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Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira

Fundamentos teóricos e Autores brasileiros


Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira
Fundamentos teóricos e Autores brasileiros

Francisco Sotero dos Reis

Organização
Roberto Acízelo de Souza

Editora Caetés

Rio de Janeiro
2014
Copyright © 2014 – Roberto Acízelo de Souza
Editora Caetés
Rua General Roca, 429 sl 01 – www.editoracaetes.com.br

Coordenação Editorial
Francisco Venceslau dos Santos

Revisão
Roberto Acízelo de Souza

Diagramação
DTPhoenix Editorial

Capa
Miriam Lerner

Imagem da capa
Largo do Carmo, São Luís do Maranhão, em foto de 1908; em destaque, a Igreja
e o Convento do Carmo. Neste funcionou inicialmente o Liceu Maranhense,
escola de ensino secundário fundada em 1838 (a segunda mais antiga do Brasil,
precedida apenas pelo Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro), estabelecimento de
que Sotero dos Reis foi o primeiro diretor.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
R298c Reis, Francisco Sotero dos
Curso de literatura portuguesa e brasileira: fundamentos teóricos
e autores brasileiros / Francisco Sotero dos Reis; organização Roberto
Acízelo de Souza. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Caetés, 2014.
376 p. : il. ; 23 cm.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-86478-89-5

1. Literatura brasileira – História e crítica. I. Souza, Roberto Acízelo


de. II. Título.
CDD: 869.909
14-17679 CDU: 821.134.3(81)(091)
AGRADECIMENTOS

Aos amigos que, de uma forma ou de outra, nos ajudaram na elabo-


ração deste trabalho: Antônio Martins de Araújo, Jomar Moraes, Luiz
Antônio de Souza, Ronaldo Reis (in memoriam), Ronald Robson.

Às instituições que nos apoiaram: Academia Brasileira de Letras,


Biblioteca Nacional, Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí-
fico e Tecnológico (CNPq), Fundação de Amparo à Pesquisa do Es-
tado do Rio de Janeiro (FAPERJ), Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj),
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal
Fluminense (UFF).
SUMÁRIO

Apresentação 9

Critérios da edição 31

Curso de literatura portuguesa e brasileira 35

Fundamentos teóricos 37
Introdução [ao volume 1] 39
Lição I 44
Lição VI 52
Lição VII 54
Lição VIII 61
Duas palavras ao leitor [Introdução ao volume 2] 64
Introdução [ao volume 3] 66
Introdução [ao volume 4] 72
Introdução [ao volume 5] 74

Autores brasileiros 75
Frei José de Santa Rita Durão: Lição LXX / LXXI 77
José Basílio da Gama: Lição LXXII / LXXIII 97
Padre Antônio Pereira de Sousa Caldas:
Lição LXXIV / LXXVII 118
Manuel Odorico Mendes: Lição LXXVIII / LXXIX 160
Antônio Gonçalves Dias – poesia: Lição LXXX / LXXXIV 173
Antônio Gonçalves Dias – teatro e prosa:
Lição LXXXV / LXXXVI 229
Marquês de Maricá: Lição LXXXVII / LXXXVIII 269
Frei Francisco de Mont’Alverne: Lição LXXXIX / XC 285
Antônio Henriques Leal: Lição XCI 305
João Francisco Lisboa: Lição XCII / XCVI 314
APRESENTAÇÃO

Francisco Sotero dos Reis nasceu em São Luís do Maranhão, filho de


Baltasar José dos Reis e Maria Teresa Cordeiro, no ano de 1800. Con-
tando apenas com instrução primária, trabalhava no comércio quando
adoeceu gravemente, indo tratar-se na fazenda de seus pais. Restabe-
lecido, volta para a cidade e, segundo Haroldo Paranhos, “começou aí
o seu amor pelos livros” (1937, p. 223). Estuda então latim, português,
retórica, filosofia, francês e aritmética. Desse modo, nunca tendo saído
de sua província natal, torna-se um autodidata sem títulos acadêmicos,
porém respeitado por seu saber humanístico.
Ainda muito jovem, para manter-se, começa a ensinar em sua casa
francês e latim. Passa depois a lecionar em escolas: em 1821 é nomeado
para a cadeira de gramática latina do Colégio de Carlos de la Rocca, e
em 1823, aprovado em concurso, assume a cadeira de latim, tornando-
-se o primeiro professor público do Maranhão após a independência
(cf. Moraes, 1997, p. 95). Ainda no ano de 1823, depois de ter sido ve-
reador em São Luís, integrou o Conselho Geral do Maranhão, institui-
ção antecessora da Assembleia Provincial, tendo sido posteriormente
eleito deputado provincial, posição que ocupou até 1864, chegando a
presidir a Assembleia na legislatura 1862 / 1864. Em 1825, estreia no
jornalismo, tendo fundado diversos jornais — O Maranhense, O Cons-
titucional, A Revista — e atuado como colaborador em outros: Sema-
nário Maranhense, O Investigador Maranhense, O Correio d’Anúncios,
O Observador, O Publicador Maranhense. Conforme Haroldo Para-
nhos, sua marca, numa época em que jornais e periódicos se carac-
terizavam em geral por um tom panf letário e apaixonado, teria sido a
adoção de uma “linguagem serena e ref lexiva” (1937, p. 224). No setor
Apresentação  11

pedagógico, além do exercício do magistério por mais de 40 anos, foi


o primeiro diretor do Liceu Maranhense, fundado em 1838 e instalado
no ano seguinte, tendo também dirigido o Asilo de Santa Teresa, de
1864 a 1870, sem ônus para a instituição, a título, pois, de trabalho vo-
luntário, como hoje se diria.
Em 1861, abandona o jornalismo, afastando-se do cargo que então
ocupava — diretor do jornal do governo O Publicador Maranhense —,
por desentendimentos com Primo d’Aguiar, presidente da província.
Daí em diante, pôde dedicar-se plenamente ao magistério e ao estudo
das letras e da filologia, publicando diversos livros originários de sua
atuação como professor.
Sua obra conta com os seguintes títulos: Biografia do Dr. Eduardo
Olímpio Machado (1855), Postilas de gramática geral (1862), Comentá-
rio de Caio Júlio César (1863-1869), Gramática portuguesa (1866), Curso
de literatura portuguesa e brasileira (1866-1873). Com diversos outros
autores — entre os quais Antônio Henriques Leal, Joaquim Serra e Joa-
quim de Sousa Andrade (Sousândrade) —, colaborou também, sob o
pseudônimo de Nicodemus, na novela A casca da caneleira (1866), qua-
lificada pelo grupo de autores como steeple-chase (“corrida de obstácu-
los”), cuja ideia era desenvolver uma trama desconexa e disparatada,
visando a “ridicularizar a literatura moderna ou realista, então repre-
sentada pela Escola de Coimbra” (Martins, 1977, v. 3, p. 253). Foi ainda
poeta eventual e de circunstância, e consta que se perderam algumas
traduções suas: poemas de Tibulo, os Anais de Tácito, Fedra, de Racine,
e Atala, de Chateaubriand. Deixou inédito um Curso de literatura roma-
na, parcialmente publicado postumamente na Revista da Academia Ma-
ranhense de Letras (volume IV a IX) (cf. Moraes, 1997, p. 97). Morreu
em São Luís do Maranhão, em 1871.

A pequena fortuna crítica do autor tem início com uma série de ar-
tigos de Lafaiete Rodrigues Pereira,1 publicados no Diário do Povo, do
Rio de Janeiro, em 1868, a propósito do primeiro volume do Curso de

1
  Jurista e político (Queluz [atual Conselheiro Lafaiete], 1834 – Rio de Janeiro, 1917).
12  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

literatura portuguesa e brasileira, que havia saído dois anos antes.2 De


excelente nível, descontado o tributo que pagam à época, os artigos,
apesar de manifestarem discordâncias pontuais em relação a certas te-
ses assumidas na obra, assinalam seu alto valor, considerando “a crítica
literária do professor maranhense [...] larga e profunda, à maneira dos
grandes mestres” (apud Leal, 1987 [1873], p. 157).
Seguem-se manifestações de dois comprovincianos e contemporâ-
neos seus, cujas avaliações, aliás, se situam em polos opostos. Assim, An-
tônio Henriques Leal3 o inscreve no seu Pantheon maranhense (1873),
dedicando-lhe uma biografia encomiástica, ao passo que Frederico José
Correia,4 em obra que toma ao pé da letra o próprio título — Um livro
de crítica (1878) —, embora reconhecendo-lhe méritos por assim dizer
escolásticos, promove verdadeira demolição de seus empenhos como
crítico e historiador da literatura. Vejamos trechos de seu estudo:

Sotero foi um excelente latinista e vernaculista; muito versado nas literatu-


ras clássicas das três línguas, latim, francês e português; mas pouco conhe-
cedor da literatura moderna, de que ele talvez não gostasse, aferrado, como
sempre esteve, no gosto e ensino dos clássicos.
Escrevia bem o português, sem afetar esse estilo antiquado em que outros
fazem consistir a grande ciência da língua. Tinha o dom da facilidade e da
clareza, mas nenhuma eloquência. Sempre a mesma frase, sempre a mesma
expressão, sempre a mesma frieza, sempre a mesma escassez de pensamen-
tos elevados.
A sua crítica literária, valha-me Deus! era, além de medíocre, parcial e falsa,
quando tratava de autores contemporâneos, sobretudo brasileiros.
O seu Curso de literatura já não era obra para a época em que ele o escreveu
e publicou. Quem o lê nada aprende de novo, porque aí tudo é acanhado e
rançoso (Correia, 1878, p. 69-70).

2
  A rigor, a primeira manifestação crítica referente a publicações de Sotero data de 1862.
Trata-se de um “juízo crítico sobre as Postilas gramaticais de Sotero dos Reis”, assinado por
Trajano Galvão de Carvalho (1830-1864) e apenso à primeira edição das Postilas de gramá-
tica geral. Sendo, no entanto, relativa a uma obra específica, além de anterior à publicação
do Curso, não integra a fortuna crítica geral do autor, não nos interessando aqui.
3
  Médico, historiador, tradutor, biógrafo (Itapicuru-Mirim, 1828 – Rio de Janeiro, 1885).
4
  Bacharel em direito e escritor (Caxias, 1817 – São Luís, 1881).
Apresentação  13

Ainda não vi obra deste gênero tão pobre de crítica. Ou seja geral o assunto
ou limitado à literatura dos dous países a que ela se refere, nada há aí que
se possa considerar original e bom; a análise resolve-se num bataclan de
louvores destemperados, acompanhados sempre do estribilho: “Como isto
é belo!” (ibid., p. 89).

Fora do âmbito provincial,5 a partir de fins do século XIX sua obra


mereceria a atenção de uns poucos autores, que a seu respeito formula-
ram juízos críticos bastante desencontrados.
Sílvio Romero o inclui no que chama “escola maranhense” (cf. 1955
[1888], v. 3, p. 792), e nisso se faz acompanhar por José Veríssimo, que
o situa com destaque no “grupo maranhense” (cf. 1969 [1916], p. 174).6
Divergem os dois críticos, contudo, na avaliação de sua obra, particular-
mente do Curso de literatura portuguesa e brasileira.
Para Romero o professor de São Luís teria sido apenas um “retóri-
co[...] despido[...] de qualquer talento analítico” (1955 [1888], v. 3, p.
947), e com ele a crítica, depois de haver conhecido preocupações na-
cionalistas e cogitado de nossas origens, “vestira [...] a velha túnica da
retórica, tendo despido o amplo manto da história” (ibid., v. 5, p. 1772-
1773).

Segundo Veríssimo, ao contrário, o Curso seria obra meritória: após


desqualificar o empreendimento anterior de Joaquim Caetano Fernan-
des Pinheiro — Curso elementar de literatura nacional (1862) —, afirma
a propósito do livro de Sotero:

Com o seu desenvolvimento e proporções, é não só a primeira obra de estu-


do histórico literário e crítico da nossa literatura, mas ainda da portuguesa,
e era na nossa língua uma novidade. Transplantava Sotero dos Reis para ela,
como ainda no seu tempo foi notado, a renovação crítica operada na França
por Villemain (1969 [1916], p. 274).

Agrippino Grieco, por sua vez, com indulgência por assim dizer
cruel, o qualifica como “parafrasta de Camões [...] e humanista mais
próximo da gramática que da estética” (1947 [1933], p. 29), “roído de
14  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

gramatiquice” (ibid., p. 31), cujo merecimento não iria além de ter


sabido utilizar-se “direitinho de sua mediocridade bem composta”
(ibid., p. 29).
O juízo de Antonio Candido, porém, lhe é em geral favorável:

Apesar da formação gramatical, da inclinação conservadora do espírito, do


gosto convencional, procurou realizar no Brasil uma crítica mais sistemáti-
ca, pela combinação do método ilustrativo de Blair com a visão histórica de
Villemain (1971b [1959], p. 393).

[D]eu à sua pátria o primeiro livro coerente e pensado de história literária,


fundindo e superando o espírito de f lorilégio, de biografia e de retórica,
pela adoção dos métodos de Villemain. Merece, portanto, mais do que lhe
tem sido dado (1971a [1959], p. 356).

João Alexandre Barbosa, por seu turno, vê no professor maranhense


certa relativização dos “anseios nacionalistas”, hegemônicos e quase ab-
solutos nos estudos literários do seu tempo, relativização decorrente do
que considera “uma mais arguta leitura dos textos” (1996, p. 29).
Controvérsias críticas à parte, o fato é que o Curso de Sotero dos Reis,
ocupando-se, conforme a declaração contida no título, com a cultura li-
terária da língua portuguesa, constitui uma das obras fundadoras não só
da historiografia literária brasileira, mas também da lusitana. Embora
diversos autores o tenham precedido no empenho de produzir histórias
das literaturas nacionais de Portugal e do Brasil7 — e assim é preciso
7
  Situam-se cronologicamente antes dele nesse empreendimento, aí incluídos, além de au-
tores de histórias literárias stricto sensu, também responsáveis por esboços ou manifestos
programáticos: Friedrich Bouterwek (História da poesia e da eloquência portuguesa; 1805),
Simonde de Sismondi (Da literatura do meio-dia da Europa; 1813), Ferdinand Denis (Resu-
mo da história literária de Portugal, seguido do Resumo da história literária do Brasil; 1826),
Almeida Garrett (“História abreviada da poesia e língua portuguesa”; 1826), Gonçalves de
Magalhães (“Discurso sobre a história da literatura do Brasil”; 1836; “Literatura brasileira:
estudos sobre a história literária do Brasil”; 1837), Joaquim Norberto (“Bosquejo da história
da poesia brasileira”; 1841), Santiago Nunes Ribeiro (“Da nacionalidade da literatura brasi-
leira”; 1843), Pereira da Silva (introdução ao Parnaso brasileiro; 1843), Francisco Freire de
Carvalho (Primeiro ensaio sobre a história literária de Portugal; 1845), Álvares de Azevedo
(“Literatura e civilização em Portugal”; circa 1850), Francisco Adolfo de Varnhagen (“Ensaio
histórico sobre as letras do Brasil”; 1850), José Maria da Costa e Silva (Ensaio biográfico-crí-
tico sobre os melhores poetas portugueses; 1850-1855), Manuel Duarte de Azevedo (“Litera-
tura pátria”; 1852-1853), José Silvestre Ribeiro (Primeiros traços duma resenha da literatura
Apresentação  15

pelo menos relativizar as afirmações de Veríssimo e de Candido de que


teria sido o fundador inconteste do gênero —, nenhum dos seus ante-
cessores alcança a amplitude expositiva que caracteriza o seu trabalho,
que afinal se materializou em nada menos do que cinco volumes. O mé-
rito pois do pioneirismo parece que não se pode negar-lhe.

Deve-se também creditar-lhe entre os méritos, como bem assina-


lou João Alexandre Barbosa (1996, p. 29), o gosto por análises textuais
minuciosas, ainda que sempre sob o risco de paráfrases dolorosamen-
te tautológicas em relação a seus objetos. No entanto, essa qualidade
tem como contrapartida um defeito bastante evidente: a minúcia ana-
lítica implica a concessão de grandes espaços a alguns poucos autores,
o que praticamente inviabiliza a composição de quadros panorâmicos
das épocas sucessivas, como é de rigor em obras de história literária.
O resultado disso é que, no módulo brasileiro — aquele que aqui nos
interessa, por razões adiante explicadas —, Sotero se atém a um con-
junto bastante estreito, constituído por apenas nove escritores: Santa
Rita Durão, Basílio da Gama, Sousa Caldas, Odorico Mendes, Gonçal-
ves Dias, marquês de Maricá, Mont’Alverne, Antônio Henriques Leal
e João Francisco Lisboa. A estes podemos acrescentar os autores a que
se refere sumariamente na parte preambular do Curso (especificamen-
te, na Lição VII), aos quais, por conseguinte, não dispensa atenção
analítica — Gonçalves de Magalhães, Araújo Porto Alegre, Pereira
da Silva, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e Bernardo Pereira de
Vasconcelos —, e com isso teríamos um elenco ainda assim reduzido,
constituído tão só por 14 escritores.8

portuguesa; 1853), Joaquim Norberto (História da literatura brasileira; 1859-1862), Fernan-


des Pinheiro (Curso elementar de literatura nacional; 1862).
8
 Os escritores portugueses estudados são os seguintes: D. Dinis, Azurara, Garcia de
Resende, Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda, Antônio Ferreira, Camões, João de Barros,
Vasco Mousinho de Quevedo Castel-Branco, Gabriel Pereira de Castro, frei Luís de Sousa,
Freire de Andrade, Vieira, Garção, Cruz e Silva, Filinto Elísio, Bocage, Garrett e Herculano.
Contabilizam-se, portanto, 19 autores, mais que o dobro dos brasileiros incluídos. Mesmo
assim, trata-se também de um conjunto restrito, e até, em termos relativos, menor do que
o conjunto brasileiro. Isso porque, considerando a maior extensão cronológica da literatura
16  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Quanto aos critérios do autor para a seleção com que trabalha, con-
vêm algumas observações.
Em relação aos escritores da época colonial, nada declara quanto às
clamorosas exclusões de figuras como Gregório de Matos, Botelho de
Oliveira, Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga
Peixoto, Silva Alvarenga, todos, na altura em que profere suas palestras e
publica os volumes do Curso (década de 1860), já devidamente tratados
nos primeiros trabalhos historiográficos consagrados à literatura brasi-
leira (cf.: Parnaso brasileiro, de Januário da Cunha Barbosa – 1829-1832;
“Bosquejo da história da poesia brasileira”, de Joaquim Norberto – 1841;
Florilégio da poesia brasileira, de F. A. Varnhagen – 1850-1853; Curso
elementar de literatura nacional, de Fernandes Pinheiro – 1862). Quanto
às inclusões — Santa Rita Durão, Basílio da Gama e Sousa Caldas —,
assim as justifica o mestre maranhense:

[Enquanto] os poetas brasileiros [...] acompanhavam seus irmãos da me-


trópole no gosto e tendência [...], os três [...] nomeados faziam exceção à
regra [...] e distinguiam-se dos poetas portugueses [...]. Os dois primeiros
[...] não só escolhiam para assuntos dos seus poemas [...] a celebração de fa-
tos ocorridos na América, mas davam também de mão as ficções da Grécia
[...], e os revestiam sobretudo da conveniente cor local [...]. O terceiro [...]
introduziu com suas composições [...] o gosto da magnífica poesia bíblica,
da qual, antes dele, só Camões havia dado uma pequena amostra em Portu-
gal [...] (Reis, 1866-1873, v. 3, p. VII-VIII).

Ora, o critério nacionalista das inclusões — em Durão e Basílio, o


mérito de terem introduzido a cor local; em Sousa Caldas, o feito de
ombrear-se com o maior poeta metropolitano — constitui justificati-
va tácita para as exclusões: em Gregório, Botelho de Oliveira, Cláudio,
Gonzaga, os dois Alvarengas, o elemento nacional seria deficitário, se
não nulo, à medida que, segundo o parecer do autor, esses poetas ape-
nas “ati[veram]-se à escola espanhola ou à clássica restaurada [...], e

portuguesa em relação à brasileira, Sotero dedica à primeira um espaço correspondente a


quase quatro volumes (cerca de 75% do volume 1, os volumes 2 e 3 inteiros, e mais em torno
de 50% dos volumes 4 e 5), ao passo que reserva à segunda mais ou menos o equivalente a
um volume (cera de 50% dos volumes 4 e 5).
Apresentação  17

acompanha[ram] os seus irmãos da metrópole [...], [sem] deixa[rem] a


rota batida [...]” (ibid., p. VII).9
Relativamente aos autores do século XIX, Sotero observa um princí-
pio usual na historiografia literária oitocentista: o de excluir escritores
vivos, sob a alegação de que, por um lado, estando suas obras ainda
em progresso, não comportariam juízos globais, e, por outro, não po-
deriam ser objeto de apreciações críticas adequadas, na dupla falta de
um parecer da posteridade e de distanciamento do próprio historiador
em relação a elas (cf. Reis, 1866-1873, v. 4, p. VI). No entanto, abre uma
exceção para Antônio Henriques Leal, dedicando-lhe a Lição XCI, sob a
justificativa de que não se pronunciaria sobre o conjunto da obra desse
autor (até porque, de resto, ela ainda estaria em curso), mas apenas so-
bre a biografia que consagrara a João Francisco Lisboa (cf. ibid., p. VI), e
arremata a justificativa com o argumento de que o comentário analítico
sobre o referido trabalho de Leal seria preâmbulo excelente para as li-
ções subsequentes — XCII, XCIII, XCIV, XCV e XCVI —, que consagra
ao biografado, João Francisco Lisboa (cf. ibid., v. 5, p. 115).10

9
  Assinale-se que resta um pouco irônica a posição desses poetas nos estudos de Sotero;
pois, excluídos do rol dos brasileiros, por identificação com os portugueses, não deveriam
eles ser tratados a par com estes últimos, em vez de meramente ignorados, considerando
que, conforme o próprio autor, “pertencem [...] ao tempo em que a literatura era comum aos
dois povos, brasileiro e português, que formavam então uma só nação” (Reis, 1866-1873, v.
4, p. 171)? De fato, dado que, tendo em vista a época em questão, o critério da nacionalidade
se revela impertinente, como se justificaria, por um critério estritamente literário, ficar com
os portugueses Garção, Cruz e Silva, Filinto Elísio e Bocage, em detrimento dos brasileiros
Cláudio, Gonzaga e os dois Alvarengas? Quanto à exclusão de Gregório e Botelho de Oliveira,
aí se observa coerência, pois, por um critério literário, o autor também exclui os líricos
seiscentistas portugueses, referindo-se a sóror Violante do Céu e à Fênix renascida apenas
para detratar a poesia do século XVII, cujo “mau gosto”, segundo seu parecer, “deve[ria] ser
evitado com cuidado” (Reis, v. 3, p. XIII).
10
  As justificativas para a inclusão de Antônio Henriques Leal, contudo, parece que não
passam de racionalização para interesses de capelinhas literárias. Observe-se que Leal, na
condição de membro mais jovem, integrava o mesmo círculo literário de que fazia parte
Sotero, mais tarde caracterizado pelas nossas histórias literárias como o “Grupo maranhense”,
além de ter sido um dos coautores, com Sotero e outros, da brincadeira literária constituída
pela novela A casca da caneleira (1866). Não surpreende, pois, que, numa passagem do
Curso, Sotero a ele se refira como “o meu amigo o Sr. Dr. Antônio Henriques Leal” (Reis,
1866-1873, v. 5, p. 1). Leal, por seu turno, retribuiria a gentileza, pois, morto Sotero em
1871, consagraria ao amigo um dos capítulos do seu Pantheon maranhense, publicado
em 1873, em que não economiza nos elogios, como se vê na seguinte passagem, em que,
aliás, salvo engano, dá a entender que teria sido seu aluno: “Venerando patriota, incansável
evangelizador, não foram baldados os sacrifícios que fizeste com prodigalizar teu tempo a
18  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Acrescente-se que, considerando os dois conceitos de literatura cor-


rentes no século XIX, opta Sotero pelo conceito amplo, mais conforme
às tradições clássico-humanísticas com que se identificava, preterindo
assim uma definição de literatura restrita e moderna, que, de resto, só
prevaleceria nos estudos literários a partir do início do século XX. Ca-
racteriza pois seu objeto como segue:

A palavra literatura, [...] tomada em sentido lato, abrange todos os conheci-


mentos humanos, porque tudo quanto o homem cogita e inventa, escreve e
publica em relação ao mundo intelectual, cai sob o domínio da literatura e
é objeto de estudo para o literato. Debaixo deste amplo ponto de vista a lite-
ratura é uma verdadeira iniciação em todas as artes e ciências, e a profissão
do literato um dos sacerdócios mais augustos de que possa ser investido o
homem para proveito do homem.
Já vedes que vastíssimo é o campo a percorrer para os que se propõem o
estudo das letras, porque não tem ele outros limites senão o que resta in-
ventar, conhecer e aprofundar no mundo intelectual (Reis, 1866, v. 1, p. 3).

Ora, tal concepção funciona coerentemente como critério de sua se-


leção de autores, razão por que, ao lado de escritores stricto sensu — San-
ta Rita Durão, Basílio da Gama, Sousa Caldas, Gonçalves Dias, Odorico
Mendes —, situa, no mesmo plano, o marquês de Maricá, Mont’Alverne,
Antônio Henriques Leal e João Francisco Lisboa, cultores de gêneros
que, segundo a mencionada definição restrita de literatura, que preva-
leceu no século XX, não se consideram propriamente literários. E do
mesmo modo, na lista de autores vivos que refere de passagem na Lição
VIII, coloca, ao lado de Gonçalves de Magalhães e Araújo Porto Alegre,
tomados como poetas, os oradores Antônio Carlos Ribeiro de Andrada
e Bernardo Pereira de Vasconcelos, além de Pereira da Silva, citado na
condição de historiador.

espancar as trevas de quem te procurava para iluminá-lo com a muita luz que possuías; que
bem mereceste da pátria, mas também o pedestal, onde se ergue vivedoira a tua memória,
firma-se em nossos corações agradecidos! Três gerações quase inteiras de teus conterrâneos
passaram pela fieira de teu ensinamento e se apuraram no crisol de teu espírito esclarecido,
ouvindo tuas conceituosas e sábias lições, e são os melhores pregoeiros de teu nome” (Leal,
1987 [1873], p. 69).
Apresentação  19

Observe-se, por fim, quanto aos critérios de Sotero para a compo-


sição de seu corpus, que o conceito restrito de literatura, apesar de mi-
noritário no Oitocentos, não era desconhecido entre nós, como se vê
na seguinte definição formulada por Santiago Nunes Ribeiro em 1843,
mais de 20 anos antes, portanto, da elaboração e publicação do Curso de
literatura portuguesa e brasileira:

[A] palavra literatura na sua mais lata acepção significa a totalidade dos
escritos literários ou científicos, e é neste sentido que dizemos “literatura
teológica, médica, jurídica.” Mas daqui se não segue que devamos admi-
tir tal acepção quando se trata da literatura propriamente dita. Ninguém
ainda procurou a literatura italiana, inglesa ou francesa nas Memórias da
Academia del Cimento, nas Transações filosóficas ou no Journal des Savants
ou de Physique. Não é de Lancisi, Galileu, Volta e Galvani que se nos fala
na história literária, não de Boyle, Cavendish, Davy, etc., mas de Dante, Pe-
trarca, Ariosto, Maquiavel, Tasso, Shakespeare, Milton, Bossuet, Corneille
(Ribeiro, 2014 [1843], p. 173).

Opção conservadora, portanto, a de Sotero, ao identificar-se com o


conceito amplo, até porque não o fez por ignorar a concepção mais mo-
derna, já corrente em seu tempo, como demonstra a ressalva que faz
logo após apresentar sua definição de literatura:

Muitos literatos, porém, e com especialidade dos que têm tratado ex-profes-
so da matéria, concordam em distinguir a literatura das ciências e da eru-
dição propriamente dita, limitando-a unicamente ao estudo daquele ramo
de conhecimentos nossos a que se dá o nome de humanidades ou belas-
-letras, isto é, ao estudo da poesia, da eloquência, da história. Ainda tomada
a palavra neste sentido restrito, são preliminares indispensáveis, ou antes,
parte integrante da literatura: a gramática geral ou estudo comparado das
línguas, a filosofia ou ciência dos princípios, a história, a crítica, a retórica, a
geografia, a aritmética, a geometria e noções elementares de todos os outros
conhecimentos (Sotero, 1866, v. 1, p. 3).

Chama atenção, ainda, a total ausência de ficcionistas no corpus


montado por Sotero, uma vez que, na época em que profere suas li-
ções e publica os volumes do Curso, Macedo, por exemplo, havia muito
20  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

brindara o público brasileiro com o seu A Moreninha (1844), e Alencar


já dispunha de sólida reputação como romancista, tendo até então pu-
blicado O Guarani (1857), Lucíola (1862), Diva (1864) e Iracema (1865).
Ambos ainda viviam, porém, nos anos de 1860, e não seria de esperar-se
que Sotero lhes abrisse uma exceção, dado que sua formação conserva-
dora certamente o impedia de reconhecer no romance, gênero então
cercado de preconceitos, objeto digno da atenção dos eruditos.11
Quanto a poetas do século XIX, também são de estranhar-se as
omissões. As referências, como vimos, se restringem a Gonçalves de
Magalhães e Araújo Porto Alegre, cujas obras, contudo, dado que ainda
viviam na década de 1860, Sotero se exime de estudar analiticamen-
te. Mas o que dizer de poetas como Álvares de Azevedo, Casimiro de
Abreu, Junqueira Freire, todos então dotados da triste credencial de já
mortos? A razão é evidente: Sotero, formado no gosto clássico, entre os
românticos só valorizava os que menos o eram — Magalhães e Porto
Alegre —, desdenhando assim dos românticos propriamente ditos —
Azevedo, Abreu e Freire —, aliás mais tarde ditos ultrarromânticos, na
caracterização das histórias literárias.12
Observe-se, finalmente, que, dos nove autores que compõe o corpus
com que trabalha analiticamente Sotero, quase metade — quatro — são
maranhenses, o que constitui mais um ponto negativo para um juízo
crítico acerca de sua contribuição, à medida que se verifica um claro pri-
vilégio de sua província, em detrimento da representatividade nacional
a que costumam aspirar as histórias literárias.

11
  O humilde e mestiço Teixeira e Sousa, cuja novela O filho do pescador se publicara em
1843, embora morto em 1861, muito menos teria credenciais para ser reconhecido por
Sotero, se é que o mestre maranhense chegou a ter alguma notícia dele.
12
 Na Introdução ao volume póstumo do Curso — o de 1873 —, assinada pelo seu
organizador, Américo Vespúcio dos Reis, filho do autor, se lê, no entanto, o seguinte: “Teria
[Sotero], de certo, aberto mais outra honrosa exceção [isto é, tratar de autor vivo], se tivesse
vivido mais algum tempo, para o Sr. Araújo Porto Alegre, pois lhe ouvimos por muitas
vezes que pretendia analisar o Colombo deste autor, poema a que fazia grandes elogios.
Também manifestou a intenção de apreciar as obras de Álvares de Azevedo” (in Reis, 1866-
1873, v. 5, p. VI). Quanto a Porto Alegre, nenhuma surpresa na revelação, vistos os pálidos
traços de romantismo que a custo sobrenadam no neoclassicismo oceânico de sua poesia;
o apreço, contudo, por Álvares de Azevedo, certamente o mais “moderno” dos poetas que
despontaram nos anos de 1850 no Brasil, a de fato proceder criaria um problema para
explicar-se a coerência das escolhas do professor Sotero.
Apresentação  21

Tal o cânone soteriano: quantitativamente reduzido, construído com


critérios conservadores, mais conformado ao gosto clássico e tradicio-
nal do que ao romântico e moderno, e, por fim, talvez mais maranhense
do que propriamente nacional.

A organização da obra, embora à primeira vista confusa, à medida que


segue praxes editoriais da época — donde níveis sucessivos chamados to-
mos, livros, partes, seções e lições —, revela-se coerente a uma análise mais
atenta. Para a necessária contextualização dos segmentos aqui reprodu-
zidos, torna-se assim indispensável uma descrição do conjunto da obra.
Assinale-se em primeiro lugar sua fidelidade à circunstância didática
que lhe deu origem: intitula-se Curso, e suas subdivisões básicas consis-
tem no registro escrito de preleções de aula, por isso chamadas lições, e
não capítulos. Esse condicionamento originário explica também o sinal
mais evidente de sua conformação retórica — tão arguída por Sílvio
Romero, como vimos —, constituído pela manutenção, no texto escrito,
de marcas do discurso oral público, que se podem exemplificar com a
primeira frase da Lição I: “Bem ou mal colocado nesta cadeira, terei,
Senhores, de ocupar a vossa atenção com uma série de preleções sobre
literatura [...]” (1866-1873, v. 1, p. 1).13
Do ponto de vista do ordenamento da matéria, a obra obedece ao
seguinte plano:

13
  No romance Casa de pensão (1884), de Aluísio Azevedo, Sotero dos Reis faz duas “apa-
rições” fugazes. Como documentam sua atuação como professor, chegando a referir o tipo
de sua voz, vale a pena citar as cenas: “Houve muita formalidade [no exame de portu-
guês]. A congregação era presidida pelo Sotero dos Reis; havia vinte e tantos examinandos”
(Azevedo, 1965 [1884], p. 25); “Era a mesma salinha do mestre-escola, a mesma banca de
paparaúba manchada de tinta, o mesmo fanhoso Sotero dos Reis presidindo a mesa [...]”
(ibid., p. 217). Se acrescentarmos aos f lashes do romancista o testemunho de um contem-
porâneo — “Tinha [Sotero] o dom da facilidade e da clareza, mas nenhuma eloquência.
Sempre a mesma frase, sempre a mesma expressão, sempre a mesma frieza [...]” (Correia,
1878, p. 69). —, podemos fazer uma ideia razoável da monotonia de suas aulas, se é que, no
ato de ministrá-las, limitava-se o professor à mera leitura das lições — inclusive com suas
extensíssimas citações —, na forma em que aparecem publicadas nos volumes do Curso.
22  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

1 - Divide-se em cinco volumes, na folha de rosto designados respec-


tivamente pelo substantivo tomo seguido do ordinal correspondente, e
no índice pelo substantivo volume antecedido do ordinal. O tomo pri-
meiro saiu em 1866; o segundo e o terceiro, em 1867; o quarto, em 1868;
e o quinto, em 1873.14 Cada tomo se inicia com uma Introdução, com a
particularidade de que, no caso do tomo segundo, o rótulo “Introdução”
acha-se substituído pelo título “Duas palavras”.
2 - O tomo primeiro é inteiramente preenchido pelo livro I, indica-
ção que ocupa a página XXIII, embora não figure no índice. O tomo
segundo compreende o livro II, o que se deduz do conteúdo dos demais
tomos, pois a expressão “livro II” não consta no referido tomo segundo.
O tomo terceiro encontra-se dividido em livro III e livro IV, conforme
se verifica tanto no índice quanto nas respectivas folhas de abertura de
cada qual. O tomo quarto se subdivide em livro V e livro VI, igualmente
sinalizados no índice e em suas respectivas folhas de abertura. O tomo
quinto, por sua vez, abrange os livros VII e VIII, também devidamente
discriminados no índice e nas folhas de abertura respectivas.
3 - Os livros — dos quais o VI apresenta a particularidade de possuir
o subtítulo “literatura brasileira”, inscrito no índice e na sua folha de
abertura — se acham subdivididos em seções, consecutivamente nume-
radas no interior de cada livro mediante algarismos romanos.
4 - Nos tomos quarto e quinto recorre-se ainda ao substantivo parte,
seguido de algarismos romanos, para sinalizar segmentos da obra. As-
sim, no tomo quarto, o livro VI — subintitulado “literatura brasileira”,
conforme já assinalamos — apresenta-se subdividido em parte I e parte
II, cada qual por sua vez subdividindo-se em seções; e, no tomo quinto,
encontra-se também a subdivisão em parte I e parte II, o que, no entan-
to, carece de qualquer funcionalidade, pois as referidas parte I e parte II
coincidem respectivamente com os livros VII e VIII, ou, dizendo talvez
de modo mais preciso, se sobrepõem a estes livros.
5 - Por fim, as células mínimas da obra são chamadas lições, apresen-
tando-se numeradas consecutivamente com algarismos romanos, em
sequência não interrompida pelas divisões em tomos, livros, partes, se-
ções. Temos, assim, 103 lições, além de uma introdução para cada tomo.
14
  O longo tempo decorrido entre a publicação do quarto e do quinto tomos, segundo es-
clarece a Introdução deste último (cf. v. 5, p. V), resultou de dificuldades para a obtenção de
financiamento, bem como, em seguida, da morte do autor, ocorrida em 1871.
Apresentação  23

6 - No último tomo, além dos livros VII e VIII, há um segmento fi-


nal autônomo, intitulado “Literatura bíblica”, e subdividido em seis lições
consecutivamente numeradas com algarismos romanos. Segundo se ex-
plica na Introdução desse tomo (cf. v. 5, p. VII), as lições correspondentes
a esse segmento, com exceção da primeira, haviam sido antes publicadas
no Semanário Maranhense, tendo sido acrescentada à obra essa parte final
apenas para que o volume atingisse dimensão considerada graficamente
cômoda: 400 páginas mais ou menos, conforme esclarece a mesma fonte.
Veja-se a seguir o esquema da distribuição da matéria pelos segmen-
tos dos diversos níveis:

1 - Tomo primeiro
- Introdução
- Livro I
- Seção I: conceitos de base e a língua
- Lição I a VIII: discurso preliminar (definição, divisão, objeto e fim
da literatura; melhor método para seu ensino); origem, formação,
polimento, fixação, f lorescimento, decadência e restauração da lín-
gua portuguesa, de fins do século XII a meados do XIX
- Seção II: primeiro período da literatura portuguesa (poetas, de fins
do século XII a meados do XVI)
- Lição IX a XII: D. Dinis, Bernardim Ribeiro, Gil Vicente, Sá de Mi-
randa
- Seção II: primeiro período da literatura portuguesa (prosadores, do
segundo quartel do século XV a meados do XVI)
- Lição XIII a XVII: D. Duarte, Gomes Eanes Azurara, Garcia de Re-
sende, Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda
2 - Tomo segundo
- Duas palavras ao leitor
- Livro II: segundo período da literatura portuguesa
- Seção I
- Lição XVIII a XIX: Antônio Ferreira
- Seção II
- Lição XX a XXVIII: Camões épico
- Seção III
- Lição XXIX a XXXII: Camões lírico e dramático
24  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

- Seção IV
- Lição XXXIII a XXXV: João de Barros

3 - Tomo terceiro
- Introdução
- Livro III: terceiro período da literatura portuguesa
- Seção I
- Lição XXXVI: Vasco Mousinho de Quevedo Castel-Branco
- Lição XXXVII: Gabriel Pereira de Castro
- Seção II
- Lição XXXVIII a XLI: frei Luís de Sousa
- Seção III
- Lição XLII: abade Jacinto Freire de Andrade
- Seção IV
- Lição XLIII a XLIX: padre Antônio Vieira
- Livro IV: quarto período da literatura portuguesa
- Seção I
- Lição L a LIII: Antônio Correia Garção
- Seção II
- Lição LIV a LVIII: Antônio Dinis da Cruz e Silva

4 - Tomo quarto
- Introdução
- Livro V: quarto período da literatura portuguesa (continuação)
- Seção I
- Lição LIX a LXV: Francisco Manuel do Nascimento, vulgo Filinto
Elísio
- Seção II
- Lição LXVI a LXIX: Manuel Maria Barbosa du Bocage
- Livro VI: Literatura brasileira
- Parte I: precursores
- Seção I
- Lição LXX a LXXI: frei José de Santa Rita Durão
- Seção II
- Lição LXXII a LXXIII: José Basílio da Gama
- Seção III
Apresentação  25

- Lição LXXIV a LXXVII: padre Antônio Pereira de Sousa Caldas


- Parte II: literatura brasileira propriamente dita
- Seção I
- Lição LXXVIII e LXXIX: Manuel Odorico Mendes
- Seção II
- Lição LXXX a LXXXIV: Antônio Gonçalves Dias – poesia

5 - Tomo quinto
- Introdução
- Livro VII / Parte I: literatura brasileira propriamente dita (conti-
nuação)
- Seção I
- Lição LXXXV e LXXXVI: Antônio Gonçalves Dias – teatro e prosa
- Seção II
- Lições LXXXVII e LXXXVIII: marquês de Maricá
- Seção III
- Lições LXXXIX e XC: frei Francisco de Mont’Alverne
- Seção IV
- Lição XCI: Antônio Henriques Leal
- Seção V
- Lição XCII a XCVI: João Francisco Lisboa
- Livro VIII / Parte II: quinto período da literatura portuguesa
- Seção I
- Lição XCVII a CII: visconde de Almeida Garrett
- Seção II
- Lição CIII: Alexandre Herculano
- Literatura bíblica
- Lição I: generalidades
- Lição II a VI: Jó, Davi, Salomão, Isaías, Jeremias

O Curso de literatura portuguesa e brasileira integra-se numa corren-


te de opinião segundo a qual a literatura nacional do Brasil só se teria
constituído plenamente após a independência. Quanto a esse aspecto,
26  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Sotero dos Reis se aproxima de Fernandes Pinheiro, que, nas suas obras
— Curso elementar de literatura nacional (1862) e Resumo de história
literária (1873) —, propõe a mesma solução para o problema da origem
da literatura brasileira. Afasta-se, consequentemente, da concepção de
uma origem mais remota, situável no século XVI ou XVII, concepção
que, partindo de Januário da Cunha Barbosa, e prosseguindo, entre
outros, com Gonçalves de Magalhães, Nunes Ribeiro, Pereira da Silva,
Joaquim Norberto, Varnhagen, Antônio Henriques Leal, Sílvio Rome-
ro e José Veríssimo, estava destinada a tornar-se amplamente aceita, a
ponto de instalar-se no nosso sistema de ensino literário, na condição de
evidência refratária a qualquer problematização.15 Assim, o Curso situa
no século XVIII o início da nossa história literária, com os poetas que
considera “precursores” (cf. Reis, 1867, v. 3, p. VIII e IX) de uma tradi-
ção especificamente brasileira — Durão, Basílio e Sousa Caldas —, para
depois tratar dos representantes da “literatura brasileira propriamente
dita” (cf. Reis, 1868, v. 4, p. V e 286), escritores pertencentes ao período
posterior a 1822: Odorico Mendes, Gonçalves Dias, marquês de Maricá,
Mont’Alverne, Antônio Henriques Leal e João Francisco Lisboa.
A presente edição tem por objetivo disponibilizar uma das obras
fundadoras da historiografia literária do Brasil, a fim de que se possam
cotejar sua concepção e seus fundamentos teóricos com os rumos pos-
teriormente tomados por esses estudos entre nós, de fins do século XIX
a este início do XXI. Assim, aqui se reproduzem as partes preambulares
da obra — as introduções de cada um dos cinco volumes, bem como as
Lições I, VI, VII e VIII —, imprescindíveis para a compreensão tanto
do seu sistema de conceitos quanto da tese do autor sobre a relativa dis-
tinção entre as literaturas nacionais do Brasil e de Portugal, bem como
todo o seu segmento dedicado à literatura brasileira, que se estende da
Lição LXX à XCVI, correspondente aos livros VI e VII.
Esclarecemos, por fim, que, se a edição operou alguns cortes nas par-
tes preambulares, visando a eliminar passagens impertinentes para os

15
  Ainda que, de acordo com praxe dos nossos manuais de história literária e do sistema de
ensino consolidada a partir de fins do século XIX e até hoje vigente, as origens da literatura
brasileira sejam situadas no século XVI, convém lembrar que um dos mais importantes
ensaios novecentistas sobre a questão propõe solução semelhante à formulada no Curso
de Sotero dos Reis. Referimo-nos, naturalmente, à obra de Antonio Candido, Formação da
literatura brasileira (1959).
Apresentação  27

seus fins, as Lições dedicadas aos autores brasileiros foram reproduzidas


na íntegra. Não se estranhe, pois, a manutenção das extensas citações
abundantes no texto, cujo eventual corte desfiguraria um dos diferen-
ciais da obra em relação a publicações congêneres, aliás bem observado
por Antonio Candido, que destaca seu “espírito de florilégio” (Candido,
1971 [1959], v. 2, p. 356), bem como o “método ilustrativo” (ibid., p.
393) empregado pelo autor.16

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p. 157-167.

16
  Aproveitaram-se, neste ensaio introdutório, trechos de matérias do autor antes publica-
das, com adaptações e emendas pontuais, a saber: “O culto brasileiro da literatura portu-
guesa: suas raízes oitocentistas” (in: MONTEIRO, Conceição & LIMA, Teresa Marques de
Oliveira, org. Dialogando com cultura: questões de memória e identidade. Niterói [RJ]: Vício
de Leitura, 2003. p. 139-154; SOUZA, Roberto Acízelo de. Introdução à historiografia da li-
teratura brasileira. Rio de Janeiro: Eduerj, 2007. p. 67-79.); “Identidade nacional e história da
literatura: as contribuições de Fernandes Pinheiro e Sotero dos Reis” (in: JOBIM, José Luís &
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257-269.); “Francisco Sotero dos Reis” (in: SOUZA, Roberto Acízelo de, org. Historiografia
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CRITÉRIOS DA EDIÇÃO

Para a organização geral da edição e o estabelecimento do texto fo-


ram observados alguns critérios que convém explicitar:

1º - Utilizou-se como texto-fonte a edição única que teve a obra, a


saber:
REIS, Francisco Sotero dos. Curso de literatura portuguesa e bra-
sileira; professado por Francisco Sotero dos Reis no Instituto de Hu-
manidades da Província do Maranhão; dedicado pela autor ao diretor
do mesmo Instituto, o Dr. Pedro Nunes Leal. Maranhão: s. ed., 1866-
1873. 5 v.
As referências das diversas partes reproduzidas na edição encon-
tram-se em notas de rodapé, constituídas pela indicação do respectivo
volume (com o ano de publicação entre parênteses) e das páginas de
início e de fim da parte em questão.

2º - Dela se reproduziram as lições dedicadas aos autores brasilei-


ros (excluindo-se, pois, aquelas dedicadas a escritores portugueses),
por três motivos conjugados: 1 – adotou-se a perspectiva que preva-
leceu na historiografia da literatura brasileira, perspectiva que, rom-
pendo com a postulação de relativa unidade literária da lusofonia —
posição, aliás, do próprio Sotero dos Reis —, instalou a ideia de uma
separação precoce entre a literatura do Brasil e a de Portugal, fazendo
assim a “independência literária” preceder a independência política,
e incluindo, por conseguinte, autores do período colonial no corpus
da literatura brasileira; 2 – o conjunto das lições selecionadas é sufi-
cientemente amplo e representativo do aparato conceitual, métodos e
técnicas utilizados pelo autor no seu trabalho historiográfico, analí-
tico e crítico; 3 – suplementarmente, determinou a exclusão da parte
Critérios da edição  33

portuguesa do Curso a própria viabilidade financeira da edição, pois


não haveria recursos orçamentários para se reeditarem os cinco volu-
mes originais da obra.

3º - Tendo em vista o propósito de franquear ao leitor de hoje acesso


ao sistema conceitual da obra, e não o de conservá-la como documento
de interesse filológico, nem sempre se preservou a formulação original
do texto. Assim, atualizamos a ortografia, e em alguns casos, para me-
lhor inteligibilidade, modernizamos a pontuação, dado que, neste par-
ticular, as praxes vigentes na época da elaboração do texto por vezes
divergem das normas atualmente observadas.

4º - Corrigiram-se os erros tipográficos evidentes.

5º - Conservaram-se as notas do autor, bem como as notas dos au-


tores dos trechos citados, identificadas como tal por observação entre
parênteses que se lhes segue, a fim de distingui-las das notas do organi-
zador.

6º - Destas, por sua vez, servimo-nos moderadamente, no pressu-


posto de que a elucidação de miudezas — sobre questões pontuais, e de
resto facilmente solucionáveis pelos próprios leitores — pouco ou nada
contribui para o já referido objetivo da edição, isto é, dar a conhecer
ao leitor de hoje o sistema conceitual da obra, naturalmente um tanto
afastado do referencial teórico e metodológico dos estudos literários da
atualidade.

7º - Em geral, os capítulos pertinentes segundo os fins desta edição


foram reproduzidos na íntegra, conservando-se, inclusive, suas exten-
sas citações, cuja eventual supressão desfiguraria duas características
essenciais da obra: seu funcionamento secundário como antologia (que
se acrescenta à sua condição primária de história da literatura) e sua
propensão para o comentário analítico de textos, operação, como é ób-
vio, dependente da exibição da matéria textual objeto das análises. No
entanto, algumas passagens impertinentes para os fins desta edição fo-
ram suprimidas pelo organizador, sendo indicados tais cortes por linhas
pontilhadas. Quanto aos cortes do próprio autor nas longas passagens
34  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

que cita, nem sempre sinalizados uniformemente na edição-fonte, assi-


nalaram-se nesta edição mediante reticências entre colchetes: [...].

8º - Acréscimos, para adaptações sintáticas ou ortográficas ditadas


por supressões no texto-fonte, foram colocados entre colchetes: [ ].
CURSO DE LITERATURA PORTUGUESA E BRASILEIRA
FUNDAMENTOS TEÓRICOS
INTRODUÇÃO [AO VOLUME 1]*

O espaço de mais de três séculos que abrange este primeiro volume


do Curso de literatura que sai atualmente à luz é sem dúvida o período
literário menos importante no que se refere ao mérito intrínseco dos
autores, mas o mais certamente no que respeita à formação e aperfei-
çoamento da língua, que todo literato deve conhecer a fundo. É o menos
importante quanto ao primeiro ponto, porque apenas conta dois poetas
dignos deste nome, Bernardim Ribeiro e Gil Vicente, e três prosadores
distintos por seu talento, el-rei D. Duarte, Azurara e Bernardim Ribeiro;
o mais quanto ao segundo, porque a língua, que nascera em fins do XII
ou princípios do XIII, se desenvolveu e poliu durante ele a ponto de ser
o idioma culto em que Camões, que com Ferreira começa o segundo
período literário, compôs os seus Lusíadas, e João de Barros, que é tam-
bém o primeiro prosador do mesmo, escreveu as suas Décadas da Ásia,
ou História dos feitos dos portugueses na conquista e descobrimento dos
mares e terras do Oriente.
............................................................................................................................
[O] português, o mais moderno de todos os idiomas que procedem
do latim, se formou, poliu e tornou língua culta no espaço de quatro
séculos incompletos, como se evidencia de sua literatura que logo no
princípio do segundo período literário começou a dar brado na Europa
na obra dos dois autores mencionados, que foram os mais notáveis do
seu século, e dos quais o primeiro não tem superior na poesia épica.
O português é também de todos os modernos idiomas derivados do
latim o que mais se assemelha a este na estrutura das vozes e na índo-
le, como [...] o atestam algumas passagens compostas por curiosos, as
quais tanto se podem ter na língua-mãe como na derivada, e de que

*  V. 1 (1866), p. V-XXII.
Fundamentos teóricos  41

aqui produzo um exemplo, extraído de Manuel Severim de Faria no seu


Elogio à língua portuguesa. Ei-lo:

Quam gloriosas memorias publico considerando quanto vales, nobilissima


lingua. Com tua facundia excessivamente nos provocas, excitas, inflamas!
Quam altas vitorias procuras. Quam celebres triumphos speras, quam ex-
cellentes fabricas fundas, quam perversas furias castigas, quam feroces in-
solencias rigorosamente domas, manifestando de prosa et de metro tantas
elegancias latinas.

Esta analogia tão perfeita com o latim, na qual leva o português van-
tagem a todos os idiomas da mesma filiação, provém, quanto a mim,
de se haver ele, por isso mesmo que é o mais moderno dos seus aná-
logos, polido e aperfeiçoado, já quando, desde a invasão dos bárbaros
que destruíram o Império Romano, se entrou a fazer um estudo sério
do latim em toda a Europa e por conseguinte em Portugal, ou depois
do estabelecimento das letras na Itália, ao passo que o italiano, e ainda
o espanhol, eram antes disso línguas cultas, não podendo o francês for-
necer argumentos em contrário, porque foi refeito do antigo romance,
ou língua romana, que precedeu à sua formação. Coincide esta minha
opinião com o fato incontestável de se haver o português, que era a prin-
cípio uma verdadeira algaravia, aproximado tanto mais do latim quanto
mais se poliu.
Analiso neste período alguns autores de mérito literário mui some-
nos, contra o plano que concebi, ou porque só neles se podem bem co-
nhecer as diversas modificações pelas quais foi passando o português,
que devia fixar-se no seguinte período com o aparecimento dos Lusía-
das, de Camões, e cujo primeiro balbuciar e crescente desenvolvimen-
to importa não perder de vista, ou porque com seus escritos, bem que
medíocres, deram algum passo na via do progresso artístico. D. Dinis,
por exemplo, foi não só o nosso primeiro poeta, mas o nosso primeiro
escritor, e por conseguinte só nele se pode bem avaliar o que era a poe-
sia e língua portuguesa do seu tempo; Sá de Miranda, poeta e prosador,
foi o introdutor dos metros toscanos e de diversos gêneros de poesia,
bem como da comédia clássica, e como tal só ele nos pode dar ideia
dos primeiros acanhados passos da arte nascente; Garcia de Resende,
cronista, escreveu em uma época em que a língua passou por notável
42  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

modificação, a qual só na sua prosa rasteira comparada com a poética de


Bernardim Ribeiro, seu contemporâneo, se pode bem apreciar.
Nos períodos subsequentes, porém, ou depois que a língua se fixou
e a arte foi levada ao seu auge, circunscrevo, como é de razão, a minha
análise às verdadeiras produções do gênio, ou ao que escreveram de me-
lhor os principais poetas e prosadores, cuja lição é a mais proveitosa,
ou, para bem dizer, a única em que se pode aprender a formar o gosto.
Analisar indistintamente a obra dos escritores de qualquer língua seria
trabalho, sobre superior às forças de um só homem, sem utilidade real
para a mocidade estudiosa, à qual se deve apontar o melhor caminho a
seguir. Assim, todos os que o tentaram não têm feito mais que dar-nos
resumos superficialíssimos, em que pouco ou nada há que aprender,
porque o exame, que podia ser proveitoso, concentrado nas melhores
obras de algumas dezenas de autores escolhidos, torna-se sumamente
ligeiro e infrutífero, estendido a todas e quaisquer de centenas e cente-
nas deles.
Não quero com isto dizer que seja completo o meu trabalho debaixo
do ponto de vista em que o concebi; não, não nutro semelhante vaidade;
o que apresento é apenas um imperfeito ensaio cuja ideia me foi suscita-
da pela leitura das obras de alguns modernos literatos franceses, ensaio
que pode ser melhorado pelos que depois de mim trilharem a mesma
estrada. A questão é unicamente de método no inspirar amor ao estudo
das belas-letras, sem cujo conhecimento não pode haver sólida educa-
ção civil e científica. Pode ser que eu esteja enganado, mas parece-me
que o método seguido até hoje nos dois países de língua portuguesa não
é o mais apropriado ao fim que se tem em vista.
............................................................................................................................
Acrescentarei agora algumas palavras sobre a origem deste livro que
me constitui autor de mais uma obra que estava longe de propor-me, e
que, por direita razão, dedico ao meu amigo o Sr. Dr. Pedro Nunes Leal,
pois, a não ser ele, que instantemente me convidou a ler na cadeira de
literatura criada no Instituto de Humanidades, de que é mui digno di-
retor, vencendo a minha repugnância a fazê-lo, nunca teria certamente
existido. Assim, se algum mérito tiver esta obra, que ofereço ao público
mais confiado em sua benevolência que no cabedal das próprias luzes,
a ele principalmente deve ser atribuído, que me animou a empreender
um trabalho provavelmente superior às minhas débeis forças, mas que
Fundamentos teóricos  43

tenho me esforçado por desempenhar com a melhor vontade, se não


com a suficiência desejável.
............................................................................................................................
O Instituto de Humanidades, cujo progresso tem sido constante des-
de a época de sua fundação, é hoje um dos melhores estabelecimentos
de educação do Brasil em tudo que respeita o regímen econômico e dis-
ciplinar, e o único de empresa particular que mantém uma cadeira de
literatura, tanto para seus alunos como para aqueles que querem assistir
às respectivas preleções, pois não consta até agora que haja outro no
Império que o faça. Iniciado em todos os melhoramentos da educação
da mocidade nos países mais cultos da Europa, e inteiramente dedicado
ao fim que se propôs, o seu ilustrado e infatigável diretor não olha para
realizá-los aqui a sacrifícios atuais, que podem ser compensados no fu-
turo com o crédito crescente da instituição, que se acha em bom pé de
prosperidade.
Distingue-se ainda este estabelecimento por compreender no seu
plano geral de estudos, que é completo para a instrução primária e se-
cundária aperfeiçoada, que nele se recebe de professores escolhidos,
uma cadeira de gramática geral aplicada à língua portuguesa, cujo es-
tudo é mui pouco cultivado no Brasil, que, havendo dado tão largos
passos nas vias do progresso intelectual, com o atesta a sua nascente e
já brilhante literatura, tem-se nisto descuidado de colocar a par de Por-
tugal, onde se faz um estudo muito mais sério e refletido da língua que
falamos e devemos saber com perfeição.
O conhecimento aperfeiçoado da língua deve acompanhar todos os
outros, que nunca podem ser cabais sem ele; e admira que o nosso go-
verno, tão solícito em promover entre nós todo e qualquer gênero de co-
nhecimentos humanos, se tenha descuidado deste, que é um preliminar
indispensável para os mais. O Maranhão felizmente, que a nenhuma ou-
tra província do Império cede em bons desejos de caminhar para diante
nas vias do progresso intelectual, conta dois estabelecimentos discipli-
nares para o estudo especial da língua, um no Liceu, outro no Instituto
de Humanidades, completado pelo atual curso de literatura.
Não obstante ser o Maranhão uma província de segunda ordem, e
inferior a muitos respeitos às outras do Império, seria muito para dese-
jar, no interesse do progresso das letras, que as suas irmãs a imitassem
no amor ao estudo da língua materna e literatura que dela dimana: o
44  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

melhor, e com especialidade em matéria de progresso intelectual, deve


ser sempre adotado em qualquer parte que se encontre, sem que daí
venha o menor desar a quem o adota.
Um estabelecimento de instrução com tantas condições vantajosas
para a educação da mocidade como o Instituto de Humanidades, funda-
do pelo esforço de um só homem, e sem a menor proteção do governo,
numa província que não conta aliás com os recursos das de primeira
ordem do Império, prova com toda a evidência quanto se podia fazer
no Brasil em benefício do progresso intelectual, se o ensino fosse mais
bem dirigido e regulado, partindo o impulso dos supremos poderes do
estado.
LIÇÃO I*

Discurso preliminar, que compreende a definição, divisão, objeto e fim da


literatura, bem como o melhor método de a ensinar e aprender em cursos,
em que se comece a análise pelos poetas, que em quase todas as literatu-
ras precederam os prosadores. – Introdução sobre a língua em sete lições
ou discursos, que compreendem a origem, formação, polimento, fixação,
florescimento, decadência, restauração, ou todas as alternativas de pro-
gresso e decadência da língua portuguesa, desde a época da sua formação
em fins do século XII ou princípios do XIII, até meados do século XIX,1
ou até nossos dias, acompanhando sempre as da literatura e da existência
política da nação, com a enumeração dos principais poetas e prosadores
que a poliram, fixaram, abrilhantaram, corromperam, restauraram, e
um juízo sucinto sobre os mesmos.

Bem ou mal colocado nesta cadeira, terei, Senhores, de ocupar a


vossa atenção com uma série de preleções sobre literatura, assunto tão
importante como elevado, porque respeita essencialmente à cultura da
inteligência, ou ao que há mais nobre no homem e o assemelha à divin-
dade. A tarefa de que me encarreguei por convite do ilustrado diretor do
Instituto de Humanidades, o Sr. Dr. Pedro Nunes Leal, para desenvolvi-
mento dos alunos mais adiantados do estabelecimento, é sem dúvida su-
perior ao fraco cabedal de luzes de que posso dispor; mas, intimamente
convencido de que ensinar é aprender, farei os possíveis esforços para
dar cumprimento ao que de mim se exige, apelando para vossa bene-
volência, que me desculpará os erros para atender unicamente aos bons
desejos de que me acho possuído. Peço pois a vossa benévola atenção
por alguns momentos.
46  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

***

A literatura, como o está indicando a palavra latina littera donde


vem, é a expressão dos conceitos, sentimentos e paixões do espírito hu-
mano, por meio da palavra escrita. Mr.2 de Bonald,3 literato distinto, a
define mais concisamente por este modo: “A literatura é a expressão da
sociedade.” M.4 de Lamartine,5 literato não menos distinto que o primei-
ro, a define por estoutro modo: “A literatura é a expressão memorável do
homem transmitida ao homem por meio da palavra escrita.”
Estas definições, posto que diversas nas palavras, estão nada obstante
de acordo na essência, por isso que todas, e cada uma delas, compreen-
dem todo o definido, e só o definido.
A palavra literatura, pois, tomada em sentido lato, abrange todos os
conhecimentos humanos, porque tudo quanto o homem cogita e inven-
ta, escreve e publica em relação ao mundo intelectual, cai sob o domínio
da literatura e é objeto de estudo para o literato. Debaixo deste amplo
ponto de vista, a literatura é uma verdadeira iniciação em todas as artes
e ciências, e a profissão do literato um dos sacerdócios mais augustos de
que possa ser investido o homem para proveito do homem.
Já vedes que vastíssimo é o campo a percorrer para os que se pro-
põem o estudo das letras, porque não tem ele outros limites senão o que
resta inventar, conhecer e aprofundar no mundo intelectual.
Muitos literatos, porém, e com especialidade dos que têm tratado ex-
-professo da matéria, concordam em distinguir a literatura das ciências
e da erudição propriamente dita, limitando-a unicamente ao estudo da-
quele ramo de conhecimentos nossos a que se dá o nome de humanida-
des ou belas-letras, isto é, ao estudo da poesia, da eloquência, da história.
Ainda tomada a palavra neste sentido restrito, são preliminares in-
dispensáveis, ou antes, parte integrante da literatura: a gramática geral
ou estudo comparado das línguas, a filosofia ou ciência dos princípios,

2
  Abreviatura de Monsieur.
3
 Louis-Gabriel-Ambroise, visconde de Bonald (1754-1840); pensador tradicionalista,
adversário do Iluminismo.
4
  Abreviatura de Monsieur, que, na edição-fonte, se alterna com Mr. (ver nota 2). Mantivemos
a alternância.
5
  Alphonse de Lamartine (1790-1869); poeta, prosador e político francês, muito influente
na difusão e consolidação do romantismo.
Fundamentos teóricos  47

a história, a crítica, a retórica, a geografia, a aritmética, a geometria e


noções elementares de todos os outros conhecimentos.
Assenta a necessidade desta distinção na limitação de nossas facul-
dades e na curta duração da vida do homem, o qual, distraído por mil
ocupações diversas, não tem tempo para adquirir todos os conhecimen-
tos que são do domínio da literatura, mas unicamente aqueles que es-
tão em relação mais imediata com a humanidade. Assim, poucos são os
homens privilegiados que, entre o grande número de literatos antigos e
modernos, se têm efetivamente distinguido pela universalidade de seus
conhecimentos.
Limitado a um campo menos vasto, e por conseguinte muito mais
fácil de percorrer em todos os sentidos, muito mais possível também se
torna um estudo sério, aprofundado e profícuo da literatura, no meio
das diversas ocupações sociais que absorvem grande parte da vida do
homem. Eis a vantagem da distinção a que me refiro. Tempo virá certa-
mente em que os conhecimentos humanos se generalizem por tal forma
com o progresso da civilização, que o literato seja erudito, e o erudito,
literato.
A literatura em último análise é a expressão do belo intelectual por
meio da palavra escrita, assim como a virtude é a expressão do belo mo-
ral por meio da prática.
O fim da literatura é instruir deleitando, ou tornar, por um trabalho
tão proveitoso como agradável, o homem melhor e mais hábil a preen-
cher os seus deveres para com Deus, para com a sociedade e para consi-
go mesmo, pondo-lhe constantemente diante dos olhos o protótipo do
belo, do grandioso, do sublime, do justo, do honesto.
Para os que as estudam com proveito, são as letras uma útil ocupação
na mocidade, um poderoso recurso na virilidade, uma doce consolação
na velhice; acompanham-nos por toda parte enquanto vivos, fazem-nos
depois de mortos viver na memória dos outros homens; não se perdem
como os bens da fortuna, nem como a consideração proveniente dos
cargos públicos ou da posição social; o que possui cabedal de letras pode
dizer como o sábio da Antiguidade: Omnia mea mecum porto, o que é
meu trago comigo.
Dividem alguns a literatura em literatura clássica e literatura ro-
mântica.
48  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

A literatura clássica é filha do acurado estudo e da bem entendida


imitação dos grandes modelos da literatura grega e romana.
A literatura romântica é filha da inspiração cristã e do espírito cava-
leiroso e aventureiro que dominou na Idade Média, desde o reinado de
Carlos Magno até o tempo das Cruzadas inclusive.
A palavra clássica tem a sua origem na exposição que se faz nas clas-
ses escolares dos escritores da Antiguidade, que, por seu subido mérito
literário e incontestável autoridade, podem servir de modelos.
A palavra romântica tem sua origem na língua romance ou romana,
que substituiu o latim em alguns países da Europa, dominados outrora
pelos romanos, ou na língua em que os trovadores da Idade Média es-
creveram as suas composições.
Esta divisão, porém, tem o inconveniente de excluir a literatura bí-
blica, aliás importantíssima, por sua elevação, majestade e beleza, para
todos os que se dedicam ao estudo das humanidades.
Assim, é muito mais conforme às leis da boa crítica dividir a lite-
ratura em literatura bíblica, literatura clássica e literatura romântica,
porque cada uma delas apresenta feições características, que lhes são
próprias, ou um certo cunho particular, por onde se distingue das
outras.
A literatura deve compreender essencialmente o estudo da história
literária e o das produções do gênio em diversas épocas, ou obras dos
grandes modelos em poesia, em eloquência, em história, e ainda em
ciências, porque, sem um estudo minucioso e acurado que nos identifi-
que com os modelos que se nos oferecem, embebendo-nos, para assim
dizer, em seu espírito, nunca chegaremos a fazer sólidos progressos em
belas-letras.
O defeito de muitos que têm escrito sobre literatura, e com especiali-
dade em português, consiste em se terem limitado quase exclusivamen-
te à primeira parte, sem se fazerem cargo de explicar convenientemente
a segunda, a mais importante, sem dúvida, para os que se propõem este
gênero de estudos, os quais, privados da exposição dela, ficam como à
entrada do templo das artes e ciências, cuja fachada e vestíbulo admi-
ram, sem poder penetrar-lhe o santuário.
Fundamentos teóricos  49

Os franceses modernos, e nomeadamente Mr. Villemain,6 têm com-


preendido melhor a necessidade de fazer um estudo sério e aprofunda-
do desta segunda parte, dando-nos a análise das produções do gênio
em cursos especiais, onde tudo quanto respeita à literatura de diversos
povos é tratado e exposto com o preciso desenvolvimento. Já o sábio
professor inglês Hugo Blair,7 no seu Curso de retórica e belas-letras,8 ti-
nha disto feito um ensaio digno de muito louvor.
O melhor meio pois de aprender a literatura não é fazê-lo por com-
pêndios ou resumos de história literária, que apenas nos apresentam um
juízo sucinto sobre o mérito em geral de cada autor com a data do seu
nascimento, ou da época em que floresceu, e a enumeração das obras
que compôs; é sim ouvir preleções de literatura, dadas em cursos públi-
cos, onde se exponham as belezas e defeitos dos modelos que se ofere-
cem ao nosso estudo, acompanhando-se a análise de cada um deles com
a notícia dos fatos mais notáveis de sua vida.
Por este meio, a impressão que recebe o aluno firma-se muito melhor
em seu espírito, e o desejo de consultar e estudar os escritos dos mode-
los analisados torna-se nele muito mais veemente.
Este sistema, adotado quase geralmente na Europa, tem produzido
mui bom resultado.
Para dar passos seguros em literatura, cumpre ainda fazer um estudo
sério da língua, e de mais a mais comparado com o das suas análogas de-
rivadas da mesma origem, ou do latim, porque a língua é o instrumento
de que nos servimos para transmitir os nossos pensamentos, e, se este
instrumento não for bem conhecido em seu complicado mecanismo,
nunca chegaremos a fazer dele conveniente emprego.
O conhecimento da língua-mãe é igualmente indispensável, porque
nunca poderemos saber com perfeição a língua derivada se não tiver-
mos conhecimento da fonte donde ela deriva, e participa9 ou mais ou
menos na formação das vozes, na índole e feições características.

