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POLÍTICAS PÚBLICAS

DE SAÚDE
POLÍTICAS PÚBLICAS
DE SAÚDE
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Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico


da Língua Portuguesa.

AUTORIA DO CONTEÚDO PROJETO GRÁFICO


Waldemiro de Souza Romanha UVA

REVISÃO DIAGRAMAÇÃO
Janaina Vieira UVA
Lydianna Lima
SUMÁRIO

Apresentação 6
Autor 7

UNIDADE 1

As políticas de saúde na República Velha 8


• Breve perfil da saúde no Brasil até o descobrimento

• Teoria dos miasmas x Teoria do germe da doença

• A saúde na Primeira República: Oswaldo Cruz

UNIDADE 2

A era Vargas 28
• Período militar

• O avanço das políticas públicas

• A saúde na era Vargas – Democracia


SUMÁRIO

UNIDADE 3

A criação do Ministério da Educação, Saúde Pública e a 45


reforma administrativa de Vargas
• A burocracia crescente da era Vargas

• A reforma do Ministério da Educação e Saúde Pública

• Criação do Instituto Nacional de Previdência Social – INPS

UNIDADE 4

A descentralização das políticas de saúde e a criação 63


do SUS
• “O Massacre de Manguinhos” – A saúde no contexto da ditadura militar

• Reforma Sanitária

• SUS
APRESENTAÇÃO

Vamos iniciar mais um período de atividade cultural em um momento de tanta carência


de conhecimento. Em 2020, vivemos uma contemporaneidade complexa, quando todos
os saberes se acumularam e conflituaram-se em teorias amplas, porém sintéticas, po-
sitivistas e humanistas, concretas e abstratas, identificadas e identitárias, progressistas
e liberais. Ao mesmo tempo, enfrentamos a pior das ameaças civilizatórias, que nos de-
safia, mas não intimida: o negacionismo científico e histórico como política de Estado.

A ciência, enquanto marco civilizatório, sempre esteve relacionada ao pensamento filo-


sófico/epistemológico. Significa que não existe e nunca haverá ciência sem filosofia ou
progresso sem sociologia. São saberes indissociáveis, que necessitam dos mesmos in-
centivos. A descoberta da vacina foi contemporânea dos avanços conceituais, que de-
ram lugar à teoria da biogênese sobre a geração espontânea. O desenvolvimento da
biologia dialogou com as leis que definiram a separação entre Igreja e Estado rumo à
laicidade. A expressão da sexualidade, em suas mais diversificadas orientações, tomou
novo impulso como consequência do aperfeiçoamento da democracia e do fortaleci-
mento das instituições.

Em tempos de terraplanistas e pseudocientistas, que apregoam discursos antivacina e


anticiência, resistir a esses discursos é obrigação e não opção. Portanto, conhecer os
aspectos históricos das políticas públicas de saúde no Brasil é urgente para que cada
profissional esteja qualificado a atuar em sua área e apto a defender o Sistema Único de
Saúde – SUS como um bem comum. Conhecer as políticas de saúde no Brasil é mais
do que um dever, é uma obrigação para todos aqueles que entendem que o SUS é uma
conquista do povo brasileiro.

Vamos juntos melhorar as condições sanitárias do Brasil?

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AUTOR

WALDEMIRO DE SOUZA ROMANHA

Bacharel e Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Santa Úrsula – USU-RJ


(1991). Mestre e doutor em Ciências pelo Instituto Oswaldo Cruz – Fiocruz-RJ (1999/2007).
Atualmente é professor adjunto da Associação Educacional Veiga de Almeida – UVA-RJ.
É autor e coautor de vários capítulos de livros e artigos científicos publicados em revistas
especializadas e indexadas no Scielo. Entre eles, livros e artigos clássicos e de leitura
obrigatória sobre Granuloma Esquistossomótico em cursos de Medicina e Biomedicina
(Editora da Fiocruz). É conteudista da disciplina de Análise de Risco Ambiental na UVA
e membro colaborador, cadastrado, da MEDPUCRIO (Escola de Graduação Medicina da
PUC-Rio), tendo participado da elaboração e publicação do livro das ementas do ciclo bá-
sico em Medicina (2011). Foi consultor do Ministério da Saúde (2009-2010) para Doenças
Sexualmente Transmissíveis {contratado pela Unesco - p. 176, seção 3. Diário Oficial da
União (DOU) de 23/10/2009}. É autor e articulista de blog de divulgação científica voltado
para o público leigo (http://microsintonias.blogspot.com/).

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UNIDADE 1

As políticas de saúde
na República Velha
INTRODUÇÃO

Em outubro de 2020 encontrei em minha rede social uma postagem muito interessan-
te sobre o início do processo civilizatório. De modo geral, os marcos civilizatórios es-
tão relacionados à transição do homem primitivo de um modelo caçador/coletor para
um modelo agrário, quando a fixação no campo é um de seus maiores avanços. Daí
o início da ação política a partir do estabelecimento de regras de convívio, demarca-
ção de fronteiras, conceito de propriedade privada, divisão da população em estratos
sociais, taxações e impostos, e, finalmente, o desenvolvimento das ciências e da escrita
— não exatamente nesta ordem e muito menos de forma linear. Normalmente, os avan-
ços sociais ocorrem simultaneamente e, usualmente, estão relacionados a processos
associativos interdependentes.

Contudo, a postagem chamava a atenção para o achado fóssil de um homem primitivo


— provavelmente do período neolítico (10.000 a.C. e 4.000 a.C.) — com uma calcificação
óssea na perna derivada de uma fratura. Pelas características anatômicas e histológicas
parecia que aquele indivíduo havia recebido atendimento terapêutico eficaz e se recupe-
rado da fratura. É provável que situações como essa tenham ocorrido inúmeras vezes ao
longo do desenvolvimento das civilizações. E era exatamente sobre o ato de cuidar o foco
da postagem. Ou seja, a maior expressão civilizatória não está nas formas de produção
e exploração da terra e do trabalho, mas no cuidado com o outro, no acolhimento e na
preocupação com o bem-estar social de cada membro da comunidade, que tem direito
à saúde, à propriedade e à segurança. Portanto, a mensagem compartilhada falava de
direitos humanos.

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Esta disciplina percorre os principais fatos históricos que levaram aos avanços da saúde
no Brasil e chama a atenção para os riscos de retrocesso, principalmente nos direitos de
todo cidadão a uma vida saudável com saúde, emprego, segurança e lazer. Enfim, tudo
aquilo que é determinante para uma vida com saúde.

OBJETIVO

Nesta unidade você será capaz de:

• Comparar a evolução dos serviços de saúde desde o descobrimento do Brasil


até o início da era Vargas.

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Breve perfil da saúde no Brasil até o
descobrimento

A saúde e a doença fazem parte de um mesmo processo, capaz de manter a vida em um


estado viável de equilíbrio fisiológico. O sucesso das espécies depende de mecanismos
coevolutivos suficientemente sofisticados para garantir que humanos e micróbios coabi-
tem no mesmo nicho, sem prejuízo para ambos. O desenvolvimento de um sistema imuno-
lógico capaz de gerar proteção e tolerância a vírus, bactérias, vermes e fungos, fazendo com
que a doença seja percebida como exceção e não como regra, é o segredo desse sucesso.

Entretanto, em um passado longínquo, quando a regra era a doença, nossos ancestrais


habitavam as savanas africanas e os áridos desertos da Península Arábica há aproxima-
damente 70 mil anos. A eterna diáspora das populações nômades que vagavam pelas
vastas extensões continentais era acompanhada por todo tipo de perigo e risco, a de-
pender de condições que, em sua maioria, eram quase sempre desfavoráveis. Entre os
diversos perigos, os mais comuns eram:

• Predadores ávidos por carne humana.


• Doenças infecciosas causadas por agentes patológicos desconhecidos.
• Combates traumáticos e mortais entre grupos humanos culturalmente distintos,
que competiam por território e caça.

Portanto, a morte e a doença estavam sempre presentes e ocupavam um espaço de


preocupação nas populações nômades, que viviam sob intensa pressão ambiental. Tais
pressões levaram o homem primitivo a perceber pontos anatômicos determinantes para
a manutenção da vida durante períodos de paz ou para o favorecimento da morte em
tempos de guerra.

Sabe-se que durante quase toda a evolução humana nossos ancestrais atribuíram gran-
de importância a traumatismos cranianos por seu caráter dramático e letalidade. As evi-
dências estão em achados fósseis de crânios com lesões severas derivadas de confron-
tos interpessoais. Entretanto, os primeiros registros de comportamentos terapêuticos
voltados para esse tipo de lesão datam do Neolítico, há aproximadamente 10.000 anos,
quando crânios submetidos a trepanação foram encontrados em culturas pré-históricas.
Tal prática prevaleceu até meados do século IX d.C., evidenciando sua importância, prin-
cipalmente no tratamento de enxaquecas e epilepsias (CASTRO; FERNANDES, 2010).

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Ampliando o foco

Trepanação
Orifício cirúrgico realizado intencionalmente para determinado fim.

Portanto, o desenvolvimento das civilizações, conjugado com o aumento proporcional da


inteligência humana, foi marcado por uma preocupação primordial e determinante de to-
das as etapas que levariam ao surgimento de habilidades voltadas para o cuidar: prevenir
doenças e evitar mortes.

Quando os europeus chegaram no Brasil encontraram um território em intensa tur-


bulência, tomado por guerras e conflitos culturais entre as diversas nações e troncos
indígenas que aqui habitavam. Os tupis-guaranis compunham a maioria dos habi-
tantes e, historicamente, haviam migrado através dos Andes em direção à Floresta
Amazônica há aproximadamente 2.000 anos e, progressivamente, ocupado todo o
litoral sul-americano, expulsando os tapuias, seus antigos habitantes e sucessores
dos homens caçadores/coletores.

É neste contexto que se desenrola a história do Brasil.

Considere um país tomado por uma cultura invasora, europeia, com o objetivo único
de conquistar e explorar as riquezas locais. Foi nessa condição caótica de guerras que
a saúde se desenvolveu no Brasil, onde todos os tipos de patologias infecciosas espa-
lhavam-se sem nenhum controle. Com a chegada dos europeus, também vieram pató-
genos capazes de provocar infecções de fácil transmissão. As primeiras vítimas foram
os indígenas, pois eles eram desprovidos de imunidade suficientemente eficiente para
combater novos e não usuais agentes infecciosos.

Exemplo

O sarampo, a gripe, a varíola e a febre amarela são apenas alguns exemplos en-
tre os de maior incidência, sendo os mais importantes na vitimação de milhares
de nativos, colonos, e posteriormente africanos, durante os quadros epidêmicos
que se sucederam ao longo de toda a história de ocupação pelos portugueses.

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Ampliando o foco

A varíola foi utilizada como arma biológica contra os índios goitacá, que habi-
tavam a região de Campos (RJ), como forma de consolidação do domínio por-
tuguês na região. A estratégia consistia basicamente em presentear os índios
com roupas de soldados mortos pela doença. Cabe ressaltar que essa medida
foi tomada a partir do esgotamento de todas as vias bélicas convencionais em-
pregadas na luta contra os ferozes guerreiros. Um exemplo de sua ferocidade
está no rito de passagem para a fase adulta. Quando o menino completava
18 anos tinha que se lançar nas águas turvas do rio Paraíba do Sul, na foz,
e trazer um tubarão morto para a terra. Além disso, eram hábeis corredores
e exímios caçadores, o que motivou os portugueses a utilizar estratégias de
guerra biológica.

Muitas outras doenças chegaram ao Brasil após o descobrimento, como a esquistos-


somose e a leishmaniose, transmitidas por africanos trazidos nos porões dos navios
negreiros para trabalhar como escravos na produção cafeeira (KATZ; ALMEIDA, 2003).
Dessa forma, as doenças, tanto de portugueses quanto de africanos, alastraram-se
pelo país acometendo centenas de milhares de habitantes e permanecendo até hoje
como endemias.

Até a chegada da família real em 22 de janeiro de1808, a medicina por aqui restringia-se a
práticas conhecidas como artes de curar — um compêndio de saberes e procedimentos
derivados das culturas indígenas, africanas e de famílias portuguesas empobrecidas que
aqui moravam. Os doentes que necessitavam de cuidados procuravam a ajuda de pajés,
curandeiros e boticários. A despeito da eficiência de tais práticas, pode-se dizer que, do
ponto de vista da administração portuguesa até a metade do século XVIII, a saúde não
fez parte do projeto colonial e por isso, para os padrões europeus, o que se observava era
o predomínio de espaços sociais desorganizados. Quando muito, havia uma preocupa-
ção explícita com a doença, como no caso da hanseníase (lepra) e da peste, motivando
algum controle sanitário sobre portos, ruas, casas e praias (NUNES, 2000).

A partir do século XIX, novas demandas alteraram o quadro político da saúde no Brasil.
A principal delas refletia o entendimento de que a manutenção do aumento da produção
industrial estava atrelada à saúde do trabalhador.

Quanto mais epidemias, mais adoecimentos, mortes e prejuízos econô-


micos derivados da queda de produção.

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A lógica era irrefutável e estimulou intervenções mais efetivas voltadas para a saúde pú-
blica. Entre elas destacou-se a implementação de escolas estatais de medicina:
• A primeira foi a Escola de Cirurgia da Bahia, em 1808.
• Posteriormente, em 1809, foram fundadas a Cátedra de Anatomia do Hospital
Militar e a Escola de Medicina no Rio de Janeiro.
• Em 1829 foi criada a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, que se
constituiu na força motriz da medicina social brasileira.

A medicina social compreendia uma série de programas voltados para a organização e


higienização dos espaços públicos, bem como para:
• A regulamentação de farmácias.
• O fim dos cemitérios nas igrejas.
• As reformas de hospitais.
• A assistência a doentes mentais.
• A educação física para crianças.

O fundamento científico que racionalizava tais medidas higienistas estava calcado na


teoria miasmática, que permitia o diagnóstico do quadro geral.

Ampliando o foco

A teoria dos miasmas foi cunhada por Hipócrates há 2.500 anos. Hipócrates
era um médico grego que acreditava na sazonalidade das doenças, uma vez
que era possível observar-se a influência das estações na saúde das pessoas.
De forma complementar, ele acreditava que o modo de vida das populações
era determinante para o processo saúde/doença, e que as doenças poderiam
ser adquiridas pelos ares fétidos ou miasmas emitidos pelos pântanos, lençóis
freáticos, poças contaminadas, matéria orgânica em decomposição ou qual-
quer tipo de ambiente insalubre, incluindo as florestas. O pensamento de Hipó-
crates foi tão importante que persistiu até o século XVII por tratar-se de uma
explicação racional, ainda que equivocada, sem vinculação sobrenatural.

Dentro do princípio teórico miasmático, distinguiam-se duas categorias relacionadas às


análises do perfil de desordem sanitária:
1. As causas naturais.
2. As causas sociais.

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As causas naturais estavam relacionadas à presença de mangues, baixadas alagadiças,
relevos acidentados e todos os tipos de acidente geográficos presentes no perímetro
metropolitano. As causas sociais dividiam-se em dois níveis analíticos: os macrossociais
e os microssociais. Os níveis macrossociais ajustavam-se ao funcionamento geral das
cidades; os níveis microssociais estavam associados ao funcionamento das instituições
(OLIVEIRA, 1983).

Nesse período, as políticas públicas em saúde foram construídas com base nessa teo-
ria. Portanto, as ações partiam de um exame detalhado dos espaços urbanos que apre-
sentassem riscos de transmissão de doenças. Posteriormente, eram tomadas medidas
voltadas para a medicalização de instituições como escolas, quartéis, hospitais, cemité-
rios, fábricas e prostíbulos, entre outros (NUNES, 2000).

Apesar de todos os esforços que permitiram os avanços da saúde pública no Brasil, em


1850 o Rio de Janeiro foi assolado por uma epidemia de febre amarela, que acometeu
centenas de milhares de pessoas, trazendo graves consequências para a capital da re-
pública e para todo o país. A teoria miasmática já não era mais suficiente para explicar
as doenças.

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Teoria dos miasmas x Teoria do germe
da doença

Aos poucos, a medicina social aumentou sua importância institucional a partir da chan-
cela das faculdades de Medicina, tornando-se progressivamente uma espécie de guardiã
da saúde pública, responsável pela reorganização e higienização dos espaços públicos.
As ações de controle e regulamentação do comércio e serviços estavam cada vez mais
centralizadas no Estado e a teoria dos miasmas era a doutrina ideológica que permeava
todas as políticas de saúde.

Não por acaso, em meados do século XVII estava ocorrendo uma revolução científica
na Europa, que progressivamente tomava corpo a partir dos avanços tecnológicos que
tornavam os microscópios cada vez mais potentes. O debate transcorria em torno da
presença ou não de micróbios específicos presentes no ar, capazes de causar altera-
ções na saúde dos animais e no estado dos alimentos. A comprovação da presença
de tais micróbios e sua ação seria suficiente para derrubar a teoria dos miasmas e da
geração espontânea.

