boutm, C, 112 Gallucci, C, 76, 77
Brunel, Sylvie, 80, 82 Gandhi, L, 125
Camp, L, 81, 84 Gandhi, S., 125
Campbell, H., 41 Ghandi,R.,134
Caprile, G., 130 Gauer, Ph., 5
Cariou, P., 61 Gavarini, L., 121
Casini, C, 130 Gellman, B.,88
Chancel,J., 13 Gendreau, F, 80
Chatel,M.-M., 119 Guillon, C, 142
Chaunu, P.,91 Guilloux, A., 82
Chesnai,J.-CL, 82 Hancock, G., 105

323
Hartmann, B., 84 MontenayY, 82
Hegel, G. W. F, 142ss. Mumford, S. D., 101
Hendnckx, M.,25 Mussolini, B., 42
Hennaux,J.-M., 115 Nathanson, B., 48
Herzlich, G.,79,85 Nau,J.Y.,77
Hilger,W.,77 Nyiszli, M.,53
Hindenburg, P. L., 33 Perloff,J.,98
Hitler, A., 32, 33, 42, 128, 139 Poullot, G., 12
Hoechst, 77 Raimondi, R., 13
Hours,B.,92 Raymond, J. G., 96
Jahangir,B. K.,92 Rawls,J., 61
Jasper,W.F.,98, 102 Richman, S., 140
Jésus Cristo, 145 RôtzerJ., 134
Joào Paulo 11,61,130,136 Roussel-Uclaf, 39, 77
Jolivet, M.,90 Sakiz, E., 77
Kant,L, 114 Sartre, J.-P, 7
Kessel, E., 101 Sauvy,A.,89
Khader,B.,91 Schwartz, M., 141
Klein, R., 96 Somadossi,Y, 13
Kissinger, H., 84, 100-102 SpeidelJ.J.,84
Kojève,A.,142 Stanford, S. M., 19
KurthJ., 103 Teresa de Calcutâ (Madré),
Labrusse-Riou, C, 35 112,134
Le Bonniec,Y., 142 Torelli, M., 72
Lecaillon,J.-D., 82 Tremblay, E., 46
Le Coadic, M., 121 Veil-Pelletier, 3, 48
LejeuneJ., 4, 12 Veil, S., 40
Lifton,R.J.,53,75,77 Verhaegen, J., 138
Malthus, 80, 92, 121,137 Vilaine, A.-M. de, 121
Mao Tsé-Tung, 77 Weil,S.,138
Marx, K., 124 Whelan.R.,2, 41
Mattèi, J.-E, 63 Wirth,T.E.,84, 100

324
INDICE GERAL

PRÔLOGO: ABOA NOVA DAVIDA 9


APRESENTAÇÂO yj
I.INTRODUÇÂO 21
questoes 1-2
II. A CRIANÇA NÂO NASCIDA 27
questoes 3-13

III. A MULHER: ESPOSAEMÀE 47


questoes 14-25
IV. AVIOLAÇÂO 53
questoes 26-29
VA EUTANÂSIA 7|
questoes 30-33
VI. O CORPO DISPONÎVEL 79
questoes 34-39
VIL A LEGISLAÇÂO 93
questoes 40-51

VIII. OS ACTORES: MÉDICOS E MAGISTRADOS 113


questoes 52-58

IX. O PONTO DEVISTA POLITICO 125


questoes 59-65

325
X. RUMO AO ULTRANAZISMO ? 141
questoes 66-78
XL OS ASPECTOS DEMOGRAFICOS I67
questoes 19-92
XII. AS ORGANIZAÇÔES INTERNACIONAIS 199
questoes 93-108
XIII. PREVENÇÀO - REPRESSAO - ADOPÇÀO 227
questoes 109-113
9^
xiv.a Igreja e a natalidade *DD
questoes 114-123
xv. a Igreja e a demografia *DD
questoes 124-131
~ 98^
XVI. RESUMO E CONCLUSOES *OD
questoes 138-146
307
BIBLIOGRAFIA
LISTA DAS QUESTOES 3
INDICE ANTROPONÎMICO 323
325
INDICE GERAL

326

_J
MICHEL SCHOOYANS

Nasceu no dia 6 de Julho de 1930 em Braine-l'Alleud (Bélgi-


ca) e foi ordenado sacerdote do Arcebispado de Malines-Bru-
xelas no dia 26 de Dezembro de 1955. Estudou na Universidade
de Lovaina, onde se doutorou em Filosofia (1958) e em
Filosofia e Letras (1960).
Foi professor de Filosofia na Universidade Catôlica de Sâo
Paulo (1959-1969); paralelamente, professor do Seminârio
Maior metropolitano de Sâo Paulo e ministro paroquial na
penferia desta cidade, bem como assistente da Juventude
Operâria Catôlica. Em 1978 doutorou-se emTeologia.
E professor da Universidade Catôlica de Lovaina (desde Ou-
tubro de 1995, Professor Emérito) e professor convidado de
varias universidades da America Latina.
E membro da Academia Pontifîcia de Ciências Sociais
(Roma), do Instituto Brasileiro de Filosofia (Sâo Paulo), da
Société Théologique de Louvain, da Société Philosophique de
Louvain, da Comissâo Doutrinal da Conferência Episcopal da
Bélgica, do Institut Royal des Relations Internationales (Bru
xelas), da Societas Internationalis Ethica (Roma), da Fédération
Internationale pour l'Enseignement Social Chrétien (Genebra),
do Population Research Institute (Washington), da Association
pour la Recherche et l'Information Démographique (Paris), do
Population Référence Bureau (Washington), do conselho cien-