6
  Abel-François Villemain (1790-1870); político e escritor, considerado um dos fundadores
da historiografia da literatura francesa.
7
  Na verdade, escocês (1718-1800).
8
  O título correto, traduzido, é Conferências sobre retórica e belas-letras, obra publicada
originalmente em 1783.
9
  Acreditamos que a formulação mais apropriada seria “e de que participa”.
50  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

São línguas derivadas do latim, e por conseguinte análogas entre si: o


português, o espanhol, o italiano, o francês, a antiga língua romance ou
romana. A língua valáquia é também língua derivada do latim; mas os
valaquianos acham-se ainda tão pouco adiantados em civilização, que a
sua literatura apenas pode ser apreciada como uma curiosidade.
............................................................................................................................
Na apreciação dos modelos propostos para estudo, devem por via
de regra ter a primazia os poetas, não só pelo natural atrativo da poe-
sia, que convida a estudá-los e suaviza o trabalho dos que aprendem,
como por sua precedência na ordem cronológica de qualquer literatu-
ra, conforme o atesta a história. Em quase todas as línguas, ou antes,
em todas elas, os poetas precederam aos prosadores, quer historiadores,
quer oradores, quer filósofos, quer de outro gênero; e em quase todas
as literaturas foram os poetas os que mais concorreram para o aperfei-
çoamento da respectiva língua. Adstritos a regras que não podem ser
violadas, como a do metro, a da harmonia imitativa, a da consonância
sustentada, veem-se eles obrigados a apanhar e incluir o pensamento, se
assim me posso exprimir, em certos conceitos breves, e, no que respeita
ao estilo, a procurar não só o termo próprio, mas ainda a expressão mais
concisa, animada ou pitoresca. A mesma dificuldade a vencer é parte
para que cheguem não poucas vezes à perfeição suma, seja na força do
enunciado, seja no colorido da expressão.
É incontestável a prioridade dos poetas sobre os prosadores.
O primeiro e o maior poeta da Antiguidade, Homero, que floresceu
depois da guerra de Troia e mais de 900 anos antes de Jesus Cristo, pre-
cedeu séculos ao pai da história, ou ao primeiro historiador profano,
Heródoto, que veio ao mundo 484 anos antes de Jesus Cristo.
O maior poeta dos tempos modernos, Dante, que floresceu no sécu-
lo XIV pelos fins da Idade Média, precedeu a Villani10 e mais historiado-
res e prosadores italianos.
Nas mesmas literaturas que não possuem grandes poetas épicos,
como a francesa e a espanhola, ou ainda naquelas onde o aparecimento
dos grandes épicos coincide com o dos grandes historiadores, como a
portuguesa e a latina, um sem-número de poetas de outro gênero, mui-
tas vezes anônimos, tem sempre precedido aos prosadores na ordem

  Giovanni Villani (circa 1276-1348).


10
Fundamentos teóricos  51

cronológica. São, por exemplo, absolutamente desconhecidos os autores


de certas canções populares chamadas romances, as quais são, na litera-
tura moderna, anteriores a todos os documentos em prosa. O que acon-
tece entre os modernos acontecia também entre os antigos com alguns
de seus cantos populares. Línguas há que não chegaram à sua última
perfeição, e de que só nos restam composições em verso, como a pro-
vençal, ou língua romance do meio-dia da França.
Há só uma única exceção conhecida a esta regra geral; e essa exceção,
se tal pode considerar, é Moisés, historiador, legislador e profeta, que
precedeu aos grandes poetas hebraicos Isaías, Jó e Davi. Mas Moisés foi
um homem inspirado e escolhido por Deus para libertar o povo hebreu
do cativeiro do Egito e levá-lo à terra da promissão. Assim não deve um
tal exemplo entrar em linha de conta, porque, onde aparece o dedo de
Deus, cessam todos os argumentos e discursos humanos.
Demais uma epopeia, como a Ilíada, de Homero, como a Divina co-
média, de Dante, é uma espécie de obra enciclopédica, que compreende,
como bem disse Mr. Villemain, toda poesia, toda história, toda ciência
do século em que viveu o poeta que a compôs.
Já mais de 400 anos antes do primeiro historiador, tinha Homero
traçado a pintura fiel e animada dos costumes, instituições, história, co-
nhecimentos e civilização dos gregos, e, o que é pela ventura11 mais,
tinha desbastado, polido e fixado a língua em que só muito depois dele
devia escrever Heródoto a sua história.
Assim, para o mundo intelectual, Homero, que vive na memória há
cerca de três mil anos como se existisse de ontem, não foi um homem,
não; mas um prodígio de gênio como nenhum outro, ou antes, a mesma
poesia encarnada no homem.
Deixando porém de parte este exemplo antigo, atenhamo-nos ao ou-
tro que mais se aproxima de nossos dias, e pode como tal ser por nós
mais bem avaliado.
Quando Dante compôs a sua Divina comédia, quadro também fiel e
vivo dos costumes, história e ciência do seu século, a língua que se falava
na Itália era uma língua inculta, que tinha muitos pontos de semelhança

  O autor emprega artigo na expressão por ventura — grafada, pela otografia ora em vigor,
11

como uma só palavra: porventura —, mais comumente utilizada sem a partícula, inclusive
— acreditamos — na sua própria época. Aliás, pela frequência com que ocorre no texto,
parece que a expressão contava com seu especial apreço.
52  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

com o provençal, onde mais tarde bebeu Petrarca a inspiração para al-
gumas de suas admiráveis canções; a língua dos sábios, a língua culta,
em que oravam e escreviam tanto italianos, como franceses, como es-
panhóis, era a língua latina, ainda dominante para a eloquência, para
a história, para a diplomacia, para a ciência. Abrasado em santo amor
da pátria, o grande poeta florentino tomou esse rude idioma vulgar da
boca do povo, desbastou-o, poliu-o, fixou-o, elevando-o desde logo nas
páginas do seu imortal poema à nobre categoria de língua culta.
Por este só fato, ainda sem falar na admirável poesia de sua engenho-
sa criação, é Dante um verdadeiro prodígio, um gênio igual a Homero.
Com justo fundamento, pois, dão os mais dos profissionais o primei-
ro lugar aos poetas como a nossos primeiros mestres, quando se trata da
exposição e análise de autores da mesma época.
Tencionava eu, quando me encarreguei desta cadeira, ocupar-me
com a literatura antiga antes da nossa; refletindo porém que isso não
era matéria para um só curso letivo, mudei inteiramente de resolução.
Assim, tratarei no atual da literatura portuguesa e de nossa nascente
literatura, de que a primeira é parte principal, dando antes da análise
crítica dos respectivos modelos algumas preleções sobre a origem, for-
mação e aperfeiçoamento da língua portuguesa, como preliminar para
aquela indispensável.
Ponho aqui termo ao meu discurso.
LIÇÃO VI*

............................................................................................................................
[...] outros fatos [...] deviam por suas consequências políticas influir
no destino da literatura, e de feito influíram. Por ocasião da primeira
invasão francesa em Portugal, a família real portuguesa transportou-se
para o Brasil em fins de 1807, ficando este sendo a sede da monarquia. O
Brasil foi elevado à categoria de reino, e o príncipe regente, por morte de
Dª Maria I, foi aclamado, sob o nome de D. João VI, rei do Reino Unido
de Portugal, Brasil e Algarves, em 1818.
Com a família real, passaram-se também para o Brasil, na mesma
ocasião ou depois, não poucos literatos portugueses, e ainda brasilei-
ros que viviam na Metrópole. Os conhecimentos começaram então a
difundir-se no Brasil com mais profusão, especialmente na capital do
Rio de Janeiro, onde residia a Corte, se bem que isso se infira mais dos
interessantes escritos que foram depois impressos que das notícias do
tempo, porque não havia ainda liberdade de imprensa, nem jornais nas
províncias. O que é fato averiguado é que o Rio de Janeiro, onde se acha-
vam reunidos hábeis professores e muitos literatos, começou a ser o foco
de instrução literária e científica para o resto do Brasil.
A ausência do rei, o desgosto produzido pela execução do general
Gomes Freire12 e seus infelizes companheiros, e as ideias de liberdade e
progresso causaram em Portugal a revolução de 1820, que regenerou a
nação portuguesa, acabando com o Tribunal da Inquisição e adotando
instituições livres para o regime político de Portugal, que proclamava
uma constituição. A revolução portuguesa foi abraçada com entusiasmo
por todo o Brasil, que já abundava nas mesmas ideias, comunicando-se
com a rapidez do relâmpago do Amazonas ao Prata;13 mas o desgosto

 Assim como, no século XX, se tornou usual a expressão “do Oiapoque ao Chuí”,
13
54  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

ocasionado pela partida do rei, para Portugal, as injustas pretensões das


cortes portuguesas, e a existência do príncipe herdeiro da coroa entre
nós, produziu também logo em 182114 a independência do Brasil, que,
com muito mais recursos que Portugal, tinha direito à sua emancipação
política e não lhe podia ficar sujeito.
Desta época em diante, ou com a emancipação política do Brasil,
deve-se estabelecer a linha divisória entre as duas literaturas, a portu-
guesa e a nascente brasileira.
Faço por hoje aqui ponto, reservando o mais para a seguinte preleção.

como referência à totalidade da grande extensão territorial do Brasil, no XIX a expressão


equivalente era “do Amazonas ao Prata”. Cabe lembrar que, pelo menos entre 1821 e 1828,
período durante o qual o Uruguai integrou o território brasileiro, sob o nome de Província
Cisplatina, a fronteira meridional do País era de fato o estuário do Rio da Prata.
14
 Não se trata de erro tipográfico, pois em outras passagens da obra o autor indica
sistematicamente 1821 como ano da independência do Brasil. Ao que parece — é a hipótese
que nos ocorre —, considera marco da independência o retorno de D. João VI a Portugal e a
correlativa passagem do Brasil à regência de D. Pedro, o que se deu, como se sabe, em 1821.
LIÇÃO VII*

Temos hoje diante de nós, Senhores, o interessantíssimo espetáculo


de uma nova sociedade política, que se desenvolve de um povo de raça
latina florescendo na América, de uma nação recente, cheia de vida, pa-
triotismo, recursos e esperanças; o espetáculo da nação brasileira eman-
cipada e figurando no catálogo dos povos cultos, independentes e livres.
De tudo quanto fez Portugal, estado pequeno, é verdade, dos confins
ocidentais da Europa, mas que sempre procurou sair da limitada esfera
de seus recursos por ações e empresas memoráveis, levando nisto van-
tagem às grandes nações europeias, a sua obra mais grandiosa foi sem
dúvida a povoação e a colonização do Brasil, que lhe deu deste lado do
Atlântico um povo irmão, que professa a mesma religião, fala a mesma
língua e tem os mesmos costumes. Na história da civilização moderna,
a nação brasileira, que já é a segunda potência da América, e há de vir a
ser, com o rodar dos séculos, uma das maiores do mundo, será sempre
o primeiro e o maior padrão de glória do pequeno estado ocidental da
Europa, a que deve a sua origem.
Novos e vastos horizontes políticos se abrem diante de nós, e com
eles começam já também a divisar-se novos horizontes literários ainda
mal distintos.
Vimos na precedente seção a rapidez com que se operou em 1821
a revolução da independência,15 que separou o Brasil de Portugal e o
elevou à categoria de império, ou de estado independente, e as causas
ocasionais que concorreram para acelerá-la, como a partida d’el-rei D.
João VI para Portugal, as pretensões injustas das cortes portuguesas e
o permanecer entre nós o primogênito da casa de Bragança, a quem as
mesmas cortes mandavam viajar com o fim de arredá-lo do Brasil, que
começava a agitar-se.
56  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

É inegável que o Sr. D. Pedro I, colocando-se à frente da revolução


brasileira, não só a facilitou, como a uniformizou, conservando unido
em um só corpo social a todo o Brasil em sua vasta extensão, o qual,
sem o prestígio de seu nome, não constituiria decerto hoje uma nação
respeitável, mas ter-se-ia provavelmente dividido em pequenos estados,
tão fracos e anarquizados como os dos americanos espanhóis que co-
nosco vizinham. Deu-nos ele ainda a constituição mais liberal de que
nunca gozou povo algum livre,16 e tão perdurável por sua perfeição que
já conta bons 40 anos de existência, ou quase meio século; no mesmo
ato de sua abdicação em 7 de abril de 1831 mostrou um verdadeiro co-
ração de rei e de pai, conservando intacto para seu augusto filho, o Sr.
D. Pedro II, que atualmente reina e era então de menor idade, o grande
império que havia fundado na América; e foi, rei sem reino, na qualida-
de de simples duque de Bragança, estabelecer outra monarquia consti-
tucional na Europa para sua filha, a Srª Dª Maria II de Portugal, em favor
de quem havia cedido seus direitos à coroa portuguesa.
Assim, alguns erros políticos que cometeu este príncipe, cuja vida
agitadíssima foi toda de abnegação e sacrifícios, e a quem a história fará
completa justiça, qualificando-o como um dos maiores reis que produ-
ziu a casa de Bragança, ficam de muito sobrelevados pelos eminentes e
incontestáveis serviços que prestou à causa da liberdade, tanto no Novo
quanto no Velho Mundo.
O Brasil acaba de erigir um soberbo e grandioso momumento à me-
mória do Sr. D. Pedro I: era um testemunho de gratidão de nossa parte,
a que tinha direito o magnânimo e heroico fundador da grande monar-
quia brasileira.17
Os primeiros tempos do novo império constituíram uma época mais
ou menos agitada por guerras internas18 e externas, na qual não po-
diam ter cabimento as letras, que não florescem ao estrondo das armas,
mas no remanso da paz. No primeiro reinado, e logo depois da gloriosa

16
  A constituição de 1824, primeira do Brasil independente, outorgada por D. Pedro I depois
da dissolução da Assembleia Nacional Constituinte, por ato de força do monarca; vigoraria
até 1891, data da primeira constituição republicana.
17
  Referência à estátua equestre de D. Pedro I inaugurada no Rio de Janeiro em 1862, na
então Praça da Constituição, hoje Praça Tiradentes.
18
  Confederação do Equador (1824), Guerra dos Cabanos (1832-1835), Cabanagem (1835-
1840), Guerra dos Farrapos (1835-1845), Sabinada (1837-1838), Balaiada (1838-1841),
levantes liberais de São Paulo e Minas (1842), Revolução Praieira (1848).
Fundamentos teóricos  57

luta da independência, teve o Brasil de sustentar, além das comoções


internas por que passou, a primeira guerra contra a Confederação
Argentina,19 a qual acabou pelo reconhecimento da independência da
república do Uruguai. A menoridade, ou governo da regência e regen-
tes que a substituíram, foi um tempo de sucessivos abalos internos, que
assaz denunciavam a fraqueza do poder que presidia aos destinos da
nação. No começo do segundo reinado, teve ainda o Brasil de passar por
comoções internas, e sustentar a segunda guerra contra a Confedera-
ção Argentina,20 de que saiu vitorioso. Toda essa quadra de fermentação
que percorremos, ou todo esse longo e agitado tirocínio político, era o
tempo em que as instituições se consolidavam, e o grande império da
América chegava ao vigor de sua adolescência social. Desde então para
cá, ou há cousa de 12 para 13 anos, goza21 o Brasil da mais profunda paz
interna e externa,22 enquanto a Europa, constantemente agitada, arde
em guerras sobre guerras, enquanto a América do Norte se acha toda
conflagrada pela mais gigantesca e exterminadora guerra civil que vi-
ram os tempos modernos,23 e o México é teatro de invasão estrangeira.24
Era tempo de começarem as letras a florescer no Brasil, como de
feito começam, sob o reinado de um príncipe ilustrado, que as estuda e
protege. Muitos homens de talento enriquecem atualmente a literatura
com seus escritos em diversos gêneros; não experimentamos falta, te-
mos antes abundância de literatos; porque o brasileiro é dotado de gran-
de vivacidade de engenho, estuda diversas línguas e diversas literaturas,
aplica-se a todo gênero de artes e ciências, e, não contente com o que
pode aprender na pátria, vai procurar o saber à Europa com o mesmo

19
  Guerra da Cisplatina (1825-1828).
20
  Chamada “Guerra contra Rosas” (1852).
21
  Era isto escrito em maio de 1864. (Nota do autor.)
22
  Conforme se lê na nota anterior, do próprio autor, o texto foi escrito em 1864. Ora, em
dezembro daquele ano tem início a Guerra do Paraguai, que se prolongaria até março de
1870, tornando-se assim a mais longa das guerras externas sustentadas pelo Brasil. Como o
livro só sairia em 1866, o autor poderia perfeitamente ter feito emendas que atualizassem as
informações apresentadas; não o fez, contudo, preferindo a salvaguarda da nota, certamente
porque uma retificação que mencionasse a guerra então em curso teria inviabilizado seu
argumento, segundo o qual a paz e a estabilidade conquistadas pelo Brasil nos anos de 1850,
após o período turbulento da Regência (1831-1840) e o início do Segundo Reinado (1840-
1889), estaria favorecendo o desenvolvimento da cultura literária.
23
  Guerra de Secessão (1861-1865).
24
  Invasão francesa (1862), inicialmente com apoio de forças espanholas e britânicas.
58  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

ardor e empenho com que o europeu se transplanta para a América em


busca de riquezas materiais. Tamanho é o desejo e gosto de aprender
que se desenvolve em nossa mocidade!
Mas em tanta abundância de escritores só apontarei os mais notá-
veis, e desses em primeiro lugar os poetas, como convém. É com visível
acanhamento, Senhores, que entro nesta apreciação, porque em uma li-
teratura nascente quase que só tenho de falar de autores vivos, mas não
hei de o evitar.
Antes porém de o fazer, devo dizer que nas composições originais
dos poetas brasileiros predomina o gosto romântico, introduzido espe-
cialmente na literatura pelos grandes poetas europeus do século XIX,
Byron, Lamartine, Victor Hugo, Almeida Garrett, e o poeta em prosa
Chateaubriand, maior pela ventura em suas criações que todos eles.
Predomina ainda nessas composições a cor local, o que é uma grande
virtude, não sendo levada a excesso, que só nos faça enxergar aborígenes
entre um povo de raça latina, qual é o brasileiro.
Já nos poemas Caramuru e Uraguai, escritos no século XVIII por
dois brasileiros de nascimento, frei José de Santa Rita Durão e José Ba-
sílio da Gama, é de notar que predomina a cor local, porque os costu-
mes dos índios, as cenas e paisagens da América, e tudo quanto aí pode
impressionar os sentidos, é admiravelmente descrito. Essas duas com-
posições, em que não figuram por cousa alguma os deuses e fábulas da
Grécia, já são no seu todo eminentemente brasileiras, e seus inspirados
autores como que já preludiavam a aurora de nossa nascente literatura.
São poetas mais notáveis da presente época: o Sr. Manuel Odorico
Mendes, autor da clássica tradução das obras de Virgílio e das excelen-
tes traduções da Mérope e Tancredo, de Voltaire, bem como de algumas
poesias líricas que correm impressas avulso; o Sr. Antônio Gonçalves
Dias, autor das “Poesias americanas” e do poema intitulado Os Timbi-
ras, ainda incompleto;25 o Sr. Gonçalves de Magalhães, autor do poema
épico intitulado a Confederação dos Tamoios, da tragédia Antônio José,
dos Suspiros poéticos e dos Mistérios; o Sr. Manuel de Araújo Porto Ale-
gre, autor das Brasilianas.
A poesia original brasileira, que se ostenta adornada com todas as
galas da juventude americana, eleva-se às vezes bem alto nos escritos
25
  Eram ainda vivos tanto este como o primeiro poeta, quando isto escrevíamos. (Nota do
autor.)
Fundamentos teóricos  59

dos três últimos senhores, e nada deixa a desejar quanto ao fogo sagrado
da inspiração, abundância de fantasia imaginosa, sublime de pensamen-
to e colorido de estilo, se bem que em alguns deles se possam enxergar
defeitos na pureza da dicção e exageração no emprego da cor local.
O Sr. Odorico Mendes é um verdadeiro poeta clássico por sua admi-
rável tradução de Virgílio, superior a quantos se têm feito em português
do mesmo poeta, e uma das melhores em língua viva pela riqueza da
linguagem e metrificação, poesia imitativa, viveza de imagens e perfei-
ção de estilo. As suas bem acabadas traduções da Mérope e do Tancredo
não lhe são também pequeno título de glória. Um dos mais profundos
conhecedores atuais da bela língua de Camões e de Ferreira,26 o Sr. Odo-
rico Mendes presta por seus escritos à literatura brasileira no século XIX
quase o mesmo serviço que Francisco Manuel do Nascimento27 prestou
à portuguesa no século XVIII. Propõe-se ainda o exímio poeta a enri-
quecer as duas literaturas com a importante tradução que fez da Ilíada e
da Odisseia de Homero, e que será brevemente publicada, segundo nos
consta.28
O Sr. Gonçalves Dias, que não tem rival entre nós no colorido e per-
feição de estilo, é sem dúvida, pelo seu elevado e aceso imaginar, o pri-
meiro poeta lírico da época; e direi não só no Brasil, mas ainda nos
países de língua portuguesa.
O Sr. Gonçalves de Magalhães, que passa pelo fundador da escola
romântica entre nós, é também, quanto a inspiração e estilo, um poeta
de primeira ordem naquelas de suas obras que têm chegado ao nosso
conhecimento, que são as acima citadas.
O Sr. Araújo Porto Alegre, a julgarmos por algumas de suas “brasi-
lianas”, é igualmente um poeta de primeira ordem, quanto a inspiração e
estilo. Este Senhor vai de mais a mais enriquecer a nossa literatura com
um poema épico, intitulado Colombo, ou O descobrimento da América.29
Bem haja a sua eloquente pena, que assim paga uma dívida em que esta-
mos todos os americanos para com o maior homem do século XV.

26
  Antônio Ferreira (1528-1569), poeta renascentista.
27
  O poeta árcade Filinto Elísio, nascido em 1734 e morto em 1819.
28
  A tradução da Ilíada por Odorico Mendes seria publicada em 1874, e a da Odisseia
somente em 1923.
29
  O poema viria a ser publicado em 1866; Sotero, escrevendo em 1864, como declara (ver
nota 21), de algum modo teve notícia de seu processo de elaboração.
60  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Julguei dever apenas emitir este juízo sucinto acerca dos três poetas
que escreveram obras originais, não só porque se trata de autores vivos,
como porque na análise terei de dar o meu juízo circunstanciado sobre
as obras de cada um deles, não militando a mesma razão para com o Sr.
Odorico Mendes, porque nas traduções só se aprecia o mérito da execu-
ção, e não o da invenção e distribuição.
São prosadores mais notáveis: o marquês de Maricá, autor das Máxi-
mas; frei Francisco de Mont’Alverne, orador sagrado; e João Francisco
Lisboa, autor do Timon, da biografia do Sr. Odorico Mendes e da vida
do padre Antônio Vieira, todos já falecidos.
O primeiro é um modelo de estilo conciso e sentencioso, onde há
muito que aprender para os homens de todas as condições; o segundo é
um modelo de eloquência sagrada, em que se notam a cada passo ver-
dadeiros rasgos oratórios e o lampejar do gênio da tribuna, não obstan-
te algumas incorreções; o terceiro, que, pelos trabalhos históricos que
nos legou no seu Timon, e outros que ficam citados, já pode passar por
modelo do verdadeiro historiador crítico e eloquente, o seria de certo
completo, se a morte o não viesse interromper no meio de seus estudos
literários.
Apresentarei ainda, dentre os autores que atualmente vivem, o Sr.
João Manuel Pereira da Silva, como um escritor diligente e bem infor-
mado no seu Plutarco brasileiro, onde se encontra o que falta nos nossos
poetas que só veem índios e mais índios, o homem civilizado do Brasil,
ou brasileiro de origem ou para ele transplantado, colocado em presen-
ça do selvagem, habitador dos bosques.
Já é tempo de irmos dando de mão30 a tanta lenda sobre os aboríge-
nes, para pintarmos também os usos e costumes do homem civilizado
do Brasil, ou do verdadeiro atual brasileiro. Já João Francisco Lisboa
censurava no seu Timon este pendor exclusivo para os índios no meio
de uma nação civilizada, e com muita razão, porque estamos no Brasil
de 1864, e não no Brasil de 1500, no qual Pedro Álvares Cabral só en-
controu selvagens.
Bem desejava apresentar-vos aqui os nossos mais distintos oradores
na tribuna parlamentar, mas infelizmente não se acham colecionados os

  Dar de mão alguma coisa, isto é, “abandoná-la com desprezo”; expressão antiquada,
30

provavelmente já no tempo do autor.


Fundamentos teóricos  61

seus discursos, onde a apreciação crítica possa esmerilhar belezas e de-


feitos. Assim, citarei de reminiscência, como os primeiros em eloquên-
cia política, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada31 e Bernardo Pereira de
Vasconcelos.32
Porei aqui termo ao meu discurso de hoje, dizendo-vos em conclu-
são que uma nação que apresenta um poeta como o Sr. Gonçalves Dias,
um orador como frei Francisco de Mont’Alverne, um sábio e profundo
moralista como o marquês de Maricá já tem direito a ocupar um lugar
distinto entre os povos cultos do Universo.

  Nascido em Santos, no ano de 1773, e morto no Rio de Janeiro, em 1845.


31

  Nascido em Vila Rica, atual Ouro Preto, no ano de 1795, e morto no Rio de Janeiro, em
32

1850.
LIÇÃO VIII*

Tendo no precedente discurso tratado de nossa nascente literatura,


devo, Senhores, antes de concluir esta minha introdução sobre a língua,
lançar um rápido volver d’olhos para a literatura portuguesa da mes-
ma época, só quanto baste a estabelecer as diferenças essenciais que se
notam entre elas e a nossa, se é que já é possível determiná-las bem,
sendo que não há ainda cousa de meio século formavam ambas uma só
literatura, pertencente ao mesmo povo, que se dividiu em duas nações
distintas em 1821.33
A literatura brasileira e portuguesa são tão parecidas nas feições,
ademanes e atitudes como o podem ser duas irmãs gêmeas que mal se
distinguem por alguma diversidade de forma e ar próprio, só perceptí-
veis para os que as estudam com muito cuidado. Procurarei entretanto
tornar salientes essas quase insensíveis diferenças, que só com o tempo
devem adquirir maiores proporções.
Enquanto o Brasil, à sombra de suas instituições livres, caminhava
a largos passos para o estado florescente em que hoje o vemos, e que
promete ir em crescente progresso com a longa paz que gozamos,34
Portugal, que também passou por graves comoções e guerras internas,
consolidava por fim sua liberdade constitucional nos últimos anos do
ilustrado reinado da Srª Dª Maria II.
Com a consolidação da liberdade política, e sem a mordaça da In-
quisição, que por tanto tempo a entorpecera, a literatura portuguesa co-
meçou logo a florescer com muito vigor, e a dar bastantes e sazonados
frutos, porque nada há para animar as letras em qualquer país como
a liberdade de pensar e escrever. Tanto é certo, que a literatura decai e
Fundamentos teóricos  63

reergue-se com a sociedade política, de que é a expressão memorável,


com diz Lamartine.35
............................................................................................................................
Basta porém a meu propósito o que já ficou dito da literatura portu-
guesa contemporânea; e, voltando ao ponto principal da questão, ou às
diferenças essenciais entre as duas literaturas, direi que a diversidade de
forma nota-se unicamente entre os prosadores dos dois países, porque
os de Portugal dão à frase um torneio mais semelhante ao dos clássicos,
e arredondam mais os períodos, sendo que os do Brasil usam mais da
ordem direta na construção da frase, e exprimem-se geralmente em pe-
ríodos menos extensos. Assim, em Portugal sacrifica-se não poucas ve-
zes a força do pensamento à beleza da forma, e no Brasil a beleza da for-
ma à força do pensamento; defeitos que cumpre evitar, adotando o meio
termo em uma e outra cousa, ou o — Sit modus in rebus — de Horácio.36
Esta diferença não é todavia sensível nos poetas dos dois países; porque,
sujeitos às leis do metro, da harmonia imitativa e cadência sustentada,
tanto os do Brasil como os de Portugal recorrem frequentemente a todo
gênero de inversões, acrescendo que na poesia o estilo é ordinariamente
mais conciso, por mais bem trabalhado e castigado.37 Mas, se não distin-
gue os poetas brasileiros dos portugueses diversidade alguma de forma
no modo de enunciar o pensamento, distingue-os já incontestavelmente
certo ar próprio de cada país, de cada nacionalidade, ou aquilo que em
literatura se chama cor local; porque os poetas brasileiros deixarão por
fim de ser portugueses, seja escolhendo assuntos brasileiros e america-
nos para seus versos, seja descrevendo neles usos e costumes, história,
cenas e acidentes naturais da América, ou criando uma literatura espe-
cial e própria do país. Nesta parte não só têm nossos poetas, que são,
como os de todos os países, os primeiros a prestar serviço às letras, lan-
çado os fundamentos de uma nova literatura, como até ido além, fazen-

35
 Segue-se trecho, impertinente para os fins desta edição, em que o autor menciona
sumariamente poetas e prosadores portugueses que, “nestes últimos tempos [...], julg[a]
com direito a ocupar o lugar mais distinto” (v. 1, p. 78). Entre os poetas, cita Almeida Garrett
e Castilho, e entre os prosadores, o mesmo Garrett, Herculano e Rebelo da Silva.
36
  A passagem tomada a Horácio (Sátiras, I, 1, 106) assim se traduz: “Haja medida em
tudo”, tratando-se, pois de exortação à necessidade de moderação, evitando-se todo tipo
de excesso.
37
 Até pelo menos meados do século XIX, no âmbito da educação literária usava-se a
expressão “castigar o estilo”, no sentido de apurá-lo, aperfeiçoá-lo.
64  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

do dos indígenas objeto principal de suas composições. Os índios po-


dem, quando muito, fornecer matéria a algumas lendas, a um ou outro
bonito e patético episódio, mas não a longos poemas, porque ninguém
se interessa por heróis desconhecidos, ou de pura invenção. Frei José
de Santa Rita Durão e José Basílio da Gama, isto é, os primeiros poetas
nascidos no Brasil, que introduziram a cor local em seus poemas, esco-
lheram para heróis destes poemas, o primeiro, a Diogo Álvares Correia,
o segundo, a Gomes Freire de Andrade, ou a dois homens civilizados
postos em presença dos índios. Seguindo um rumo oposto na escolha
de seus heróis, arriscam-se nossos poetas a desperdiçar belos versos e
belas descrições.
Estas são as diferenças essenciais que se notam entre as duas literatu-
ras, brasileira e portuguesa, e já em nossa opinião bastantes a distingui-
-las uma da outra para os bons entendedores.
............................................................................................................................
DUAS PALAVRAS AO LEITOR [INTRODUÇÃO AO VOLUME 2]*

Dou atualmente à luz pública o segundo volume do meu Curso de


literatura portuguesa e brasileira, o qual compreende a apreciação das
obras de Ferreira, Camões e João de Barros, ou dos três principais auto-
res do século XVI, com razão reputado pelos críticos o século de ouro da
língua e letras portuguesas. Não foi possível incluir ainda neste volume
mais de um período literário, porque o desejo de apresentar à mocidade
estudiosa as melhores passagens dos Lusíadas e lugares das Rimas de
Camões foi parte para que ele apenas fornecesse margem para abranger
um, que é o segundo da literatura portuguesa. Mas, tal qual o ofereço
ao público, tem este livro a vantagem de ser para os mandamentos das
boas letras uma seleta cuidadosamente feita das obras do príncipe dos
poetas portugueses, isto é, do vulto mais importante de nossa literatura
e do nosso primeiro clássico a todos os respeitos.
O terceiro volume, porém, que deve estar estampado por estes dois
ou três meses o mais tardar, e no qual não tenho de apreciar um poeta
igual a Camões, que pode servir de modelo em todos os gêneros de
poesia, conquanto alguns posteriores a ele sejam de mérito subido, com-
preenderá pela ventura três períodos literários, e, quando menos, im-
preterivelmente dois;38 porque, se o terceiro período é ainda fértil em
bons escritores, especialmente em prosa, o quarto, se excetuarmos os
poetas do reinado d’el-rei D. José, é mui deficiente em autores dignos
de apreço.
Tendo tido para a impressão dos três primeiros o generoso e anima-
dor auxílio decretado na Lei Provincial n.º 793, de 13 de julho de 1866,
resolvo-me a dar um quarto volume, no qual a literatura propriamen-
te brasileira seja tratada com o desenvolvimento que requer o assunto,
66  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

vindo assim todo o Curso atual a constar de quatro volumes, e não de


três, como a princípio se havia anunciado.39
............................................................................................................................

 O Curso, na verdade, acabaria por perfazer cinco volumes.


39
INTRODUÇÃO [AO VOLUME 3]*

Compreende este volume dois períodos literários, o terceiro e o


quarto, divididos em dois livros sob numeração igual à dos períodos,
visto como os dois volumes anteriores formam, cada um, um só livro
que abrange um período literário. Mas o quarto período deste volume
compreende só os poetas portugueses de subido mérito que nele flores-
ceram, ou Pedro Antônio Correia Garção e Antônio Dinis da Cruz e Sil-
va, e não os poetas brasileiros de igual notabilidade que a ele pertencem
na ordem cronológica, ou frei José de Santa Rita Durão e José Basílio
da Gama, porque os reservo, assim como ao poeta brasileiro Antônio
Pereira de Sousa Caldas, que ainda pertence na ordem cronológica ao
quinto período da literatura portuguesa, para comporem a primeira
parte da literatura brasileira, que há de constar de um livro dividido em
duas partes, a primeira compreendendo os três mencionados poetas, a
segunda, os autores que só floresceram depois de constituída a nação
brasileira, servindo a primeira como de introdução à última.
Demoveu-me a fazer esta alteração na apreciação dos poetas sobre-
ditos, antes na publicação desta, não o lugar do nascimento, que não
influiu em meu espírito, porque então tanto os nascidos no Brasil como
em Portugal formavam todos uma só e a mesma nação, ou eram to-
dos portugueses, mas outra consideração que passo a expender, e que
é de muito maior peso, porque se refere ao caráter especial que aqueles
poetas imprimiram às suas composições, distinto do caráter, feições e
tendência geral da poesia portuguesa na mesma época, como se verifica
dos escritos dos outros poetas que nela floresceram, quer nascidos em
Portugal, quer no Brasil.

* V. 3 (1867), p. V-XIV.
68  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Depois que a nossa língua se fixou e a literatura portuguesa foi levada


ao seu maior grau de esplendor, houve só duas escolas significativas da
generalidade do gosto na poesia entre os portugueses, até o tempo da se-
paração do Brasil: a escola clássica, fundada por Camões e por Ferreira,
ou a idade de ouro das letras portuguesas; a escola espanhola, a cuja fren-
te figuram Vasco Mousinho de Quevedo e Gabriel Parreira de Castro, ou
a época da decadência; e a antiga escola clássica restaurada por Garção
e por Dinis, e continuada por Francisco Manuel do Nascimento e ainda
por Bocage, ou a época da restauração. Estas são em geral as épocas ca-
racterísticas da poesia portuguesa desde Camões até Garrett, que fundou
uma nova escola, a romântica, que tem tido grande número de sectários.
Quando porém o comum dos poetas brasileiros atinha-se à escola
espanhola ou à clássica restaurada, segundo a época em que cada um
floresceu, desde que o Brasil começou a povoar-se e acompanhava os
seus irmãos da metrópole no gosto e tendência que seguia a poesia por-
tuguesa, os três poetas nomeados faziam uma exceção à regra geral,
porque, deixando a rota batida, formavam novas escolas e distinguiam-
-se dos poetas portugueses na índole e no gosto de suas composições.
Os dois primeiros, Durão e José Basílio, não só escolhiam para assuntos
dos seus poemas, Caramuru e Uruguai, a celebração de fatos ocorridos
na América, mas davam também de mão40 as ficções da Grécia, que tan-
to tempo dominaram na poesia portuguesa, e os revestiam sobretudo da
conveniente cor local, que lhes cria o principal mérito. O último, Sousa
Caldas, introduzia, com suas composições originais ou parafrásticas, o
gosto da magnífica poesia bíblica, da qual, antes dele, só Camões havia
dado uma pequena amostra em Portugal, nas redondilhas “Super flumi-
na Babylonis”.
Por esta consideração pois que pesou em meu espírito, e que sem
dúvida levou também M. Ferdinand Denis41 a distinguir os três sobre-
ditos poetas dos poetas portugueses da mesma época, classificando-os
à parte, os reservei para o lugar indicado no quarto volume, que vai ser
submetido à estampa; e aí formarão eles um como soberbo vestíbulo
ao edifício da literatura brasileira, que ficará assim muito mais rico e

  Ver nota 30.


40

  Um dos fundadores da historiografia literária de Portugal e do Brasil, com seu Resumo da


41

história literária de Portugal, seguido do Resumo da história literária do Brasil (1826); nasceu
em 1798 e morreu em 1890.
Fundamentos teóricos  69

majestoso; porque os dois primeiros são poetas épicos de reconhecido


mérito, e o terceiro é um poeta lírico de primeira ordem, que nada tem
que invejar aos mais gabados.
E com efeito tais poetas, ainda que florescessem sob o governo portu-
guês, deviam por qualquer forma figurar na literatura brasileira, de que
foram os precursores, e que como que já preludiavam antecipadamente,
adivinhando-a, os dois primeiros nas suas composições revestidas da cor
local, ou descritivas dos costumes, das cenas e tradições da América, e o
último enriquecendo a nossa língua com um novo e soberbo gênero de
poesia que devia fazer parte das literaturas de todos os povos cristãos.
Por isso, julgo haver feito cousa agradável ao leitor, reservando-os para o
lugar em que me propus colocá-los neste Curso — se bem deva a literatu-
ra brasileira começar cronologicamente com a emancipação do Brasil —,
porquanto é-lhe sumamente honroso ter tido precursores tão distintos.42
Além disso, o volume acha-se bem preenchido no que respeita a au-
tores célebres e dignos de apreço, porque compreende os grandes pro-
sadores do século XVII, superiores em mérito aos próprios poetas con-
temporâneos, e os poetas portugueses mais distintos do XVIII, com cuja
apreciação termina.
Alguns desses grandes escritores, além do interesse que nos inspi-
ram pelas produções do engenho, despertam também em nós a grata
recordação de haverem sido nossos hóspedes, se assim me posso expri-
mir, porque estiveram no Brasil, pisaram o mesmo solo que pisamos e
respiraram o mesmo ar que respiramos. Foram eles: frei Luís de Sousa,
de quem afirma frei Antônio da Encarnação43 “que passara por vezes às
42
  Modificamos a pontuação original deste período, que nos parece confuso na articulação
de uma oração concessiva com uma causal, mas nem assim se obtém a desejável clareza.
Acreditamos que formulação mais adequada seria, por exemplo, a seguinte: “Por isso
julgo haver feito cousa agradável ao leitor, reservando-os para o lugar em que me propus
colocá-los neste Curso; se bem deva a literatura brasileira começar cronologicamente com
a emancipação do Brasil, é-lhe sumamente honroso ter tido precursores tão distintos.”
Transcrevemos a seguir a formulação do texto-fonte, para confronto com a solução que
adotamos: “Por isso julgo haver feito cousa agradavel ao leitor, reservando-os para o logar,
em que me propuz collocal-os neste Curso, si bem deva a Litteratura Brazileira começar
chronologicamente com a emancipação do Brazil; por quanto é-lhe summamente honroso
ter tido precursores tão distinctos.”
43
  Antônio Bernardo da Encarnação e Silva (Viana, 1799 – São Luís,1848), frade carmelita.
Foi o primeiro diretor da Biblioteca Pública do Maranhão, fundada em 1831, a segunda a
existir no País, precedida apenas pela Biblioteca Nacional; exerceu o magistério de retórica
e poética no Liceu Maranhense, tendo sido também deputado provincial e deputado geral.
70  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Índias, Oriental e Ocidental, por causa de guerras e de outros respeitos


de honra que a isso o demoveram”; Padre Antônio Vieira, que é como
um verdadeiro compatriota nosso, porque, vindo de Portugal menino,
no Brasil recebeu toda a sua educação literária, e fez-se o que foi, no
Brasil viveu grande parte da sua vida, e no Brasil morreu; Antônio Dinis
da Cruz e Silva, que viveu alguns anos no Rio de Janeiro e aí morreu.
A lição pois de tais autores deve ter para nós um como duplo atrativo,
porque nutrimos de ordinário mais predileção pelos homens célebres e
pelos escritores ilustres que ou foram nossos compatriotas, ou residi-
ram em nossa terra, ou lhe prestaram serviços, ou estiveram por alguma
forma em contato conosco ou com os nossos, em qualquer tempo, que
pelos que nos são a tais respeitos estranhos, embora seja grande e incon-
testável o seu mérito.
Quanto à lacuna que se nota no quinto período literário, relativa aos
autores de reinado de D. João V, já tanto nas preleções que servem de
introdução a este Curso, como quando comecei a tratar de Garção, dei
a razão por que me não fiz cargo de apreciar autores que são o exemplo
do mau gosto e da corrupção de estilo levados ao seu auge. No entanto,
para dar ao leitor uma amostra do que era a quinta-essência do gongo-
rismo naquela época, aqui transcrevo, dos extratos que fez José Maria
da Costa e Silva,44 dois dos melhores sonetos da célebre poetisa sóror
Violante do Céu, mulher aliás dotada de estro e talento poético, mas
que o mau gosto então em voga tornou quase ininteligível ao comum
dos leitores.

Se, apartado do corpo a doce vida,


Domina em seu lugar a dura noite,
De que nasce tarda-me tanto a morte,
Se ausente d’alma estou que me dá vida?

Não quero sem Silvano já ter vida,


Pois tudo sem Silvano é viva morte.
Já que se foi Silvano venha a morte,
Perca-se por Silvano a minha vida.

  Um dos fundadores da historiografia literária de Portugal, com os 10 volumes do seu


44

Ensaio biográfico-crítico sobre os melhores poetas portugueses, publicados de 1850 a 1855;


nasceu em 1788 e morreu em 1854.
Fundamentos teóricos  71

Ah suspirado ausente! se esta morte


Não te obriga a querer vir dar-me vida,
Como não m’a vem dar a mesma morte?

Mas se n’alma consiste a própria vida,


Bem sei que se me tarda tanto a morte,
É porque sinta a morte de tal vida!

***

Musas, que no jardim do Rei do Dia,


Soltando a doce voz, prendeis o vento;
Deidades, que admirando o pensamento
As Flores aumentais, que Apolo cria;

Deixai, deixai do sol a companhia,


Que fazendo invejoso o firmamento,
Uma Lua, que é Sol, e que é portento,
Um Jardim vos fabrica de harmonia.

E por que não cuideis que tal ventura


Pode pagar tributo à variedade,
Pelo que tem de Lua a luz mais pura,

Sabei que por mercê da Divindade


Este jardim canoro se assegura
Com o muro imortal da Eternidade.

No primeiro soneto, ainda é possível meter dente,45 porque percebe-


-se que o jogo de conceitos e de palavras versa sobre a ideia única de ser
Silvano, por quem a autora está apaixonada, a sua vida, a qual ausente
lhe dá morte, e presente, vida. No segundo, porém, que é um verdadeiro
enigma, não, sem que se dê a chave deste; e vem a ser que o soneto é
feito a uma dama chamada Mariana de Luna, por ocasião de haver esta
publicado uma coleção de poesias. Daí o duplo jogo de conceitos e de
45
  Meter dente, isto é, “provar”, “degustar”, e, figuradamente, “entender”; expressão antiquada,
provavelmente já no tempo do autor.
72  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

palavras que versa sobre a ideia de Lua e a da tal coleção de poesias, a que
a poetisa chama “Jardim de harmonia” e “Jardim canoro”. Assim nem
Bouterwek,46 nem Sismondi47 entraram na verdadeira inteligência deste
soneto, ou deste enigma, cuja decifração nos é dada por José Maria da
Costa e Silva, e que por sua singularidade foi traduzido em prosa fran-
cesa por M. Ferdinand Denis.
Tal era o estilo alambicado e a linguagem enigmática — antes gíria,
como lhe chama Francisco Manuel48 — daquela época de corrupção,
cujo mau gosto passou dos poetas aos prosadores, de alguns dos quais
não se pode ler meia dúzia de páginas sem cansaço, como, por exemplo,
de Berredo,49 autor dos Anais do Maranhão, o qual nos diz que levou
sete anos a polir o estilo; isto é, a estragá-lo!
Apreciar escritos de autores que não só não estão no caso de servir
de modelo aos que se propõem o estudo das boas letras, mas cujo mau
gosto deve ser evitado com cuidado, seria perder tempo e trabalho inu-
tilmente, quando não resultasse daí perigo a algumas inteligências que
começam a desenvolver-se, e podem por isso mesmo deixar-se iludir
com os falsos brilhantes que neles flamejam como fogo-fátuo. Ainda
bem que as poesias dos seiscentistas, cuja lição é prejudicial ao bom
gosto, já se vão tornando mui raras no Brasil. Hoje, por exemplo, não
me foi possível encontrar aqui a Fênix renascida,50 que contém muitos
versos de sóror Violante do Céu e de outros poetastros contemporâneos
da mesma, obra que li na minha mocidade em um exemplar já bem
danificado.
INTRODUÇÃO [AO VOLUME 4]*

Consta este volume de dois livros, o quinto, que ainda diz respei-
to à literatura portuguesa e brasileira, e o sexto, que trata da literatura
brasileira propriamente dita, e termina com a apreciação dos poetas da
segunda parte desta, Odorico Mendes e Gonçalves Dias, sem abranger a
dos prosadores da mesma época, por falta de margem.
Preferimos terminar neste ponto a dar uma apreciação incompleta
de nossos prosadores, com supressão de autores eminentes e das pas-
sagens notáveis donde tiramos os modelos de análise; pois restam-nos
ainda em ser,51 e prontas para a impressão, duas preleções sobre o mar-
quês de Maricá, duas sobre o frei Francisco de Mont’Alverne, cinco
sobre João Francisco Lisboa, uma sobre o seu biógrafo, duas sobre as
obras em prosa de Gonçalves Dias, bem como uma vista de olhos sobre
a literatura portuguesa contemporânea, que compreende seis preleções
sobre Garrett e uma sobre a prosa poética do Sr. A. Herculano, ou sobre
o seu Eurico, o que tudo reunido prefará52 um volume quase igual ao que
agora se publica.
Compreender toda essa matéria com a que fica publicada em um só
volume de perto de 600 páginas, recorrendo às supressões sobreditas,
seria não só faltar ao que nos requer a literatura brasileira, como dar
à mocidade noções incompletas sobre nossos principais prosadores, e
deixar por conseguinte de preencher o fim que nos propusemos.
Assim, se pudermos contar para a publicação de mais um volume
com o mesmo animador auxílio que tivemos para a dos quatro impres-
sos, visto como entre nós o produto só da assinatura não cobre as des-
pesas da impressão em uma obra de algum vulto, cuja extração é aliás
lenta, daremos ainda um quinto volume com a apreciação dos mencio-
nados autores; se não, ficará no ponto em que a deixamos a publicação
74  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

deste Curso, a qual, sem aquele animador auxílio, não teria passado do
primeiro volume.
Quanto ao que fica publicado da literatura brasileira, já é uma tal
amostra para dar-nos dela mui vantajosa ideia, porque o padre Sousa
Caldas e Gonçalves Dias são dois poetas da primeira ordem, que, por seu
extraordinário engenho e cabal instrução, honram não só a nossa, que
enriqueceram com seus escritos, mas a mesma literatura moderna, onde
quer que chegue o conhecimento da língua portuguesa. Esta vantajosa
ideia, porém, continuará a ser confirmada por alguns de nossos eminen-
tes prosadores, se pudermos publicar o volume com a apreciação deles.
Na apreciação publicada dos autores da segunda parte da literatu-
ra brasileira, julgamos conveniente não compreender os que ainda vi-
vem, suposto haja entre eles poetas de mui elevado mérito, de alguns
dos quais demos notícia nas preleções que servem de introdução a este
Curso, quando tratamos de determinar as diferenças entre a nascente
literatura brasileira e a portuguesa, pois são de primeira intuição os in-
convenientes que resultam da apreciação de autores vivos, não só por-
que se não dá a respeito deles a mesma liberdade que a respeito dos
mortos, como porque nunca fica completo o trabalho, podendo o autor
ou produzir mais ou alterar o que tem produzido. Neste ponto, apenas
nas preleções que estão por imprimir fizemos duas exceções em mui
pequena escala, se tal nome merecem — os juízos sobre a biografia de
João Francisco Lisboa e sobre a prosa poética do Eurico —, sendo que
versam sobre trabalhos especiais sem pretensões a uma apreciação com-
pleta sobre as demais obras dos respectivos autores, e isso pelas razões
plausíveis aí alegadas.
INTRODUÇÃO [AO VOLUME 5]*53

............................................................................................................................
Compõe-se este último volume de dois livros: o sétimo, que com-
preende os prosadores brasileiros mais distintos — Gonçalves Dias,
marquês de Maricá, frei Francisco de Mont’Alverne, o Sr. Antônio Hen-
riques Leal e João Lisboa: e o oitavo, que consta dos dois maiores vultos
literários de Portugal, neste século, o visconde de Almeida Garrett e o
Sr. Alexandre Herculano.
Tendo-se o autor traçado, por considerações que são óbvias, o pro-
pósito de só tratar de autores mortos, abriu, por mui justas razões, que
apresenta em lugar competente, duas exceções, uma em favor deste úl-
timo dos dois ilustres literatos portugueses, e outro do insigne biógrafo
de João Francisco Lisboa.
Teria, de certo, aberto mais outra honrosa exceção, se tivesse vivido
mais algum tempo, para o Sr. Araújo Porto Alegre, pois lhe ouvimos por
muitas vezes que pretendia analisar o Colombo deste autor, poema a que
fazia grandes elogios.
Também manifestou-nos a intenção de apreciar as obras de Álvares
de Azevedo.
............................................................................................................................

São Luís do Maranhão, 2 de setembro de 1873

Américo Vespúcio dos Reis

* V. 5 (1873), p. V-VIII.
  O quinto e último volume do Curso é de publicação póstuma, sendo sua Introdução,
53

datada de 2 de setembro de 1873, assinada pelo filho do autor, Américo Vespúcio dos Reis.
AUTORES BRASILEIROS
FREI JOSÉ DE SANTA RITA DURÃO*

Frei José de S. Rita Durão,


poeta; sua biografia; seu poema épico Caramuru.

LIÇÃO LXX

Tenho, Senhores, de ocupar-me hoje pela primeira vez com um poe-


ta nascido no Brasil, posto pertença ainda ao tempo em que a literatura
era comum aos dois povos, brasileiro e português, que formavam então
uma só nação. Este poeta, que foi contemporâneo de Garção e Dinis,
pois que floresceu nos reinados de D. José I e de Maria I, é frei José de S.
Rita Durão, autor do poema épico Caramuru.
Como poeta épico foi fundador de uma nova escola em Portugal, já
porque, seguindo a Tasso, Milton e Voltaire, deu de mão54 aos deuses
da fábula, que figuram nos Lusíadas, de Camões, na Ulisseia, de Gabriel
Pereira de Castro, e ainda no Afonso Africano, de Vasco Mousinho de
Quevedo, já porque introduziu a cor local na sua epopeia, que é essen-
cialmente brasileira. Antes porém de apreciar o seu poema, devo dar-
-vos sucinta notícia do pouco que se sabe de sua vida, que começou na
América e terminou na Europa.
Nasceu frei José de S. Rita Durão na Cata-Preta, arraial de N. Senho-
ra de Nazaré do Infeccionado, quatro léguas ao norte da cidade de Ma-
riana, em Minas Gerais. Não se sabe ao certo a data de seu nascimento,
mas conjectura o Sr. Inocêncio Francisco da Silva55 que teria lugar pelos
anos de 1718 a 1720.56 Faleceu no Colégio de S. Agostinho em Lisboa, a
24 de Janeiro de 1784, sendo maior de 60 anos.
Foi eremita agostiniano e doutor em teologia pela Universidade de
Coimbra. Professou na regra de Santo Agostinho a 12 de outubro de
1738, e doutorou-se no ano de 1756, mediando uns 18 anos entre a data
de sua profissão e a de sua formatura.
Autores brasileiros  79

A sua grande proficiência nas letras revela que teve uma educação
mui acurada, a qual sem dúvida começou no Brasil, onde os jesuítas ha-
viam então fundado boas escolas, e onde aprendeu também José Basílio
da Gama, seu conterrâneo, com quem me hei de ocupar depois, bem
como antes deles o padre Antônio Vieira. Mas não consta quem foram
seus pais, nem tampouco a época em que passou à Europa, sendo ainda
fácil averiguar o primeiro ponto, se fôramos mais curiosos de nossas
coisas.
Pouco depois de sua formatura achava-se, ao que se sabe, conventual
em Leiria, em cuja Sé pregou em 1758 um magnífico sermão em ação
de graças, por haver el-rei D. José escapado com vida dos tiros contra
ele disparados a 3 de setembro do mesmo ano. Não foi porém longa ali a
sua persistência. Saiu do reino e percorreu a Espanha e a Itália, gastando
uns 18 anos nestas viagens. Deu motivo à sua saída, antes expatriação
de Portugal, o seguinte fato relatado pelo Sr. Varnhagen no seu Florilégio
da poesia brasileira:

Um ano depois (diz este Sr., referindo-se a 1758), sendo decretada a expul-
são dos jesuítas, o bispo de Leiria, célebre mais tarde com o título de cardeal
da Cunha, aproveitou-se da ocasião para argumentar seu valimento com
Pombal, publicando uma pastoral fulminante contra os mesmos jesuítas.
E ou porque a dita pastoral continha proposições injustas, ou porque pela
própria forma se prestava à sátira, é certo de que Durão saiu a campo pulve-
rizando-a, a ponto de se comprometer e ver-se obrigado, a fim de livrar-se
das iras do prelado, a evadir-se para a Espanha.

Na Espanha, para onde partiu provavelmente em fins de 1759, foi


preso como suspeito de ser espia, quando rebentou a guerra do pacto de
família, e sendo solto, depois de assinadas as pazes de Paris a 10 de fe-
vereiro de 1763, passou-se de lá à Itália, onde se conservou até regressar
a Portugal. É certo que já aí se achava em 1778 com outros foragidos,
porque, com a morte d’el-rei D. José em 1777, havia cessado o poder do
marquês de Pombal, e tinham as coisas mudado de face.
No ano seguinte (diz o mesmo Sr. Varnhagen, referindo-se a 1777), ao
abrir-se no mês de outubro o curso letivo da Universidade de Coimbra, é
um desses foragidos quem pronuncia em latim a oração de sapientia. Pre-
side tal ato solene o bispo reitor, glória da Universidade e do Brasil, sua
80  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

pátria; entre os ouvintes não faltam outros brasileiros, tanto nas doutorais,
como nos bancos dos estudantes. Filho do Brasil é também o orador, que
não terá ainda 50 anos de idade; o seu rosto grande e trigueiro se destaca
perfeitamente junto do alvo do capelo, que tira por vênia de quando em
quando. Elogiando os antigos reis portugueses, exalta os monumentos por
eles deixados, como quem tinha direitos para o fazer em comparação dos
que vira por outros países, circunstância que faz sentir nas quatro palavras
do discurso: Perambulantem me saepe obem.

Este orador é frei José de Santa Rita Durão.


Restituído a Portugal, apenas aí viveu mais uma meia dúzia de anos,
nos quais concluiu e publicou o seu poema, que viu a luz em Lisboa em
1781, sem que se saibam outras circunstâncias de sua aventurosa vida,
que foi como a de Camões pelo mundo em pedaços repartida, senão que
em Roma secularizou-se, e depois, provavelmente já no reino, tornou a
voltar para a sua ordem, em cujo hábito morreu e foi sepultado.
Sobre este poema, que foi recebido friamente em Portugal segundo o
Sr. Varnhagen, que supõe, não sei com que fundamento, que isso talvez
concorresse para abreviar os dias do autor, eis aqui a opinião de Almei-
da Garrett:

Muito havia (diz este) que a tuba épica estava entre nós silenciosa, quando
frei José Durão a embocou para cantar as romanescas aventuras de Cara-
muru. O assunto não era verdadeiramente heroico, mas abundava em ri-
quíssimos e variados quadros, era vastíssimo campo sobretudo para a poe-
sia descritiva. O autor atinou com muitos tons, que deviam naturalmente
combinar-se para formar a harmonia do seu canto; mas de leve o fez: só
se estendeu em os menos poéticos objetivos, e daí esfriou muito do gran-
de interesse que a novidade do assunto e a variedade das cenas prometia.
Notarei por exemplo o episódio de Moema, que é dos mais gabados, para
demonstração do que assevero. Que belíssimas coisas da situação da aman-
te brasileira, da do herói, do lugar, do tempo, não poderia tirar o autor, se
tão de leve não tivera desenhado este, assim como outros painéis? O estilo é
ainda por vezes afetado; lá surdem aqui e ali seus gongorismos; mas onde o
poeta se contentou com a natureza, e com a simples expressão da verdade,
há oitavas belíssimas, ainda sublimes.
Autores brasileiros  81

José Maria da Costa e Silva e José Agostinho de Macedo57 tecem


muitos elogios a Durão. Aquele o dá como fundador da poesia brasi-
leira, porque foi o primeiro que se descartou das preocupações euro-
peias, para compor uma epopeia brasileira pela ação, pelos costumes,
pelos sentimentos e ideias, e pelo colorido local. Este não hesitou em
caracterizar a Durão “homem a quem só faltava a antiguidade para ser
reputado grande.”
Em todos esses juízos há mais ou menos verdade, pois não há dúvida
que o autor não deu todo o desenvolvimento a alguns dos seu quadros,
que eram por sua natureza eminentemente poéticos, nem abunda nas
descrições, que deviam suscitar-lhe as variadas cenas da América, como
diz Garrett; que foi o primeiro poeta nascido no Brasil que se mostrou
brasileiro pelas ideias, sentimentos e cor local, como afirma Costa e Sil-
va; e que só lhe faltou o ser antigo para ser reputado grande, como quer
José Agostinho.
Os gongorismos em Durão são raríssimos, e não frequentes como
pretende Garrett, que se limita a considerações gerais sobre o poema,
sem particularizar coisa alguma, à exceção do episódio de Moema; o
que me faz supor que este judicioso crítico, cuja opinião é aliás de muito
peso, cansado de percorrer tantos poetas e desejoso de chegar ao termo
do seu trabalho, fez apenas ligeira leitura deste. O patético episódio de
Moema podia sê-lo ainda mais pelo desespero de herói, que não pôde
salvar a apaixonada índia, é certo; mas não podia ser muito mais exten-
so, atenta a mesma situação desta, que nada atrás de um navio a vela e é
afinal tragada pelas ondas, que lhe afogam os queixumes. De três oitavas
apenas consta nos Lusíadas58 o quadro do triste fim de Dª Leonor de
Sá e Manuel de Sousa de Sepúlveda, expirando à míngua nos areais de
África, e é com tudo admirável pela força do patético.
Nas suas viagens pela Espanha e pela Itália adquiriu o autor nova soma
de conhecimentos, pois não se limitou a correr mundo, como outros,
mas cultivou o seu espírito, estudando com esmero a literatura dos paí-
ses, e com especialidade a do último, cujo gosto não deixa de transpirar
nos seus versos; e tanto, que José Maria da Costa e Silva o dá como poeta
da escola italiana, e não sem fundamento. Estudando assim a literatura
57
 Clérigo e escritor português (1761-1831), conhecido mais como agitador cultural e
político do que pela solidez de sua obra.
58
  Canto V, 45-48.
82  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

moderna, a par da antiga, dispunha-se ele, para levar ao cabo a empresa


que meditava, que nada menos era que enriquecer a literatura portugue-
sa com uma epopeia brasileira, ou com o seu Caramuru, que quer dizer
filho do trovão, dragão do mar, segundo a explicação dada pelo autor. O
sentimento o mais nobre que leva o homem a operar prodígios, o amor
da pátria, é que lhe inspirou a ideia do seu poema, como ele próprio diz
nestes termos: “Os sucessos do Brasil não mereciam menos um poema,
que os da Índia. Incitou-me a escrever este o amor da Pátria.”

A ação do poema é, como ainda explica o autor, o descobrimento da Bahia,


feito quase no meio do século XVI por Diogo Álvares Correia, nobre vianês,
compreendendo em vários episódios a história do Brasil, os ritos, tradições,
milícias de seus indígenas, como também a natural e política das colônias.

O assunto, se não é verdadeiramente heroico, como pretende Gar-


rett, a ponto de prestar-se a toda a sorte de belos e variados quadros, é
pelo menos vasto e nobre. O herói do poema é Diogo Álvares Correia,
a quem os índios chamavam Caramuru pelo uso das armas de fogo. Eis
aqui a proposição:

De um varão em mil casos agitando,


Que as praias discorrendo do Ocidente,
Descobriu o recôncavo afamado
Da capital brasílica potente:
Do filho do trovão denominado,
Que o peito domar soube a fera gente,
O valor cantarei na adversa sorte,
Pois só conheço herói quem nela é forte.

O poema, que se divide em 10 cantos, é regular e bem traçado; a ação


grande, uma e única; o maravilhoso, tirado da religião cristã; as partes
componentes do todo são de ordinário bem ligadas; os caracteres per-
feitamente sustentados, com a especialidade o do herói, o de Paraguaçu
e os dos chefes índios. Assim como o poeta na adoção do maravilhoso
parece haver-se guiado pelos poetas modernos, que baniram de seus
poemas os deuses do paganismo, assim parece no desenho dos caracte-
res haver-se regulado por Homero, que tão bem os traça.
Autores brasileiros  83

Nos episódios sobressaem o de Moema e o do descobrimento do


Brasil; nas descrições, as dos costumes dos índios, e a das flores e fru-
tos do Brasil; mas a multiplicidade de episódios históricos prejudica, a
meu ver, o interesse da ação, que deve ser sempre crescente; a raridade
das descrições das cenas naturais do Novo Mundo faz-nos sentir um
como mérito de menos; e o pouco desenvolvimento de alguns quadros
justificam em parte o juízo de Garrett. Entretanto, o poema contém ras-
gos admiráveis e sublimes, bem como quantidade de quadros de grande
beleza. O estilo é por sua nobreza perfeitamente adaptado ao assunto, e
mui raros são os ressaibos de afetação que se lhe podem notar. A lingua-
gem é castiça e de boa lei; a metrificação, harmoniosa e rica.
Entre todas as epopeias de segunda ordem escritas em português,
o Caramuru é, ao que posso ajuizar, uma das melhores, apesar de seus
defeitos, por ser uma das que melhor preenche o seu fim. Grande pois é
o louvor que cabe a Durão, porque, quando os outros poetas brasileiros
seus contemporâneos, se excetuarmos José Basílio da Gama, cantavam
na América as cenas da Arcádia e os costumes da Europa, foi o primeiro
nascido no Brasil que soube dar ao seu poema a cor local, ou que, na
expressão de José Maria da Costa e Silva, criou a poesia brasileira, sen-
do que na ordem cronológica é anterior ao cantor de Uraguai, a quem
precedeu no nascimento.
Tendo-vos dado a notícia biográfica de Durão e uma ideia geral do
mérito do seu poema, passarei em outro discurso a fazer a análise por
partes do mesmo poema, preenchendo-a do argumento traçado pelo
próprio autor.
Por hoje aqui faço ponto.

LIÇÃO LXXI

Uma epopeia digna deste nome é coisa tão elevada que, ainda sen-
do da segunda ordem, excita a nossa admiração; e com razão, porque
uma boa epopeia é um dos maiores esforços do espírito humano. As-
sim, depois da Eneida, de Virgílio, é justamente admirada a Farsália,
de Lucano.
De todas as literaturas modernas a literatura portuguesa é sem con-
tradição a mais rica em epopeias, pois possui, além de uma de primeira
84  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

ordem, ou Os Lusíadas, de Camões, não menos de três de segunda, que


não deixam de ter muito valor, o Afonso Africano, de Vasco Mousinho
de Quevedo, a Ulisseia, de Gabriel Pereira de Castro, e o Caramuru, de
frei José de Santa Rita Durão, objeto hoje de minha análise; isto sem
falar em outras, que só podem aspirar ao terceiro e quarto lugar. Neste
gênero de poemas não só é ela a literatura moderna mais a rica, mas é
até mais fecunda que a própria literatura latina, neles abundante. E tanto
mais para admirar é uma tal fecundidade, quanto maiores são os esfor-
ços de engenho e a ciência que exige uma epopeia! Por isso a literatura
portuguesa será sempre considerada como das mais bem aquinhoadas
em bons engenhos.
Disse eu no precedente discurso que, entre todas as epopeias de se-
gunda ordem escritas em português, o Caramuru deve ser reputado
uma das melhores, não obstante os seus defeitos; e com efeito assim me
parece, ou se atenda ao mérito intrínseco do poema, que não é inferior
ao dos outros de sua categoria, ou sobretudo à circunstância de ser uma
das que melhor preenche o fim, pela cor local que o poeta soube dar aos
seus quadros, muitos dos quais são eminentemente poéticos.
Apesar de ser tão fecunda a literatura portuguesa, e do Brasil, que já
se achava descoberto há mais de dois séculos, oferecer assuntos e pros-
pectos os mais ricos e variados a todo gênero de poesia, não havia até
então uma epopeia brasileira. Durão foi o primeiro que tentou a empre-
sa de dotar Portugal e o Brasil com uma; e se não tirou todas as possíveis
vantagens do assunto, que era vasto, posto tirasse muitas, desculpa tem
no mesmo fato de haver sido o que abriu caminho a futuros poetas, para
poemas análogos revestidos da cor local.
Na descrição dos usos, costumes e tradições dos indígenas, a qual
constitui a parte essencial do poema, ou o fundo sobre que o poeta
traçou os seus quadros, é o Caramuru verdadeiramente admirável,
quer na verdade, quer no colorido das pinturas, e nada tem que in-
vejar aos melhores poemas. O homem selvagem aí é magistralmente
desenhado com todos os seus característicos e hábitos, e posto a par
do homem civilizado, que o domina pela força do seu gênio. Na des-
crição das cenas da natureza, aliás tão rica no Novo Mundo, é que
o poeta se demora pouco e tornar-se deficiente, sendo para desejar
que com ela variasse amiúde os seus quadros, que se tornariam assim
mais belos.
Autores brasileiros  85

Tendo-vos já anteriormente dado ideia geral do poema e de sua ação,


passarei a analisar as suas melhores passagens, resumindo primeiro o
argumento traçado pelo autor.
Diogo Álvares Correia, fidalgo português, naufragou nos baixos de
Boipeba junto da Bahia, quando se dirigia a S. Vicente. Salvou-se com
seis companheiros, que foram devorados pelos gentios antropófagos, fi-
cando ele, que vinha doente e magro, reservado para quando se achasse
mais nutrido, a servi-lhes igualmente de pasto. Deixaram-no entretanto
os selvagens tirar do navio que encalhara pólvora, balas e armas, cujos
usos ignoravam.
Com uma espingarda matou caçando certa ave, do que, espantados,
os bárbaros o aclamaram filho do trovão, e Caramuru, isto é, dragão do
mar. Combatendo com os gentios do sertão, os venceu e reduziu à sua
obediência. Ofereceram-lhe os principais do Brasil suas filhas por mu-
lheres, mas ele escolheu a Paraguaçu, que depois conduziu à França em
um navio francês que aportara à Bahia, seguindo-o a nado outras cinco
brasilianas, até que, afogando-se uma, as outras se retiraram intimida-
das. Em França, onde então reinava Henrique II, foi Paraguaçu batizada
com o nome de Catarina de Medicis.
Antes de sua partida para a França salvou Diogo Álvares um navio
espanhol, pelo que escreveu o imperador Carlos V uma carta de agra-
decimento. Restituído à Bahia com sua esposa em outro navio francês,
foi recebido com o antigo respeito pelos Tupinambás, que consideraram
a Paraguaçu como herdeira do seu principal. Na viagem para a Bahia
tem esta uma visão famosa, em que lhe é revelada a futura sorte do Bra-
sil. Chega neste meio tempo de Portugal Tomé de Sousa com algumas
naus, famílias e tropas, para povoar a Bahia, cuja colonização começa.
Paraguaçu ou Catarina Álvares renuncia os seus direitos em D. João III,
que ordenou a seus governadores que honrassem a Diogo Álvares pelos
serviços prestados, e foi ela com efeito o tronco da nobilíssima casa da
Torre na Bahia. Aqui termina a ação.
Agora passarei a ler-vos três passagens escolhidas do poema, pelas
quais podereis fazer ideia do mérito do autor como poeta épico:
Ouve-se rouco som, que o ouvido atroa,
Retumbando com eco a voz horrenda
De um grosseiro instrumento, que a arma soa,
Com que se inflama entre eles a contenda:
86  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

E quando o horrível som mais desentoa,


Faz que no peito mais furor se acenda;
De retorcidos paus são as cornetas;
De ossos humanos frautas e trombetas.