Ampliando o foco

A geração espontânea era uma teoria que preconizava que a vida surgia espon-
taneamente da matéria morta ou do alimento apodrecido. Contra ela havia mui-
tos opositores, como o cientista alemão Rudolf Virchow e o químico francês
Louis Pasteur. Para contrapor a geração espontânea, Virchow cunhou o termo
“biogênese”, significando que a vida só poderia existir a partir de outra vida. Em
1857, o francês Louis Pasteur demonstrou que microrganismos presentes no
ar eram responsáveis pela fermentação, que convertia o suco de uva em vinho.
Estava comprovado que o ar continha uma variedade de micróbios capazes
de decompor a matéria orgânica em subprodutos distintos, encerrando assim
tal discussão.

As descobertas de Pasteur alertaram a comunidade científica para similaridades nos


processos de adoecimento. Ou seja, se microrganismos presentes no ar podiam alterar
de forma significativa os alimentos, é provável que as doenças tivessem as mesmas
causas. Tal ideia ficou conhecida como a teoria do germe da doença ou teoria unicausal:
para cada doença, um germe!

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A partir daí, os avanços científicos foram muitos.

• Em 1876, Robert Koch descobriu que uma bactéria em forma de bastão (Bacillus
anthracis) era a causadora do antraz, ou carbúnculo.
• Em 1882, Koch também descobriu que o Mycobacterium tuberculosis era a
bactéria causadora da tuberculose.
• Em 1910, Carlos Chagas realizou uma descoberta fascinante, que mudou a ciên-
cia no Brasil. Sozinho, ele descobriu como a doença de Chagas era transmitida, qual
era o vetor, sua ecologia e regiões endêmicas.

Chagas descreveu também a cardiopatia chagásica e todo o desenvolvimento da doen-


ça e seu tratamento. Até hoje, a coleção de corações examinados por Carlos Chagas
está guardada no Instituto Oswaldo Cruz, sob a responsabilidade do Departamento
de Patologia.

Um dos mais iminentes estagiários de Carlos Chagas foi Cecílio Romanha (1901 – 1997),
epidemiologista argentino que contribuiu com muitos trabalhos para o entendimento da
doença de Chagas, sua distribuição no continente e seu diagnóstico (DIAS, 1997). O feito
de Carlos Chagas igualou-se ao de Robert Koch com seus estudos sobre tuberculose.
Koch recebeu o Prêmio Nobel de Medicina em 1905. Já Carlos Chagas, tal qual Oswaldo
Cruz, foi odiado pela classe médica brasileira da época. Veja a seguir a cronologia das
principais descobertas no campo da microbiologia.

A idade de ouro da microbiologia

1857 Pasteur – Fermentação

1861 Pasteur – Refutou a geração espontânea

1864 Pasteur – Pasteurização

1867 Lister – Cirurgia asséptica

1876 Koch – Teoria do germe da doença

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1879 Neisser – Neisseria gonorrhoeae

1881 Koch – Culturas puras

Finley – Febre amarela

1882 Koch – Mycobaterium tuberculosis

Hess – Meio agár (sólido)

1883 Koch – Vibrio cholerae

1884 Metchnikoff – Fagocitose

Gram – Método Gram de coloração bacteriana

Escherich – Escherichia coli

1887 Petri – Placas de Petri

1889 Kitasato – Clostridium tetani

1890 Von Bering – Toxina contra a difteria

Ehrlich – Teoria da imunidade

1892 Winogardsky – Ciclo da súlfura

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1898 Shiga – Shigella dysenteriae

1910 Chagas – Trypanosoma cruzi; Ehrlich – Sífilis

Fonte: Madigan et. al. (2004).

Com a vitória da teoria unicausal, foram estabelecidos, em 1851, a partir da I Conferência


Sanitária Internacional, os protocolos de prevenção de doenças, que incluíam a quaren-
tena e o controle de animais.

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A saúde na Primeira República: Oswaldo Cruz

A Primeira República, também chamada de República Velha, foi uma denominação


dada para o período compreendido entre a proclamação da República, em 1889, até o
ano de 1930, em contraposição às mudanças que viriam com a ascensão de Getúlio Var-
gas ao poder. Portanto, a Nova República marcou o fim da transição entre o escravismo
e o capitalismo, bem como o fim do período monárquico e o início da república.

As preocupações com a saúde nesse período não estavam relacionadas com a digni-
dade humana ou mesmo com os direitos de acesso aos bens de consumo da classe
trabalhadora, mas com os interesses econômicos das oligarquias em manter os traba-
lhadores em condições “adequadas” de saúde, visando a estabilidade da produção agrá-
ria (NUNES, 2000). Ou seja, o velho conceito da racionalização extrema da produção
de trabalho, advindo dos métodos de Frederick Taylor (1856–1915), reinava enquanto
fundamento pseudocientífico para justificar a produção em cadeia na indústria do café.

Nesse contexto, a despeito de todos os avanços científicos/microbiológicos em progres-


so nos países centrais, o homem era visto como o componente de uma grande engrena-
gem que não podia parar. Esse modelo de política econômica trazia como consequência
uma política da saúde voltada para a doença e não para suas causas.

O modelo era curativo e não preventivo!

Por isso, a epidemia de febre amarela, que havia começado em 1950 no Rio de Janei-
ro, atingiu grande parte da zona cafeicultora de Campinas e Sorocaba (SP) em 1889,
gerando prejuízos incalculáveis para a economia do país. Os mais vulneráveis eram os
trabalhadores do campo, principalmente imigrantes contratados para substituir a mão de
obra escrava, que havia sido liberta em 13 de maio de1888, ano anterior à Proclamação
da República.

Em termos gerais, no início do século XX o quadro epidêmico do Rio de Janeiro retratava
uma cidade insalubre e assolada por uma série de doenças, que variavam entre varíola,
peste bubônica e febre amarela. Em 1902, o recém-eleito presidente do Brasil Rodri-
gues Alves (1848–1919), inspirado no modelo francês de medicina urbana, liderou um
movimento de saneamento que permitiu abrir grandes avenidas no centro do Rio e ex-
pulsar para as favelas periféricas as populações empobrecidas que habitavam cortiços
e quartos de aluguel.

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Um pouco antes, em 1899, um jovem médico e cientista chamado Oswaldo Cruz retor-
nara de um dos maiores centros de pesquisa em microbiologia do mundo, o Instituto
Pasteur, onde havia estagiado com o biólogo russo Ilya Mechnikov, ganhador do Prêmio
Nobel de Fisiologia (1908) por seus trabalhos em imunologia, e Émile Roux, médico des-
cobridor do soro antidiftérico e diretor do mesmo instituto.

Após uma rápida passagem por Santos (SP), onde ajudou a debelar a peste bubônica,
Oswaldo Cruz foi convidado pelo Barão de Pedro Afonso, por indicação de Émile Roux,
para dirigir o recém-fundado Instituto Soroterápico Nacional, na fazenda de Manguinhos,
transformando-o em um importante centro de pesquisa básica e de produção de vacina.
Posteriormente, após a posse de Rodrigues Alves, Oswaldo Cruz foi nomeado Diretor Ge-
ral da Saúde Pública (DGSP), algo como um Ministro da Saúde de hoje, a fim de erradicar
as epidemias da cidade.

Os feitos notáveis de Oswaldo Cruz lhe renderam inúmeros prêmios, mas também algu-
mas crises institucionais como a Revolta da Vacina, em 1904. Nesta época houve dis-
sonância entre a população e a forma autoritária como Oswaldo Cruz comandou a cam-
panha de vacinação contra a varíola. O modelo propiciou abusos por parte de agentes
higienistas, que invadiram casas, assediaram mulheres e crianças vacinando-as à força,
gerando grande revolta popular, que foi debelada com violência pelo governo. Curiosa-
mente, em 1908, a população foi surpreendida por uma nova epidemia de varíola e, ao
contrário do que se esperava, os cidadãos demonstraram clareza quanto à necessidade
de imunização prévia e compareceram espontaneamente aos postos de vacinação. Em
1909 o Instituto Soroterápico Nacional passou a se chamar Instituto Oswaldo Cruz e em
1917, aos 44 anos, Oswaldo Cruz faleceu de insuficiência renal em Petrópolis (RJ) após
ter abandonado o Instituto por motivos de saúde.

Entre as suas contribuições para a saúde no Brasil podemos destacar:


• 1906: criação de um código sanitário para portos marítimos e fluviais com regras
internacionais.
• 1908: erradicação da varíola, peste bubônica e febre amarela no Rio de Janeiro.
• 1910: combate à febre amarela na via-férrea Madeira-Mamoré, no Amazonas.
• 1912: saneamento do vale amazônico com a colaboração de Carlos Chagas.

O Brasil da década de 1920 era uma jovem república abalada em sua principal indústria, a
cafeeira, por conta das incertezas econômicas geradas por um mundo economicamente
arruinado por guerras. O velho continente ainda tentava recuperar-se dos imensos prejuí-
zos acumulados pela I Guerra Mundial (1914 – 1918), diminuindo o consumo de produ-
tos importados e aumentando a produção interna. Essas medidas afetaram em cheio o

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Brasil e os Estados Unidos. A falta de escoamento da superprodução norte-americana
levou ao aumento do desemprego e à hiperdesvalorização da bolsa de Nova York em
1929, culminando com uma grande recessão no mundo capitalista, da qual o Brasil não
passou ileso.

Nesse período, o Brasil iniciava sua revolução industrial tardia e vivia suas próprias con-
tradições. Por um lado, tratava-se de um país atrasado, predominantemente rural, de
tradição escravagista e patriarcal. Por outro, os grandes centros urbanos como Rio de
Janeiro e São Paulo respiravam certa modernidade e urbanizavam-se rapidamente, acen-
tuando os contrastes sociais.

Na saúde Nas artes, Na literatura,


predominava uma nova o Movimento
o pensamento identidade nacional Modernista
sanitarista surgia a partir apropriava-se
de Oswaldo Cruz, da Semana de Arte de uma narrativa
com seu modelo de Moderna de 1922. realista da
medicina preventiva conjuntura brasileira
e científica, Na música, a partir de
que aos poucos o grande maestro e uma produção
influenciava as escolas compositor Heitor politicamente
de Medicina, Villa-Lobos fundia engajada,
que ainda estavam na o clássico com que trazia
teoria dos miasmas. o folclore brasileiro como principais
de forma genial, características a
tornando-se valorização da cultura
internacionalmente brasileira e sua
reconhecido. fusão com estéticas
estrangeiras. Entre os
muitos representantes
dessa época
destacam-se
Rachel de Queiroz e
Carlos Drummond
de Andrade.

Entre os opositores do Movimento Modernista estavam os defensores da eugenia, uma


das principais ideologias raciais responsável pelas condições de abandono sanitário, cul-
tural e humanitário, às quais estava submetida a população brasileira de origem africana
recém-libertada pela Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Neste contexto surge a perso-

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nagem estereótipo do brasileiro caipira, chamado de Jeca Tatu, de Monteiro Lobato.
Ou seja, o homem do campo, eternamente doente, necessitado, sofrendo de preguiça
crônica e fome.

Esta condição espelhava a outra extremidade da realidade das políticas públicas em saú-
de, que se limitavam aos centros urbanos de maior importância e mantinham o campo
em total abandono. Para as elites, a salvação do Brasil passava pelo “branqueamento”
da raça. Era necessário trazer sangue “bom” dos imigrantes do norte. O branqueamento
melhoraria a resistência às doenças, aumentando a produtividade, diziam eles! Com este
pensamento, os afrodescendentes recém-libertos foram abandonados pelas oligarquias
e todo o esforço voltou-se para o projeto eugênico, racista, não inclusivo, para trazer imi-
grantes — principalmente italianos — para o campo. Assim, o Brasil acumulava mais uma
dívida com aqueles que, de fato e contra a própria vontade, haviam construído a nação
até aquele período: nós, o povo brasileiro!

Neste momento já se podia dizer que havia no Brasil um Movimento Sanitário, que se
dividia entre ideias contraditórias quanto aos seus objetivos e crenças. Entretanto, uma
linha de pensamento começava a sobressair:

O atraso brasileiro não é uma questão de raça, mas uma questão de doença.

Não se tratava de um determinismo biológico, mas de uma reorientação quanto às ações


de construção de uma nacionalidade que pudesse ser forjada a partir de um olhar das
elites mais para o interior do país do que para o exterior, um olhar que fosse mais preocu-
pado com as grandes endemias dos sertões. A lógica era simples: doente = raça fraca =
nação sem futuro (SANTOS, 1985).

O pensamento sanitário no Brasil fez com que, naquele momento histórico entre 1923 e
1927, o sanitarismo se convertesse no projeto médico-social brasileiro. O projeto basea-
va-se no que se denominou de campanhismo.

Ampliando o foco

Campanhismo
Modelo vinculado à indústria agroexportadora, que requeria trabalhadores sau-
dáveis e produtivos, além de portos e cidades saneadas para estimulação de
comércio e imigração.

23
Portanto, entre as principais ações empregadas como medidas higienistas no início do
século XX pode-se distinguir:
• Campanhas sanitárias de combate a grandes epidemias como febre amarela,
peste bubônica e varíola.
• Implementação de programas de vacinação obrigatórios.
• Desinfecção de espaços públicos e domiciliares.
• Medicalização do espaço urbano.

A República Velha marcou um ponto de inflexão no desenvolvimento das políticas pú-


blicas em saúde. Não podemos esquecer da lei de assistência à saúde pela previdência
social, denominada Caixas de Aposentadoria e Pensão, a Lei Eloy Chaves, de 1923. Sobre
isso falaremos na próxima unidade.

24
MIDIATECA

Para ampliar seu conhecimento veja o material complementar da Unidade 1,


disponível na midiateca.

NA PRÁTICA

Você deve estar se perguntando: qual a utilidade de tantos conceitos? Imagine


o quadro pandêmico ocorrido em 2020. Vivemos o medo de uma possível con-
taminação pelo coronavírus e por isso nos mantemos em isolamento social o
máximo possível. Quando somos obrigados a sair, usamos máscaras e man-
temos uma distância mínima dos outros. Observe que muitas pessoas ainda
vivem no contexto miasmático ou sobrenatural e negam os avanços científicos
que permitiram a identificação do agente causal da doença e o desenvolvimen-
to de vacinas.

A falta de compreensão sobre a ciência coloca o sujeito em um estado de ne-


gação, mistificando os fenômenos naturais, desse modo comprometendo as
medidas sanitárias necessárias e capazes de conter a disseminação do vírus
e o adoecimento das pessoas. Vivemos esta realidade no Brasil. As pessoas
fazem campanhas contra as vacinas, contra o isolamento social e contra o uso
de máscaras, promovendo aglomerações perigosas e desinformação. Tudo
isso ocorre por falta de conhecimento da história e da ciência. A única solução
é entender que o método científico desenvolvido ao longo de séculos deve ser
respeitado e as medidas sanitárias seguidas.

25
Resumo da Unidade 1

Nesta unidade vimos que as condições de saúde no Brasil sempre estiveram alinhadas
com o pensamento dominante de sua época. As medidas higienistas no Brasil Colônia
seguiram os conceitos da teoria dos miasmas, pois não havia fundamentos científicos
mais confiáveis naquele momento. Contudo, a ciência não é estática e movimenta-se a
partir dos avanços da sociedade. Na República Velha, as políticas de saúde adequaram-
-se à vanguarda do pensamento europeu, passando a perceber a doença como resultado
de interação com microrganismos, de acordo com a teoria unicausal ou teoria do ger-
me da doença. Seu maior representante foi o sanitarista Oswaldo Cruz, que iniciou uma
campanha de saneamento e de vacinação visando erradicar as grandes epidemias. Cabe
destacar que as políticas econômicas nem sempre estiveram alinhadas com os avanços
científicos — principalmente quando se tratava de produtividade. Assim, muitas vezes os
trabalhadores eram tratados como componentes de uma engrenagem que não podia
parar. O lado humano era esquecido.

26
Referências

CASTRO, S. L. A. O pensamento sanitarista na primeira república: Uma ideologia de cons-


trução da nacionalidade. Revista de Ciências Sociais. 28(2):123-210, 1985. Biblioteca
Virtual em Saúde.

COSTA, M. C. L. Influências do discurso médico e do higienismo no ordenamento urbano.


Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia. 9(11): 63-73, 2013.
Disponível em: 3473 (ufgd.edu.br). Acesso em: 30 nov. 2020.

CASTRO, F. S.; LANDEIRA-FERNANDEZ, J. Alma, mente e cérebro na pré-história e nas


primeiras civilizações humanas. Psicologia: reflexão e crítica. 23 (1):141–152, 2010. Dis-
ponível em: Alma, mente e cérebro na pré-história e nas primeiras civilizações humanas
(scielo.br). Acesso em: 28 nov. 2020.

DIAS, J. C. P. Cecílio Romaña, o sinal de Romaña e a doença de chagas. Revista da


Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. 30 (5): 0-0, 1997. Disponível em: Cecílio Ro-
maña, o sinal de Romaña e a doença de Chagas (scielo.br). Acesso em: 28 nov. 2020.

KATZ, N.; ALMEIDA, K. Esquistossomose, xistose, barriga d’agua. Ciência e Cultura.


55 (1):1-5, 2003.

MADIGAN, M. T.; MARTINKO, J. M & Parker, J. Microbiologia de Brock. 10. ed. São Paulo:
Pearson, 2004.

