1. INTRODUÇÃO
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filhos ou de "planejamento familiar" foram recomendados e implementados sem muito
respeito aos direitos individuais. As mulheres foram as principais vítimas das propostas
autoritárias de regulação da fecundidade. A maioria dos programas implantados de cima
para baixo não apresentaram os resultados esperados. Todavia, independentemente da
vontade das autoridades controlistas, a queda da fecundidade se generalizou em quase todo
o mundo, fruto da menor demanda por filhos.
Hoje em dia, com a redução generalizada das taxas de fecundidade, está surgindo
um novo mito: o mito da "implosão populacional". Muitas vozes, principalmente dos
setores religiosos, estão interpretando a transição de altos a baixos níveis das taxas de
fecundidade como um indício de "suicídio demográfico". Este é outro mito, pois existe uma
distância muito grande entre as baixas taxas de fecundidade e o desaparecimento de uma
população. É importante destacar que este novo mito não tem servido para impor novos
meios contraceptivos, mas sim para restringir seus usos e para atacar os direitos sexuais e
reprodutivos dos indivíduos, especialmente das mulheres. Saem de cena os controlistas e
entram os populacionistas ou natalistas. O mito da explosão populacional levou a formas
coercitivas de restrição da fecundidade, enquanto o mito da implosão populacional pode
levar a formas coercitivas para a elevação da fecundidade. Ambos contribuem para
restringir o direito à livre decisão reprodutiva e tendem a jogar sobre o gênero feminino os
custos de regular o ritmo da dinâmica populacional.
2
Malthus considerava a fecundidade marital como uma variável independente e que
tenderia sempre para a "fecundidade natural" (ausência de qualquer controle deliberado).
Para ele, existe uma eterna "paixão entre os sexos", paixão esta considerada imutável e
moralmente correta, desde que heterossexual, monogâmica e legitimada pelo casamento.
Pregava, como norma de comportamento virtuoso, a continência total antes do matrimônio,
e concordava unicamente, enquanto "freio preventivo", com o adiamento do casamento até
que o casal tivesse os meios suficientes para criar uma família. Em seu modelo, sexo e
reprodução estão umbilicalmente ligados. Os determinantes da taxa total de fecundidade
seriam, então, as taxas de nupcialidade e a idade ao casar. Quando as condições econômicas
fossem favoráveis, os jovens se casariam cedo, provocando um "baby boom". Existiria,
portanto, uma relação direta entre crescimento econômico e fecundidade. Todavia, com o
tempo, o elevado crescimento demográfico ultrapassaria a capacidade de produção dos
meios necessários à subsistência, o que provocaria uma elevação das taxas de mortalidade,
entendida como uma variável dependente. O controle da população se daria através da
fome, doenças, epidemias, guerras e miséria, ou seja, dos "freios positivos", como se referia
Malthus a toda sorte de eventos externos que limitavam o crescimento populacional. Para
ele, negativo seria a eliminação destes "freios".
A base deste populacionismo pode ser explicada por seu posicionamento ideológico
conservador, para não dizer reacionário. Malthus era um porta-voz declarado dos ricos
3
latifundiários e defendia seus interesses (renda da terra) contra os interesses da burguesia
industrial nascente (lucro) e dos estratos populares (salário). Um dos objetivos do "Ensaio
de população" foi, declaradamente, combater os ideais da Revolução Francesa de 1789 e,
particularmente, as idéias progressistas de Condorcet e William Godwin. Estes autores
pregavam reformas sociais e consideravam o vício e a miséria resultados da forma de
organização das instituições humanas. Para eles, uma vez suprimidos os privilégios de
classe e feitas as devidas reformas sociais, adviria um progresso ilimitado da humanidade,
em meio à abundância e à prosperidade de todos os habitantes do planeta. Malthus se opôs
a este otimismo revolucionário contrapondo o seu princípio pessimista, baseado na
imperfectibilidade do ser humano.