Com batalhões a espaços separados,


Triplicado cordão se vê composto;
E em silêncio admirável ordenados,
Ao redor vão do outeiro em meio posto;
Costuma um orador falar-lhe a brados,
E ardendo-lhe mil fúrias sobre o rosto,
O ar co’a espada furibunda corta,
E a combater valente a turba exorta.

Jararaca no mando então primeiro,


Ao sacro e civil rito presidia,
E no mais alto do sublime outeiro
Entre um senado ancião se distinguiu:
Aos outros na estatura sobranceiro
As costas de um tapuia, que o trazia,
De um lado a outro majestoso corre,
E com geral silêncio assim discorre:

[...]

Já se avistava bárbaro tumulto


Das inimigas tropas em redondo;
E antes que empreendam o primeiro insulto,
Levanta-se o infernal medonho estrondo:
Os marraques, uapis e o brado inculto
Todos um só rumor, juntos compondo,
Fazem tamanha bulha na esplanada,
Como faz na tormenta uma trovoada.
Tu, rápido Pajé, foste o primeiro,
De quem o negro sangue o campo inunda;
Que com seres no salto o mais ligeiro,
Autores brasileiros  87

Mais ligeira te colhe a cruel funda;


Paraguaçu lh’atira desde o outeiro;
Chovem as pedras do que o monte abunda;
E do lado e de cima do cabeço,
Tudo abatem com tiros de arremesso.

Não ficou no combate entanto ociosa


A frecha do inimigo, que o ar encobre;
Começa Jararaca a ação furiosa,
Dando estímulo ousado ao valor nobre,
E a turba de Diogo receosa
Foge do grão Tacape, onde o descobre:
Que tanto estrago faz, que qualquer fera
Maior entre os cordeiros não fizera.

Mas quando tudo com terror fugia,


O bravo Jacaré se lhe põe diante:
Jacaré, que se os tigres combatia,
Tigre não há, que lhe estivesse avante!
Treme de Jararaca companhia,
Vendo a forma de bárbaro arrogante,
Que com pele coberto de pantera,
Ruge com mais furor que a própria fera.

Avista-se um com outro: a massa ardente


Deixam cair com bárbaro alarido;
Corresponde o clamor da bruta gente,
E treme a terra em roda do mugido:
Aparou Jacaré no escudo ingente
Um duro golpe, que o deixou partido;
E enquanto Jararaca se desvia,
Quebra a massa no chão, com que batia.

Nem mais espera o caeté furioso,


E qual onça no ar quando destaca,
Arroja-se ao contrário impetuoso,
88  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

E um sobr’outro co’as mãos peleja ataca:


Não pode discernir-se o mais forçoso;
E sem mover-se em torno a gente fraca,
Olham lutando os dois no fero abraço,
Pé com pé, mão com mão, braço com braço.

Porém enquanto a luta persistia,


No sangue em terra lúbrico escorrega
O infeliz Jacaré; mas na porfia
Nem assim do adversário se despega:
Sobre o chão um com o outro às voltas ia:
E qual o dente, qual o punho emprega,
Até que Jararaca um golpe atira,
Com que rota a cabeça o triste expira.

À Gupeva entretanto e Taparica


Dava o último abraço: e à forte esposa
A intenção de levá-la significa
A ver de Europa a região famosa:
Suspensa entre alvoroço e pena fica
Paraguaçu contente, mas saudosa;
E quando o pranto na sentida fuga
Começava a saudade, amor lh’o enxuga.

É fama então que a multidão formosa


Das damas, que Diogo pretendiam,
Vendo avançar-se a nau na via undosa,
E que a esperança de o alcançar perdiam:
Entre as ondas com ânsia furiosa
Nadando, o esposo pelo mar seguiam,
E nem tanta água que flutua vaga,
O ardor que o peito tem, banhado apaga.

Copiosa multidão da nau francesa


Corre a ver o espetáculo assombrada;
E ignorando a ocasião da estranha empresa,
Autores brasileiros  89

Pasma da turba feminil, que nada:


Uma, que às mais precede em gentileza,
Não vinha menos bela do que irada:
Era Moema, que de inveja geme,
E já vizinha à nau se apega ao leme.

“Bárbaro, a bela diz, tigre e não homem...


Porém o tigre, por cruel que brame,
Acha forças amor, que enfim o domem,
Só a ti não domou, por mais que eu te ame:
Fúrias, raios, coriscos, que o ar consomem,
Como não consumis aquele infame?
Mas pagar tanto amor com tédio e asco!...
Ah que o corisco és tu... raio... penhasco.

Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,


Quando eu a fé rendia ao teu engano;
Nem me ofenderas a escutar-me altivo,
Que é favor, dado a tempo, um desengano:
Porém deixando o coração cativo
Com fazer-te a meus rogos sempre humano
Fugiste-me, traidor, e desta sorte
Paga meu fino amor tão crua morte?

Tão dura ingratidão menos sentira,


E este fado cruel doce me fora,
Se a meu despeito triunfar não vira
Essa indigna, essa infame, essa traidora:
Por serva, por escrava te seguira,
Se não temera de chamar senhora
A vil Paraguaçu, que sem que o creia
Sobre ser-me inferior, é néscia e feia.

Enfim, tens coração de ver-me aflita,


Flutuar moribunda entre estas ondas;
Nem o passado amor teu peito incita
90  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

A um aí somente, com que aos meus respondas:


Bárbaro, se esta fé teu peito irrita,
Disse vendo-o fugir, ah não te escondas;
Dispara sobre mim teu cruel raio...”
E indo a dizer o mais, cai num desmaio.

Perde o leme dos olhos, pasma e treme,


Pálida a cor, o aspecto moribundo,
Com mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as salsas espumas desce ao fundo:
Mas na onda do mar, que irado freme,
Tornando a aparecer desde o profundo:
“Ah Diogo cruel!” Disse com mágoa,
E sem mais vista ser, sorveu-se n’água.

Choraram da Bahia as Ninfas belas,


Que nadando a Moema acompanhavam;
E vendo que sem dor navegam delas,
À branca praia com furor tornavam:
Nem pode o claro Herói sem pena vê-las,
Com tantas provas, que de amor lhe davam;
Nem mais lhe lembra o nome de Moema,
Sem que ou amante a chore, ou grato gema.

[...]

Voava entanto a nau na azul corrente,


Impelida de um zéfiro sereno,
E do brilhante mar o espaço ingente
Um campo parecia igual e ameno:
Encrespava-se a onda docemente,
Qual aura leve, quando move o feno;
E como o prado ameno rir costuma,
Imitava as boninas com a espuma.
Du Plessis, que os franceses governava,
Em uma noite clara a popa estando,
Autores brasileiros  91

Os casos de Diogo, que escutava,


Admira no naufrágio memorando:
Depois ao Herói prudente perguntava
Quem achara o Brasil, e como e quando
Ganhara no recôndito hemisfério
Tanto tesouro o lusitano império?

Dois Monarcas, responde o lusitano,


Já sabes que no ocaso e no oriente
Novos mundos buscaram pelo oceano,
Depois de haver domado a Líbia ardente:
E que, onde não chegou grego ou romano,
Passeia o forte hispano e a lusa gente;
Que instruídos na náutica com arte,
Descobriram do mundo outra grã parte.

Do Tejo ao china o português impera,


De um polo ao outro o castelhano voa,
E os dois extremos da redonda esfera,
Dependem de Sevilha e de Lisboa:
Mas depois que Colon sinais trouxera,
Colon de quem no mundo a fama voa,
Deste novo admirável continente,
Discorda com Castela o luso ardente.

Já se dispunha a guerra sanguinosa;


Porém o comum pai aos dois intima
Arbítrio na contenda duvidosa,
Que a parte competente aos reis estima:
Desde Roma Alexandre imperiosa,
Deixando ambos em paz a empresa anima,
E uma linha lançando ao céu profundo,
Por Fernando e João reparte o Mundo.

Na vasta divisão que ao luso veio,


O precioso Brasil contido fica:
92  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

País de gentes e prodígios cheio,


Da América feliz porção mais rica:
Aqui do vasto Oceano no meio
Por horrível tormenta a proa aplica
O ilustre Cabral, com fausto acaso
Sobre graus dezesseis do nosso ocaso.

Da nova região, que atento observa,


Admira o clima doce, o campo ameno,
E entre arvoredo imenso, a fértil erva
Na viçosa extensão do áureo terreno:
Coberta a praia está de grã caterva
De incógnita nação, que com aceno,
Porque a língua ignorava, à paz convida,
Erguendo-lhe o troféu do autor da vida.

Era o tempo, em que alegre ressuscita


A verde planta que murchou no inverno,
E quando a solar meta o tempo excita,
Em que o rei triunfou da morte eterno:
Tão sagrada memória a frota incita
A celebrar ao vencedor do inferno
O sacrifício donde a fé venera,
A paixão que em tal tempo sucedera.

Em frondosa ramada o lusitano


Um altar fabricou no prado extenso,
Donde assista ao mistério soberano
Ao rei triunfante do infernal tirano
Odorífero fuma o sacro incenso,
E a vítima do céu, que a paz indica
À gente e nova terra santifica.

Notar o americano ali contende


Do sacrossanto altar o ato sublime;
Autores brasileiros  93

E tanto a simples gente o aceno entende,


Que parece que a ação por santa estime:
Algum que olhava ao celebrante, empreende
O gesto arremedar que orando exprime,
E as mãos une e levanta e talvez solta,
E quando o vê voltar também se volta.

Como as nossas ações talvez espia


O peloso animal que o mato hospeda,
E quanto vê fazer, como a porfia,
Tudo posto a observar, logo arremeda:
Tal o gentio simples parecia,
Que nem um pé, nem passo d’ali arreda,
E ao santo sacrifício atento e mudo,
O que aos mais viu fazer, fazia-o tudo.

Aqui depois que às turbas eloquente


Dita o sacro orador pio conceito,
E a fé dispensa no ânimo valente
Do nobre povo a propagá-la eleito:
Participa da ceia a cristão gente,
E o dom recebem com fiel respeito;
E é fama que Cabral, que os convocara,
Montando sobre um alto, assim falara:

[...]

Na primeira das passagens que vos li, notai, Senhores, a verdade e


o colorido com que o poeta sabe descrever os costumes e hábitos dos
indígenas, pintando apropriadamente a sua descomunal ferocidade nos
combates, para os quais se desfiguram, a fim de infundir terror ao ini-
migo, e a sua insaciável sede de vingança, a que tudo sacrificam. Vede,
como dando a seus heróis forças e proporções mais que humanas, os
eleva à altura dos heróis da Ilíada, os quais parece haver tomado por
modelo. Nesta passagem em que há tanta beleza de imagens e tanta poe-
sia imitativa, é notável sobretudo o combate singular dos dois campeões,
94  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Jararaca e Jacaré, soberbamente descrito nas três admiráveis oitavas, que


aqui reproduzo:

Avista-se um com outro: a massa ardente


Deixam cair com bárbaro alarido;
Corresponde o clamor da bruta gente,
E treme a terra em roda, do mugido:
Aparou Jacaré no escudo ingente
Um duro golpe, que o deixou partido,
E enquanto Jararaca se desvia,
Quebra a massa no chão, com que o batia.

Nem mais espera o caeté furioso,


E qual onça no ar quando destaca,
Arroja-se ao contrário impetuoso,
E um sobr’outro com as mãos peleja ataca:
Não pode discernir-se o mais forçoso;
E sem mover-se em torno à gente fraca,
Olham lutando os dois no fero abraço,
Pé com pé, mão com mão, braço com braço.

Porém enquanto a luta persistia,


No sangue em terra lúbrico escorrega
O infeliz Jacaré; mas na porfia
Nem assim do adversário se despega:
Sobre o chão um com o outro às voltas ia;
E qual o dente, qual o punho emprega,
Até que Jararaca um golpe atira,
Com que rota a cabeça o triste expira.

A descrição deste combate, em que se veem os dois campeões lutar


arca por arca, até que um deles expira aos golpes do outro, sem que lhe
falte a menor circunstância que se costuma dar em casos tais, nada deixa
a desejar em movimento de atitudes, e é pelo vigor e naturalidade da
pintura verdadeiramente digna do pincel de Homero. Para dar-vos ideia
do movimento e poesia imitativa que encerra, basta-me chamar a vos-
sa atenção para as pausas e sons onomatopaicos dos quatro primeiros
Autores brasileiros  95

versos: “Avista-se um com outro: a massa ardente / Deixa cair com bár-
baro alarido; / Corresponde o clamor da bruta gente, / E treme a terra
em roda, do mugido.” E para fazer-vos sentir a verdade da pintura, citar-
-vos-ei unicamente os três últimos da segunda oitava: “E sem mover-se
em torno a gente fraca / Olham lutando os dois no fero abraço, / Pé com
pé, mão com mão, braço com braço.”
A segunda passagem, ou o belo episódio de Moema, é notável pela
força do patético, nascido da situação da amante, que, segura ao leme da
nau, luta com as ondas e a morte, para exprobrar a ingratidão ao herói,
que parte para a Europa com outra, abandonando-a. Nesta passagem
com tanta razão louvada pelos homens de gosto, é mais que todas admi-
rável a seguinte oitava:

Perde o lume dos olhos, pasma, e treme,


Pálida a cor, o aspecto moribundo,
Com mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as salsas escumas desce ao fundo:
Mas nas ondas do mar, que irado freme,
Tornando a aparecer desde o profundo;
Ah Diogo cruel! disse com mágoa,
E sem mais vista ser, sorveu-se n’água.

Que belíssima poesia! Não sei o que seja mais para admirar, se a co-
moção, que excita a desditosa amante, expirando vítima do seu amor no
meio das ondas, se a verdade e o colorido da pintura, que faz o poeta
do seu último transe. Não me recordo de haver lido nada mais poético
e patético, que o sentimento expresso nestes dois últimos versos entre as
agonias da morte: “Ah Diogo cruel! disse com mágoa, / E sem mais vista
ser, sorveu-se n’água.” Um tal quadro não é só belo, é sublime!
Já no precedente discurso emiti o meu juízo sobre este excelente epi-
sódio, a que nada falta quanto à situação da amante, que se acha ma-
gistralmente descrita, mas em que há alguma coisa a desejar quanto à
situação do herói, cuja dor devia ser expressa em termos menos vagos.
Na terceira passagem, que é a descrição do descobrimento do Brasil
por Pedro Álvares Cabral, há a admirar a insigne mestria com que o
poeta pinta as poéticas cenas que apresenta a nova terra de Santa Cruz
96  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

em seus magníficos prospectos e curiosos habitantes, começando por


esta belíssima transição:

Voava entanto a nau na azul corrente,


Impelida de um zéfiro sereno,
E do brilhante mar o espaço ingente
Um campo parecia igual e ameno:
Encrespava-se a onda docemente,
Qual aura leve, quando move o feno;
E como o prado ameno rir costuma,
Imitava as boninas com a escuma.

Não é de certo possível fazer uma pintura mais aprazível e deleitosa


do mar impelido por um vento brando, quando a navegação se torna
agradável pelo sublime aspecto do imenso oceano em bonança, dando
largas aos navegantes a entreterem-se em muita conversação. Há neste
gracioso quadro muita poesia de imagens e muita suavidade métrica.
Desta passagem, que é um pouco extensa, só vos citarei mais o se-
guinte trecho, notável por sua beleza descritiva:

Da nova Região, que atento observa,


Admira o clima doce, o campo ameno,
E entre arvoredo imenso, a fértil erva
Na viçosa extensão do áureo terreno:
Coberta a praia está de grã caterva
De incógnita nação, que com o aceno,
Porque a língua ignorava, à paz convida,
Erguendo-lhe o troféu do autor da vida.

Esta bela pintura de uma terra virgem de clima doce, de campo ame-
no e imenso arvoredo entressachado de fértil erva em sua viçosa ex-
tensão, bem como de uma nação incógnita, que se exprime por acenos,
encanta por sua amenidade, ao mesmo tempo que surpreende por sua
novidade, e faz palpitar o coração de todo brasileiro, que nela reconhece
a pintura da terra pátria. Como este se notam outros belos quadros em
toda esta rica passagem, que não é mais do que uma soberba galeria
deles. E se o autor nos tivesse dado mais vezes a descrição destas cenas
Autores brasileiros  97

naturais da América, o seu poema seria a todos os respeitos uma verda-


deira obra prima.
Podia ir por diante em minha análise, mas basta já o que fica citado
para dar-vos ideia do subido mérito deste distinto poeta, a quem coube
a glória de ser autor de uma de nossas melhores epopeias de segunda
ordem, e que não tem sido avaliado como merece. Feliz me reputarei se
a minha fraca apreciação convidar a nossa mocidade estudiosa a ler o
seu interessante poema, porque o não fará sem proveito.
Tendo analisado o Caramuru de frei José de S. Rita Durão, passarei
no seguinte discurso a apreciar o Uraguai, de José Basílio da Gama. Por
hoje termino aqui.
JOSÉ BASÍLIO DA GAMA*

José Basílio da Gama,


poeta; sua biografia; seu poema épico Uraguai.

LIÇÃO LXXII

O poeta com quem me vou hoje ocupar, e que adquiriu um nome


célebre na república das letras por seu incontestável merecimento, José
Basílio da Gama, autor do poema heroico Uraguai, nasceu também no
Brasil como Durão, de quem foi contemporâneo, bem como de Garção
e Dinis, porque floresceu nos reinados de D. José I e Dª Maria I, e foi,
apesar de ex-jesuíta, secretário particular do marquês de Pombal, que o
estimava, e a cujo irmão, Francisco Xavier Furtado de Mendonça, ex-
-governador das então capitanias do Pará e Maranhão, dedicou o seu
poema. Profundo apreciador das belezas da língua, que estudou com
muito gosto e esmero, foi este insigne poeta o que melhor, depois de Ca-
mões e antes de Francisco Manuel do Nascimento, conheceu e pôs em
prática todos os segredos da harmonia imitativa; por isso muito têm que
aprender os cultores da boa poesia em sua lição, aos quais a recomendo,
como a de um clássico.
Nasceu José Basílio da Gama em 1740,59 na vila de S. José do Rio das
Mortes, em Minas Gerais, e faleceu a 31 de Julho de 1795, em Lisboa,
com 55 anos de idade pouco mais ou menos, sendo seu corpo sepultado
na igreja do extinto convento da Boa Hora de Belém.
Foi cavalheiro da ordem de S. Tiago, escudeiro fidalgo da Casa Real
por alvará de 6 de agosto de 1787, e oficial da Secretaria de Estado dos
Negócios do Reino por portaria do primeiro ministro marquês de Pom-
bal, de 25 de junho de 1774. A estes títulos, que dão testemunho de sua
distinta posição oficial e social, uniu outros, que atestam o seu crédi-
to literário, como o de sócio da Arcádia de Roma desde 1763, com o
nome de Termindo Sipílio, e o de correspondente da Academia Real das
Autores brasileiros  99

Ciências de Lisboa desde 11 de fevereiro de 1795, ou poucos meses antes


de seu falecimento.
Foi filho do capitão-mor Manuel da Costa Vilas Boas, e de sua mu-
lher, Dª Quitéria Inácia da Gama, ambos pessoas ilustres de Minas Ge-
rais. Não puderam seus pais dar-lhe a educação que desejavam, porque
sua mãe enviuvou mui cedo e, apesar de possuir títulos de nobreza e
ser neta de um governador da colônia, viu-se por morte de seu ma-
rido reduzida a extrema pobreza em uma terra onde ainda os menos
abastados possuíam não poucas libras de ouro, e por conseguinte sem
meios de educar seu filho. Mas um religioso franciscano que por ali pas-
sara, encantado do singular talento do jovem José Basílio, o trouxe em
sua companhia para o Rio de Janeiro, onde o pôs a estudar nas aulas
de humanidade instituídas pelos jesuítas, que se encarregaram de sua
educação literária. Tão rápidos foram os progressos que nestas escolas,
então mui acreditadas, fez o novo aluno que estes padres, que tratavam
de chamar para a sua ordem o talento, onde quer que o encontravam,
não pouparam diligência para atrair a este que tanto prometia de si,
captando-lhe com arte a benevolência. Entrou com efeito José Basílio na
ordem, e vestiu a roupeta de jesuíta.
Era ele ainda noviço, quando chegou ao Rio de Janeiro o decreto da
extinção da Companhia de Jesus; e nessa qualidade era-lhe permitido
optar por uma módica côngrua, se se decidisse a deixar o hábito, ao que
ele se resolveu para não sofrer a desnaturalização e o desterro, como os
professos, e continuou a estudar humanidades com outros mestres.
Concluídos os seus estudos, resolveu-se a viajar, ou impelido do de-
sejo de melhorar de fortuna, ou, como era mais provável em um jovem
estudioso, de aperfeiçoar-se nas belas-letras, e deixando o Rio de Janeiro
dirigiu-se a Roma, fazendo via por Lisboa, sem que nesta última cidade
se demorasse.
Na capital do Orbe Cristão, onde residiu alguns anos, estudou com a
língua a literatura italiana, e tanto se distinguiu por seu talento que não
só foi admitido membro da Arcádia Romana com o nome de Termin-
do60 Sipílio, mas até chegou a reger uma cadeira, em certo seminário,
lugar em que pouco persistiu. De Roma passou a Nápoles, sem que se
saiba o motivo, e de lá a Lisboa, a fim de regressar ao Brasil.

  Na edição-fonte, “Termindio”.
60
100  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Chegado ao Rio de Janeiro, aonde pela ventura o levaram as saudades


da terra natal, foi, depois de pouco tempo de residência, denunciado por
intrigas como jesuíta, preso e remetido para Lisboa, onde o tribunal da
inconfidência, a que fora entregue, se dispunha a enviá-lo para Angola.
Nesta extremidade recorreu o poeta à sua musa, e fez um soberbo
epitalâmio, em que, entre os louvores que tributou ao marquês pela ree-
dificação de Lisboa, aplaudiu a queda dos jesuítas. Esta poesia valeu-lhe
não só a soltura, como as boas graças do marquês, que, reconhecendo-
-lhe o talento, e sobretudo quanto podia servir para a justificação de
sua política um ex-jesuíta que reprovava os planos ambiciosos de seus
confrades, começou a tratá-lo com afabilidade e distinção.
Estimulado pelos favores que lhe dispensava o primeiro ministro de
D. José I, resolveu o poeta concluir o seu poema Uraguai, que havia co-
meçado, ou traçado, e cujo assunto era a redução à obediência da coroa
portuguesa dos povos de Missões armados pelos jesuítas, ou a extinção
do poder destes padres ali; e por este fato ganhou a inteira confiança do
marquês de Pombal, que o chamou para o seu gabinete e fê-lo oficial de
Secretaria de Estado, sendo mais tarde nomeado escudeiro fidalgo, pois
parece que soubera também tornar-se agradável a Dª Maria I.
O Sr. F. A. Varnhagen diverge nas datas destas nomeações do Sr. Ino-
cêncio F. da Silva; mas fui levado a seguir o último, não só porque escre-
veu depois do primeiro, como porque cita as peças oficiais, em virtude
das quais se efetuaram as nomeações.
O serviço do gabinete de um ministro, que devia ser enfadonho para
um poeta, nunca o fez abandonar o comércio das Musas, a que se dava
com prazer nas horas vagas, como o provam o seu poema e outras poe-
sias que compôs durante este tempo, em que organizava e redigia sobre
o ditado do marquês de Pombal muitos trabalhos importantes, como o
regimento da Inquisição, publicado com o nome do cardeal da Cunha
e outros.
Era José Basílio, segundo informações que pôde colher o Sr. Var-
nhagen de pessoas que o conheceram, de compleição fraca, mediano de
corpo, trigueiro, de olhos mui vivos; ameno no trato; estimado na me-
lhor roda da corte; dotado de serenidade de espírito, e de veia fecunda
em anedotas.
Foi sumamente versado, ao que se infere de seu poema e outras
poesias originais e traduzidas, em todo gênero de literatura antiga e
Autores brasileiros  101

moderna, e com especialidade na grega, latina e italiana, cujos poetas


lhe eram familiares.
Sobre este distinto poeta e o seu poema Uraguai, eis aqui o juízo de
Almeida Garrett:

Justo elogio mereceu (diz este ilustrado crítico) o sensível cantor da infeliz
Lindoia, que mais nacional foi que nenhum de seus compatriotas brasi-
leiros. O Uraguai, de José Basílio da Gama, é o moderno poema que mais
mérito tem na minha opinião. Cenas naturais mui bem pintadas, de grande
e bela execução descritiva; frase pura e sem afetação; versos naturais sem
ser prosaicos, e quando cumpre sublimes sem ser guindados, não são qua-
lidades comuns. Os brasileiros principalmente lhe devem a melhor coroa
de sua poesia, que nele é verdadeiramente nacional e legítima americana.
Mágoa é que tão distinto poeta não limasse mais o seu poema, lhe não des-
se mais amplidão, e quadro tão magnífico o acanhasse tanto. Se houvera
tomado esse trabalho, desapareceriam algumas incorreções de estilo, algu-
mas repetições e um certo desalinho geral, que muitas vezes é beleza, mas,
continuado e constante em um poema longo, é defeito.

Eis agora sobre o mesmo objeto o juízo do Sr. Varnhagen, digno tam-
bém de apreço no que se refere à forma:

O autor do Uraguai, diz este, principalmente se extremou pelo talento


da harmonia imitativa, pelo mecanismo da linguagem, sabendo sempre
adaptar os sons às imagens. Às vezes faz correr os versos f luidos e natu-
rais; outras, como nas falas de Cacambo, demora no verso de propósito,
porque deseja representar distância, sossego ou brandura. Se a imagem é
audaz e viva, como quando fala Cepé, faz precipitar os versos: até diríeis
que, em casos duros e de batalhas, soube fazê-lo roçar asperamente uns
com outros.

Compôs José Basílio o poema Uraguai, a que deve a sua coroa de


poeta; o poemeto Quitúbia, mui inferior ao primeiro; o epitalâmio a
que aludi acima; o canto ao marquês de Pombal em 12 oitavas; oitavas
de Termindo Sipílio aos condes de Redinha; sonetos, alguns dos quais
são mui belos; e outras poesias, compreendidas a “Liberdade”, traduzida
de Metastasio.
102  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

O Uraguai foi pela primeira vez impresso em Lisboa, na Régia Ofi-


cina Tipográfica, em 1769, em 8º, com a Relação abreviada da república
que os religiosos jesuítas das províncias de Portugal e Espanha estabelece-
ram nos domínios ultramarinos das duas monarquias, e teve depois da
morte do autor diversas edições, sendo a última feita em Lisboa em 1845
pelo Sr. Varnhagen, conjuntamente com o Caramuru.
Este poema heroico, sobre que deve versar a minha análise, por ser
a melhor obra do poeta, divide-se em cinco cantos e, se bem ele lhe
não desse todo o desenvolvimento que o assunto comportava, revela
todavia muita viveza de imaginação, muito fogo de inspiração e muito
e apurado gosto, porque o plano é regular e bem traçado, o interesse
da ação, que é uma, sempre crescente, os caracteres bem sustentados,
as descrições e os episódios admiráveis, e a forma quase sempre bela e
bem concebida.
A ação do poema é a redução à obediência, ou antes a conquista dos
povos de Missões sujeitos ao domínio dos jesuítas, e o seu herói Gomes
Freire de Andrade, general português, como se depreende destes pri-
meiros versos, em que se acha incluída a proposição:

Fumam ainda nas desertas praias


Lagos de sangue tépidos e impuros,
Em que ondeiam cadáveres despidos,
Pasto de corvos. Dura inda nos vales
O rouco som da irada artilharia.
Musa, honremos o herói, que o povo rude
Subjugou do Uraguai, e no seu sangue
Dos decretos reais lavou a afronta.

Os defeitos do Uraguai, quase todos provenientes da pressa com


que o autor quis dar à luz o seu trabalho, talvez para satisfazer os dese-
jos do poderoso ministro que o protegia, são felizmente compensados
por grandes belezas de invenção e execução; como o soberbo episódio
de Lindoia, descrições de combates dignas de Homero ou de Camões,
pinturas admiráveis das cenas naturais e dos costumes dos índios da
América, estilo verdadeiramente grandíloquo, não obstante alguns des-
cuidos, linguagem pura e rica, muita e variada poesia onomatopaica, ex-
pressa em versos numerosos e perfeitos. Tantas e tais belezas espalhadas
Autores brasileiros  103

com a mão larga por composição que devia aliás apresentar maiores
dimensões elevam sem dúvida à categoria de grande poeta épico ao seu
autor, a quem só faltou tempo, e não engenho, para produzir uma obra
em tudo prima.
Este abalizado poeta em suma, que deixou o cunho do gênio impres-
so nos seus versos feitos a pressa, foi também, se deixarmos de atender a
datas, o verdadeiro fundador da poesia brasileira, porque soube empre-
gar a cor local com mais arte que Durão, que o procedeu na ordem cro-
nológica, ou aquele a quem, na frase de Almeida Garrett, os brasileiros
devem a melhor coroa de sua poesia.
Tendo-vos dado neste uma ideia geral do mérito do Uraguai, com
a notícia da vida de seu autor, passarei em outro discurso a analisar o
mesmo poema por partes, esmerilhando as suas belezas uma por uma.
Disse.

LIÇÃO LXXIII

Antes do descobrimento da América e da Índia, o mundo físico e


moral da velha civilização, limitado unicamente a parte do antigo con-
tinente, oferecia à poesia um campo menos vasto que o atual, no que
se refere às cenas naturais, às raças de homens e irracionais, à riqueza e
variedade dos produtos da terra.
A poesia bíblica teve por teatro a Judéia, a Síria, o Egito, parte da
Arábia e da Assíria; a poesia clássica grega e romana, a Europa, a Ásia
Menor, a Grande Ásia, menos a Índia e a Sibéria, parte da África, ou o
Egito e a atual Berbéria; a poesia da Idade Média, um espaço quase das
mesmas dimensões que o precedente, se bem de limite menos certos, e
pela ventura mais distantes.
Este mesmo teatro porém circunscreveu-se e alargou-se para a poe-
sia épica, segundo os tempos e os assuntos.
No tempo de Homero, que cantou a guerra de Troia na cólera de
Aquiles, limitou-se à Grécia, à Ásia Menor, ao Egito e a parte do litoral
do Mediterrâneo. No de Virgílio, que cantou a fundação do Império
Romano pelo troiano Enéias, e cuja Eneida é ainda um reflexo da guerra
de Troia, compreendeu de mais diretamente a Síria, parte da atual Ber-
béria, a Sicília, a Itália, e indiretamente todo o Orbe Romano de então.
104  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Dante, que cantou o Inferno, o Purgatório e o Paraíso pelos fins da Idade


Média, abrangeu o teatro de um mundo puramente ideal, em que o poe-
ta soube aliás compreender o físico e moral.
Depois do descobrimento da América e da Índia alargou-se a es-
fera do mundo físico e moral para a poesia épica, bem como para a
civilização.
De todos os poetas modernos Camões, que cantou o descobrimento
da Índia por Vasco da Gama e seus heroicos companheiros, foi o que
escolheu um teatro mais vasto, pois compreende este direta ou indire-
tamente todos os continentes, ou todo o mundo conhecido no tempo
do poeta. Ariosto, que cantou as proezas da cavalaria andante, e Tasso,
que cantou a restauração do Santo Sepulcro, ou a conquista de Jerusa-
lém por Gofredo de Bulhões e seus cruzados, e cujos poemas são meros
reflexos da Idade Média, a que pertencem as respectivas ações, tiveram
unicamente por teatro o antigo continente ou parte dele. Milton, que
cantou o Paraíso Perdido, ou a queda do primeiro homem, escolheu um
teatro puramente ideal, como Dante, e só pela tradição e revelação em
relação com o mundo atual.
Mas o primeiro poeta moderno distinto que tratou de um assunto
propriamente americano foi o soldado espanhol Alonso de Ercilla,61 que
cantou a Araucana, cuja primeira parte foi impressa três anos antes dos
Lusíadas, escolhendo diretamente para teatro o país mais meridional da
América do Sul, ou o Chile e o arquipélago de Chiloe.
Na literatura portuguesa, só mais de dois séculos e meio depois do
descobrimento da América e do Brasil é que apareceram dois poemas
de assuntos propriamente americanos, O Caramuru, de frei José de
Santa Rita Durão, e o Uraguai, de José Basílio da Gama, dos quais já
vos dei ampla notícia, e cujo teatro direto foi a América ou o Brasil. Até
os portugueses, sem exclusão dos mesmos nascidos no Brasil, admira-
dores e sectários da poesia clássica, só tratavam de assuntos europeus
e, o que é mais singular, de cenas e costumes da antiga Grécia, com
cujos nomes ornavam as suas composições. Os dois poetas nascidos
no Brasil, cujo nomes citei, foram os primeiros que, sacudindo o jugo
da poesia clássica, ousaram fundar uma nova escola e criar a poesia

61
 Nascido em 1533 e morto em 1594; seu poema, La Araucana, teve suas três partes
respectivamente publicadas em 1569, 1578 e 1589.
Autores brasileiros  105

brasileira. Por isso a leitura de seus poemas tem um atrativo de mais


para os brasileiros.
O Uraguai, que constitui hoje o objeto de minha análise, distingue-
-se do Caramuru, que já analisei, pelo melhor e mais bem distribuído
emprego da cor local, ou porque não resfriou a ação com tantas e tão
longas digressões históricas, como o segundo. Há contudo no emprego
da mesma cor local outra diferença entre dois poemas, que cumpre tor-
nar aqui bem saliente para a melhor apreciação de ambos.
O Caramuru descreveu o índio da América em toda a sua selvática
bruteza, com todos os seus ferozes instintos e hediondos banquetes de
carne humana, para se conformar à verdade histórica da época, em que
se passou a respectiva ação, que foi durante as malogradas tentativas de
colonização do Brasil, feitas por particulares até a fundação da primeira
colônia na Bahia por conta do Estado.
O Uraguai, cuja ação se aproxima mais de nossos dias, pois apenas
dista deles cousa de um século, pinta o mesmo índio já meio civiliza-
do pelos jesuítas, sem aqueles instintos antropófagos, e posto a par dos
soldados de Gomes Freire de Andrade, o que é sem dúvida muito mais
poético.
Assim o assunto favoreceu mais a José Basílio ou este soube escolher
para a sua epopeia mais poético assunto, que Durão.
Feitas estas considerações prévias, que me pareceram requeridas pela
matéria, entrarei na minha análise, escolhendo para ler-vos três das me-
lhores passagens do Uraguai, por onde podereis ajuizar do subido mé-
rito do poeta.
Ei-las:

[...] Tinha Cacambo


Real esposa a senhoril Lindoia,
De costumes suavíssimos e honestos
Em verdes anos; com ditosos laços
Amor os tinha unido, quando ao som primeiro
Das trombetas lh’o arrebatou dos laços
A glória enganadora. Ou foi que Balda
Engenhoso e sutil quis desfazer-se
Da presença importuna e perigosa
Do índio generoso; e desde aquela
106  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Saudosa manhã, que a despedida


Presenciou dos dois amantes, nunca
Consentiu que outra vez tornasse aos braços
Da formosa Lindoia, e descobria
Sempre novos pretextos da demora.
Tornar não esperado e vitorioso
Foi todo o seu delito. Não consente
O cauteloso Balda que Lindoia
Chegue a falar ao seu esposo; e manda
Que uma escura prisão o esconda e aparte
Da luz do sol. Nem os reais parentes,
Nem dos amigos a piedade, e o pranto
Da enternecida esposa, abranda o peito
Do obstinado juiz: até que a força
De desgostos, de mágoa e de saudade,
Por meio de um licor desconhecido,
Que lhe deu compassivo o santo padre,
Jaz o ilustre Cacambo: entre os gentios
Único, que na paz e em dura guerra,
De virtudes e valor deu claro exemplo.
Chorando ocultamente e sem as honras
Do régio funeral, desconhecida
Pouca terra os honrados ossos cobre,
Se é que os seus ossos cobre alguma terra.
Cruéis ministros, encobri ao menos
A funesta notícia. Ai que já se sabe
A assustada amantíssima Lindoia
O sucesso infeliz. Quem a socorre!
Que aborrecida de viver procura
Todos os meios de encontrar a morte.
Nem quer que o esposo longamente a espere
No reino escuro, aonde se não ama.
Mas a enrugada Tanajura, que era
Prudente e experimentada, e que a seus peitos
Tinha criado em mais ditosa idade
A mãe da mãe da mísera Lindoia,
E lia pela história do futuro,
Autores brasileiros  107

Visionária, supersticiosa,
Que de abertos sepulcros recolhia
Nuas caveiras, e esburgados ossos,
A uma medonha gruta, onde ardem sempre
Verdes candeias, conduziu chorando
Lindoia, a quem ama como filha,
E em ferrugento vaso licor puro
De viva fonte recolheu. Três vezes
Girou em roda, e murmurou três vezes,
Co’a carcomida boca, ímpias palavras,
E as águas assoprou: depois com o dedo
Lhe impõe silêncio, e faz que as águas note.
Como no mar azul, quando recolhe
A lisonjeira viração as asas,
Adormecem as ondas, e retratam
Ao natural as debruçadas penhas,
O copado arvoredo, e as nuvens altas.
Não de outra sorte a tímida Lindoia
Aquelas águas fielmente pintam
O rio, a praia, o vale e os montes, onde
Tinha sido Lisboa, e viu Lisboa
Entre despedaçados edifícios,
Com o solto cabelo descomposto,
Tropeçando em ruínas encostar-se;
Desamparada dos habitadores
A Rainha do Tejo, e solitária
No meio de sepulcros, procurava
Com seus olhos socorro; e com seus olhos
Só descobria de um e de outro lado
Pendentes muros e inclinadas torres.
Vê mais o luso Atlante, que forceja
Por sustentar o peso desmedido
Nos roxos ombros. Mas do céu sereno,
Em branca nuvem próvida donzela
Rapidamente desce, e lhe apresenta
Da sua mão, espírito constante,
Gênio de Alcides, que de negros monstros
108  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Despeja o mundo, e enxuga o pranto à pátria.


Tem por despojos cabeludas peles
De ensanguentados e famintos lobos,
E fingidas raposas. Manda e logo
O incêndio lhe obedece, e de repente
Por onde quer que ele encaminhe os passos,
Dão lugar as ruínas. Viu Lindoia
Do meio delas, só a um seu aceno,
Sair da terra feitos e acabados
Vistoso edifícios. Já mais bela
Nasce Lisboa de entre as cinzas: glória
Do grande Conde, que co’a mão robusta
Lhe firmou na alta testa os vacilantes,
Mal seguros castelos. Mais ao longe
Prontas no Tejo, e ao curvo ferro atadas
Aos olhos dão de si terrível mostra,
Ameaçando o mar, as poderosas,
Soberbas naus. Por entre as cordas negras
Alvejam as bandeiras: geme atado
Na popa o vento; e alegres e vistosas
Descem das nuvens a beijar os mares
As flâmulas guerreiras. No horizonte
Já sobre o mar azul aparecia
A pintada Serpente, obra e trabalho
Do Novo Mundo, que de longe vinha
Buscar as nadadoras companheiras;
E já de longe a fresca Cintra e os Montes,
Que inda não conhecia, saudava.
Impacientes da fatal demora,
Os lenhos mercenários junto à terra
Recebem no seu seio, e a outros climas,
Longe dos doces ares de Lisboa,
Transportam a Ignorância e a magra Inveja;
E envolva em negros e compridos panos
A Discórdia, o Furor. A torpe e velha
Hipocrisia vagarosamente
Atrás deles caminha; e inda duvida
Autores brasileiros  109

Que houvesse mão, que se atravesse a tanto.


O povo a mostra com o dedo; e ela
Com os olhos no chão da luz do dia
Foge, e cobrir o rosto inda procura
Com os pedaços do rasgado manto.
Vai, filha da ambição, onde te levam
O vento e os mares; possam teus alunos
Andar errando sobre as águas: possa
Negar-lhe a bela Europa abrigo e porto.

______

Salvas as tropas do noturno incêndio,


Aos povos se avizinha o grande Andrade
Depois de afugentar os índios fortes,
Que a subida dos montes defendiam,
E rotos muitas vezes e espalhados
Os tapes cavalheiros que arremessam
Duas causas de morte e uma lança,
E em largo giro todo o campo escrevem.
Que negue agora a pérfida calúnia
Que se ensinava aos bárbaros gentios
A disciplina militar, e negue
Que mãos traidoras a distantes povos
Por ásperos desertos conduziam
O pó sulfúreo, e as sibilantes balas,
E o bronze, que rugia nos seus muros.
Tu, que viste e pisaste, ó Blasco insigne,
Todo aquele país, tu só pudeste,
Co’a mão, que dirigia o ataque horrendo,
E aplanava os caminhos da vitória,
Descrever ao teu rei o sítio e as armas,
E os ódios e o furor e a incrível guerra.
Pisaram finalmente os altos riscos
De escalvada montanha, que os infernos
Co’o peso oprime, e a testa altiva esconde
Na região, que não perturba o vento.
110  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Qual vê quem foge à terra, pouco a pouco


Ir crescendo o horizonte, que se encurva,
Até que com os céus o mar confina,
Nem tem à vista mais que o ar e as ondas:
Assim quem olha do escarpado cume,
Não vê mais do que o céu, que o mais lhe encobre
A tarda e fria névoa, escura e densa.
Mas quando o sol, de lá do eterno e fixo
Purpúreo encosto do dourado assento,
Co’a criadora mão desfaz, e corre
O véu cinzento de ondeadas nuvens,
Que alegre cena para os olhos! Podem
Daquela altura, por espaço imenso,
Ver as longas campinas retalhadas
De trêmulos ribeiros; claras fontes
E lagos cristalinos, onde molha
As leves asas o lascivo vento;
Engraçados outeiros, fundos vales
E arvoredos copados e confusos,
Verde teatro, onde se admira quanto
Produziu a supérflua Natureza.
A terra sofredora de cultura
Mostra o rasgado seio; e as várias plantas,
Dando as mãos entre si, tecem compridas
Ruas, por onde a vista saudosa
Se estende e perde. O vagaroso gado
Mal se move no campo, e se divisam
Por entre as sombras da verdura, ao longe,
As casas branquejando, e os altos templos.
Ajuntavam-se os índios entretanto
No lugar mais vizinho, onde o bom padre
Queria dar Lindoia por esposa
Ao seu Baldeta, e segurar-lhe o posto
E a régia autoridade de Cacambo.
Estão patentes as douradas portas
Do grande templo, e na vizinha praça
Se vão dispondo de uma e de outra banda
Autores brasileiros  111

As vistosas esquadras diferentes.


Co’a chata frente de Urucu tingida,
Vinha o índio Cobé disforme e feio,
Que sustenta nas mãos pesada maça,
Com que abate no campo os inimigos,
Como abate a seara o rijo vento.
Traz consigo os selvagens da montanha
Que comem os seus mortos; nem consentem
Que jamais lhes esconda a dura terra
No seu avaro seio o frio corpo
Do doce pai, ou suspirado amigo.
Foi o segundo, que de si fez mostra,
O mancebo Pindó, que sucedera
A Cepé no lugar; inda em memória
Do não vingado irmão, que tanto amava,
Leva negros penachos na cabeça.
São vermelhas as outras penas todas,
Cor que Cepé usara sempre em guerra.
Vão com ele os seus tapes, que se afrontam,
E que têm por injúria morrer velhos.
Segue-se Caitutu do régio sangue,
E de Lindoia irmão. Não muito fortes
São os que ele conduz; mas são tão destros
No exercício da frecha, que arrebatam,
Ao verde papagaio o curvo bico,
Voando pelo ar. Nem dos seus tiros
O peixe prateado está seguro
No fundo do ribeiro. Vinham logo
Alegres guaranis de amável gesto.
Esta foi de Cacambo a esquadra antiga.
Penas da cor do céu trazem vestidas,
Com cintas amarelas: e Baldeta
Desvanecido a bela esquadra ordena
No seu Jardim: até o meio a lança
Pintada de vermelho, e a testa e o corpo
Todo coberto de amarelas plumas.
Pendente a rica espada de Cacambo,
112  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

E pelos peitos ao través lançada,


Por cima do ombro esquerdo, a verde faixa
De donde ao lado oposto a aljava desce,
Num cavalo da cor da noite escura
Entrou na grande peça derradeiro
Tatu-Guaçu feroz, e vem guiando,
Tropel confuso de cavalaria,
Que combate desordenadamente.
Trazem lanças nas mãos, e lhes defendem
Peles de monstros os seguros peitos.

______

[...] Não faltava,


Para se dar princípio à estranha festa,
Mais que Lindoia. Há muito lhe preparam
Todas de brancas penas revestidas,
Festões de flores, as gentis donzelas.
Cansados de esperar, ao seu retiro
Vão muitos impacientes a buscá-la.
Estes da crespa Tanajura aprendem
Que entrara no jardim triste e chorosa,
Sem consentir que alguém a acompanhasse.
Um frio susto corre pelas veias
De Caititu, que deixa os seus no campo;
E a irmã por entre as sombras do arvoredo
Busca co’a vista, e treme de encontrá-la.
Entram enfim na mais remota e interna
Parte do antigo bosque, escuro e negro,
Onde ao pé de uma lapa cavernosa
Cobre uma rouca fonte, que murmura,
Curva latada de jasmins e rosas.
Este lugar delicioso e triste,
Cansada de viver, tinha escolhido
Para morrer a mísera Lindoia.
Lá reclinada, como quem dormia,
Na branda relva e nas mimosas flores,
Autores brasileiros  113

Tinha a face na mão e a mão no tronco


De um fúnebre cipreste, que espalhava
Melancólica sombra. Mais de perto
Descobrem que se enrola no seu corpo
Verde serpente, e lhe passeia e cinge
Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.
Fogem de a ver assim sobressaltados,
E param cheios de temor ao longe:
E nem se atrevem a chamá-la, e temem
Que desperte assustada, e irrite o monstro,
E fuja, e apresse no fugir a morte.
Porém o destro Caititu, que treme
Do perigo da irmã, sem mais demora
Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes
Soltar o tiro, e vacilou três vezes
Entre a ira e o temor. Enfim sacode
O arco, e faz voar a aguda seta,
Que toca o peito de Lindoia, e fere
A serpente na testa, e a boca e os dentes
Deixou cravados no vizinho tronco.
Açouta o campo co’a ligeira cauda
O irado monstro, e em tortuosos giros
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.
Leva nos braços a infeliz Lindoia
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece (com que dor!), no frio rosto,
Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito,
Os olhos em que amor reinava um dia,
Cheios de morte; e muda aquela língua,
Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes
Contou a larga história de seus males.
Nos olhos Caititu não sofre o pranto,
E rompe em profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mão já trêmula gravado
114  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

O alheio crime, e a voluntária morte,


E por todas as partes repetindo
O suspirado nome de Cacambo.
Inda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado e triste,
Que os corações mais duros enternece,
Tanto era bela no seu rosto a morte!

Na primeira das três passagens escolhidas, a qual é a primeira parte


do belo episódio de Lindoia, notai, Senhores, a esquisita sensibilidade
que o poeta sabe derramar por toda ela, quer no tocante ao triste fim de
Cacambo, quer na expressão da dor da mísera amante; outrossim, a rara
habilidade com que, numa visão desta última, apresenta primeiramente
a vista de Lisboa destruída pelo terremoto, depois a da mesma cidade
reedificada pelo marquês de Pombal, e por último a do embarque dos
jesuítas expulsos de Portugal e do Brasil. Vede como são sentimentais e
patéticos estes versos:

Cruéis ministros, encobri ao menos


A funesta notícia. Ai que já sabe
A assustada amantíssima Lindoia
O sucesso infeliz. Quem a socorre!
Que aborrecida de viver procura
Todos os meios de encontrar a morte.
Nem quer que o esposo longamente a espere
No reino escuro, aonde se não ama.

O susto, a dor e o desespero que experimenta a desditosa amante ao


saber a fatal notícia da morte do esposo, envenenado no cárcere pelo
jesuíta Balda, acham-se aí expressos com todos os caracteres de verdade,
e comovem profundamente. A natural pintura da acerbíssima situação
da infeliz é um rasgo de patético verdadeiramente sublime, porque fala
eloquentemente ao coração, e só a ele.
Só vos citarei mais outro trecho da mesma passagem, porque é ainda
uma notável pintura de outro gênero:
[...] A torpe e velha
Hipocrisia vagarosamente
Autores brasileiros  115

Atrás deles caminha, e inda duvida


Que houvesse mão, que se atrevesse a tanto.
O povo a mostra com o dedo, e ela
Com os olhos no chão da luz do dia
Foge, e cobrir o rosto inda procura
Com os pedaços do rasgado manto.

A hipocrisia jesuítica, que com indizível artifício fascinou e subjugou


por tanto tempo os reis e os povos, acha-se retratada nestes versos com
traços característicos lançados por mão de mestre. Nada escapa ao poe-
ta neste retrato tirado ao natural, quanto ao físico e moral, pois conhecia
o original de perto, por haver pertencido à ordem. Os epítetos — torpe,
velha — aí formam imagens apropriadas. As pausas dos versos, que se
empernam uns nos outros de propósito, pintam perfeitamente seja o
andar lento — “A torpe e velha / Hipocrisia vagarosamente / Atrás deles
caminha.” —, seja a dúvida sobre a ousadia do golpe desfechado — “e...
inda duvida / Que houvesse mão, que se atrevesse a tanto.” —, seja o
desapontamento, o sobressalto e a vergonha — “e ela / Com os olhos no
chão da luz do dia / Foge, e cobrir o rosto inda procura / com os pedaços
do rasgado manto.” É uma soberba pintura, a que nada falta para produ-
zir o desejado efeito poético.
A segunda passagem é notável pela beleza das cenas naturais. As vas-
tas campinas da América do Sul, com seus ribeiros e lagos, suas gra-
ciosas colinas, seus fundos vales, seus arvoredos copados e confusos,
avistadas do cume de um monte pelas tropas de Gomes Freire,62 como
Jerusalém ao longe pelas de Godofredo de Bulhões,63 aí apresentam o
mais soberbo e magnífico prospecto que poeta jamais descreveu. Para
prova do que digo basta citar-vos este belo trecho:

[...] Podem
Daquela altura, por espaço imenso,

62
  Antônio Gomes Freire de Andrade (1685-1763); general português, comandou as tropas
luso-espanholas na chamada Guerra Guaranítica (1750-1756), episódio histórico de que
trata o poema.
63
  Alusão ao poema Jerusalém libertada (1581), de Torquato Tasso (1544-1595), cujo herói
é o cavaleiro cruzado Godofredo de Bulhões.
116  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Ver as longas campinas retalhadas


De trêmulos ribeiros, claras fontes
E lagos cristalinos, onde molha
As leves asas o lascivo vento.
Engraçados outeiros, fundos vales
E arvoredos copados e confusos
Verde teatro, onde se admira quando
Produziu a supérflua Natureza.

Não é de certo possível pintar com mais naturalidade, galhardia e


frescura as admiráveis paisagens da América, que se desdobram a per-
der de vista e descrevem o mais soberbo e variado panorama aos olhos
extasiados, observado do cimo de um monte. O poeta, que reunia a
grande engenho perfeito conhecimento local, não podia escolher me-
lhor ponto de observação para tão grandioso e sublime quadro.
Citar-vos-ei ainda desta passagem os seguintes versos notáveis pela
poesia imitativa que encerram:

Num cavalo da cor da noite escura


Entrou na grande praça derradeiro
Tatu-Guaçu feroz, e vem guiando
Tropel confuso de cavalaria,
Que combate desordenadamente.

Aí tudo é pitoresco e onomatopaico: as imagens, os sons e os versos


desarcados de propósito para representar o abalo, o estremecer do solo,
a desordem, a confusão: “e vem guiando / Tropel confuso de cavalaria, /
Que combate desordenadamente.” Parece que se sente, ouve e vê o que o
poeta quis representar-nos.
A terceira passagem, que é a última parte do episódio de Lindoia, ou
a catástrofe, é notável pela força do patético que em toda ela domina, e
a mais bela pela ventura de todo o poema, que aliás contém outras mui
ricas de poesia. Pelo menos não me recordo de haver lido nada melhor
neste gênero, que os seguintes admiráveis versos:
Leva nos braços a infeliz Lindoia
O desgraçado irmão que, ao despertá-la,
Autores brasileiros  117

Conhece, com que dor! No frio rosto


Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o branco peito!
Os olhos em que amor reinava um dia
Cheios de morte; e muda aquela língua
Que ao surdo vento, e aos ecos tantas vezes
Contou a larga história de seus males.
Nos olhos Caitutu não sofre o pranto,
E rompe em profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mão já trêmula gravado
O alheio crime, e a voluntária morte,
E por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.
Inda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado e triste,
Que os corações mais duros enternece,
Tanto era bela no seu rosto a morte!

Aqui não descerei a pormenores de análise; tudo é belo, primoroso,


patético: as imagens, os versos e o conceito. Ninguém, ao ler esta mag-
nífica descrição da beleza morta, e morta de morte prematura e volun-
tária, para não pertencer ao filho de quem lhe assassinara o amante es-
poso, deixará de exclamar enternecido, é natural, arrebatador, sublime,
pois faz vibrar todas as cordas do coração. Assim só acrescentarei que
uma tão primorosa pintura não podia terminar melhor que por estes
imitáveis versos, que revelam a um tempo o coração sensível e o apura-
do gosto do poeta: “Inda conserva o pálido semblante / Um não sei quê
de magoado e triste, / Que os corações mais duros enternece, / Tanto era
bela no seu rosto a morte!”
O sensível cantor da infeliz Lindoia, como Almeida Garrett designa o
autor, pode correr parelhas na expressão do sentimento com Bernardim
Ribeiro e com Camões, que foram os poetas portugueses que melhor
o exprimiram antes dele, guardada todavia a diferença dos tempos e
assuntos.
Tendo apreciado o Uraguai, de José Basílio da Gama, que é o últi-
mo poeta notável do século XVIII nascido no Brasil, passarei em outros
118  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

discursos a analisar as poesias do padre Antônio Pereira de Sousa Cal-


das, o primeiro poeta notável, igualmente nascido no Brasil, que flores-
ceu já no século XIX. Por hoje aqui termino.
PADRE ANTÔNIO DE SOUSA CALDAS*

O Padre Antônio Pereira de Sousa Caldas,


poeta; sua biografia; sua tradução parafrástica dos salmos de Davi;
suas poesias líricas sacras; suas poesias líricas profanas.

LIÇÃO LXXIV

Vou, Senhores, ocupar-me agora com o poeta mais distinto nascido


e falecido no Brasil, enquanto este fazia parte da monarquia portuguesa,
o padre Antônio Pereira de Sousa Caldas, autor da sublime paráfrase
dos salmos de Davi, que o eleva à categoria de um dos maiores líricos
dos tempos modernos, e de poesias originais de subido mérito, que lhe
assinam igualmente um dos primeiros lugares entre os líricos da língua
portuguesa. Este grande poeta, que foi, segundo o atesta o seu dialeto
poético e apurado gosto, um dos mais genuínos representantes da es-
cola de Camões, floresceu no reinado de Dª Maria I e na regência do
príncipe D. João, que reinou depois com o título de D. João VI, e foi
contemporâneo de Francisco Manuel e de Bocage, aos quais igualou em
talento e excedeu em instrução. A sua tradução dos salmos sobretudo,
um dos mais soberbos monumentos da poesia bíblica em língua viva, é
um verdadeiro tesouro de poesia lírica, com que enriqueceu a literatura
portuguesa então também nossa, e tal que, se excetuarmos as literaturas
inglesa e alemã, a eleva nesta parte acima das outras da Europa, que não
possuem transuntos igualmente magníficos dessa antiga e primordial
poesia, tão cheia de majestade, nobreza e sublimidade. Antes porém de
entrar na apreciação das poesias deste insigne poeta, devo dar-vos notí-
cia de sua vida, caráter e estudos especiais.

* V. 4 (1868), p. 231-286.
120  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Nasceu Antônio Pereira de Sousa Caldas a 24 de novembro de 1762,


na cidade do Rio de Janeiro, que foi pouco depois elevada à categoria de
capital do Estado do Brasil por el-rei D. José I, porque a perda da colônia
do Sacramento, no Rio da Prata, ocorrida a 29 de outubro do mesmo
ano, chamara para o sul da vasta colônia portuguesa a atenção do go-
verno de metrópole. Nasceu de compleição mui débil e doentia, como
Garção, porque às vezes a natureza capricha em revestir o gênio com um
invólucro mais frágil que o dos outros homens. O gênio é um privilégio
que não se possui de ordinário, senão com perda das dimensões de ou-
tras vantagens de diversa ordem.
Foi filho de Luís Pereira de Sousa, negociante pouco abastado, e de
sua mulher, Dª Ana Maria de Sousa, ambos nascidos no Brasil, mas
oriundos de honestas famílias portuguesas.
Recebeu educação mui esmerada, mas toda europeia, porque seu pai,
julgando que a mudança de clima contribuiria para o desenvolvimento
de seu físico e melhoramento de sua saúde, o mandou para Lisboa na
idade de oito anos, confiando-o aos cuidados de parentes que ali tinha.
Desta viagem e de seu triste estado faz menção o poeta no seguinte so-
neto, escrito provavelmente nos cárceres da Inquisição:

Oito anos apenas eu contava,


Quando à fúria do mar abandonando
A vida, em frágil lenho, demandando
Novos climas, da pátria me ausentava.

Desde então à tristeza começava


O tenro peito a ir acostumando;
E mais tirana sorte adivinhando
Em lágrimas o pai e a mãe deixava.

Entre ferros, pobreza, enfermidade


Eu vejo, ó céus! que dor! que iníqua sorte!
O começo da mais risonha idade!

A velhice cruel (ó dura morte!),


Que faz tremer tão triste mocidade,
Para poupar-me, descarrega o corte.
Autores brasileiros  121

A sua educação literária, que teve princípio em Lisboa sob as vis-


tas dos parentes de seu pai, completou-se na Universidade de Coimbra,
para onde partiu aos 16 anos de idade a estudar jurisprudência, e onde
se formou em direito, não obstante um incidente desagradável que in-
terrompeu os seus estudos, e de que logo tratarei.
Era o poeta afável e de caráter brando, mas sujeito a acessos de me-
lancolia, porque o estado valetudinário do seu físico influía necessa-
riamente sobre o moral, ocasionando-lhe invencível tristeza, como ele
próprio diz. Esta disposição para a melancolia, proveniente do seu físi-
co, foi agravada pelo incidente aludido, o qual contribuiu para torná-lo
mais melancólico e hipocondríaco.
Foi justamente quando ele frequentava as aulas da Universidade que
entrou a desenvolver-se com mais força o seu talento, pois durante essa
quadra é que compôs quase todas as suas poesias denominadas profa-
nas, entre as quais se notam algumas mui belas, como a cantata de “Pig-
malião” e a Ode ao homem selvagem. Esses e outros lindos versos, com
que se ensaiava a sua brilhante Musa para missão mais alta, deram-lhe
logo uma celebridade que, transpondo o círculo de seus amigos e cole-
gas nos estudos, estendeu-se ao longe, e o prejudicou, tornando-o mais
conhecido do que convinha, segundo os tempos que corriam, porque
tinha-se regressado então ao beatério de meio século atrás, ou do tempo
de D. João V.
Havia falecido D. José I; achava-se exilado o marquês de Pombal; e
reinava Dª Maria I, que seguia uma política oposta à de seu pai, que se
mostrará protetor das letras, reformando a Universidade e animando a
cultura da boa poesia.
O governo fradesco desta Senhora achou que era perigoso um sujei-
to de tanto talento, mandou-o prender, apesar de seus poucos anos, e o
fez julgar pelo tribunal do Santo Ofício. Em atenção porém à sua idade,
pouco tempo se conservou preso, e foi apenas condenado a fazer exer-
cícios por seis meses na congregação dos padres catequistas de Rilha-
foles. Entregue aí à solidão e à leitura dos livros santos, soube por suas
maneiras afáveis e talentos superiores captar a benevolência dos padres
da congregação, que intercederam por ele ao governo, e lhe obtiveram o
perdão e a licença para continuar os seus estudos interrompidos.
Assim não foram só Francisco Manuel e Bocage que sofreram per-
seguições por seu talento e tiveram a ajustar contas com a Inquisição.
122  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Também Sousa Caldas gemeu nos cárceres desta, como o segundo, por-
que não pode expatriar-se como o primeiro. Era esse então o batismo do
gênio, e felizmente que já não era de sangue, como o que teve o infeliz
Antônio José.64 Que tempos para os homens de letras!
De volta à Universidade, continuou o poeta os seus estudos de juris-
prudência e, conseguidos os graus acadêmicos, dedicou-se à profissão
de advogado, que exerceu por algum tempo, recusando o lugar de juiz
de fora de uma das comarcas do Brasil, para que fora despachado por
solicitações de seus amigos.
A notícia porém da morte de seu pai, que sobreveio pouco depois,
ocasionou-lhe tão profundo desgosto que se resolveu a deixar Portugal
e a viajar pela Europa, para distrair-se com a locomoção e ao mesmo
tempo instruir-se, cultivando o seu espírito nos focos mais notáveis das
ciências.
A França de cujos escritores célebres tinha grande lição, foi a primei-
ra parte do continente europeu que atraiu as suas vistas, e para aí dirigiu
seus passos. Era isto em 1785; e já então esse país começava a agitar-se
com os prelúdios da imensa revolução de que foi ensanguentado teatro.
A geral efervescência que aí notou não podia de certo convir ao seu
espírito, que só ambicionava cultivar-se no remanso da paz. Por isso,
sem fazer longa demora no território francês, encaminhou-se logo para
a Itália, cujas principais cidades e monumentos visitou com proveito
de seus estudos, porque aí viveu vida repousada e conforme aos seus
desejos. Em Roma estabeleceu por fim a sua residência, para dedicar-se
inteiramente à cultura das letras. Aí, estimado do papa Pio VI, abraçou
a vida eclesiástica, compôs grande parte de suas poesias sagradas e en-
treteve relações com os mais acreditados sábios da época.
Depois de residir alguns anos em Roma, como o célebre padre An-
tônio Vieira, regressou a Portugal, onde recusou, para viver em inde-
pendente pobreza, a rendosa abadia de Lobrigos e a mitra episcopal do
Rio de Janeiro, que lhe foram oferecidas em consequência da grande
nomeada de suas letras e virtudes, mostrando-se ainda nisto semelhante
àquele padre, que também rejeitou bispados, para ficar isento de toda
e qualquer sujeição oficial. Nos quatro anos que residiu em Portugal
depois da sua vinda de Roma, entregou-se com ardor ao ministério do

  Antônio José da Silva (1705-1739), dramaturgo, dito “o judeu”.


64
Autores brasileiros  123

púlpito, concorrendo sempre grande multidão de povo a ouvir a sua


palavra eloquente e cheia de unção.
A lembrança porém de sua pátria e as saudades de sua mãe, que ain-
da vivia, o conduziram às praias do Rio de Janeiro, em 1801, segundo
se supõe, quando ainda essa cidade estava sob a recente e terrível im-
pressão da execução de Joaquim José da Cunha Xavier, por alcunha o
Tira Dentes, e das sentenças de degredo fulminadas contra seus ilustres
e infelizes cúmplices, por tentarem em 1780 separar a então Capitania
de Minas Gerais do domínio da coroa portuguesa, entusiasmados com
a emancipação dos Estados Unidos da América do Norte e com ideias
da Revolução Francesa.65
Projetou, para dar impulso à cultura do espírito na sua pátria, reor-
ganizar as sociedades literárias que haviam existido, mas sem resultado,
porque os principais homens de letras, que deviam compô-las, gemiam
dispersos pelos insalubres presídios de África, e os mais estavam ainda
aterrados com a lembrança da precedente catástrofe, que só a gente ins-
truída havia alcançado. Ao cabo de quatro anos de residência na pátria,
desgostoso sem dúvida com este estado de cousas, voltou para Portugal
em 1805, e deu então começo à sua primorosa tradução dos salmos.
De Portugal saiu de novo para o Brasil em companhia da família
real pelos fins de 1807, e com ela em princípio de 1808 aportou no Rio
de Janeiro, onde se conservou até a época de sua morte, ocorrida a 2 de
março de 1814.
Nos seis anos que ainda viveu na pátria, cercado do geral respeito e
consideração que inspiravam o seu saber, talentos e virtudes, concluiu
a sua tradução sobredita e exerceu o ministério do púlpito sempre com
admiração de numeroso concurso de povo que, como em Portugal, acu-
dia a ouvi-lo, arrebatado por sua persuasiva eloquência.
Compôs Sousa Caldas a paráfrase dos salmos, as poesias líricas sa-
cras e profanas, que correm impressas em dois volumes de 8º francês,
estampados em Paris em 1820 e 1821 por diligência de seu sobrinho
Antônio de Sousa Dias, com um discurso sobre a poesia e a língua
hebraica, notas e observações, do tenente-general Francisco de Borja

  As referências imprecisas registradas neste parágrafo acerca da Inconfidência Mineira


65

— a data e o sobrenome do seu principal personagem (sem falar no modo de grafar-lhe o


cognome) — parecem indiciar a precariedade do conhecimento daquele fato histórico na
época em que Sotero dos Reis escreveu.
124  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Garção Stockler,66 amigo do autor. Compôs mais, além dessas, outras


poesias que nunca foram impressas, entre as quais algumas tragédias,
segundo afirma o Sr. João Manuel Pereira da Silva, e grande número de
obras em prosa, como sermões, cartas e outras, que ou se perderam, ou
se conservam inéditas nas mãos de seus parentes.
Foi o padre Sousa Caldas um dos maiores líricos do princípio deste
século; e se com ele rivalizaram em talento Francisco Manuel e Boca-
ge, excedeu em instrução a todos os poetas contemporâneos; pois, não
satisfeito com a que tinha bebido em Portugal, viajou pelos países mais
cultos da Europa, unicamente com o fim de aumentar o seu cabedal
literário. Assim, foi cabal no conhecimento das línguas e literaturas an-
tigas e modernas, como o atestam suas obras, ou um grande poeta, e ao
mesmo tempo um sábio. A sua sublime paráfrase dos salmos assina-lhe
um lugar tão eminente no Parnaso que ainda não foi atingido por ou-
tro poeta de língua portuguesa, e nas odes e cantadas ombreou com os
melhores.
Eis o juízo de Almeida Garrett acerca dele:

O padre Antônio Pereira de Sousa Caldas, brasileiro, é dos melhores líricos


modernos. A poesia bíblica, apenas encetada por Camões na paráfrase dos
salmos Super flumina Babylonis, foi por ele maravilhosamente tratada; e
desde Milton e Klopstock ninguém chegou tanto acima neste gênero.
A cantata de “Pigmalião’, a Ode ao homem selvagem, são excelentes também.

Ao deste ilustrado crítico adicionarei ainda o de M. Ferdinand Denis.

No número das produções notáveis desta época, releva colocar as poesias


de Pereira de Sousa Caldas, que traduziu os salmos de Davi. Encontra-se
na versão destes cânticos sagrados tal nobreza de expressão, e tal magia de
estilo, que indicam que Caldas não é simplesmente um hábil tradutor, mas
um verdadeiro poeta original. Com as suas poesias sacras o provou, pois
apresentam elas um movimento de entusiasmo e grandeza tal que arrebata
o pensamento ao mais elevado sublime. Com razão classifica Garção Stock-
ler a ode segunda à religião como uma das mais belas produções da poesia
portuguesa. As poesias intituladas profanas revelam ainda o talento o mais

  Matemático, historiador da matemática e poeta (1759-1829).


66
Autores brasileiros  125

distinto; mas nota-se que o poeta acha-se nelas menos em sua esfera. A Ode
ao homem selvagem porém é igual no poético aos seus mais belos hinos
sagrados.

Tendo-vos dado notícia da vida deste poeta, dotado de tão singular


engenho como instrução, e geral ideia do seu elevado mérito como lí-
rico sagrado e profano, passarei em outros discursos a analisar as suas
poesias, começando pela sua admirável tradução dos salmos. Por hoje
aqui faço ponto.