327
tîfico de La Società (Verona), do conselho consultivo do Plater
Collège (Oxford), do Institut de Démographie Politique (Paris).
Foi consultor do Conselho Pontifîcio Justiça e Paz (1977-1994)
e é consultor do Conselho Pontifîcio para a Famîlia (Roma).
Entre outras distinçôes honorificas recebeu a de Capelâo de
Sua Santidade, Cavaleiro da Ordem de Leopoldo e Comen-
dador da Ordem da Coroa (Bélgica), e Medalha de Pedro
Âlvares Cabrai (Brasil). Em 1994 recebeu o prémio "Vittoria
Quarenghi" da Fondazione Vita Nova (Roma-Milâo) e o
prémio da Académie d'Éducation et d'Études Sociales (Paris).
Tem-se dedicado ao estudo de temas de filosofia polî
tica, ideologias contemporâneas, ética das politicas demogrâficas
e teologia moral social.
Tem desempenhado numerosas missôes e viagens de estudo a
paîses do Terceiro Mundo. Além de mais de duzentos artigos
(publicados em revistas de vârios paîses), é autor dos seguintes
livros: O comunismo e o futuro da Igreja no Brasil, Sâo Paulo,
Herder, 1963; O desafw da secularizacao, Sâo Paulo, Herder, 1968;
Chrétienté en contestation: TAmérique latine, Paris, Le Cerf, 1969;
Destin du Brésil. La technocratie militaire et son idéologie, Gembloux,
Duculot, 1973; La Provocation chinoise, Paris, Le Cerf, 1973
(existe ediçâo italiana); LAvortement, problème politique, Lovaina,
Université Catholique de Louvain / Département de Science
Politique, 1974 (l.a éd.) e 1981 (2.a éd., revista e aumentada)
(existem ediçôes italiana e inglesa); Demain, le Brésil?, Paris, Le
Cerf, 1977 (existe ediçâo espanhola); Droits de Vhomme et tech
nocratie, Chambray-lès-Tours, CLD, 1982; Démocratie et libération
chrétienne. Principes pour l'action politique, Paris, Lethielleux, 1986;
Maîtrise de la vie, domination des hommes, Paris, Lethielleux, 1986
(existem ediçôes brasileira e inglesa); Théologie et libération. Ques
tions disputées, Longueuil (Québec), Le Préambule, 1987; L'enjeu
politique de Vavortement, Longueil, Le Préambule, 1990 (l.a éd.),

328

JU
e Paris, L'OEil, 1991 (2.a éd.) (existem ediçôes espanhola, ita
liana, polaca e brasileira; ediçâo russa em preparaçâo); De «Re-
rum Novarum» à «Centesimus Annus», em colaboraçâo com
R. Aubert, Cidade do Vaticano, Conselho Pontifîcio Justiça e
Paz, 1991 (existe ediçâo brasileira); Initiation à l'Enseignement
social de VEglise, Paris, L'Emmanuel, 1992 (existem ediçôes espa
nhola, eslovaca e italiana; ediçâo inglesa e chinesa em
preparaçâo); Bioéthique et Population. Le choix de la vie, Paris,
Fayard, 1994 (existem ediçôes espanhola, italiana, inglesa e eslo
vaca; ediçâo alemâ no prelo); El imperialismo contraceptivo. Sus
'

agentes y sus victimas, Caracas / Miami, Provive / alafa / vhi,


1994; La dérive totalitaire du libéralisme, Paris, Marne, 1995
(2.a éd.) (ediçôes italiana, espanhola e brasileira em preparaçâo);
Pour comprendre les évolutions démographiques, Paris, Université de
Paris-Sorbonne / APRD, 1995 (2.a ediçâo) (existe ediçâo espa
nhola; ediçôes inglesa e brasileira em preparaçâo); L'Evangile
face au désordre mondial, Paris, Fayard, 1998 (ediçâo portuguesa:
O Evangelho perante a Desordem Mundial, Lisboa, Grifo, 1998;
ediçâo inglesa em preparaçâo). Em preparaçâo: Le choix politique.

329
Colecçao
TESTEMUNHOS & DOCUMENTOS

Toda a Vida Pede Amor


de Nuno Serras Pereira

Espéra
de ISABEL A.

A Escolha da Vida
de Michel Schooyans

a seguir:

Cristo ou o Aquârio ?
do Cardeal Godfried Danneels
Composiçào de Manuela Duarte
Montagem de Computextos

A Escolha da Vida,
Bioética e Populaçào
da autoria de Michel Schooyans
foi impresso nas oficinas
de A. Coelho Dias
emjunho de
1998

Op. 23
Dep. légal n.° 125 116/98
isbn: 972-8178-32-8
O exercicio da liberdade
exige o respeito pelo direito à vida.
Se este nâo for respeitado e protegîdo,
todos os outros direitos
estarâo ameaçados.

Colecçâo
Testemunhos & DocLimentos
n.°3

ISBN 972 — S17S — 32 — 8

Ç> "78972 8"1 78321 Grifo


:'i
O exercicio da liberdade

exige o respeito pelo direito à vida.


Se este nâo for respeitado e protegido,
todos os outros direitos
estarâo ameaçados.

Colecçâo
Testemunhos & Documentos
n.°3

ISBN 972-8178-32-8

9 789728n178321 Grifo

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