Para Malthus, todo meio artificial e "fora da lei da natureza" para conter a
população suprimiria aquilo que dá alma ao trabalho e à indústria, pois "a necessidade é a
mãe da invenção". Na visão malthusiana, o sofrimento e as vicissitudes do povo trabalhador
são as condições necessárias para sua evolução moral. Utilizando princípios religiosos, ele
considerava que o ser humano, maculado pelo Pecado Original, estaria marcado para
sempre pelo mal, e sua vida seria "um estado de privação e uma escola de virtude". Por
conseguinte, Malthus considerava que o princípio de população seria um designo divino,
uma forma de punição contra a aversão humana ao trabalho e à indolência e que a
humanidade não teria saído do estado selvagem se não fosse a luta pela sobrevivência,
provocada pelo excesso populacional. Contra o ideário utópico da Revolução Francesa, ele
expôs o seu sombrio "princípio da realidade":
"Foi ordenado que a população crescesse mais rapidamente que o alimento para
fornecer os mais permanentes estímulos desse tipo e para levar o homem a apoiar
os designos favoráveis da Providência por meio do pleno cultivo da terra (...) se
retornarmos ao princípio da população e considerarmos o homem como ele é
realmente - inativo, apático e avesso ao trabalho - a não ser que impelido pela
necessidade, podemos proclamar com certeza que o mundo não teria sido povoado
senão por causa da superioridade do poder da população em relação aos meios de
subsistência (...). Se a população e o alimento tivessem crescido na mesma
4
proporção, seria provável que o homem nunca tivesse saído do estado selvagem"
(Malthus, 1983, p.376).
5
Como podemos perceber, o modelo econômico/demográfico de Malthus visava
antes de tudo defender a inflexibilidade do salário de subsistência em benefício da renda da
terra, apropriada pelos latifundiários. Nesta perspectiva ele foi contra a liberação da
importação de cereais, como reivindicavam os setores urbanos da Inglaterra de seu tempo.
Esta liberação teria a função de reduzir o custo de reprodução da força de trabalho, o que
beneficiaria, em primeiro lugar, a burguesia industrial e, em segundo lugar, os próprios
trabalhadores. Malthus se opôs, também, às "leis dos pobres" que, segundo ele, só serviam
para incentivar a ociosidade e o vício. Desta forma, ele antecipou em quase dois séculos os
ideólogos neoliberais que, atualmente, combatem as conquistas do estado de bem-estar
social (welfare state). Por fim, é desnecessário dizer que, na concepção de Malthus, nunca
haveria espaço para se discutir as modernas questões relativas aos direitos sexuais e
reprodutivos.
6
taxas de mortalidade. O fenômeno da transição demográfica, típico do século XX, veio
trazer novas questões. O crescimento do padrão de vida da população, os avanços da
medicina, as medidas de avanço da higiene pública, as campanhas de prevenção de doenças
e os cuidados especiais com os recém-nascidos possibilitaram uma forte redução da taxa
bruta de mortalidade em todo o mundo. Nos países industrializados, este processo ocorreu
de forma relativamente lenta e foi acompanhado, após pequeno lapso de tempo, pela queda
das taxas de fecundidade. Nos países do Terceiro Mundo, entretanto, a queda das taxas de
mortalidade ocorreu, de modo geral, de forma muito rápida após o fim da Segunda Guerra
Mundial e não foi acompanhada imediatamente pela redução dos altos níveis de
fecundidade prevalecentes nestes países. Houve, em conseqüência, uma forte elevação das
taxas de crescimento populacional. Foi nesta época que se popularizou o termo "explosão
populacional" que, naquele momento, parecia ser um perigo real. Em 1958, Coale e
Hoover, em um trabalho clássico, sugeriram que a manutenção de altas taxas de
fecundidade nos países subdesenvolvidos poderia retardar ou mesmo impedir o crescimento
econômico em países mais pobres que estavam abaixo do limiar necessário à decolagem
(take off) do desenvolvimento. É importante destacar que estes autores não partilhavam a
ideologia conservadora de Malthus, apesar de alertarem para os possíveis efeitos negativos
da permanência de altas taxas de crescimento demográfico em países de baixa renda per
capita. Mas, a partir do clima de medo criado neste período, várias previsões pessimistas
foram feitas, traçando um cenário apocalíptico para a humanidade: os relatórios do "Clube
de Roma" apontavam para os limites do crescimento econômico e para o esgotamento dos
recursos naturais e, em 1968, Paul Ehrlich lançou o livro A bomba populacional, cujo título
fala por si só.