LIÇÃO LXXV

O padre Antônio Pereira de Sousa Caldas, poeta insigne e orador


eloquente, de cuja vida e obras vos dei abreviada notícia no precedente
discurso, é incontestavelmente um dos primeiros líricos, não só da lín-
gua portuguesa, mas dos tempos modernos, pela sua soberba tradução
dos salmos de Davi, à qual nenhuma outra se iguala em língua alguma
viva, de que eu tenha conhecimento. E com efeito, passar sem quebra
para uma das línguas que atualmente falamos toda a grandeza e subli-
midade da poesia bíblica é empresa que por si só o eleva à categoria de
um verdadeiro gênio da poesia lírica, prescindindo já do lugar eminente
que nela lhe assinam as suas composições originais.
Diversos e mui distintos poetas, italianos e franceses, como Saverio
Mattei,67 Rugilo,68 J. B. Rousseau,69 tentaram esta árdua empresa, antes
do exímio tradutor português, mas todos ficaram aquém do seu impor-
tante objeto, nos transuntos mais ou menos apagados que nos deram
dos salmos de Davi. E não há que admirar, porque a poesia bíblica, tão
elevada no grandioso do conceito, como rica em viveza de imagens, é
por demais simples na expressão poética propriamente dita, e por isso
mesmo mui difícil de passar em toda a sua ingênua pureza para qual-
quer de nossos modernos idiomas, tão opostos em sua índole e rique-
za à índole e simplicidade, antes pobreza material, do hebraico, cujos
principais característicos nos foram fielmente conservados nas versões
67
  Nascido em 1746 e morto em 1825.
68
  Giuseppe Maria Rugilo (1722-1789).
69
  Jean-Baptiste Rousseau (1671-1741).
126  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

latina e grega da Bíblia. Estava reservado para o padre Sousa Caldas,


gênio nascido no Brasil, educado em Portugal e aperfeiçoado na Itália,
o atinar com todos os tons da harpa do poeta-rei, sem que lhe escapas-
se um só. Quanta força de engenho não era preciso desenvolver para
chegar a este resultado, que nunca puderam conseguir outros poetas
em diversas línguas, e aliás de reconhecido talento! Para produzir um
transunto dos salmos tão primoroso como o de que tratamos era mister
que o padre Sousa Caldas tivesse não só talento igual ao do poeta-rei,
mais gosto e critério e sumo grau!
Outros poetas portugueses, como o tenente general Garção Stockler,
amigo do autor, e a marquesa de Alorna e condessa de Assumar e Oey-
nhausen, mulher eruditíssima, verteram também os salmos, o primeiro
em parte, a segunda no todo, mas ficaram ambos muito aquém do padre
Sousa Caldas, porque nenhum tinha o extraordinário engenho dele.
Camões, para quem Lisboa era Sião, fez a paráfrase do salmo Super
flumina Babylonis, aplicando o texto da poesia bíblica aos seus infor-
túnios particulares, depois do naufrágio que sofreu quando vinha de
Macau, e à devassidão de costumes dos portugueses na Índia; mas a sua
paráfrase, conquanto bela, não pode, por sua aplicação especial, ser re-
putada uma versão propriamente dita. Do começo dela, e do da que fez
o padre Sousa Caldas do mesmo salmo, se conhece logo o diverso fim
que teve em vista um e outro poeta. Eis o da de Camões:

Sobolos rios que vão


De Babilônia me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião

Eis o da do padre Caldas:

Nas praias que o Eufrates rega,


Abatidos nos sentamos,
De amaro pranto as banhamos
Com saudade de Sião.

Assim, a tradução dos salmos pelo padre Sousa Caldas, superior a


todas quantas se leem em diversas línguas, é um verdadeiro tesouro de
Autores brasileiros  127

poesia, com que foram enriquecidas as letras no Brasil e em Portugal,


e por conseguinte a língua portuguesa, que leva nisto vantagem às dos
outros países cultos da Europa e América. Para que façais ajustada ideia
desta soberba versão, passarei a ler-vos dela o primeiro e o décimo oita-
vo salmos, com as suas variantes em versos da arte menor. Ei-los:

Beatus vir qui non abiit

Tradução I
Feliz aquele que os ouvidos cerra
A malvados conselhos,
E não caminha pela estrada iníqua
Do pecador infame,
Nem se encosta orgulhoso na cadeira
Pelo vício empestada;
Mas na lei do Senhor fitando os olhos,
A revolve e medita,
Na tenebrosa noite e claro dia
A fortuna e a desgraça,
Tudo parece a seu sabor moldar-se:
Ele é, qual tenro arbusto,
Plantado à margem de um ribeiro ameno,
Que de virentes folhas
A erguida frente bem depressa ornando,
Na sazão oportuna,
De frutos curva os suculentos ramos.
Não sois assim, ó ímpios;
Mas qual o leve pó que o vento assopra,
Aos ares alevanta,
E abate, e espalha, e com furor dissipa.
Por isso vos espera
O dia da vingança, e o frio sangue
Vos coalhará de susto;
Nem surgireis, de glória revestidos,
Na assembleia dos justos.
O Senhor da virtude é firme esteio,
Enquanto o ímpio corre,
128  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

De horríssonas procelas combatido,


A naufragar sem tino.

Tradução II
Venturoso o que não vaga
Pela estrada criminosa
Da impiedade, e a voz dolosa
Do malvado, que extravaga
Com sorriso, não afaga;
Nem do vício corruptor
Na cadeia pestilenta
Se assentou, com cego ardor;
Antes posta sempre a mente
Traz na lei do Criador.

Qual arbusto que plantado,


Das águas junto à corrente,
Com frescura permanente
Sempre está verde e copado,
E, no tempo apropriado,
Troca em fruto a tenra flor:
Tal o justo que se esmera
Na lei santa do Senhor;
Logo tudo lhe prospera,
Tudo corre a seu sabor.

Não assim a gente ímpia:


Mas qual leve pó, que o vento
Ergue e varre num momento,
E solto aos ares envia.
É por isso que, no dia
Do juízo, se verão
Justos e ímpios separados,
Os ímpios naufragarão;
E aos justos, de glória ornados,
O Senhor dará a mão.
Autores brasileiros  129

Coeli enarrant gloriam Dei

Tradução I

Os céus ressoam do Senhor a glória,


E o firmamento luminoso ostenta,
Por toda a parte, do supremo artífice
As mãos divinas.
O dia e noite revezados cantam
Sua grandeza, que o vizinho dia,
E a iminente tenebrosa noite
De novo entoam.
Os povos todos, inda o mais selvático
Ouvem, percebem esta voz sonora;
E o tom sublime, desde o Tejo ao Indo,
Soa e retumba.
Pôs o seu trono sobre o sol ardente
Que as nuvens rompe, e qual gentil esposo
Ergue do leito nupcial a frente
Pomposa e leda:
Com desmedido agigantado passo,
De um polo a outro se abalança e gira;
Deserto monte, solitário vale
Não se lhe escondem.
E como a lei imaculada e pura
De Deus esplende! Testemunho certo
De altas promessas, o perdido espírito
Toca e converte:
De almo prazer os corações embebe,
Ilustra os olhos deslumbrados, enche
Singelos eitos de saber profundo:
É santa, e eterna.
Em si descobre da verdade o lume
Que a justifica; na doçura excede
Saboroso favo, mais que o ouro e pedras
Preciosas brilha.
Teu servo a guarda; copioso e grande
130  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Prêmio a circunda. Mas, Senhor, quem pode


Os seus delitos conhecer? D’ocultos
Que me não lembram,
Ó Deus, me alimpa o carregado peito;
Nem me castigues por alheias culpas;
Se o meu espírito de tão grande peso
Não for curvado,
Puro e inocente de medonhos vícios,
Despedirei a voz canora, e grata
A teus ouvidos: este é todo o objeto
De meu desvelo.
A minha mente, e coração devoto,
Ante teus olhos, girará constante,
Ó meu Senhor, e todo o meu amparo,
Meu Redentor.

Tradução II

1
Um Deus imenso
Os céus ressoam,
E a glória entoam
Do Criador:
No firmamento,
Astros brilhantes
Cantam, constantes,
O seu Senhor.

2
O claro dia,
Que foge, o conta
À que desponta
Seguinte luz:
Por entre as trevas
Da noite escura,
A face pura
De Deus traluz.
Autores brasileiros  131

3
Ouvem da Terra
Os povos todos,
Em vários modos,
Tão alta voz:
Do Tejo ao Ganges,
Jaz descoberto
Este concerto
Que ele compôs.

4
No sol se estriba
O sublimado
Trono sagrado
Do grande Deus:
E como belo
Rompe do dia
O astro, e alumia
A Terra e os Céus!

5
Vede como ergue,
Na madrugada,
A face ornada
D’almo esplendor!
Qual sai do leito
Nupcial o esposo
Ledo, e mimoso
De um puro amor.

6
Apenas surge
No firmamento,
Eis, num momento,
Gigante audaz
Exulta, vendo
Que, a largo passo,
132  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

De imenso espaço
O giro faz.

7
Ao sumo vértice
Dos céus se lança,
E não descansa
Té os girar:
Nada a seus raios
Se esconde, e rápido
Aquece, impávido,
A terra e o Mar.

8
Se me namora
Tanta beleza
Que à natureza
Deus emprestou;
Mais me transporta
A lei benina
Que a mão divina
Nos outorgou.

9
É justa e santa,
Converte o espírito,
E o peito aflito
Banha em prazer;
Seu testemunho
Fiel, constante,
Faz o ignorante
Rico em saber.

10
Os seus preceitos
Resplandecentes
Às cegas gentes
Autores brasileiros  133

Cercam de luz:
De Deus é santo
O temor terno,
Coroa eterno
A quem conduz.

11
É a verdade
Quem vivifica,
E justiça
De Deus a lei;
À vista dela,
O ouro brilhante
E o diamante
Desprezarei.

12
De mal excede
Favo dourado
Seu delicado
Doce sabor;
Eu o conheço,
Pois fiel servo
A lei observo
Do meu Senhor.

13
Que cópia ingente
De bens espera
A quem se esmera
Em a guardar!
Mas seus pecados
Quem há que entenda,
E a sua venda
Possa rasgar?
134  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

14
O Deus perdoa
Os que eu não vejo,
E que forcejo
Por ver, em vão:
Se dei motivo
A alheia culpa,
O Deus desculpa
Meu coração.

15
Se não me acurva
Tão grande peso,
Contente e ileso,
Puro serei;
E o meu horrendo
Fatal pecado,
Purificado
Enfim verei.

16
As minhas vozes,
Meus pensamentos,
A Ti atentos,
Te agradarão;
Que és meu escudo
E me resgatas
Das mãos ingratas
Do atroz Dragão.

São magníficos os seguintes versos do primeiro salmo:

Feliz aquele que os ouvidos cerra


A malvados conselhos,
E não caminha pela estrada iníqua
Do pecador infame,
Nem se encosta orgulhoso na cadeira
Autores brasileiros  135

Pelo vício empestada;


Mas na lei do Senhor fitando os olhos
A revolve e medita,
Na tenebrosa noite e claro dia.
A fortuna e a desgraça,
Tudo parece a seu sabor moldar-se:
Ele é, qual tenro arbusto,
Plantado à margem de um ribeiro ameno,
Que de virentes folhas
A erguida frente bem depressa ornando,
Na sazão oportuna
De frutos curva os suculentos ramos.

Neste salmo, “Beatus vir qui non abiit”, é admirável a pintura do ho-
mem justo em contraposição à do ímpio que se lhe segue.
A comparação, por que termina a primeira por mim reproduzida —
“Ele é, qual tenro arbusto / Plantado à margem de um ribeiro ameno”
—, é do mais belo e poético efeito. A poesia de estilo que revela o talento
e o bom gosto do tradutor é do mais vivo colorido e nada deixa a desejar,
porque os tropos são os mais expressivos e todos os epítetos formam
imagens.
É igualmente bela a segunda tradução em versos octossílabos,70 na
qual a mesma comparação sobressai por um modo eminentemente gra-
cioso:

Venturoso o que não vaga


Pela estrada criminosa
Da impiedade, e a voz dolosa
Do malvado que extravaga,

70
 Pelo sistema de contagem das sílabas métricas progressivamente adotado em língua
portuguesa ao longo do século XIX a partir da chamada reforma de Castilho (consubstan­
ciada no Tratado de metrificação portuguesa, obra do poeta português Antônio Feliciano
de Castilho, publicada em 1851), os versos da tradução citada possuem sete sílabas (são
heptassílabos, portanto), não constituindo assim octossílabos. Desse modo, observa-se
que Sotero, em meados da década de 1860, quando proferia suas palestras e ia publicando
os volumes do Curso, ainda não seguia o critério preconizado por Castilho e atualmente
observado, segundo o qual não se contam as sílabas átonas posteriores à última tônica dos
versos. O fato é mais um indício do conservadorismo do autor.
136  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Com sorriso não afaga;


Nem do vício corruptor
Na cadeira pestilenta
Se assentou com cego ardor;
Antes posta sempre a mente
Traz na lei do Criador.

Qual arbusto que plantado,


Das águas junto à corrente,
Com frescura permanente
Sempre está verde e copado,
E, no tempo apropriado,
Troca em fruto a terna flor:
Tal o justo que se esmera
Na lei santa do Senhor;
Logo tudo lhe prospera,
Tudo corre a seu sabor.

Verter por esta forma de um texto latino em prosa, qual é a Vulgata,


cujo principal mérito para o tradutor que deseja ser fiel é ter conserva-
do todos os hebraísmos do original, não é traduzir, mas compor uma
obra verdadeiramente original em tudo o que se refere ao estilo poético,
porque é vestir pensamentos alheios com todas as galas da elocução que
requer a poesia. Assim, dos salmos de Davi compostos no original em
metro hoje desconhecido, ou em simples prosa poética, como querem
muitos eruditos que sustentam que o hebraico, atenta a sua imperfeição,
nunca passou de língua silábica e sem metrificação, deu-nos o padre
Sousa Caldas admiráveis hinos, belas odes, sublimes ou filosóficas, sen-
tidíssimas endechas e elegias, segundo o objeto e o tom de cada um
daqueles cânticos. Que flexibilidade de talento, ou antes, que extraor-
dinário engenho não era preciso, para com tais elementos operar uma
criação destas! Pode-se dizer, sem medo de errar, que o padre Sousa
Caldas identificou-se em pensamento com o poeta-rei da Bíblia para
produzir cada um desses magníficos cânticos por tal forma ataviados.
Tão grande é o poder do gênio!
São em tudo magníficos, ou antes divinos, os seguintes versos do sal-
mo décimo oitavo:
Autores brasileiros  137

Os Céus ressoavam do Senhor a glória,


E o firmamento luminoso ostenta,
Por toda parte, do supremo artífice
As mãos divinas.
O dia e noite revezados cantam
Sua grandeza, que o vizinho dia,
E a iminente tenebrosa noite
De novo entoam.
Os povos todos, inda o mais selvático,
Ouvem, percebem esta voz sonora;
E o tom sublime, desde o Tejo ao Indo,
Soa e retumba.
Pôs o seu trono sobre o sol ardente
Que as nuvens rompe, e qual gentil esposo
Ergue do leito nupcial a frente
Pomposa e leda:
Com desmedido agigantado passo,
De um polo a outro se abalança e gira;
Deserto monte, solitário vale
Não se lhe escondem.
E como a lei imaculada e pura
De Deus esplende! Testemunho certo
De altas promessas o perdido espírito
Toca e converte:
De almo prazer os corações embebe,
Ilustra os olhos deslumbrados, enche
Singelos peitos de saber profundo:
É santa, e eterna.

Este belíssimo salmo, “Coeli enarrant gloriam Dei”, é pela ventura


a composição mais sublime do engenho humano, que parece haver
nele tocado a última meta no engrandecer os louvores de Deus. Não
há em língua alguma cousa que no seu gênero lhe seja comparável
em elevação de pensamento; e é para notar que a língua a mais pobre
no material das vozes seja a que apresente a produção a mais rica em
sublimidade. Em todo ele o grandioso do conceito do autor é realçado
pela magnificência de estilo do tradutor; mas limitar-me-ei a apontar
138  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

unicamente as belezas da passagem reproduzida, porque bastam ao


meu propósito.
As figuras as mais atrevidas, as imagens as mais ricas, a harmonia a
mais ajustada, aí se notam em quase todos os versos, ou antes não há
um só que não contenha tudo isto. Vede como são belas as prosopopeias
— “Os céus ressoam do Senhor a Glória...”; / O dia e noite revessados
cantam / Sua grandeza, que o vizinho dia / E a iminente tenebrosa noite
/ De novo entoam.”; como entre outras é riquíssima a imagem — “Pôs o
seu trono sobre o sol ardente / Que as nuvens rompe”; como é soberba
a comparação — “E qual gentil esposo / Ergue do leito nupcial a frente /
Pomposa e leda”; como são felizes as metáforas — “E como a lei imacu-
lada e pura / De Deus esplende!”; De almo prazer os corações embebe, /
Ilustra os olhos deslumbrados...” Seria um nunca acabar se vos quisesse
enumerar uma por uma todas as belezas contidas nesta passagem, por-
que aí tudo é figura, tudo, imagens.
Não é menos bela a segunda tradução em versos de cinco sílabas; ma
dessa só vos citarei as duas primeiras estâncias, que são soberbas:

Um Deus imenso
Os ecos ressoam,
E a glória entoam
Do Criador:
No firmamento,
Astros brilhantes
Cantam constantes
O seu Senhor.
O claro dia,
Que foge, o conta
À que desponta
Seguinte luz:
Por entre as trevas
Da noite escura
A face pura
De Deus traluz.

Vede se em parte alguma se encontra poesia tão bela e sublime, como


a que brilha nesta riquíssima imagem: “Por entre as trevas / Da Noite
Autores brasileiros  139

escura / A face pura / De Deus traluz.”!! Um tão magnífico cântico pa-


rece haver sido inspirado do alto ao poeta-rei, de quem havia proceder
o Messias, prometido às gentes pelos profetas hebreus. E qual não é o
subido mérito do tradutor, que tão ajustadamente compreendeu e tão
magistralmente reproduziu o grandioso pensamento do inspirado, do
profeta do Senhor, com quem parece todo identificado em espírito!
Depois de vos haver dado uma soberba amostra da bela tradução do
padre Sousa Caldas nos dois salmos que analisei, e de que em nada des-
dizem no geral os outros vertidos pelo mesmo autor, passarei em outros
discursos a apreciar as suas poesias originais, fazendo aqui ponto neste.

LIÇÃO LXXVI

O padre Antônio Pereira de Sousa Caldas, Senhores, não foi só


grande e sublime na sua primorosa tradução dos salmos de Davi, foi-
-o também nas suas poesias originais intituladas sagradas, espécie de
composição lírica em que não tem rival em português, nem em ou-
tra alguma língua vulgar, que eu saiba. Em verdade, tão magníficas e
de uma tão sustentada elevação de pensamento são algumas de suas
odes sacras que nada se encontra do mesmo gênero na poesia moderna
que lhes seja comparável em beleza. Tais são por exemplo as duas que
começam “Desembainha, Maomé, a espada,” e “Ó Sinai! Ó montanha
assinalada.”
Francisco Manuel do Nascimento, o poeta português que na lira le-
vantou a voz mais alto, tem certamente muitas odes sublimes, como as
intituladas “Os novos Gamas,” “Netuno aos portugueses,” “Afonso de
Albuquerque,” “A liberdade” & cia., mas são de gênero inteiramente
diverso das do padre Sousa Caldas; pois, conquanto magníficas sejam,
nada têm que ver com as admiráveis poesias inspiradas ao último pelo
que há de mais elevado na religião cristã, e modeladas pelo tom da gran-
diosa poesia bíblica. As primeiras são belas composições profanas ou,
para melhor dizer, composições humanas pelo seu objeto; as segundas,
belas composições sagradas, como as intitula o autor, ou antes compo-
sições divinas, quanto a seu objeto. Não há pois termo de comparação
entre os dois no que se refere aos assuntos, à inspiração e ao tom, senão
o que poderia dar-se entre Isaías e Píndaro, porque Francisco Manuel é
140  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

um poeta como o segundo, e o padre Sousa Caldas um profeta como o


primeiro. Assim fica cada um dos dois maiores líricos da língua portu-
guesa único no seu gênero, ou antes, no seu pedestal.
Nenhum poeta português havia até então tratado assuntos desta or-
dem com igual mestria, ou com elevação condigna deles; antes, assun-
tos tais, que tanto podem levantar o espírito do poeta, pareciam ames-
quinhar-se e degradar-se na boca dos poucos que tentaram compor
poemas sagrados, como o demonstram a “Santa Comba”, de Ferreira,71
e a “Santa Úrsula”, de Bernardes,72 que são composições inteiramente
rasteiras e híbridas. Privilegiado pela natureza com o dom do gênio,
e eminentemente imbuído no espírito da poesia bíblica, da qual fizera
toda sua vida o mais aprofundado estudo, como o atesta a sua magnífica
tradução dos salmos, o padre Sousa Caldas foi o único que sobre eles
escreveu condignamente, e por modo tão cabal que não encontra rival
entre os poetas modernos, a não ser saindo do gênero lírico, em Milton
e Klopstock, porque no seu gênero não o tem.
Das duas soberbas odes citadas tomarei para objeto de minha análise
a segunda, que é a mais notável em elevação e beleza. Antes porém de
o fazer devo apresentar-vos sobre a mesma o juízo esclarecido de um
homem muito erudito, e amigo íntimo do autor, o tenente general Fran-
cisco de Borja Garção Stockler. Ei-lo:

Entre todas as composições do autor (diz o mencionado crítico) era esta


ode aquela cuja correção lhe mereceu menos desvelo, sendo talvez a que
mais o merecia; e por isso foi também aquela em que pratiquei alterações
mais notáveis, e em maior número... Entretanto seja-me lícito dizer que,
entre todas as odes sacras de meu defunto amigo, nenhuma conheço em
que mais se manifeste o seu estro poético, em que resplandeça maior eru-
dição, melhor escolha de imagens, mais nobreza de dição, nem mais força
e dedução de argumentos. Estes se dirigem umas vezes ao entendimento,
outras ao coração, outras à imaginação, e deste modo ele emprega habil-
mente todos os meios de persuasão... revestidos com os brilhantes atavios e
majestosos ornatos da mais elevada poesia lírica. À exceção da ode ao ho-
mem natural,73 que publicarei entre as suas poesias profanas, não conheço
71
  Ver nota 26.
72
  Parece referência a Diogo Bernardes (circa 1530-1595), poeta português.
73
  Na verdade, Ode ao homem selvagem (1783).
Autores brasileiros  141

composição alguma poética nas línguas vulgares que exceda, nem talvez
possa entrar em paralelo com esta produção, verdadeiramente original, de
um gênio extraordinário, tanto na sua força como na sua vastidão.

Passarei agora a ler-vos a ode sobredita, para que dela possais fazer
ajustada ideia. Ei-la:

Ó Sinai! Ó montanha assinalada


Dos pés do Onipotente!
Eu sinto inda soar a voz sagrada,
Que entre raios promulga a lei gravada
No espírito inocente
Do homem justo. O livro grande e santo!
Tu me enches de assombro, horror, e espanto!

Um povo antigo atesta a integridade


De tudo que em ti leio;
Com vivo fogo, augusta majestade
Me retratas do Eterno a potestade:
Do mundo firme esteio,
Único, providente, e bom o aclamas,
E em fervoroso amor minha alma inflamas.

Quem do comum naufrágio,


Que o orbe inteiro em erros submergia,
Este povo salvou, e do contágio
Da cega idolatria?
Quem no meio de inóspito deserto
Do Imenso a mão lhe faz notar de perto?

E ainda temes, ó prezada lira,


Levantar às estrelas
O sublime mortal, que Deus inspira,
Que de celeste força revestira,
E mil virtudes belas?
Ó Moisés! Tua voz não me alucina:
A voz que soltas, é a voz divina.
142  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Fervendo em santa ira abrasadora


Os crimes repreende
Do hebreu ingrato, cuja fé traidora
A luz quebranta, que tua alma adora:
Seguro a vara estende;
Eis vejo a natureza espavorida
A teus pés humilhar a frente erguida.

O povo, de que és guia,


Mil vezes entre as brenhas estremece:
Ao ver que a terra, o mar, a noite, o dia
Que tudo te obedece;
Mensageiro fiel da Divindade
Te reconhece, e afirma em toda a idade.

Serás tu, por ventura o prometido


Medianeiro amável?...
Ah! Tu vens predizê-lo, e em tom subido
Entoas de Jacó o recebido
Oráculo adorável.
Quem é pois esse augusto mensageiro,
Que o pranto há de enxugar ao mundo inteiro?

Já de Jacó o cetro não empunha


Judá, e pressurosa
A semana correu que afoito expunha
O casto Daniel, quando compunha
De Gabriel famoso
Ao fatídico aceno: “Onde é que o Justo
Para sempre assentou seu trono augusto?”

Qual bússola, agitada


De embravecido mar, oscila errante,
O Norte não atina; tal ansiada
A minha alma inconstante
Crê, presume, vacila, incerta treme,
E em dúvidas cruéis aflita geme.
Autores brasileiros  143

Brioso Gedeão, Sansão robusto,


Cujo semblante duro
Ao longe difundia frio susto;
Guerreiro Josué, vós sois do justo,
Que ansioso procuro,
Escassa sombra, por mais alta empresa,
Que abone a vossa ilustre fortaleza.

A brilhante fortuna, ajoelhando


De Salomão potente
Junto ao trono lá vejo, derramando
Com mão profusa, gesto ledo e brando,
De seus bens torrente:
Mas ah! Que eles não são mais que a pintura
Dos verdadeiros bens de eterna dura!

Ó cantor portentoso
Das grandezas do Nume soberano!
Se aterraste o gigante pavoroso,
Se o destronaste ufano,
Imagem és do vencedor da morte;
Mas, não é, como o seu, teu braço forte.

Vem aclarar-me, terno Jeremias,


Que de suave pranto
Meu peito banhas: o fervente Elias!
E tu, sublime enérgico Isaías:
Vinde apontar-me o Santo
Das nações, longo tempo suspirado,
Tantas vezes por vós profetizado.

Eu ouço suspirar com voz doente


Um varão abatido;
A virtude o rodeia refulgente;
Descora ao vê-lo o vício, e de repente
Se esconde espavorido.
Tudo quanto a vaidade humana preza
Plácido e firme, impávido despreza.
144  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Seus discursos respiram


A linguagem singela da verdade,
O amor da justiça, a paz inspiram,
A ardente caridade.
Acaso, ó céus! Ó Gólgota tremendo!
É o homem Deus, que eu vejo em ti morrendo?

Em pobres palhas inda tenro infante


Envolto se recosta;
Tu o viste nascer, ó radiante
Venturosa Belém, e triunfante
A tua frente arrosta,
Qual os cedros do Líbano copados,
Do voraz tempo os golpes redobrados.

De Tarsis e Sabá, dons preciosos


O berço lhe adornaram;
E em seus muros os povos revoltosos
Do Nilo o viram, quando saudosos
Ternos ais retumbaram
Em Ramá, e Raquel triste chorava
Os filhos que mão ímpia lacerava.

Qual vencedor piedoso


Da paz serena augusto mensageiro,
Ele se mostra sem estrepitoso
Aparato guerreiro,
Em singelo triunfo meigo e brando,
Jerusalém aflita consolando.

Ergue a face, ó Sião! Sacode altiva


O pó do teu semblante:
Transborda de alegria pura e viva:
Eis o teu Redentor, que a foice esquiva
Do crime vem constante
Embotar; eis aquele grande dia
Que Abraão, que Jacó te prometia.
Autores brasileiros  145

Escuta a voz, que no deserto brada


Do precursor austero,
Que havia preparar-lhe a árdua estrada.
Vê como a natureza olha humilhada
O aceno severo
De teu Senhor, vê como lhe obedece,
Como por Criador o reconhece.

O mar encapelado,
O sustém sobre as ondas, que se espantam,
E adora humilde os pés do Ser amado
Que os céus, e a terra cantam:
Judá retumba a voz sublime e forte,
Que Lázaro arrancou das mãos da morte.

Mas que langor, ó Musa, se apodera


Da tua amortecida,
Chorosa voz? Já frouxa não se esmera
Em acordar-se aos sons da lira austera
Que recusa sentida
Seguir a mão que, o plectro meneando,
Com ela aos astros se ia remontando.

Ó natureza! Cobre-te de luto


E nunca o teu semblante
De terno pranto faças ver enxuto:
Não brotes mais, ó Terra, doce fruto!
Teu curso triunfante
Detém, ó Sol! E finde essa harmonia,
Que os altos céus entoam noite e dia!

De sangue está banhado


O justo em afrontosa cruz pendente:
O Senhor do Universo transpassado
De dor acerba, ingente:
Tirano povo as vestes lhe sorteia:
E traição o vendeu, horrenda e feia.
146  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Os macerados olhos lhe circunda


Piedosa ternura,
No coração ajunta a dor profunda
Os doces sentimentos em que abunda,
E do Pai só procura
O perdão dos algozes, que o cravavam,
E no seu sangue as ímpias mãos banhavam.

Ó ser eterno! Que impressão derrama


A tua horrível morte
Dentro em minha alma! Que abrasada chama
Da terna gratidão meu peito inflama!
Ó Deus, e desta sorte
Quiseste que o perdão fosse selado
Aos criminosos do fatal pecado!

Ao clarão luminoso
De inspirados profetas, que cantaram
Os fatos, que contemplo fervorosa,
As dúvidas se aclaram
Ah! rende, ó Musa, o teu inquieto espírito,
E de alegria banha o peito af lito.

Nesta belíssima poesia, a segunda que o poeta compôs sobre a vir-


tude da religião cristã, e em que celebra a vinda do Messias, a constante
elevação de pensamento que se nota de princípio a fim é em tudo digna
do grandioso do assunto, não o sendo menos o tom altíloquo e bíblico
que reina em toda a composição, nem o entusiasmo que transpira das
expressões ardentes do poeta, antes do inspirado, ou do profeta! É esta
uma produção verdadeiramente sublime, por qualquer dos lados que
se encare, nem há nada na poesia lírica moderna que se possa pôr a par
dela no seu gênero. Suposto aí tudo seja admirável, vou reproduzir-vos
duas de suas passagens mais notáveis em beleza.
Eis aqui a primeira:

E ainda temes, ó prezada lira!


Levantar às estrelas
Autores brasileiros  147

O sublime mortal, que Deus inspira,


Que de celeste força revestira,
E mil virtudes belas?
Ó Moisés! Tua voz não me alucina:
A voz que soltas, é a voz divina.

Fervendo em santa ira abrasadora,


Os crimes repreende
Do hebreu ingrato, cuja fé traidora
A luz quebranta, que tua alma adora:
Seguro a vara estende;
Eis vejo a natureza espavorida
A teus pés humilhar a frente erguida.

O povo, de que és guia,


Mil vezes entre as brenhas estremece:
Ao ver que a terra, o mar, a noite, o dia,
Que tudo te obedece;
Mensageiro fiel da Divindade
Te reconhece, e afirma em toda a idade.

Serás tu, por ventura o prometido


Medianeiro amável?...
Ah! Tu vens predizê-lo, e em tom subido
Entoas de Jacó o recebido
Oráculo adorável.
Quem é pois essa augusto mensageiro,
Que o pranto há de enxugar ao mundo inteiro?

Nesta passagem, em que o poeta nos pinta o primeiro e o maior pro-


feta dos hebreus, revestido de todo o terrível poder que lhe foi confiado
por Deus para a salvação do seu povo, fazendo o mar obedecer à sua
prodigiosa vara e as fontes brotarem de árida rocha, a majestade da ex-
pressão anda sempre a par da grandeza de ideia que lhe serve de tipo.
Aí todos os epítetos formam pitorescas imagens, porque são os mais
apropriados; todos os tropos são de felicíssimo arrojo, porque são os
mais escolhidos, sendo notáveis entre os últimos a bela hipérbole por
148  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

que começa a passagem — “E ainda temes, ó prezada lira, / Levantar às


estrelas / O sublime mortal que Deus inspira,” —, e a não menos bela
prosopopeia por que termina a segunda estância dela — “Eis vejo a na-
tureza espavorida / A teus pés humilhar a frente erguida.” A nobre sim-
plicidade com que se exprime tanta grandeza torna ainda mais subido o
valor do quadro aos olhos de quem o examina atentamente. Que gran-
de, que sublime poeta, não é o padre Sousa Caldas!
Vede agora o belo contraste que resulta da grandiosa, mas humana,
figura de Moisés, em contraposição à branda, adorável e divina figura
do Messias, todo amor para com homens por quem se expõe a padecer
morte afrontosa, como se fosse um malfeitor.

Eu ouço suspirar com voz doente


Um varão abatido;
A virtude o rodeia refulgente;
Descora ao vê-lo o vício, e de repente
Se esconde espavorido.
Tudo quanto a vaidade humana preza
Plácido e firme, impávido despreza.

Seus discursos respiram


A linguagem singela da verdade,
O amor da justiça, a paz inspiram,
A ardente caridade.
Acaso, ó céus! Ó Gólgota tremendo!
É o homem Deus que vejo em ti morrendo?

Em pobres palhas inda tenro infante


Envolto se recosta;
Tu o viste nascer, ó radiante
Venturoso Bethlem, e triunfante
A tua frente arrosta,
Qual os cedros do Líbano copados,
Do voraz tempo os golpes redobrados.

De Tarsis e Sabá, dons preciosos,


O berço lhe adornaram;
Autores brasileiros  149

E em seus muros os povos revoltosos


Do Nilo o viram, quando saudosos
Ternos ais retumbaram
Em Ramá, e Raquel triste chorava.

Qual vencedor piedoso,


De paz serena augusto mensageiro,
Ele se mostra sem estrepitoso
Aparato guerreiro,
Em singelo triunfo meigo e brando
Jerusalém aflita consolando.

Esta admirável pintura, de que por extensa apenas reproduzo a pri-


meira parte, é a mais bela da ode no pensamento e colorido. O estilo é
de uma majestade simples e condigna da grandeza do objeto, mas sem
excluir as figuras, como se vê logo neste começo: “Eu ouço suspirar com
voz doente / Um varão abatido / A virtude o rodeia refulgente; / Descora
ao vê-lo vício, e de repente / Se esconde espavorido.” Não era possível
pintar com traços mais nobres e verídicos o homem Deus, cuja missão
era toda de paz, do que o fez o poeta nos seguintes versos: “Seus discur-
sos respiram / A linguagem singela da verdade, / O amor da justiça, a
paz inspiração, / A ardente caridade.” As imagens são as mais escolhidas
e apropriadas para dar realce à pintura, como se nota na primeira estân-
cia citada, e nestoutra: “Qual vencedor piedoso / De paz serena augusto
mensageiro / Ele se mostra sem estrepitoso / Aparato guerreiro.” E quão
bela não é a prosopopeia de Raquel chorando a morte dos meninos sa-
crificados por Herodes, que eram seus descendentes: “Quando saudosos
/ Ternos ais retumbaram / Em Ramá, e Raquel triste chorava / Os filhos
que mão ímpia lacerava.” Esta figura é tirada da patética passagem da
Escritura: Vox Ramla audita est, Rachel plorans filios suos...
A estas belíssimas estâncias só acrescentarei mais a seguinte:

Ergue a face, ó Sião! Sacode altiva


O pó do teu semblante:
Transborda de alegria pura e viva:
Eis o teu Redentor que a foice esquiva
Do crime vem constante
150  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Embotar: eis aquele grande dia


Que Abraão, que Jacó te prometia.

A magnífica prosopopeia contida nesta estância serve como de coroa


à primeira parte de tão soberba pintura, que não podia terminar melhor
e é em tudo traçada por mão de mestre, bem como a segunda parte,
que não reproduzo, mas que não cede à primeira em beleza. Não há por
certo poesia sacra moderna nem mais elevada nem mais bela que esta;
e se Garrett considera a cantata de Garção uma das mais sublimes con-
cepções do engenho humano, que qualificação não se devia dar a esta
incomparável ode, única no seu gênero? Deixo à vossa consideração o
julgá-lo.
Tendo apreciado as poesias sagradas do padre Sousa Caldas, passa-
rei em outro discurso a analisar as suas poesias profanas, fazendo aqui
ponto neste.

LIÇÃO LXXVII

O padre Antônio Pereira de Sousa Caldas, verdadeiro gênio na poe-


sia lírica, a que nenhum se iguala em português nas odes sacras, nem em
língua viva nas paráfrases dos salmos de Davi, primou também nas poe-
sias profanas que compôs, como ides ver no decurso desta análise. Entre
as últimas a sua cantata intitulada “Pigmalião” e a sua Ode ao homem
selvagem são ainda composições tais que o elevam à categoria de um dos
maiores líricos da língua portuguesa, e tanto mais para admirar que são
da sua primeira juventude, pois tinha apenas 21 anos de idade quando
produziu a segunda. Quem, ao ler produções tão primorosas, e sabendo
serem de mocidade ainda tão nova, não reconhecerá logo que o padre
Sousa Caldas nasceu poeta e dotado daquela sobre-humana faculdade a
que os antigos chamavam com muita propriedade mens divinior?74
O fim do século XVIII e o começo do XIX foram notáveis em Por-
tugal pelo aparecimento de três poetas líricos de primeira ordem, Fran-
cisco Manuel, Bocage e o padre Sousa Caldas, que todas floresceram
na mesma época, fenômeno assaz raro em um só povo, porque o gênio,

  “Mente (ou inteligência) mais divina.”


74
Autores brasileiros  151

de que a natureza nunca foi pródiga, só brilha de longe em longe na


ordem dos tempos, como o atestam os poucos grandes poetas, grandes
oradores e grandes historiadores da civilização antiga e moderna. Todos
estes três extraordinários engenhos, dos quais o primeiro e o último re-
uniram ao natural talento instrução cabal para a perfeição do gêneros
de poesia a que se dedicaram, tiveram todos a sorte comum de experi-
mentar os rigores do Santo Ofício, que eram então o batismo do gênio,
farejado logo ao despontar pelos inquisidores. Poucos anos antes vimos
ainda um poeta lírico de primeira ordem, o celebre Garção, expirando
em um cárcere para satisfazer os caprichos de um ministro prepotente.
Assim a literatura portuguesa é pela ventura dentre todas as da Europa
a mais rica em poesia lírica, porque aos quatro citados acresce ainda Di-
nis, que foi contemporâneo e amigo de Garção, e cujas odes pindáricas
têm um valor mui subido.
A Ode ao homem selvagem do padre Sousa Caldas é certamente uma
composição soberba, sobre a qual o seu amigo Garção Stockler emite o
seguinte juízo:

Esta ode, onde brilha um estro superior ao que se distingue nas mais belas
composições deste gênero escritas na língua portuguesa, e talvez mesmo
que em todas as línguas vivas, foi composta no ano de 1784, tendo o autor
apenas 21 anos de idade, por ocasião de uma disputa que, em conversação
amigável, casualmente se levantou entre mim e ele, acerca das vantagens da
vida social. A leitura do célebre discurso de João Jacques Rousseau, sobre a
origem da desigualdade entre os homens, foi a ocasião que motivou a nossa
pequena controvérsia.

Tendo porém analisado a sublime ode sacra do autor “Ó Sinai! Ó


montanha assinalada” e dois salmos da sua magnífica paráfrase mode-
lados pelo tom elevado da ode, julgo dever, para evitar a monotonia,
deixar de parte esta bela ode ainda única no seu gênero pelo assunto, e
escolher para objeto de minha análise a cantata de “Pigmalião”, produ-
ção lírica não menos bela, e que aliás me oferece termo de comparação
com outras do mesmo gênero.
Esta admirável cantata é em minha opinião uma obra tão prima
como o pode ser a de Dido por Garção e a de Leandro e Hero por Boca-
ge, a nenhuma das quais cede em beleza e primor; pois, se a de Garção é
152  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

inimitável em perfeição de estilo, a de Bocage em jogo de afetos, ela o é


em novidade, movimento e vida, sem excluir nem a perfeição de estilo,
nem o patético o mais belo. Cada uma destas três soberbas composições
líricas pode servir de modelo no seu gênero, e não tem, que eu saiba,
rival em língua alguma viva. Tão primorosas são elas!
Já em ocasião oportuna vos analisei as de Garção e Bocage; agora
passarei a ler-vos a do padre Sousa Caldas, para que dela façais ajustada
ideia:

Já da lúcida Aurora cintilava


O trêmulo fulgor, e a Noite fria
Nas mais remotas praias do Ocidente,
Entre abismos gelados se escondia.
Amor impaciente
Dos filhos de Morfeu se acompanhava,
E de Pigmalião a altiva mente,
Com lisonjeiros sonhos, afagava.
Ora de Galateia,
A estátua airosa e bela,
Obra do seu cinzel, obra divina,
Se lhe avivava na amorosa ideia:
Ora cuidava vê-la
Pouco a pouco animar-se,
E a marmórea dureza transformar-se
Em suave vital brandura, dina
Daquele que em Citera,
Sobre os Amores e o Prazer domina.
Sobressaltando freme;
E entre ilusões espera
Galateia apertar nos ternos braços:
Mas súbito desperta
Procura-a, não a vê; suspira, e geme.
Então com rosto triste e carregado,
O corpo ergue cansado,
E mal firmado os passos,
Girando a vista incerta
Pela vasta oficina, o busto encara
Autores brasileiros  153

Da majestosa Juno,
Que junto colocara
Ao implacável, fero Deus Netuno:
Lança mão do cinzel; ergue o martelo
Repoli-los intenta,
E o extremo ideal tocar do belo.
Mas o cinzel da mão se lhe extravia;
Frouxo o martelo assenta,
E na vivaz ardente fantasia,
Só Galateia com prazer revia
Aceso, arrebatado
De insólito furor, quebra, esmigalha
O mármore inculpado
Dos bustos, que polia:
Arremessa por terra, e à toa espalha
O martelo, e o cinzel, com que trabalha.
Volve os olhos, repara
De Galateia amada
Na formosura rara,
E ferido de Amor, curva tremendo
Os joelhos, e já não lhe cabendo
Dentro d’alma encantada
O transporte que o agita, ardido brada:

“Ó tu, que os Deuses do Olimpo


Feres de inveja, e de espanto,
Porque nunca pode tanto
Todo seu alto poder;

É possível que reúnas


Tanta graça, tal beleza,
E te negue a Natureza
Respirar, sentir viver?

Eis do gênio o prodígio soberano;


Nem poderá jamais o espírito humano,
Depois de rematar esta obra prima,
154  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Conter força sobeja,


Que poderosa seja
Para novos inventos, sem que o oprima
Tão grande esforço d’arte,
E esmorecido desfaleça, e caia.
Amor, ó Deus, sem quem tudo desmaia;
Amor que me guiaste
O sublime cinzel nesta árdua empresa,
Ah! Desce, vem; reparte
Da minha vida parte
Com aquela, que tu avantajaste
A Deusa da beleza:
Supre assim o langor da natureza:
Influi doce alento
Na minha Galateia tão formosa;
Influi-lhe razão, e sentimento.
Ó amor! Ó Deidade grandiosa!
Anima-a do calor em que abrasado
Meu coração a teu poder se rende:
Rouba a Jove esse facho sublimado
Do qual a vida pende:
Sacode, vibra a chama,
Que os mortais aviventa, anima, inflama.
Ó Amor! Ó Deus grande ! por quem vive
Quanto nos vastos mares
Se volve, e quanto talha os leves ares;
Por quem tudo revive,
E cuja mão potente descerra
A vital força, que fecunda a terra!
Escuta a voz que o teu socorro implora,
E a minha Galateia
Possa eu ver sem demora
Sentir o fogo que em meu peito ondeia.
Deuses, se isto impedis, de novo digo
Que inveja negra e feia
Em vossos corações achou abrigo.
Mas que vejo! Ó justos céus
Autores brasileiros  155

Treme o mármore e respira


E parece se retira
Ao toque de minha mão!
Rubro sangue as veias gira,
Já seu braço me rodeia,
E da linda Galateia
Já palpita o coração!
Nos olhos lhe circula, eu não me engano,
O teu fogo, ó Amor! Hoje cessaste
De ser um Deus tirano.
Hoje sobre os mais Deuses te elevaste!
Que te direi, Amor!... Olha... Repara,
Nas faces delicadas
As graças animadas
Ateando desejos, e compara
Tuas ações com esta que fizeste;
Vê bem como a ti mesmo te excedeste:
Prazeres fervorosos,
Suspiros incendidos,
Transportes ansiosos,
Mil ais interrompidos,
Afagos e deleites, como em bando,
Pela voluptuosa
Cintura, mais que airosa
Qual a hera se enrolam, misturando
As engraçadas frentes;
E de mimos ardentes,
De delícias minha alma repassando.
Ó Galateia! Ó minha doce vida!
Tu me faltavas só para endeusar-me,
E de imortais prazeres inundar-me.
Agora brame irada
A natureza contra mim erguida!
Não a receio, e nada
Já me pode assustar, por que te vejo
Responder a meu ferido desejo;
Dar vida a novos seres,
156  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Criar o sentimento
De mil novos prazeres:
Eis, ó Deuses! Sem dúvida a ambrosia,
O divinal sustento,
A suave celeste melodia,
Que embebe de alegria,
E torna glorioso o Firmamento!”

Com este pensamento


Transportado contempla a Galateia
(Que, ou mova a medo os passos,
Ou gire o seu semblante,
Ou arredonde os braços
Em torno ao seu amante,
Em cada movimento,
Em cada novo instante,
Sente uma nova ideia,
Sente um novo prazer que a senhoreia).
Então outro prodígio amor obrando,
A linguagem dos sons vai-lhe inspirando,
E de repente usando
Deste dote sublime,
À feliz Galateia assim se e exprime:

“Este mármore que toco,


Essa flor tão graciosa,
Nem essa árvore frondosa,
Nada disso, nada é eu.
Mas ó tu quem quer que és,
Que todo o meu peito abalas,
Que tão doce de amor falas,
Ah! Tu sim, tu inda és eu.
Vem a mim querido objeto,
Vem cercar-me com teus braços
E assim presa em doces laços,
Convencer-me que inda és eu.”
Autores brasileiros  157

Vede se há nada mais belo do que este começo no que se refere à


perfeição do estilo:

Já da lúcida Aurora cintilava


O trêmulo fulgor e a Noite fria
Nas mais remotas praias do Ocidente
Entre abismos gelados se escondia.
Amor impaciente
Dos filhos do Morfeu se acompanhava,
E de Pigmalião a altiva mente,
Com lisonjeiros sonhos afagava.
Ora de Galateia
A estátua airosa e bela,
Obra do seu cinzel, obra divina,
Se lhe avivara na amorosa ideia.
Ora cuidava vê-la
Pouco a pouco animar-se,
E a marmórea dureza transformar-se
Em suave, vital brandura, dina
D’aquela que em Citera,
Sobre os Amores e o Prazer domina.

No começo desta soberba cantata, cujo objeto é Pigmalião enamo-


rado da bela estátua que formou, pedindo ardentemente aos deuses que
a animem, e vendo-a por um milagre de amor animar-se, e cingi-la
estreitamente em seus braços, quase todos os versos estão cheios de
poéticas imagens, que tornam o estilo de grande perfeição e beleza,
como se nota logo nos quatro primeiros: “Já da lúcida Aurora cintilava
/ O trêmulo fulgor, e a Noite fria / Nas mais remotas praias do Oci-
dente / Entre abismos gelados se escondia.” Não são menos pitoresco
os outros em que o apaixonado artista sonha ver a sua obra “Pouco a
pouco animar-se / E a marmórea dureza transforma-se / Em suave,
vital brandura, dina / Daquela que em Citera, / Sobre os Amores e o
prazer domina.” Esta espécie de exórdio insinuativo serve também ar-
tificiosamente a preparar o leitor para o estupendo milagre de amor,
que se opera no mármore animado com um sopro de vida. Tudo aqui
já é formoso e rico.
158  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Vede agora quanto movimento e vida nos seguintes versos em que


domina o patético o mais belo:

Mas que vejo! Ó justo céus!


Treme o mármore e respira,
E parece se retira
Ao toque da minha mão!
Rubro sangue as veias gira,
Já seu braço me rodeia,
E da linda Galateia
Já palpita o coração!
Nos olhos lhe circula, eu não me engano,
O teu fogo, ó Amor! Hoje cessaste
De ser um Deus tirano:
Hoje sobre os mais Deuses te elevaste.
Que te direi, Amor?... Olha... repara,
Nas faces delicadas
As graças animadas
Ateando desejos, e compara
Tuas ações com esta que fizeste:
Vê bem como a ti mesmo te excedeste:
Prazeres fervorosos,
Suspiros incendidos,
Transportes ansiosos,
Mil ais interrompidos,
Afagos e deleites, como em bando,
Pela voluptuosa
Cintura, mais que airosa
Qual a hera se enrolam, misturando
As engraçadas frentes;
E de mimos ardentes,
De delícias minha alma repassando.

De tudo quanto tenho lido nos poetas antigos e modernos, nada


mais encontrei que apresentasse mais novidade, animação e vida do que
esta admirabilíssima passagem em que Pigmalião, extasiado de amor,
vê animar-se o mármore de sua bela estátua, sentindo-o estremecer ao
Autores brasileiros  159

toque de sua mão e ir pouco a pouco adquirindo as propriedades de um


corpo que se move, respira e sente. Para mim sempre foram de incom-
parável beleza os seguintes versos que tão bem pintam um tal prodígio:
“Mas que vejo! Ó justos céus! / Treme o mármore e respira / E parece se
retira / Ao toque da minha mão! / Rubro sangue as veias gira, / Já seu
braço me rodeia, / E da linda Galateia / Já palpita o coração!” Isto é um
verdadeiro primor de poesia, que outro nome mão tem. Nem menos
belo e soberbo é todo o resto da passagem, onde brilham as imagens as
mais deliciosas, risonhas e pitorescas, a par das figuras as mais felizes.
Vede quanta riqueza de sentimento e de expressão se não encerra nos
seguintes versos, tão delicados como arrebatadores:

Prazeres fervorosos,
Suspiros incendidos,
Transportes ansiosos,
Mil ais interrompidos,
Afagos e deleites, como em bando,
Pela voluptuosa
Cintura, mais que airosa
Qual a hera se enrolam, misturando
As engraçadas frentes;
E de mimos ardentes,
De delícias minha alma repassando.

Esta maravilhosa pintura não tem igual em seu gênero, e pode se


considerar única como o seu objeto, porque nela tudo é novo, animado,
gracioso e admirável... Belezas que assim nos enlevam e arrebatam são
mais fáceis de sentir que de analisar; por isso rematarei dizendo que
neste riquíssimo trecho, em que o estilo parece acompanhar o pensa-
mento na rapidez, o conceito é sublime, a expressão de fogo, e a harmo-
nia métrica perfeita.
Admirai por último a ária final da cantata em que o patético é levado
ao seu auge:

Então outro prodígio amor obrando,


A linguagem dos sons vai-lhe inspirando,
E de repente usando
160  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Deste dote sublime,


À feliz Galateia assim se e exprime:

“Este mármore que toco,


Essa flor tão graciosa,
Nem essa árvore frondosa,
Nada disso, nada é eu.
Mas ó tu quem quer que és,
Que todo o meu peito abalas,
Que tão doce de amor falas,
Ah! Tu sim, tu inda és eu.
Vem a mim querido objeto,
Vem cercar-me com teus braços
E assim presa em doces laços,
Convencer-me que inda és eu.

Que linguagem tão nova, tão ardente, e ao mesmo tempo tão natural
em quem abria os olhos à luz só por milagre de amor! Não era de certo
possível pôr na boca da feliz e admirada Galateia expressões mais apro-
priadas para exprimir o seu amor ao apaixonado artista, a quem devia
todo o seu ser: “Este mármore que toco, / Essa flor tão graciosa, / Nem
essa árvore frondosa, / Nada disso, nada é eu: / Mas ó tu, quem quer que
és, / Que todo o meu peito abalas, / Que tão doce de amor falas, / Ah!
Tu sim, tu inda és eu.” Que expressiva e divinal poesia! Quão superior
não é esta admirável ária final, em que o patético é levado ao supremo
grau, à tão fria da cantata de Garção: “Dido infelice / Assaz viveu / D’alta
Cartago / O muro ergueu / Agora nua / A sombra sua / Já de Caronte /
Na barca feia / A negra veia / Do Flegetonte / Cortando vai.” Quem ao
comparar uma com outra não dirá que a primeira serve merecidamente
de coroa a mais linda e animada poesia, e a segunda apenas de cauda a
uma peça tão primorosa e rica, da qual em tudo desdiz?
Com análise desta sublime poesia, verdadeiro primor de engenho e
arte, tenho concluído o exame das obras poéticas do padre Sousa Caldas,
que, brasileiro de nascimento, ainda floresceu durante o governo portu-
guês, e passarei a ocupar-me nos seguintes discursos com a nascente e
já brilhante literatura brasileira propriamente dita, fazendo ponto neste.
MANUEL ODORICO MENDES*

Manuel Odorico Mendes,


poeta; sua biografia; sua tradução da Eneida de Virgílio.

LIÇÃO LXXVIII

Chegado, Senhores, à época em que o Brasil foi por sua gloriosa


emancipação política elevada à categoria de nação independente, livre
e culta, à época em que a literatura brasileira se separa com a nação da
portuguesa a que até então se conservara unida, e começa a ter existên-
cia própria, deixo de parte a segunda, para ocupar-me exclusivamente
com a primeira, que será doravante objeto do meu particular estudo.
Formada no seio de um povo culto e com a língua aperfeiçoada, a
literatura brasileira não apresenta os antecedentes de uma época de ru-
deza e outra de polimento, como as dos povos europeus que se emanci-
param ainda mui atrasados em civilização; e posto que nascida ontem,
pois não tem meio século de existência sequer, já conta escritores mui
distintos por seu talento, instrução, critério e bom gosto, ou pode figu-
rar no meio das literaturas dos povos cultos do universo, porque perten-
ce a um povo que se emancipou civilizado.
Já muito antes da emancipação política da nação, que se operou em
1821,75 ou desde meados do século XVIII, diversos autores brasileiros de
nascimento e de incontestável mérito, com especialidades poetas, enri-
queciam a literatura portuguesa com seus escritos em nada inferiores
aos dos autores naturais de Portugal, seus contemporâneos. Foram os
poetas brasileiros frei José de Santa Rita Durão e José Basílio da Gama
os primeiros que em Portugal deram de mão76 aos deuses e fábulas da
Grécia, que os poetas portugueses introduziam em suas composições, e
descreveram em seus poemas, Caramuru e Uraguai, as cenas naturais da
América e usos e costumes de seus habitantes, e os primeiros por con-
seguinte que lançaram as bases da atual literatura brasileira, que começa
162  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

a distinguir-se da portuguesa não só pela nacionalidade, mas pela cor


local, como convém.
A grande colônia fundada por Portugal na América crescia em ri-
queza e ilustração sob o longo e feliz reinado de D. José I, que promoveu
o seu engrandecimento com sábias providências; por isso não é de ad-
mirar que já na segunda metade do século XVIII, ou com pouco mais de
dous séculos de existência, produzisse poetas de reconhecido talento e
instrução, que, prevendo que ela havia de vir a ser um dia, se constituís-
sem desde então fundadores de uma escola literária verdadeiramente
americana, a qual só devia ter sectários e representantes mais de meio
século depois, com a emancipação política da nação e seu progressivo
desenvolvimento.
Desde a fundação do grande Império brasileiro, que já é hoje a se-
gunda potência da América a todos os respeitos, e há de vir um dia a
ser uma das maiores do mundo, começou a cor local a dominar mais ou
menos, como era natural, nos escritos de seus poetas e prosadores, em
tudo o que a pode constituir, como assuntos, acidentes e cenas locais,
usos e costumes, legislação e história do país, e com a fundação do Im-
pério nasceu a nossa nova e já brilhante literatura, como o atestam as
obras dos autores que a ilustraram e ilustram.
Tendo de apreciar antes dos prosadores os principais poetas brasi-
leiros, na forma do meu programa, começarei pelo exímio tradutor de
Virgílio, ou autor do Virgílio Brasileiro, como ele próprio se inculca,
Manuel Odorico Mendes, mui distinto comprovinciano nosso, há pou-
co falecido, e amigo meu e mestre na quadra da mocidade, o qual é o
primeiro de todos na ordem cronológica.
Nasceu Manuel Odorico Mendes na cidade de S. Luís do Maranhão,
a 24 de janeiro de 1799, e faleceu em Londres de uma apoplexia fulmi-
nante, a 18 de agosto de 1864, quando se dispunha a regressar ao Brasil
e à sua província, depois de uma prolongada ausência de 17 anos em
país estrangeiro.
Era oriundo das mais antigas e ilustres famílias desta terra, se bem
fosse filho natural, pois descendia, por seu pai, o capitão-mor Francisco
Raimundo da Cunha, do capitão-mor Antônio Texeira de Melo, heroico
restaurador do Maranhão, donde expulsou os holandeses em 1664, e
por sua mãe, Dª Maria Raimunda Correia de Faria, do célebre e infeliz
Autores brasileiros  163

Beckman.77 Tomou porém o apelido de Mendes de seu tio, padrinho e


pai adotivo, Manuel Mendes da Silva.
Foi comendador da Ordem de Cristo, deputado por diversas vezes à
assembleia geral legislativa, inspetor da tesouraria da província do Rio
de Janeiro, lugar em que se aposentou, e membro do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, e de diversas sociedades literárias nacionais e
estrangeiras.
Dotado pela natureza de mui feliz engenho, e concluídos aqui os seus
primeiros preparatórios com grande aplauso de seus mestres, dirigiu-
-se a Portugal com intento de graduar-se na faculdade de medicina da
Universidade de Coimbra, e aí fez o curso completo de filosofia natural,
depois de haver estudado filosofia racional e moral e grego. Por incon-
venientes, como falta de mesadas por falecimento de seu pai adotivo,
viu-se obrigado a interromper os seus estudos e a voltar ao Maranhão
em 1824, ainda com propósito de ir continuá-los, se se lhe proporcio-
nassem meios.
Dados ao comércio das musas, desde os mais verdes anos, nunca dei-
xou de cultivar a poesia nas horas que lhes sobravam dos outros estudos
que empreendera; e foi durante o tempo em que cursou a Universidade
de Coimbra que compôs entre outras poesias líricas o seu belo hino à
tarde, que foi reimpresso em 1861 no Parnaso maranhense, e é com ra-
zão elogiado pelos entendedores.
Ao chegar porém à província ainda estremecida das lutas intestinas
que se seguiram à independência, mudou de intento, e escreveu com
ardor juvenil o Argos da Lei, em que consignou as suas ideias liberais, e
que logo lhe adquiriu muita popularidade. Eleito deputado à assembleia
geral legislativa em 1824, partiu para o Rio de Janeiro, que lhe abriu
campo mais vasto à carreira política, e onde associou logo o seu nome
aos de Evaristo Ferreira da Veiga, Paula Sousa, Vergueiro, Feijó, Vascon-
celos, Carneiro Leão, Limpo de Abreu, Costa Carvalho e outros homens
proeminentes do partido liberal, que fundaram aquela oposição vigoro-
sa que só devia terminar com a revolução de sete de abril,78 e subsequen-
te divisão do partido que a tinha operado.

77
  Manuel Beckman (1630-1685), dito também Bequimão; senhor de engenho, executado
por sua liderança do movimento nativista conhecido como Revolta de Beckman, que teve
lugar no Maranhão, de 1684-1685.
78
  Movimento contra D. Pedro I, que resultou em sua abdicação, no dia 7 de abril de 1831,
164  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Reeleito consecutivamente deputado, por sua popularidade sempre


crescente, foi muitos anos secretário da câmara dos deputados, iniciou
leis importantes, como a da abolição dos morgados e a da primeira re-
forma eleitoral, e concorreu para a confecção de outras que o não eram
menos, sendo a sua palavra autorizada, se não eloquente, de grande
peso na tribuna.
Na imprensa, foi com Vergueiro, Feijó e Costa Carvalho fundador
da Astreia e do Farol Paulistano, e colaborador da Aurora, do Jornal do
Comércio, do Sete de Abril e da Liga Americana, ou de tudo quanto então
passava por bem escrito e tinha importância política. De volta à provín-
cia em fins de 1831, redigiu ainda nela comigo o Constitucional.
Se concorreu para a revolução de sete de abril, grande foi a influên-
cia benéfica que nela exerceu, empregando seus esforços para que não
fossem perseguidos os vencidos, e pedindo tolerância para com eles do
alto da tribuna, com sacrifício de sua popularidade, porque a sua alma
patriótica era tão nobre como generosa. É fama79 constante que não quis
ser então regente, e apresentou em seu lugar a seu amigo João Bráulio
Muniz,80 que foi nomeado.
Feita a cisão do partido liberal em moderados e exaltados, pertenceu
aos primeiros; mas, prevalecendo na província os segundos, deixou de
ser reeleito deputado em 1833; e, embora fosse chamado como suplente
em 1834 na vaga do deputado Costa Ferreira, escolhido senador, e eleito
deputado pela província de Minas em 1844, grande foi o desgosto que
daí lhe proveio, vendo tão mal galardoados por seus comprovincianos
os serviços que prestara à causa pública à custa de tantos sacrifícios.
Em 1847, abandonando de todo a vida política, que por seu nobre
desinteresse e franqueza só lhe ocasionara desgostos e decepções, saiu
do Rio de Janeiro e dirigiu-se a Paris, onde viveu 14 anos da aposenta-
doria do seu emprego de fazenda, ocupado nas suas traduções de Virgí-
lio e Homero, e quase totalmente ignorado do Brasil, em cujos destinos
tanta influência exercera. Em 1861 fez uma viagem à Itália para visitar o

assinalando o fim do primeiro reinado e o início do período regencial.


79
  Expressão de extração clássica, de que o autor se serve por vezes; significa “é voz corrente”,
“consta”, “diz-se”.
80
 João Bráulio Muniz (circa 1796-1835) integrou a Regência Trina Permanente (1831-
1835), juntamente com José da Costa Carvalho (1796-1860) e Francisco de Lima e Silva
(1785-1853).
Autores brasileiros  165

túmulo de Virgílio, seu poeta querido, e nele depor uma coroa de flores
em testemunho de sua admiração por tão singular engenho. Em 1864
partiu para o Maranhão, fazendo viagem por Inglaterra, que desejava
visitar; e aí nos foi roubado por uma morte súbita na idade de 65 anos e
alguns meses, quando se dispunha a vir imprimir no Império a sua tra-
dução da Ilíada e da Odisseia, de Homero, que tinha concluído,81 e não
deve por certo ser menos rica que a da Eneida, de Virgílio.
O maior elogio que se pode fazer a um homem de bem, que recu-
sou um dos maiores cargos do Império, e que, tendo tantas ocasiões de
engrandecer-se, sempre desprezou as honras e a riqueza, para viver em
honrada mediania, acha-se consignado nas seguintes palavras de João
Francisco Lisboa na bela biografia que lhe compôs:

Os companheiros de Odorico nas lutas do primeiro reinada (diz o ilus-


trado biógrafo) chegaram todos ou quase todos às maiores honras e às
mais elevadas posições políticas e sociais. Alguns as deveram sem dúvida
aos seus talentos fora do comum; outros à destreza e habilidade com que
souberam manobrar no mar incerto em que navegavam. Mais inflexível
ou menos hábil no caminho que preferiu, Odorico Mendes tem visto sem
pensar todas essas grandezas que lhe não couberam em sorte, pago e satis-
feito de haver atravessado a vida conservando-a imaculada até da menor
suspeita que lhe pudesse levemente marear o lustre... Homem moldado à
antiga, sua velhice sossegada e digna passa-se na prática de todas as virtu-
des e na efusão dos sentimentos de amizade, indulgência e brandura, que
sempre caracterizaram a sua alma afetuosa. Essa placidez porém nem é
inerte e egoísta, nem estéril.

Compôs Odorico Mendes muitas poesias originais de gênero lírico,


das quais poucas foram impressas nos jornais, e as mais se perderam
manuscritas na Bahia em uma de suas viagens, sem que o poeta tratasse
de refazê-las com o trabalho da memória, como praticou Bocage com
muitas das suas que tiveram igual sorte.
Traduziu primorosamente a Mérope e o Tancredo, tragédias de Vol-
taire, ambas impressas no Rio de Janeiro, a primeira em 1831, e a segun-
da em 1839.

  Ver nota 28.


81
166  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Mas a sua obra impressa de mais vulto e nomeada é o Virgílio bra-


sileiro, ou tradução em verso, do poeta latino, publicada em Paris em
1858, e da qual já a Eneida havia sido publicada em 1854, na mesma
cidade.
Esta tradução, superior a quantas se têm feito até hoje em português
do poeta latino, é uma verdadeira obra clássica, que basta por si só para
dar a seu autor um nome mui distinto na república das letras; porque,
sobre ser um dos mais poéticos e fiéis transuntos da melhor produção
do gênio que nos legou a antiga Roma, é acompanhada de mui ricas e
copiosas notas que lhe dobraram ainda o valor. Nenhuma das traduções
do mesmo poeta que tenho lido em outras línguas a iguala em concisão,
e bem poucas poderão competir com ela em riqueza de dicção, viveza de
imagens e beleza de poesia imitativa e onomatopaica.
A sua tradução de Homero existe ainda inédita.
Compôs em prosa o Opúsculo acerca do Palmeirim de Inglaterra, im-
presso em Lisboa em 1860, no qual prova com argumentos irrecusáveis
que o romance de cavalaria que tem este título foi originalmente com-
posto em português.
Foi Odorico Mendes versadíssimo em todo gênero de literatura an-
tiga e moderna, profundo no conhecimento das línguas, de erudição
inesgotável, e o poeta pela ventura mais sabedor de nosso idioma de
quantos têm ultimamente florescido no Brasil e em Portugal, como o
atestam suas obras impressas e por imprimir. Pela amizade com que me
honrava, e de que ainda hoje me recordo com saudade, tive muitas vezes
ocasião de apreciar a sua erudição verdadeiramente pasmosa, nas exten-
sas passagens que me recitava dos principais poetas portugueses, e com
especialidade de Ferreira, Camões e Francisco Manuel, que eram os seus
autores favoritos, e dos quais sabia de cor quase tudo o que produziram
de melhor.
Se a política não tivesse absorvido grande parte do tempo deste fe-
licíssimo engenho, de quem recebi lições de bom gosto na apreciação
dos poetas, muito mais enriquecida se teria visto a nossa literatura
com escritos seus, porque sobrava-lhe talento e nunca lhe faltou amor
ao trabalho.
Quanto à escola a que pertence, se algumas das suas poucas poesias
líricas que existem impressas têm ressaibos românticos, é antes, por seus
constantes estudos sobre os grandes modelos da Antiguidade, e sobre os
Autores brasileiros  167

modernos que os imitaram, um poeta clássico, que romântico. E com


efeito, o insigne tradutor de Virgílio e de Homero não podia deixar de
ser um verdadeiro poeta clássico.
Quanto ao esmero com que fazia as suas versões, fui disso teste-
munha nas traduções da Mérope e do Tancredo, das quais me recitava
muitas passagens comparadas; pois, não satisfeito com ter de memó-
ria o seu trabalho que ia polindo e repolindo, segundo o preceito do
grande mestre Horácio, retinha também nela muito do original, com
o qual o confrontava a cada passo. Quem fazia isto com as traduções
de Voltaire, devia por maioria de razão fazê-lo com as de Virgílio e
Homero, de quem era entusiasta, e a perfeição da que existe impressa
assaz o demonstra.
Tendo-vos dado uma notícia geral de um dos mais excelentes poetas
de nossa nascente literatura, e um dos nossos mais nobres caracteres po-
líticos ao mesmo tempo, passarei no seguinte discurso a apreciar a sua
tradução de Eneida, visto não existir coleção alguma impressa de suas
poesias originais, e farei aqui ponto neste.

LIÇÃO LXXIX

Traduzir, Senhores, uma obra prima da Antiguidade clássica, qual é a


Eneida, de Virgílio, que tem atravessado tantos séculos sempre admira-
da dos bons entendedores como uma das melhores produção do gênio,
não é por certo empresa fácil, e muitos dos que a tentaram, aliás poetas
de mérito, têm nela naufragado, porque suas forças não eram para tanto.
O escolho dos tradutores de Virgílio está não só na diversa índole das
línguas, dificuldade com que se luta em toda e qualquer versão, e pode
ser vencida por quem é profundo no conhecimento da língua do origi-
nal e da sua, mas e sobretudo na perfeição do estilo, ou da forma artís-
tica do pensamento, que, sendo grande em todos os modelos antigos,
é neste de beleza incomparável, e absolutamente desanimadora para
quem pretende trasladá-lo: porquanto, se não há produção dos grandes
poetas gregos e romanos cujo estilo não seja eminentemente pitoresco,
donde provém o preceito de Horácio, Sicut pictura poesis,82 o estilo de

  Na verdade, “ut pictura poesis” (“como a pintura, assim a poesia”); máxima de Horácio
82
168  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Virgílio é antes uma verdadeira pintura que a expressão do pensamento,


e pintura tão viva e delicada que não tem rival em beleza Esta segunda
dificuldade só por ótimos engenhos pode ser superada.
Traduções há certamente tão ricas que excedem o próprio origi-
nal na perfeição da forma, como seja por exemplo a dos Mártires, de
Chateaubriand, por Francisco Manuel do Nascimento, a dos salmos de
Davi pelo padre Antônio Pereira de Sousa Caldas, e a do Ossian, de Ma-
cpherson, pelo abade Cesarotti na língua italiana; não acontece porém
o mesmo com as traduções das obras de Virgílio, as quais, por mais
primorosas que sejam, muito fazem, se se assemelham ao original em
beleza. Tão perfeito é ele! Tal é a novíssima e bela tradução da Eneida
por Manuel Odorico Mendes, superior a quantas se têm publicado do
mesmo poema na língua portuguesa, e sem rival em concisão entre as
mais gabadas feitas em outras línguas, às quais aliás nada tem que in-
vejar no bem acabado, se é que as não supera ainda nesta qualidade.
Tão primorosa é ela! O poeta brasileiro vestiu também com primor as
demais obras de Virgílio, mas escolho a sua tradução da Eneida para ob-
jeto de minha análise, por ser a da obra mais importante do poeta latino,
que para compô-la ensaiou primeiro as forças nas outras.
Antes de Odorico Mendes três poetas portugueses traduziram igual-
mente a Eneida, de Virgílio, João Franco Barreto,83 em oitava rima, e
Lima Leitão84 e Barreto Feio,85 em versos soltos, mas todos ficaram mui-
to aquém do seu grande modelo, cujas figuras, imagens e perfeição de
estilo não souberam reproduzir com a mesma valentia e propriedade,
seja por falta de gosto e talento, seja por falta de um estudo aprofundado
dos dialetos poéticos latino e português. O que é por demais certo é que
as três traduções citadas são todas rasteiras em comparação da do poeta
brasileiro, que, mais feliz que os autores delas, conseguiu dar-nos um
transunto muito fiel e aprimorado do imortal poema do grande poeta
latino, transladando com insigne mestria uma por uma todas ou quase
todas as suas inúmeras belezas de estilo e metrificação.
Mas que laborioso e indefeso estudo comparado dos dois idiomas
não era preciso fazer, quanta riqueza de linguagem e elegância poética

(Arte poética, 361).