NUNES, E. D. Sobre a história da saúde pública: ideias e autores. Ciência e Saúde Coletiva.
5(2): 251-264, 2000. Disponível em: histŠria (scielo.br). Acesso em: 30 nov. 2020.

27
UNIDADE 2

A era Vargas
INTRODUÇÃO

Nesta unidade você vai consolidar seus conhecimentos sobre a evolução das políticas
públicas de saúde sob os pontos de vista histórico e conceitual. Os tópicos abordados
mostram de forma abrangente a diferença entre as linhas de pensamento que influen-
ciaram a construção do movimento sanitarista e as causas de seu fracasso. Por outro
lado, você também verá o crescimento da medicina assistencialista na era Vargas e a
origem da burocracia que favoreceu o desvio de finalidade dos institutos de assistência
e previdência.

OBJETIVO

Nesta unidade você será capaz de:

• Identificar as políticas públicas de saúde do Estado Novo no contexto dos novos


paradigmas sanitários e econômicos.

29
Período militar

Para que possamos compreender o processo de construção de uma estrutura política


de saúde pública justa, abrangente, integrada e voltada para o bem-estar social da po-
pulação brasileira tal como o Sistema único de Saúde – SUS, devemos contextualizar o
ambiente histórico. As demandas subjetivas, representadas por interesses distintos, se
movimentaram como peças de um tabuleiro em direção a objetivos de perpetuação de
projetos de poder — quer fossem republicanos ou autoritários.

Sabe-se que “saúde” é poder, seja no contexto privado em que o médico exerce domí-
nio sobre o paciente ou no âmbito público, quando o direcionamento das abordagens
em saúde alcança milhões de pessoas a um custo vultoso. O ordenamento público e
a organização social passam obrigatoriamente pela saúde, tal como ocorreu durante a
República Velha.

A construção de um projeto de poder sem que a saúde esteja em desta-


que como um marco governamental está fadada ao fracasso.

Um dos processos de consolidação do território brasileiro como uma unidade integrada


e indissolúvel se deu a partir de um projeto de poder que envolvia a construção de uma
identidade nacional em que cada sujeito, de norte a sul, estivesse sob os mesmos estí-
mulos legais e culturais. Foi por isso que, no início do Brasil colônia, a Coroa Portuguesa
estimulou o comércio entre todas as capitanias hereditárias, tornando-as inter-relaciona-
das e culturalmente identificadas. Outra forma de integração veio da Igreja Católica, que
exerceu um importante papel no controle da vida cotidiana e política das comunidades
a partir de seus arcebispados. Do arcebispado da Bahia saíam os comandos para os
demais, que utilizavam igrejas e paróquias para reforçar os laços culturais em todo o
território.

Portanto, desde o período imperial até hoje, o Brasil foi marcado por tentativas de se criar
uma identidade nacional a partir de um comércio forte e de uma igreja centralizadora,
porém capilarizada. Qualquer movimento separatista era reprimido violentamente. A for-
mação de uma identidade nacional consolidaria um modo de ser, uma forma de pensar
e um comportamento padrão de fácil controle social. Esses foram os principais motivos
que mantiveram o Estado brasileiro íntegro e coeso, evitando seu esfacelamento em pe-
quenas repúblicas como ocorreu na América Espanhola.

30
O movimento sanitarista brasileiro entendeu muito cedo que a saúde não podia ficar de
fora dessa construção e, aos poucos, percebeu que a identidade nacional deveria passar
por uma política de Estado intervencionista, que englobasse de forma coletiva os con-
tingentes de brasileiros totalmente esquecidos pelo poder público nos mais profundos
rincões do território nacional.

Ampliando o foco

A construção de uma identidade nacional deveria incorporar uma consciência


sanitarista aos processos subjetivos de construção da identidade do sujeito a
partir de políticas públicas de Educação em Saúde nos currículos escolares.
Nesse contexto, o sanitarismo passaria a ter um caráter político. Tal pensamen-
to empolgou o movimento sanitarista brasileiro, motivando ações de campo
voltadas para a conscientização das populações rurais. Portanto, o pensamen-
to sanitarista da época representou um corte no pensamento da medicina libe-
ral, que tinha uma abordagem individual e curativa. O pensamento sanitarista
era coletivo e voltado para ações profiláticas e preventivas. O auge desse pen-
samento se deu na década de 1920.

As populações do interior do Brasil estavam sujeitas a um regime político denominado


coronelismo. Nesse regime, os trabalhadores eram semiescravizados por grandes lati-
fundiários (coronéis), que cuidavam de suas terras como se fossem seus reinos. A saú-
de era secundária nessa conjuntura. O movimento sanitário brasileiro percebeu que era
urgente uma intervenção governamental nesses territórios. Segundo Neiva Pena (CAS-
TRO, 1985), era necessário que o ideário sanitarista de Oswaldo Cruz chegasse à zona
rural como uma forma de redenção nacional.

Se por um lado o pensamento sanitarista brasileiro caminhava para um contexto rudi-


mentar de saúde coletiva visando uma intervenção no interior do país, por outro o sani-
tarismo urbano aprofundava seus interesses puramente higienistas. Assim, tinha como
propósito único manter a ordem a partir da organização dos espaços públicos, visando
à erradicação de epidemias para não comprometer as políticas de imigração do Brasil.

Enquanto isso, nas cidades, os trabalhadores das empresas e indústrias estavam alheios
aos debates e pensamentos nacionalistas do movimento sanitário. A realidade que se im-
punha à classe média trabalhadora era a ausência de direitos trabalhistas, o que ameaça-
va uma velhice tranquila, remunerada e com saúde. Repare que a Revolta da Vacina em

31
1904 foi apenas mais um episódio em que a população se indignou com o autoritarismo
das decisões que lhe foi imposta, sem que houvesse comunicação adequada e respeito
às liberdades individuais, por melhores que fossem as intenções.

Em 1920 (que dirá antes disso) não havia plano de previdência ou qualquer outro direito
trabalhista com os quais estamos acostumados atualmente. Cabe lembrar que o Brasil
estava em um período de rápida industrialização e acelerada urbanização. Portanto, os
trabalhadores organizaram-se em função dessas reivindicações resultando em inúme-
ras paralisações e greves, principalmente no setor ferroviário, que politizou as lutas de
classe. De um lado, estavam os oligarcas donos dos meios de produção, europeizados
e brancos, cada vez mais ávidos por lucros e herdeiros seculares de terras, fábricas e
prédios. De outro, estavam os trabalhadores miscigenados, pobres e historicamente es-
quecidos pelo sistema, que ainda respiravam ares escravistas.

Não havia justiça para todos!

A forte agitação popular por direitos trabalhistas — tais como reajuste salarial periódico,
adicional noturno, assistência médica, férias e aposentadoria — obrigou os políticos a
se manifestarem. Em 1923, o presidente Arthur Bernardes (1922–1926) assinou a lei
proposta enviada pelo deputado federal Eloy Chaves, que obrigava cada companhia fer-
roviária do país a criar Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) a partir de contribui-
ções feitas por funcionários e patrões, e pagar o benefício a aposentados e pensionistas
(AGÊNCIA SENADO, 2019). Estava criada a primeira estrutura previdenciária do Brasil,
que se alastrou pelas demais categorias trabalhistas.

Enquanto nas cidades havia forte tensão entre trabalhadores e proprietários de indús-
trias e empresas privadas, na saúde pública o movimento sanitarista procurava utilizar
a máquina estatal para ampliar medidas higienistas e avançar para o interior do Brasil
como uma forma de integração nacional e de construção de uma identidade. Entretanto,
o estabelecimento de uma associação entre saúde pública e o capitalismo crescente da
jovem república brasileira só seria possível se houvesse convergência entre os interesses
das oligarquias com os ideais nacionalistas dos sanitaristas.

Portanto, a fase urbana do sanitarismo só foi possível porque as oligarquias, detentoras


dos grandes latifúndios e dos meios de produção, entenderam que o saneamento dos es-
paços públicos, portos e moradias consideradas insalubres era de vital importância para
seus interesses estratégicos de estimular a imigração europeia para substituir a mão de
obra escrava e cumprir todo o protocolo eugênico.

32
As condições sanitárias nas grandes capitais antes de 1904 não eram atrativas para a
vinda dos estrangeiros devido aos riscos que representavam para a saúde. Quando se
iniciaram as campanhas de saneamento por Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e em São
Paulo por Emílio Ribas e Adolfo Lutz (estes um pouco antes, em 1903), os índices de
imigração sofreram alta considerável, convergindo com os interesses das elites oligárqui-
cas, que também ocupavam os principais cargos políticos no Brasil.

Para refletir

Neste ponto da história cabe fazer a seguinte pregunta: por que a administração
brasileira no período posterior à Lei Áurea optou por substituir a mão de obra
escrava por imigrantes europeus, em vez de aproveitar os próprios brasileiros
recém-libertos ou os sertanejos esquecidos no agreste e sertões nordestinos?

Para respondermos a esta pregunta é preciso compreender o pensamento dominante da


época e o imaginário das elites oligárquicas, que regiam às ações políticas de construção
de um Estado nacional submisso aos seus interesses e de uma identidade nacional for-
madora de cidadãos ciosos de seus deveres como classe subordinada.

Durante a República Velha havia, no Brasil, duas correntes principais de pensamento na-
cionalista, cuja questão sanitária estava no centro dessas duas ideologias. Tais visões
ganharam forte impulso após o término da I Guerra Mundial (1914 -1918).

I. A primeira, de cunho urbano, estava alinhada com o movimento desenvolvimentis-


ta e higienista das grandes cidades, atribuindo grande valor à política de imigração
de europeus brancos para o Brasil.
II. A outra tinha um olhar voltado para o interior, principalmente para o povo mis-
cigenado do sertão brasileiro, onde se acreditava estarem os verdadeiros valores
nacionais que necessitavam de resgate.

A primeira visão era eugênica e creditava à miscigenação todos os males que tornava
o brasileiro cronicamente doente. A solução estava na europeização do Brasil e conse-
quente branqueamento da população, “melhorando” o sangue e tornando-o mais resis-
tente às doenças tropicais. Tal ideologia era inspirada no fascismo italiano de Mussolini
(1922), que havia influenciado o nazismo alemão a partir de 1933 com a chegada de
Hitler ao poder. No Brasil, encontrou forte apoio no partido de direita ultraconservador
de Plínio Salgado, chamado de integralista (Ação Integralista Brasileira – AIB). O então

33
chamado racismo científico contagiou um grupo enorme de profissionais da saúde pú-
blica, que culpava a herança africana de forma contundente pela “baixa” resistência dos
brasileiros a doenças.

A segunda corrente nacionalista estava relacionada ao pensamento sanitarista e incluía


aqueles que viam no resgate do sertão e do sertanejo a tarefa de construção da nação.
Para eles, era necessário valorizar a agricultura e o homem do campo. A busca de uma
identidade nacional passava por um olhar mais atento para o interior, onde as raízes do
Brasil eram profundas e a identidade já estava em processo de consolidação. Portanto,
o saneamento rural era o principal objetivo dos sanitaristas, pois já estava claro que a
condição de vulnerabilidade do sertanejo devia-se a doenças tropicais e não a um deter-
minismo biológico geneticamente herdado. O homem do interior estava sujeito a uma
série de perigos que o mantinham em constante risco de infecções devido ao estado de
deficiência sanitária local.

Ampliando o foco

É nesse momento que o escritor Monteiro Lobato, criador, entre outros, do per-
sonagem Jeca Tatu e da obra O Sítio do Pica-pau Amarelo, abdica de suas
concepções racistas e abraça o sanitarismo como a principal questão nacional.

34
O avanço das políticas públicas

Aos poucos o sanitarismo rural converteu-se na nova bandeira da saúde pública do Brasil,
até se transformar em aspiração nacional. Ou seja, o movimento sanitarista superou a
fase urbana e se converteu ao “saneamento dos sertões”. Um dos principais motivos des-
sa guinada foi a publicação, em 1916, do Relatório Neiva-Pena como resultado da primei-
ra expedição científica organizada pelo Instituto Oswaldo Cruz em 1912. Nela, os médicos
sanitaristas Belisário Pena e Artur Neiva percorreram durante vários meses o norte e o
nordeste da Bahia, o sudeste de Pernambuco, o sul do Piauí e o norte e sul de Goiás.

No relatório, os sanitaristas denunciaram as péssimas condições de vida no interior do


país. Apontaram que a saúde das populações que viviam às margens do Rio São Fran-
cisco era tão ruim quanto a saúde das que viviam no semiárido, derrubando as teses
oligárquicas que diziam que as condições de saúde e pobreza do Nordeste estavam re-
lacionadas ao clima semiárido. Tais teses não se sustentavam, uma vez que as expedi-
ções de Pena e Neiva mostraram que as populações às margens do rio São Francisco
estavam sujeitas a um clima diverso e ainda assim apresentavam os mesmos quadros
epidêmicos gerais, com diferenças pontuais. Por isso, eles propuseram como medida de
emergência a criação de um serviço médico itinerante para toda a região visando à me-
lhoria das condições de saúde. Posteriormente, Belisário Pena apresentou um conjunto
de medidas para serem aplicadas imediatamente. Entre elas destacam-se:

1. Intervenção crescente do Estado no setor da saúde pública.


2. Elaboração de novo código sanitário para todo o país.
3. Divisão do Brasil em oito zonas sanitárias.
4. Criação de tribunal federal especial para tratar de questões decorrentes da aplica-
ção da nova legislação.
5. Seleção de uma endemia em dois municípios de cada estado durante a fase ini-
cial de saneamento do país.

Belisário Pena e seus colegas criaram a Liga Pró-Saneamento do Brasil para pressionar
o governo a implementar o programa. Como resultado, o presidente Venceslau Brás
(1914 – 1918), em seu último ano do governo criou o Serviço de Profilaxia Rural, que
centralizava as ações de saúde pública que seriam aplicadas no interior. As ações visa-
vam intervenções no Nordeste por meio do combate à malária, amarelão e doença de
Chagas (NUNES, 2000).

35
Entretanto, avanços mais consistentes vieram mesmo no governo de Epitácio Pessoa
(1919 – 1922) com a ampliação dos projetos de intervenção estatal a partir das seguin-
tes mudanças:

I. Carlos Chagas assume a Coordenação do Departamento Nacional de Saúde


Pública, cargo que ficou vago desde Oswaldo Cruz.
II. Belisário Pena recebe a direção dos Serviços e Saneamento Rural, que passa a
ser gerido com recursos dos impostos federais sobre bebidas alcoólicas, produtos
farmacêuticos e casas de jogo.

Essas mudanças permitiram que o conjunto de medidas propostas por Belisário Pena
se tornassem viáveis.

Importante

As políticas públicas de saúde no Brasil seguiram duas linhas independentes,


motivadas por demandas distintas e não integradas. Uma delas estava relacio-
nada com reivindicações próprias da classe média trabalhadora por melhores
condições de salário, trabalho, assistência médica e aposentadoria, impulsio-
nando a medicina liberal clínica, curativa/privatista e hospitalocêntrica por meio
das CAPs. Este modelo favorecia uma abordagem individual e medicalizante
da saúde em que os determinantes sociais (condições de vida) eram descon-
siderados como fatores que também afetavam a saúde dos indivíduos e da
coletividade. Na outra extremidade, havia um ideário sanitarista que partia de
uma demanda científica de especialistas, que entendiam que a construção de
uma identidade nacional dependia de um resgate sanitário das populações es-
quecidas do semiárido nordestino. Esse resgate deveria estar atrelado a uma
intervenção governista visando mudança de mentalidade das populações tra-
balhadoras rurais, incluindo os grandes proprietários de terra que ainda nutriam
uma relação quase escravista com os trabalhadores do campo. Portanto, na
construção de uma nova identidade nacional, não cabia a cultura dos “coronéis”
e nem a imagem do homem do campo como um “jeca”.

A estrutura organizacional da saúde no Brasil começava a se delinear de forma dicotô-


mica. Nos grandes centros urbanos as ações de atenção à saúde seguiam uma lógica
de assistência médica equivalente a um modelo curativo/privatista. Sua gestão estava
subordinada a um sistema de previdência social rudimentar, denominado Caixas de Pen-

36
são e Aposentadoria, cujo financiamento era bipartite (empregados e empregadores), ou
seja, sua origem era contributiva (COHN, 2006).

Nas zonas rurais do interior do Brasil o modelo de gestão de saúde era o sanitarismo
campanhismo, surgido no início do século XX e que se ocupava de ações higienistas
voltadas para a erradicação das grandes endemias nacionais. Esse modelo também era
denominado biomédico devido ao seu caráter investigativo e científico e estava subordi-
nado ao Departamento Nacional de Saúde Pública (JÚNIOR; ALVES, 2007).

Do ponto de vista das caixas de pensão (assistência médica), o modelo era completa-
mente excludente pois contemplava apenas aqueles que estavam vinculados a alguma
empresa que estivesse obrigada, por lei, a garantir os direitos recém-conquistados pelos
trabalhadores. As pessoas sem vínculo empregatício teriam de pagar do próprio bolso — o
que seria inviável caso não pertencessem às classes privilegiadas — ou deveriam procurar
hospitais filantrópicos. Cabe ressaltar que durante três séculos de colonização existiam
apenas 10 Santas Casas de Misericórdia no Brasil. Ou seja, apesar da Lei Eloy Chaves de
1923, a situação era de total catástrofe assistencial durante toda a década de 1920.