Diante de tudo isto, a solução apontada seria estabelecer metas de crescimento zero
e, para tanto, os neomalthusinistas, livres dos princípios religiosos de Malthus, passaram a
receitar o controle da fecundidade como forma de desarmar a "bomba populacional". Além
de métodos modernos de contracepção criados pela ciência, como a pílula
anticoncepcional, DIU etc., alguns chegaram a pregar a esterilização em massa, outros
pregavam até mesmo o aborto. Ao contrário de Malthus, os teóricos neomalthusianos
acreditam que é possível acabar com a miséria e a pobreza, mas tendem a culpar os
7
próprios pobres pela sua situação desprivilegiada, uma vez que estes são naturalmente
prolíferos. Nesta perspectiva, políticas populacionais restritivas foram traçadas recorrendo a
métodos de controle que atentavam contra os direitos reprodutivos. Até a China comunista,
pós-Mao Tse Tung, adotou um sistema bastante forte para incentivar apenas um filho por
casal. Tudo isto porque os neomalthusianos consideram que a pobreza é decorrente do
excesso de população e contribui para atrasar ou frear o desenvolvimento econômico. É
como se a fecundidade fosse uma variável independente que precisasse ser controlada.
Desta forma, o mito da "explosão populacional" contribuiu, muitas vezes, para impor
decisões reprodutivas alheias à vontade dos casais. Destacamos, então, que, enquanto o
malthusianimo é uma ideologia essencialmente natalista, o neomalthusianismo é, ao
contrário, essencialmente controlista.
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vista, este salto demográfico pode parecer um sinal de descontrole das taxas de
fecundidade, pois, caso este crescimento viesse a se manter nos séculos seguintes, teríamos
uma verdadeira avalanche humana sobre a Terra. Contudo, este alto crescimento
populacional foi o resultado da expressiva queda das taxas de mortalidade ocorrida na
maioria dos países do mundo. Pela primeira vez em sua longa jornada, o ser humano logrou
sucesso na redução definitiva dos altos níveis de mortalidade e na conquista de altos
patamares de expectativa de vida. O alto crescimento demográfico do século XX foi,
portanto, fruto de uma conquista: foi o resultado da vitoriosa prevenção de epidemias e
doenças, do desenvolvimento da medicina e da melhoria do padrão de vida de amplas
parcelas da população mundial. Portanto, a aceleração das taxas de crescimento
demográfico ocorreu, simplesmente, durante um pequeno lapso de tempo, até que as taxas
de fecundidade começassem a cair, correspondendo a uma determinada fase da transição
demográfica.
9
populações. Contudo, nos países do Sul, salvo raras exceções, as taxas de fecundidade,
mesmo estando em declínio, ainda encontram-se acima do nível de reposição.
10
níveis cada vez mais elevados de escolaridade, da cada vez maior participação feminina no
mercado de trabalho e de um crescente individualismo. Neste sentido a segunda transição
demográfica tem a ver com mudanças nas relações de gênero, com o empoderamento da
mulher na sociedade e com uma redefinição do papel da família na sociedade.
11
ao tema dos direitos sexuais e reprodutivos. O Vaticano e setores fundamentalistas de
outras religiões se opuseram radicalmente a estes temas. A CNBB (Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil) se manifestou publicamente através de seus maiores representantes.
Como já vimos acima, vários bispos denunciaram, corretamente, as injustas relações
econômicas internacionais que são as causas das desigualdades entre os países, sendo a
questão populacional mais um resultado da desigual distribuição dos recursos. Isto foi
reforçado nas palavras de Dom Rafael Llano Cifuentes, então Bispo auxiliar do Rio de
Janeiro:
“Alega-se um desmedido crescimento populacional e agiganta-se o perigo
de uma explosão demográfica. Para quê? Para se auto-protegerem. Não há perigo
de explosão demográfica nos países ricos. Não. O perigo neles é o terrível inverso
demográfico que está congelando o seu crescimento. O problema do crescimento
demográfico afeta os países do Terceiro Mundo que eles querem dominar com um
novo gênero de colonialismo: o colonialismo demográfico” (Jornal do Brasil,
29/08/1994).