83
  Nascido em 1600 e morto circa 1675; sua tradução da Eneida foi publicada em 1664.
84
  Antônio José de Lima Leitão (1787-1856).
85
  José Vitorino Barreto Feio (1782-1850).
Autores brasileiros  169

não era mister entesourar nos armazéns de memória, que apurado gos-
to e critério, que talento poético não convinha possuir, para chegar a
esse resultado por tantos desejado e de tão poucos conseguido?! E com
efeito Odorico Mendes, de quem Gonçalves Dias, juiz mui competente
na matéria, dizia que metrificava como um rei em poesia, era poeta que
possuía todas essas qualidades, por ser profundo no conhecimento da
literatura clássica antiga e moderna, bem como no das línguas que com
ela jogam, e excetuarmos as do norte da Europa, mais sabedor de nosso
pátrio idioma que nenhum poeta contemporâneo, nos dois países de
língua portuguesa, dotado de mui rico engenho poético, bem como de
longa paciência para polir os seus versos, e era por conseguinte o mais
próprio para dar-nos o belo transunto que nos deixou da Eneida, cuja
inimitável perfeição de estilo é não só obra do gênio, mas também de
longo estudo e paciência, como referem os biógrafos de Virgílio.
Assim como o poeta latino se ensaiou na composição das Bucólicas
e das Geórgicas, antes de compor a Eneida, assim também o tradutor
português, antes de empreender a versão desta, ensaiou-se na tradução
das tragédias de Voltaire, Mérope e Tancredo, que são duas obras mui
bem acabadas.
A tradução da Eneida que passo a analisar reúne às mais qualidades
que se requerem em uma obra destas a virtude de ser a mais concisa
de todas as de que há notícia, pois os versos portugueses em que é feita
igualam quase em número aos hexâmetros latinos, o que é um verdadei-
ro milagre de concisão, porque os segundos são, como se sabe, menores
que os primeiros. O Sr. Inocêncio Francisco da Silva, que se deu ao tra-
balho de contá-los, verificou que os 9901 hexâmetros latinos da Eneida
foram convertidos em 9944 portugueses na tradução sobredita, que tem
menos 1913 versos que a de Lima Leitão!!!
Para que possais fazer ajustada ideia de tão primorosa versão, passa-
rei a ler-vos uma certa passagem do I livro, e a bela e extensa passagem
do II, em que se descreve a destruição de Troia.86
Na primeira passagem que vos li, Senhores, é logo notável o princípio
pela suavidade dos versos:

86
  Sendo esta tradução mui conhecida e manuseada nas aulas de latinidade,
dispenso-me, para não avolumar muito o livro, de reproduzir aqui as passagens
lidas. (Nota do autor.)
170  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

À voz da cara mãe, depondo as asas,


Finge gozoso Amor de Iulo o porte.
Ela em sono abebera o neto amado;
No colo amima, e o sobe ao luco Idálio,
Onde mole e suave manjerona
Entre flores o abraça e fresca sombra.
E obediente os régios dons Cupido
Leva aos Tírios, folgando após Achates.

Neste trecho da tradução, que iguala em número de versos, suavi-


dade e beleza ao trecho correspondente do original, o poeta brasileiro,
grande mestre em poesia imitativa, soube tão ajustadamente combinar
as consoantes líquidas com as vogais mudas que tirou delas em portu-
guês a mesma vantagem que Virgílio em latim, como se vê no admirável
efeito harmônico destes quatro versos portugueses em nada inferiores
aos latinos: “Ela em sono abebera o neto amado; / No colo amima, e
o sobe ao luco Idálio, / Onde mole e suave manjerona / Entre flores o
abraça e fresca sombra.” Para traduzir por esta forma, reproduzindo-
-nos o original sem a menor quebra de seus primores, era preciso que
o tradutor se houvesse em certa maneira identificado em espírito com
o próprio autor do poema, que tão superiormente vertia; por isso razão
teve de chamar a sua tradução da Eneida, Eneida brasileira, e a de todas
as obras do poeta latino Virgílio brasileiro, pois que seu é todo trabalho
de vestir tão elegantemente à brasileira alheios pensamentos, o que é
como nova criação deles.
Da segunda passagem que vos li, tão cheia de lugares admiráveis,
citar-vos-ei a catástrofe de Príamo, superiormente reproduzida na tra-
dução, quase verso por verso:

Eis furtando-se à morte, por extensos


Pórticos entre lanças, entre imigos,
Polites filho seu desertos claustros
Corre, gira ferido; em brasa Pirro
Já já, de bote feito, o apanha, o aterra;
Ao momento em que os pais ia avistando
No tombo, dessangrado, a vida exala.
Autores brasileiros  171

A sua o rei sentiu no extremo fio,


Mas reprimir não soube a voz e a ira:
“Pelo atentado, exclama, e audácia tanta,
Se há no céu providência e piedade,
Pague-te o céu com merecido prêmio,
A ti que o matas às paternas barbas,
E estas cãs me funestas e enxovalhas!
Não, tal não se houve Aquiles meu contrário,
De quem te finges prole: ao suplicar-lhe
Enrubesceu, direito e fé guardou-me,
Sepultar permitiu-me Heitor exangue,
Rever meus reinos.” Frouxo atira o velho
Dardo imbele sem gume, que repulso
Pelo rouco metal, à superfície
Do embigo do broquel frustrado pende.
“Pois vai contá-lo ao genitor Pelides;
Núncio narrar te lembre estas baixezas,
E o quanto o degenero. É tempo, morre.”
Falando Neoptolemo o arrasta às aras
Tremebundo, e do filho em quente sangue
A resvalar, na esquerda a coma enleia;
Com a destra saca a lâmina fulgente,
No vazio lh’a embebe até aos copos.
De Prímaro este o fado, assim finou-se
Troia arder vendo, e Pérgamo assolar-se:
Quem d’Ásia em povos cem reinou soberbo
É cadáver. Na praia o corpo informe
Jaz sem nome, a cabeça destroncada.

Quem, ao ler este belo trecho da tradução, não reconhecerá nele a


admirável pintura que faz Virgílio da catástrofe de Príamo? São as suas
mesmas figuras, as suas mesmas imagens, a sua mesma poesia onoma-
topaica, até com as mesmas pausas nos versos! Apontarei aqui os lugares
mais salientes de quadro tão perfeito, para que se veja que em nada des-
mereceu no traslado: “Eis furtando-se à morte, por extensos / Pórticos
entre lanças, entre imigos / Polites filho seu desertos claustros, / Corre,
gira ferido; em brasa Pirro / Já já, de bote feito, o apanha, o aterra; / Ao
172  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

momento em que os pais ia avistando...”; “Frouxo atira o velho / Dardo


imbele sem gume, que repulso / Pelo rouco metal, à superfície / Do em-
bigo do broquel frustrado pende...”; “Falando Neoptolemo o arrasta às
aras / Tremebundo, e do filho em quente sangue / A resvalar: na esquer-
da a coma enleia / Com a destra saca a lâmina fulgente / No vazio lh’a
embebe até aos copos.” Toda a poesia imaginosa e imitativa do original
se acha fiel e soberbamente expressa nesses ótimos versos da tradução, a
que servem como de coroa os últimos não menos expressivos: “De Pría-
mo este o fado: assim finou-se / Troia arder vendo, e Pérgamo assolar-
-se: / Quem d’Ásia em povos cem reinou soberbo / É cadáver. Na praia
o corpo informe / Jaz sem nome, a cabeça destroncada.” Os discursos de
Príamo e Neoptolemo exprimem unicamente o movimento e jogo dos
afetos, que não foram menos habilmente reproduzidos na tradução, que
é em tudo transunto mui verídico.
Cotejai estes lugares com os correspondentes do original, que passo
a ler-vos, e verificareis que os segundos não perderam na passagem cir-
cunstância alguma das que os tornam tão expressivos e belos. Tudo aí
se acha fiel é magistralmente reproduzido: movimento, vida, sons, cores
e sombras.
Nenhuma das versões da Eneida que tenho lido iguala a esta na ver-
dade com que exprime a poesia imaginosa, ou simplesmente imitativa,
do original, como podeis certificar-vos, abrindo qualquer dos respecti-
vos livros e fazendo dela leitura comparada; pois não há um só verso de
Virgílio, notável por alguma beleza, que não se ache trasladado em toda
a sua valentia ou graça. Citar-vos tudo o que há de melhor na versão
impossível é num só discurso, por isso limito-me às duas passagens ana-
lisadas, que vos dão perfeita ideia do belo trabalho do poeta brasileiro.
Com ser tão bem acabada não deixa esta tradução de ter defeitos,
como tudo o que nos vem dos homens, e esses provêm de uma de suas
maiores virtudes, a concisão, que, levada ao extremo, em certos casos foi
parte para que o poeta, uma ou outra vez, alatinasse a frase portuguesa
com frequentes elipses.
Mas (repetirei aqui o que disse em outro lugar) estes raros e aliás
desculpáveis defeitos em trabalho de tão difícil execução, qual é a ver-
são do poeta mais perfeito da Antiguidade, são compensados por tanta
fantasia e vigor de imagens, e tanto arrojo e felicidade de figuras, tanta
viveza e verdade de colorido, tanta riqueza e propriedade de linguagem,
Autores brasileiros  173

tanta poesia imitativa e onomatopaica, tanta e tão sustentada harmonia


métrica, que o ilustre poeta brasileiro podia bem dizer ao concluir a sua
obra: Non ego paucis offendor maculis.87
Tendo apreciado a tradução da Eneida por Manuel Odorico Mendes,
passarei nos seguintes discursos a ocupar-me com Antônio Gonçalves
Dias, outro ilustre poeta, comprovinciano nosso; e por hoje faço aqui
ponto neste.

  Passagem de Horácio (Arte poética, 351-352): “Poucas máculas não me ofendem”.


87
ANTÔNIO GONÇALVES DIAS – POESIA*

Antônio Gonçalves Dias,


poeta; sua biografia; seus Primeiros cantos; seus Segundos cantos;
seus Últimos cantos; seu poema épico Os Timbiras.

LIÇÃO LXXX

Há, Senhores, certos homens privilegiados a quem a natureza en-


riquece com aquilo que se pode considerar a supremacia ou a realeza
da inteligência, concedendo-lhes faculdades intelectuais muito mais de-
senvolvidas que as dos outros homens. Este dom especial, ou este privi-
légio, que distingue o homem como inteligência, não de milhares, não
de centenas de milhares, mas de milhões e milhões de outros homens, é
o que se chama gênio, engenho singular, talento por excelência, porque
todas as denominações são mesquinhas para bem designá-lo.
O gênio constitui uma superioridade tal que dificilmente pode ser
tolerada pelos outros homens, quando não anda unida ao poder para
subjugá-los, como em C. Júlio César, como em Napoleão primeiro; por
isso, os reis da inteligência, sem poder material, são quase todos emi-
nentemente infelizes, como o foram Homero, Dante, Camões e Tasso.
É um destes reis da inteligência da segunda espécie que me proponho
apreciar hoje, o poeta Antônio Gonçalves Dias, ilustre comprovinciano
nosso, há pouco falecido, verdadeiro gênio na poesia lírica, e sem rival
em nossos dias nos dois países de língua portuguesa, quer se atenda à
fantasia imaginosa e criadora, quer à poesia de estilo, que brilham em
suas admiráveis composições.
Foi bacharel formado em direito pela Universidade de Coimbra, ca-
valeiro da Ordem da Rosa, professor de história e latinidade no Imperial

*  V. 4 (1868), p. 309-387.
Autores brasileiros  175

Colégio de Pedro II, primeiro oficial da Secretaria de Estado dos Negó-


cios Estrangeiros, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil
e de outras sociedades literárias nacionais e estrangeiras.
Nasceu Gonçalves Dias a 10 de agosto de 1823, na província do Ma-
ranhão, em um sítio denominado Boa Vista, nas terras do Jatobá, cerca
de 14 léguas da cidade de Caxias, a cujo distrito pertencem.
Foi filho natural do negociante João Gonçalves Dias e de Vicência
Mendes Ferreira, mulher de cor, que ainda vive, e a quem sempre pres-
tou os ofícios de bom filho, partindo com ela do que ganhava.
Viu-se logo desde os mais tenros anos privado dos carinhos mater-
nais, porque seu pai, havendo casado em 1829 com Dª Adelaide Ramos
de Almeida, o tomou para a sua companhia, a fim de dar-lhe a educação
conveniente.
Destinado a princípio à vida comercial, tal foi o talento precoce que
desenvolveu na escola de primeiras letras que seu pai, mudando de
intento, pô-lo a aprender latim com o professor Ricardo Leão Sabino,
e resolvendo mandá-lo estudar à Universidade de Coimbra, o trouxe
consigo em 1837 para a cidade de S. Luís do Maranhão, onde faleceu,
quando se dispunha a ir a Portugal tratar-se da tísica pulmonar, de que
padecia, e de que sem dúvida por herança foi acometido o poeta no úl-
timo período de sua vida.
Tendo voltado para Caxias depois do falecimento de seu pai, propôs-
-se o Dr. Antônio Manuel Fernandes Júnior, então juiz de direito da co-
marca, obter-lhe da assembleia legislativa provincial, de que era mem-
bro, que o mandasse estudar à Europa a expensas públicas. A madrasta,
que o estimava como filho, rejeitou a oferta, e fê-lo partir para Portugal à
sua custa em 1838, a fim de estudar em Coimbra, para onde a princípio
se destinara.
A revolta porém ocorrida na província em 1839, com o nome de
Balaiada, em tais apuros pôs a esta boa senhora que viu-se forçada a
interromper as mesadas que mandava ao enteado. Privado absoluta-
mente de meios de poder subsistir em país estrangeiro, retirou-se ele
para a Figueira, donde se dispunha a vir para o Maranhão. Mas João
Duarte Lisboa Serra, que o apreciara no estudo dos preparatórios em
Coimbra, referiu o fato aos maranhenses que frequentavam a Univer-
sidade, e que o fizeram voltar do caminho e desistir do intento, dando-
-lhe casa, mesa e livros, para continuar os seus estudos. Sobressaíram
176  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

entre todos neste ato de generosidade o referido João Duarte, depois


conselheiro de estado, e hoje falecido, e os Srs. Alexandre Teófilo de
Carvalho Leal, Pedro Nunes Leal e Antônio Rego, que residem atual-
mente na província.
Matriculado no curso de direito em 1840, tomou o grau de bacharel
em 1844, e deixou de frequentar o sexto ano por delicadeza para com
seu amigo e colega, Pedro Nunes Leal, o último que restava na Univer-
sidade dos que haviam concorrido para a sua formatura, e sobre o qual
pesavam então todas as despesas do suprimento.
Foi em Coimbra que escreveu grande parte de suas poesias líricas, os
seus dramas Patkull e Beatriz Cenci, e as Memórias de Agapito Goiaba,
ou a sua vida íntima, cujo manuscrito queimou dois anos antes de mor-
rer, mas de que existe um fragmento no Arquivo, jornal que se publicava
na província em 1846.
Regressando de Portugal ao Maranhão em 1845, na sua viagem pelo
Itapucuru, e em Caxias, escreveu parte das suas “Poesias americanas” e
a Meditação, composição em prosa, que se assemelha no tom e na sim-
plicidade ao gênero bíblico.
Na Revista, folha política que então redigíamos, fomos o primeiro, se
bem o menos competente, a saudar o desabrochar do talento no jovem
poeta, que nos dedicou em retribuição a sua bela poesia intitulada “O
cometa.”
Por conselho do seu amigo, o Sr. Dr. Teófilo, partiu o poeta para o
Rio de Janeiro em 1846, onde imprimiu os seus Primeiro cantos, que fo-
ram recebidos com geral aplauso e elogiados em quase todos os jornais
da época, sendo depois em Portugal saudado o seu singular talento pelo
distinto literato A. Herculano.
Apesar porém da celebridade que dali lhe vinha, aumentada ainda
com a publicação de seus Segundos cantos, viveu no Rio Janeiro cheio
de privações, empregando o melhor das horas do dia em redigir e con-
certar as discussões das câmaras, que se publicavam ora no Jornal do
Comércio, ora no Correio Mercantil.
Exerceu a princípio o lugar de secretário do Liceu de Niterói, cujo
mesquinho ordenado mal podia chegar para a sua subsistência. Foi
em 1849 nomeado professor de história e latinidade no Colégio de
Pedro II, e depois em 1852 oficial da Secretaria de Estado dos Negó-
cios Estrangeiros, lugares que, por mais bem retribuídos, já lhe davam
Autores brasileiros  177

para viver com decência e sustentar família, pois por último casara-se
com Dª Olímpia da Costa, de quem teve uma filha, que morreu em
tenra idade.
Encarregado pelo governo de estudar o estado da instrução pública
nas províncias, fez por este tempo uma excursão ao norte do Império.
Em 1854 foi enviado em comissão à Europa para estudar o estado da
instrução pública nos países mais adiantados, examinar os arquivos e
bibliotecas de Portugal e Espanha, e extrair deles cópias de documentos
relativo à história do Brasil.
Em 1860 fez parte da comissão científica que se enviou ao Cea-
rá, sendo encarregado dos trabalhos etnográficos e dos relatórios da
mesma.
Em 1862 partiu muito doente para a Europa, a ponto de o darem
como falecido na viagem e de ser a sua morte lamentada nos jornais
como fato averiguado. Apesar do seu mau estado de saúde, foi ali de
novo encarregado de extrair cópias dos arquivos portugueses. Agra-
vando-se porém de novo os seus padecimentos, regressou de França no
brigue Ville de Boulogne, que naufragou nas costas de Guimarães, na
madrugada do dia 3 de novembro de 1864, e, vindo quase moribundo,
pereceu no naufrágio, tendo seu corpo por sepultura o oceano, mas já
nas águas da pátria.
Assim acabou, com pouco mais de 41 anos de idade, um dos mais
belos talentos que há produzido a Terra de Santa Cruz, sem que tivesse
a extrema satisfação de fechar os olhos na terra da pátria, para onde se
dirigia já exausto de forças, apenas animado por um débil sopro de vida,
e sem que o seu cadáver, que não pôde ser encontrado, apesar de todas
as diligências, tivesse sequer nela o último jazigo!
Quem diria que a falsa notícia, que se espalhou dois anos antes,
de haver perecido no mar, era como um fatal presságio da triste rea-
lidade?!...
Quanto não amava ele esta terra, que nunca deixou de visitar nas
diversas excursões que fazia; esta terra, objeto quase constante de seus
lindos versos e de todos os seus sonhos; esta terra, para onde vinha mo-
ribundo, a fim de ver nela pela última vez a luz e expirar, legando-lhe os
seus restos mortais! Não o podendo fazer sobre seu túmulo, reprodu-
zirei aqui, como eco de seu último desejo não cumprido, a bela canção
com que em país estrangeiro exprimira as saudades da pátria:
178  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Minha terra tem palmeiras


Onde canta o sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,


Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida, mais amores.

Em cismar sozinho à noite


Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá.

Minha terra tem primores,


Que tais não encontro eu cá;
Em cismar sozinho à noite
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra bem palmeiras
Onde canta o sabiá.

Não permita Deus que eu morra,


Sem que volte para lá;
Sem que eu desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem que inda aviste as palmeiras
Onde canta o sabiá.

Neste homem dotado pela natureza de faculdades superiores, e cujas


admiráveis poesias atestam o mais rico engenho, o espírito era muito
mais vigoroso que o corpo, que aliás não poupava, excessivo no traba-
lho mental, e ainda nas distrações dele, como para aturdir-se: por isso
não admira que a debilidade de seu físico não pudesse por mais tempo
resistir à vida intelectual que nele superabundava, origem de sua glória
e ao mesmo tempo de seu tormento.
Autores brasileiros  179

Versado em todo gênero de literatura, e em diversos línguas, pos-


suidor de muita e variada instrução, bebida nos países da Europa que
visitou, e favorecido de tão superior talento, não só produziu muito em
poucos anos, como podia produzir muito mais, se continuasse a viver;
basta porém o que nos deixou, e não foi pouco, atento o seu valor, para
colocá-lo entre os primeiros poetas contemporâneos e imortalizar o seu
nome na república das letras.
Existem dele impressas as seguintes obras em verso: Primeiros, Se-
gundos e Últimos cantos, publicados no Rio de Janeiro; 1ª, 2ª e 3ª edi-
ção dos mesmos reunidos, feita em Leipzig, com o aditamento de várias
poesias; o drama Leonor de Mendonça; e quatro cantos do poema inti-
tulado Os Timbiras; as seguintes em prosa: o Dicionário da língua tupi;
várias memórias históricas, publicadas na Revista do Instituto Histórico
e Geográfico; e a introdução à nova edição dos Anais, de Berredo.
Existem manuscritas as seguintes obras em prosa e verso: os dramas
Boabdil, Beatriz Cenci e Patkull; várias poesias líricas originais, e tra-
duzidas do francês, latim, inglês, alemão e sueco; a tragédia de Schiller
A noiva de Messina; a volumosa obra histórica O Brasil e a Oceania; e a
Meditação.
Perderam-se, ou extraviaram-se em Alcântara, onde depois do nau-
frágio foram parar seus manuscritos, o poema Timbiras, que havia
completado,88 a História dos jesuítas e poesias soltas.
Escreveu relatórios importantes sobre a instrução pública no norte
do Brasil e na Europa, sobre a exposição de Paris, e os trabalhos cien-
tíficos da comissão exploradora no Ceará, os quais devem existir nas
secretarias de estado.
Muitos desses manuscritos atestam a um tempo os seus longos servi-
ços feitos ao país, para quem pode-se dizer que unicamente viveu o seu
extraordinário talento, a sua competência em matérias mui variadas, e
um estudo de ferro, o qual, com as suas excursões pelo Amazonas e paí-
ses estrangeiros, muito concorreu para abreviar-lhe os dias.

88
 Não se tem por certo que tenha o poeta concluído a obra, da qual chegou a publicar apenas
os quatro primeiros cantos, em 1857. Mais provável que tenha simplesmente desistido de
arrematá-la, por não reconhecer-lhe qualidade. Consta que teria escrito 12 dos 16 cantos
planejados, e que a parte inédita do poema ­— canto quinto a décimo segundo — se teria
perdido no naufrágio que vitimou o autor.
180  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Impelido pelo gênio, que constantemente o incitava a produzir, e en-


tregue a um excessivo trabalho de espírito, ainda em suas longas via-
gens, como se previsse que a existência lhe fugia, podia Gonçalves Dias
deixar um nome imortal, como deixou, mas nunca ser feliz em esta-
do algum da vida, porque a atmosfera puramente ideal em que vivia o
afastava cada vez mais do que é propriamente a vida real e positiva do
comum dos homens.
Assim foi infeliz nela, como todo aquele a quem cabe em partilha o
gênio; porque viu-se na infância arrancados dos braços maternos, e co-
meçou mui jovem a experimentar toda a sorte de repelões da fortuna;
porque, na época em que seu brilhante talento lhe proporcionou meios
de possuir as comodidades da vida, achava-se o seu físico já gasto e exte-
nuado de forças para poder gozá-las; porque, no derradeiro transe, enfim,
avistou talvez a terra da pátria, sem poder morrer nela, como desejava.
Eis aí o que é o gênio na vida real, desacompanhado da força material
que subjuga e a que se curva o geral da humanidade.

LIÇÃO LXXXI

Disse-vos eu que Antônio Gonçalves Dias era o maior poeta lírico de


nossos dias nos dois países de língua portuguesa; e com efeito, Senhores,
nenhum dos poetas líricos seus contemporâneos, quer no Brasil, quer em
Portugal, levantou a voz tão alto, tomou tons tão variados e apresentou
ainda tantas poesias de estilo, como ele o fez nos seus admiráveis quadros
dos Primeiros, Segundos e Últimos cantos, a cada um dos quais devo, como
é de razão, consagrar uma Lição, considerando os “Novos cantos” da edi-
ção de Leipzig como um simples aditamento de algumas poesias mais.
Assim como Manuel Odorico Mendes, de quem há pouco tratarei, é
por seus estudos especiais e suas bem acabadas traduções de Virgílio e
Homero um verdadeiro poeta clássico, assim Gonçalves Dias é, pela ins-
piração que o anima e pela forma artística de seus quadros, um perfeito
poeta romântico, que nada tem que invejar aos melhores, nem no fogo
sagrado do entusiasmo, nem na eloquente e pitoresca expressão da ideia.
Não obstante ser romântico na forma e na essência, tem este insig-
ne poeta no gênero bíblico, para o qual também propendia, algumas
poesias originais, que se assemelham em revelação e beleza às do padre
Autores brasileiros  181

Antônio Pereira de Sousa Caldas, isto sem falar nos valiosos espécimes
que nos deu nos gêneros épicos e dramáticos, tão rico e vasto foi o enge-
nho com que o dotou a natureza!
Os Primeiros cantos do poeta, por que tenho de começar minha apre-
ciação, são poesias dos seus primeiros anos, feitas pela maior parte du-
rante o tempo que frequentou a Universidade de Coimbra, ou pouco
depois, mas que já atestam o seu singular talento, e sobre as quais se
exprime pela seguinte maneira o distinto literato A. Herculano:

Os Primeiros cantos são um belo livro; são inspiração de um grande poeta.


A Terra de Santa Cruz, que já conta outros no seus seio, pode abençoar
mais um ilustre filho.
O autor, não o conhecemos; mas deve ser muito jovem. Tem os defeitos do
escritor ainda pouco amestrado pela experiência: imperfeições de língua,
de metrificação, de estilo. Que importa? O tempo apagará essas máculas e
ficarão as novas inspirações estampadas nas páginas deste formoso livro.

Continuando a louvar as poesias do jovem poeta, das quais transcre-


ve o “Canto do guerreiro”, as últimas estrofes do “Morro do Alecrim” e
“Seus olhos”, conclui o ilustre crítico:

Se estas poucas linhas escritas de abundância de coração passarem os ma-


res, receba o autor Primeiros cantos o testemunho sincero de simpatia que a
leitura do seu livro arrancou a um homem que não conhece, e que provavel-
mente não conhecerá nunca, e que não costuma dirigir aos outros elogios
encomendados, nem pedi-los.

Concordando com o senhor A. Herculano na beleza das poesias que


cita, e das quais a intitulada “Seus olhos” é por ele com razão reputada
uma das mais mimosas composições líricas que leu em sua vida, esco-
lherei todavia para os objetos de minha análise as intituladas “O mar”
e a “Ideia de Deus”, que, pela constante elevação de pensamento que
nelas se nota, dão-nos ideia mais cabal do grande engenho da poeta, que
nos informa ele próprio tê-las composto com as outras do seu Primei-
ros cantos, “nas margens viçosas do Mondego e nos primeiros píncaros
enegrecidos do Gerez, no Doiro e no Tejo, sobre as vagas do Atlântico, e
182  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

nas florestas virgens da América,” ou na idade entre os 18 e 22 anos, ou


ainda menos, o que lhes dobra certamente o valor.
Passarei pois a ler-vos com preferência a quaisquer outras, aliás mui
belas, as duas últimas poesias a que me refiro, e a que o autor com muita
propriedade chama hinos, e nem sei que haja outras que mais mereçam
esta designação.

O mar

Oceano terrível, mar imenso


De vagas procelosas que se enrolam
Floridas rebentando em branca espuma
Num polo e noutro polo,
Enfim... enfim te vejo; enfim meus olhos
Na indômita cerviz trêmulos cravo,
E esse rugido teu sanhudo e forte
Enfim medroso escuto!

Donde houveste, ó pélago revolto,


Esse rugido teu? Em vão dos ventos
Corre o insano pegão lascando os troncos,
E do profundo abismo
Chamando à superfície infindas vagas,
Que avaro encerras no teu seio undoso;
Ao insano rugir dos ventos bravos
Sobressai teu rugido.
Em vão troveja horríssona tormenta;
Essa voz do trovão, que os céus abala,
Não cobre a tua voz. — Ah! d’onde a houveste,
Majestoso oceano?

Ó mar, o teu rugido é um eco incerto


Da criadora voz, de que surgiste:
Seja, disse; e tu foste, e contra as rochas
As vagas compeliste.
E à noite, quando o céu é puro e limpo,
Autores brasileiros  183

Teu chão tinges de azul, — tuas ondas correm


Por sobre estrelas mil; turvam-se os olhos
Entre dois céus brilhantes.

Da voz de Jeová um eco incerto


Julgo ser teu rugir; mas só, perene,
Imagem do infinito, retratando
As feituras de Deus,
Por isto, a sós contigo, a mente livre
Se eleva, aos céus remonta ardente, altiva,
E deste lodo terreal se apura,
Bem como o bronze ao fogo.
Férvida a Musa, c’os teus sons casada,
Glorifica o Senhor de sobre os astros
Co’a fronte além dos céus, além das nuvens,
E co’os pés sobre ti.

O que há mais forte do que tu? Se eriças


A coma perigosa, a nau possante,
Extremo de artifício, em breve tempo
Se afunda e se aniquila.
És poderoso sem rival na terra;
Mas lá te vás quebrar num grão da areia,
Tão forte contra os homens, tão sem força
Contra cousa fraca!

Mas nesse instante que me está marcado,


Em que hei de este prisão fugir pr’a sempre,
Irei tão alto, ó mar, que lá não chegue
Teu sonoro rugido.
Então mais forte do que tu minha alma,
Desconhecendo o temor, o espaço, o tempo,
Quebrará num relance o ciclo estreito
Do infinito e dos céus!

Então, entre miríadas de estrelas,


Cantando hinos d’amor nas harpas d’anjos,
184  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Mais forte soará que as tuas vagas,


Mordendo a fulva areia;
Inda mais doce que o singelo canto
De merencória virgem, quando a noite
Ocupa a terra, — do que a mansa brisa,
Que entre flores suspira.

A ideia de Deus

I
À voz de Jeová infinitos mundos
Se formaram do nada;
Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia,
E a noite foi criada.

Luziu no espaço a lua! Sobre a terra


Ronqueja o mar raivoso,
E as esferas nos céus ergueram hinos
Ao Deus prodigioso.

Hino de amor à criação, que soa


Eternal, incessante,
Da noite no remanso, no ruído
Do dia cintilante!

A morte, as aflições, o espaço, o tempo,


O que é para o Senhor?
Eterno, imenso, que lhe importa a sanha
Do tempo roedor?

Como um raio de luz, percorre o espaço,


E tudo nota e vê —
O argueiro, os mundo, o universo, o justo;
E o homem que não crê.

E ele que pode aniquilar os mundos,


Tão forte como ele é,
Autores brasileiros  185

E vê e passa, e não castiga o crime,


Nem o ímpio sem fé!

Porém quando corrupto um povo inteiro


O Nome seu maldiz,
Quando só vive de vingança e roubos,
Julgando-se feliz;

Quando o ímpio comanda, quando o justo


Sofre as penas do mal,
E as virgens sem pudor, e as mães sem honra,
E a justiça venal;

Ai da perversa, da nação maldita,


Cheia de ingratidão,
Que há de ela mesma sujeitar seu colo
A justa punição.

Ou já terrível peste expande as asas,


Bem lenta a esvoaçar;
Vai de uns a outros, dos festins conviva,
Hóspede em todo lar!

Ou já turvo rugir da guerra acesa


Espalha a confusão;
E a esposa, e a filha, de terror opresso,
Não sente o coração.

E o pai, e o esposo, no morrer cruento,


Vomita o fel raivoso;
— Milhões de insetos vis que um pé gigante
Enterra em chão lodoso.

E do povo corrupto um povo nasce


Esperançoso e crente,
Como do podre e carunchoso tronco
Hástea forte e virente.
186  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

II
Oh! Como é grande o Senhor Deus, que os mundos
Equilibra nos ares;
Que vai do abismo aos céus, que susta as iras
Do pélago fremente,
A cujo sopro a máquina estrelada
Vacila nos seus eixos,
A cujo aceno os querubins se movem
Humildes, respeitosos,
Cujo poder, que é sem igual, excede
A hipérbole arrojada!
Oh! Como é grande o Senhor Deus dos mundos,
O Senhor dos Prodígios.

III
Ele mandou que o sol fosse princípio,
E razão de existência,
Que fosse a luz dos homens — olho eterno
Da sua providência.

Mandou que a chuva refrescasse os membros,


Refizesse o vigor
Da terra hiante, do animal cansado
Em praino abrasador.

Mandou que a brisa sussurrasse amiga,


Roubando aroma à flor;
Que os rochedos tivessem longa vida,
E os homens grato amor!

Oh! Como é grande e bom o Deus que manda


Um sonho ao desgraçado,
Que vive agro viver entre misérias,
De ferro rodeado;

O Deus que manda ao infeliz que espere


Na sua providência;
Autores brasileiros  187

Que o justo durma, descansado e forte


Na sua consciência!

Que o assassino de contínuo vele,


Que trema de morrer;
Enquanto lá nos céus, o que foi morto
Desfruta outro viver!

Oh! Como é grande o Senhor Deus, que rege


A máquina estrelada,
Que ao triste dá prazer; descanso e vida
À mente atribulada!

São sobretudo notáveis as duas seguintes estâncias do primeiro dos


dois hinos:

Ó Mar, o teu rugido é um eco incerto


Da criadora voz, de que surgiste:
Seja, disse; e tu foste, e contra as rochas
As vagas compeliste.
E à noite, quando o céu é puro e limpo,
Teu chão tinges de azul, — tuas ondas correm
Por sobre estrelas mil; turvam-se os olhos
Entre dois céus brilhantes.

Da voz de Jeová um eco incerto


Julgo ser teu rugir; mas só, perene,
Imagem do infinito retratando
As feituras de Deus
Por isto, a sós contigo, a mente livre
Se eleva, aos céus remonta ardente, altiva,
E deste lodo terreal se apura
Bem como o bronze ao fogo.
Férvida a musa, co’os teus sons casada,
Glorifica o Senhor de sobre os astros
Co’a fronte além dos céus, além das nuvens
E co’os os pés sobre ti.
188  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Nesta descrição do mar, uma das mais belas que tenho lido, o subli-
me do pensamento, que eleva o espírito a Deus, anda a par do sublime
da pintura, que subjuga os sentidos, porque tudo nela é grandioso, mag-
nífico, elevado, como seu objeto: “Ó Mar, o teu rugido é um eco incerto
/ Da criadora voz, de que surgiste. / Seja, disse; e tu foste, e contra as
rochas / As vagas compeliste.” Após o sublime desses quatro versos vem
o pitoresco dos quatro últimos, que fazem com os primeiros um belo
contraste: “ E à noite, quando o céu é puro e limpo, / Teu chão tinges de
azul, — tuas ondas correm / Por sobre estrelas mil; turvam-se os olhos /
Entre dois céus brilhantes.”
A segunda estrofe, sem falar na bela comparação de se que adorna,
não podia terminar de um modo mais apropriado e sublime, que pelo
seguinte magnífico conceito: “Férvida a Musa, co’os teus sons casada /
Glorifica o Senhor de sobre os astros / Co’a fronte além dos céus, além
das nuvens, / E co’os pés sobre ti.”
E com efeito, quem observa a vastidão do mar, que com seus inco-
mensuráveis abismos se apresenta a nossos olhos, ora agitado e terrível,
ora sereno e pacífico, e sempre sem limites visíveis, representando-nos
em certo modo a imagem do infinito, não pode deixar de conceber a
mais alta ideia do imenso poder de Deus, manifestado nesta e outras
admiráveis obras da criação; exprimi-lo porém em tão magníficos e ex-
pressivos versos, como os que ficam citados, só ao gênio é permitido,
porque só ele encontra expressões próprias para bem pintar tanta gran-
deza. Esta bela poesia, que vimos ainda em manuscrito com outras do
poeta, quando na Revista89 saudamos o seu singular talento, foi uma das
que mais nos impressionou, por sua elevação nunca desmedida, quer no
conceito, quer no estilo.
Do segundo hino, não menos belo, é logo notável o princípio:

À voz de Jeová infindos mundos


Se formaram do nada;
Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia,
E a noite foi criada.

89
  Um dos periódicos fundados pelo autor, que circulou de 1840 a 1850 (cf. Leal, 1987
[1873], p. 76).
Autores brasileiros  189

Luziu no espaço a luz! — sobre a terra


Ronqueja o mar raivoso,
E as esferas nos céus ergueram hinos
Ao Deus prodigioso.

Hino de amor à criação, que soa


Eternal, incessante,
Da noite no remanso, no ruído
Do dia cintilante!

Vede, se era possível entoar um hino a Deus, mais magnífico no con-


ceito e no estilo, do que o anuncia este começo e o atesta o corpo da
poesia! Nada em verdade acharia o poeta mais sublime do que essas
três estrofes, em que o arrojado das figuras — “Rasgou-se o horror das
trevas, fez-se o dia, / E as esferas nos céus ergueram hinos / Ao Deus
prodigioso” — fazem realçar a grandeza do assunto expressa nos dois
primeiros versos: “À voz de Jeová infinitos mundos / Se formaram do
nada.” E daí que harmonia, nos versos realçada pela expressão que a
auxilia, prolongando-lhe os sons dulcíssimos: “Hino de amor à criação,
que soa / Eternal, incessante, / Da noite no remanso, no ruído / Do dia
cintilante.” É que a linguagem dos homens, quando empregada pelo gê-
nio, assemelha-se à celeste harmonia das esferas e orbes infinitos, que
giram no espaço obedientes à lei do Criador! É que só os grandes poetas
sabem bem pintar a grandeza de Deus!
Vede agora como termina ainda apropriadamente poesia tão bela:

Oh! Como é grande o bom Deus que manda


Um sonho ao desgraçado,
Que vive agro viver entre misérias,
De ferros rodeado;

O Deus que manda ao infeliz que espere


Na sua providência;
Que o justo durma descansado e forte
Na sua consciência.

Que o assassino de contínuo vele,


Que trema de morrer;
190  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Enquanto lá nos céus o que foi morto


Desfruta outro viver!

Oh! Como é grande o Senhor Deus que rege


A máquina estrelada,
Que ao triste dá prazer; descanso e vida
À mente atribulada.

Não poderia de certo terminar melhor este grandioso hino a Deus,


cujo imenso poder se glorifica na maravilhosa obra da criação, do que
fazendo sobressair a sua divina providência, que vale sobre o homem
em qualquer estado da vida. Vede como o poeta pinta bem a bondade
infinita de Deus em todo esse notável trecho, e quanto são expressivos
e belos os versos: “Oh! Como é grande e bom o Deus que manda / Um
sonho ao desgraçado / Que vive agro viver entre misérias / De ferros ro-
deado? // O Deus que manda ao infeliz que espere / Na sua providência /
Que o justo durma descansado e forte / Na sua consciência”. Com o jus-
to forma contraste o assassino que vela de contínuo, e ralado de remor-
sos treme de morrer, enquanto a sua vítima goza da bem-aventurança
no céu. Este mesmo último quadro da humanidade aflita sob a proteção
de Deus forma belo e perfeito contraste com as maravilhas da criação
precedentemente descritas.
Um tão soberbo hino em nada é inferior aos melhores do mesmo
gênero que se leem em diversos idiomas; e parece-me que em português
só no padre Sousa Caldas se encontra cousa que com ele rivalize.
Quanto às leves máculas que nota no jovem poeta o Sr. Alexandre
Herculano, e que não prejudicam a sua glória no sentir do mesmo, algu-
mas foram apagadas na edição de Leipzig, se bem não todas.
Tendo apreciado os Primeiros cantos de G. Dias, passarei em outro
discurso a analisar os Segundos, fazendo por hoje aqui ponto neste.

LIÇÃO LXXXII

Quereis, Senhores, saber o que é o gênio em seu progresso ascenden-


te até topetar com os astros que fita, o gênio que não pode ser desco-
nhecido em seu primeiro raiar, e brilha depois em todo seu esplendor,
Autores brasileiros  191

inundando-nos da mais pura luz? Em ninguém o conhecereis melhor


do que no poeta Antônio Gonçalves Dias, que vivia ainda ontem, ad-
mirado por todos nós, e cujo inesgotável estro começou a produzir logo
mui cedo, porque nele o vereis, para bem dizer, desabrochar, viçar, flo-
rescer, frutificar e amadurecer.
Nos Primeiros cantos deste exímio poeta há poesias por ele compos-
tas aos 16 e 18 anos de idade, que surpreendem e arrebatam a quantos
as lêem por sua beleza ou elevação, parecendo obra de uma idade pro-
vecta, como vistes no precedente discurso em que as analisei; era então
até aos 21 ou 22 anos o desabrochar, viçar, florescer e frutificar do rico
talento com que o dotou a natureza. Por isso, não admira se o distinto
literato português, o Sr. A. Herculano, reconhecendo a excelência de tão
singular engenho, que lhe arrancou um testemunho de admiração não
solicitado, lhe nota ainda em tão verde juventude os defeitos do escritor
não amestrados pela experiência.
Nos Segundos cantos do mesmo, porém, trabalho de três ou quatro
anos mais em que o gênio, enriquecido e aperfeiçoado pelo estudo, co-
meça a dar os seus mais sazonados frutos, há poesias não só de notável
beleza, mas de grande perfeição de estilo, como, entre outras muitas que
pudéramos citar, a “Canção nas lágrimas” a “Rosa no mar”, o “Hino à
lua”, e as “Sextilhas de frei Antão”, que, por sua novidade, bom gosto e
correção, cativaram as simpatias de alguns literatos portugueses que não
cessavam de admirá-las quando apareceram.
Tendo de apreciar hoje estes Cantos, como me propus, escolherei de-
les para objeto de minha análise as mencionadas ‘Sextilhas”, que, por seu
gênero e lavor especial, dão um testemunho mais palpável do grande e ex-
traordinário talento do poeta que as outras composições suas, cuja beleza
se admira ordinariamente como cousa de antemão esperada em tal poeta.
Causa em verdade assombro ver como um moço de 23 ou 24 anos
pôde em tão pouco tempo adquirir tão profundo conhecimento do por-
tuguês antigo e moderno, para compor, por um milagre de talento que
outro nome não tem, as mais belas e mimosas poesias na velha e pobre
linguagem do cancioneiro d’el-rei D. Dinis! Que estudo de ferro não era
preciso fazer noite e dia, não só para possuir em tal idade um tão cabal
conhecimento do idioma, mas e sobretudo para se exprimir com tanta
graça e mestria na linguagem obsoleta que falaram nossos avós há mais
de 500 anos atrás! Só o poder do gênio podia chegar a tanto.
192  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

É fama90 que o poeta respondia com essas admiráveis produções do


seu prodigioso talento, que atestam tanta ciência da língua portuguesa,
a certos censores do manuscrito da sua Beatriz Cenci, os quais acoima-
vam de pouco castiça a linguagem do drama. Se assim é, teve ao menos
uma tal censura o mérito de enriquecer a nossa literatura com mais um
produto de tão singular engenho.
Assim, se os franceses se jactam de que o seu La Fontaine, homem
provecto, quando compunha as suas fábulas, se exprimisse tão bem na
antiga linguagem, ou langage du vieux temps, com mais razão devemos
nós os brasileiros gloriar-nos de que o nosso Gonçalves Dias, ainda mui
moço, manejasse tão bem a antiga linguagem portuguesa, como aquele
célebre fabulista manejava a francesa, já maduro.
Buffon91 definiu o gênio “longa paciência”, mas isto não passa de
um paradoxo; porque o gênio que vemos brilhar em Gonçalves Dias
na mais verde mocidade, e ainda depois através da pobre linguagem
do cancioneiro de D. Dinis, ou desacompanhado, para assim dizer, da
língua culta, atesta que o sábio naturalista francês confundiu o gênio, ou
a inteligência mais apurada que a natureza concede a seus privilegiados,
com o estudo e trabalho, que apenas contribui para aperfeiçoá-lo. Do
que dizemos é uma prova não só Gonçalves Dias, mas o mesmo Buffon,
que sem gênio nunca seria o que foi.
Passarei agora a ler-vos dentre as sextilhas as que têm por título
“Gulnare e Mustafá”, para que formeis ajustada ideia do singular talento
do poeta neste gênero de composição por ele inventada.

Quanto o sol se abaixava,


Tanto mais alto gemia
Aquela moira mimosa,
Que as suas mágoas carpia:
É hora que espalha enlevos
A hora do fim do dia!

O pássaro então das ramas,


Louvor a nosso senhor!

  Ver nota 79.


90

  Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788); naturalista francês.


91
Autores brasileiros  193

Último voo desprega


E um doce grito de amor;
Nas penas esconde o bico,
Nem teme o visgo tredor.

As froles do sol viúvas,


Definham, só de tristura:
O mar soluçando geme,
Mais alto a fonte murmura,
Reina o silêncio que fala,
Bafeja a doce frescura.

“Viste vós meu bem amado,


(Dizia a filha d’Alá)
Vistes vós meu bem amado,
O meu senhor Mustafá?
Se o vistes, dizei-me onde!
Por alma vossa, onde está?”

[...]

Então pera junto dela


Cheguei-me sem ser sentido;
Falei-lhe em som cavernoso,
Medonho e baixo no ouvido:
— Por que assi amas o escravo?
Disse eu, do meu mal vencido.

Foi certo o esprito malvado


Quem para ali me arrastou,
Quem nos meus castos ouvidos
Palavras tais derramou,
Quem aos pés da moça moira
O velho padre acurvou.

Era ele quem nos meus ombros


Prezava co’o peso seu,
194  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Quando a moira espavorida


Do vasto leito se ergueu:
Vendo-me ali de giolhos,
Baixou de medrosa o véu.

O véu baixou de corrida,


Mas antes seus olhos vi;
Aqueles olhos fermosos
Lavar-me o rosto senti,
Tocar-me no fundo d’alma,
Tirar-me todo de mi.

Luz que vi daqueles olhos,


Ora bem se me afigura
A lua rasgando as trevas
Em meio de noite escura:
Vi Diana, a caçadora,
Naquela ardida postura.

Mas a moira de repente


Um grito franzino dá!
De mi se parte voando!
Senhor Deus, o que será?
Volto prestes a cabeça...
Vejo o mouro Mustafá!

Em roda do seu pescoço


A moira os braços prendeu;
Arfa-lhe o peito açodado,
Pera trás roja o seu véu,
Oferece o rosto mimoso
Aos beijos daquele increu!

Era assi qual amorosa


Hera que um robre vingou;
Ligou-se estreita com ele,
Do tope se debruçou,
Autores brasileiros  195

Folha meteu pelas folhas,


Vida com vida casou.

“Gulnare, disse-lhe o mouro,


Gulnare, meu doce amor,
Melhor que a rosa da Pérsia,
Que arábio incenso melhor,
Frol dos jardins do profeta,
Que das mate a minha dor!”

Responde a moira mimosa:


“Dizes bem, meu Mustafá,
O fogo chegou-se ao incenso,
O incenso eflúvios dará;
O sol cintila na rosa,
A rosa ressurgirá.”

“Abelha, tornou-lhe o mouro,


Que sussurras de agastada;
Erva, que as folhas constringes,
De estranho corpo tocada;
Quem tocou na minha abelha,
Quem na erva delicada?”

Ela entonces de malquistas


Deu-lhe d’olhos pera mi;
Santo Jesus! Em que apertos
Naquele ensejo me vi,
Prendera-me força oculta,
Foi porém que não fugi!

Trazia o moiro atrevido


Adaga no boldrié;
Deixar a moiros com armas,
Gente de baixa ralé,
Em que escravos de Princesa,
É certo estranha mercê!
196  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

A mão no punho da adaga,


A passo, vem sobre mi;
Trinca as pontas do bigode,
Quais cerdas de javali,
A barba toda se eriça,
Que feio rosto lhe vi!

Os olhos que me lançou,


Jamais não vi seus iguais;
Deviam ser puro fogo,
Se não faíscas fatais
Daquele sol do deserto,
Que abrasa e funde areais.

Negros olhos de pantera,


Luzindo em feia espelunca;
Olhos que o giro do sangue
Nas veias demora e trinca;
Olhos cheios de carniça
E dela não fartos nunca.

Vede como o poeta exprime bem na antiga linguagem a paixão de


frei Antão por Gulnare, a beleza arrebatadora desta, comparável à de
uma huri do fantasiado paraíso de Mafoma, o encontro do frade com a
mesma na postura a mais encantadora, os ciúmes que experimenta, no-
tando as provas de amor que a moura dá a seu amante Mustafá, e o ter-
ror de que se possui com a presença do mouro que o ameaça com gesto
furibundo, levando a mão à adaga. Tudo isso é tão natural, deliciosos,
terrível e poético, que nada deixa a desejar, quanto ao jogo dos afetos e
à pintura que dá realce à situação das personagens, que não podem ser
mais bem caracterizadas. Desta bela poesia citar-vos-ei primeiramente
as três admiráveis sextilhas que precedem o canto da moura:

Quanto o sol se baixava,


Tanto mais alto gemia
Aquela moira mimosa
Que as suas mágoas carpia:
Autores brasileiros  197

É hora que espalha enlevos,


À hora do fim do dia!

O pássaro então das ramas,


Louvor a nosso Senhor!
Último voo desprega
E um doce grito de amor;
Nas penas esconde o bico
Nem teme o visgo tredor.

As froles do sol viúvas,


Definham, só de tristura:
O mar soluçando geme,
Mais alto a fonte murmura,
Reina o silêncio que fala,
Bafeja a doce frescura.

Quem diria que o poeta pudesse em tal linguagem exprimir as ideias


as mais graciosas e criar as imagens as mais pitorescas, vestindo tudo do
mais fino colorido? Mas não há resistir à evidência que nos surpreende
agradavelmente. Vede como são belos e maviosos os seguintes versos em
que descreve o fim do dia: “É hora que espalha enlevos, / A hora do fim do
dia!”; quanto são naturais e expressivos est’outros em que pinta o pássaro
despregando da rama o último voo e buscando o seu poiso com um doce
grito de amor: “Nas penas esconde o bico / Nem teme o visgo tredor.”;
como é bela a última sextilha que apresenta imagens tão pitorescas: “As
froles do sol viúvas / Definham, só de tristura; / O mar soluçando geme, /
Mais alto a fonte murmura, / Reina o silêncio que fala, / Bafeja a doce fres-
cura.” Quanta poesia e verdade não há nessa admirável prosopopeia — “O
mar soluçando geme”? Quanto arrojo e novidade nest’outra não menos
bela — “Reina o silêncio que fala”? É que o gênio sabe escolher os termos
os mais expressivos e felizes, e formar-se uma linguagem própria em cada
língua, ainda a mais pobre e inculta, pois de outro modo não seria gênio.
Se são belas essas três sextilhas, não o são menos as seguintes:

Então pera junto dela


Cheguei-me sem ser sentido;
198  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Falei-lhe em som cavernoso,


Medonho e baixo no ouvido:
Por que assi amas o escravo?
Disse eu, do meu mal vencido.

Foi certo o esprito malvado


Quem para ali me arrastou,
Quem nos meus castos ouvidos
Palavras tais derramou,
Quem aos pés da moça moira
O velho padre acurvou.

Era ele quem nos meus ombros


Pesava co’o peso seu,
Quando a moira espavorida
Do vasto leito se ergueu:
Vendo-me ali de giolhos,
Baixou de medrosa o véu.

O véu baixou de corrida,


Mas antes seus olhos vi;
Aqueles olhos fermosos
Lavar-me o rosto senti,
Tocar-me no fundo d’alma,
Tirar-me todo de mi.

Luz que eu vi daqueles olhos,


Ora bem se me afigura
A lua rasgando as trevas
Em meio de noite escura,
Vi Diana, a caçadora,
Naquela ardida postura.

São por certo mui notáveis as sextilhas em que o poeta descreve o


frade falando em som cavernoso ao ouvido da linda moira que o não
vê, e esta saltando do leito espavorida, e baixando de medrosa o véu,
mas mais o são ainda as duas últimas, em que a impressão que causam
Autores brasileiros  199

no frade os olhos da moça é pintada pela maneira a mais rica, poética


e nova. Vede que feliz arrojo de figuras, ou antes, que mágica e em-
briagante poesia não contêm os quatro últimos versos desta inimitável
sextilha: “O véu baixou de corrida, / Mas antes seus olhos vi; / Aqueles
olhos fermosos / Lavar-me o rosto senti, / Tocar-me no fundo d’alma,
/ Tirar-me todo de mi.” Notai agora a belíssima comparação que en-
cerram os quatro primeiros versos da última, que é como repercussão
esplêndida da outra: “Luz que vi daqueles olhos, / Ora bem se me figura
/ A lua rasgando as trevas / Em meio da noite escura.” Lede os melho-
res poetas antigos e modernos, e fio-vos que em nenhum encontrareis
poesia do mesmo gênero superior a esta em beleza, ou pela ventura em
novidade: tão admirável é ela!
Quereis agora uma soberba pintura d’outro gênero? Ei-la:

Ela entonces de malquista


Deu-lhe d’olhos pera mi;
Santo Jesus! Em que apertos
Naquele ensejo me vi,
Prendera-me força oculta,
Foi porém que não fugi.

Trazia o moiro atrevido


Adaga no boldrié;
Deixar a moiros com armas,
Gente de baixa ralé,
Em que escravos da princesa,
É certo estranha mercê.

A mão no punho da adaga,


A passo vem sobre mi
Trinca a ponta do bigode,
Quais cerdas de javali;
A barba toda se eriça,
Que feio rosto lhe vi!

Os olhos que me lançou


Jamais não vi seus iguais;
200  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Deviam ser puro fogo,


Se não faíscas fatais
Daquele sol do deserto,
Que abrasa e funde areais.

Negros olhos de pantera,


Luzindo em feia espelunca;
Olhos, que o giro do sangue
Nas veias demora e trunca;
Olhos cheios de carniça,
E dela não fartos nunca.

Nada mais sinistro e feroz que esse gesto de moiro com o furor pin-
tado nos olhos; nada mais apropriado que o terror do frade preso a tal
vista por força oculta, e sem poder mover-se do lugar em que se acha;
é o sublime da sanha em um, é o do medo em outro. Não há nas cinco
sextilhas citadas uma só que não concorra por diversas circunstâncias
para a beleza do quadro tão magistralmente traçado pelo poeta, mas são
sobretudo magníficas as duas últimas, que o rematam do modo o mais
surpreendedor:

Os olhos que me lançou


Jamais não vi seus iguais;
Deviam ser puro fogo,
Se não faíscas fatais
Daquele sol do deserto,
Que abrasa e funde areais.

Negros olhos de pantera,


Luzindo em feia espelunca;
Olhos, que o giro do sangue
Nas veias demora e trunca;
Olhos cheios de carniça,
E dela não fartos nunca.

Que riquezas de imagens! Que movimento! Que fascinação! Nun-


ca o furor de um filho do deserto foi mais poeticamente descrito: é a
Autores brasileiros  201

tempestade prestes a desfechar, e formando um belo contraste com o


terror do frade!
Concluirei dizendo que quem quer que ler a admirável poesia “Gul-
nare e Mustafá”, que denuncia também talento dramático no grande
poeta lírico, reconhecerá logo em Gonçalves Dias o verdadeiro gênio;
pois só por um brilhante efeito de gênio se podiam tirar tais acentos da
pobre e obsoleta linguagem que se falava em tempo de D. Dinis e dos
reis seus predecessores.

LIÇÃO LXXXIII

Depois de haver emitido o meu juízo crítico sobre os Primeiros e os


Segundos cantos do nosso exímio poeta, Antônio Gonçalves Dias, resta-
-me hoje, Senhores, apreciar os seus Últimos cantos, em nada inferiores
àqueles outros, antes pela ventura mais castigados, por serem fruto da
maturidade do seu extraordinário engenho, que vimos desde a mais ver-
de mocidade brilhar na poesia lírica sem rival entre os contemporâneos
nos dois países de língua portuguesa.
Disse-vos eu que, assim como Odorico Mendes é por sua bem aca-
bada tradução de Virgílio e a inédita de Homero um verdadeiro poeta
clássico, assim Gonçalves Dias é incontestavelmente, por suas admi-
ráveis poesias líricas, um poeta romântico; e com efeito, ainda nem
um moderno poeta brasileiro se mostrou em suas produções mais
imbuído na fértil e sublime inspiração cristã e no espírito cavaleiro-
so da Idade Média. Haja vista nos Primeiros cantos as suas soberbas
poesias intituladas hinos, nos Segundos as “Sextilhas de frei Antão”, e
nos últimos há não poucas de suas belas poesias, das quais citarei por
exemplo a intitulada “Menina e moça,” a que nenhuma outra se iguala.
Criou além disso este insigne poeta um gênero novo, as “Poesias ame-
ricanas”, nas quais descreve mui poeticamente os usos e costumes de
nossos aborígenes.
Como poeta romântico a nenhum dos dois grandes líricos do século
XIX, Lamartine e Victor Hugo, cede em concepção imaginosa, fogo de
inspiração e delicada expressão sentimental, porque a ambos iguala em
grandeza do engenho, se não em nomeada por ser a língua portuguesa
muito menos conhecida que a francesa. Como poeta do Novo Mundo
202  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

não tem rival nas suas “Poesias americanas”, porque nenhum dos con-
temporâneos sobe em seus voos tão alto como ele, quer nos descreva o
imenso Gigante de Pedra, quer o trágico caso de I-Juca-Pirama.
Em linguagem pitoresca e poética nenhum poeta romântico é mais
rico do que este, que fez um estudo especial de sua língua a ponto de
nos poder dar as poesias as mais deleitáveis na antiga linguagem que
falavam nossos avós há mais de cinco séculos. Nas suas “Poesias ameri-
canas” deu foro de cidade a não pequeno número de termos indígenas,
fazendo-os sobressair por sua valentia ou suavidade no meio das mais
engenhosas ficções, das mais ricas imagens poéticas e dos mais harmo-
niosos versos. Para operar o prodígio de adotar tantos termos da língua
tupi sem quebra do primor poético, prodígio não menor que o outro
de reproduzir a velha linguagem do cancioneiro de D. Dinis no belo
romance de “Gulnare e Mustafá”, era mister ser não só um grande poeta,
mas um verdadeiro gênio em poesia, e Gonçalves Dias o era em toda a
plenitude da expressão.
Dos Últimos cantos escolherei para o objeto de minha análise o “Gi-
gante de Pedra”, soberba poesia do gênero das americanas pelo assunto,
e a “Menina e moça”, poesia de grande beleza no gosto romântico, as
quais passarei a ler-vos, para que façais ideia do extraordinário talento
do poeta em um e outro gênero, ou de como o seu riquíssimo engenho
se prestava admiravelmente a toda a sorte de concepções poéticas por
mais variadas e diversas que parecessem.
Ei-las:

O gigante de pedra

I
Gigante orgulhoso, de fero semblante
Num leito de pedra lá jaz a dormir!
Em duro granito repousa o gigante,
Que os raios somente puderam fundir.

Dormindo atalaia no serro empinado


Devera cuidoso, sanhudo velar;
O raio passado o deixou fulminado,
E a aurora, que surge, não há de acordar!
Autores brasileiros  203

Co’os braços no peito cruzados nervosos,


Mais alto que as nuvens, os céus a encarar,
Seu corpo se estende por montes fragosos,
Seus pés sobranceiros se elevam do mar!

De lavas ardentes seus membros fundidos


Avultam imensos: só Deus poderá
Rebelde lançá-lo dos montes erguidos,
Curvados ao peso, que sobre lh’está.

E o céu e as estrelas e os astros fulgentes


São velas, são tochas, são vivos brandões,
E o branco sudário são névoas algentes,
E o crepe, que o cobre, são negros bulcões.

Da noite que surge no manto fagueiro


Quis Deus que se erguesse, de junto a seus pés,
A cruz sempre viva do sul no cruzeiro,
Deitada nos braços do eterno Moisés.

Perfumam-no odores que as flores exalam,


Bafejam-no carmes de um hino de amor
Dos homens, dos brutos, da nuvens que estalam,
Dos ventos que rugem, do mar em furor.

E lá na montanha, deitado dormindo


Campeia o gigante, — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, os pés sobre o mar!

II
Banha o sol os horizontes,
Trepa os castelos dos céus,
Aclara serras e fontes,
Vigia os domínios seus:
Já descai p’ra o ocidente,
E em globo de fogo ardente;
204  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Vai-se no mar esconder;


E lá campeia o gigante,
Sem destorcer o semblante,
Imóvel, mudo, a jazer!

Vem a noite após o dia,


Vem o silêncio, o frescor,
E a brisa leve e macia,
Que lhe suspira ao redor;
E da noite entre os negrores,
Das estrelas os fulgores
Brilham na face do mar:
Brilha a lua cintilante,
E sempre mudo o gigante,
Imóvel, sem acordar!

Depois outro sol desponta,


E outra noite também,
Outra lua que aos céus monta,
Outro sol que após lhe vem:
Após um dia outro dia,
Noite após noite sombria,
Após a luz o bulcão,
E sempre o duro gigante,
Imóvel, mudo, constante
Na calma e na cerração!

Corre o tempo fugidio,


Vem das águas a estação,
Após ela o quente estio;
E na calma do verão
Crescem folhas, vingam flores,
Entre galas e verdores
Sazonam-se frutos mil,
Cobrem-se os prados de relva,
Murmura o vento na selva,
Azulam-se os céus de anil!
Autores brasileiros  205

Tornam prados a despir-se,


Tornam flores a murchar,
Tornam de novo a vestir-se,
Tornam depois a secar;
E como gota filtrada
De uma abóbada escavada
Sempre, incessante a cair,
Tombam as horas e os dias,
Como fantasmas sombrias,
Nos abismo de porvir!

E no féretro de montes
Inconcusso, imóvel, fito,
Escurece os horizontes
O gigante de granito:
Com soberba indiferença
Sente extinta a antiga crença
Dos tamoios, dos pajés;
Nem vê que duras desgraças,
Que luta de novas raças
Se lhe atropelam aos pés!

III
E lá na montanha deitado dormindo
Campeia o gigante, — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, e os pés sobre o mar!...

IV
Viu primeiro os íncolas
Robustos, das florestas,
Batendo os arcos rígidos,
Traçando homéreas festas,
À luz dos fogos rútilos,
Aos sons do murmuré!
E em Guanabara esplêndida
As danças dos guerreiros,
206  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

E o guau cadente e vário


Dos moços prazenteiros,
E os cantos da vitória
Tangidos no boré.

E das igaras côncavas


A frota aparelhada,
Vistosa e formosíssima
Cortando a undosa estrada,
Sabendo, mas que frágeis,
Os ventos contrastar:
E a caça leda e rápida
Por serras, por devesas,
E os cantos da janúbia
Junto às lenhas acesas,
Quando o tapuia mísero
Seus feitos vai narrar!

E o gérmen da discórdia
Crescendo em duras brigas,
Ceifando os brios rústicos
Das tribos sempre amigas,
— Tamoi a raça antiga,
Feroz Tupinambá.
Lá vai a gente impróvida,
Nação vencida, imbele,
Buscando as matas ínvias,
Donde outra tribo a expele;
Jaz o pajé sem glória,
Sem glória a maracá.

Depois em mãos flamívomas


Um troço ardido e forte,
Cobrindo os campos úmidos
De fumo, e sangue, e morte,
Trás dos reparos hórridos
D’altíssimo pavez:
Autores brasileiros  207

E do sangrento pélago
Em míseras ruínas
Surgir galhardas, límpidas
As portuguesas quinas,
Murchos os lises cândidos
Do impróvido gaulês!

V
Mudaram-se os tempos e a face da terra,
Cidades alastram o antigo paul;
Mas ainda o gigante, que dorme na serra,
Se abraça ao imenso cruzeiro do sul,

Nas duras montanhas os membros gelados


Talhados a golpes de ignoto buril,
Descansa, ó gigante, que encerras os fados,
Que os términos guardas do vasto Brasil.

Porém se algum dia fortuna inconstante


Puder-nos a crença e a pátria acabar,
Arroja-te às ondas, ó duro gigante,
Imunda estes montes, desloca este mar!

Menina e moça

É leda a flor que desponta


Sobre o talo melindroso,
E o arrebento viçoso
Crescendo em flóreo tapiz;
É doce o romper da aurora,
Doce a luz da madrugada,
Doce o luzir da alvorada,
Doce, mimoso e feliz!

É bela a virgem risonha


Com seus músicos acentos,
Com seus virgens pensamentos,
208  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Com seus mimos infantis;


Como quanto enceta a vida,
Que à luz sorri da existência,
Que tem na sua inocência
Da mocidade o verniz.

Vinga a flor a pouco e pouco,


Cada vez mais bem querida,
Tem mais encantos, mais vida,
Tem mais brilho, mais fulgor:
De cada gota de orvalho
Extrai celeste perfume,
E do sol no raio assume
Cada vez mais viva cor.

Assim a virgem mimosa,


Pouco e pouco, noite e dia,
Mais viva flor de poesia
Do rosto lhe tinge a cor;
E um anjo nos meigos sonhos,
Do seu peito na dormência
Derrama o odor da inocência,
Um doce raio de amor!

Porque tudo quanto nasce,


Seja a luz da madrugada,
Seja o romper da alvorada,
Seja a virgem, seja a flor;
Tem mais amor, tem mais vida,
Como celeste feitura,
Que sabe melindrosa e pura
Dentre as mãos do criador.

Da primeira poesia é magnífico logo o começo:

Gigante orgulhoso de fero semblante


Num leito de pedra lá jaz a dormir!
Autores brasileiros  209

Em duro granito repousa o gigante,


Que os raios somente puderam fundir.

Dormindo atalaia no serro empinado


Devera cuidoso, sanhudo velar;
O raio passando o deixou fulminado,
E a aurora, que surge, não há de acordar!

Co’os braços no peito cruzados nervosos,


Mais alto que as nuvens, os céus a encarar,
Seu corpo se estende por montes fragosos,
Seus pés sobranceiros se elevam do mar!

De lavas ardentes seus membros fundidos


Avultam imensos: só Deus poderá,
Rebelde lançá-lo dos montes erguidos
Curvados ao peso, que sobre lhe’stá.

O poeta, no começo desta bela poesia, traça-nos um soberbo quadro


que nada deixa a desejar, descrevendo as feições ilusórias dos montes à
entrada do Rio de Janeiro, que, vistos de longe, semelham, por sua posi-
ção, um gigante deitado, que se chama frade ou gigante de pedra. Tudo
ali concorre para a perfeita ilusão poética, tanto as ricas imagens com
que nos pinta a enorme figura e as dimensões do gigante, como os ver-
sos chamados da arte maior, ou de 12 sílabas,92 que emprega, e são por
sua extensão mui próprios para bem representar tão estupendo colosso
deitado. Camões, descrevendo Adamastor, emprega os versos esdrúxu-
los, que são também de 12 sílabas.93
Vede que grandiosa e soberba pintura não apresentam estes versos:
“Co’os braços no peito cruzados nervosos, / Mais alto que as nuvens, os
céus a encarar, / Seu corpo se estende por montes fragosos, / Seus pés
92
  Segundo o sistema de contagem das sílabas métricas hoje adotado, 11 sílabas. Ver nota 70.
93
  A descrição referida se encontra no canto V, estrofe 38. O autor chama “esdrúxulos” aos
versos segundo, quarto e sexto da estrofe, por terminarem em palavras proparoxítonos. Pelo
sistema métrico por ele adotado, que conta inclusive as sílabas átonas finais dos versos, de
fato os versos do exemplo que dá apresentam 12 sílabas; no entanto, adotado o sistema
proposto pela reforma de Castilho, desprezam-se as duas sílabas finais dos proparoxítonos
que encerram os versos, e com isso eles se transformam em decassílabos. Ver nota 70.
210  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

sobranceiro se elevam do mar!” A concepção é das mais felizes e poéti-


cas, e o desempenho em tudo completo, como passareis a ver.
Não é menos belo o seguinte trecho:

Banha o sol os horizontes,


Trepa os castelos dos céus
Aclara serras e fontes,
Vigia os domínios seus;
Já descai p’ra o ocidente,
E em globo de fogo ardente
Vai-se no mar esconder;
E lá campeia o gigante
Sem destorcer o semblante,
Imóvel, mudo, a jazer!