Para refletir

Você deve estar pensando: Que confusão! As coisas no Brasil se constituíram


sobre um terreno movediço de intrigas e interesses mesquinhos. Então, colo-
que mais um tempero nesse caldeirão. Vamos relembrar que o Brasil, nesse pe-
ríodo, vivia uma crise macroeconômica sem precedentes, daquelas que ultra-
passavam as nossas próprias mazelas representadas pelos projetos de poder
das oligarquias, que só pensavam em seus ganhos, ainda que, para isso, fosse
necessário investir no modelo sanitarista de Carlos Chagas e Belisário Pena.
Tratava-se da crise europeia “iniciada” ao final da I Grande Guerra — novembro
de 1918.

Os países europeus passaram a investir em seu próprio mercado, comprometendo a


exportação do nosso principal produto: o café. Pairava sobre o país a primeira grande
ameaça ao sanitarismo brasileiro e ao seu nacionalismo ideológico, que aspirava à cons-
trução de uma identidade nacional a partir de uma saúde coletiva calcada em educação
e saneamento, de forma a sedimentar uma consciência higienista em cada brasileiro.

37
Apesar da crescente falta de recursos devido à crise, o novo código sanitário de 1920 in-
tensificou o nível de intervenção federal no interior de Brasil a partir da criação de postos
de profilaxia em 11 estados da região Nordeste. Em 1922 esse número chegou a perto de
100. Durante a presidência de Artur Bernardes (1922 – 1926) o nível de intervenção go-
vernamental aumentou com as campanhas de higiene infantil e antituberculose na Bahia.
No período de Washington Luís (1927 – 1930) o modelo campanhista ainda sustentava
algum fôlego com as campanhas de Educação em Saúde de Belisário Pena pelos esta-
dos de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e vários do nordeste voltadas para o despertar
da consciência sanitária do povo (expressão da época). Apesar disso, alguns postos de
profilaxia rural foram fechados por falta de recursos e, progressivamente, o movimento
sanitário esvaziou-se (SANTOS, 1985).

A crise se agravou com a quebra da Bolsa de Nova York, gerando uma forte recessão no
mundo ocidental. O desemprego, a inflação, as greves por melhores condições de saúde
e trabalho, entre outros aspectos políticos, levaram a um golpe de Estado que depôs o
presidente Washington Luís em 24 de outubro de 1929 e impediu a posse do presidente
eleito, Júlio Prestes. Estava terminada a República Velha e iniciava-se o período militar.
Com as mudanças, vieram novas perspectivas na saúde e nas relações entre trabalhado-
res e patrões, tanto para o bem quanto para o mal.

38
A saúde na era Vargas – Democracia

Finalmente chegamos aos anos 1930, o início do assim chamado Governo Provisório
por ter sido derivado de um golpe de Estado liderado por Getúlio Vargas. Vargas foi can-
didato nas eleições de 1930, mas sabia que não tinha condições de romper com as for-
ças que se revezavam no poder havia praticamente 40 anos, principalmente após o as-
sassinato do seu vice, João Pessoa. Portanto, organizou um golpe de Estado com apoio
dos industriais urbanos, da classe média operária, bem como das elites intelectuais e
artísticas da época (1930 - 1934), instaurando um governo provisório por quatro anos.
Uma de suas primeiras medidas foi o fechamento do Congresso, seguido da destituição
dos governadores. No lugar deles foram nomeados interventores. Tal medida desmontou
o poder das oligarquias mineira e paulista, que se revezavam no governo central por meio
de fraudes eleitorais a partir do que se denominou política do café com leite.

O movimento sanitário foi severamente comprometido com o fim da


República Velha.

Vamos lembrar que as políticas públicas de saúde eram viabilizadas sempre que os in-
teresses das oligarquias convergiam com os interesses dos sanitaristas. Os sanitaristas
tinham uma ideologia consistente, que pregava o combate às doenças a partir de uma
abordagem profilática ou preventiva. Era necessário que o sanitarismo se tornasse parte
da consciência nacional e, portanto, de sua própria identidade. A convergência com os
interesses oligárquicos era ampla pois, segundo a lógica dos ruralistas, um ambiente sa-
neado era igual a trabalhadores saudáveis, o que significava força de trabalho e aumento
de exportação. Porém, não ia muito além disso. Afinal, sabemos que saúde gera força de
trabalho e educação gera mobilização e luta de classes por direitos. A convergência era
limitada a interesses comuns, mas estes nem sempre convergiam.

O panorama econômico ao final da República Velha era de oligarquias enfraquecidas de-


vido ao fracasso de seu modelo agroexportador. Com isso, quebrou-se a hegemonia dos
grupos ligados ao café e à pecuária, cedendo lugar para outros grupos sociais como de
industriais voltados para o mercado interno e aumento do capital. Portanto, a economia
deslocou-se do polo rural para o polo urbano e o movimento sanitarista praticamente
desapareceu (NETO, 2011).

O governo Vargas adotou uma política de saúde urbana com base em critérios econômicos
harmonizados com as forças que o impulsionaram rumo ao governo central. Não se com-
batia mais a doença e sim os surtos epidêmicos, de acordo com a conveniência do capital.

39
Exemplo

O desenvolvimento da mineração no Vale do Rio Doce exigia o saneamento da


área a ser explorada. Vargas determinou, então, que um Serviço Especial de
Saúde Pública realizasse o saneamento da região, em 1942. No mesmo ano,
o Sesp (Serviço Especial de Saúde Pública) desenvolveu atividades de sanea-
mento em áreas de importância estratégica na Amazônia, dado “o interesse
momentâneo que a guerra criara pela borracha” (SANTOS, 1985).

Portanto, a partir da Revolução de 1930, a saúde converteu-se predominantemente ao


modelo assistencialista. Os objetivos ainda eram manter a força de trabalho em con-
dições de produção, mas valiam-se cada vez mais da assistência médica vinculada à
Previdência Social (CAPs).

Cabe considerar que, desde a sua origem, o movimento sanitarista esteve atrelado ao
Estado e teve como fundamento a centralização de suas ações, que se caracterizavam
por posturas tipicamente autoritárias a partir de uma orientação vertical. Era de se espe-
rar que uma conjuntura militarista, nacionalista e autoritária representasse um ambiente
propício para o seu desenvolvimento. Entretanto, o que se viu foi seu esfacelamento.
Uma possível aproximação que ilumine essa aparente contradição talvez esteja na cria-
ção do Ministério da Educação e Saúde, em 1930. Esta, uma antiga reivindicação da
classe higienista em substituição ao DGSP (Diretoria-Geral da Saúde Pública), acabou se
mostrando o seu maior obstáculo.

Ampliando o foco

Apesar de educação e saúde estarem atreladas ao novo ministério, as ações de


Educação em Saúde se restringiram à produção de um amontoado de folhetos
explicativos e cartilhas inatingíveis a uma população formada por mais de 60% de
analfabetos e outros tantos de analfabetos funcionais. Para piorar, em 1931, por
decreto presidencial, Vargas extinguiu os centros de saúde, iniciando um proces-
so de centralização administrativa que perdurou por mais de uma década.

40
A criação do Ministério da Educação e Saúde converteu-se em uma gestão altamente
burocratizada, com força suficiente para gerar paralisação no processo político do mo-
vimento sanitarista. Vale lembrar que o início do movimento foi acompanhado por uma
mobilização política que o empurrou rumo ao interior do país como uma condição para
a elaboração de uma identidade nacional. A despolitização do movimento, força motriz
do sonho idealizado por Belisário Pena e Carlos Chagas, acabou com seu potencial de
transformação no campo.

Obviamente que não temos como proposta a demonização de Getúlio Vargas pelo fim do
movimento sanitarista, até porque, como todo político, Vargas era movido por aspirações
populares. A despolitização do movimento sanitarista impediu que ele enfrentasse o po-
der das oligarquias rurais em direção a uma ação de Educação em Saúde nas fazendas.
A verdade é que, por motivos óbvios, não interessava aos latifundiários tamanho grau
de organização popular no interior de suas fronteiras. Assim, as políticas públicas foram
deslocadas para os grandes centros urbanos em resposta às pressões sindicais.

Em 1933 Vargas deu continuidade à consolidação de uma medicina assistencialista es-


tatizando definitivamente os CAPs e transformando-os em Instituto de Aposentadoria e
Pensão (IAP). Neste contexto, sua gestão passou para o controle do Estado, dando início
a uma das principais problemáticas observadas até hoje quando se fala em previdência
e assistência social: o desvio de finalidade. Enquanto os CAPs tinham como diretrizes
básicas a assistência médica por meio de uma rede própria desenvolvida para este fim,
os IAPs priorizavam a contenção de gastos como uma política de acumulação visando
sua utilização em outras áreas de interesse do governo.

Assim, o sistema de saúde, composto pelo Ministério da Educação e Saúde, entrou em


uma fase de subfinanciamento, cujas provisões de serviço advinham dos IAP que eram
vinculados ao Ministério do Trabalho. Cada IAP estava atrelado não mais a empresas,
como os CAPs, mas a categorias profissionais como a dos marítimos (IAPM), bancários
(IAPB), comerciantes (IAPC) e industriários (IAPI), cada um com diferentes serviços e
níveis de cobertura. O programa era fragmentado e desigual. Trabalhadores com em-
pregos esporádicos tinham como opção os serviços filantrópicos ou a medicina liberal,
privada e paga. A maioria da população não tinha direito algum (PAIM, et al., 2011).

O governo provisório terminou em 1934 e Vargas foi eleito democraticamente para mais
quatro anos de governo. Inicia-se o período democrático da era Vargas.

41
MIDIATECA

Para ampliar seu conhecimento veja o material complementar da Unidade 2,


disponível na midiateca.

NA PRÁTICA

Atualmente, as pessoas se queixam da morosidade do sistema de saúde bra-


sileiro. Desconhecem que há bem pouco tempo, antes do advento do SUS
em 1989, qualquer pessoa sem emprego não tinha direito à saúde, a não ser
que fosse atendida como indigente, uma situação de humilhação para quem
precisava. Hoje, a despeito de todas as deficiências, qualquer brasileiro ou até
mesmo estrangeiro que necessite de atendimento médico pode dispor gratui-
tamente do serviço, sem ter que dar maiores explicações sobre sua vida. O SUS
representa a moralidade na saúde e o respeito à Constituição Brasileira, que
preconiza que todos têm direto à saúde.

42
Resumo da Unidade 2

A década de 1920 foi marcada por fortes mudanças na política de saúde, impulsionada
tanto pela agitação popular que lutava por melhores condições de trabalho nas cidades,
quanto pela idealização dos sanitaristas por um Brasil saneado no interior e nos grandes
centros urbanos. Para os sanitaristas, a construção de uma identidade nacional pas-
sava pela incorporação de uma consciência higienista como um valor em si. Em 1923
a pressão popular foi responsável pela criação da Lei Eloy Chaves, instituindo os CAPs
e melhorando as condições gerais de algumas classes de trabalhadores. A estrutura
organizacional da saúde no Brasil era dual: nos grandes centros urbanos o modelo era
assistencial, do tipo curativo/privatista. Nas zonas rurais o modelo de gestão de saú-
de era o sanitarismo campanhismo, voltado para a erradicação das grandes endemias
nacionais. A despolitização progressiva do movimento sanitarista após a Revolução de
1930, com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, esvaziou o movimento, levando-o ao
fracasso. Em 1933 o CAPs foi convertido em IAP.

43
Referências

AGUIAR, Z. N. Antecedentes históricos do Sistema Único de Saúde (SUS): breve história


da política de saúde no Brasil. In: AGUIAR, Z. N. SUS Sistema Único de Saúde: antece-
dentes, percurso, perspectivas e desafios. São Paulo (SP): Martinari, 2011.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decre-
to nº 4.682, de 24 de janeiro de 1923. Crea, em cada uma das emprezas de estradas
de ferro existentes no paiz, uma caixa de aposentadoria e pensões para os respectivos
empregados. Rio de Janeiro, RJ: Presidência da República, 24 jan. 1923. Disponível em:
DPL4682-1923 (planalto.gov.br).Acesso em: 15 dez. 2020.

CASTRO, S. L. A. O pensamento sanitarista na primeira república: uma ideologia de cons-


trução da nacionalidade. Revista de Ciências Sociais. 28(2):123-210, 1985. Disponível
em: Biblioteca Virtual em Saúde (bvsalud.org). Acesso em: 10 dez. 2020.

COHN, A. O estudo das políticas de saúde: implicações e fatos. In: Campos, W. G. S.; et.
al. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 2006.

JUNIOR, A. G. S.; ALVES, C. A. Modelos Assistenciais em Saúde: desafios e perspectivas.


In: MAROSINI M. V. G. C.; CORBO, A. D. Educação Profissional e Docência em Saúde:
a formação e o trabalho do agente comunitário de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011.

NUNES, E. D. Sobre a história da saúde pública: ideias e autores. Ciência e Saúde Coletiva.
5(2): 251-264, 2000. Disponível em: histŠria (scielo.br). Acesso em: 30 nov. 2020.

PAIM, J.; TRAVASSOS, C.; ALMEIDA, C.; BAHIA, L.; MACINKO, J. O Sistema de Saúde Bra-
sileiro: história, avanços e desafios. The Lancet. 6735(11): 60054-8, 2011.

44
UNIDADE 3

A criação do Ministério da
Educação, Saúde Pública e a
reforma administrativa de Vargas
INTRODUÇÃO

A saúde no Brasil evoluiu a partir de duas vias. Uma estava relacionada a um ideário
sanitarista de saúde pública gratuita e acessível para toda a população, cuja representa-
ção era o Ministério da Educação e Saúde Pública – MESP, criado em 1930. A outra se
desenvolveu no contexto da medicina assistencial previdenciária, atrelada às políticas
partidárias do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio – MTIC.

A Era Vargas foi marcada por indefinição quanto ao tipo de política de saúde a seguir. Se
por um lado as reformas administrativas ocorridas no sistema previdenciário favorece-
ram mais as empresas privadas do que os trabalhadores, por outro os segurados do sis-
tema sofreram com atendimentos desumanizados e assistência médica precarizada. A
unificação das Caixas de Aposentadoria e Pensão – CAPs em Institutos de Aposentado-
ria e Pensão – IAPs apenas agravou o problema e agregou outros novos. A centralização
dos recursos nas mãos do governo fez com que a saúde pública ficasse subfinanciada
devido ao desvio de finalidade das verbas públicas. Neste contexto, ocorreu a reforma do
Mesp como resposta a estas distorções.

O resultado de todo esse processo foi o esvaziamento do movimento sanitarista. Muito


tempo depois da Era Vargas é que reformas mais robustas foram implementadas, tal
como a criação do INAMPS que, junto com o movimento pela Reforma Sanitária, deram
contorno a uma política de saúde mais racional e eficiente.

OBJETIVO

Nesta unidade você será capaz de:

• Identificar, no âmbito das políticas públicas do Estado Novo, as motivações que


levaram às tomadas de decisão que pavimentaram a estrada da saúde pública
até a construção do SUS.

46
A burocracia crescente da era Vargas

Nas unidades anteriores ficou claro que o desenvolvimento das políticas públicas de saú-
de e suas bifurcações baseadas em demandas específicas e subjetivas não morreram
completamente. O aparente fracasso do movimento sanitarista atribuído à máquina bu-
rocrática do Ministério da Educação e Saúde Pública – Mesp, criado em 1930, foram
responsáveis pela desmobilização política do movimento e, consequentemente, de seu
esvaziamento. Entretanto, é possível verificar vários indícios de que a semente do sani-
tarismo outrora plantada germinou e, mesmo desidratada, os remanescentes de suas
raízes favoreceram seu ressurgimento.

Em qualquer localidade do território nacional houve-se falar em vacinas. As mães estão


sempre preocupadas com a carteirinha do SUS e as datas em que seus filhos deverão
ser vacinados. As campanhas são amplas e o serviço público é completamente gratuito
para quem o utiliza. O movimento antivacina é recente e expressa uma resistência às
inovações científicas, o que também é comum em países desenvolvidos. Tal resistência
anticiência só existe devido à força de nossa cultura vacinal, que é um produto do ideário
sanitarista da República Velha.

É necessário que existam oposicionistas à ciência para que possamos calibrar


com precisão o nosso grau de racionalidade.

Se por um lado conseguimos inserir no imaginário público um mundo cuja vacinação faz
parte da realidade, por outro ainda não conseguimos a plenitude de alguns aspectos que
também eram parte da ideologia sanitarista, como o saneamento completo das cidades
e do interior do país. Vários indicadores de saúde mostram o atraso do Brasil em compa-
ração a países desenvolvidos e à maioria dos países emergentes.