12
(usados mais de cem vezes no ‘Draft’), ‘sexo seguro’, ‘maternidade segura’, ‘saúde
reprodutiva’, cobrem, na verdade, a intenção de legalizar e legitimar o ‘aborto seguro’. Isso
eqüivale a colocar a Conferência sob signo sinistro de uma genuína ‘cultura da morte’”
(Jornal do Brasil, 31/08/1994). Dom Boaventura Kloppenburg, combatendo os métodos
contraceptivos e toda e qualquer forma de aborto, diz: “Nesta situação a Igreja deve
colocar-se decididamente ao lado da vida. Cremos firmemente que a vida humana, mesmo
que débil e com sofrimento, é sempre um esplêndido dom do Deus da Bondade” (Jornal do
Brasil, 17/07/1994). Ou combatendo os ambientalistas, como Dom Rafael Cifuentes:
“Mata-se um mico-leão e vira um caso de polícia. Matam-se milhões de seres indefesos –
pelo aborto – e o fato não merece uma simples manchete” (Jornal do Brasil, 29/08/1994).
Podemos perceber, então, que, em nome do combate ao controlismo dos neomalthusianos,
os bispos passaram a defender o princípio bíblico “crescei e multiplicai-vos”, tão ao gosto
de Malthus.
13
todos os outros arranjos familiares existentes, tentando impor um modelo único de
relacionamento que não condiz com a liberdade individual e a pluralidade.
Vê-se, desta forma, que o mito da "implosão populacional" pode servir para a
defesa de posturas sociais conservadoras e para uma reedição das idéias de Malthus.
Abandona-se o controlismo reinante durante a primeira transição demográfica e, em seu
lugar, surge um novo populacionismo, agora adaptado para as condições da segunda
transição demográfica. Enquanto Malthus falava da necessidade do "salário de
subsistência", agora fala-se na falta de mão-de-obra provocada pela redução das taxas de
fecundidade, e que esta escassez de trabalhadores poderia elevar o "salário de mercado",
colocando em perigo a acumulação capitalista. Fala-se, também, na redução do mercado
interno de consumo e nas deseconomias de escala provocadas por uma menor população.
Revive-se o medo do despovoamento e da "desinflação" populacional. Fala-se nos impactos
causados sobre a previdência social decorrentes da mudança da estrutura etária e da alta
proporção de idosos no conjunto da população. Até demógrafos pouco citados, como Julian
Simon, autor de The Ultimate Resource (1981), que sempre se opôs ao controlismo e ao
"catastrofismo" de alguns ambientalistas, são relembrados para reforçar os argumentos a
favor dos benefícios do crescimento populacional.
14
Além disto, existe um problema adicional, pois a possibilidade de redução da
população ocorre nos países do Norte, enquanto os países do Sul continuam apresentando
crescimento positivo. Segundo projeções de Bongaarts e Bulatao (1999), a população dos
países do Norte (representados por Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova
Zelândia e Japão) deverá apresentar uma pequena diminuição durante o século XXI,
passando de 1,18 bilhão de habitantes no ano 2000, para 1,11 bilhão de habitantes no ano
2100. No mesmo período, a população dos países do Sul deverá passar de 4,89 bilhões para
8,86 bilhões. A população mundial deverá caminhar para a estabilidade, atingindo um teto
na casa de 10 bilhões de habitantes. Portanto, o maior crescimento se dará nos países mais
pobres e o peso relativo da população dos países do Norte cairá de 19,4% em 2000 para
11,1% em 2100. Estimativas feitas por McNicoll (1999), apresentadas na tabela 1, mostram
que nos próximos 50 anos a única região que deve aumentar o seu peso relativo na
população mundial é a África. A Europa é a região que deverá apresentar a maior perda,
com sua participação na população mundial caindo de 21,7% em 1950 para cerca de 7% em
2050.