Vem a noite após o dia


Vem o silêncio, o frescor,
E a brisa leve e macia,
Que lhe suspira ao redor;
E da noite entre os negrores,
Das estrelas os fulgores
Brilham na face do mar;
Brilha a lua cintilante,
E sempre mudo o gigante,
Imóvel, sem acordar!

O que aqui descreve o poeta, o tem sido por milhares de poetas antes
dele, e o será por milhares de poetas depois dele; mas tão poéticas são
as imagens com que faz a pintura do dia e da noite, e tal é a suavidade
dos versos em que se exprime, que tudo é belo e nos parece novo, apesar
de velho. Descrever as cousas de todos observadas, e por muitos pinta-
das, por uma maneira tão nova como brilhante, é unicamente privilégio
do gênio, que ninguém desconhecerá jamais neste grande poeta, cujo
berço foi embalado pelas Musas que o guiaram ao Parnaso desde os
mais verdes anos. Desta admirável pintura são logo mui belos os quatro
primeiros versos de cada estância: “Banha o sol os horizontes, / Trepa
os castelos dos céus, / Aclara serras e fontes, / Vigia os domínios seus.”;
Autores brasileiros  211

“Vem a noite após o dia, / Vem o silêncio, o frescor, / E a brisa leve e


macia, / Que lhe suspira ao redor.”
Eis agora em conclusão mais outro notável trecho:

Viu primeiro os íncolas


Robustos das florestas,
Batendo os arcos rígidos,
Traçando homéreas festas,
À luz dos fogos rútilos,
Aos sons de murmuré!
E em Guanabara esplêndida
As danças dos guerreiros,
E o guau cadente e vário
Dos moços prazenteiros,
E os cantos da vitória
Tangidos no boré.

E das igaras côncavas


A frota aparelhada,
Vistosa e formosíssima
Cortando a undosa estrada,
Sabendo, mas que frágeis,
Os ventos contrastar:
E a caça leda e rápida
Por serras, por devesas,
E os cantos da janúbia
Junto às lenhas acesas,
Quando o tapuia mísero
Seus feitos vai narrar!

Nestes lindos versos dactílicos94 descreve o poeta os usos e costumes


de nossos aborígenes, suas festas homéricas, suas danças estrepitosas

94
  Na métrica latina, baseada na quantidade, dáctilo era a unidade métrica constituída por
uma sílaba longa e duas breves. A métrica da língua portuguesa, contudo, é qualitativa, silábica
ou acentual, baseando-se na alternância de sílabas átonas e tônicas, de modo que o conceito
não se aplica ao verso português, salvo de modo bastante forçado. De resto, não atinamos com
a aplicação do conceito à descrição dos versos em causa, dadas suas cadências variadas.
212  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

ou guaus, suas viagens por água, suas caçadas e o canto do prisioneiro


destinado a ser comido, depois de haver dado as maiores provas de co-
ragem em seu prolongado martírio. Estas quatro estâncias por si mes-
mas constituem um quadro perfeito, belo por sua novidade, imagens
poéticas, verdade descritiva e harmonia onomatopaica dos versos. Não
havia por certo melhor maneira de terminar a grandiosa e poética pin-
tura do gigante de pedra, que fazê-lo presenciar do seu leito de granito
em que parece guardar a entrada do Rio de Janeiro as diversas raças que
têm dominado o Brasil, isto é, os aborígenes, os colonos portugueses e
os atuais brasileiros descendentes destes, porque não há quadro algum,
por mais soberbo que seja, que nos possa vivamente interessar, sem que
nele figure o homem, que é o rei da criação.
Da segunda poesia, que é toda mui bela, reproduzirei aqui as duas
primeiras estâncias:

É leda a flor que desponta


Sobre o talo melindroso,
E o arrebento viçoso
Crescendo em flóreo tapiz;
É doce o romper da aurora,
Doce a luz da madrugada,
Doce o luzir da alvorada,
Doce, mimoso e feliz!

É bela a virgem risonha


Com seus músicos acentos,
Com seus virgens pensamentos,
Com seus mimos infantis;
Como quanto enceta a vida,
Que a luz sorri da existência
Que tem na sua inocência
Da mocidade o verniz.

Que suavíssima, rica e inimitável poesia! Os conceitos os mais deli-


cados, as imagens as mais graciosas e risonhas, as comparações as mais
mimosas, o colorido o mais fino, os acentos os mais musicais, a versifica-
ção a mais perfeita, tudo concorre para torná-la de beleza incomparável.
Autores brasileiros  213

Nada me recordo de haver lido em poeta algum que seja tão delicioso
e puro, como esta lindíssima poesia, a que nenhuma outra se iguala no
seu gênero. É ela como uma música angelical, uma verdadeira essência
de poesia tão delicada e primorosa como a flor a que o poeta compara a
virgem em sua inocência, pureza e formosura, na mais viçosa quadra da
vida, quando tudo lhe sorri, a natureza e os homens. Versos tais podem
ser reputados como balsâmicas flores entre as produções do gênio que
se compraz às vezes em fazê-los.
Tendo apreciado as melhores poesias líricas do nosso poeta Gon-
çalves Dias, consagrarei ainda o seguinte discurso à apreciação do seu
incompleto poema Os Timbiras. Por hoje aqui faço ponto.

LIÇÃO LXXXIV

O extraordinário talento do nosso exímio poeta Antônio Gonçalves


Dias não resplandeceu unicamente na poesia lírica, na qual não teve
ele rival entre os poetas contemporâneos de língua portuguesa, como
vimos na análise dos seus Primeiros, Segundos e Últimos cantos; brilhou
também na poesia épica e na dramática, como o atestam as suas obras
impressas e por imprimir.
Do seu poema épico Os Timbiras, com que me vou hoje ocupar, exis-
tem impressos só os quatro primeiros cantos, perdendo-se os mais que
o completavam, no naufrágio em que pereceu o poeta nas costas de Gui-
marães, ou sendo desencaminhados em Alcântara com outros papéis
seus pelos que os acharam, segundo a fama que correu logo depois do
naufrágio.95 Conquanto não se possa formar ideia do plano e urdidura
do poema unicamente por esses quatro cantos, há contudo neles matéria
bastante para se apreciar o talento do poeta neste gênero de composição,
como quadros ou grandiosos ou patéticos, belas descrições, belos epi-
sódios, entusiasmo nunca desmentido e estilo verdadeiramente épico.
O herói do poema é o chefe dos índios timbiras, Itajuba, espécie de
Aquiles ou Fingal americano a que nenhum outro se iguala entre as diver-
sas tribos; as cenas passam-se no Maranhão, nos tempos imediatos à co-
lonização, mas, nestes primeiros cantos, unicamente entre os habitantes

  Ver nota 88.


95
214  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

das selvas, sem que nelas figure o homem civilizado, como figura no
Caramuru, de frei J. de S. Rita Durão, e no Uraguai, de J. Basílio da Gama.
Sou de opinião que, para que os modernos poemas ou épicos ou dramá-
ticos, em que se descrevem os usos e costumes de nossos aborígenes, nos
interessem vivamente, é mister que neles figurem, a par do indígena, o
homem civilizado, seja para que a presença de algum herói conhecido
torne verossímil a existência de heróis de pura invenção, seja para que o
poeta, podendo apresentar o contraste da vida social com a selvática, gire
em uma esfera moral, religiosa, histórica e política mais vasta. Os tempos
de Homero, em que só existia a civilização nascente dos gregos e a dos
povos da Ásia Menor em que se compreendia o Egito, já lá vão há três
mil anos; hoje a civilização tem invadido em seu progresso as selvas, os
ermos os mais recônditos, e é por demais exigente em suas aspirações.
Contudo, não só não é possível formar ideia da contextura do todo
de um poema incompleto por quatro cantos somente, como também
muito haveria a esperar, se ele se completasse, do singular engenho do
poeta que modela a estatura de seus heróis e as cores com que os pinta
pelas dos magníficos quadros de Homero e de Ossian, e sabe, apesar de
tudo, interessar-nos por uma raça que vai desaparecendo, ou por cruza-
mentos ou por outras causas, e cujos usos e costumes tão nobre e poe-
ticamente descreve.
E com efeito, se havia poeta que pudesse escrever bem sobre tal assun-
to, era Gonçalves Dias, que, sobre ser dotado de superior talento, fez um
estudo especial da língua tupi, com cujos termos mais sonoros enriqueceu
o nosso dialeto poético, assim como dos usos e costumes dos aborígenes
do Brasil, que vão sendo todos os dias absorvidos por nossa civilização
crescente, e cujas poéticas tradições nos conservará nos seus belos versos.
De um tão acurado estudo na matéria dão testemunho tanto os quatro
cantos do seu poema como as suas “Poesias americanas”, de que já tratei.
Não podendo apresentar o argumento do poema incompleto, que
só apreciarei em algumas de suas partes, recorrerei, para dar-vos ideia
do assunto, aos próprios versos do poeta, que assim o resume em sua
introdução:

Os ritos semibárbaros dos Piagas,


Cultores de Tupã, e a terra virgem
Donde como de um trono, enfim se abriram
Autores brasileiros  215

Da cruz de Cristo os piedosos braços;


As festas, as batalhas mal sangradas
Do povo americano, agora extinto,
Hei de cantar na lira. Evoco a sombra
Do selvagem guerreiro!... Torvo o aspecto,
Severo e quase mudo, a lentos passos,
Caminha incerto, o bipartido arco
Nas mãos sustenta, e dos despidos ombros
Pende-lhe a rota aljava... as entornadas,
Agora inúteis setas, vão mostrando
A marcha triste e os passos mal seguros
De quem, na terra de seus pais, embalde
Procura asilo, e foge o humano trato.

O poeta, como se vê, resume no seu herói imaginário todo o inte-


resse que deve inspirar uma raça inteira e quase extinta, cujos ritos se-
mibárbaros, festas e batalhas mal sangradas canta, bem como a marcha
triste e os passos mal seguros do selvagem por toda parte acossado pela
civilização, ou de quem, na terra de seus pais, embalde procura asilo e
foge o humano trato. É um novo modo de considerar a epopeia, ou de
interessar-nos e comover-nos. Mas que caminho foi jamais vedado ao
gênio que cria uma poética para si, e a cujos únicos esforços se devem
os preceitos da arte? O que é certo é que as belas passagens contidas nos
primeiros cantos fazem com razão lamentar a perda dos outros, que
completavam o poema e o tornariam pela ventura um todo grandioso e
digno de tal engenho.
Passarei agora a ler-vos as passagens que mais excitaram a minha
admiração, como o belo episódio de Coema no segundo canto, e a men-
sagem de Jurucei no quarto. Ei-las:

Emudeceu: na taba quase escura,


Com o pé alterno a dança vagarosa,
Aos sons do maracá, traçava os passos.

“Flor de beleza, luz de amor, Coema,


Murmurava o cantor, onde te foste,
Tão doce e bela, quando o sol raiava?
216  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Coema, quanto amor que nos deixaste?


Eras tão meiga, teu sorrir tão brando,
Tão macios teus olhos! Teus acentos
Cantar perene, tua voz gorjeios,
Tuas palavras mel! O romper d’alva,
Se encantos punha a par de teus encantos,
Tentava embalde pleitear contigo!
Não tinha a ema porte mais soberbo,
Nem com mais graça recurvava o colo!
Coema, luz de amor, onde te foste?

Amava-te o melhor, o mais guerreiro


Dentre nós; elegeu-te companheira,
A ti somente, que só tu achavas
Sorriso e graça na presença dele.
Flor, que nasceste no musgoso cedro,
Cobravas páreas de abundante seiva,
Tinhas abrigo e proteção das ramas...
Que vendaval te despegou do tronco,
E ao longe em pó te esperdiçou no vale?
Coema, luz de amor, flor de beleza,
Onde te foste, quando o sol raiava?

Anhangá rebocou estreita igara


Contra a corrente: Orapacém vem nela,
Orapacém, tupinambá famoso.
Conta prodígios duma raça estranha,
Tão alva como o dia, quando nasce,
Ou como a areia cândida e luzente,
Que as águas dum regato sempre lavam.
Raça a quem os raios prontos servem,
E o trovão e o relâmpago acompanham.
Já de Orapacém os mais guerreiros
Mordem o pó, e as tabas feitas cinza
Clamam vingança em vão contra os estranhos,
Talvez doutros estranhos perseguidos,
Em punição talvez d’atroz delito.
Autores brasileiros  217

Orapacém fugindo, brada sempre:


Mair! Mair! Tupã! — Terror que mostra,
Brados que solta, e as derrocadas tabas,
Deste Tapui-tapera alto proclamam
Do vencedor a indômita pujança.
Ai! Não viesse nunca as nossas tabas
O tapuia mendaz, que os bravos feitos
Narrava do Mair; nunca os ouviras,
Flor de beleza, luz de amor, Coema!

A cega desventura, nunca ouvida,


Nos move compaixão; prestes corremos
Com ledo gasalhado a restaurá-los
Da vil dureza do seu fado: dormem
Nas nossas redes, diligentes vamos
Colher-lhes frutos — descansados folgam
Nas nossas tabas: Itajuba mesmo
Oferece abrigo ao palrador tapuia!
Hóspedes são, nos diz, Tupã os manda:
Os filhos de Tupã serão bem vindos,
Onde Itajuba impera! Ai que não eram,
Nem filhos de Tupã, nem gratos hóspedes
Os vis que o rio, a custo, nos trouxera;
Antes dolosa resfriada serpe
Que ao nosso lar criou vida e peçonha.
Quem nunca os vira! Porém tu, Coema,
Leda avezinha, que adejavas livre,
Asas da cor da prata ao sol abrindo,
A serpente cruel por que fitaste,
Se já do olhado mau sentias pejo?!

Ouvimos, uma vez, da noite em meio,


Voz de aflita mulher pedir socorro,
E em tom sumido lastimar-se ao longe.
Orapacém! — bradou feroz três vezes
O filho de Jaguar: clamou debalde.
Somente acode o eco a voz irada,
218  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Quando ele o malfeitor no instinto enxerga.


Em sanhas rompe o chefe hospitaleiro,
E tenta com afã chegar ao termo,
Donde as querelas míseras partiam.
Chegou — já tarde! — nós, mais tardos inda,
Assistimos ao súbito espetáculo!”

Queimam-se raros fogos nas desertas


Margens do rio, quase imerso em trevas:
Afadigados no labor noturno,
Os traiçoeiros hóspedes caminham,
Pejando a pressa as côncavas igaras.
Longe, Coema, a doce flor dos bosques,
Com voz de embrandecer duros penhascos,
Suplica e roja em vão aos pés do fero,
Caviloso tapuia! Não resiste
Ao fogo da paixão, que dentro lavra,
O bárbaro, que a viu, que a vê tão bela!

Vai arrastá-la, — quando sente uns passos


Rápidos, breves, — volta-se: Itajuba!
Grita, e os seus, medrosos, receando
A perigosa luz, os fogos matam
Mas, no extremo clarão que eles soltavam,
Viu-se Itajuba com seu arco em punho,
Calculando a distância, a força e o tiro:
Era grande a distância, a força imensa.

“E a raiva incrível, continua o chefe,


A antiga cicatriz sentindo abrir-se!
Ficou-me o arco em dois nas mãos partido,
E a frecha vil caiu-me aos pés sem força.”
E assi dizendo nos cerrados punhos
De novo pensativo a fronte oprime.

“Sim, tornava o Cantor, imenso e forte


Devera o arco ser, que entre nós todos
Autores brasileiros  219

Só um achou que lhe vergasse as pontas,


Quando Jaguar morreu! — partiu-se o arco!
Depois ouviu-se um grito, após ruído,
Que as águas fazem no tombar de um corpo,
Depois — silêncio e trevas...”

“Nessas trevas,
Replicava Itajuba, — inteira a noite,
Louco vaguei, corri d’encontro às rochas,
Meu corpo lacerei nos espinheiros,
Mordi sem tino a terra já cansado:
Soluçavam porém meus frouxos lábios
O nome dela tão querido, e o nome...
Aos vis Tupinambás nunca os eu veja,
Ou morra, antes de mim, meu nome e glória
Se os não hei de punir ao recordar-me
A aurora infausta que me trouxe aos olhos
O cadáver...” Parou, que a estreita gorja
Recusa aos cavos sons prestar acento.

“Descansa agora o pálido cadáver


(Continua o cantor) junto à corrente
Do regato, que volve areias douro,
Ali agrestes flores lhe matizam
O modesto sepulcro, — aves canoras
Descantam tristes nênias ao compasso
Das águas, que também nênias soluçam.

Suspirada Coema, em paz descansa


No teu florido e fúnebre jazigo;
Mas quando a noite dominar no espaço,
Quando a lua coar úmidos raios
Por entre as densas, buliçosas ramas,
Da cândida neblina veste as formas,
E vem no bosque suspirar co’a brisa:
Ao guerreiro, que dorme, inspira sonhos,
E à virgem, que adormece, amor inspira.”
220  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Calou-se; o maracá rugiu de novo


À extrema vez, e jaz emudecido.
Mas no remanso do silêncio e trevas,
Como débil vagido, escutarias
Queixosa voz, que repetia em sonhos:
“Veste, Coema, as formas da neblina,
Ou vem nos raios trêmulos da lua
Cantar, viver e suspirar comigo.”
______

Reina o silêncio, sentam-se na arena,


Jurucei, Gurupema e os mais com eles.
Amiga recepção, — ali não viras
Nem pompa oriental, nem galas ricas,
Nem armados salões, nem corte egrégia,
Nem régios paços, nem caçoilas fundas,
Onde a cheirosa goma se derrete.
Era tudo singelo, simples tudo,
Na carência do ornato — o grande, o belo,
Na própria singeleza a majestade.
Era a terra o palácio, as nuvens teto,
Colunatas os troncos gigantescos,
Balcões os montes, pavimentos a relva,
Candelabros a lua, o sol e os astros.

Lá estão na branca areia descansados.


Como festiva taça num banquete,
O cachimbo de paz correndo em roda,
De fumo adelgaçado cobre os ares.
Almejam, sim, ouvir o mensageiro,
E mudos são contudo: não dissera,
Quem quer que os visse ali tão descuidosos,
Que ardor inquieto e fundo os ansiava.

O forte Gurupema ao fim começa


Após côngruo silêncio, em voz pausada:
“Saúde ao núncio do timbira!” Disse.
Autores brasileiros  221

Tornou-lhe Jurucei: “Paz aos Gamelas,


Renome e glória ao chefe seu preclaro!”
— A que vens pois? Nós te escutamos: fala.”
“Todos vós, que me ouvis, vistes boiantes,
À mercê da corrente, o arco e as setas
Feitas pedaços, por mim mesmo inúteis.

E de t’o ver folguei; mas quero eu mesmo


Ouvir dos lábios teus quanto imagino.
Acata-me, Itajuba, e de medroso
Tenta poupar aos seus tristeza e luto?
A flor das tabas suas talvez manda
Trazer-me o corpo e as armas do gamela,
Vencido, em mal, no desleal combate!
Pois seja, que talvez não queria em sangue;
E do justo furor quebrando as setas...
Mas dizei-o tu primeiro... Nada temas;
É sagrado entre nós guerreiro inerme,
E mais sagrado o mensageiro estranho.”

Treme de pasmo e cólera o timbira,


Ao ouvir tal discurso. — Mais surpreso
Não fica o pescador, que mariscando
Vai na maré vazante, quando avista
Envolto em lodo um tubarão na praia,
Que reputa sem vida; passa rente,
E co’as malhas da rede acaso o açoita
E a desleixo: — feroz o monstro acorda,
E escancarando as fauces mostra nelas
Em sete filas alinhada a morte!
Tal ficou Jurucei, — não de receio,
Mas de surpesa atônito; — o contrário,
Que de o ver merencório não se agasta,
A que proponha o seu encargo o anima.

“Não ignavo temor a voz me embarga;


Emudeço de ver quão mal conheces
222  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Do filho de Jaguar os altos brios!


Esta a mensagem que por mim vos manda:
— Três grandes tabas, onde heróis pululam,
Tantos e mais que vós, tanto e mais bravos,
Caídas a seus pés a voz lhe escutam.
Não quer dos vossos derramar mais sangue:
Tigre cevado em carnes palpitantes,
Rejeita a fácil presa; nem o tenta
De perjuros haver troféus sem glória.
Enquanto pois a maça não sopesa,
Enquanto no carcaz dormem-lhe as setas
Imóveis — atendei! Cortai no bosque
Troncos robustos e frondosas palmas,
E novas tabas construí no campo,
Onde o corpo caiu do rei das selvas,
Onde empastado inda enrubesce a terra
Sangue daquele herói que vos infama!
Aquela briga enfim de dois, tamanhos
Sinalai; porque estranho caminheiro
Amigas vendo e juntas nossas tabas,
E a fé que usais guardar, sabendo, exclamem:
Vejo um povo de heróis, e um grande chefe!”

Enquanto escuta o mensageiro estranho,


Gurupema, talvez sem que o sentisse,
Vai pouco e pouco erguendo o corpo inteiro.
A baça cor do rosto é sempre a mesma,
O mesmo aspecto, — a válida postura
A quem de longe o vê, somente indica
Vigor descomunal, e a gravidade
Que os próprios índios por incrível notam.
Era uma estátua, exceto só nos olhos,
Que por entre as em vão caídas pálpebras
Clarão funéreo derramava em torno.

“Quero ver que valor mostra nas armas,


(Diz ao timbira, que a resposta aguarda)
Autores brasileiros  223

Tu que arrogante, em frases descorteses,


Guerra declaras, quando paz ofereces.
Quebraste o arco teu quando chegaste,
O meu te ofereço! O quebrador dos arcos
Nos dons por certo liberal se mostra,
Quando o seu arco oferece: julga e pasma!”

E o arco empunha! Outro não foi com ele!


Artífice de nome em seus lavores
Mais de um ano gastara em fabricá-las
As pontas levemente recurvadas
Cabeçadas de bicéfala serpente
Figuravam, — iguais no peso e forma
Melhor que nenhum outro equilibrado
Lavrados os desenhos com tal arte,
Que sem tirar-lhe a força, mais flexível
Mais pesados o tornavam com mais graça.

Do pejado carcaz tira uma seta,


Na corda a ajeita, — o arco entesa e curva,
Atira, — soa a corda, a frecha voa
Com silvos de serpente. Sobre a copa
Duma árvore frondosa descansava
Há pouco um cenembi, — frechado agora
Despenha-se no rio, sopra iroso,
A cortante serrilha embora eriça,
Co’a dura cauda embora açoita as águas;
A corrente o conduz, e em breve trato
O hastil da frecha sobrenada a prumo.

Pudera Jurucei, alcançado o braço,


Poupar ação tão baixa àqueles bosquejos,
Onde os guerreiros de Itajuba imperam.
Imóvel, mudo contemplou no rio
De chofre o cenembi cair frechado,
Lutar co’a morte, ensanguentado as águas,
Desparecer, — a voz por fim levanta.
224  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

“Ó rei das selvas, Gurupema, escuta:


Tu, que medroso em face d’Itajuba
Não ousaras tocar o pó que o vento
Nas folhas dos seus bosques deposita;
Senhor das selvas, que de longe o insultas,
Porque me vês aqui sozinho e fraco,
Fraco e sem armas, onde armado imperas;
Senhor das selvas (que antes frecha acesa
Sobre os tetos houvesses arrojado,
Onde as mulheres tens e os filhos caros)
Nunca miraste em alvo mais funesto,
Nem tiro mais fatal vibraste nunca,
Com lágrimas de sangue hás de chorá-lo,
Maldizendo o lugar, o ensejo, o dia,
O braço, a força, o ânimo, o conselho
Do delito infeliz que vai perder-te!
Eu, sozinho entre os teus que me rodeiam,
Sem armas, entre as armas que descubro,
Sem medo, entre os medrosos que me cercam,
Em tanta solidão seguro e ousado,
Rosto a rosto contigo, e no teu campo,
Digo-te, ó Gurupema, ó rei das selvas,
Que és vil, qu’es fraco!”
Sibilante frecha
Rompe da turbamulta e crava o braço
Do ousado Jurucei, qu’inda falava.

“É seguro entre vós guerreiro inerme,


E mais seguro o mensageiro estranho!”
Disse com riso mofador nos lábios.
“Aceito o arco, o chefe, e a treda frecha,
Que vos hei de tornar, ultriz da ofensa
Infame, que Aimorés nunca sonharam.
Ide, correi, quem vos impede a marcha?
Vingai esta corrente, não mui longe
Os Timbiras estão! — Voltai da empresa
Com este feito heroico rematado;
Autores brasileiros  225

Fugi, se vos apraz; fugi, cobardes!


Vida por gota pagareis meu sangue;
Por onde quer que fordes de fugida,
Vai o fero Itajuba perseguir-vos
Por água ou terra, ou campos, ou florestas;
Tremei!...”

E como o raio em noite escura


Cegou, despareceu! De timorato
Procura Gurupema o autor do crime,
E autor lhe não descobre; inquire, embalde.
Ninguém foi, ninguém sabe, e todos viram.

Do episódio de Coema é notável logo o começo:

Flor de beleza, luz de amor, Coema,


Murmurava o cantor, onde te foste,
Tão doce e bela, quando o sol raiava?

Coema, quanto amor que nos deixaste?


Eras tão meiga, teu sorrir tão brando,
Tão macios teus olhos! Teus acentos
Cantar perene, tua voz gorjeios,
Tuas palavras mel! O romper d’alva,
Se encantos punha a par de teus encantos,
Tentava embalde pleitear contigo!
Não tinha a ema porte mais soberbo,
Nem com mais graça recurvava o colo!
Coema, luz de amor, onde te foste?

Amava-te o melhor, o mais guerreiro


Dentre nós; elegeu-te companheira,
A ti somente, que só tu achavas
Sorriso e graça na presença dele.
Flor, que nasceste no musgoso cedro,
Cobravas páreas de abundante seiva,
226  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Tinha abrigo e proteção das ramas...


Que vendaval te despegou do tronco,
E ao longe em pó te esperdiçou no vale?

Este episódio, que o poeta introduz naturalmente como um saudoso


canto de amante, e em que nos pinta Coema arrebatada com violência e
traiçoeiramente ao próprio Itajuba pelo tupinambá Orapacém, que abu-
sa da hospitalidade que lhe é conferida, e morta pelo roubador na sua
fuga, é de uma grande beleza, quer se atenda à força do patético, quer ao
primor do colorido, quer à suavidade dos versos. O sentimento o mais
terno e delicado, as imagens as mais graciosas, os tropos os mais felizes
e a harmonia métrica a mais perfeita, tudo contribui para torná-lo como
um suave perfume de poesia, exalado sobre o túmulo da formosura ex-
tinta em flor. Onde se encontram versos mais cheios de expressão, novi-
dade e graça, do que os seguintes:

Flor de beleza, luz de amor, Coema,


Murmurava o cantor, onde te foste,
Tão doce e bela, quando o sol raiava?

Coema, quanto amor que nos deixaste?


Eras tão meiga, teu sorrir tão brando,
Tão macios teus olhos! Teus acentos
Cantar perene, tua voz gorjeios,
Tuas palavras mel! O romper d’alva,
Se encantos punha a par de teus encantos,
Tentava embalde pleitear contigo!

Tudo é belo, patético e expressivo neste episódio em que se vê Itajuba


acordando em sobressalto aos gritos da roubada, correndo com os seus
atrás dos ingratos hóspedes que lhe levam a amada já embarcados nas
igaras ou cascos, calculando a enorme distância para disparar a flecha
contra o roubador, partindo o arco em dois pela extrema força com que
o puxa, e o bárbaro tapuia arrojando às ondas por negaça o corpo da
violada vítima; mas nada tão admirável como a belíssima poesia contida
nestes últimos versos:
Autores brasileiros  227

Suspirada Coema, em paz descansa


No seu florido e fúnebre jazigo;
Mas quando a noite dominar no espaço,
Quando a lua coar úmidos raios
Por entre as densas, buliçosas ramas,
Da cândida neblina veste as formas,
E vem no bosque suspirar co’a brisa;
Ao guerreiro que dorme inspira sonhos,
E à virgem, que adormece, amor inspira.

Os mais suaves acentos da música, ouvidos ao longe no silêncio da noi-


te, não vencem a mágica doçura desta aérea poesia, tão delicada no con-
ceito como na forma, e tão acomodada às crenças dos indígenas na sua
ignorância quase infantil! Versos tão repassados de sentimentos ternos, e
tão embelezados de poéticas imagens, só Gonçalves Dias os sabia fazer.
Da mensagem de Jurucei só reproduzirei a última parte do segundo
discurso dele, mui notável pelo incidente que o perturba:

Digo-te, ó Gurupema, ó rei das selvas,


Que és vil, qu’es fraco!”
Sibilante frecha
Rompe da turbamulta e crava o braço
Do ousado Jurucei, qu’inda falava.

“É seguro entre vós guerreiro inerme,


E mais seguro o mensageiro estranho!”
Disse com riso mofador nos lábios.
“Aceito o arco, o chefe, e a treda frecha,
Que vos hei de tornar, ultriz da ofensa
Infame, que Aimorés nunca sonharam.
Ide, correi, quem vos impede a marcha?
Vingai esta corrente, não mui longe
Os Timbiras estão! — Voltai da empresa
Com este feito heroico rematado;
Fugi, se vos apraz; fugi, cobardes!
Vida por gota pagareis meu sangue;
Por onde quer que fordes de fugida,
228  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Vai o fero Itajuba perseguir-vos


Por água ou terra, ou campos, ou florestas;
Tremei!...”

E como o raio em noite escura


Cegou, despareceu! De timorato
Procura Gurupema o autor do crime,
E autor lhe não descobre; inquire, embalde.
Ninguém foi, ninguém sabe, e todos viram.

Toda a passagem, que finaliza pelo trecho reproduzido, é um belo


quadro no gosto homérico, já pelos facundos discursos que contém, tão
próprios dos que os proferem, já pelo extraordinário e poético do desfe-
cho, acabando em completa declaração de guerra pela violação da imu-
nidade do embaixador. Para quem conhece os costumes e o caráter dos
selvagens, tudo isso é natural e apropriado, tanto a seta perdida que fere
o ousado mensageiro, como a eloquência provocadora do seu discurso,
que só respira vingança:

“Aceito o arco, o chefe, e a treda frecha,


Que vos hei de tornar, ultriz da ofensa
Infame, que Aimorés nunca sonharam.
[...]
Vida por gota pagareis meu sangue;
Por onde quer que fordes de fugida,
Vai o fero Itajuba perseguir-vos
Por água ou terra, ou campos, ou florestas;
Tremei!...”

Não menos natural e belo é o remate de uma tal cena, já pelo súbito
desaparecimento de Jurucei, já pelo receio do castigo do atentado que
mostra Gurupema, já porque nenhum dos presentes denuncia o autor
crime: “... E como raio em noite escura / Cegou, despareceu! De timo-
rato / Procura Gurupema o autor do crime / E autor lhe não descobre;
inquire... em balde! / Ninguém foi, ninguém sabe, e todos viram.” Toda
esta soberba pintura em suma é feita com mão de mestre pelo poeta, e
nada deixa a desejar em seus menores traços e toques.
Autores brasileiros  229

Quem tem lição de Homero, julga, ao percorrer com atenção esta


passagem, estar assistindo, mutatis mutandis, a uma das cenas dos he-
róis da Ilíada. Os frequentes discursos cheios de jactância e feros, os
atentados imprevistos, filhos de paixões indomáveis, o medo com que
fugiam diante dos mais fortes, e de que se não mostra isento o próprio
Heitor, são cousas que se notam a cada passo nesses heróis, que pouco
mais adiantados em civilização moral estavam do que os nossos selva-
gens guiados pelos impulsos da natureza, não modificada pela cultura.
Depois de haver apreciado este incompleto e aliás belo poema do
nosso melhor poeta em quase todos os gêneros, passarei nos seguin-
tes discursos a analisar os nossos mais notáveis prosadores, terminando
aqui o volume pelos motivos apontados na introdução.
ANTÔNIO GONÇALVES DIAS – TEATRO E PROSA*

Antônio Gonçalves Dias;


seu drama Boabdil; sua obra Brasil e Oceania.

LIÇÃO LXXXV

Não os daria, Senhores, uma ideia completa do extraordinário talen-


to do nosso exímio poeta Antônio Gonçalves Dias, apreciando-o uni-
camente nos gêneros lírico e épico, ou em suas poesias impressas, sem
avaliá-lo também no gênero dramático, como vou hoje fazer, recorrendo
às suas obras inéditas, cuja leitura me foi, para semelhante fim, facultada
pelo meu amigo o Sr. Dr. Antônio Henriques Leal, atual depositário das
que não se perderam.
Dos dramas do poeta escolhi para objeto de minha análise um dos
últimos que ele compôs, Boabdil, e por conseguinte em idade já mais
proveta. É escrito em prosa, mas pertence por seu objeto à poesia, por-
que é uma verdadeira tragédia em cinco atos, em que se guarda a regra
das três unidades, contra o que se observa em muitos dramas modernos
dos mais gabados, a que aliás não cede em mérito.
Assim, a transição que tenho de fazer da poesia para a prosa não
podia ser mais natural, preferindo eu apenas, para comodidade vossa e
do leitor, com leve alteração cronológica, as obras em prosa do poeta às
de outros prosadores seus contemporâneos que começaram a florescer
pouco antes dele. A minha justificação está no mesmo desejo que mos-
trais de ter um juízo completo das melhores obras do poeta, e sobretudo
na ocasião que hoje me proporciona de apreciar as suas obras inéditas.
Eis o argumento coligido da leitura do drama:
Boabdil, último rei de Granada, sobre quem pesava a profecia, que
sob o seu infeliz reinado seria destruído o poder dos muçulmanos na

* V. 5 (1873), p. 1-56.
Autores brasileiros  231

Espanha, enamora-se de Zoraima, que amava a Ibraim, chefe dos Aben-


cerragens, e era dele amada e pretendida para esposa. O pai porém de
Zoraima, cego pela ambição, apunhala covardemente a Ibraim, que en-
contra aos pés da filha, e a força a entrar no serralho de Alhambra, dan-
do-a contra a vontade dela por esposa a Boabdil, ou ao sultão. Ibraim
não morre das feridas; mas, mal se vê restabelecido delas, não podendo
suportar a perda do objeto amado, sai de Granada, mudado de trajes e
nome, e com o de Aben-Hamet vai como um simples aventureiro com-
bater os cristãos que faziam a guerra aos muçulmanos. Sob este suposto
nome tem a fortuna de salvar em uma batalha a vida a Boabdil, que o
não conhece, e dando-lhe toda a sua confiança em troco de um tal bene-
fício, volta com ele para Granada. De volta à capital, não podendo resis-
tir ao desejo de ver ainda uma vez a Zoraima, dirige-lhe o antigo amante
um desses ramilhetes que no Oriente servem de cartas amorosas, pedin-
do-lhe uma entrevista, que lhe é concedida no próprio serralho. Mas o
infiel portador do ramilhete o leva antes a Ayxa, mãe de Boabdil, mulher
ambiciosa, que, sem se opor à entrevista dos dois amantes, serve-se pelo
contrário desse fio de Ariadne, para acompanhá-los em todos os seus
passos, tentar dominar Zoraima para por ela dominar o filho, e, não o
conseguindo, perdê-la, procurando assim arrancar o filho a um amor
funesto que o fazia abandonar os mais caros interesses do seu reino,
de todos os lados invadido pelos cristãos. Boabdil porém, logo que co-
nhece a infidelidade de Zoraima, sem que saiba quem é o seu cúmplice,
senão que é um Abencerragem, porque Ibraim havia tomado as insíg-
nias da sua tribo quando entrou no serralho, ardendo unicamente em
desejos de vingança, manda assassinar todos os Abencerragens, atraídos
— desarmados — ao pátio dos leões, sob o pretexto de assistir a um
conselho, sacrificando assim à sua atroz sede de sangue do rival os me-
lhores defensores de sua vacilante coroa. Descobre-se então Ibraim a si
próprio para morrer com seus irmãos, que eram vitimados pelos Zegris
e Gomeles, seus adversários, e é por Boabdil apunhalado com Zoraima.
Mal terminava a terrível execução, escalam os espanhóis os muros de
Granada, e cai Boabdil precipitado de seu trono, cumprindo-se a fatal
profecia a seu respeito.
É Boabdil um belo drama histórico, de enredo intrincado no gos-
to moderno, situações verdadeiramente dramáticas, todas nascidas do
assunto, e caracteres muito bem sustentados, com especialidade os de
232  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Boabdil, Zoraima e Ayxa, que são soberbos e honram o pincel do poeta.


A ação é complexa, pois não termina com a morte dos dois amantes,
mas verdadeiramente com a queda do trono de Boabdil, que sacrifica
a sua coroa a uma louca paixão. O móvel principal é não só a paixão
levada a seu auge, como na maior parte dos dramas modernos, mas a
paixão e a fatalidade, como a tragédia antiga que tão profunda emoção
nos causa. Assim, apesar da horrível carnificina ordenada nos Aben-
cerragens, não podemos deixar de lamentar esse rei mancebo, de senti-
mentos tão nobres, transviado por um amor levado à idolatria que o faz
esquecer quanto o cerca, e precipitado no abismo do desespero, quando
se vê traído pelo objeto de sua idolatria, porque sobre ele pesa a mão do
destino que o impele fatalmente a uma perda inevitável. Aben-Hamet,
ou Ibraim, caráter singular, não menos entusiasta em seu amor que o rei
Boabdil, é pelas aventuras romanescas e grande coração, o tipo do herói
árabe dos tempos cavalheirescos.
A prosa em que se acha escrito o drama é mui expressiva e bela, mas
dobrado seria o valor deste, se o poeta a reduzisse a belos versos, como
sabia fazer, porque então gozaria Boabdil de todos os foros de uma tra-
gédia de primeira ordem.
Depois de vos haver dado esta ideia geral do drama, passarei a ler as
cenas 5ª e 6ª do 4º ato e todo o 5º ato, para que possais ajuizar do talento
do poeta em tal gênero de composição.

Cena 5a
Os mesmos (Ayxa e Boabdil) e Zoraima

Zoraima:
Senhor!...

Boabdil, asperamente:
Que viestes aqui fazer?

Zoraima:
Um recado que recebi de vossa parte...

Boabdil:
Mudei de vontade!
Autores brasileiros  233

Zoraima:
Retiro-me, Senhor (vai para sair):

Boabdil:
Zoraima!... (ela volta-se). Perdoai-me.

Zoraima:
O que, Senhor?

Boabdil:
Não era isso o que vos queria dizer! Não sei o que digo. Escutai-me: não é o
rei, é um amigo quem vós fala, respondei-me singelamente.

Zoraima:
Eu vos escuto.

Boabdil:
Depois que Alá e vosso pai me deram possuir-vos, jurei a mim mesmo em-
pregar todos os momentos da minha vida em cumprir os vossos desejos,
em fazer-vos se não feliz, ao menos tão afortunada quanto uma mulher o
pudesse desejar.

Zoraima:
Por que me dizeis isso, Senhor?

Boabdil:
Por que?!... Porque talvez não tenha feito quanto me tinha prometido,
quanto vós mesma poderíeis ter esperado de mim. Por isso vos pergunto:
tendes encontrado no meu palácio o agasalho que esperavas? Faltei jamais
com as atenções que devo ao lugar que junto a mim ocupais, com os desve-
los de um homem extremoso com a solicitude que merece o vosso amor?

Zoraima:
Sempre vos houvestes como um rei.

Ayxa, com voz surda:


Como um nazareno!
234  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Boabdil, depois de ter fitado Ayxa por alguns momentos:


Como um nazareno poderias dizer, Zoraima: porque foi entre eles que vi
praticado aquele trato gentil e honesto galanteio, que já o vosso amor me
havia feito adivinhar. Não era muito tratar-vos como um rei, bem o vedes.
Contente de vos amar, de vos possuir, feliz e venturoso de vos ter a meu
lado, de vos ouvir sempre, fácil me seria esquecer-vos, por cuidar somente
da minha ventura, de julgar-vos feliz e satisfeita, só porque eu nada mais
desejava!

Zoraima:
Acaso me queixei eu?

Boadbil:
Não vos queixastes nunca: digo isto por dizer; sei que sois boa e generosa,
mas já vo-lo disse: não é o rei, é um amigo quem vos fala, respondei-lhe
francamente. Poderia alguma vez na nossa vida íntima, sem querer, sem
pensar, somente porque algum cuidado me preocupasse a fantasia, porque
algum pensamento me estivesse dilacerando o coração, ter-vos dito algu-
ma palavra... talvez o não saibais?!... Há palavras que se engasgam na alma
como a ferrugem na lâmina de uma espada: crescem, tomam corpo, avul-
tam com o tempo, não se apagam, não se esquecem nunca. Acaso vos disse
eu algumas destas palavras — poderia ser — lembrai-vos!

Zoraima:
Não: mas permiti...

Boabdil:
Ainda uma pergunta: tendes confiança no meu amor?

Zoraima:
Senhor!...

Boabdil:
Bem vejo, duvidais!...

Zoraima:
Nunca me deixastes dúvidar.
Autores brasileiros  235

Boabdil:
Bem. Assim que, Zoraima, se vos chegastes a persuadir de que vos era im-
possível a felicidade passando a vida a meu lado... Deixai-me concluir — se
sentísseis brotar, enraizar-se em vossa alma um sentimento irresistível por
alguém ou por alguma coisa, teríeis confiança em mim, não é verdade? Bem
sei que os afetos não se governam: não há contra eles vontade, nem esforços
que valham. Nós outros os muçulmanos muitas vezes nos desquitamos das
nossas esposas; o que outros fazem por mero capricho, por que eu não o
faria por amor? Sou bom, procuro ao menos ser bom para com todos, — e
a vós, Zoraima, ainda que muito me custasse, ainda que me fosse de grande
sacrifício, o que me pediríeis que eu houvesse de vos negar?

Zoraima:
Perdoai-me, Senhor, vejo que me tratais com a bondade que sempre usastes
para comigo, mas há nas vossas palavras alguma coisa que não compreen-
do. Se vos dignásseis de explicar-vos melhor!...

Boabdil:
Digo-vos que se assim vos houvestes portado, seria esse comportamento
de uma alma grande e generosa, que não sabe trair a confiança de ninguém
nem postergar os seus mais sagrados deveres!

Zoraima:
Rei, sou vossa escrava, por que insultais-me, quando tão facilmente me po-
deis fazer morrer?

Boabdil:
E ai de vós, Zoraima, ai de vós se vil e indignadamente zombastes da
minha credulidade. Ai de vós! porque eu mesmo com estas mãos, que só
me pesa de as não poder despedaçar, porque tantas vezes vos apertaram
contra o meu seio, convertido em ódio o amor grande que outrora senti
por vós aqui neste momento, com a primeira arma que no meu furor
encontrasse...
(Arranca o punhal).

Zoraima, com terror:


Boabdil!
236  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Boabdil, deixa cair a arma; para Ayxa:


Oh! Ela é inocente! Vedes que ela é inocente! Em vão mil sentimentos con-
trários se debatem furiosos nesta alma, que os ciúmes, a cólera, a vingança
tão cruamente despedaçam. Ainda retinem em meus ouvidos as vossas pa-
lavras, mas quando todo o mundo se levantasse para me testar a sua incons-
tância, a sua infidelidade, um poder oculto que tão alto a defende no meu
coração eternamente me estaria chamando aqui dentro com voz que não
posso deixar de escutar: ela é inocente.

Ayxa:
Lembra-te do meu juramento.

Boabdil:
Pobre Zoraima! Sabes de que eles te acusam? De mil coisas monstruosas,
nem eu mesmo sei dizer-te quais sejam! Defende-te! Dize que nada vistes,
que nada sabes, acreditarei o que disseres. Não, nada digas! Como podia
por tanto tempo viver tranquilo, se tu me fosses falsa? Como tanto prazer
sentia de achar-me a sós contigo, se me traías ? Nada digas: em tempos mais
felizes por ventura, que me agradecerás de haver eu sozinho acreditado na
tua inocência nesta dura provação por que passamos agora.

Ayxa:
O eunuco recebeu a grinalda. Muley Hassam os viu!

Boabdil:
Pois vós, Muley Hassan e Eunuco, todos!... (mudando de tom). Oh! minha
mãe, se soubésseis como eu vivia tranquilo antes que me viésseis despertar
do meu letargo! Se soubésseis como venturosos me corriam todos os ins-
tantes da vida! Não me viríeis roubar este alegre encanto da alma, em que
eu vivia tão ditoso e há tanto tempo! Embora fosse falsa, eu era feliz, que
me importava o resto?

Ayxa:
Rei fraco!

Boabdil:
Chamai-me antes cruel, Senhora: porque, se não me puderdes convencer a
ponto que eu não possa duvidar da minha desonra, lembrar-me-ei que sou
Autores brasileiros  237

rei para punir-vos, como vos esquecestes que éreis minha mãe para me fa-
zer sofrer tantos tormentos. Destes exemplos, e por motivos menos ponde-
rosos, estão cheias as nossas histórias. Fostes vós quem primeiro solicitastes
a nossa justiça — ainda bem que não tereis de queixar-vos se a torre que
minais com tanto custo desabar enfim sobre a vossa cabeça!

Cena 6a
Os mesmos e um pajem

O Pajem:
Muley Hassan!

Boadbil:
Que entre.

Ayxa:
Enfim!

(O Pajem sai.)

Boabdil:
Vou saber a verdade!

Zoraima:
Rei, fortes e poderosos são os meu inimigos e eu sou fraca e só...

Boabdil:
O meu amor te defende

Zoraima:
Embora! Quando eles na vossa presença levantarem a voz para me acu-
sarem, não serei eu quem lhes responda: não quero que diante de mim se
acovardem nem tomar-lhes o campo para as suas arguições.

Ayxa:
Ficai, rainha!
238  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Zoraima:
Vi-os muitas vezes fadigados armando laços a meus pés, dispondo-os cau-
telosamente para que neles me embaraçasse. Poderia frustrar as suas ma-
quinações, fazendo reverter sobre eles os danos de que me ameaçavam. Era
trabalho de mover o braço, ou quando muito de vos dizer uma palavra:
nada fiz. Que me prestava isso? Esta vida minha tão cansada que vos per-
tence, se a não defendeis vós, Senhor, deixai que também eu a não defenda.

Boabdil:
Travo de lágrimas sinto eu nas palavras que me falais: seja-me Alá testemu-
nha de quanto elas me pesam, melhor testemunha ainda de que te não hão
de afligir impunemente. (Zoraima sai).

ATO 5o
Sala do julgamento

Cena 1a
Boabdil, Muley Hassan

Boabdil:
Deste as tuas ordens?

Muley:
Estão dadas, Senhor.

Boabdil:
Os Zegris, os Gomeles já entraram?

Muley:
Estão no pátio dos leões.

Boabdil:
Armados?

Muley:
Estão prontos.
Autores brasileiros  239

Boabdil:
Crês tu que executem cegamente as tuas ordens?

Muley:
Senhor, bem sabem eles que a obediência é o seu primeiro, se não único
dever.

Boabdil:
E não se arrependerão de haverem nesta ocasião obedecido. (Momento de
silêncio.) Que disse ela?

Muley:
A rainha?

Boabdil:
Zoraima — o que disse ela?

Muley:
O mesmo que sempre disse.

Boabdil:
Teima então em asseverar acintemente que o seu cúmplice é esse infeliz
mancebo.

Muley:
Esse mesmo, Senhor, o filho de Mohamed-Abencerrage, morto, segundo é
voz na sua tribo, há já alguns anos.

Boabdil:
Imprudente! Até aos mortos atraiçoa!

Cena 2a
Os mesmos e Ayxa

Ayxa:
Perdoai-me se vos interrompo.
240  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Boabdil a Muley Hassan:


Cumpre as minhas ordens. (Muley sai.)

Ayxa:
Senhor, será acaso verdade o boato que ouço na boca de todos?

Boabdil:
Que boato, Senhora?

Ayxa:
Que, havendo reunido os vossos guerreiros com a promessa de que vos íeis
pôr a sua frente para marchar contra os espanhóis, mandastes repentinamen-
te e sem motivo mais que um capricho inexplicável que se debandassem!

Boabdil:
É certo.

Ayxa:
E será também certo que na mesma ocasião convocastes os Abencerragens
para com eles vos aconselhardes sobre os negócios do estado?

Boabdil:
Acreditai-o: ninguém vo-lo proíbe!

Ayxa:
Rei, não serei eu quem vos acoroçoe a progredir na estrada onde a passos
desenvoltos ides caminhando para a vossa perdição. Não é esta ocasião de
se desperdiçar o tempo com palavras inúteis. O que premeditais fazer, Se-
nhor? Derribar o vosso apoio mais forte, cercear ao trono de Granada os
seu mais seguros defensores? E o motivo qual é? Por que pelo cego amor de
uma mulher, que vos foi traidora, tão irrefletido na escolha das pessoas em
quem vos confiais, como inconsiderado e injusta em punir todos os mem-
bro de uma família pelo crime de um só?...

Boabdil:
Basta: fostes vós quem, solícita pela minha honra, lançastes mão de tudo
para me convencer da minha vergonha; fostes vós quem, com os vossos
Autores brasileiros  241

desvelos pela minha felicidade, não cessáveis de clamar a todo momento


nos meus ouvidos que eu era rei e traído! Acordastes o leão que dormia:
hei-lo agora de crinas irriçadas; tremei, mas não deveis queixar-vos.

Ayxa:
Queixar-me-ei, não porque perdeis o trono que é vosso, mas porque vai
com ele a santa religião de Mafoma, não porque abandonais os vossos vas-
salos à fúria castelhana, mas porque entregais manietados os crentes aos
incrédulos, porque destruís as esperanças deste império árabe, que se havia
de estender pelas Espanha e pelo mundo; porque sois o primeiro a cavar
os alicerces, onde bem cedo se há de erguer o estandarte de Cristo sobre o
turbante do profeta. Se só vos contenta a matança dos Abencerragens nada
vos será mais fácil, mandai abrir as portas de Granada, mostrai-lhe onde
estão os inimigos, e podereis depois subir a uma das mais elevadas torres de
Granada para ver como eles acabam às mãos dos infiéis: O sangue das suas
feridas vos não há de então enferrujar a coroa porque eles morrerão como
guerreiros no campo da batalha.

Boabdil:
Morrerão como traidores: não merecem outra morte.

Ayxa:
Um só homem poderá talvez pôr as mãos no peito à fortuna contrária que
nos ameaça. Rei, sabeis quem seja este homem? E um Abencerragem!

Boabdil:
Morrerá também.

Ayxa:
Longe da corte por muitos anos não pode ter parte no crime de que a sua
tribo acusais. Apareceu entre nós como um milagre da providência e foi
recebido com entusiasmo pelo povo que já tratava de resguardar os seus te-
souros, e as pessoas que tinham mais caras. Rei, confiai o mando dos vossos
exércitos ao Abencerragem Ibraim.

Boabdil, vivamente:
Ibraim! dizeis que se chama Ibraim?
242  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Ayxa:
É esse o seu nome.

Boabdil:
O filho de Mohamed, o Abencerragem?

Ayxa:
Esse é.

Boabdil:
E sabeis que está em Granada: não vos enganaram?

Ayxa:
Eu o vi!

Boabdil:
Oh! Mafoma, eu to agradeço! (Pausa.) Dizeis então?

Ayxa:
Que é o único homem capaz de vos salvar.

Boabdil:
Não trato disso: como foi recebido?

Ayxa:
O povo festeja-o como um amigo que volta de uma longa peregrinação,
querem-no por chefe, aclamam-no e levam-no em triunfo pelas ruas.

Boabdil:
Então vale muito com o povo?

Ayxa:
Muito, mais do que o podeis imaginar.

Boabdil:
Tendes razão: mandai-o chamar.
Autores brasileiros  243

Ayxa:
E haveis de perdoar-lhe, haveis de pô-lo à frente do vosso exército: não é
assim, meu filho? É isto de bom conselho, além de ser um ato de justiça.

Boabdil:
É o homem de quem mais careço nesta ocasião; fazei-o vir a minha pre-
sença já.

Ayxa:
Confio na vossa palavra.

Boabdil:
Nada prometo! (emendando-se.) Não vos posso dizer senão que o hei de
premiar segundo as suas obras.

Ayxa:
Ainda melhor.

Boabdil:
O tempo urge!

Ayxa:
Alá vos abençoe, meu filho.

Cena 4a
Boabdil (só):

Ibraim está vivo! E hei de perdoar-lhe! Hei de pô-lo à frente dos meus
exércitos para que vá combater os meus inimigos e volte depois carregado
de loiros afrontar-me com redobro de insolência! E eu de mãos atadas
para o galardão como para o castigo hei de agradecer-lhe a conservação
de uma coroa já tingida em tanto sangue. E com a fronte baixa. Hei de
ouvir a narração dos seus feitos, julgando-me vil na minha consciência!
Não! Pereça embora este trono malfadado, onde jamais me tem corrido
uma hora de ventura; pereça o meu nome e glória e acabe a minha gera-
ção comigo; mas não se dirá nunca que deixei vivo o miserável que me
injuriou cobardemente, nem que por amor de um prêmio vil, de uma
244  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

coroa mal sofrida, consenti em lhe ser agradecido! Hassan! Hassan! Não
houve, Hassan!

Boabdil, Muley, Hassan

Muley:
Aqui me tendes, Senhor.

Boabdil:
Faz-se conduzir Zoraima para o pátio dos leões; já, quanto antes.

Muley:
Senhor, pois também ela?

Boabdil:
Quero que assista à execução.

Muley:
Meditai, Senhor...

Boabdil:
Não ouviste ainda? Quero-a no pátio dos leões.

Cena 5a
Os mesmos e um Abencerragem

Boabdil a Muley:
O mais saberás depois. (Muley sai.)

Abencerragem:
Senhor, perdoai-me se me demorei: os espanhóis começam a atacar-nos.

Boabdil:
És o primeiro que chegas: não tens que pedir desculpas.

Abencerragem:
Tanto pior, Senhor, que, se não empregardes toda a diligência, com mágoa
o digo, Granada cairá hoje mesmo em poder dos infiéis.
Autores brasileiros  245

Boabdil:
Já deliberei tudo.

Abencerragem:
E o que determinais?

Boabdil:
Podes entrar.

Abencerragem:
Pois quereis sempre reunir conselho?

Boabdil:
Entra. (O Abencerragem sai.)

Cena 6a
Boabdil, 2º Abencerragem

2º Abencerragem:
Começou o ataque da parte dos espanhóis; alguns dos nossos bastiões já
caíram em seu poder.

Boabdil:
Podes entrar. (O Abencerragem sai.)

Cena 7a
Boabdil, 3º Abencerragem

3º Abencerragem:
Senhor, Senhor, valei-nos!

Boabdil:
Entra. (Ouve-se um grito; o Abencerragem que sai para entrar recua.)

3º Abencerragem:
Não ouvistes?
246  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Boabdil:
O quê?

3º Abencerragem:
Um grito de arrepiar as carnes, um rouquejar de quem se debate entre as
vascas da morte.

Boabdil:
Vê o que é. (O 3º Abencerragem sai. Entram muitos outros: Boabdil com a
mão lhes indica a porta por onde devem entrar.)

Cena 8a
Boabdil e Aben-Hamet

Boabdil:
Tu, Aben-Hamet! Que vieste aqui fazer?

Aben-Hamet:
Senhor, não me quereis falar?

Boabdil:
Em verdade, és a pessoa que eu menos desejava ver neste lugar e neste mo-
mento.

Aben-Hamet:
Se a minha presença vos é agora importuna...

Boabdil:
Nunca! Nunca. Se te não desejava agora era só para que não fosses testemu-
nha de um espetáculo bem triste.

Aben-Hamet:
Para vós, Senhor?

Boabdil:
Para todos.
Autores brasileiros  247

Aben-Hamet:
E não poderei saber qual a causa que tanto vos aflige?

Boabdil:
Podes, sim; mas antes de tudo: quando outro dia rondavas os jardins do
serralho, não viste nenhum vulto desconhecido? Não descobriste nenhum
indício que pudesse confirmar as minhas suspeitas?

Aben-Hamet:
Por que essa pergunta, Senhor?

Boabdil:
Não duvido da tua diligência, não te crimino: és leal, és meu amigo. Mas
sabe: desde aquela noite adquiri a fatal certeza de que Zoraima...

Aben-Hamet:
Acabai!...

Boabdil:
Basta: bem me entendes.

Aben-Hamet:
E o que pretendes fazer?

Boabdil:
Vingar-me!

Aben-Hamet:
De quem? Conheceis acaso o criminoso?

Boabdil:
Pouco importa! Quando em uma casa se comete um grande delito, arra-
sam-se-lhe as paredes com o solo, e no lugar que ela deixou vazio planta-
-se cânhamo e linho para que de todo se apague a lembrança do atentado
cometido.
248  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Aben-Hamet:
E se o criminoso viesse oferecer a vossa vingança, pedindo-vos que vos
compadecêsseis daquela pobre e desgraçada criatura e que sobre ele somen-
te caísse todo o peso da vossa cólera?

Boabdil:
Não, nunca!

Aben-Hamet:
Ponderai, Senhor, quão grande é a fraqueza de uma mulher, quão facilmen-
te se pode deixar arrastar pelos protestos talvez lisonjeiros, talvez fingidos
de uma língua mentirosa. Facilmente seduzidas pela lisonja, mal podendo
resistir à paixão que se lhe revela entre lágrimas... a natureza as criou fracas,
mas são os homens que as fazem traidoras.

Boabdil:
Fraqueza de víbora que assassina mordendo! Mede o crime não pelo que é
em si, mas pela qualidade da pessoa ofendida, e verás depois se sou rigoroso
em demasia, ou se basta o sangue dos Abencerragems para lavar a nódoa
que a sua infâmia lançou sobre o meu nome!

Aben-Hamet:
Os Abencerragems!

Boabdil:
Morrerão todos.

Aben-Hamet:
E Alhamur! Alhamur! Também o condenastes?

Boabdil:
Já morreu!

Aben-Hamet:
Rei, pois que a tal ponto vos cega a paixão que sacrificais sem motivo a
flor dos vossos cavalheiros, pois que punis milhares de inocentes por um
só criminoso, sem atenção ao bem do vosso estado, à dedicação da vossa
Autores brasileiros  249

nobreza, que melhor acabaria num dia de batalha morrendo por amor do
vosso trono, pois que basta pertencer à mais nobre, à mais generosa, à mais
guerreira tribo do Granada para incorrer no vosso desagrado, para merecer
a morte por mão de um carrasco. Aqui me tendes: sou eu... (Emendando-
-se.) Sou também Abencerragem!

Boabdil:
Pesa-me de os não poder odiar sem exceção de um só!

Aben-Hamet:
Digo-vos que sou Abencerragem! A exceção que fazeis de mim quando
mandais trucidar os meus irmãos, os meus amigos, os meus companheiros
de armas é uma vergonha, um insulto; ponderai bem que é um insulto: eu
o rejeito. Mandai que vos tragam o cepo do padecente, o cutelo do algoz,
os aprestos desta horrível carnificina, mandai que me decepem a cabeça na
vossa presença e não cubrais de infâmia o homem de quem, ao menos o
dissestes, de quem já fostes amigo.

Boabdil:
Tardias são as tuas palavras, Aben-Hamet. A um deles não concederia eu
a vida nem pela tua amizade nem por todos os tesouros do Califa. Quanto
ao mais, ainda que eu agora o quisesse, movido pelos teus rogos, já não é
tempo de perdoar-lhe.

Aben-Hamet:
É sempre tempo para a clemência, Senhor.

Boabdil:
Não, já não é tempo. Vê tu mesmo. (Abre-se o reposteiro do fundo e vê-se
entre sombras os Zebrais e os Gomeles: Zoraima entre os soldados e os
cadáveres dos Abencerragems.)

Aben-Hamet:
Horror! Horror!
250  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Cena 9a
Os mesmos e Zoraima, lançando-se ao meio da cena

Zoraima:
Foge, Ibraim, foge. Não são homens os que vês, são feras carniceiras, que
respiram sôfregas o odor do sangue: a morte é para eles um banquete e as
agonias do passamento um concerto que os embriaga. Foge, eu te suplico:
foge, se ainda é tempo.

Boabdil:
Tu chamas-te Ibraim?

Aben-Hamet:
Ver-te assim entregue nas mãos dos teus algozes, e não ter forças, não ter
posses para te arrancar do abismo onde eu te precipitei com a minha im-
prudência! Oh! Zoraima, somente agora é que posso ler na sorte que te
espera quão grande foi o meu delito! Mas por grande e horrendo que seja,
basta, é de sobras este momento para apagar a sua lembrança na memória
do meu mais encarniçado inimigo!

Boabdil:
Tu és Ibraim?

Aben-Hamet:
Eu sou: se a mais tempo vo-lo não confessei não foi por disputar esta vida
que de bom grado vos cedo: mas já com ela a sorte de outra criatura!...

Boabdil:
Também és Abencerragem: agora o creio!

Aben-Hamet:
Rei, dai um só momento àquele que para todo o sempre vai comparecer
perante a justiça do eterno. Não vos peço mercê...

Boadbil:
Ibraim! Aben-Hamet! O nome do homem que me era mais caro, o nome
da criatura que mais aborrecia; um traidor, um amigo, e são ambos uma só
Autores brasileiros  251

criatura: era isto. E que outra coisa poderia ser senão um monstro para re-
sumir em si as mais violentas, as mais disparatadas afeições da minha alma?

Zoraima:
E eu sou que te denuncio! Quando julgava ter a ira de Deus acumulado
sobre a minha cabeça todas quantas misérias podem sobrevir a uma triste
criatura, por cúmulo de infortúnio sou eu quem te condena à morte! Sou
eu quem te mata! Eu, cuja única consolação nos meus derradeiros instantes
seria saber que ficava em vida guardando a memória daquele nosso amor
da infância, lembras-te? Oh! tão puro! E tão desgraçado também!

Aben-Hamet:
Anjo do céu! Bem vinda me seria a morte que eu recebesse das tuas mãos:
mas a folha da minha vida rompeu-se à primeira gota de sangue Abencer-
ragem, que por meu respeito se derramou! Nobre e desgraçados irmãos!
Como poderia eu viver depois deles e depois de ti, Zoraima? Morrerei, sim,
morrerei, sem queixar-me, e mil vezes bem dito seja Alá, que na sua bon-
dade me permite esta derradeira, esta grande consolação que não mereço:
a de morrer contigo!

Boadbil:
Oh! Quando o homem na vida passa por uma destas terríveis provações
que apraz a Alá mandar aos seu filhos miseráveis como um raio de mal-
dição implacável, descrê da sua justiça e da humanidade e consigo mes-
mo se envergonha de pertencer à indigna espécie que produz tão negros
frutos!

Cena 10a
Os mesmos e Ayxa

Ayxa:
Senhor, os espanhóis penetraram na cidade, já correm pelas ruas, incen-
diam as casas e os templos, os nossos soldados sem chefes; um punhado
apenas pelejam descoroçoados, disputando a subida de Vivarambla que
dá entrada para o castelo. (Boabdil conserva-se pensativo e silencioso.)
Por Deus, Senhor, que silêncio é este? Vosso trono se espedaça como uma
árvore tocada pelo raio; vossos soldados carecem de chefe; um último
252  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

esforço pode ainda salvar-vos, e reunis no palácio os Zegris, os Gomeles,


mandais assassinar os Abencerragens, e vos conservais tranquilo e sosse-
gado como se isto fosse apenas um alevante da plebe! Silêncio. Já que o
terror vos tolhe a falta, tratarei de salvar-vos, mau grado vosso; eu, fraca
mulher e que não sei manejar o alfanje, nem cavalgar um corcel de batalha.
Vem comigo, Ibraim!

Boabdil:
Ibraim! Quem falou em Ibraim?

Ayxa:
Eu! (Ouvem-se descargas.)

Boadbil:
Que ruído é aquele?

Ayxa:
São os espanhóis que atacam o vosso palácio.

Boadbi:
Guardas, guardas! Zegris, Gomeles.

Ayxa:
Enfim, acordastes!

Cena 11ª
Os mesmos e guardas

Boabdil:
Segurai-o!

Ayxa:
A quem?

Boabdil, com força:


Segurai-o!
Autores brasileiros  253

Aben-Hamet:
Rei, deixai-me primeiro correr ao encontro dos vossos inimigos; eu vo-lo
peço de joelhos: vencedor ou vencido fica minha vida ou o meu cadáver
para saciar a vossa vingança.

Ayxa:
Não sabeis que esse é Ibraim, Senhor, que loucura é a vossa?

Boabdil:
Pelo inferno: mata-o mata-o!

Zoraima:
Morreremos ambos, morreremos juntos; exalaremos juntos o último sus-
piro.

Aben-Hamet:
Vem, só a morte agora te poderá tirar daqui, onde deveras ter vivido sempre!

Boabdil:
Separai-os!

Ayxa, com desprezo:


Insensatos!

Zoraima:
Quem de vós se atreverá a tocar-me?

Boabdil:
Separai-os!...Covardes! Arranca-a dos braços de Aben-Hamet.

Aben-Hamet, entre os soldados:


Ai de ti, rei, se enquanto me resta um alento de vida te atreves a levantar a
mão contra Zoraima! Ai de ti, se insultas uma mulher que se não defende,
que não tem forças para te resistir!

Boabdil:
Matai-o! Matai-o! (Cresce fora o tumulto.)
254  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Aben-Hamet:
Ai de ti, porque, despedaçando estas fracas prisões dos teus soldados, esta
barreira desprezível que opões à minha fúria!...

Zoraima:
Ibraim!

Boabdil:
Cala-te!

Zoraima:
Enquanto a minha voz te puder chegar aos ouvidos escuta-me: eu te amo!

Boabdil:
Cala-te!

Zoraima:
Eu te amo.

Boabdil:
Cala-te! (Sufocando-a.)

Zoraima:
Eu te amo!

Boabdil:
Cala-te! (Apunhala-o.)

Aben-Hamet:
Ah! (Cai apunhalado.) Perdoai-me, rei; tu, Zoraima, perdoa-me!

Boabdil:
Eu te odeio!

Zoraima, caindo:
Eu te perdôo!

(Cai o pano.)
Autores brasileiros  255

A cena 5ª do 4º ato, em que Boabdil já tem denúncia da infidelidade


de Zoraima, mas vacila ainda entre a dúvida e a certeza, porque lhe não
foi ainda apresentada por Muley-Hassan a prova material da culpa, que
é o véu que ela deixou cair quando desmaiou na entrevista última do
jardim do serralho, é belíssima e admirável pelo jogo dos afetos. Nada
em tal situação escapa à habilíssima pena do poeta, que parece haver
calculado, uma por uma, todas as pulsações do coração de Boabdil em
presença de Zoraima, ou inocente ou criminosa, mas já sob o peso de
acusação gravíssima. Os discursos deste são todos eloquentes como os
de um homem apaixonado, mas vários e cheios de reticência: as respos-
tas dela todas evasivas, como as de uma mulher que tem a consciência
da culpa, mas cheias de destreza e dignidade.
Nesta cena em que Boabdil, dirigindo-se a Zoraima, começa pelo
belo exórdio insinuativo — “Depois que Alá e vosso pai me deram pos-
suir-vos” —, é admirável o seguinte trecho:

Bem. Assim que, Zoraima, se vos chegásseis a persuadir de que vos era
impossível a felicidade passando a vida a meu lado... Deixai-me concluir.
Se sentistes brotar, enraizar-se em vossa alma um sentimento irresistível
por alguém ou por alguma coisa, tereis confiança em mim, não é verda-
de? Bem sei que os afetos não se governam: não há contra eles vontade,
nem esforços que valham. Nós outros os muçulmanos muitas vezes nos
desquitamos de nossas esposas; o que outros fazem por mero capricho
por que não o faria eu por amor? Sou bom, procuro ao menos ser bom
para com todos, e a vós, Zoraima, ainda que muito me custasse, ainda
que me fosse de grande sacrifício, o que me pediríeis vós que houvesse
de vos negar?

Zoraima:
Perdoai-me. Senhor, vejo que me tratais com a bondade que sempre usastes
para comigo; mas há nas vossas palavras alguma coisa que não compreen-
do. Se vos dignásseis de explicar-vos melhor!...

Boabdil:
Digo-vos que, se assim vos houvestes portado, seria esse comportamento
de uma alma grande e generosa, que não sabe trair a confiança de ninguém
nem postergar os seu mais sagrados deveres.
256  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Zoraima:
Rei, sou vossa escrava, por que insultar-me, quando tão facilmente me po-
deis fazer morrer?

Boabdil:
E ai de vós, Zoraima, ai de vós, se vil e indignadamente zombastes de mi-
nha credulidade! Ai de vós! Porque eu mesmo com estas mãos, que só me
pesa de as não poder despedaçar porque tantas vezes vos apertaram con-
tra o meu seio, convertido em ódio o amor grande que outrora senti por
vós, aqui neste momento com a primeira arma que meu furor encontraste...
(Arranca o punhal.)