Para refletir

Em 2020 vivemos uma grave crise sanitária acometida pela manifestação de um


vírus mutante que se espalhou com intensidade e letalidade por todos os conti-
nentes deixando um rastro de morte, morbidade e pânico: o novo coronavírus,

47
que disseminou a doença chamada Covid-19. As medidas sanitárias tomadas
para conter a pandemia estão de acordo com aquelas definidas na I Conferên-
cia Sanitária Internacional, em que o isolamento e a quarentena aparecem na
linha de frente para contenção primária da incidência viral. A contenção surge
como estratégia mitigatória enquanto são testadas as eficácias de algumas va-
cinas experimentais. Entretanto, do ponto de vista humanista ainda temos mui-
to a caminhar, pois a lógica eugênica que regeu parte dos avanços científicos
do passado ainda perdura no presente. Os objetivos relacionados ao financia-
mento de vacinas ainda estão atrelados principalmente ao ganho financeiro e à
manutenção da força de trabalho. Se a saúde tiver que se curvar à especulação
financeira em nome de um ideal maior, que tenha ao menos como resultado
uma população saudável até que a humanidade dê mais um salto civilizatório
em direção ao futuro.

Ampliando o foco

A medicina liberal e assistencialista oferece vários serviços, inclusive vacinais,


que não são oferecidos pelo sistema. Isso é natural, pois o Brasil é um país libe-
ral. Entretanto, é necessário o aperfeiçoamento desse “liberalismo” para que a
justiça social e a desigualdade não permaneçam como sonhos irrealizáveis. De
modo geral, a população absorveu o legado de Oswaldo Cruz, Belisário Pena,
Carlos Chagas e de outros tantos que lutaram para inserir na identidade nacio-
nal um resquício do sonho que se iniciou no começo do século XX.

Cabe salientar que foi apenas a partir de 1930, durante o governo provisório de Vargas
(1930 – 1934), que uma política nacional de saúde pública tomou forma com a instala-
ção dos aparelhos necessários para sua efetivação. Entre eles destacam-se a criação do
MESP (1930) e dos institutos de aposentadoria e pensões IAPs (1933).

Com os IAPs, a medicina previdenciária adquiriu robustez e progrediu. Entretanto, pela


força histórica de suas próprias características assumiu um caráter restrito em termos
de cobertura nacional. Neste sentido, contribuiu de forma importante para a consolida-
ção da instalação de um Estado “burguês” dentro de um Estado paupérrimo.

48
Importante

O termo “burguês” aqui não tem um sentido filosófico, mas é uma alusão ao
poder aquisitivo de uma sociedade emergente formada por uma minoria de
novos-ricos que, por vício ou distração, passou a agir como as oligarquias do
passado, ainda que no domínio de seus micropoderes.

Em 1968 o grande educador e filósofo Paulo Freire, Patrono da Educação no Brasil, es-
creveu: “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem
uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceberem as in-
justiças sociais de maneira crítica.”

Sua fala reflete em cheio a realidade do que foi a acomodação política ajustada entre Ge-
túlio Vargas e o coronelismo frente às aspirações sanitaristas. A convergência das verda-
deiras oligarquias ia apenas até os pontos em que as ações de higienização contribuíam
para o aumento da força de trabalho. Fora isso, a política dos coronéis não tinha interes-
se em uma educação emancipadora, uma vez que igualdade de direitos e equidade não
representavam projetos compatíveis com o lucro fácil advindo da exploração da mão de
obra humana. Hoje, esses trabalhadores estão representados também por bancários,
advogados, engenheiros e muitos outros que atuam no ramo liberal ou não.

A saúde no Brasil evoluiu junto com um liberalismo distorcido, em que as minorias deten-
toras do poder resistiram e resistem até hoje a “dividir o bolo”, mesmo à custa de tensão
social permanente.

O financiamento dos IAPs era tripartite, pois tratava-se de um filão muito grande para
ser administrado apenas por empregados e empregadores como no tempo do CAPs.
Portanto, o Estado se juntou a eles assumindo o controle e centralizando recursos finan-
ceiros e ações. Uma das formas de controle dos IAPs se deu a partir da nomeação de
seu presidente pelo presidente da República Getúlio Vargas, e a nomeação dos represen-
tantes dos trabalhadores e patrões pelos sindicados atrelados ao poder executivo.

Essa prática ocorria por meio de eleição direta. Como foi dito, o interesse do Estado não
era exatamente em saúde, mas nos recursos em si que, aos poucos, foram sendo utiliza-
dos em outras áreas até que tais práticas se normalizassem e se constituíssem em um
problema que perdurou até os dias atuais com a falta crônica de recursos para financiar
aposentados e pensionistas devido ao desvio de verbas.

49
Portanto, a série histórica das políticas de saúde até aqui mostra que houve um reforço
na dualidade entre as ações públicas na área de saúde, em que:
• As ações de caráter coletivo e campanhistas ficaram a cargo do Mesp.
• As ações individuais e curativas permaneceram vinculadas aos IAPs.

Para as pessoas que possuíam recursos, a medicina liberal era a alternativa mais viável,
enquanto para a maioria da população sem vínculo previdenciário restavam apenas as
práticas populares semelhantes àquelas praticadas no Brasil colônia ou, quando muito,
em hospitais de caridade.

Nesse Brasil de saúde precária e assistência elitizada, as reformas administrativas de


Vargas favoreceram o deslocamento do polo econômico do interior para os centros ur-
banos em função do investimento maciço no setor industrial centro-sul. Essa política
promoveu o êxodo rural da região Nordeste para Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Ge-
rais, contribuindo para uma urbanização precária, com formação de grandes favelas nas
metrópoles, tornando ainda piores as condições de saúde das populações.

50
A reforma do Ministério da Educação e
Saúde Pública

O governo provisório (1930-1934) correspondeu a um período em que Getúlio Vargas


governou o Brasil após a Revolução de 1930. O jogo rasteiro da época fez com que uma
classe de oligarcas, apoiada por militares, contestasse o predomínio político e econômi-
co da outra classe. Como resultado, veio o golpe militar.

Neste período, como já sabemos, o processo de institucionalização da saúde bifurcou-se


e deu origem a duas instâncias políticas distintas que dividiam as ações de saúde.

A segunda instância foi o Ministério


A primeira instância foi o Ministé-
do Trabalho, Indústria e Comércio
rio da Educação e Saúde Pública
– MTIC, que fazia a gestão da me-
– Mesp, que controlava as ações
dicina assistencialista no âmbito
de saúde coletiva voltadas para as
dos Institutos de Aposentadoria e
campanhas de saneamento.
Pensão – IAPs.

É importante que tenhamos em mente, de forma bem assertiva, este aspecto estrutural
das políticas de saúde, pois, apesar das aparências, não era aleatório. Havia uma estra-
tégia na consolidação dessa dualidade para que se concretizassem as aspirações getu-
listas de se construir um Estado forte e centralizado. O sucesso de tais objetivos depen-
dia da construção de um aparato governamental que conjugasse a ação governamental
nas esferas federal, estadual e municipal. Portanto, a criação do Mesp era a resposta a
estas aspirações.

Foi assim que o governo Vargas se estruturou como um Estado nacional, centralizador
e intervencionista, capaz de responder com políticas sociais aos conflitos urbanos por
meio do MTIC e do Mesp. Nestes contextos, eram definidas ações prioritárias de com-
bate a doenças em diferentes regiões, requerendo a formação de profissionais especia-
lizados que garantissem a penetração do poder estatal por meio de novas campanhas
sanitárias. O viés centralizador do Estado visava ao aprofundamento dos processos de
expansão dos aparelhos estatais para que assumissem cada vez mais o controle das
políticas públicas em todo o território nacional de forma unificada.

51
O governo provisório chegou ao fim com a promulgação da Constituição de 1934,
que instituiu:
• O voto feminino.
• O voto secreto de parlamentares.
• As leis trabalhistas.

Com o fim do governo provisório, começou o governo constitucional (1934 – 1937) em


que Vargas foi eleito indiretamente para a presidência do Brasil. Entretanto, em 1937, no
último ano do governo constitucional, sob o pretexto de uma suposta ameaça comunis-
ta, Getúlio Vargas decretou estado de guerra e fechou o Congresso brasileiro. Este novo
golpe de estado deu início ao Estado Novo, que durou oito anos (1937 – 1945).

Assim, de golpe em golpe, a nossa história foi se configurando.

Em 1937, após intensa reestruturação, o Mesp passou a ser chamado de Ministério da


Educação e Saúde – MES. Seu ministro, Gustavo Capanema, e seu diretor, João de
Barros Barreto, empreenderam uma reforma administrativa que normatizou as ações
de saúde em nível nacional, para que os estados seguissem os mesmos regulamentos
da União. Portanto, a partir de 1937, o modelo enfraquecido do Sanitarismo Campanhista
ficou sob a gestão do Ministério da Educação e Saúde, cuja função era controlar, a partir
de medidas intervencionistas, as ações de saúde pública no Brasil. A estrutura do MES
era constituída pelo Departamento Nacional de Educação – DNE e pelo Departamento
Nacional de Saúde Pública – DNSP.

Neste período foram criados:


1. Os Serviços Nacionais de Febre Amarela, Hanseníase e Câncer, entre outros.
2. O Serviço de Malária do Nordeste.
3. A Fundação Serviço Especial de Saúde Pública – Sesp.

A política de saúde do Ministério Capanema foi um dos pilares que levou os ideais sanita-
ristas em direção ao pensamento coletivo de uma saúde como direito universal. Durante
todo o período varguista, os sanitaristas lutaram por um serviço de saúde que fosse
abrangente e destinado a toda a população. Em termos práticos, no entanto, este objetivo
jamais foi alcançado, a não ser com a criação do SUS muitas décadas depois. O ideário
de uma saúde popular foi levado à frente pelas novas gerações e as conferências Na-
cionais de Saúde e de Educação se constituíram em fóruns onde tais debates foram se

52
aprimorando. A primeira conferência Nacional de Saúde ocorreu no Rio de Janeiro, em
1941 (CASTRO; FARIA, 1999).

Coube a Capanema e a João de Barros Barreto o mérito pela consolidação da estrutura


administrativa da saúde pública durante o Estado Novo. A grande reforma sofrida pelo
Mesp consolidou uma política de saúde que durou até a criação do Ministério da Saúde
em 1953, uma antiga aspiração dos sanitaristas. A principal característica da reforma do
Mesp foi o estabelecimento de quatro eixos orientadores: a educação, a saúde pública,
a assistência social e a cultura.

Na saúde pública foram criadas as Delegacias Federais de Saúde, as Conferências


Nacionais de Saúde e os Serviços Nacionais de Saúde.

1. Delegacias Federais de Saúde – DFS

As Delegacias Federais de Saúde foram instaladas em oito diferentes regiões do território


nacional, sendo elas: Rio de Janeiro, Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, São Paulo, Porto
Alegre e Belo Horizonte. Desse modo, o Estado ampliou sua presença controlando as
ações de saúde pública nos estados e municípios.

2. Conferências Nacionais de Saúde – CNS

As Conferências Nacionais de Saúde se constituíram em fóruns nacionais de caráter


oficial, que reuniam delegações de todos os estados para debater temas de saúde públi-
ca com base na conjuntura política da época e definir os rumos a serem tomados.

Ampliando o foco

O curioso é que, dentro de um Estado centralizador, intervencionista e autori-


tário, com claro viés fascista, havia a preocupação de estabelecer o debate e
a interação entre “cabeças pensantes”. Tanto que às Conferências Nacionais
ainda estava reservado um papel decisivo na construção do SUS e na luta pelos
direitos civis que haviam sido retirados do povo com o Ato Institucional 5 (AI5),
decretado pela ditadura militar em 13 de dezembro de 1968.

53
Segundo Capanema, as CNS eram: “[...] conferências de administradores que terão apenas
o objetivo de estudar e assentar providências de ordem administrativa. Por meio delas, po-
derá ainda a União coordenar a execução dos planos nacionais que forem estabelecidos.”

Durante toda a década de 1940 os sanitaristas aspiraram pela criação de um ministério


que fosse exclusivamente da saúde. A primeira conferência nacional ocorreu em 1941 e
expressou a influência do ideário sanitarista representado por expoentes como Oswaldo
Cruz, Carlos Chagas, Artur Neiva e Belisário Pena, que ainda eram lendários no imaginá-
rio sanitarista.

Entre as principais proposições aprovadas podemos destacar:


• A centralização da função administrativa e das ações de saúde pública nas mãos
do Mesp.
• A manutenção da possibilidade de acordos entre estados e governo federal sobre
projetos de saúde.

3. Serviços Nacionais de Saúde – SNS

Os Serviços Nacionais de Saúde foram criados para reorganizar o Departamento Nacio-


nal de Saúde Pública – DNSP. Assim, as ações de combate às doenças infectocontagio-
sas passaram a ter absoluta prioridade a partir de programas que atingiriam a totalidade
da comunidade nacional. Do ponto de vista estrutural, cada SNS supervisionaria uma
determinada área do território nacional por intermédio de um diretor específico, cabendo
às DNSP a supervisão das áreas. Os SNS aturariam em conjunto com as DFS e governos
locais para debelar surtos epidêmicos e estabelecer métodos de controle e prevenção.
Dessa maneira, o governo federal aumentaria sua presença no interior do país conjugando
centralização política com descentralização administrativa (HAMILTON; FONSECA, 2003).

Durante o período que durou o Estado Novo, além de todos os avanços no


campo da saúde pública, também se consolidaram a justiça do trabalho e as
leis trabalhistas (CLT).

Em 1941, em plena II Guerra Mundial, o Brasil sofreu intensa pressão dos Estados Uni-
dos para sair da neutralidade e apoiar os países aliados contra a Alemanha nazista e os
demais países do eixo (Itália e Japão). Isso incluía ameaça de invasão territorial caso o
Brasil não concordasse. Por mais estranho que fosse, havia uma real possibilidade de o

54
Brasil romper a sua neutralidade e apoiar os nazistas, visto que a ditadura de Vargas e
seu governo tinham um caráter fascista. Tanto que o general Góis Monteiro, que sempre
esteve no governo Vargas, era a favor de declarar guerra aos ingleses.

Entretanto, na impossibilidade de viabilizar tal intento, Getúlio Vargas aproveitou para


barganhar com o governo estadunidense e obter financiamento para a construção da
Companhia Siderúrgica Nacional – CSN, que supriu os aliados do aço necessário para a
indústria bélica norte-americana. Com a derrota dos nazifascistas na Europa, a ditadura
de Vargas perdeu apoio e, em 1945, Vargas foi destituído do poder pelo general Góis
Monteiro. No mesmo ano, novas eleições ocorreram e o general Eurico Gaspar Dutra
subiu ao poder. Assim terminou o Estado Novo.

55
Criação do Instituto Nacional de Previdência
Social – INPS

A partir da Proclamação da República, as políticas públicas de saúde no Brasil adquiriram


uma dinâmica acelerada de transformações, culminando em um modelo hegemônico
que perdurou mesmo após o fim da Era Vargas. A medicina científica ou biomedicina
ainda era o modelo predominante após o suicídio de Vargas em 1954 — suicídio este mo-
tivado por um novo golpe de Estado. O modelo biomédico, como sabemos, era voltado
exclusivamente para a assistência à doença em seus aspectos individuais e biológicos,
formatado em uma matriz hospitalocêntrica e progressivamente dependente de tecno-
logias de alto custo. Essa matriz serviu também como molde para a organização de
hospitais estaduais e universidades. Os IAPs expandiram-se, agregando novas catego-
rias profissionais que dispunham de uma rede de ambulatórios e hospitais por instituto,
voltada para a recuperação dos trabalhadores (e dependentes) e sua força de trabalho.

Em relação às políticas verticalizadas do Ministério da Educação e Saúde – MES, ocorre-


ram novos investimentos em centros e postos de saúde ampliando ainda mais a presen-
ça estatal no território nacional (JUNIOR; ALVES, 2007).

Apesar do avanço das políticas públicas de saúde representadas pelos MES e MTIC, o
perfil epidemiológico do Brasil na década de 1950 ainda era caracterizado pelo predomí-
nio de doenças típicas da pobreza ou Doença Infecciosas da Pobreza (DIP), tais como
malária, cólera, sarampo, difteria, entre outras, causadas por fome, desnutrição infantil,
água poluída, redes de saneamento praticamente inexistentes. Além disso, todo tipo de
iniquidade era produzida por um Estado injusto e preocupado quase que unicamente
com o desvio de verbas e ganhos de capitais para uma oligarquia centenária e de menta-
lidade escravista que se perpetuava no poder.

Por outro lado, apesar da extrema miséria e da lentidão quase inerte do governo em apre-
sentar soluções definitivas para esse quadro desolador, o Brasil começava a sofrer com
o aparecimento progressivo de doenças relacionadas à modernidade. A industrialização
tardia, porém vigorosa, impulsionada pela CSN após a guerra, trouxe consigo um conjun-
to de patologias até então pouco percebidas tais como enxaqueca, transtornos cardía-
cos, obesidade, insônia, dores articulares, distúrbios endócrinos e outras mais. Eram as
doenças da modernidade.

56
Ampliando o foco

Um dos grandes vilões desse quadro, que atropelou os sonhos e ideais sanita-
ristas, foi a assimetria com que se deram as relações econômicas entre os paí-
ses centrais e os periféricos. O Brasil vinha acumulando uma grande dívida com
a Inglaterra desde o período colonial. Posteriormente, após a II Guerra Mundial,
essa relação de endividamento alterou-se a partir do financiamento da CSN
pelos Estados Unidos por 20 milhões de dólares. Tais países lucravam com
os juros abusivos cobrados do Brasil e da América Latina como um todo, e os
governos — submissos — aceitavam sem questionar. O alto endividamento, o
subfinanciamento da saúde e o descaso das oligarquias foram fatores determi-
nantes para o quadro pavoroso da saúde pública no Brasil neste período.