Tabela 1
Distribuição da população mundial por regiões (%)
Estimativas e projeções 1950-2050
Regiões 1950 2000 2050
Europa 21,7 12,0 7
USA, Canadá, Austrália, NZ 7,2 5,5 5
América Latina 6,6 8,6 9
Ásia 55,7 60,9 59
África 8,8 13,0 20
População mundial (bilhões) 2,52 6,05 8,90
Fonte: Geoffrey McNicoll, 1999
15
fecundidade, pelo menos ao nível de reposição. Em segundo lugar, mostra que não existe o
perigo de uma explosão populacional nos demais países, pois a população mundial deve
crescer algo em torno de 60% no século XXI, muito abaixo dos 280% de crescimento do
século XX. Se é assim, então de onde vem o medo do perigo demográfico que existe em
alguns países do Norte? A escassez de mão-de-obra poderia ser solucionada, por um lado
pela imigração e, de outro, pela exportação e transposição de plantas industriais para o
Terceiro Mundo. A tese de diminuição do mercado interno não se sustenta diante do
crescimento da renda per capita. A perda de influência geopolítica dos países do Norte é
apenas relativa, pois não é o tamanho da população o único critério de avaliação. Caso isto
fosse verdade a Indonésia teria um peso geopolítico muito maior que o Japão, que já foi o 5 º
país em tamanho de população e deve cair para 19º lugar em 2100.
16
5. ALGUNS ASPECTOS DA DINÂMICA POPULACIONAL NO BRASIL
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Tabela 2
Taxas de fecundidade total (TFT)
Brasil 1940-1996
1940 1950 1960 1970 1980 1991 1996
6,2 6,2 6,2 5,8 4,3 2,8 2,5
Fonte: Anuário estatístico do IBGE (1992) e Carvalho (1998)
Esta expressiva queda da fecundidade ocorreu sem que o país tivesse qualquer
política populacional explícita. Existia uma disputa implícita entre controlistas e
populacionistas. Amplos setores das forças armadas, setores da esquerda e setores da Igreja
Católica eram claramente a favor do crescimento populacional e de uma política de
ocupação das terras e dos espaços vazios do interior do país. Outros setores chamavam a
atenção para os aspectos negativos do rápido crescimento populacional, na linha do
trabalho de Coale e Hoover de 1958. Controlistas e natalistas disputavam espaço dentro do
governo, mas nunca houve uma clara hegemonia de qualquer uma das duas tendências. A
posição oficial brasileira foi sempre a de deixar as coisas acontecerem, uma espécie de não-
política, ou uma política populacional de laissez-faire. Contudo, Fonseca Sobrinho (1991)
mostra que a legislação trabalhista brasileira estava marcada desde seu início por uma
preocupação em não prejudicar as concepções pró-natalistas, criando mecanismos que
protegiam o trabalho da mulher, vista enquanto “mulher reprodutora”.
18
brasileira caminharia para uma estabilidade ou uma ligeira redução. Projeções de longo
prazo estão, obviamente, sujeitas a muitos erros. Mas uma coisa está mais ou menos clara,
não deve haver nem explosão nem implosão populacional no Brasil nos próximos 100 anos.
Com certeza o ritmo de crescimento vai continuar se desacelerando e uma inversão de
tendência não deve ser nada dramático que justifique qualquer cassação de direitos
individuais.
6. CONCLUSÃO
19
vez maior e com maior nível de consumo. O rápido crescimento populacional dos países do
Terceiro Mundo logo após o término da Segunda Guerra Mundial reforçou o medo da
“bomba populacional”, que seria mais perigosa que a bomba de Hiroshima. Mas, diante da
desaceleração geral do crescimento populacional do mundo, o espectro do apocalipse
mudou de lado. No final do século XX e início do terceiro milênio, as teorias escatológicas
já falam no deserto populacional fruto da implosão demográfica provocado pelas baixas
taxas de fecundidade. Mas explosões e implosões demográficas são mitos que devem ser
rechaçados porque fazem parte de uma ideologia que traz, implícita, formas coercitivas
para se estabelecer metas demográficas, ferindo os direitos individuais.
Além disto, por trás destes mitos existem posturas ideológicas e políticas que
defendem interesses de classe, interesses nacionais dos países do Norte e práticas racistas
contra os imigrantes pobres do Terceiro Mundo. Enquanto o modelo econômico do
neoliberalismo defende a abertura comercial e financeira, a quebra das barreiras comerciais
e o livre fluxo do capital rentista, sua prática social restringe a livre circulação dos cidadãos
e constrói muros, reais ou legais, entre os países do Norte e do Sul. Além das questões
nacionais, de classe e de raça, existe ainda a questão de gênero. As soluções apontadas
tanto pelos controlistas como pelos populacionistas acabam atingindo principalmente o
gênero feminino. A imposição ou a restrição de meios contraceptivos, a esterilização em
massa de mulheres ou a proibição de esterilizações, a criminalização do aborto e a falta de
estrutura para a realização da interrupção da gravidez prevista em lei, o combate ao uso de
camisinhas, a proibição da pílula do dia seguinte sob o argumento de que ela é abortiva,
tudo isto recai especialmente sobre as mulheres, que são obrigadas a arcar com os maiores
custos da geração e da criação dos filhos. Por trás do mito da implosão demográfica está
uma perspectiva que quer valorizar o papel tradicional da mulher, criando incentivos para
sua menor participação no mercado de trabalho e sua volta ao lar. Por trás das campanhas
de reforço da família, muitas vezes, se esconde o combate à pluralidade dos arranjos
familiares, à coabitação e à união civil de homossexuais. Em nome do combate à “cultura
da morte”, ataca-se a livre realização dos desejos dos indivíduos e reforça-se os
mecanismos de controle da sexualidade humana.