Zoraima (Com terror.):


Boadbil!

Boabdil (Deixa cair o punhal.), para Ayxa:


Oh! Ela é inocente!...

Essa delicadeza com que Boadbil, ainda incerto entre a inocência e


culpabilidade de Zoraima, lhe propõe uma separação absoluta, se lhe
não é possível a ela a felicidade passando a vida ao lado dele, ou se ela
o não ama e experimenta um sentimento irresistível por alguém ou
por alguma coisa, esse receio que ele mostra de ofendê-la, declaran-
do-lhe francamente o crime de que é acusada, e de que apenas ousa
levantar a ponta do véu, essa rápida passagem do extremo amor ao
extremo furor, que o leva a arrancar o punhal, que deixa depois cair,
quase sem força para obrar; tudo isso é muito natural em tal situação,
tudo isso é belo, tudo patético. Não são menos belas as respostas artifi-
ciosas de Zoraima, ou da mulher que nunca confessa a culpa enquanto
tem alguma probabilidade de salvar-se enganando. Vede ainda como
é tão natural a satisfação com que Boabdil, sob a impressão de tais
respostas, exclama completamente iludido ou fascinado: “Oh! Ela é
inocente!...”
Tão admirável é esta cena no jogo dos afetos que bastava ela só para
testar o verdadeiro talento dramático do poeta, demonstrando a toda a
luz o profundo conhecimento que ele tinha do coração humano, quan-
do isso aliás se não coligisse de todo o contexto do drama.
Autores brasileiros  257

Do 5º ato só reproduzirei os seguintes trechos da cena 10ª e 11ª, tão


lacônicos e simples nas palavras quanto admiráveis no sentido, porque
é a verdadeira linguagem da paixão:

Ayxa:
Vem comigo, Ibraim!

Boabdil:
Ibraim! Quem falou em Ibraim?

Ayxa:
Eu! (Ouvem-se descargas.)

Boabdil:
Que ruído é aquele?

Ayxa:
São os espanhóis que invadem o vosso palácio!

Boabdil:
Guardas, guardas! Zegris, Gomeles!

Ayxa:
Enfim acordastes! (Acodem os guardas.)

Boabdil:
Segurai-o!

Ayxa:
A quem?

Boabdil, com força:


Segurai-o!

No momento em que Ibraim se descobre o cúmplice ou amante de


Zoraima para morrer com os Abencerragems seus irmãos, vem Ayxa,
que ainda o não sabe, procurá-lo para colocá-lo à frente dos poucos
258  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

defensores de Granada, invadida pelos espanhóis, que já correm as ruas,


incendiando as casas e os templos. Boabdil, completamente estranho a
tudo que não seja o sentimento de sua vingança, ao ouvir o nome do ri-
val na boca de Ayxa, profere então como fora de si as palavras: “Ibraim!
Quem falou em Ibraim?” E ao som das descargas dos espanhóis, grita
pelos guardas, Zegris e Gomeles; julga a mãe que é para opor-se com
eles aos invasores, mas é unicamente para mandar segurar o rival, que é
por ele apunhalado com Zoraima.
Esta indiferença com que Boabdil assiste à ruína do seu poder, sem
que dê o menor passo para evitá-la, porque isso embaraçaria ou pelo
menos retardaria a sua vingança, é o sublime da paixão levada ao seu
auge, ou uma espécie de loucura vertiginosa, que só pode ser justificada
pela fatalidade que sobre ele pesava e o impelia à sua perda, fazendo-o
ou assassinar ou distrair do combate os seus melhores defensores.
Assim, se o drama for alguma vez levado à cena, essas expressões
fatais do último rei de Granada, “Ibraim! Quem falou em Ibraim? Que
ruído é aquele? Guardas, guardas! Zegris, Gomeles! Segurai-o; segurai-
-o!”, devem produzir no espectador o mesmo terror involuntário ou o
mesmo arrepio que por seu mágico efeito causam em quem as lê.
Pela beleza das cenas que analisei podeis formar ideia das situações
dramáticas do resto da peça, que é, como vos disse, uma verdadeira tra-
gédia em prosa, digna, pelo assunto e mestria do desempenho, do sin-
gular talento do autor.

LIÇÃO LXXXVI

Depois de haver apreciado o nosso ilustre comprovinciano Antônio


Gonçalves Dias como poeta, tanto nas suas obras em verso como no seu
drama Boabdil, que é uma tragédia escrita em prosa, passarei hoje a
aquilatá-lo como prosador da língua portuguesa naquelas de suas obras
que se devem reputar verdadeira prosa, quer na forma quer na essência.
Este singular engenho, o maior sem contradição que produziu o
Brasil em nossos dias, não se limitou unicamente a ser o primeiro de
nossos poetas em mais de um gênero; mereceu também lugar distin-
to entre nossos prosadores, reunindo assim duas qualidades que nem
sempre andam a par uma da outra, porque os grandes poetas não são de
Autores brasileiros  259

ordinário grandes prosadores. Não admira porém que Gonçalves Dias


se exprimisse tão bem na linguagem das Musas, como na dos homens,
porque, sobre haver sido privilegiado pela natureza com aquilo que se
chama gênio, tinha feito um árduo e especial estudo da língua portugue-
sa, como o atestam as suas inimitáveis “Sextilhas de frei Antão”.
Dentre as suas obras em prosa, a maior parte inéditas, escolherei para
objeto de minha análise a que se intitula O Brasil e a Oceania, que é in-
contestavelmente uma das melhores. O autor em sua modéstia deu-lhe
o simples nome de memória, mas merece certamente outro, porque é a
obra mais completa que possuímos sobre os usos e costumes dos aboríge-
nes do Brasil, sendo que compreende tudo que se refere às suas tradições,
migrações gerais de norte a sul, migrações parciais de sul a norte, raças
diversas e estado físico, moral e intelectual, quando os primeiros colonos
portugueses começaram a povoar o Brasil; e isto comparativamente com
o estado físico, moral e intelectual dos aborígenes da Oceania. Quanto se
pode desejar sobre a história tradicional, constituição orgânica, modos
de vida, hábitos, índole, paixões, crenças religiosas, superstições, governo,
milícia e artes nascentes de nossos indígenas, acha-se com muito esmero
consignado nesta obra, que é o fruto de um longo e indefeso estudo. O
autor consultou tudo ou quase tudo que se tem escrito sobre os índios da
América e da Oceania; mas, não contente com isso, estudou cuidadosa-
mente a língua tupi e visitou diversos pontos do Brasil em que se podia
achar em contato imediato com os nossos indígenas, a fim de tornar mais
completa a primeira parte do seu trabalho que versa sobre estes.
A obra pois tem a nossos olhos o dobrado mérito de resumir com
escolha e critério tudo quanto se tem escrito a tal respeito, e de conter,
com especialidade na primeira parte, as mais judiciosas observações,
filhas da experiência e estudo especial do autor feito sobre os próprios
lugares em que se deram e dão os fatos que menciona. Eis o programa
dado para ela pelo Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, corrigido
da própria introdução do autor:

Descrever o estado físico, moral e intelectual dos indígenas do Brasil, no


tempo em que pela primeira vez se acharam em contato com os seus des-
cobridores; e ver que probabilidade ou facilidade ofereciam nessa época à
empresa da catequese ou da colonização, eis a primeira parte do problema
que devo desenvolver.
260  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

O que admira porém é que, tendo sido este trabalho tão completo lido
no Instituto em presença de S. M. Imperial, e seguramente com o aplau-
so que merece, o não mandasse o Instituto imprimir como importava à
propagação dos conhecimentos sobre nossas coisas, sendo que o duplo
interesse que inspira a quem deseja instruir-se compensaria em aprovei-
tamento científico toda e qualquer despesa que com isso se fizesse.
O Brasil e a Oceania é uma obra no gênero histórico, didático e filo-
sófico, que nada deixa sem solução e desempeno, nem na maneira por
que o autor encarou a questão e a elucidou, nem na linguagem em que
é escrita, que é português castiço e de lei, contra o que se observa em al-
gumas de nossas obras modernas, aliás não destituídas de mérito. É um
poderoso auxiliar para difusão das luzes, já sobre o estado da raça pri-
mitiva da América, quando começou a ser povoada pelos europeus, já
sobre o progresso da ciência em geral, porque, além da justa apreciação
dos fatos que contém, dá-nos a explicação de muitos termos indígenas,
sem cujo perfeito conhecimento não é possível saber bem nem a geo-
grafia, nem a história do país. Trabalhos tais são uma verdadeira riqueza
para a nossa literatura, que não possui outros da mesma natureza, nem
tão completos, nem tão bem escritos.
Constando a obra de um volume in-fólio e compreendendo duas
partes ou dois tomos, não cabe no tempo ler-vos dela mais que um capí-
tulo destacado. Assim passarei a ler-vos o capítulo 5º da primeira parte,
ou um dos menores, e por ele ajuizareis do mérito do autor como prosa-
dor da língua portuguesa.

Capítulo V

Tratando dos caracteres físicos genéricos dos Tupis, não nos ocuparemos
do que diz respeito à fisiologia geral do homem americano; não entraremos
numa discussão que seria sem dúvida interessante para a ciência, mas para
a qual não estamos preparados, e que de mais não se prende senão muito
remotamente ao nosso programa. Contentando-nos pois de descrever os
caracteres, não entraremos na explicação dos fatos: deixamos isso aos mes-
tres das ciências e àqueles que por seus estudos especiais e por observações
próprias puderem esclarecer a questão.
Acreditou-se por muito tempo que a cor da pele americana era uma e uni-
forme em todas as tribos de todas as partes da América, quaisquer que
Autores brasileiros  261

fossem as influências da latitude, da elevação e da natureza dos lugares que


habitassem.
Esta cor dizia-se ser tirante a cobre, até que Humboldt asseverou que seme-
lhante designação de cor vermelha, cor de cobre, aplicada aos indígenas da
América não poderia ter tido princípio na América equinocial.
D’Orbigny, rejeitando igualmente tal qualificação para os homens da Amé-
rica meridional, nem admite a uniformidade neste caráter, nem a cor de
cobre que Ullôa foi o primeiro a qualificar tal; quer antes aquele autor que
em nenhuma outra parte do mundo varia tanto a cor do homem de inten-
sidade.
Foi também opinião por muito tempo que a maior intensidade da cor da
pele dependia de maior força do calor solar; e, guiando-se por estes prin-
cípios, Buffon pensava que os habitantes do vale do Andes eram os mais
alvos, quando de todas as tribos que se grupam sob a raça ando-peruana é
exatamente ali que se nota a cor mais carregada. Sem querer negar o efeito
do sol sobre a cor, efeito que não é senão temporário, dever-se-ia atribuir
antes, como pretende d’Orbigny, a sua mais ou menos intensidade a maior
ou menor umidade a que se achassem expostos, a demora mais ou menos
dilatada em países regados por chuvas abundantes e onde vastas florestas
interceptem os raios do sol
As tribos tupis estavam colocadas como no centro das duas raças dos Pam-
pas e Peruanos, ambas da América Meridional. A sua cor era branca mistu-
rada com vermelho. Os Tupis que, quanto a nós, descendem dos Goiataca-
zes, ou ao menos provém da mesma origem, tinham com pouca diferença
a mesma cor, excetuando os Aimorés e restos seus que para o norte encon-
tramos, alguns dos quais, segundo os primeiros viajantes, eram quase tão
brancos como os portugueses. Tanto nuns como nos outros observa-se a
manifestação de sensações vivas na coloração instantânea do sistema der-
moidal, mas, por efeito da cor mais carregada da pele, o fenômeno era neles
menos ostensível do que nos homens da raça branca.
A pele, longe de ter a aspereza que Ullôa lhe quis atribuir, é muito mais
macia que a dos europeus e homens do antigo mundo: é lisa, polida, bri-
lhante e macia como cetim, sem oferecer portanto desigualdade alguma,
qualidade que em seu máximo tão se apresenta nas tribos que habitam a
zona tórrida.
Quanto à estatura, dá-se o mesmo fato que se observa nas dimensões
dos mamíferos, quando não sujeitos ao estado de domesticidade, isto é, a
262  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

diferença é tão exígua entre os extremos que o máximo e o mínimo mui-


to pouco discrepam do médio; assim entre os homens da mesma tribo é
muito pouco sensível a desigualdade do tamanho. Os Tupis, na estatura
como na cor, eram o ponto intermédio entre as duas outras raças, inferio-
res aos Pampas e superiores aos Peruanos, fazendo-se ainda distinção dos
Aimorés, que, assim como eram os mais claros, eram também os mais al-
tos entre os brasílio-guaranienses, e semelhantes aos Pampas. É certo que
d’Orbigny dá tanto para os Tupis como para os Tapuias a mesma estatura;
mas este escritor não teve ocasião de observar senão um indivíduo desta
última família, e só fala por esta observação isolada. O fato no entanto é
confirmado por todos os que têm tratado dos indígenas do Brasil, e foi por
isso um dos caracteres que procurei estabelecer como diferentes entre os
Tupis e Tapuias.
Quanto às formas gerais, longe de haverem degenerado como pretende
Paw, apresentam todos os caracteres que atribuímos à força. Cabeça an-
tes grande que pequena comparada ao resto do corpo, tronco largo e ro-
busto, peito arqueado, espáduas largas, quadris pouco salientes. Ainda
que os seus membros sejam alguma vezes curtos, comparados ao resto do
corpo. São sempre repletos, arredondados e musculosos: as extremidades
superiores nunca magras, bem desenhados os braços artisticamente fa-
lando, ainda que algumas vezes grossos demais, e as mãos pequenas em
relação a eles. As extremidades inferiores são bem proporcionadas, e nas
belas formas, raras vezes magras, e os pés pequenos, posto que largos. São
portanto as suas formas menos belas do que hercúleas. Assim também
nas mulheres, acostumadas a uma vida livre, exercendo as forças desde a
infância, sem nenhum obstáculo ao desenvolvimento de suas forças e de
seus membros, têm tudo quanto poderiam desejar para o gênero de vida
a que são destinadas: assim, bem que sejam raras vezes belas e graciosas,
porque são muito robustas para serem bem feitas, são próprias para o
trabalho e sadias: têm partos fáceis, filhos vigorosos desde a infância, e
nunca defeituosos. Entre homens e mulheres, ainda na velhice, raros são
os fatos de obesidade.
A classificação que se quisesse fazer dos americanos em relação aos outros
povos, deduzida da consideração da forma que os seus crânios apresentam,
não nos poderia levar a nenhum resultado seguro: porque, mesmo entre
as raças do antigo mundo, talvez menos confundidas, e com certeza me-
lhor estudadas que esta, tomando-se qualquer delas, exceto a negra, um
Autores brasileiros  263

milheiro de crânios, acham-se alguns que pelos seus caracteres se asseme-


lham a todas as outras.
Ora, entre os americanos as formas da cabeça variam por tal modo que
Prichard rejeita a designação de forma americana, que alguns anatômi-
cos quiseram achar observando os crânios das diferentes raças, distinção
inadmissível, diz ele, porque não é senão uma generalização errônea, à qual
chegaram, considerando como universais os caracteres fortemente pronun-
ciados que lhes apresentam algumas tribos particulares.
Lawrence considera o crânio americano como análogo pela sua forma
ao do mongol, posto que seja menor que o deste (Orbigny, pág. 118).
Admitida a diferença de tamanho que este filósofo quer estabelecer, con-
viria ter-se em vista as curiosas observações de Parchappe sobre a relação
que há entre o volume do crânio e o desenvolvimento das faculdades:
delas se colige que não só a forma do crânio é pouco importante para as
faculdades, como também que o seu volume nada inf lui sobre elas. Não
obstante, tendo ele medido alguns crânios, achou que o volume da cabeça
americana, pelo contrario do que diz Lawrence, é superior ao das cabeças
da raça malaia.
Eis como d’Orbigny descreve os caracteres gerais da raça brasílico-guara-
niense, ou tupi: “Cor amarelada com mistura de vermelho muito desbotado,
estatura um metro 620 milímetros, formas maciças, frente não inclinada,
rosto cheio e circular, nariz estreito e curto, ventas estreitas. Boca mediana
e pouco saliente, lábios delgados, olhos oblíquos e sempre repuxados para o
ângulo exterior como os dos mongóis, ossos da face pouco salientes, feições
de mulher, fisionomia doce.” A isto acrescentamos pois que os procuramos
comparar com os indígenas da Oceania, cabelos negros, corredios e consis-
tentes, barba tardia, não frisada, e pouca, apenas na extremidade do lábio
superior e no queixo, dentes belos, regulares, quase verticais, persistentes, e
em que dificilmente dá a cária.
Sendo muito vigorosa a sua compleição, resistem tanto aos mais duros tra-
balhos, que Ullôa os chama insensíveis pela coragem com que suportam os
sofrimentos; em outra parte os denomina animais, porque são robustos e
não os incomodam muito as fadigas e as intempéries. Sofrem por muito
tempo, sem o demonstrem, a sede e a fome, e raras vezes adoecem, bem
que afrontam a umidade, o calor e o frio, sem tomarem precauções contra
moléstias. A prova mais concludente da sua ótima constituição é o costu-
me que têm as mulheres indígenas de, paridas, lavarem-se logo em água
264  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

corrente, continuando no mesmo dia no seu trabalho, como se nada lhes


houvesse acontecido.
Os velhos ignoram os males da decrepitude, possuem o gozo dos senti-
dos, como na mocidade, conservam os dentes intatos e os cabelos que não
caem nem alvejam nunca, têm a vista, ouvido e o olfato finíssimos, os movi-
mentos desembaraçados e o rosto pouco enrugado. Quanto à longevidade,
d’Orbigny, conhecendo a dificuldade de a determinar, dá-lhes o máximo de
100 anos, observando porém que poucos passam além dos 80. Dizem Lery
e outros que chegam aos 120 e mais anos.
Com a sua educação alcançavam no geral um alto grau de agilidade e de
força. Newied, tendo mandado os seus caçadores com alguns botocudos,
estes, pela ligeireza e rapidez da marcha, fatigados de os acompanhar, fica-
ram atrás, deixando aqueles continuarem a caçada. Lery diz que os arcos
dos do litoral eram tão compridos e fortes que não tinham comparação
com os que naquele tempo eram usados na Europa. Um europeu, longe de
os poder vergar e pôr a tiro, devera dar-se por contente, vergando o arco
de um rapaz de 9 a 10 anos. E não é só que eram muito fortes os seus arcos:
além da força que sem dúvida era precisa para os manejar, despediam de-
les setas com tanta facilidade que, segundo o mesmo autor, os ingleses, os
melhores arqueiros da Europa no século 16, não atirariam seis enquanto os
Tupinambás teriam expedido o dobro ou mais.
Em todos estes e nos demais exercícios corporais primavam os indígenas.
Daríamos para exemplos, se fossem precisos, aquele índio que, depois de
acorrentado, salvou-se a nado na baía de Niterói; e Cepé que, com as mãos
atadas nas costas, fugiu desde uma partida de cavalheiros espanhóis que
o escoltavam. À vista destes fatos poderá ser judiciosa a opinião dos que,
como Virey, sustentam que aos povos meridionais não convém outro regi-
me senão o vegetal: negamos porém que desta ideia se deva logicamente
concluir que a um selvagem não era possível combater corpo a corpo com
um europeu. Não obstante não lhes sejam favoráveis as experiências do
dinamômetro sobre a sua força muscular, alguns se tem visto lascar com a
mão leques de palmeiras, mergulhar por largo espaço, nadar dias inteiros, e
cansar os mais infatigáveis andarilhos.
Além do gênio belicoso que os levava a tornarem-se destros nestas artes, as
suas festas tomavam às vezes não o caráter do pugilato, mas o de exercícios
ginásticos, que nem sempre deixavam de ser rudes. Tal é o jogo do tiro do
barrigudo, no qual enfiam um pau que tomavam correndo e continuando a
Autores brasileiros  265

carreira até chegarem à extremidade marcada para limite, embora tivessem


de atravessar com ele algum regato que desse nado. Em algumas tribos do
sertão conserva-se ainda hoje este jogo, mas reservam-no para as celebra-
ções de matrimônio. Neste caso dá-se ao vencedor a moça que chegou a ser
núbil, reputando-se como o mais capaz de a salvar em ocasião de perigo.
Concluiremos este capítulo com algumas observações.
Se quisermos por um momento considerar qual era o viver do tupi, os seus
trabalhos, a sua organização em república, conjeturemos aproximadamente
o grau de bem-estar e de energia que eles deveriam desfrutar, e teremos ao
mesmo tempo a explicação desse estado de perfeição orgânica que apenas
se conhece na vida civilizada.
Nascidos de pais robustos e sadios, nunca ou raríssimas vezes afetados de
enfermidades, exceto no extremo quartel da vida, participavam em gran-
de parte da organização de seus ascendentes. Enquanto no ventre mater-
no, as mães os não comprimiam nunca, como desgraçadamente usam em
muitas partes as mulheres para ocultar ou disfarçar a gravidez; os traba-
lhos e ocupações diárias a que se davam, não obstante o seu estado, nem
só lhes facilitavam os partos, como era também motivo para que os filhos
não saíssem aleijados nem defeituosos, nem com esses vícios de organi-
zação que nas cidades populosas tornam a infância doentia e miserável.
Nasciam robustos e conservavam por toda a vida a robustez; enquanto
por outro lado os seus trabalhos os impediam de cair em obesidade. Deste
modo a força e saúde de uma geração era garantia da saúde e da força das
que se lhe seguiam.
Abrindo os olhos à luz, e vendo ao seu lado um arco e flechas, o menino
compreendia que a sua existência dependia da destreza, agilidade e cora-
gem que soubesse desenvolver; e que só por esse meio se podia tornar cé-
lebre e respeitado mesmo pelos seus. Começavam desde logo a exercer as
suas forças, pouco e pouco até a ponto de chegarem a manejar um daqueles
grandes arcos que eram a inveja dos arqueiros europeus e dos quais se ser-
viam com maravilhosa destreza. Esta experiência lhe vi fazer. Firmando-se
no pé esquerdo, avançavam o direito, e com o dedo grande imprimiam um
leve sinal na areia, recuando depois esse pé, mas conservando sempre o ou-
tro na mesma posição, atiravam ao ar, e a f lecha vinha enterrar-se no rasto
que lhes servia de alvo. Enfim, uma espécie de ginástica natural, a subida de
árvores, a carreira, a caça, a natação e manejo dos remos, a confecção das
armas, davam-lhes aos membros incrível elasticidade.
266  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Descendentes de homens incomparavelmente mais guerreiros do que agrí-


colas, a sua educação era inteiramente militar; a guerra era a sua vida, e só
os feitos de armas e os atos de coragem os podiam enobrecer; só por eles
podiam ter entrada no Ibake e assentar-se entre os guerreiros das f lorestas
eternas.
Deviam saber vencer, mas, como nem sempre a vitória é companheira da
coragem, era-lhes necessário também que soubessem padecer, afrontar
os sofrimentos e mostrar-se tão impávidos no terreiro do inimigo como
destemidos no campo da batalha. Seus ornatos, suas pinturas, suas armas,
tinham por fim chamar sobre eles as vistas de todos. A compostura do
guerreiro, que traía as atenções, era também um incentivo para que as pro-
curassem merecer e não praticassem nunca um ato de fraqueza. Durante a
mocidade estavam sujeitos a terríveis provações para serem admitidos no
lugar de combatentes e poderem aspirar ao mando: estava aberto o campo
para todos, e era legítima a ambição do esforçado e corajoso. Convinha
que o guerreiro soubesse suportar a dor com calma e sem demudar o sem-
blante. Daqui provinham os tormentos da iniciação. Da relação de Hans
Staden se depreende que entre os Tupis requeriam-se igualmente as provas
que dos seus guerreiros exigiam os Caraíbas. Conta ele ter, durante o seu
cativeiro, visto um índio que de noite percorria as cabanas com um dente
de peixe aguçado com que rasgava as carnes das pernas dos mancebos, para
que assim aprendessem a sofrer sem se queixar. Era isto o indício seguro
de sua valentia e a sua patente de guerreiro, que depois precisavam ilustrar
com a morte dos inimigos. Os troféus que assim conseguiam, que traziam
pendentes do pescoço ou arrumavam à entrada de suas cabanas, serviam-
-lhes de glorioso ornato.
Educados nas f lorestas com um tato de observações extremamente delica-
do, adquiriam invejável perfeição de sentidos. No burburinho confuso das
florestas, distinguem sons quase imperceptíveis que lhes revelam a passa-
gem de um animal, quebrando os ramos, ou a marcha cautelosa do guer-
reiro que os evita. Pelas pegadas que viam impressas no chão, distinguiam
a tribo que ali passara, e pelo olfato a direção que levava. Olhos de lince,
descobriam nas sombras das f lorestas o inimigo ou a presa, e com o arco
despediam por entre as folhas a morte rápida e silenciosamente.
Em resumo, além dos caracteres físicos que serviam para os diferençar dos
selvagens da Oceania, o tupi era sadio, robustos, hábil no fabrico de suas
armas, destro em manejá-las, e com sentidos de extrema delicadeza. A sua
Autores brasileiros  267

vida toda guerreira, e de guerra selvática, começava pelo exercício de todos


os sentidos, e rematava com o desenvolvimento de todas as qualidades que
era mister ao guerreiro. Acostumados aos trabalhos, privações e sofrimen-
tos de dor física, à luta e ardis de guerra incessante e impiedosa, por meio
deles chegavam à nomeada de guerreiros atrevidos e chefes ardilosos.
Fortes e duros como os seus arcos, a força europeia, impotente sobre eles,
carecia para os curvar de jeitos e boa vontade, e sobretudo de esperar com
paciência que a experiência e bons ofícios os tornassem fáceis de manejar
e tratar, antes de rompê-los brutalmente como arma inútil e sem préstimo.
Era preciso reformar os seus costumes, começando pela educação, uni-los
em vez de os separar, acostumá-los a uma vida pacífica, agrícola ou indus-
trial, em vez de os corroborar nos sentimentos e propensões guerreiras,
opondo-os, para defesa própria, uns aos outros, e por esta forma aniquilan-
do-os reciprocamente.
Qualquer, porém, que fosse o sistema que para com eles se adotasse, era de
indeclinável necessidade que fosse baseado sobre o princípio de bem enten-
dida liberdade. Só dessa forma se poderia carrear a vontade desses homens
acostumados a uma vida libertina, e cujo caráter, como deles acho escrito e
eles o confirmam todos os dias, era em último grau insofrido da escravidão.
Neutiquam jugum servitutis tolerantes.

Neste capítulo, em que são descritos os caracteres físicos do índio


americano, nada escapa à justa apreciação do autor, que ajuíza com mui-
to critério das opiniões alheias que cita, escreve com perfeito conheci-
mento dos fatos que tão diligentemente estudou e dá às suas judiciosas
observações o completo desenvolvimento de quem se acha senhor do
assunto. O estilo é fácil e corrente, como convém ao gênero didático e
filosófico, mas castigado e nobre; a prosa harmoniosa e cheia, como a de
um escritor clássico. Eis aqui, para demonstração do que digo, reprodu-
zido um trecho da mesma:

Em todos estes e nos demais exercícios corporais primavam os indígenas.


Daríamos para exemplos, se fossem precisos, aquele índio que, depois
de acorrentado, salvou-se a nado na baía de Niterói; e Cepé, que com as
mãos atadas nas costas, fugiu dentre uma partida de cavalheiros espanhóis
que o escoltavam. À vista destes fatos, poderá ser judiciosa a opinião dos
que, como Virey, sustentam que aos povos meridionais não convém outro
268  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

regime, senão o vegetal; negamos porém que desta ideia se deva logicamen-
te concluir que a um selvagem não era possível combater corpo a corpo
com um europeu. Não obstante não lhe serem favoráveis as experiências do
dinamômetro sobre a sua força muscular, alguns se tem visto laçar com a
mão leques de palmeiras, mergulhar por largo espaço, nadar dias inteiros e
cansar os mais infatigáveis andarilhos.

Neste trecho, com ser tão curto, e tomado quase ao acaso, conhece-se
nada obstante tanto a mestria do escritor habituado a manejar a pena,
como a ciência do profundo conhecedor da índole da língua. Não só
as palavras se acham colocadas com tal arte, mas ainda as proposições
dispostas em ordem tal que da colocação de uma e da disposição de
outras resulta a maior harmonia que se podia dar à frase para lisonjear
o ouvido, e fazer por este meio calar melhor o sentido em nosso espí-
rito. Os dois primeiros períodos sobretudo são admiráveis no efeito de
sua estrutura harmônica e expressiva. Pela disposição na ordem inversa
das proposições que o comportam e colocação das palavras em lugar
próprio, denuncia-se logo o escritor versado na leitura dos clássicos e
iniciado nos segredos da composição numerosa. A prosa tem o seu nú-
mero, assim como a poesia tem o seu metro.
Basta deslocar algumas dessas palavras ou colocar na ordem direta
alguma das proposições que se acham na inversa para que desapareça
logo todo o efeito harmônico da frase. Façamos a experiência com a
primeira proposição, colocando-a na ordem direta: “Os indígenas pri-
mavam em todos estes e nos demais exercícios corporais.” A graça desa-
parece toda com o número que lhe soube dar o autor e fica unicamente
prosa insossa. O número é a primeira qualidade pela qual se distingue o
bom do mau prosador.
Assim, se os versos não atestassem o profundo estudo que Gonçalves
Dias tinha feito da língua portuguesa, bastaria a sua prosa, evidente-
mente superior à da maior parte dos escritores contemporâneos, seja no
número da frase, seja na pureza da dicção, para demonstrá-lo a todas
as luzes. É pois o grande poeta, autor dos primeiros, segundos e últi-
mos cantos, um prosador também mui distinto, como atestam os seus
dramas, em prosa, e sobretudo esta sua obra com que hoje me ocupo,
trabalho de mais vulto e digno de figurar entre o que há de mais bem
escrito a tal respeito.
Autores brasileiros  269

Passando, porém, da forma que reveste a obra ao que constitua a sua


essência, chamarei a vossa atenção para as judiciosas reflexões com que
o autor termina este capítulo, que são como a consequência necessária
dos fatos mencionados, para a naturalidade e graça com que narra, para
a verdade do colorido com que faz sobressair as suas descrições, para a
comparação dos fatos da ordem física e moral com outros análogos ob-
servados entre os mais povos, dando assim vigor, atrativo nobreza e au-
toridade ao dizer, o qual é ponto essencial em toda e qualquer obra, pois,
pela mestria do estilo que deve adaptar-se completamente ao assunto, se
conhece logo a categoria do escritor. Sirva de exemplo disto toda a bela
passagem que começa “Se quisermos por um momento considerar qual
era o viver do tupi, os seus trabalhos, a sua organização em república,
conjeturemos” etc., e que não reproduzo por demasiadamente extensa.
Por este capítulo podeis ajuizar do mérito dos outros, porque o autor
guarda em todos a mesma maneira de escrever, sem desigualdade notá-
vel; é por conseguinte do mérito de toda a obra, o qual é incontestável,
ou se atenda ao seu alcance intelectual ou à simples execução.
Tendo aquilatado o nosso exímio poeta Gonçalves Dias também
como prosador, e dos mais distintos, passarei no seguinte discurso a
apreciar outro notável prosador brasileiro, o marquês de Maricá. Por
hoje aqui faço ponto.
MARQUÊS DE MARICÁ*

Marquês de Maricá;
sua biografia; seu livro de Máximas.

LIÇÃO LXXXVII

Vou, Senhores, apreciar hoje um sábio e profundo filósofo moralista,


o marquês de Maricá, chamado o La Rochefoucauld brasileiro, mas in-
dubitavelmente superior ao moralista francês, quer na escolha, quer na
amplidão aplicável de suas máximas. É um escritor que muito honra o
Brasil com seus escritos justamente apreciados, não só entre nós, mas
em toda a Europa, e não tem no seu gênero rival na língua portuguesa,
que enriqueceu com um sem número de frases concisas e sentenciosas
que dão muita graça e energia ao dizer.
Há homens que se encarregam de pensar pela humanidade e em be-
nefício dela; a Antiguidade os chamava sábios e os cercava de toda sor-
te de considerações; os modernos, mais apreciadores dos inventos que
concorrem para a perfeição das ciências físicas, não lhes têm até hoje
dado um nome especial, designando-os genericamente sob o de filóso-
fos moralistas. O marquês de Maricá pertence a esta classe respeitável
de homens superiores que pensam pelos outros homens; é um sábio, na
acepção em que a Antiguidade tomava esta palavra, e dos mais distintos
com que se honra a nossa espécie.
Antes porém de apreciar a coleção de suas máximas, devo dar-vos
sucinta notícia de sua vida, gasta quase toda em proveito da humani-
dade.
Mariano José Pereira da Fonseca, porque tal era o seu nome de batis-
mo, nasceu no Rio de janeiro a 18 de maio de 1773, e ali morreu a 16 de
setembro de 1848, na avançada idade de 75 para 76 anos.

*  V. 5 (1873), p. 57-83.
Autores brasileiros  271

Foi bacharel em matemáticas e filosofia pela Universidade de Coim-


bra, marquês de Maricá, grã-cruz da ordem do Cruzeiro, conselheiro de
estado, ministro e secretário de estado dos negócios de fazenda, sena-
dor do Império e um dos signatários e redatores de nossa constituição
política.
Era filho legítimo do negociante Domingos Pereira da Fonseca, natu-
ral de Portugal, e de D. Teresa Maria de Jesus, natural do Rio de Janeiro.
A educação que recebeu foi das mais esmeradas, como o está mos-
trando a sua muita proficiência nas letras, atestada pelos preciosos es-
critos que nos deixou.
Mandado por seu pai para Portugal na idade de 11 para 12 anos, en-
trou em 1785 colegial no real colégio de Mafra, onde durante três anos
estudou latim, retórica, lógica, francês e grego.
O pouco tempo em que estudou tantas matérias dá testemunho do
seu extraordinário talento e aplicação.
Concluídos os seus estudos em Mafra, entrou em 1788 na Universi-
dade de Coimbra, onde fez exames de preparatórios para o curso jurí-
dico, mas, não tendo 16 anos completos para matricular-se nele, como
exigiam os estatutos, matriculou-se no primeiro ano da faculdade de
matemáticas e filosofia, na qual tomou simplesmente o grau de bacharel,
por se ver forçado a regressar ao Brasil para arrecadar a herança de seu
pai, que faleceu em 1792.
De volta ao Rio de Janeiro em princípios de 1794, abriu casa de ne-
gócio deliberado a seguir a vida comercial de seu pai; mas foi preso a 4
de dezembro do mesmo ano, quando menos o esperava, e retido inco-
municável dois anos e sete meses e meio, isto quando ainda se faziam
prisões por ocasião da projetada e extinta revolução de Minas Gerais.
Ao cabo deste tempo foi solto, por efeito de um aviso, que estranhou ao
conde de Resende, que então governava o Rio de Janeiro, o havê-lo por
tanto tempo conservado preso sem sentença, conjuntamente com ou-
tros companheiros de infortúnio. O processo nunca apareceu; é fama96
que o conde Resende o levou consigo para Portugal, quando foi rendido.
Restituído à liberdade e continuando em sua vida comercial, casou
em 1800 com Dª Maria Rosa Barbosa do Sacramento, senhora muito
distinta por suas virtudes e prendas, da qual teve um filho e quatro filhas.

  Ver nota 79.


96
272  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

O seu saber e talentos, dando-o a conhecer, não só o elevaram em


breve aos primeiros cargos, honras e dignidade que podem caber a um
cidadão num país constitucional, mas lhe assinaram também um lugar
distinto entre os nossos melhores estadistas.
De 1802 por diante começou a sua vida pública, que terminou com
a existência, em 1848.
No tempo do governo português exerceu diversos lugares impor-
tantes, como deputado de agricultura da mesa da inspeção do Rio de
Janeiro, deputado da junta do comércio na sua criação pela extinção da
mesa da inspeção, diretor tesoureiro da real imprensa, sem ordenado,
administrador tesoureiro da fábrica de pólvora, deputado tesoureiro do
tribunal do arsenal do exército, ficando abolido o lugar de tesoureiro da
fábrica de pólvora, censor régio por provisão do desembargo do paço.
Foi no reinado de D. João VI ouvido em diversas conferências com a
assistência dos ministros de estado, porque já então era notória a sua
capacidade como estadista.
Depois de proclamada a independência do Brasil, foi nomeado mi-
nistro da fazenda em 13 de novembro da 1823, cargo a que o chamavam
as suas incontestáveis habilitações, e de que obteve demissão em 23 de
novembro de 1825. Foi durante o seu ministério, ou em 1824, que o Sr.
D. Pedro I deu ao Brasil a libérrima constituição por que se rege.97
Eleito senador do Império pelo Rio de Janeiro, sua província natal,
começou a exercer este cargo em 1826.
Foi um dos primeiros conselheiros de estado segundo a constituição,
e deixou de servir este emprego pela extinção do conselho de estado em
1834, ficando com as honras e ordenados.
Não sabemos ao certo a época em que foi nomeado marquês de Ma-
ricá, mas foi no primeiro reinado, pois em 1837, quando imprimiu a
primeira coleção de suas máximas, já tinha este título, e na nota que
deixou a respeito de sua vida, diz que, quando lhe morreu a esposa em
1840, morreu dama da imperatriz e marquesa de Maricá.
Na mesma nota diz que a fortuna que possuiu era trigo sem joio
do diabo, produto da pingue legítima de seu pai, do seu comércio por
perto de 20 anos, como negociante, do favor divino, da sua economia,
ordem, trabalho, inteligência; que na sua vida pública não teve outro

  Ver nota 16.


97
Autores brasileiros  273

rendimento que o de seus ordenados; que a sua integridade podia ser


proverbial.
Assim este insigne varão era ornado de todas as virtudes que devem
constituir o bom cidadão e o verdadeiro sábio.
Os seus longos serviços ao país são atestados pelos mesmos impor-
tantes e elevados cargos que exerceu, tanto de nomeação do impetrante,
como de eleição popular, e ainda pelas honras e título com que foi remu-
nerado por bem haver servido.
A sua reputação de estadista acha-se comprovada pela parte ativa
que tomou na confecção do belo código fundamental que possuímos,
um dos mais perfeitos que se conhecem, e dos que têm tido mais longa
duração.
Não é porém como estadista que tenho de aquilatá-lo, e sim como
literato, e dos mais distintos.
Compôs ele na sua mocidade algumas poesias soltas, que julgo nun-
ca chegaram a ser impressas; mas o monumento indelével de sua glória
literária é o seu precioso livro de máximas, pensamentos e reflexões, tra-
balho de 13 anos consecutivos, com que enriqueceu a nossa literatura,
tornando-a neste ponto sem rival entre todas as literaturas modernas,
porque nenhuma possui uma coleção de belos pensamentos morais, tão
superiormente concebidos e elaborados.
Começou, como ele próprio diz, a escrever as suas máximas na idade
de 60 anos, e, quando chegou aos 70, havia publicado e feito distribuir
grátis quatro volumes delas com 3169 artigos: tamanho era o desejo que
nutria de que o seu trabalho fosse útil à humanidade em cujo único
proveito o empreendera! Não contente ainda com isto a todos facultou
a reimpressão de sua obras.
Em consequência desta ampla faculdade foi publicado em 1850, com
a rubrica “Rio de Janeiro”, mas evidentemente impresso em Paris, um
belo e grosso volume em 8º francês que tem por título Coleção completa
das máximas, pensamentos, e reflexões do marquês de Maricá, etc. etc., e
termina pelo seguinte epitáfio que para si deixou o autor:

Aqui az o corpo apenas


Do marquês de Maricá:
Quem quiser saber-lhe da alma
Nos seus livros a achará.
274  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Rematarei a notícia biográfica que tenho a dar-vos sobre este ilustre


sábio reproduzindo o seu retrato traçado pela pena de autor e poeta dis-
tinto que o conheceu de perto e tratou por diversas vezes:

O marquês de Maricá (diz o Sr. Porto Alegre) era homem de estatura me-
diana, de modesta aparência, de uma fisionomia grave, e de um caráter
austero; a natureza e a sociedade haviam estampado no seu aspecto fisio-
nômico os traços característicos do pensador e do magistrado, do filósofo
e do diplomata, do tribuno e do burguês. Amava a conversação, a música
e a leitura; e era difícil acompanhá-lo todas as vezes que se entranhava nas
grandes abstrações filosóficas: a volubilidade de suas palavras, a agudeza de
seu espírito e o seu gênio um tanto sarcástico o tornavam extremamente
agradável. Era apaixonado pela poesia italiana e havia decorado os melho-
res pedaços do imortal Torquato.

Há a admirar nas máximas deste homem sapientíssimo não só o vi-


gor e a sublimidade do pensamento, que reduz a instrução moral à sua
essência, envolvendo-a em conceitos brevíssimos e aguçosos, que pene-
tram em nosso espírito como um raio de luz, e fazem a beleza da forma
com que as revestiu, ou a perfeição de seu estilo conciso, enérgico, nobre
e sem palavra alguma inútil ou redundante. O seu livro de máximas
é um tesouro inestimável que contém preceitos para todos os estados
da vida, e devia de ser de tempos a tempos mandado reimprimir pelo
governo para ser distribuído grátis pelos alunos mais proveitos das es-
colas públicas, que por ele deviam ler. Tal é a santidade e pureza de sua
doutrina.
Tendo vos dado uma ideia sucinta da vida e subido mérito do autor,
passarei em outro discurso a apreciar o seu livro de máximas, que por
sua importância e perfeição merece uma análise especial. Por hoje aqui
faço ponto.

LIÇÃO LXXXVIII

Disse-vos eu, Senhores, no meu precedente discurso, que o livro de


máximas do marquês de Maricá, que me proponho apreciar, era um
livro precioso, porque reduzia com talento e critério a instrução moral
Autores brasileiros  275

à sua essência, envolvendo-a em conceitos brevíssimos e enérgicos que


penetram no nosso espírito como um raio de luz vivificante; e com efei-
to assim é, quer se atenda à substância, quer à forma dos pensamentos
do autor.
Nenhum dos antigos e modernos filósofos moralistas se pode an-
tepor em realidade a este, nem em sublimidade de pensamento e san-
tidade de doutrina, nem sobretudo em concisão de frase e beleza de
expressão. Há contudo esta diferença: entre os antigos que se davam
com especialidade a este gênero de estudo, encontra ele rivais que, se o
não excedem, igualam certamente no primeiro ponto; entre os moder-
nos, porém, cujo pendor é para as ciências físicas, nenhum há que se lhe
equipare, nem no primeiro, nem no segundo ponto.
Invenção engenhosa, elevação e fecundidade de pensamento, critério
na escolha dos preceitos, cabedal de instrução moral e filosófica, pureza
de linguagem, propriedade de dição, beleza de forma, tudo se encontra
em grau subido no livro do marquês de Maricá, que é a nossos olhos de
um preço inestimável para bem dirigir o homem em qualquer dos es-
tados da vida. Assim grande foi o serviço, que com ele prestou à huma-
nidade o autor, que corre parelhas em sabedoria com os mais sublimes
filósofos moralistas da Antiguidade.
Há sobretudo um ponto essencial em que o marquês de Maricá leva
decidida vantagem a todos os outros moralistas: é a amplidão aplicável
de suas máximas, cuja esfera nele se dilata mais que em nenhum outro
sábio antigo ou moderno. O seu livro é como um manancial inesgotável
de preceitos formulados para todos os estados e condições sociais; nada
do que pode interessar o homem escapa à fecunda perspicácia do autor,
cujo vasto espírito parece dominar o mundo moral.
Abra-se o livro ao acaso e deparar-se-á um sem-número de verdades
de todo gênero nele consignadas pela forma a mais apropriada e bela.
Antes porém de o fazer, devo dar-vos acerca dele a opinião de um
nosso ilustrado crítico.
Ei-la:

A máxima moral (diz o Sr. Porto Alegre), aquela que é filha da verdade
eterna, é um monumento que pede outro monumento em recompensa.
Entre as 3169 máximas que o nosso sócio honorário tirou à luz da im-
prensa, se encontram algumas cujos pensamentos estão elaborados por
276  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

formas diferentes, e que só pedem um coordenador: mas entre elas se


acha uma grande quantidade de verdades formuladas por uma maneira
original, e que encerram, além do seu mérito intrínseco, aquelas virtu-
des de um estilo admirável, cuja ordem e movimento nas ideias é tecida
por uma cadeia mágica, que as torna pequenos monumentos de beleza
e concisão.

Este juízo é tanto mais autorizado e competente, por isso mesmo que,
a par das belezas, aponta os descuidos, declarando que entre as máximas
do autor se encontram algumas cujos pensamentos estão elaborados
por formas diferentes, e que só pedem um coordenador. E com efeito
não é para admirar que no avultadíssimo número de 3169 aparecessem
algumas repetições de pensamentos, se é que o autor não teve em vista
vestir algumas vezes o mesmo pensamento por forma diferente, como
parece mais natural e se inclina a crer o mencionado crítico, fazendo ver
a necessidade de um coordenador para tais pensamentos.
Passarei agora a ler-vos algumas máximas do precioso livro, para que
por elas possais formar juízo do mérito do autor como moralista e como
escritor.

Uns homens sobem por leves como os vapores e gases, outros como os pro-
jetis pela força do engenho e dos talentos.

O interesse explica os fenômenos mais difíceis e complicados da vida social.

Não é menos funesto aos homens um superlativo engenho, do que às mu-


lheres uma extraordinária beleza: a mediocridade em tudo é uma garantia
e penhor de segurança e tranquilidade.

Sem as ilusões da nossa imaginação, o capital da felicidade humana seria


muito diminuto e limitado.

O remorso é no moral o que a dor é no físico da nossa individualidade:


advertência de desordens que se devem reparar.

O direito mais legítimo para governar os homens é o de ser mais inteligente


que os governados.
Autores brasileiros  277

A mocidade viciosa faz provisão de ataques para a velhice.

Desperdiçamos o tempo, queixando-nos sempre de que a vida é breve.

As desgraças, que vigoram os homens probos e virtuosos, enervam e desa-


lentam os maus e viciosos.

Um século censura outro século, como em nossa vida uma idade condena
a outra idade.

Os tufões levantam aos ares os corpos leves e insignificantes, e prostram


em terra os graves e volumosos: as revoluções políticas produzem algumas
vezes os mesmos efeitos.

Dói mais ao nosso amor próprio sermos desprezados, que aborrecidos.

Os homens mais respeitados não são sempre os mais respeitáveis.

Os velhos ruminam o pretérito, os moços antecipam e devoram o futuro.

Na fermentação dos povos, como na dos líquidos, as escumas e impurezas


sobrenadam e ficam de cima, por mais ou menos tempo, até que descem ou
se evaporam.

A morte, que desordena muitas coisas, coordena muitas outras.

Os homens não sabem avaliar-se exatamente: cada um é melhor ou pior do


que os outros o consideram.

As nossas necessidades nos unem, mas as nossas opiniões nos separam.

A virtude resistindo se reforça.

No trato da vida humana é mais importante a parcimônia nas palavras que


no dinheiro.

Os bens que a virtude não dá ou não preserva são de pouca duração.


278  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

A virtude é comunicável, mas o vício contagioso.

Não podemos fitar os olhos no sol, nem o pensamento em Deus, sem que
fiquem deslumbrados.

Devemos tratar os homens com a mesma cautela, resguardo e desconfiança,


de que usamos em colher as rosas.

A nossa vida é quase toda um sonho, e sonhamos acordados mais vezes do


que dormindo.

Dão-se os conselhos com melhor vontade do que geralmente se aceitam.

Confiar desconfiando é uma regra muita salutar da prudência humana.

Os arrufos entre amantes podem ser renovações de amor, mas entre os ami-
gos são deteriorações da amizade.

Ninguém é mais adulado que os tiranos: o medo faz mais lisonjeiros que o
amor.

A vaidade de muita ciência é prova de pouco saber.

A companhia dos livros dispensa com grande vantagem a dos homens.

Os erros circulam entre os homens como as moedas de cobre, as verdades


como os dobrões de ouro.

A prudência é uma arma defensiva que supre ou desarma todas as outras.

A Religião é necessária ao homem feliz para não abusar, e ao infeliz para


não desesperar.

O orgulho pode parecer algumas vezes nobre a respeitável, a vaidade é sem-


pre vulgar e desprezível.

A modéstia é a moldura do merecimento, que o guarnece e realça.


Autores brasileiros  279

É necessário que nos habilitemos, para ser felizes; a felicidade sensual exige
poucas habilitações; mas a moral, intelectual e religiosa reclamam um pro-
longado tirocínio de saber, experiência e virtudes.

Falsas doutrinas e maus exemplos depravam os homens e as nações.

Quando a cólera ou o amor nos visita, a razão se despede.

O nascimento desiguala, mas a morte iguala a todos.

Ninguém nos aconselha tão mal como o nosso amor próprio, nem tão bem
como a nossa consciência.

O invejoso é tirano e verdugo de si próprio: ele sofre porque os outros gozam.

Sabei escusar o supérf luo, e não vos faltará o necessário.

As virtudes se harmonizam, os vícios discordam sempre entre si.

Com trabalho, inteligência e economia, só é pobre quem não quer ser rico.

Há um mundo intelectual que não ocupa lugar no espaço e compreende o


infinito.

Deixamos de subir alto quando queremos subir de um salto.

A variedade é o distintivo da sabedoria, como a uniformidade e monotonia


o da ignorância. A infinita sabedoria de Deus se revela pela infinita varie-
dade das suas obras e maravilhas.

Ninguém nos lisonjeia tanto como o nosso amor próprio, nem nos argúi
com mais perseverança do que a própria consciência.

Há muitos homens que, assim como o sol, parecem maiores no horizonte


que no seu zênite ou meridiano.

O medo faz mais tiranos que a ambição.


280  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Em pontos de civilidade, o soberbo não paga o que deve, e exige sempre


mais do que lhe é devido.

Os abusos e prejuízos nos povos são como as verrugas e lobinhos no corpo


humano, ainda que feios conservam-se por ser a sua extração dolorosa e
muitas vezes arriscada.

A impaciência, quando não remedeia os nossos males, os agrava.

O arrependimento é ineficaz quando as reincidências são consecutivas.

A filosofia desagrada, porque abstrai e espiritualiza; a poesia deleita, porque


materializa e figura todos os seus objetos. Quereis persuadir e dominar os
homens, falai à sua imaginação, e confiai pouco na sua razão.

O espírito vive de ficção, como o corpo se nutre de alimentos.

A má educação consiste especialmente nos maus exemplos.

É judiciosa a economia de palavras, tempo e dinheiro.

O muito juízo é um grande tirano pessoal.

Trabalho honesto produz riqueza honrada.

Formam-se mais tempestades em nós mesmos que no ar, na terra e nos


mares.

Os bons exemplos dos pais são as melhores lições e a melhor herança para
os filhos.

Os bons presumem sempre bem dos outros: os maus, pelo contrário, sem-
pre mal: uns e outros dão o que tem.

A moda determina as opiniões de muita gente.

O arrependimento, se não repara o feito, previne a reincidência.


Autores brasileiros  281

Os homens sem mérito algum, brochados de insígnias e de outro, são com-


paráveis aos maus livros ricamente encadernados.

Ciência é poder, força e riqueza: a nação mais inteligente e sábia será conse-
quentemente a mais rica, forte e poderosa.

Os nossos maiores inimigos existem dentro de nos mesmos são os nossos


erros, vícios e paixões.

Nada incomoda tanto aos homens maus como a luz, a consciência e a razão.

Deus se revela em tudo e por todos. As obras de um agente são as suas


revelações.

Que juízo não é necessário que tenhamos para conhecer toda a extensão da
nossa loucura!

A riqueza doura a sabedoria e os talentos, mas não os constitui.

Sucede aos homens como às substâncias materiais, as mais leves e menos


densas ocupam sempre os lugares superiores.

Trabalhai, poupai, acumulai, sabereis quanto podeis.

O meio mais eficaz de vingar-nos de nossos inimigos é fazendo-nos mais


justos e virtuosos do que eles.

É feliz e ilustrada a velhice que chegou a conhecer e avaliar os prestígios e


ilusões da vida humana, a descortinar as harmonias do universo, e admirar
em pleníssima convicção a infinita sabedoria e bondade de Deus, que se
revela em todos os pontos do espaço e em todos os instantes do tempo, com
prodígios e assombros da sua onipotência.

Ser religioso é o atributo mais honroso e sublime do homem sobre a terra:


é por este predicado especialmente que ele se distingue de todos os outros
viventes: erigindo templos e altares a Deus, também de algum modo se di-
viniza.
282  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Dentre as máximas que vos li, citar-vos-ei as seguintes, que mais im-
pressão fizeram no meu espírito, seja pelo conceito, seja pela forma que
o reveste, e julgo produziram no vosso o mesmo efeito:

Uns homens sobem por leves como os vapores e gazes, outros como os
projetis pela força do engenho e dos talentos.

O interesse explica os fenômenos mais complicados da vida social.

Não é menos funesto aos homens um superlativo engenho, do que às mu-


lheres uma extraordinária beleza: a mediocridade em tudo é uma garantia
e penhor de segurança e tranquilidade.

Sem as ilusões da nossa imaginação, o capital da felicidade humana seria


muito diminuto e limitado.

O remorso é no moral o que a dor é no físico da nossa individualidade:


advertência de desordens que se devem reparar.

O direito mais legítimo para governar os homens é o de ser mais inteligente


que os governados.

Os tufões levantam aos ares os corpos leves e insignificantes, e prostram


em terra os graves e volumosos: as revoluções políticas produzem algumas
vezes os mesmos efeitos.

Os velhos ruminam o pretérito, os moços antecipam e devoram o futuro.

Na fermentação dos povos, como na dos líquidos, as escumas e impurezas


sobrenadam e ficam de cima, por mais ou menos tempo, até que descem e
se evaporam.

Não podemos fitar os olhos no sol, nem o pensamento em Deus, sem que
fiquem deslumbrados.

Devemos tratar os homens com a mesma cautela, resguardo e desconfiança,


de que usamos em colher as rosas.
Autores brasileiros  283

A nossa vida é quase toda um sonho, e sonhamos acordados mais vezes do


que dormindo.

A variedade é o distintivo da sabedoria, como a uniformidade e monotonia


o da ignorância. A infinita sabedoria de Deus se revela pela infinita varie-
dade das suas obras e maravilhas.

Há muitos homens que, assim como o sol, parecem maiores no horizonte,


que no seu zênite ou meridiano.

O medo faz mais tiranos que a ambição.

A filosofia desagrada, porque abstrai e espiritualiza; a poesia deleita, porque


materializa e figura todos os seus objetos. Quereis persuadir e dominar os
homens, falai à sua imaginação, e confiai pouco na sua razão.

Formam-se mais tempestades em nós mesmos, que no ar, na terra e nos


mares.

Em todas estas máximas que ficam citadas as verdades são as mais


incontestáveis, e, seja qual for a sua natureza, acham-se expressas por
uma maneira original tão concisa como brilhante, de modo que formam
sempre conceitos breves e sentenciosos, que facilmente se gravam na
memória, iluminando, para assim dizer, o espírito.
Umas sobressaem pela beleza da comparação e dos contrastes —
como “Uns homens sobem por leves como os vapores e gazes, outros
como os projetis pela força do engenho e talentos”, “Devemos tratar
os homens com a mesma cautela, resguardo e desconfiança, de que
usamos em colher as rosas” —, outras penetram no espírito qual seta
acerada — como “O interesse explica os fenômenos mais complicados
da vida social”, “O medo faz mais tiranos que a ambição” —, outras
brilham pela comparação apropriada e colocação harmoniosa das pa-
lavras — como “Não é menos funesto aos homens um superlativo en-
genho do que às mulheres uma extraordinária beleza: a mediocridade
em tudo é uma garantia e penhor de segurança e tranquilidade” —,
outras pelo arrojado das figuras e tropos — como “Os velhos ruminam
o pretérito, os moços antecipam e devoram o futuro”, “Não podemos
284  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

fitar os olhos no sol, nem o pensamento em Deus, sem que fiquem


deslumbrados”, “Há muitos homens que, assim como o sol, parecem
maiores no horizonte, que no seu zênite ou meridiano”, “Formam-se
mais tempestades em nós mesmos, que no ar, na terra e nos mares”
—, outras pela beleza da comparação e figuras de palavras — como
“Na fermentação dos povos, como na dos líquidos, as escumas e im-
purezas sobrenadam e ficam de cima, por mais ou menos tempo, até
que descem e se evaporam” —, outras pela simples verdade e beleza
do conceito — como “Sem as ilusões da nossa imaginação, o capital
da felicidade humana seria muito diminuto e limitado”, “A nossa vida
é quase toda um sonho, e sonhamos mais vezes acordados, do que
dormindo”, “A variedade é o distintivo da sabedoria, como a unifor-
midade e monotonia o da ignorância. A infinita sabedoria de Deus se
revela pelas infinita variedade de suas obras e maravilhas”, “Um século
censura o outro século, como em nossa vida uma idade condena a
outra idade”, etc. etc.
Nestes pensamentos resumidos e para assim dizer apurados é que
se pode conhecer bem qual é o poder e magia do estilo sobre nós, pois
a originalidade e beleza da forma com que os revestiu o autor, dando-
-lhes dobrado valor, faz com que melhor se insinuem e calem no nosso
espírito. Há muitos livros de máximas, mas raríssimo será o que se
possa equiparar a este em mérito, porque raríssimo será o que se ache
escrito em estilo tão admirável. E se o estilo é o homens, qual não seria
a nobreza de caráter e perspicuidade de inteligência do autor que com
elegância e delicadeza tal se soube exprimir? De todos os modernos
prosadores da língua portuguesa o marquês de Maricá é sem dúvida o
que mais a enriqueceu de formas concisas, como originais e belas em
sua mesma concisão.
E se da forma elegante passarmos à substância filosófica, que sábio
profundo e ao mesmo tempo que riquíssimo engenho não é o ilustre
moralista brasileiro, a que nenhum se avantaja e que bem poucos igua-
lam? Qual outro prestou mais serviços à humanidade com a sua pena,
pondo com tanta arte as mais sublimes verdades morais ao alcance de
todos? Assim, quer se atenda aos dotes do estilo, quer à natureza e valor
dos produtos do engenho, é este um dos mais distintos escritores do
século XIX, que aliás tantos conta de subido mérito.
Autores brasileiros  285

Tendo apreciado o nosso profundo moralista, marquês de Maricá,


em seu escritos, passarei em outro discurso a avaliar nos seus o nosso
distinto orador sagrado, frei Francisco de Mont’Alverne. Por hoje aqui
faço ponto.
FREI FRANCISCO DE MONT’ALVERNE*

Frei Francisco de Mont’Alverne;


sua biografia; seu sermonário.

LIÇÃO LXXXIX

Tenho, Senhores, de apreciar hoje um orador sagrado dos mais dis-


tintos por sua eloquência, frei Francisco de Mont’Alverne, franciscano
da província de Santo Antônio do Rio de Janeiro.
É um vulto grandioso de cenobita que vive ainda venerado e estima-
do pelas suas virtudes e talento na memória de quantos o viram e ouvi-
ram; é um solitário da moderna tebaida que, pelo ascético da vida e pu-
reza de costumes, nos desperta a ideia dos da antiga — Basílios, Antões
e Pacômios;98 é um ministro do púlpito que, por sua palavra irresistível
e rasgos sublimes, nos retrata a gigantesca imagem dos Crisóstomos,99
dos Bossuets100 e dos Vieiras; é o gênio da oratória envolto no burel e
circunscrito às quatro paredes de uma cela, por ele mais ilustrados que a
púrpura e os palácios dos reis. Os seus discursos sagrados, que parecem
de um verdadeiro inspirado, pela fecundidade engenhosa, entusiasmo e
unção que os caracteriza, são mananciais inesgotáveis em que se pode
beber a eloquência, que manava a jorros de seus lábios, e outros tantos
modelos de estudo para os que se propõem o ministério do púlpito, seja
pela substância suculenta e argumentação vigorosa, seja pelo movimen-
to e lampejos oratórios, seja pela cópia da dicção e belezas de estilo.
Vou dar-vos, em frase sucinta, o que mais vos pode interessar de sua
vida, toda monástica e consagrada ao estudo e solidão.
Nasceu frei Francisco de Mont’Alverne, cujo nome de batismo era
Francisco José de Carvalho, na cidade do Rio de Janeiro, a 9 de Agosto
de 1783, e morreu na de Niterói, a 2 de dezembro de 1858, com 74 anos
de idade, dos quais viveu 37 no claustro.
Autores brasileiros  287

Era filho legítimo de João Antônio da Silveira, natural da Ilha do


Pico, e sua mulher, Dª Ana Francisca da Conceição, natural do Rio de
Janeiro. O apelido de Carvalho, que lhe puseram seus pais ou ele tomou
para si, e que pela ventura era o de algum de seus ascendentes, faz su-
por ao Sr. Antônio Feliciano de Castilho,101 amigo e biográfico do autor,
que a sua linhagem não era das mais esclarecidas. Seja como for, o que
é certo é que assaz a ilustrou com seu nome, um dos mais distintos da
república das letras.
De sua educação na casa paterna, ou de seus primeiros estudos, nada
consta, mas é evidente terem sido aproveitados, pois foram os antece-
dentes de uma existência tão nobre como científica.
Possuído da mais ardente vocação para a vida monástica, entrou aos
17 anos de idade para o convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro,
então muito acreditado pelas letras de alguns de seus membros; e a 28
de junho de 1801 recebeu o hábito das mãos do provincial, frei Fran-
cisco de Santa Berna Monção, e adotou o nome de frei Francisco de
Mont’Alverne, que tanto devia ilustrar depois.
No claustro completou os estudos que começara no século, e por ma-
neira tão distinta que dentro em poucos anos viu-se elevado aos princi-
pais cargos de sua ordem, de que foi o principal ornamento. Eis a notícia
que a tal respeito se encontra na apologia do Sr. Castilho:

Colegial no convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro em 1804, parte


Mont’Alverne para São Paulo, a continuar os seus estudos com o famigera-
do teólogo frei Inácio de Santa Justina; em 1807 inicia-se nas ordens sacras;
em 1808 recebe o sacerdócio; em 1810 é despachado pregador e lente subs-
tituto no colégio de S. Paulo; em 1815, lente de filosofia no mesmo colégio;
em 1816, pregador régio e lente de prima; em 1818, examinador da mesa da
consciência e ordens, e teólogo da Nunciatura Apostólica; em 1819 é eleito
guardião do convento da Penha no Espírito Santo; em 1821 confirma-lhe a
ordem todos os privilégios de lente de prima, acrescentando-lhe os de uma
nova guardiania; em 1824 é elevado unanimemente à secretário da provín-
cia franciscana; em 1825, a custódio; em 1829 é nomeado, por uma honrosa
provisão do bispo do Rio de Janeiro, mestre de retórica e suplente de todas
as mais cadeiras do seminário de S. José, e depois examinador sinodal; em

  Poeta e prosador português (1800-1875); ver também nota 70.


101
288  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

1836 cega de amaurose em consequência da excessiva leitura; em 1841 é


jubilado no lugar de lente. A estas nomeações acresceram as de sócio de
diversas sociedades literárias nacionais e estrangeiras.

Foi não só um dos mestres mais abalizados, mas um dos pregadores


mais eloquentes que teve a sua ordem, aliás tão fecunda naquela quadra
em bons teólogos e oradores. Quando em 1816 foi nomeado pregador
régio brilhavam com bem merecida reputação na tribuna sagrada do Rio
de Janeiro S. Carlos,102 frei Francisco de Sampaio,103 monsenhor Neto104
e o cônego Januário;105 com todos esses gigantes da oratória, como ele
lhes chama, teve de lutar, e a todos eclipsou por sua eloquência, que logo
o assinalou como o primeiro entre oradores tão distintos.
Não será fora de propósito ouvir da própria boca dele qual era o esta-
do de esplendor a que se achava a eloquência do púlpito no Rio de Janei-
ro quando a família real portuguesa veio residir no Brasil, ou em 1808.

A fundação da capela real do Rio de Janeiro (diz no discurso preliminar ao


seu sermonário), monumento imortal da piedade do Senhor D. João VI, foi
a arena onde se mostrou em toda a sua pompa o gênio brasileiro. Oradores
acostumados aos triunfos do púlpito eram revalidados por jovens pregado-
res, que, animados com as suas primeiras vitórias, ardiam por ganhar novas
coroas. Era então a época dos grandes acontecimentos; e os sucessos que se
reproduziam dentro e fora do país ofereciam amplos materiais à eloquên-
cia do púlpito. Nós podemos afirmar com todo o orgulho da verdade que
nenhum pregador transatlântico excedeu os oradores brasileiros. A riqueza
da dicção reunia-se à pureza do estilo e à força da argumentação; e, para
que não faltasse uma só beleza, a doçura e a amenidade da expressão au-
mentava os encantos e a magia da ação. Assim verificou-se este pensamento
de um escritor francês: que a língua de Camões, pronunciada por um bra-
sileiro, devia realizar todos os prodígios e todas as seduções da harmonia.
O Senhor D. João VI costumava dizer que ele possuía no Rio de Janeiro
uma seleção de pregadores que não lhe permitia lembrar os que deixara
em Portugal. Quando algum escritor quiser um dia descrever os fatos mais

102
  Frei Francisco de São Carlos (1768-1829); poeta e orador sacro.
103
  Frei Francisco de Santa Teresa de Jesus Sampaio (1778-1830).
104
  Não foi possível elucidar a referência.
105
  Januário da Cunha Barbosa (1780-1846); orador sacro, poeta, historiador e político.
Autores brasileiros  289

notáveis que assinalaram aquela época, poderá dizer com o velho Chactas,
no sublime episódio do Atalá, falando de sua viagem à França no reinado
de Luís XIV, que ele assistiu às festas da corte do Rio de Janeiro e as orações
fúnebres de frei Francisco de Sampaio.

Tal é a verdade histórica no que se refere ao brilhantismo literário


desta época, atestada não só pelo primeiro atleta das lides oratórias,
como por todos os escritores contemporâneos.
Mas privado da vista, e por conseguinte do meio de continuar os
seus estudos habituais e exercícios oratórios, recolheu-se inteiramente
ao silêncio de sua cela o ilustre cenobita que havia admirado o mundo
com a torrente de sua caudal eloquência, e desde então não encontrou
mais na solidão do claustro e nas tribulações de espírito outra consola-
ção senão a que oferece a religião às almas elevadas e resignadas. Deixo
vossa consideração avaliar qual não seria para um homem acostuma-
do aos triunfos do púlpito e amante da glória, como todos os talentos
superiores, a dor de ver-se em todo o vigor da sua inteligência privado
da possibilidade de alcançar novas coroas por meio da palavra, que lhe
assinalava um lugar eminente entre seus êmulos. Se o orgulho era o
defeito deste grande homem, como querem alguns de seus biógrafos,
assaz longa e cruel foi a expiação que por ele sofreu com tão funesto
acidente.
Depois da perda da vista que o sequestrara do púlpito, 18 anos viveu
Mont’Alverne unicamente das recordações do seu passado glorioso, me-
tido no recanto de sua cela e completamente ignorado do mundo que o
admirara e então o esquecia, até que em 1854, quando perfazia 70 anos
de idade, por convite de S. M. Imperial, o Senhor D. Pedro II, se reer-
gueu do túmulo em que jazia em vida, para pregar na festa da S. Pedro
de Alcântara, celebrada na capela imperial. Eis como o Sr. Porto Alegre
descreve esta cena tão patética como grandiosa:

Um numeroso e inteligente auditório (diz este) se pregava em todo o âmbito


da capela imperial: uma corte luzida pautava as alas do templo; os corredo-
res, as escadas e todo o adro externo se povoava de espectadores desensofri-
dos, de homens, de mulheres, que vinham assistir a essa ressurreição, a essa
nova vida da palavra sagrada! Os velhos choravam, e como que remoçavam
aos assaltos de suas reminiscências, e os moços também choravam à vista
290  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

daquele sublime representante de tantas glórias, daquele antigo proprietá-


rio de tantas ovações e do aparecimento de um homem cujo nome vagava
entre nós como a sombra de um gigante.
[...]
Púlpito, templo e ele formavam uma só massa, uma só figura, um gigante
que, elevado a uma esfera superior, dominando todas as inteligências que
o escutavam, parecia desprender de seus lábios uma aurora de harmonias,
um lume ainda não admirado. A geração que o escutava, na imobilidade de
sua admiração como que se achava aniquilada diante daquelas proporções
gigantescas, daquela voz radiante, exumada da obscuridade do claustro e
oferecida ao sol da inteligência, como um primor de Fídias recuperado,
como outrora Laocoon, diante do qual a multidão de artistas do século de
Leão X parecia desanimada!
[...]
O seu gesto era a estatura do pensamento que o animava, as suas mãos fala-
vam e escreviam, a sua voz repercutia em todos os corações!