Em 1953, desde uma antiga reivindicação dos sanitaristas que remonta à Primeira Confe-
rência Nacional de Saúde, foi criado o Ministério da Saúde (Lei nº 1.920/1953) a partir do
desmembramento do então Ministério da Educação e Saúde em dois ministérios: Saúde
e Educação e Cultura.

Basicamente, o novo MS passou a executar as atividades do Departamento Nacional de


saúde Pública – DNSP. O MS fazia parte de um grande projeto nacional, que também in-
cluía a criação da Escola Nacional de Saúde Pública, ambos assinados pelo então presi-
dente do Brasil, agora eleito por um processo democrático, Getúlio Vargas, um ano antes
de seu suicídio. Do ponto de vista estrutural não houve mudanças significativas. Além do
mais, enquanto sonho realizado, os sanitaristas sequer puderam participar da escolha do
novo ministro, evidenciando um caráter muito mais político/partidário do que um alinha-
mento ideológico do presidente com as questões reais da emergência do sanitarismo
nacional (HAMILTOM; FONSECA, 2003).

Ampliando o foco

Na década de 1960 o Brasil sofreu grandes mudanças. A capital da República


havia sido transferida para Brasília, uma cidade projetada por Lúcio Costa e
Oscar Niemeyer e recentemente inaugurada pelo então presidente da república
Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1961). A nova cidade também era deno-
minada de A Capital da Esperança, e de fato isso era tudo o que o brasileiro
podia esperar — esperança —, pois sua construção, símbolo de modernização

57
e integração nacional, acentuou as desigualdades sociais e favoreceu a forma-
ção de novos latifúndios. Além disso, o financiamento para a construção tornou
ainda mais grave a dívida externa brasileira.

A industrialização do Brasil tomou grande impulso a partir de 1945, significando um au-


mento progressivo da demanda por atenção à saúde em todos os institutos e levando a
uma ampliação da rede de serviços de saúde previdenciária. Com resposta, em 1960 o
poder público uniformizou os serviços de saúde a que todos os segurados tinham direito,
independentemente do instituto a que estivessem filiados, a partir da promulgação da
Lei Orgânica da Previdência Social – LOPS. Entretanto, a uniformização dos benefícios
não foi seguida pela unificação dos IAPs e nem pela universalização da atenção à saúde.
Como consequência, o processo de prestação de serviços tornou-se um tanto quanto
irracional, ao mesmo tempo em que a população não previdenciária permanecia sem
direitos de assistência médica.

Com a instauração do regime militar em 1964 por meio de um golpe de Estado que
depôs o presidente eleito João Goulart, ocorreram novas mudanças na saúde com fa-
vorecimento claro da medicina liberal privada. Em 1966, os IAPs foram unificados no
Instituto Nacional de Previdência Social – INPS. Entretanto, o INPS manteve o foco na
assistência à saúde individual, expandindo o modelo biomédico de atendimento a partir
do financiamento direto e de compras de serviços para os hospitais privados. Com esses
incentivos, o setor privado de clínicas, hospitais, equipamentos e medicamentos, experi-
mentou um grande crescimento, sem que para isso houvesse melhoria significativa na
assistência à saúde (JUNIOR; ALVES, 2007).

Neste período, o Brasil experimentou uma política claramente privatista dos serviços de
saúde. O caráter promíscuo da parceria público-privada evidenciou sua iniquidade dian-
te da impossibilidade de gerir os processos obscuros que se davam por trás de tantos
incentivos. Cada paciente era um “cheque em branco”, uma vez que a previdência era
obrigada a pagar as faturas que chegavam oriundas dos “tratamentos” realizados. Afinal,
quem discutiria se o paciente precisava ou não de raio-X, de cirurgia, de três ou 10 consul-
tas etc.? Sem falar que os custos do sistema aumentavam progressivamente e a forma
de compra dos serviços, chamadas de Unidades de Serviço – US, que em geral valoriza-
va os procedimentos mais especializados e sofisticados, era suscetível a fraudes. Assim,
a capacidade gestora do sistema foi erodida por dentro, reforçando sua irracionalidade.

O Brasil vivia o auge da medicina curativa. A política de saúde hegemônica era a da


mercantilização da medicina sob o comando da Previdência Social. Em 1974 foi criado

58
o Ministério da Previdência e Assistência Social – MPAS, desmembrado do Ministério
do Trabalho e Previdência Social. Logo de início ficou clara a preponderância do novo mi-
nistério sobre o Ministério da Saúde. O MPAS era o segundo maior orçamento da União,
apenas superado pelo da própria União. O movimento sanitário acolhido no Ministério da
Saúde era contra-hegemônico e aspirava à transformação do sistema vigente que, como
sabemos, era caracterizado pela dicotomia das ações de saúde pelas estatais. Dentre
suas principais distorções, destacava-se a corrupção normatizada pela forma de paga-
mento conhecida como Unidade de Serviço – US (ESCOREL, 1999).

Esse quadro manteve-se parcialmente inalterado até 1975 quando, objetivando discipli-
nar a oferta de serviços de saúde, foi instituído o Sistema Nacional de Saúde – SNS por
meio da Lei nº 6.229, de julho de 1975, visando superar a descoordenação imperante no
campo das ações de saúde. Infelizmente, o SNS não foi capaz de fazer frente aos proble-
mas apontados devido à sua restrição burocrática desprovida de real poder disciplinar.
Finalmente, em 1977 foi criado o Sistema Nacional de Assistência e Previdência Social
– SINPAS, e, dentro dele, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência
Social – Inamps. A criação do Inamps surgiu em função das dificuldades de reduzir os
custos da atenção médica, em face do modelo privatista e curativo vigente.

O projeto autárquico consistia em:


1. Utilizar o SNS para articular as ações de saúde entre si.
2. Coordenar, a partir do Sinpas, o conjunto das políticas de proteção socia, e articu-
lar tais políticas com o SNS.

Ou seja, esperava-se que o Inamps, sendo uma autarquia vinculada aos dois sistemas,
atuasse como braço assistencial do SNS e como braço da saúde do sistema de proteção
social. A mesma lei que instituiu o SNS também atribuiu ao Ministério da Saúde a res-
ponsabilidade de formulação de políticas em saúde e execução das ações de interesse
coletivo, e ao MPAS, por meio do Inamps, as ações médico-assistenciais individualiza-
das. Ou seja, do ponto de vista estrutural não haviam ocorrido grandes mudanças. Em
termos práticos, o Inamps passou a ser o órgão prestador de assistência médica à custa
de compra de serviços médico-hospitalares e especializados do setor privado.

Como resultado de toda essa panaceia, os subsídios diretos dados a empresas privadas
para a oferta de assistência médica a seus empregados, segundo Paim (2010), foram
substituídos por descontos no imposto de renda, levando à expansão da oferta de servi-
ços médicos e ao crescimento de planos de saúde privados. Como era de se esperar, os
resultados da política de saúde do Inamps, associada à recessão econômica da década
de 1980, geraram uma crise de financiamento na previdência, que alimentou os anseios
por uma reforma sanitária.

59
MIDIATECA

Para ampliar seu conhecimento veja o material complementar da Unidade 3,


disponível na midiateca.

NA PRÁTICA

O profissional da área de saúde tem uma série de alternativas no mercado de


trabalho que demandam conhecimento estrito sobre a história da saúde públi-
ca no Brasil e a origem de seus principais problemas. Os profissionais podem
atuar em Organizações Não Governamentais em colaboração com o Ministério
da Saúde a partir de projetos com chamadas em editais públicos. As oportuni-
dades se abrirão para aqueles que conhecerem os meandros das autarquias,
suas ações e seus objetivos.

Imagine se você fosse convidado para trabalhar com saúde coletiva e tivesse
que capacitar agentes de saúde sobre o SUS? Como você se sairia? O Brasil ca-
rece de gestores públicos qualificados para lidar com epidemias e pandemias.
Portanto, conhecer profundamente o SUS é o caminho para o sucesso. Esteja
preparado quando a oportunidade aparecer.

60
Resumo da Unidade 3

Em 1930, durante o governo provisório, o Brasil alcançou a condição necessária para a


efetivação de uma política nacional de saúde pública. O principal aparelho estatal foi o
Mesp (1930) e o IAPs (1933). Nesta época, o governo Vargas estruturou-se como um Es-
tado nacional, centralizador e intervencionista, capaz de responder com políticas sociais
aos conflitos urbanos por meio do MTIC e do Mesp. As ações de caráter coletivo e cam-
panhistas ficaram a cargo do Mesp e as ações individuais e curativas permaneceram
vinculadas aos MTIC.

Em 1937, após intensa reestruturação, o Mesp passou a ser chamado de Ministério da


Educação e Saúde – MES. A estrutura do MES era constituída pelo Departamento Na-
cional de Educação – DNE e pelo Departamento Nacional de Saúde Pública – DNSP. As
principais características da reforma foi o estabelecimento de quatro eixos orientadores:
a educação, a saúde pública, a assistência social e a cultura. Na saúde pública foram
criadas as Delegacias Federais de Saúde – DFS, os Serviços Nacionais de Saúde – SNS
e as Conferências Nacionais de Saúde – CNS. Apesar de todo o aparato burocrático, o
quadro epidêmico e sanitário brasileiro ainda eram dramáticos.

Com a instauração do regime militar em 1964 os IAPs foram unificados no Instituto Na-
cional de Previdência Social – INPS, que passou a subsidiar com financiamentos diretos
os hospitais privados levando à expansão do setor privado de clínicas, hospitais, equipa-
mentos e medicamentos, sem que houvesse uma melhoria significativa na assistência à
saúde. A política do INPS não foi capaz de conter os gastos crescentes da previdência e
nem as fraudes cometidas pelas parcerias público-privadas.

Em 1977, foi criado o Sistema Nacional de Assistência e Previdência Social – Sinpas, e,


dentro dele, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – Inamps.
A criação do Inamps surgiu em função das dificuldades de se reduzirem os custos da
atenção médica, em face do modelo privatista e curativo vigente. Na prática, o Inamps
passou a ser o órgão prestador da assistência médica à custa de compra de serviços
médico-hospitalares e especializados do setor privado. A política do Inamps gerou uma
crise de financiamento na previdência, o que alimentou os anseios por uma reforma.

61
Referências

AGUIAR, Z. N. SUS. Sistema Único de Saúde: antecedentes, percurso, perspectivas e


desafios. São Paulo: Martinare, 2011. Biblioteca Virtual.

BUSATO, I. M. S.; GARCIA, L. F.; GARCIA, I. C. SUS: estrutura organizacional, controle, ava-
liação e regulação. Curitiba: Intersaberes, 2019. Biblioteca Pearson.

CASTRO SANTOS, L. A.; FARIA, L. Os primeiros centros de saúde nos Estados Unidos e
no Brasil: um estudo comparativo. Teoria e Pesquisa. Rio de Janeiro: v. 40, n. 41, p. 137-
181, 2002. Disponível em: Saúde e história segundo Luiz Antonio de Castro Santos e Lina
Faria (scielo.br). Acesso em: 20 de fev. 2021.

CORDOBA, E. SUS e ESF: Sistema Único de Saúde e Estratégia Saúde da Família. São
Paulo: Rideel, 2013. Biblioteca Virtual.

ESCOREL, S. As Origens do Movimento Sanitário. In: ESCOREL, S. Reviravolta na saúde:


origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. p. 19-51. Dis-
ponível em: escorel-9788575413616.pdf (scielo.org). Acesso em: 20 de fev. 2021.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1968. Disponível em:
Pedagogia do Oprimido (cpers.com.br). Acesso em: 20 de fev. 2021.

HAMILTON, W.; FONSECA, C. Política, atores e interesses no processo de mudança insti-


tucional: a criação do Ministério da Saúde em 1953. Rio de Janeiro (RJ): Hist. cienc. sau-
de-Manguinhos. v. 10, n. 3, p. 791-825, 2003. Disponível em: Política, atores e interesses
no processo de mudança institucional: a criação do Ministério da Saúde em 1953 (scielo.
br). Acesso em: 20 de fev. 2021.

JUNIOR, A. G. S.; ALVES, C. A. Modelos Assistenciais em Saúde: desafios e perspectivas.


In: MAROSINI, M. V.; CORBO, A. A. (org.). Modelo de atenção e a saúde da família. Rio de
Janeiro: FIOCRUZ. 2007. p. 1– 5. Disponível em: Texto (uff.br). Acesso em: 20 de fev. 2021.

PAIM, J.; TRAVASSOS, C.; ALMEIDA, C..; BAHIA, L.; MACINKO, J. O Sistema de Saúde Bra-
sileiro: história, avanços e desafios. Salvador: The Lancet. v. 6735, n. 11, p. 60054-60058,
2011. Disponível em: 925_brazil1.pdf (actbr.org.br). Acesso em: 20 de fev. 2021.

62
UNIDADE 4

A descentralização das políticas


de saúde e a criação do SUS
INTRODUÇÃO

A criação do SUS — aspiração antiga por um sistema de saúde mais justo para todos
os brasileiros desde as décadas de 1940 e 1950 — foi um salto de civilidade para o Bra-
sil. Até chegarmos a uma política pública em que as prerrogativas principais fossem a
universalização da saúde (o fim da velha dicotomia entre saúde pública e assistência
médica), equidade (aquilo que é mais do que igualdade, é justiça) e integralidade (o ser
humano visto como alguém que sente, sofre e chora, e que também pode ser feliz), foram
décadas de sonhos e pesadelos. Porém, chegamos lá e agora temos que avançar. Não
podemos permitir que um BEM tão imenso seja precarizado! É disso que se trata esta
última unidade. Vamos em frente consolidar o nosso saber?

OBJETIVO

Nesta unidade você será capaz de:

• Reconhecer o SUS como um sistema de saúde coletiva nascido da resistência


ao regime autoritário das décadas de 1960, 1970 e 1980.

64
“O Massacre de Manguinhos” – A saúde no
contexto da ditadura militar

Na década de 1970 a previdência social e a saúde pública ainda permaneciam dissocia-


das entre si. No caso da previdência, tratava-se de uma política pública de saúde cuja
organização institucional era financiada por trabalhadores, governo e empresas. O bene-
fício do trabalhador se dava mediante contribuição mensal que lhe garantia uma renda na
hora em que ele não pudesse mais trabalhar (aposentadoria). Outros benefícios incluíam
uma série de serviços predominantemente privados, como a assistência médica.

Entre os muitos problemas desse modelo podemos destacar:

• O enriquecimento de empresas privadas à custa do financiamento público.


• O nível de cobertura limitado e não inclusivo, excluindo da seguridade aqueles que
não podiam contribuir com a previdência.
• A vulnerabilidade do sistema, que permitia inúmeras fraudes.

É importante frisar que aqueles que não possuíam carteira assinada, também conhe-
cidos como desempregados, não tinham direito à saúde — a não ser em hospitais de
caridade. Estes correspondiam à maior parte da população.

Antes do SUS, a saúde no Brasil era apenas para alguns.

No Brasil, quem não tinha emprego formal ficava ao “deus-dará”. Outro problema im-
portante era que a saúde pública não estava integrada à assistência médica. A velha
dualidade ainda perdurava e correspondia a um entrave para a efetivação de uma política
de saúde justa, universal e integrada com outros setores. Entretanto, o sentimento de re-
forma crescia no seio da sociedade como um processo expansivo de antigas aspirações
do movimento sanitário, ou de grande parte dos sanitaristas.

A década de 1970 foi um período particularmente difícil. O Brasil experimentava uma das
fases mais duras do regime militar, quando vigorava o Ato Institucional no 5 (AI-5). Como
sabemos, o regime começou a vigorar em 1964 com um golpe de Estado, apoiado por
uma elite que detinha o poder econômico e por uma classe média conservadora, sobre o
então presidente eleito João Goulart, consolidando o sistema político brasileiro como um
processo raramente democrático. A saúde refletia a instabilidade política e jurídica desse
sistema disruptivo. As intermináveis reformas sempre ocorriam no cerne de interesses

65
populistas para legitimação de governos autoritários que ora tentavam satisfazer as jus-
tas demandas do movimento sanitário, ora as demandas dos trabalhadores, mas sem
perder o mercado de vista, seu principal interesse e maior aliado.

Importante

O AI-5 foi um decreto emitido pelo general Costa e Silva em 1968, que instaurou
o período mais sombrio do regime militar. Muitos historiadores e jornalistas
consideram que foi a consolidação da ditadura no Brasil. Com ele, o governo
adquiriu poderes quase que absolutos sobre a República. O Congresso foi fe-
chado, os direitos políticos e garantias constitucionais dos cidadãos foram su-
primidos, políticos foram cassados, exilados e assassinados (GASPARI, 2002).