20
Mas, apesar de todos estes mitos e espectros, a Conferência do Cairo, em 1994,
representou um avanço em relação às Conferências anteriores, particularmente às de
Bucareste (1974) e México (1984), pois superou as limitações do neomalthusianismo,
colocando a questão da regulação da fecundidade como uma questão de saúde reprodutiva
– entendida como um estado de completo bem-estar físico, mental e social – e não como
um meio para se chegar a metas controlistas. Como disse Berquó (1998): “O documento do
Cairo reflete com bastante clareza a agenda de prioridades que as mulheres de todo o
mundo, através de suas redes de lideranças, foram construindo durante os anos de
preparação da Conferência. São elas que reorientaram o eixo da questão populacional, ao
colocarem a regulação da fecundidade no plano dos direitos individuais. Como
conseqüência, o planejamento familiar, stritu sensu, perde status, e surge no Cairo a
consagração dos direitos reprodutivos” (p. 26). Desta forma, é preciso compreender que
esta vitória do movimento de mulheres e das forças progressistas só foi possível na medida
em que houve, mesmo que de forma circunstancial, uma aliança entre o feminismo e o
neomalthusianismo. Segundo Hodgson e Watkins (1997): "Os neomalthusianos e aqueles
que procuram influenciar as tendências populacionais, geralmente, não são aliados naturais
das feministas nem tampouco inimigos naturais: muito depende das circunstâncias
momentâneas (…). Nos anos 80, entretanto, feministas americanas se depararam com um
movimento americano neomalthusianista diminuído em poder e influência, e modelado por
uma agenda unilateral de 'conhecimento geral' que produziu uma aliança de questionável
benefício mútuo" (p. 510). As autoras chamam a atenção para a fragilidade desta aliança na
medida que o neomalthusianismo objetiva apenas reduzir a fecundidade enquanto o
movimento de mulheres entende a saúde sexual e reprodutiva como um direito que as
pessoas têm “a uma vida sexual segura e satisfatória e que tenham a capacidade de
reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando e quantas vezes devem fazê-lo” (Plano de
ação do Cairo, 1994).
21
neomalthusianismo. Historicamente, o natalismo sempre buscou reforçar o papel
tradicional da mulher. Como afirma Prado (1982): “Stalin fez retroceder nos anos 30, com
o decreto de 1940, o caminho de uma estrutura familiar liberal que germinava nos ideais da
revolução soviética. Hitler preconizava a teoria dos três Ks – “Kinder, Küche, Kirche”
(crianças, cozinha e igreja) – como único destino das mulheres patriotas, na Alemanha
nazista. O integralismo e o fascismo fundamentam na constituição da família sua força,
assim como assistimos às lutas de um islamismo obscurantista, no Irã, que pune hoje com a
morte uma infidelidade conjugal, que retirou as mulheres das universidades etc.” (p. 33). É
neste sentido que podemos compreender a pressão das forças natalistas contra os direitos
sexuais e reprodutivos. Portanto, é de se esperar que as questões colocadas na Conferência
do Cairo voltem com mais força na próxima Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento. A compreensão dos interesses em jogo e a participação organizada dos
setores da sociedade civil que defendem o livre exercício dos direitos sexuais e
reprodutivos é a única garantia contra possíveis retrocessos.
22
Malthus. Por tudo isto, é importante resgatar a esperança contida no Esboço de um quadro
histórico... utilizando-a como matéria-prima de uma nova Utopia.
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