Ampliando o foco

A ditadura militar de 1964 durou 21 anos e nos custou muito caro. Os jovens
eram permanentemente reprimidos e jamais puderam, por exemplo, ver um
show dos Beatles em solo brasileiro. Os militares, com sua pauta conserva-
dora, tinham como lema conceitos muito particulares sobre família, religião e
tradição. Por isso, consideravam inadequados todos os movimentos artísticos
de contestação. Assim, a juventude brasileira não pôde acompanhar os movi-
mentos de blues e jazz que se ressignificavam pelo mundo; os movimentos pop
que, quando raro, apareciam nas telenovelas constantemente censuradas ou
os grandes ícones do rock ‘n’ roll das décadas de 1970 e 1980 até 1985.

No período autoritário ocorreram sequestros, interrogatórios, torturas e assassinatos


daqueles que ousaram criticar, protestar ou se opor ao regime. Ideias contrárias eram
consideradas comunistas e subversivas. A estratégia era a de sempre: sufocar todas as
formas de oposição.

O sucesso de uma ditadura depende da capacidade do sistema eliminar


cientistas, intelectuais, professores, artistas, sacerdotes progressistas
(católicos, protestantes ou umbandistas) e todas as classes pensantes
de uma sociedade.

66
Foi o que aconteceu no Instituto Oswaldo Cruz (IOC). Após o AI-5, 10 dos principais
cientistas do IOC tiveram seus direitos políticos suspensos por perseguição pessoal e
foram impedidos de trabalhar. A punição estendeu-se à proibição de trabalhar em qual-
quer outro órgão federal. Acusados de conspiração, os cientistas foram interrogados e
indagados se eram comunistas ou se participavam de alguma atividade política. Entre as
acusações constava que eles eram a favor de ampliar as atividades do IOC para pesquisa
científica, além da produção apenas de soro e vacina.

Anteriormente, os cientistas haviam denunciado o médico Francisco de Paula da Rocha


Lagoa, ex-diretor do instituto e recém-empossado como Ministro da Saúde, por desvio
de verba de vários projetos como o da malária, da peste bubônica e da meningite. Para
concluir, os cientistas eram a favor da criação de um Ministério de Ciência e Tecnologia,
o que não interessava aos militares. Estavam aí os ingredientes que em países demo-
cráticos seriam motivos de condecoração. Durante a ditadura, no entanto, as estruturas
de poder não tinham limites em suas arbitrariedades e o Brasil retrocedeu décadas nas
pesquisas que hoje nos colocariam na lista dos principais países em produção científica
na área de saúde e produção de vacinas, com reflexos nas políticas necessárias para a
manutenção do bem-estar social.

Os prejuízos para a ciência brasileira só se equiparam à explosão do Veículo Lançador


de Satélite brasileiro em 2003, que matou os principais cientistas da área de uma só
vez. Os pesquisadores do IOC tiveram que fechar seus laboratórios e liberar dezenas
de jovens estudantes de mestrado e doutorado, destruindo carreiras e sonhos para
sempre (LENT, 2019).

Em 1979 subiu ao poder o último presidente da ditadura, o general João Batista de Oli-
veira Figueiredo (1979-1985). Militar pertencente à linha dura do regime, Figueiredo foi
eleito indiretamente por meio de um Colégio Eleitoral concorrendo pela Aliança Renova-
dora Nacional (ARENA/atual DEM), partido que congregava os parlamentares apoiado-
res da ditadura. O outro partido permitido pelos militares foi o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB/atualmente também usa a sigla MDB), que, apesar de ter sido um partido
“figurativo” naquele contexto, representava uma porta de entrada para um modelo soft de
oposição. Nessa época, o regime militar já estava enfraquecido e carecia de legitimidade.
Foi quando o general Figueiredo pronunciou a sua célebre frase: “Hei de fazer do Brasil
uma democracia.” E, de fato, ele contribuiu para isso. O país, sob sua gestão, deu conti-
nuidade a uma abertura comercial lenta e gradual iniciada no governo anterior.

67
Ampliando o foco

Sob pressão intensa, o governo concedeu anistia ampla, geral e irrestrita aos
exilados, permitindo a volta de estudantes, professores, políticos, artistas, in-
telectuais e cientistas perseguidos pela ditadura durante a vigência do AI-5, in-
cluindo Herbert José de Souza (1935-1997), o Betinho, sociólogo brasileiro e
ativista dos direitos humanos no Brasil e que ficou eternizado em O bêbado e o
equilibrista, a espetacular letra de Aldir Blanc (1946-2020) para a música genial
de João Bosco na interpretação potente de Elis Regina (1945-1982).

Entre os anos de 1983 e 1984, a sociedade civil se mobilizou em torno do movimento


Diretas Já para reivindicar a volta da democracia com eleições diretas para presidente.
Foram realizados comícios em muitas capitais como Brasília, Rio de Janeiro, São Pau-
lo, Belo Horizonte e Salvador. Entretanto, mesmo com todo ativismo, ainda prevaleceu
naquela eleição o modelo da ditadura com votação indireta pelo Colégio Eleitoral, em
detrimento da Lei Dante de Oliveira que previa uma emenda constitucional pelas eleições
diretas. O sistema, porém, já não tinha nenhuma legitimidade e, com o apoio da mídia,
venceu a chapa composta por Tancredo Neves e José Sarney.

Ampliando o foco

Entre os vários hinos que embalaram o movimento, destacam-se composições


como Menestrel das Alagoas (Milton Nascimento e Fernando Brant) e Vai pas-
sar (Chico Buarque), que foram ouvidas nas passeatas do Rio de Janeiro, São
Paulo e Minas Gerais em 1984/85, todas com mais de um milhão de pessoas
nas ruas. Finalmente, em janeiro de 1985, com a vitória de Tancredo Neves,
tivemos o maior festival de rock do mundo no Rio de Janeiro em comemora-
ção pela vitória do presidente que foi sem nunca ter sido (parafraseando Dias
Gomes), em função da sua morte antes da posse. O Rock in Rio 1 talvez tenha
sido o principal marco histórico pop do fim da ditadura no Brasil.

Com o fim da ditadura, os cientistas cassados foram reintegrados aos seus cargos e
eu — o autor que vos escreve —, em 1987, tive a oportunidade de estudar na graduação
com dois deles: o professor Hugo de Souza Lopes (1909-1991), um dos maiores entomo-
logistas do mundo, e o professor Herman Lent (1911-2004), helmintologista renomado
mundialmente. Fica aqui a minha homenagem à memória destes dois grandes mestres
da ciência brasileira.

68
Reforma Sanitária

A Reforma Sanitária representou um corte nas políticas reformistas dos governos auto-
ritários e populistas das décadas anteriores. Cabe lembrar que a burocracia crescente e
o alinhamento com iniciativas privatistas presentes na previdência social sempre foram
representações das forças que dominavam as políticas públicas de saúde, a despeito
dos ideais mais humanistas do movimento sanitário que, entrincheirado no Ministério da
Saúde e nos governos estaduais, ainda carregavam um ranço autoritário, verticalizado e
centralizador. O diferencial da Reforma Sanitária, que nasceu das aspirações reformistas
do movimento sanitário decadente da década de 1950, foi sua permeabilização no seio
da sociedade civil que acabou sendo seu fio condutor.

Já não era mais uma iniciativa governamental, partidária ou internacional, mas da socie-
dade como um todo.

Talvez por isso a reforma tenha nascido no contexto da luta pela redemocratização,
quando havia alinhamento de muitos setores da sociedade que já não suportavam mais
a ditadura como sistema de governo. Não por acaso, a liderança do movimento foi com-
partilhada entre profissionais da saúde e personalidades ligadas a movimentos sociais,
incluindo professores, intelectuais, sindicalistas, pesquisadores, entre outros.

A proposta de reforma começou a ganhar corpo em meados da década de 1970 durante


a luta pela redemocratização. Entre suas principais pautas estava a defesa da saúde não
como questão exclusivamente biológica de domínio médico, mas como questão social
e política a ser abordada no espaço público. Em 1976 e 1979, dois eventos de significado
estratégico e simbólico ocorreram. O primeiro foi a fundação do Centro Brasileiro de
Estudos de Saúde – Cebes, entidade que, desde então, definiu-se historicamente na
luta pela redemocratização, defesa dos direitos sociais e direito universal à saúde. Pos-
teriormente, em 1979, veio a criação da Associação Brasileira de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva – Abrasco. Ambas propiciaram a base institucional que alavancaram as
reformas (PAIN, 2011).

69
Ampliando o foco

A Abrasco teve grande importância na formação de profissionais qualificados.


Esses profissionais atuaram na saúde coletiva e na articulação com a socieda-
de organizada e o poder público para reorganizar as políticas públicas de saúde.
O Cebes mantinha um espaço de divulgação de Saúde e seus problemas a
partir de uma ótica crítica e propostas de reforma.

Enfim, o que pretendia a Reforma Sanitária?

A Reforma Sanitária pretendia haver saúde para todos, de modo que as políticas de saú-
de fossem essencialmente integradas, não dicotomizadas, em um sistema universal que
permitisse acesso democrático para cada usuário para atender às demandas coletivas
e individuais a partir de um processo de racionalização dos procedimentos. O movimen-
to pretendia constituir-se um quadro contra-hegemônico, crítico do modelo dominante,
para produzir reformas nas políticas de saúde vigentes. Tratava-se de um novo resgate
dos sertões, a retomada de uma ideologia proto-humanista de reconstrução de uma
identidade nacional inacabada. Ou o devir de uma consciência sanitária capaz de costu-
rar um vínculo robusto entre sociedade e saúde.

Importante

Cabe lembrar que no contexto hegemônico do Sistema Nacional de Saúde –


SNS, ainda em 1975, a saúde pública não tinha articulação com a assistência
médica individual. As doenças eram diagnosticadas por instrumentos e exa-
mes cada vez mais complicados, de alta tecnologia, com custo proporcional-
mente mais caro. O acesso a essas tecnologias biomédicas era restrito aos que
podiam pagar mediante contribuição previdenciária obrigatória ou do próprio
bolso. Aos pobres restavam os hospitais filantrópicos que, a despeito de algum
subsídio estatal, estavam muito aquém das instituições privadas.

Dos intensos debates ocorridos na década de 1970, consonantes com os movimentos


pela saúde nos países ocidentais, a proposta mais difundida no Brasil foi a de uma me-
dicina comunitária, que postulava utilização racional das tecnologias e gerenciamento

70
eficiente da assistência médica no contexto de atenção primária. A proposta implicava
acesso de toda a população aos avanços tecnológicos de saúde. Os grupos contrários
à ditadura militar utilizaram essa proposta como estratégia no combate ao regime auto-
ritário e a favor da redemocratização a partir de uma Reforma Sanitária democrática e
inclusiva. Entretanto, o real motivo da reforma e principal elemento motivador, dentro de
uma conjuntura que lhe era favorável, foi o esgotamento do modelo hospitalocêntrico e
a falência da medicina assistencial que, em seu auge, acumulava perda progressiva de
qualidade (JUNIOR; ALVES, 2007).

A pressão exercida pelo movimento de Reforma Sanitária levou o poder público a respon-
der com a criação do Prevsaúde em 1979 — iniciativa dos Ministérios da Saúde – MS e
da Previdência e Assistência Social – MPAS, que pretendiam reunir e gerir os recursos
do Inamps. Além disso, tinha por finalidade regionalizar a assistência, hierarquizar os ser-
viços e os profissionais, padronizar os procedimentos, integrar as instituições, definir a
atuação do setor privado, simplificar o cuidado médico e viabilizar a participação comuni-
tária. O plano foi amplamente festejado pelos setores progressistas do MS e MPAS, mas
rejeitado pelos representantes do setor privado que controlavam politicamente o Inamps
e viam no Prevsaúde riscos à crescente privatização da “saúde previdenciária”. Foi, então,
o fim do Prevsaúde (DIMENSTEIN, 1998).

Em plena onda reformista, o fracasso da Prevsaúde, que para alguns não passava de uma
farsa da ditadura militar (NARVAI, 2013), deixou claro que o país precisava caminhar para
um sistema unificado, que viria somente com a Constituição Federal de 1988. Assim, em
1981, com a continuidade do crescimento da dívida previdenciária, foram intensificados
os esforços de racionalização da oferta de serviços, acentuando a tendência anterior de
integração da rede pública de atenção à saúde. Neste contexto, setores progressistas do
Inamps e do Ministério da Saúde criaram o Conselho Consultivo da Administração de
Saúde Previdenciária – Conasp, que propunha normas mais adequadas para a prestação
de serviços de saúde à população, bem como mecanismos de gestão financeira mais
confiáveis que exercessem controle mais calibrado sobre todas as etapas de assistência
médica. Assim, foram priorizadas as ações básicas de saúde com ênfase na assistência
primária e atendimento ambulatorial humanizado (JUNIOR; ALVES, 2007).

Em 1983, como parte das estratégias do Conasp, surgiram dois grandes programas:

• O AIH (Autorização de Internação Hospitalar).


• As AISs (Ações Integradas em Saúde).

71
O primeiro consistia em um projeto de racionalização das contas hospitalares e o segun-
do passou a ser o eixo de organização para uma atenção integral à saúde, que incluía
uma rede de serviços integrados e regionalizados (DIMENSTEIN, 1998).

As AISs eram postos de saúde pequenos criados a partir de convênios das prefeituras
com a Previdência Social, considerados berços da atenção básica, futura porta de entra-
da do SUS. Portanto, com as AISs, foi possível racionalizar e revitalizar a oferta do setor
público a partir de mecanismos de regionalização e hierarquização da rede pública das
três esferas governamentais, que sempre foram desarticuladas. Progressivamente ocor-
reu a universalização de clientelas em um contexto de descentralização dos serviços e
ações em direção aos municípios.

Em 1984 as AISs representavam 6,2% do orçamento do Inamps, muito pouco se com-


parado com os 58,3% que a rede privada recebia, mas o suficiente para que fossem ela-
borados instrumentos precursores de um planejamento nacional integrado das ações
de saúde, com a participação das três esferas governamentais. Um destes instrumen-
tos foi o POI (Programação e Orçamentação Integradas), que permitiu uma mudança
de cultura técnica institucional em que estados e municípios passaram a atuar como
cogestores do sistema de saúde e não simplesmente como vendedores de serviços ao
sistema federal.

Em 1985, com o fim da ditadura militar, um fato importante e definitivo ocorreu: o médico
Hésio de Albuquerque Cordeiro (1942-2020) assumiu a presidência do Inamps com a
promessa de acabar com a entidade e colocar em seu lugar um sistema público univer-
sal de saúde. Assim, o Inamps passou aos poucos de um modelo voltado à prestação
de serviços médico-hospitalares para um sistema de acesso universal aos serviços de
saúde, com base no princípio da Seguridade Social. Na presidência do Inamps, Cordeiro
levou o órgão a defender as bandeiras da Reforma Sanitária, contribuindo para fundar as
bases do futuro SUS. A prioridade de sua gestão foi a universalização do acesso aos ser-
viços de saúde a fim de reduzir as desigualdades entre populações urbanas e rurais. Em
sua gestão, as AISs foram expandidas para cerca de 2.500 municípios, área geográfica
onde viviam aproximadamente 90% da população do país (D’ÁVILA, 2020).

No rastro das inovações das políticas públicas de saúde foram organizadas por vários
municípios as Redes de Unidades de Saúde para atenção primária, com a participação
de universidades como as de Niterói, Londrina, Campinas e outras. Tanto os debates sobre
os melhores modelos de assistência primária no contexto da assistência médica, quanto
as experiências intermunicipais de unidades de saúde fomentaram a Reforma Sanitária
que culminou na VIII Conferência Nacional de Saúde em 1986 (JUNIOR; ALVES, 2011).

72
A VIII Conferência Nacional de Saúde foi um marco na história do SUS.

O evento foi realizado na cidade de Brasília sob a presidência de Antônio Sérgio da Silva
Arouca (Sérgio Arouca), ex-presidente da Fiocruz, após conferências preparatórias por
todo o Brasil. O evento contou com a participação de aproximadamente 5.000 pessoas
representantes dos diversos movimentos sociais, além de médicos, enfermeiros, psicó-
logos, parlamentares, sindicatos, estudantes, intelectuais, cientistas, entre muitos outros.
No evento debateu-se a criação do SUS através da unificação do Inamps e do Ministério
da Saúde. Entre os inúmeros conferencistas, um dos mais concorridos foi o próprio Sér-
gio Arouca, sanitarista consagrado. Na ocasião, Arouca discorreu sobre o conceito am-
pliado de saúde formulado no próprio evento. O conceito definiu a saúde como o comple-
to bem-estar físico, mental e social e não a simples ausência de doença (AROUCA, 1986).

Ampliando o foco

Em seu sentido mais abrangente, a “saúde é resultante das condições de ali-


mentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, emprego, la-
zer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É assim,
antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as
quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida” (BRASIL, 1986).

Na VIII Conferência Nacional de Saúde foram definidas as bases do projeto de Reforma


Sanitária brasileira. Seus eixos principais foram:

• Concepção ampliada de saúde, entendida em uma perspectiva de articulação de


políticas sociais e econômicas.
• Saúde como direito de cidadania e dever do Estado.
• Instituição de um Sistema Único de Saúde com base na Universalidade, na inte-
gralidade das ações, na descentralização e hierarquização dos serviços de saúde.
• Participação popular e controle social dos serviços públicos de saúde.

No ano de 1987, ainda na gestão de Hésio Cordeiro frente ao Inamps, teve início a im-
plantação do Sistema Único Descentralizado de Saúde – SUDS por meio de convênios
com secretarias estaduais e municipais de Saúde. O SUDS era uma espécie de aper-
feiçoamento das AISs e uma antessala do SUS, e tinha como objetivo universalizar a

73
assistência e reafirmar a política de descentralização dos serviços de saúde a partir da
estadualização e municipalização (DIMENSTEIN, 1998).

Em 1988 o SUS foi aprovado na nova Constituição Federal. Na ocasião, consolidou-se


a prestação de serviço de saúde público de forma descentralizada e em rede hierar-
quizada e regionalizada. O sistema viabilizou acesso gratuito e igualitário aos serviços
para promoção, proteção, recuperação e reabilitação dos indivíduos. Foi baseado em
três eixos fundamentais:

• Universalidade (acesso a todos, sem discriminação).


• Equidade (priorizar os que mais necessitam para alcançar a igualdade).
• Integralidade (ouvir o usuário e entendê-lo inserido em seu contexto social).

Finalmente o Brasil havia dado um salto civilizatório em direção a um Estado de bem-


-estar social depois de tantas experiências realizadas, porém as coisas estavam apenas
começando. Era preciso fazer valer a Constituição e, para isso, ainda haveria muita luta
política e ativismo social.

74
SUS

Em 1985 o Brasil finalmente libertou-se do jugo da ditadura militar e iniciou um período


chamado República Nova. As diretrizes definidas na VIII Conferência Nacional de Saú-
de foram incluídas na Constituição de 1988 iniciando um processo longo e desgastante
de implementação do SUS. Palavras como universalidade, equidade e integralidade
passaram a ser letras da lei e, portanto, dever e obrigação nacional. Foi este grande salto
jurídico que nos garantiu o trabalho de fazer valer a lei no presente e no futuro.

No Brasil as coisas não são tão simples: lei tem que pegar! Se ela não
pega, você não é pego por ela.

Sempre que lemos um texto como este...

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políti-


cas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação.

... estamos lendo o Artigo 196 da Constituição Federal do Brasil de 1988 — uma lei com-
patível com as aspirações de um país que deseja justiça e amparo aos seus cidadãos.

O referido artigo retrata quem somos e também quem desejamos ser, porque ainda não
fizemos valer a lei em sua totalidade, mas queremos que ela se cumpra. É este um dos
aspectos da identidade sanitária pela qual tanto se lutou. A lei diz que é preciso ações
de promoção de saúde como forma de política social para que ocorra redução e riscos
de doenças e agravos.

Se lermos o artigo 197, veremos que cabe ao poder público regulamentar, fiscalizar e
controlar o sistema de saúde, devendo sua execução ser feita diretamente ou por meio
de terceiros. Observe o contexto: “por meio de terceiros” — trata-se da velha medicina
liberal que conseguiu se inserir no texto para garantir seu filão.

Basta ver o Artigo 199: A assistência à saúde é livre à iniciativa privada, que poderá com-
plementar o SUS. No texto, fica claro que a ideia de “complementar o SUS” significa utili-
zar dinheiro público para fins lucrativos, exatamente como no passado, quando a saúde

75
privada e a medicina liberal vendiam serviços e equipamentos para o antigo Inamps sem
que para isso a assistência fosse de qualidade, humanizada ou integralizada.

Para refletir

É preciso saber conviver com a diversidade de ideias e comportamentos. É o


que a democracia nos ensina. E isso serve para religiões, identidades e orien-
tações de gênero, raças, etnias, nacionalidades e todo o tipo de diversidade
planetária, incluindo, e talvez principalmente, a natureza.

Por outro lado, o que está escrito no Artigo 198 representa um salto extraordinário e uma
conquista dos reformistas (BRASIL, 1988).

As ações e os serviços públicos de saúde integram uma rede regionali-


zada e hierarquizada, constituindo um sistema único organizado pelas
seguintes diretrizes: descentralização e atendimento integral, com prio-
ridade para as atividades preventivas. O Sistema Único de Saúde será
financiado com recursos da Seguridade Social, da União, dos estados e
dos municípios e outras fontes.

Importante

No Artigo 198 está muito claro de onde vem o recurso para o SUS. Entre ou-
tros, o SUS será financiado com recursos da Seguridade Social (SS). A Reforma
Sanitária representou um período de transição entre a Previdência Social e a
Seguridade Social. Portanto, é importante compreender que são coisas com-
pletamente diferentes.

A Seguridade Social compreende um conjunto de políticas públicas vol-


tadas para o bem-estar do cidadão.

76
Neste contexto, a Seguridade Social é formada por três serviços principais que corres-
pondem a um tripé constituído por:

• Previdência social (PS).


• Saúde (S).
• Assistência Social (AS).

No Artigo 124 da Constituição encontramos a seguinte definição: “A Seguridade Social


compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da
sociedade, destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assis-
tência social.”

Seguridade Social
SS

No tripé, podemos perceber que a Saúde, a


Previdência Social e a Assistência Social
se constituem em um conjunto de políticas
públicas da Seguridade Social. Portanto, do
ponto de vista participativo, apenas trabalha-
dores com carteira assinada ou contribuintes
facultativos e/ou autônomos têm direito a to-
Saúde dos os benefícios apontados no tripé.
SUS

Assistência Previdência
Social Social
SUAS

Ampliando o foco

Os trabalhadores com carteira assinada estão sujeitos à tributação obrigatória


com desconto em folha de pagamento com a finalidade de gerar o patrimônio
da Previdência. O imposto é chamado de Instituto Nacional de Seguro Social
– INSS. Logo, apenas os contribuintes do INSS usufruem dos três eixos funda-
mentais que formam o tripé da Seguridade Social. Os não contribuintes podem
utilizar apenas a Saúde e a Assistência Social gratuitamente.

77
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD, divulgada pelo IBGE
em dezembro de 2019, o Brasil bateu novo recorde de trabalhadores informais: um total
de 24,4 milhões de trabalhadores sem carteira assinada que, somados aos 12,4 milhões
de desempregados, segundo a mesma pesquisa, formavam uma multidão de 36,8 mi-
lhões de brasileiros que não contribuíam para a Seguridade Social e, portanto, que não
possuíam direito previdenciário.

Logo, a Seguridade Social passou a possuir uma lacuna, impedindo uma grande quanti-
dade de trabalhadores informais e a totalidade de desempregados de terem acesso inte-
gral aos benefícios. Nesse caso, o conceito de Universalidade não se verifica. Por outro
lado, a Saúde sob o comando do SUS, e a Assistência Social sob o comando do SUAS
(Sistema Único de Assistência Social), dois dos três eixos do tripé da Seguridade Social,
são acessíveis à totalidade dos brasileiros, independentemente de contribuição.

Trata-se de uma grande vitória daqueles que sempre lutaram por um


Brasil mais justo para todos.

Apesar da grande vitória da Reforma Sanitária, é importante atentarmos para o grande


contingente de 36,8 milhões de trabalhadores sem previdência (em 2019), que poderiam
engrossar o caixa do INSS. Quanto mais o INSS arrecadar, maior será o nível de cobertu-
ra e mais justo com sua população o Brasil será. Para isso, é preciso que o país volte a ter
políticas econômicas de maior sensibilidade social. Além disso, investir mais em micro
e pequenas empresas, agricultura familiar, cooperativas, em programas assistenciais de
distribuição de renda e, finalmente, mas não menos importante, nas grandes indústrias
brasileiras que ficaram sucateadas por erros no comando do Ministério da Economia
desde 2015.

Esses erros levaram o Brasil ao grande índice de desemprego verificado atualmente


(14%). Quanto mais trabalhadores com carteira assinada, maior o nível de contribuição.
Só assim será possível amenizar o saldo negativo da previdência que, em 2020, beirava
20 bilhões, resultado da diferença entre a arrecadação líquida e o valor gasto com o pa-
gamento de milhões de benefícios.

78
Para refletir

Ao longo de um amplo esforço conjunto empreendido pela sociedade civil, re-


presentada por diversos movimentos sociais, para construir um sistema de
Seguridade Social dotado de qualidades como solidariedade, acesso, inclusão,
participação, entre muitas outras, foi necessário que se construísse uma alian-
ça por um Brasil mais inclusivo e que permitisse ao brasileiro tradicionalmen-
te excluído da sociedade de consumo, tranquilidade mínima para buscar sua
autonomia financeira e intelectual. Portanto, “o sistema de previdência pública
atual é o da participação solidária simples”. Cada brasileiro que pode contribui
para garantir os benefícios relativos à saúde, assistência social e previdência
dos aposentados de hoje. Assim, amanhã, as novas gerações contribuirão para
garantir saúde, assistência e aposentadoria aos que contribuíram durante boa
parte de suas vidas. Trata-se de um pacto entre gerações. Desse modo se for-
ma um país forte e um governo soberano.

O SUS, como o subsistema da Seguridade Social, destina-se a todos os cidadãos. Do seu


fundo de investimento saem os recursos destinados aos governos federal, estadual e
municipal. Este formato resulta de seu caráter sistêmico, organizado em redes regionali-
zadas hierárquicas. Assim, é importante entender que a competência de cuidar da saúde
deve ser dos três entes federativos, de forma igual, independentemente do domicílio do
segurado. O conceito de saúde elaborado na VIII Conferência Nacional de Saúde foi in-
corporado pelo SUS permitindo que as ações de saúde fossem vistas como um conjunto
complexo de atos sanitários interligados, calcados no entendimento de saúde como um
conceito global que não permite fracionamento (SANTOS, 2017).

A Atenção Primária à Saúde – APS é o modelo que predomina nesse tipo de política e
corresponde ao primeiro nível ou o momento em que se inicia o processo de atenção em
um sistema de saúde. No SUS, a APS surge como uma estratégia fundamental, tornan-
do-se o principal e o primeiro ponto de contato entre as pessoas e os serviços. É cha-
mado de porta de entrada do SUS. Esse nível de atenção fornece uma atenção integral e
aborda a maioria das demandas em saúde da população de forma longitudinal (ao longo
do curso de vida). A APS está voltada para responder de forma regionalizada, contínua e
sistematizada à maior parte das necessidades de saúde de uma população, integrando
ações dos tipos:

1. Preventivas.

79
2. Curativas.
3. Coletivas (atenção a indivíduos e comunidades).

No Brasil, a APS incorpora os princípios da Reforma Sanitária e é designada pelo SUS


como Atenção Básica à Saúde – ABS, para enfatizar a reorientação do modelo assisten-
cial a partir de um sistema universal e integrado de atenção à saúde.

O SUS brasileiro adotou o modelo inglês de Atenção Primária à Saúde, com base no
Relatório Dawnson (1920), sendo uma forma de organização criada em contraponto ao
modelo norte-americano de cunho curativo, fundado no reducionismo biológico e na
atenção individual. A proposta principal do modelo inglês é a de hierarquização de níveis
de atenção à saúde com a seguinte organização:

1. Centros de saúde primários e secundários.


2. Serviços domiciliares.
3. Serviços suplementares e hospitais de ensino.

Os centros de saúde primários e os serviços domiciliares devem estar organizados de


forma regionalizada e a maior parte dos problemas devem ser resolvidos por médicos
com formação em clínica geral. Os casos em que o médico não tiver condições de solu-
cionar o problema com os recursos disponíveis, devem ser encaminhados para os cen-
tros de atenção secundária, onde estão lotados especialistas das mais diversas áreas, ou
então para os hospitais de referência, quando houver indicação de internação ou cirurgia.

Com base nesse modelo, o SUS se organizou de acordo com os seguintes modos hie-
rárquicos:

1. Baixa complexidade.
2. Média complexidade.
3. Alta complexidade.

O nível 2 (média) corres-


O nível 1 (baixa)
ponde ao nível de aten- O nível 3 (alta) correspon-
corresponde ao nível
ção secundária à saúde de ao nível de atenção
de atenção primária
e pode ser encontrado terciária à saúde e pode
ou básica à saúde,
em hospitais secundá- ser encontrado em hos-
encontrado nas Uni-
rios ou ambulatórios de pitais terciários de alta
dades de Saúde de
especialidade de média complexidade.
baixa complexidade.
complexidade.

80
Sendo o nível 1 a porta de entrada do sistema, o paciente é conduzido aos demais
níveis de acordo com a complexidade do seu caso.

Entretanto, alguns sanitaristas questionam o conceito de hierarquia no SUS no que


se refere ao grau de importância de um determinado nível de atenção. Eles entendem
que os níveis hierárquicos devem referir-se à progressão do paciente no sistema com
base no grau de complexidade de sua doença. Se não for assim, parecerá que o nível
de atenção básica é de menor importância. Entretanto, a ABS corresponde ao primei-
ro contato do paciente com o sistema de saúde por ser a porta de entrada do SUS e,
como tal, dela dependerá, na maioria das vezes, a progressão nos diversos níveis de
atenção de acordo com o nível de complexidade patológica do paciente.

No Brasil, a principal estratégia de configuração da ABS é o programa Saúde da Fa-


mília, que tem recebido importantes incentivos financeiros visando à ampliação da
cobertura populacional. A estratégia Saúde da Família aprofunda os processos de
territorialização e de responsabilidade sanitária das equipes, compostas basicamente
por médico generalista, enfermeiro, técnico de enfermagem, psicólogo, fisioterapeuta,
odontólogo, educador físico e agente comunitário de saúde, cujo trabalho é referência
de cuidado para a população, com um número definido de domicílios e famílias assis-
tidas por equipe.

Em setembro de 2005, o Ministério da Saúde definiu a Agenda de Compromisso pela


Saúde, que agrega três eixos:

1. O Pacto em Defesa do Sistema Único de Saúde – SUS.


2. O Pacto em Defesa da Vida.
3. O Pacto de Gestão.

Agora, cabe a você, agente do seu próprio saber, utilizar as ferramentas aqui disponibi-
lizadas para aprofundamento acerca de Políticas Públicas de Saúde e reformulação de
novos saberes. Lembre-se de que não podemos perder de vista a importância do salto
civilizatório que foi a criação do SUS em um país tão carente de cuidado e amparo.
Todos nós, profissionais de saúde e futuros profissionais, temos o dever de conhecer a
nossa principal política de saúde: o Sistema Único de Saúde – SUS.

81
MIDIATECA

Para ampliar o seu conhecimento veja o material complementar da Unidade 4,


disponível na midiateca.

NA PRÁTICA

Ao iniciar uma carreira como profissional de saúde em uma unidade de saúde


pública, a alocação do profissional dependerá de sua qualificação. O profissio-
nal poderá optar por trabalhar na atenção básica, secundária ou terciária, de
acordo com os níveis hierárquicos do SUS. Portanto, na atenção básica encon-
tram-se os generalistas, aqueles que atuarão na emergência, na clínica geral, na
prevenção ou reabilitação. De modo geral são constituídos por médicos, psicó-
logos, fisioterapeutas, enfermeiros, odontólogos, educadores físicos, técnicos
de enfermagem e agentes de saúde. Por outro lado, se você tem a intenção de
trabalhar na atenção secundária ou terciária, será necessário algum grau de
especialização em alguma área, tais como oncologia, cardiologia, neurocirurgia
etc. Nesses casos, os pacientes serão encaminhados da atenção básica para
os municípios onde se encontram os centros de referência que permitem trata-
mentos de pacientes de alta complexidade dentro de seus territórios de saúde.

82
Resumo da Unidade 4

Na década de 1970 o Brasil vivia uma ditadura militar cruel e sanguinária por conta de
sua fase mais dura relacionada ao Ato Institucional nº 5 (AI-5), decretado pelo regime
em 1968. A saúde refletia a instabilidade política e jurídica de um sistema disruptivo,
caracterizado por reformas que sempre ocorriam no âmago de interesses populistas de
legitimação de governos autoritários intermináveis. Neste período ocorreu o “Massacre
de Manguinhos”, quando 10 dos nossos melhores cientistas foram cassados por perse-
guição política, gerando enormes prejuízos para a ciência brasileira. Em 1986 ocorreu a
VIII Conferência Nacional de Saúde, expressão máxima da Reforma Sanitária e marco
na história do SUS e na luta contra o autoritarismo pela democracia. Em 1988 o SUS foi
aprovado na nova Constituição Federal, consolidando um modelo de prestação de servi-
ço baseado em descentralização e no conceito de rede hierarquizada e regionalizada. O
sistema viabilizou o acesso gratuito e igualitário aos serviços para promoção, proteção,
recuperação e reabilitação dos indivíduos.

83
Referências

AGUIAR, Z. N. SUS – Sistema Único de Saúde: antecedentes, percurso, perspectivas e


desafios. São Paulo: Martinare, 2011. Biblioteca Virtual. Acesso em: 20 de fev. 2021.

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Núcleo de Video/Fiocruz. Produção: Comissão Organizadora da 8ª Conferência Nacional
de Saúde/Fiocruz. Distribuição: VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz. Video restaurado
em 2013. Publicado no canal VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz. 1 vídeo (42min33seg).
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DIMENSTEIN, M. D. B. O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a for-


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8123-csc-22-04-1281.pdf (scielo.br). Acesso em: 20 de fev. 2021.

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