Um ano depois, por ocasião da festa de S. Francisco de Assis, funda-


dor da ordem seráfica, o soberano visitava em sua cela o ilustre solitário,
e o brindava com a cadeira do grande Anchieta, relíquia preciosa e dá-
diva digna de quem a fazia e de quem a recebia.
Nos últimos anos de sua atribulada vida tornou-se este insigne varão,
além de cego, surdo, e ia morrendo como aos poucos, quando no último
de novembro de 1858, achando-se em Niterói a tomar ares, foi acome-
tido de uma apoplexia fulminante, de que faleceu ao cabo de dois dias.
Já anteriormente no convento de S. Antônio tinha sofrido um ataque
de paralisia ao recolher-se de um passeio: era como o prenúncio do seu
próximo fim.
Fizeram-se-lhe, por ordem do Senhor D. Pedro II, honras fúnebres
como a um príncipe. O seu corpo foi embalsamado, transportado para
o Rio de Janeiro em uma das galeotas imperiais e recebido ao desem-
barcar por quanto havia de mais distinto na corte; a chave do seu caixão
foi entregue, para Sua Majestade, ao mordomo da casa imperial; a sua
cela foi fechada com a sua cadeira vazia ao lado da de Anchieta, e assim
permanecerá.
Eis o seu retrato traçado pela hábil pena do Sr. Porto Alegre:
Autores brasileiros  291

Era de estatura alta, fronte espaçosa, olhos grandes, magro e de movimen-


tos rápidos; seu aspecto venerando; seu ar inspirado; assemelhava-se ao
infeliz Savonarole, em quem, diz Michet, residia o espírito dos profetas.
Afável e cortês em seu trato familiar, discutia raras vezes com calma, e
frequentemente com paixão.
Segundo o Sr. Castilho, três afetos mundanos conviveram sempre em
Mont’Alverne com os da piedade, e até por ele se acrisolaram: o amor da
família, o amor da pátria, o amor da humanidade. Foi frade sem deixar de
ser filho; foi frade sem deixar de ser cidadão; foi frade sem deixar de ser
homem. Antes o filho, o cidadão e o homem ficaram resplandecendo mais,
transfigurados mestiçamento no cenobita.

As suas obras oratórias imprimiu-as ele já no tempo de sua cegueira,


servindo-se para a correção de mão estranha, mas amiga, que o fazia
sob sua direção e ditado. Constam elas de quatro volumes em oitavo
francês, publicados no Rio de Janeiro em 1853, sendo o primeiro prece-
dido de um belo discurso preliminar.
Tendo-vos traçado a grandiosa figura do orador sagrado Mont’Alverne
tanto nas principais circunstâncias de sua vida, que deixo especificadas,
como na ideia geral, que vos dou do seu prodigioso talento, passarei em
outro discurso a apreciá-lo analiticamente em um dos seus melhores
sermões, fazendo por hoje aqui ponto.

LIÇÃO XC

A eloquência sagrada ou do púlpito, que versa sobre os assuntos mais


augustos e sublimes da religião, era completamente desconhecida pela
Antiguidade étnica ou pagã, que deificava tudo quanto existe na nature-
za ou tudo quanto é obra do Criador, e cujos fabulados nomes com seus
supostos atributos se não prestavam a concepções oratórias de ordem
elevada, quer no pensamento, quer nos afetos. Bem longe estavam Cíce-
ro, Demóstenes e Ésquines, modelos da eloquência da tribuna profana,
de suspeitar esta nova espécie de eloquência, cuja criação e existência
futura não podiam passar então pelo espírito, porque foram o resultado
292  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

de uma grande revolução no mundo moral operada por Cristo ou pelo


próprio Deus.
A eloquência dos oradores sagrados só começou a florescer com o
aparecimento e propagação do cristianismo, cujas sublimes verdades,
patético grandioso, pureza e santidade ministram matéria a toda sorte
de concepções oratórias da ordem a mais elevada. Antes disso a elo-
quência só tinha por objeto assuntos puramente humanos, sem elevar o
nosso espírito a Deus.
Nos primeiros tempos do cristianismo muitos foram os Padres da
igreja que brilharam por sua eloquência, e entre os mais distintos con-
tam-se os Agostinhos, os Ambrósios, os Gregórios Nanziazenos e os
Crisóstomos. Nos tempos modernos foram verdadeiros lumes de elo-
quência entre os franceses Bossuet, Massilon e Bourdaloue; entre os por-
tugueses, o padre Antônio Vieira; e entre nós, depois de nossa existência
política como nação, frei Francisco de Mont’Alverne, com quem me vou
hoje ocupar, apreciando-o em um dos seus melhores discursos sagrados.
Antes porém de o fazer devo reproduzir o que diz com justiça deste
nosso eloquente orador e seus sermões a Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Brasil nos seguintes termos:

O mestre de tantos mestres está acima dos elogios que poderíamos fazer à
sua obra; a impressão que ela produziu no espírito público já selou o seu mé-
rito; ninguém houve que não admirasse a frase castigada, o estilo correto, a
inspiração nunca amortecida, a ilustração sempre abundante, a propriedade
e brilhantismo das imagens, a argumentação enérgica do grande pregador
brasileiro; ninguém houve que não se deixasse prender à sua eloquência arre-
batadora, que às vezes inflama como o raio, às vezes suaviza como o orvalho
matutino, e acaba sempre por acender a esperança em nossa alma e entornar
a fé em nosso coração; ninguém houve finalmente que, ao ler as obras ora-
tórias de frei Francisco de Mont’Alverne, não conversasse ao mesmo tempo
com um Padre sábio, com um filósofo profundo e com um poeta inspirado.

Este juízo em nada desdiz do mérito real do autor, que possui todas
as qualidades que constituem o grande orador, como riqueza de enge-
nho, elevação nas ideias, vigor de raciocínio, facúndia natural, entusias-
mo nunca desmentido, propriedade de dicção, estilo fluente, imaginoso
e cheio de majestade. A sua eloquência é verdadeiramente arrebatadora,
Autores brasileiros  293

porque tem origem nas duas principais fontes do sublime, a elevação do


pensamento e o patético, bem que mais domine neles o sublime prove-
niente da primeira que da segunda. Verdadeira inspiração, rasgos mag-
níficos, movimento oratório, energia, pinturas admiráveis, arrojo de fi-
guras, nobreza, elegância, tudo se encontra nos seus discursos, muitos
dos quais podem servir de modelo no seu gênero.
Dentre os seus sermões escolherei para objeto de minha análise um
dos mais notáveis, o que fez sobre a incredulidade, e que passarei a ler-
-vos para que possais ajuizar de sua eloquência.

Haec cogitaverunt, et erraverunt; excoecavit enim illos malitia eorum.


(Os pecadores formaram estes pensamentos e enganaram-se;
porque sua malícia os cegou.)
Sabedoria, C. 2, V. 21

Não era preciso ir mais longe para revelar os mistérios tenebrosos desta
filosofia ímpia, que tinha achado o segredo de corromper o coração e o
espírito, para levantar uma barreira contra os progressos do Cristianismo.
Seria baldado todo o empenho das paixões para apagar a letra imortal gra-
vada em nosso rosto; a mão do homem não ousará jamais abalar a pedra
sobre que descansa a obra dos séculos; mas o gênio da revolta subtraiu à
Fé milhares de seus filhos, lisonjeando seus sentidos e opondo à rigidez da
moral o encanto, o atrativo e as seduções do prazer. Haec cogitaverunt, etc.
Esta árvore funesta, cujos frutos envenenados fizeram morrer a geração que
a viu nascer, reverdece a despeito dos esforços reiterados e vitoriosos da
Religião que a desgalhara, que a cortara mesmo. Novos filhos da orgulhosa
Babilônia reproduzem seus combates e ameaçam, depois de tantas derrotas,
quebrar as colunas que sustentam o edifício eterno. A besta de 10 pontas
se levanta sobre as ruínas da Revelação e da moral universal, e marcha à
testa de suas coortes para esmagar a Esposa de J. C. — Eu vou falar sem
figuras. Uma seita funesta, depois de sufocar todos os princípios da Reve-
lação, assoalha máximas subversivas da são doutrina. Rebelde às leis, que
contrariam seus desejos e envenenam sua alegria, corrompe uma mocida-
de ignorante e sem educação e forte em seu número, e ainda mais forte
em sua audácia; ameaça os restos da sociedade cristã; cobre de vilipêndio
os ministros da Religião; zomba de nossos mais alados mistérios; insulta a
294  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

majestade do culto; despreza nossos Sacramentos e proscreve a existência


de Deus e a vida futura. Haec cogitaverunt, etc.
À vista de uma desordem que torna-se cada vez mais contagiosa, podería-
mos guardar um silêncio criminoso? E quando o inimigo está às portas e
ousa invadir a cidade Santa; quando a impiedade canta ufana seus triunfos
sobre as ruínas da Religião, deixaremos de levantar nossa voz com medo de
suas blasfêmias e suas ameaças? Seguro da verdade de uma Religião divina,
eu me apresento hoje no meio de vós, para rasgar a venda fatal que cega o
ímpio e o incrédulo; e fazê-lo corar de pejo e de vergonha, manifestando
a fraqueza de seus princípios e humilhando sua arrogância e seu orgulho.
Não me condenes, ó meus irmãos, porque pareço ofender a vossa pieda-
de, procurando sustentar a fé no meio de um auditório cristão. Avaliai-me
como eu mereço; não penseis que eu julgo a todos infiéis às promessas do
batismo, que vos alistou na santa Família de J. C.; mas há por ventura entre
vós um só que não seja testemunha dos ataques dirigidos todos os dias con-
tra a Religião? Há entre vós um só que não ouça nos lugares públicos, nos
jantares, nas mais pequenas reuniões, dificuldades e objeções que têm por
fim abalar os mais sólidos fundamentos em que está firmado o Evangelho?
Se felizmente não tendes cedido às seduções desses infelizes que procuram
sacudir o jugo da Religião para viver entregues às suas paixões e que, não
contentes de provocar a vingança divina, calcando os elementos da moral
observada por os mesmos pagãos, procuram arrastar-vos na sua prevarica-
ção para lisonjear sua vaidade, vós encontrareis no meu discurso não só lu-
zes bastantes que ilustrem a vossa Fé, mas ainda razões que vos habilitem a
repelir as máximas execráveis com que esses homens do pecado procuram
roubar o dom mais caro e mais precioso que possuís sobre a terra, a vossa
crença. Mas, se alguns desses ímpios existe no meio de nós, reconhecerá
qual é a verdadeira causa desta incredulidade, a que desgraçadamente se
tem abandonado. Quem quer porém que vós sejais, ref leti na vossa vida.
Há no crime uma circunstância bem terrível e bem assustadora, e vem a ser
que, depois de nos ter deixado arrastar de toda a sorte de excessos e de nos
engolfar nos prazeres, quase sempre caímos nesta incredulidade positiva, o
último dos flagelos do Senhor, que, fatigado do abuso que fazemos de suas
graças, arranca de nosso coração por um segredo de sua justiça o derradei-
ro sentimento de nossa fé, da qual só pendem os meios de nos reconciliar
com Ele. Ímpios, vós sereis expostos à luz fulminante da Revelação e da
razão pública, e forçados a vergar diante do tribunal inf lexível da Religião!
Autores brasileiros  295

Pecadores, vós temereis à vista do abismo que vossas desordens cavam de-
baixo de vossos pés, fechando todos os caminhos da conversão! Ó Deus!
Os gritos da Religião oprimida e enxovalhada chegam ao vosso trono! Dai
à minha voz o ruído espantoso do trovão e penetrai os corações dos que me
ouvem do terror de vossos juízos.

[...]

É sem dúvida um dos mais belos caracteres da Divindade da Religião


submeter-se às mais fortes discussões e não temer as provas mais difíceis
e as mais sublimes indagações. Filha da Luz increpada, a Religião de J. C.
desceu do seio do Eterno com todo o brilho e todo a magnificência da
Sabedoria Divina; produção imortal do Todo Poderoso, ela não temeu as
investigações da sabedoria humana e as conjurações da impiedade. Se-
riam ainda hoje um mistério incompreensível à razão e ao bom senso os
sistemas tenebrosos desta inteligência tão gabada do homem, empenhada
em arruinar a obra mais bela, mais sublime e mais primorosa do Onipo-
tente, que, na profundidade dos seus conselhos, traçara o código mais
bem organizado e mais harmonioso de que todos os sistemas do mundo;
se as empresas sediciosas do crime não traíssem elas mesmas sua causa e
seus próprios interesses.
Cercada da majestade de seus mistérios, precedida por pompa dos Patriar-
cas e dos chefes das famílias mais respeitáveis do Universo, anunciada por
os oráculos mais famosos, a Igreja de J. C. se levantou sobre as ruínas dos
impérios, segundo a predição do seus Profetas; apagou o brilho do Liceu,
do Pórtico e da Academia; zombou da política dos romanos; fez emudecer
os filósofos; resolveu os problemas mais difíceis da natureza e dos destinos
do homem; e à testa de milhões de mártires prosseguiu sua marcha triun-
fante desde as planícies da Síria além das ilhas do Atlântico, e das cataratas
do Nilo até os mares gelados do polo.
Por que motivo, pois, aparecem hoje estas novas coortes armadas com as
armas do impiedade para promover a ruína de uma Religião vencedora
da filosofia e da prepotência dos príncipes da terra? Como é incrível que o
homem tenha podido encontrar nódoas nas roupas suntuosas da Augusta
filha do príncipe, que foram purificadas no sangue do Cordeiro e saíram
mais brilhantes do que a prata, levada ao cadinho sete vezes? Chegou o
tempo desgraçado, em que se devia levantar do seio mesmo da igreja,
segundo a predição do Apóstolo, uma sociedade de falsos profetas, que
296  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

seduziriam os povos e estenderiam um véu sobre seus olhos para não ve-
rem a verdade. Novos discípulos de Epicuro invectivam os ministros da
Religião, porque envenenam com os tristes pensamentos da vida futura
prazeres de que gozam nesta vida. Qui dicunt videntibus nolite videre. Ini-
migos irreconciliáveis da verdade, eles nos instigam para que atraiçoemos
o nosso ministério, ocultando a seus olhos os preceitos severos da moral
cristã e os castigos eternos que aguardam seus infratores. Loquimini nobis
placentia: videte nobis errores. Eles pretendem que roubemos de sua lem-
brança a ideia de um Deus vingador dos crimes do homem e que deixe-
mos de propugnar por os interesses da fé. Auferte a me viam, declinate a
me semitam. Pouco importa que sejamos cúmplices de suas prevaricações,
contanto que encantemos sua imaginação com os quatros risonhos de um
Deus indiferente para as ações do homem, cheio de condescendência com
as suas paixões e tão dissoluto como os Deuses do paganismo: Cesset a
facie nostra Sanctus Israel.
Uma liberdade desenfreada insulta nossas máximas as mais veneráveis;
nossos mais respeitáveis Mistérios são o objeto das conversações ordinárias
e o motivo das zombarias de moços libertinos, a quem as desordens de
sua vida aparta dos mais pequenos empregos. A incredulidade contamina
todos os estados; seus escritos sopram o contágio de todas as partes: os
pais abandonam a educação de seus filhos e dão o exemplo funesto de sua
indiferença para a Religião. A esposa persuade-se que seu gosto é a regra
de seus deveres; a virtude é desprezada, e o vício recebe as homenagens e a
consideração da virtude; a Fé enfraquece todos os dias; e no fim de alguns
anos veremos uma mocidade que nem conhecerá o primeiro Autor e Con-
servador de sua existência; perguntaremos a um menino que Religião pro-
fessa, e ele responderá que não sabe: a erva crescerá nas portas dos nossos
templos e os animais imundos virão pastar nos mesmos lugares em que os
Fiéis recebem hoje o pão da vida.
Quais poderão ser as causas que forcem o ímpio a abjurar sua crença antiga;
menos apreciar a religião em que foi educado; alterar as primeiras lições de
sua mocidade; e proscrever a convicção de todos os sábios do Universo? Es-
sas miseráveis compilações que formam todos os seus conhecimentos; esses
dicionários em que está impresso o cunho da má fé, da ignorância, serão
capazes de vos deixar indecisos sobre a verdade de uma religião, e de uma
religião tão bem fundada como o cristianismo; poderão contrariar tantas
provas, tantos exemplos e tantas autoridades; e desmentir uma tradição de
Autores brasileiros  297

18 séculos? Todas essas dificuldades que alegam não poderão suspender o


estabelecimento da fé em todo o mundo; e terão força para destruí-la em o
vosso coração? Este Evangelho vitorioso de todos os antigos filósofos será
abolido entre vós por os delírios desses apóstolos da impiedade, que nada
dogmatizam que não tenha sido confutado?
Eu quero supor convosco que tudo acaba na morte; que não existe um Deus
e uma eternidade, como os ímpios afirmam todos os dias; por ventura a ideia
de um Ser Supremo não é uma origem de consolação, que falta àquele que,
julgando-se só neste mundo, não encontra algum confidente de suas penas?
Não é um orgulho verdadeiramente digno da virtude poder dizer a Deus: Ó
Vós, que ledes no meu coração? Vós vedes que eu uso, como alma forte, e
como homem justo, da liberdade, que me destes? Quero ainda admitir que
todos os princípios da Fé apareceram um dia despojados de todos os seus
prestígios; que todo o aparato da Religião se dissipará na morte, como um
sonho: mas perdeis alguma coisa na vida respeitando esses princípios? Não
adquiris ao contrário o respeito e o louvor que a virtude obtém, a despeito
mesmo do mundo? Privando-nos desses gozos desordenados, a que a Reli-
gião se opõem com toda a sua inflexibilidade, não vos livrais dos trabalhos,
das misérias, da desonra e dos cuidados que as paixões arrastam após si?
Qual será porém vosso destino, quando vossos olhos abertos à luz, que
então fugirá de vós, descobrirem em toda a sua pompa esta Religião que
julgáveis uma fábula? Qual será a vossa sorte, quando todas estas verdades,
que o vosso coração abandona agora, se levantarem de repente diante de
vós, para vos julgar? Que horror quando, desenganados de vossas vaidade,
fordes obrigados a exclamar: Ergo erravimus a via veritatis! Desgraçados de
nós! Estávamos na estrada segura da virtude, e a abandonamos para nos-
sa perda!... Tínhamos em nossas mãos o archote que nos devia iluminar e
conduzir; e apesar de termos os olhos abertos, nos desviamos do caminho,
e nos precipitamos no abismo!...
Mas, que necessidade tenho eu de empregar os recursos da argumentação,
quando nossa própria consciência advoga à causa da Religião e da moral,
apesar de todo o orgulho da filosofia e todo o furor das paixões? Para que
procurar convencer a razão, quando a crença do gênero humano, quando o
sentimento interior de cada um homem reclama irrefragavelmente a exis-
tência de uma eternidade e uma justiça imparcial, que sabe recompensar
os esforços da virtude e castigar as transgressões da lei? Nós podemos dar
àqueles que todos os dias assoalham dúvidas contra a Religião e ousam
298  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

achar contradições no sistema sublime da Fé esta mesma resposta de Ter-


tuliano aos pagãos, que sem cessar ofereciam objeções contra os nossos
veneráveis mistérios: Eles combatem o que não entendem, atacam o que
não examinaram jamais, e só conhecem por um ouvir dizer. Eles maldizem
o que ignoram, e ignoram porque seu ódio lhes impede conhecer e profun-
dar. Raivosos por não poderem quebrar o freio que os subjuga, eles vomi-
tam blasfêmias contra uma Religião que combate o vício e aterra o ímpio
com a lembrança de uma vida futura: Mallunt nescire, quia jam oderunt.
Mostrai-me, dizia Santo Agostinho, e eu vos faço hoje o mesmo desafio, mos-
trai-me um homem perfeitamente sábio e virtuoso, que seja casto, sóbrio, de-
sinteressado, ou, para falar mais coerentemente, um homem que tenha sem-
pre reunido estas qualidades e recuse acreditar a Religião: e então confessarei
que as desordens de sua vida não influíram na sua incredulidade.
Mas debalde vos fatigareis em procurar uma prova tão decisiva, continua
Santo Agostinho, porque é incompatível com a virtude o desprezo de uma
Religião, que é o penhor mais seguro da pureza dos costumes. Não o duvi-
deis, não é a força do espírito, não é a razão, e ainda menos a convicção, que
vos arrasta à incredulidade; é a covardia de um coração corrompido, que
não, ousando vencer suas vergonhosas inclinações, nem podendo suportar
a vista de seus crimes, nem encarar as ameaças terríveis da eternidade, cuja
certeza não pode aniquilar, forceja por distrair-se de seus terrores, repetin-
do sem cessar: que não há inferno, que tudo acaba na morte. São como estes
viandantes que, tendo medo da noite, caminham cantando para animar sua
coragem e enganar o pavor que os domina. E quando não, dizei-me com in-
genuidade, e com franqueza: se esta Religião, que provoca vossos rancores,
pudesse adoçar a severidade de suas máximas; se, por exemplo, não fosse
necessário para ser Cristão nem penitência nem mortificação dos sentidos;
se por ventura não fosse preciso, para merecer os óculos da fé, dissolver o
comércio ilícito que vos seduz; acabar com os excessos vergonhosos que
absorvem vosso tempo, vossos bens, e põem a risco vossa honra e vossa
saúde; proscrever as sociedades perigosas em que viveis, e abraçar um gê-
nero de vida que contraria vossas inclinações, se o Evangelho não condenasse
o mundo, e não houvesse inferno e penas eternas; deixareis de abraçar a Re-
ligião cristã com todo o transporte e toda a devoção? Estes mistérios, a quem
imputais vossa incredulidade, seriam um obstáculo para reunir-vos em seu
seio? Duvidaríeis reconhecer a divindade de uma Religião tão antiga, tão res-
peitável, tão bem provada, que não ataca as paixões que não vos dizia algum
Autores brasileiros  299

medo e vos nutria das mais lisonjeiras esperanças? Sem dúvida que não: eu
ouso prevenir vossa resposta. Não é pois a obscuridade ou a sublimidade dos
mistérios da Religião que vos escandaliza; é a santidade, é a severidade de
sua moral que vos revolta: vós sois descontentes de suas provas, porque sois
espantados de seus dogmas: vós sois incrédulos, porque sois viciosos.
O transtorno da razão do pecador! É preciso que um Deus seja excluído do
número dos Seres, porque se existe um Deus, o pecador é desgraçado!... É
forçoso que a redenção do gênero humano, a encarnação do Verbo Divino,
sua Cruz, sua morte e sua ressurreição sejam fábulas porque, se tudo isto
é verdade, o pecador é um ingrato!...Convém que o Evangelho e suas má-
ximas, o jejum, a abstinência, a confissão e os outros Sacramentos sejam
partes da imaginação e da impostura, porque, sendo obra de um Deus e
deveres impostos ao homem, o pecador é um insensato, é um rebelde!...
É mister que o inferno e seus fogos sejam vãs puerilidades, porque, tendo
uma existência, serão a partilha do pecador!...
Triunfai, ímpios; cerrai vossos olhos à luz que não cessa de iluminar-vos,
zombai dos princípios mais sublimes da Fé, no meio das delícias da mesa,
entre os companheiros de vossas dissoluções; insultai a Divindade, quando
a saúde vos anima, e o sangue escaldado por o vinho borbulha e ferve nas
vossas veias. Eis aqui o Senhor, que bate com força à vossa porta de barro.
Chegou o fim, diz o Senhor por Ezequiel, o fim chegou, agora o fim está
sobre ti: Finis venit, renit finis, nunc finis super te. A justiça, que julgavas
adormecida, acordou contra ti: ela está à tua porta: Evigilavit adversum te:
ecce venit. Todos os horrores da eternidade te pareciam sonhos vãos: tu di-
zias que minhas ameaças se guardavam para muito tarde; eu agora te ferirei
de perto: amontoarei todos os teus delitos sobre a tua cabeça: e tu saberás
que eu sou o Senhor que te firo: Et imponam tibi omnia scelera tua, et scietis
quia ego sum Dominus percutiens.
Correi ao leito de suas dores; vede com que humildade protesta sua con-
vicção este Espírito forte, que nos círculos mais brilhantes menosprezava o
Deus de seus pais! Ministros do Senhor, não temais aparecer diante deste
frenético, que ainda ontem nos tratava com tanta ignomínia, e proclamava
que nós éramos inúteis e pesados à sociedade. Não é já o pretendido filó-
sofo, que nos chamava fanáticos e tinha jurado romper todas as relações
com as pessoas de nossa classe; é um homem convencido de suas iniqui-
dades, certo destas mesmas verdades, de que escarnecia na efervescência
das paixões. Vede como está carregado de relíquias dos Santos!... Ele, que
300  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

desdenhava destes amigos de Deus, que negava a existência da outra vida,


quer entrar agora no seu nada com estes testemunhos de uma vida futura!...
Era nesta ocasião que eu quisera dirigir-me a este pecador, a ponto de en-
trar no seio da eternidade e obrigá-lo a falar em meu lugar contra a incre-
dulidade. Era neste momento que eu quisera reunir todos os incrédulos em
torno do seu leito, e para confundi-los com uma prova irrefragável, dizer
com Tertuliano: “Ó homem, antes que vossa alma se retire da casa de barro
a que está unida, sofrei que vos chame à testemunho: Consiste in medio,
anima. Falai neste derradeiro momento, em que só a verdade tem império
sobre vós; dizei-nos: este Deus, entre as mãos de quem ides cair, será um Ser
quimérico, com que se procura aterrar os espíritos fracos e crédulos? Quan-
do tudo desaparece aos vossos olhos, quando tudo cessa de existir para vós,
Deus só não vos parece imortal, imutável, o ser dos seres, e que enche os
céus e a terra? Nós, a quem reputáveis idiotas e supersticiosos, consentimos
agora que sejais o juiz da nossa fé e da incredulidade a que vos entregas-
tes com tanta pertinácia: A te testimonium f lagitant christiani ab extranea
adversus tuos. Ainda ontem chamáveis a morte o fim de todos os males, a
solução de todas as dúvidas, um doce sono depois de longas fadigas e um
porto depois da tempestade. Quando pois tudo morre convosco, por que a
morte vos parece tão temível? Cur in totum timens mortem, si nihil est tibi
timendum post mortem? Se acreditais que o nada termina vossa existência,
por que tremeis deste nada e receais as consequências de vosso destino?
Si nihil est ipsa, cur mentiris in te? Por que manifestais nestes derradeiros
instantes um tão novo sentimento de temor e respeito para o Ser Supremo?
Não é porque não o tínheis podido aniquilar em o vosso coração, apesar de
todos os furores da impiedade, e que a morte não fez mais do que desenvol-
ver as sementes da fé e da Religião que tínheis sempre conservado?”
E de que serviria ao ímpio neste momento solene chamar em seu socorro
as máximas horrendas de uma filosofia insensata? De que serviria procurar
em sua alma oprimida de cruéis remorsos os sofismas de que se tinha for-
tificado em sua vida?
Nestes últimos instantes o ímpio verá só a Deus: o invisível será visível a
seus olhos; suas sensações não serão já despertadas por os objetos sensíveis;
tudo desaparecerá em torno dele: e Deus irá sentar-se no lugar de todos
este encantos que o lisonjearam e constantemente o enganaram. As recor-
dações do passado só encontram pesares que o abatem; o que se deixa ver
a seus olhos só apresenta imagens que o af ligem; o pensamento do futuro
Autores brasileiros  301

derrama em sua alma terrores que o assombram. Abandonado das criatu-


ras, que lhe escapam; deste mundo, que desaparece; dos homens, que não
lhe podem valer; de Deus, a quem considera seu inimigo; ele se resolve na
sua aflição, atormenta-se, agita-se, para fugir da morte, que lança mão dele,
ou ao menos para fugir de si mesmo. Ele articula palavras entrecortadas de
gemidos, formadas por a desesperação e que apenas são entendidas; lança
em torno de si vistas ferozes, filhas do medo e da raiva; suspira profunda-
mente no meio das convulsões horríveis que anunciam a chegada de seu
juiz. No meio desta luta seus olhos ficam imóveis; suas feições se alteram;
seu rosto se decompõe; sua boca lívida se entreabre por si mesma; todo o
seu corpo treme; e por este último esforço sua alma desgraçada arranca-se
de sua prisão de lodo, e cai entre as mãos de um Deus terrível!... Ó Religião,
eis aqui teu triunfo e tua apologia mais completa.
E não temeis, ó meus irmãos, ser abandonados à depravação de vosso co-
ração e arrastados a esta incredulidade que vossos crimes provocam sem
cessar? Habitantes de Jerusalém, homens de Judá, dizia o Senhor por o seu
profeta, sede árbitros entre mim e a vinha que eu plantei com todo o meu
cuidado. Que benefícios devia eu prestar-lhe e não os tenho feito? Não de-
via pois esperar uma vindima que correspondesse aos meus esforços? Mas
vós vereis o procedimento que hei de ter para com ela. Et nunc ostentam
robis, quid faciam vinae meae. Arrancarei a sebe que a conserva; destruirei
os muros que a defendem; ela será calçada e aberta de todos os lados; os
cardos e os espinhos a cobrirão: e eu mandarei que as nuvens não chovam
sobre ela. Et nubibus mandabo, ne pluviant super eam imbrem.
Que coisa mais justa, diz S. Jerônimo, do que retirar Deus suas graças da-
queles que se têm feito indignos, a fim de que, não querendo reconhecer o
excesso de suas bondades, experimentem os rogares de sua justiça? O Se-
nhor, conforme a expressão do Evangelho, tratara os maus com toda a dure-
za de que é capaz, e arrendará sua vinha a outros vinheiros que realizam as
condições do seu arrendamento. Desgraçados de nós! O Senhor cumprirá
bem depressa, em prejuízo nosso, esta horrível ameaça. Deus já abandonou
uma parte de nossos irmãos. Quantos possuem os mesmos sacramentos e
não fazem deles o uso que deviam fazer? Quantos respiram o mesmo ar, e
não conservam a mesma fé? Quando uma parte do corpo é cortada, não de-
vem as outras temer que lhes aconteça o mesmo dano? Quando um edifício
é incendiado, podem os que o avizinham ser estranhos ao perigo? Por que,
ó meus irmãos, por que não poreis um termo às vossas desordens? Quando
302  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Deus entorna seus benefícios com tanta profusão; quando não cessa de cha-
mar-vos por suas inspirações santas e as exortações de seus ministros, não
achais ainda o momento de vos subtrairdes aos vossos desvarios?
Vinde, Ó Deus, vinde mostrar a este povo ingrato os esmeros de vossa be-
neficência! Vinde acabar de confundi-lo com o espetáculo do vosso amor!
Vede, ó meus irmãos, o Reparador, que foi ferido por as iniquidade de seu
povo! E com que eloquência repreende vossa ingratidão e vossa insensibili-
dade! Como é sublime a linguagem que escapa das feridas, abertas por nos-
sos crimes, no corpo de Jesus Cristo! Quando ele mesmo caminha diante
de nós, enchendo com seus sofrimentos toda a letra da lei; quando ele nos
penhora a salvação, e a misericórdia nos transportes de sua ternura, ousa-
remos ainda opor obstáculos à nossa conversão? Ecce Homo! Eis aqui, nos
diz ele, eis aqui o Medianeiro, de quem tínheis necessidade para serdes re-
conciliados com Deus! Eis aqui o Salvador, que só podia curar vossas enfer-
midades e livrar-vos do castigo que tínheis merecido! Vinde a mim, ó meu
filhos, vinde esconder-vos nas minhas chagas; vinde banhar-vos no sangue
que se derrama do meu coração! Vossas forças não bastam para combater
as vossas paixões? Eu combaterei convosco, eu vos comunicarei a minha
força e triunfarei dos vossos inimigos. Cristãos, o tempo foge e desaparece;
não percais o momento de vos reconciliardes com o vosso Deus. E quem
ousará separar-vos mais dele? Quem sufoca em vosso peito a linguagem
do arrependimento? Por que tardais em implorar a misericórdia de nosso
Deus? Dizei com a mais viva contrição: “Meu Deus, meu Jesus, meu Salva-
dor, não merecemos tanto amor, não merecemos tantos sacrifícios: temos
insultado vosso nome, temos profanado vosso Sacramento. Somos réus de
vossa justiça: merecemos vossos f lagelos. Mas quem nos livrará de tantas
desgraças? Quem nos defenderá de vossa ira, quando se acender contra nós
o vosso furor? Deus de bondade, compadecei-vos de nossa miséria! Deus
de misericórdia, tende piedade de nossa desgraça. Pesa-nos, Senhor, de
tantas iniquidade: pesa-nos, ó Deus, de tanta ingratidão! Arrancai, Senhor,
este coração, que só serve para ofender-vos; dai-nos um coração que seja
digno de vós. Meu Pai, meu criador, meu redentor, vede nossas lágrimas;
ouvi os nosso gemidos. Perdoai-nos, Senhor, por vosso sangue, por vossas
chagas, e por vossa misericórdia.
Começa por ser exórdio do sermão que vos li uma peça magnífica
em tudo, pois nos dá logo testemunho da eloquência caudal, força de
Autores brasileiros  303

argumentação e nobreza de estilo do autor. Dele só vos reproduzirei o


final, notável pelas figuras:

Ímpios, vós sereis expostos à luz fulminante da revelação e da razão pública,


e forçados a vergar diante do tribunal inf lexível da Religião! Pecadores, vós
tremereis à vista do abismo que vossas desordens cavam debaixo de vos-
sos pés, fechando todos os caminhos da conversão! Ó Deus! Os gritos da
Religião oprimida e enxovalhada chegam ao vosso trono! Dai à minha voz
o ruído espantoso do trovão e penetrai os corações dos que me ouvem do
terror dos vossos juízos.

Vede que veemência nas apóstrofes, que viveza nas imagens, que ar-
rojo nas figuras, em que se nota a valente prosopopeia da Religião per-
sonalizada; e como é bela a apóstrofe última, que termina em súplica:
“Ó Deus!... Dai à minha voz o ruído espantoso do trovão e penetrai os
corações dos que me ouvem do terror de vossos juízos.” Não era de certo
possível terminar melhor este soberbo exórdio em que o orador por um
modo esperado chama a atenção para o elevado assunto de que pre-
tende tratar. Outro qualquer pediria a atenção do auditório em termos
obsequiosos; ele não, arrebata-a e prende-a pela força de sua eloquência
a que nada resiste.
Da pintura do ímpio à hora da morte reproduzirei o seguinte trecho:

Abandonado das criaturas, que lhe escapam; deste mundo, que desapare-
ce; dos homens, que lhe não podem valer; de Deus, a quem considera seu
inimigo; ele se revolve em sua af lição, atormenta-se, agita-se, para fugir
da morte, que lança mão dele, ou ao menos para fugir de si mesmo. Ele
articula palavras entrecortadas de gemidos, formadas por a desesperação,
e que apenas são entendidas; lança em torno de si vistas ferozes filhas do
medo e da raiva; suspira profundamente no meio das convulsões horríveis,
que anunciam a chegado do seu juiz. No meio desta luta seus olhos ficam
imóveis; suas feições se alteram; seu rosto se decompõe; sua boca lívida se
entreabre por si mesma; todo o seu corpo treme, e por este último esforço
sua alma desgraçada arranca-se da sua prisão de lodo, e cai entre as mãos
de um Deus terrível!... Ó Religião, eis aqui o teu triunfo e tua apologia a
mais completa.
304  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Este quadro em que o orador descreve o ímpio que insultava ainda


há pouco a divindade no meio das devassidões e orgias, transido de sus-
to à hora da morte por ter de comparecer em breve diante do seu juiz
cujo poder menosprezara em vida, e, morrendo entre todas as torturas
de espírito, desespera no leito de dor, é soberbo desde princípio a fim,
e pesar tenho de não poder reproduzir todo por ser extenso. Vede no
entanto como nada falta a essa admirável descrição da agonia extrema
do réprobo, abandonado dos homens e de Deus, tão cheia de terrores
invisíveis e tão palpitante de verdade. A sua impressão é como a do raio,
que, caindo junto a nós, nos deixa espavoridos e assombrados. As ima-
gens as mais vivas e carregadas, o colorido o mais enérgico e real, o
jogo de afetos o mais atroz e natural, o susto e o desespero pintados nas
feições decompostas do moribundo, a sua alma desgraçada arrancado-
-se da sua prisão de lodo e caindo nas mãos de um Deus terrível, tudo
concorre para elevar neste quadro o terror ao seu auge e produzir uma
das mais espantosas cenas com todos os caracteres de verdadeira. Uma
pintura destas traçada por mão de mestre e animada pela voz e pelo
gesto devia de ser de grande efeito sobre o auditório para corrigi-lo de
impiedade e inspirar-lhe o santo temor de Deus.
Da peroração, que é também muito bela, só reproduzirei as seguintes
admiráveis palavras: “Vinde a mim, ó meus filhos; vinde esconder-vos
nas minhas chagas, vinde banhar-vos no sangue que se derrama do meu
coração!”
Que arrojo, esplendor e felicidade de figuras, “vinde esconder-vos
nas minhas chagas, vinde banhar-vos no sangue que se derrama do meu
coração”. Nunca a hipérbole foi mais bem empregada, porque uma tão
estupenda maravilha só pode atribuir-se com propriedade ao homem
Deus, a quem nada é impossível. Esta magnífica passagem deve dar-vos
a medida da beleza do estilo figurado deste grande orador, que é tão
eloquente na substância como na forma de seus discursos.
A eloquência manava a jorros dos lábios de Mont’Alverne, como dos
de Demóstenes e Bossuet, ao primeiro dos quais se assemelhava na força
da argumentação, e ao segundo na elevação do pensamento, sem que
lhe passasse pela ideia imitá-los, ou os tomasse por modelo. Pelo con-
trário, nada tem o grande pregador brasileiro que invejar a esses reis da
tribuna, com os quais corre parelhas na eloquência. São aproximações
Autores brasileiros  305

meras, feitas pela natureza. Assim é que Camões se parece com Homero,
e Tasso com Camões.
Tendo apreciado o grande pregador brasileiro Mont’Alverne em suas
obras oratórias, passarei em outros discursos a avaliar o nosso ilustre
comprovinciano João Francisco Lisboa nas suas. Por hoje aqui faço ponto.
ANTÔNIO HENRIQUES LEAL*

Antônio Henriques Leal;


seu trabalho biográfico sobre João Francisco Lisboa.

LIÇÃO XCI

No decurso de minhas preleções de literatura, tenho, Senhores, che-


gado ao período em que devo analisar os escritos do nosso ilustre com-
provinciano João Francisco Lisboa, uma das mais vastas inteligências
que conheci, e a cuja desenvolvimento, para bem dizer, assisti, quando
lhe dei lições de latim.
Antes porém de empreender esta análise, pede a justiça que emita
um juízo circunstanciado e crítico sobre o magnífico trabalho biográfi-
co com que foi enriquecida a edição das obras do autor, que atualmente
se está fazendo na província sob a direção dos Srs. Dr. Antônio Henri-
ques Leal e Luís Carlos Pereira de Castro, amigos do mesmo, e encarre-
gados por sua viúva de rever-lhe os escritos, tanto impressos como por
imprimir.
Passo pois a fazê-lo neste discurso.
O trabalho a que me refiro é da pena do primeiro dos dois Senhores
nomeados, e tão completo e bem escrito, sob o modesto título de “No-
tícia acerca da vida e obras de João Francisco Lisboa”, que nada deixa
a desejar ainda ao mais exigente; causa sumo prazer a todos os que
conheceram de perto o autor, porque, descrevendo-o desde o berço
até ao túmulo, nada omite da sua vida particular que possa interessar
o leitor, e põe no mais esplêndido relevo tudo o que se refere à sua vida
de cidadão, de jornalista, de advogado e escritor de vulto, quer como
crítico, quer como publicista, quer como historiador, apreciando pela
maneira a mais justa seu patriotismo, sua nobreza de caráter e mérito

* V. 5 (1873), p. 115-127.
Autores brasileiros  307

literário. Compreende este trabalho 195 páginas das 203 que, com nú-
meros romanos, precedem o primeiro volume das obras do autor, e
constitui um livro de tamanho regular: é portanto um livro que tenho
de apreciar.
O Sr. Dr. Antônio Henriques Leal, comprovinciano igualmente nos-
so e literato distinto, já era conhecido entre nós pelos diversos jornais
políticos ou não que tem redigido com habilidade e critério insignes,
mas esta soberba estreia que fez de seu talento como autor o torna im-
preterivelmente conhecido não só dentro como fora do país, porque
trabalho tão bem desempenhado não pode deixar de adquirir-lhe nome
onde quer que se fale a língua portuguesa. E é de notar que não pres-
ta ele unicamente serviço às letras pátrias com o seu incontestável ta-
lento de escritor, mas também colecionando e revendo os escritos de
nossas principais celebridades literárias que o honraram com sua ami-
zade, como Gonçalves Dias e João Lisboa, muitos dos quais se teriam
irremissivelmente perdido sem a sua diligência e zelo em procurá-los e
coordená-los.
Não sou para comparar-me com tais escritores, mas de mim con-
fesso que lhe devo o obséquio de muitos esclarecimentos e livros no
desempenho deste meu curso de literatura, que ficaria incompleto, prin-
cipalmente no que respeita aos autores sobreditos, se não fosse o seu
auxílio em prestar-me não só os manuscritos dos mesmos, como ainda
copiosas notícias sobre sua vida. Assim, duplo é a nossos olhos o mérito
literário do Sr. Dr. Leal, já como autor, já como infatigável perscrutador
de preciosos escritos de outros.
Voltando porém ao seu trabalho biográfico, direi que é obra com to-
das as dimensões de história política e literária, uma completa aprecia-
ção filosófica e crítica, digna em tudo do talento que a empreendeu. A
forma elegante que lhe soube dar seu autor em nada desdiz do mérito
de invenção com que é tratado o assunto, como se vê logo deste começo:

Nascem muitas vezes os engenhos privilegiados como a Palas da fábula,


já revestidos com todas as peças da armadura. Para essas inteligências so-
bre quem Deus bafejou o sopro do gênio não há disciplinas escolares, nem
tempo, não são precisos estudos regulares nem esclarecidos para que se for-
mem, desenvolvam e robusteçam: dispensam não raro as doutas academias
e volumosas bibliotecas, e o trato e a convivência dos sábios; e longe dos
308  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

grandes focos de luz e civilização, adstritos por necessidade ao acanhado


torrão onde lhes foi o berço, aí, na solidão do gabinete, bastam-lhe os esfor-
ços do raciocínio, alumiados pelas penosas lucubrações que lhes fornecem
os fracos meios de que dispõem para refulgirem com a coroa resplendente
e a majestade de reis do pensamento, e como tais serem aplaudidos e ad-
mirados.

A análise deste interessante escrito, que nada tem que invejar às me-
lhores biografias modernas, muitas das quais ao contrário lhe são de
certo inferiores em ajustada apreciação, ou crítica, ou filosófica, ou lite-
rária, há de ser necessariamente dupla; a primeira, com que me vou ocu-
par hoje, versará unicamente sobre o mérito intrínseco do escrito, como
é de razão; a segunda consistirá no resumo do mesmo para servir-me
de notícia biográfica, quando tiver de apreciar a João Francisco Lisboa,
pois seria em mim extrema vaidade, tendo à mão trabalho tão bem feito,
empreender outro inferior sob novas bases.
Passarei agora a ler-vos algumas passagens notáveis da biografia para
que por vós mesmos formeis ideia do mérito de seu autor, e vejais que
não exagero, quando vos afirmo que é subido.

III

A vindita particular, semelhante de todo o ponto à vendetta corsega, com


seus assaltos, combates, incêndios e extermínio de famílias inteiras, fulgu-
rava em todo o seu esplendor sinistro nos sertões de mais de uma província,
temerosos pelos potentados que neles se celebrizaram por crimes, origina-
dos de ofensas particulares ou paixões políticas.
Agora que imperam em toda sua força de ação o regime constitucional e as
leis, e vai o Brasil mediano em prosperidade e civilização, posso dizê-lo sem
corar que muitos desses criminosos eram protegidos pelas autoridades, se
não revestidos delas!
No Maranhão, como em todo o resto do Império, apontavam-se alguns,
vivendo em verdadeiras praças de armas, rodeados de não menos ferozes e
brutais mandatários, conhecidos com o nome popular de capangas, prontos
a obedecer, ousados e petulantes na agressão, como os brari, e como eles co-
vardes na defesa ou sob o poder da justiça, que quase nunca então acercava-
-se de seus covis, defendidos, como já o disse, pelas florestas e distâncias
Autores brasileiros  309

que os separavam dos povoados. Entre esses potentados um havia que, so-
bressaindo aos mais em crimes, não andava, contudo, erradio e embrenha-
do, vivia antes na populosa e comercial cidade de Caxias, horrorizando e
maculando o berço do mavioso poeta dos Cantos e dos Timbiras, estimado
e protegido por um dos partidos políticos que o havia erigido ali em chefe.
Sua hedionda passagem sobre a terra foi marcada por um longo rastro de
sangue, que enche ainda de pavor os caxienses, tornando-lhe o nome, que
escuso aqui lembrar, conhecido por toda parte e celebrado nas rudes toadas
dos romeiros que navegam o Itapicuru.
Quando Feijó no seu patriotismo, que teve só igual nos tempos do heroís-
mo da antiga Roma, entendeu que devia resignar o poder nas mãos dos
adversários, veio com a mudança de política no Império o domínio dos
conservadores ou partido do regresso, como era então chamado, corres-
pondendo-lhe nesta província os cabanas. Pelo número e sucessivos triun-
fos eleitorais, campeava em Caxias o partido liberal, tendo na direção su-
prema, entre outros caracteres honestos, Raimundo Teixeira Mendes, que
gozava a justo título de preponderância e popularidade. Aos primeiros
sopros da reação concertou com os seus sequazes aquele façanhudo po-
tentado, a quem talvez o odre de Tomíris não bastasse para saciar a sede
de sangue, desfazer-se deste e de outros populares e poderosos adversários
para mais desafogada e facilmente poder firmar seu domínio de terror na
comarca.
Depois de ter, ao cair da noite de 25 de novembro de 1837, alvorotado e
alegre, discreteado em uma casa de bilhar com os amigos as boas novas que
recebera da capital, voltava o infeliz Teixeira Mendes para casa, inerme e
acompanhado apenas por um jovem, quando, ao passar pelo largo da Ma-
triz, foi às nove horas e meia acometido por dois assassinos, que o mataram
após desesperada e corajosa luta.
[...]

VI

São comumente os escritos espelho polido que reflete as paixões, os sen-


timentos íntimos e as virtudes de quem os concebe. Essa verdade, resu-
mida já por Buffon na mais elegante e concisa frase, confirma-a vanta-
josamente João Francisco Lisboa. Percorrei-lhe os jornais, folheai-lhe os
310  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

livros, atentai em seus discursos, lede as cartas que escreveu com a franca
singeleza da amizade, que neles achareis patente e sem refolho a alma ge-
nerosa e de forte têmpera deste escritor brasileiro. Vede-me aquele ardor e
entusiasmo com que desde os anos juvenis se dedicou com a mais comple-
ta dedicação e desambiciosamente à causa política que abraçara e que lhe
resumia a pátria que foi o culto por toda a vida das suas adorações mais
puras, o estímulo de suas mais sérias lucubrações, o espírito que o excitara
nos verdores das crenças e esperanças, como o alentava ainda nos abor-
ridos e últimos dias da existência. E os sacrifícios da fazenda, da saúde, e
da vida mesmo, que não deixou de estar exposta ao ferro dos sicários nos
tempos mais atribulados e tempestuosos das lutas políticas, como os ele
aceitou com varonil intrepidez, e, mais ainda do que os sacrifícios, a ingra-
tidão com que pagaram os próprios correligionários, no dia do triunfo!
Vede-me também aquela nobre e rara ação de resignar o cargo, embora
o acobertasse da miséria, só porque a delicadeza do sentimento e o dever
lhe impunham não continuasse a exercê-lo. Não menos para admirar é o
desinteresse, o denodo e a isenção com que sempre falou da tribuna, esti-
mando mais quebrar relações e alienar simpatias do que cortejar vícios e
preconceitos com remordimentos da consciência e esquecimento do seu
mandato; e que gladiador houve aí mais ardido e experimentado nas lutas
temerosas e travadas do jornalismo, quando acinte e sem descanso o asses-
tavam com repetidos e alentados golpes adversários, nem todos generosos,
e muitos ferozes e audaciosos? Vede-me o advogado consciencioso, que
nunca mercadejou os dotes com que Deus fora tão pródigo para com ele, e
que bem de vezes ergueu a voz eloquente em prol do infortúnio persegui-
do que só tinha para remunerá-lo do trabalho as lágrimas da gratidão. Mas
para que ir mais longe quando nestes quatro volumes de suas obras podeis
de ânimo forro apreciar por vós o historiador imparcial, o filósofo de vistas
largas e profundas, o publicista de subidos quilates, o moralista severo, que
para aí derramou de grado e com franqueza os seus pensamentos e ideias,
elevando-se no conceito de cidadão e escritor que tinha por farol a pátria,
por divisa a verdade, por fim moralizar seus conterrâneos, instruindo-os
e admoestando-os como lição, e apregoando e exalçando as grandes vir-
tudes e altos feitos como exemplo a seguir. É belo ver como implacável e
irritado fulmina o crime com os raios do seu estilo e esmaga o vício com
o sarcasmo eloquente da indignação, que exacerba as iras e provoca as
censuras do homem honesto.
Autores brasileiros  311

O seguinte trecho da primeira passagem que reproduzo é digno da


pena de um Tácito ou de um Salústio:

Entre esses potentados um havia que, sobressaindo aos mais em crimes,


não andava, contudo, erradio e embrenhado, vivia antes na populosa e co-
mercial cidade de Caxias, horrorizando e maculando o berço do mavioso
poeta dos Cantos e dos Timbiras, estimado e protegido por um dos partidos
políticos que o havia erigido ali em chefe. Sua hedionda passagem sobre a
terra foi marcada por um longo rastro de sangue, que enche ainda de pavor
os caxienses, tornando-lhe o nome, que escuso aqui lembrar, conhecido
por toda parte e celebrado nas rudes toadas dos romeiros que navegam o
Itapicuru.
[...]
Pelo número e sucessivos triunfos eleitorais, campeava em Caxias o par-
tido liberal, tendo na direção suprema, entre outros caracteres honestos,
Raimundo Teixeira Mendes, que gozava a justo título de preponderância
e popularidade. Aos primeiros sopros da reação, concertou com os seus
sequazes aquele façanhudo potentado, a quem talvez o odre de Tomíris não
bastasse para saciar a sede de sangue, desfazer-se deste e de outros popula-
res e poderosos adversários para mais desafogada e facilmente poder firmar
seu domínio de terror na comarca.
Depois de ter, ao cair da noite de 25 de novembro de 1837, alvoroçado e
alegre, discreteado em uma casa de bilhar com os amigos as boas novas
que recebera da capital, voltava o infeliz Teixeira Mendes para casa, iner-
me e acompanhado apenas por um jovem, quando, ao passar pelo largo da
Matriz, foi às 9 horas e meia acometido por dois assassinos, que o mataram
após desesperada e corajosa luta.

A passagem a que pertence o trecho reproduzido é um quadro histó-


rico muito bem acabado da triste época em que foi assassinado o infeliz
Teixeira Mendes, quando a justiça pública não tinha força para reprimir
o crime, e a política servia não poucas vezes de salvaguarda à impu-
nidade. As causas que concorriam para um tal estado de coisas aí são
profundamente discutidas e assinaladas com a maior lucidez e critério,
sem nada escapar à hábil pena do escritor que possa pô-las em rele-
vo. A descrição do assassinato daquele cidadão, digno de melhor fim, é
312  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

traçada com o mais rigoroso e animado pincel, sem que a verdade his-
tórica seja em coisa alguma prejudicada. O principal assassino é pintado
com cores tais que, sem que se profira seu nome, se torna logo conhe-
cido para quem tem notícia das coisas de Caxias naquele desgraçado
tempo: “Sua hedionda passagem sobre a terra foi marcada por um longo
rastro de sangue, que enche ainda de pavor os caxienses”; e mais abai-
xo: “aquele façanhudo potentado, a quem talvez o odre de Tomíris não
bastasse para saciar a sede de sangue.” As imagens e figuras empregadas
são as mais vivas e apropriadas, pois nada se podia dizer de mais de um
homem que havia feito derramar tanto sangue e era por seus crimes o
terror de uma comarca inteira.
O último parágrafo, que começa, “Depois de ter ao cair da noite”, é
um modelo de narração precisa e ao mesmo tempo animada pelo con-
traste de espírito que oferece a vítima com o seu lamentável fim, dis-
creteando pouco antes com os amigos, alvorotado e alegre, as boas novas
que recebera da capital. Nada em uma palavra falta à perfeição deste
lúgubre quadro, que se prende naturalmente à biografia pela parte ativa
que tomou na reprovação do delito e acusação do assassino o redator da
Crônica, ou João Francisco Lisboa.
Assim é que os homens de talento sabem ligar a história do país aos
grandes caracteres que descrevem, e nela figuraram por qualquer ma-
neira; porque neste caso o interesse torna-se duplo para o leitor. A cir-
cunstância da ser João Francisco Lisboa chefe de um partido e redigir
uma folha em sentido liberal serviu de elo de cadeia a seu habilíssimo
biógrafo para reproduzir em quadro fiel e resumido a história política
de então. Um escritor menos amestrado ter-se-ia limitado a narrar a
parte ativa que o redator da Crônica tomou na reprovação do assassinato
e acusação do assassino, sem descrever o estado do país naquela época,
e daria a seu quadro um interesse puramente individual, ao passo que o
Sr. Dr. Leal soube, pela ligação sobredita, dar ao seu um interesse todo
coletivo, sem todavia deixar de pôr em relevo o grandioso vulto que
pinta.
Só reproduzirei da segunda passagem em que se descreve a nobreza
de caráter de João Francisco Lisboa o trecho seguinte por que começa:

São comumente os escritos espelho polido que reflete as paixões, os senti-


mentos íntimos e as virtudes de quem os concebe. Essa verdade, resumida
Autores brasileiros  313

já por Buffon na mais elegante e concisa frase, confirma-a vantajosamente


João Francisco Lisboa. Percorrei-lhe os jornais, folheai-lhe os livros, aten-
tai em seus discursos, lede as cartas que escreve com a franca singeleza da
amizade, que neles achareis patente e sem refolho a alma generosa e de forte
têmpera deste escritor brasileiro.

Toda a passagem a que pertence este trecho é eloquentíssima e escrita


no estilo o mais nobre, elegante e animado. O biógrafo, descrevendo o
grande tipo moral de João Francisco Lisboa, como escritor, como cidadão
e como homem particular, não descura os afetos, que tanto realce dão ao
magnífico e belíssimo quadro que traçou, comunicando-lhe movimento e
vida. Vê-se que fala ex abundantia cordis e compenetrado do que diz, não
só porque as expressões lhe acodem naturalmente ao bico da pena, sem o
menor esforço, mas até porque, comovido, nos comove também. O origi-
nal, que se adornava de tantas virtudes, era em verdade belo e admirável:
assim o transunto que no-lo reproduziu com cores tão apropriadas e fiéis
saiu também belo e admirável. Tudo quanto o biógrafo disse anterior-
mente do seu autor se acha compendiado nesta pintura, e com habilidade
tal que nada deixa a desejar, porque conceito elevado, patético, deduzido
do assunto, e viveza de imagens e colorido, tudo nela brilha e sem a menor
afetação que a deslustre. Resumirei todo o elogio que merece esta soberba
passagem dizendo que João Francisco Lisboa encontrou no Sr. Dr. Antô-
nio Henriques Leal um escritor digno de descrevê-lo.
Para dar-vos ideia do estilo pitoresco e animado de toda a passagem
basta citar-vos as seguintes linhas dela: “É belo ver como implacável e
irritado fulmina o crime com os raios do seu estilo, e esmaga o vício
com o sarcasmo eloquente da indignação, que exacerba as iras e provoca
as censuras do homem honesto.”
Escrever por esta forma não é simplesmente escrever, é pôr-nos os
objetos diante dos olhos com todas as suas cores, ou por outra, é ser
mestre na arte de escrever.
Por esta eminente qualidade de pintar escrevendo é que os bons e
felizes engenhos se distinguem da turba dos escritores sem talento notá-
vel. Por ela brilharam os Sousas, Freires e Vieiras, e levaram incontestá-
vel vantagem a todos os escritores portugueses do seu século.
À vista destas duas passagens podeis ajuizar de toda a obra, que é
geralmente tão bem escrita como o que fica analisado. O mérito deste
314  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

escrito, por qualquer lado que se encare, é tal em minha opinião que
eleva seu autor não à categoria de simples biógrafo, mas à de um histo-
riador profundo e eloquente, sobre conhecedor das belezas de estilo e
dos recursos da língua. Por ele adquiriu certamente o Sr. Dr. Henriques
Leal um lugar distinto na república das letras, estreando a carreira de
autor por onde outros acabam a sua.
No seguinte discurso darei o resumo da biografia de João Francisco
Lisboa para servir de introdução à análise de suas obras.
JOÃO FRANCISCO LISBOA*

João Francisco Lisboa,


sua biografia; seu Jornal de Timon em três volumes, apreciados cada
um de per si; sua obra sobre a vida do Padre Antônio Vieira.

LIÇÃO XCII

Tenho, Senhores, de apreciar hoje um prosador brasileiro dos mais


distintos, João Francisco Lisboa, comprovinciano nosso, insigne na
arte de escrever como podem ser os mais abalizados mestres do falar
solto em qualquer língua, profundo, eloquente e cabal em todo gênero
de assuntos que tratou. O autor que me proponho analisar, meu antigo
discípulo de latim e conhecido de muitos de vós, é um engenho extraor-
dinário, filho de suas mesmas obras, porque os conhecimentos supe-
riores que brilham nos seus escritos são unicamente devidos a estudo
feito no remanso do gabinete, e não às lições que bebesse em academias
nacionais ou estrangeiras, que não cursou. Os seus escritos, notáveis
na substância como os de um crítico, jurisconsulto, orador, publicista
e historiador eminente, não o são menos na elegância e correção da for-
ma, nas quais leva pela ventura a palma a todos os escritores brasileiros
contemporâneos.
Por isso há muito que aprender nesta autor em tudo o que se refere
às belezas da elocução e à cópia e pureza da linguagem, qualidades em
que prima como qualquer escritor clássico. Antes porém de entrar na
análise das produções de seu engenho, devo dar-vos sucinta notícia de
sua vida, resumindo, na parte histórica, o excelente trabalho biográfico
que apreciei no meu precedente discurso.
Nasceu João Francisco Lisboa no lugar denominado Pirapemas, da
freguesia de N. S. das Dores do Itapicuru da província do Maranhão,

*  V. 5 (1873), p. 129-210.
316  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

a 22 de março de 1812, e faleceu em Lisboa, a 26 de abril de 1863, na


idade de 51 anos, quando o seu singular talento prometia ainda muito,
pois a morte veio surpreendê-lo no meio de trabalhos importantes, tais
como a composição da história do Maranhão, para a qual havia coligido
materiais.
Foi comendador da Imperial Ordem da Rosa, membro de Instituto
Histórico e Geográfico do Brasil e sócio correspondente da Academia
Real das Ciências de Lisboa.
Era oriundo de uma das principais famílias da província, e filho legí-
timo do lavrador João Francisco de Melo Lisboa e de D. Gertrudes Rita
Gonçalves Nina, que ainda vive.
Órfão de pai em muito tenra idade, deveu a sua primeira educação
unicamente aos desvelos maternais. Na idade de 11 anos já sabia tudo o
que então se podia aprender nas escolas de primeiras letras. Depois de
haver recebido a instrução primária nesta cidade, para onde viera com
sua mãe, voltou com ela a viver no interior, donde aos 15 anos feitos veio
outra vez a esta cidade, e entrou em 1827 de caixeiro na casa comercial
do negociante Francisco Marques Rodrigues, cuja estima em breve ad-
quiriu, por sua inteligência e dedicação ao trabalho.
Não se achando porém com disposição para seguir a vida do comér-
cio, na qual não podia cultivar seu espírito como desejava, saiu da casa
do referido negociante em princípios de 1829, para dedicar-se inteira-
mente ao estudo das letras.
Foi por este tempo que entrou para a aula pública de latim por mim
dirigida, e tive ocasião de apreciar e ver desenvolver-se o riquíssimo enge-
nho com que o dotara a natureza. Habilitado no conhecimento da língua
latina em pouco mais de dois anos, sabendo já o francês, e com noções de
literatura, devida à sua muita leitura, vinha para minha casa aos domin-
gos; e aí, por mero gosto seu, tirava-me a limpo a tradução em verso da
Fedra de Racine, que então empreendi por instigação de meu amigo Ma-
nuel Odorico Mendes, fazendo-me já observações muito judiciosas sobre
algumas passagens dela, muitas da quais eu aceitava, sem que o mestre se
envergonhasse de anuir às correções propostas pelo discípulo, com quem
viveu na mais perfeita inteligência, até que a política os separou, para
reuni-los mais tarde, depois de muitas e amargas decepções.
Pouco depois de sair pronto da aula de latim, aos 19 anos de ida-
de, impelido pelo ardor juvenil e espírito patriótico que o animava,
Autores brasileiros  317

lançou-se na carreira política, que atraía então todos os moços de talen-


to, e alistou-se nas fileiras do partido exaltado.
Achavam-se então a província e o Brasil muito agitados pelas emo-
ções que se sucederam à revolução de 7 de abril de 1831, e os liberais,
que haviam para ela concorrido, divididos em moderados e exaltados.
Dotado de habilidade suma, e já com suficiente cabedal de luzes, co-
meçou a 23 de agosto de 1832 a redigir o Brasileiro, folha política heb-
domadária, na qual sustentou as ideias dos exaltados. Três meses depois
acabou com essa publicação para continuar a do Farol Maranhense, cujo
redator, José Cândido de Morais e Silva, havia falecido a 18 de novem-
bro do mesmo ano. Ao cabo de dois anos de lides jornalísticas, finalizou
a publicação desta última folha e retirou-se para a fazenda de seus pais.
Tendo voltado para a capital no seguinte ano, e não lhe sofrendo o
ânimo ardente e generoso viver longe da cena política, começou a 3 de
julho de 1834 a redigir o Eco do Norte, folha igualmente política em sen-
tido liberal, cuja publicação terminou a 22 de novembro de 1836.
Dois anos depois voltou de novo à arena jornalística, e começou a 1
de janeiro de 1838 a redigir a Crônica Maranhense, folha política liberal,
cuja publicação terminou a 17 de dezembro de 1840, desgostoso da vida
de escritor público.
Ainda quase dois anos depois, a 9 de julho de 1842, entrou para a re-
dação do Publicador Maranhense, ou folha oficial, na qual se conservou
até retirar-se da província para o Rio de Janeiro.
No Eco do Norte, e com especialidade na Crônica, não era João Fran-
cisco Lisboa o jovem inexperiente e fogoso que, no Brasileiro e Farol, es-
posava as ideias dos exaltados, mas o homem amadurecido pela experiên-
cia e formado em todo o gênero de literatura no estudo particular de seu
gabinete, o político profundo, o escritor abalizado, e o adversário mais
temível pela insigne mestria com que manejava a pena, quer em assuntos
sérios, quer no ridículo, em que ninguém podia competir com ele.
É opinião minha que até hoje ainda se não escreveu na província
outra folha política tão eloquente como a Crônica, e não poderei avaliar
melhor o mérito de seu autor do que o fiz quando dirigi o Publicador
Maranhense. Eis a passagem a que me refiro:

Entre todos esses vultos de talentos superiores que colocamos em lugar pró-
prio nesta espécie de galeria jornalística, o Sr. João Francisco Lisboa, que à
318  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

força e lucidez de pensamento reúne em subido grau o vigor, a majestade e


o colorido da expressão, encarnando as suas concepções sob as formas as
mais apropriadas, vestindo-as dos trajes os mais adequados, ornando-as
com os matizes os mais delicados, imprimindo-lhes os ademanes os mais
expressivos, e animando-as para assim dizer com os traços da sua pena,
parece-nos ser o mais preeminente e grandioso vulto que se apresenta aos
olhos do observador.

Este juízo não deve ser taxado de parcial, porque a política fez infe-
lizmente o mestre e o discípulo adversários no jornalismo, sem que to-
davia deixassem de estimar-se quanto isso podia caber em antagonistas
tão pronunciados.
Foi João Francisco Lisboa por diversas vezes membro da assembleia
legislativa provincial, em cuja tribuna proferiu alguns discursos muito
eloquentes, que se perderam porque a assembleia não tinha taquígrafo
que tomasse os discursos de seus membros, correndo apenas impresso o
que proferiu na sessão de 1849 sobre a conveniência de se solicitar dos po-
deres do estado uma anistia para os revoltosos praieiros de Pernambuco.
Exerceu por três anos o lugar de secretário do governo da provín-
cia, para o qual foi nomeado a 9 de novembro de 1835 pelo presidente,
Antônio Pedro da Costa Ferreira — depois senador do Império e barão
do Pindaré —, e do qual pediu exoneração no tempo do sucessor deste,
porque a política do governo se achava em oposição com os princípios
que ele professava.
Até 1840 figura este homem extraordinário como jornalista eloquen-
te, órgão e chefe de um partido, mas, tendo-se por esse tempo retirado
da redação dos jornais e da cena política por haver sido a sua candi-
datura de deputado à assembleia geral legislativa rejeitada pelo mesmo
partido, cuja causa defendera com tanta habilidade e dedicação, deu-se
a novo gênero de estudos, e pôs banca de advogado, para poder sub-
sistir com sua família. O seu singular talento, que já vimos brilhar na
imprensa e na tribuna parlamentar da província, não brilhou menos na
tribuna forense; e tais foram os créditos que logo adquiriu nesta nova
carreira que obteve por ela não só decente subsistência, mas uma mó-
dica fortuna.
Assim este prodigioso engenho foi unicamente filho de suas obras,
tanto na cultura do espírito, como na aquisição dos bens da fortuna e
Autores brasileiros  319

posição social. Lisboa é o gênio resplandecendo e dominando por sua


mesma força, e só por ela, sem o auxílio das escolas para formá-lo, e sem
as recompensas populares, nem oficiais, para animá-lo!
Em outro qualquer país, em que as letras fossem mais bem apre-
ciadas, abrir-se-iam as portas do parlamento a um homem tão ilustre
por seu talento e habilitações, e teria ele chegado aos altos cargos do
estado; no Brasil, porém, onde a mediocridade ocupa ainda muitas ve-
zes o lugar do verdadeiro mérito, foi apenas aproveitado para comissões
puramente científicas, da mesma forma que o seu comprovinciano não
menos ilustre, Antônio Gonçalves Dias, como se não fosse a inteligência
quem devesse governar o mundo!
Foi justamente quando exercia a profissão de advogado que compôs
por mero desenfado esses inimitáveis retratos físicos e morais, ou cari-
caturas políticas da época, e empreendeu a sua obra de vulto, o Jornal de
Timon, em três volumes grossos, parte da qual foi composta e impressa
na província, e parte em país estrangeiro, pois em 1855 partiu do Mara-
nhão para o Rio de Janeiro, onde residiu algum tempo, empregado na
redação de diversos jornais, e de lá para Portugal, encarregado de uma
comissão literária e científica pelo nosso governo. Foi também em Por-
tugal, de onde fez excursões à Itália e à França, que compôs a biografia
de Manuel Odorico Mendes e a vida inédita do Padre Antônio Vieira.
O Jornal de Timon, que compreende os mais profundos estudos his-
tóricos sobre as coisas do Brasil, e com especialidade do Maranhão, des-
de os mais remotos tempos coloniais, precedidos de uma série de qua-
dros em que o autor, sob nomes supostos, mete a ridículo a mesquinha
política dos partidos e presidentes de província do seu tempo, acom-
panhados de estudos históricos igualmente profundos sobre o sistema
eleitoral dos antigos gregos e romanos, bem como dos povos modernos,
é uma obra que tem merecido as maiores elogios aos mais abalizados
críticos nacionais e estrangeiros, e sobre a qual me proponho emitir um
juízo analítico em três discursos consecutivos, versando cada um sobre
o melhor de cada volume.
Neste trabalho muito me tenho de socorrer à soberba biografia que
traçou ao autor o Sr. Dr. Antônio Henriques Leal, muito rica em apre-
ciações de todo gênero.
Foi João Francisco Lisboa casado com Dª Violante Luísa da Cunha,
senhora que descende de uma das mais ilustres famílias do Maranhão, e
320  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

com a qual viveu sempre na mais perfeita harmonia, amando-se extre-


mamente um ao outro.
Não tendo tido filhos desta feliz união, adotou em tenra idade a Dª
Maria José da Cunha Lisboa, filha de um amigo e compadre seu, à qual
deu a mais desvelada educação, e que brilha hoje por muito aprimora-
das prendas, mostrando-se em tudo digna de tal pai.
Havendo falecido em 1863 em Lisboa, foram seus restos mortais
transportados para o Maranhão em 1864, pelos extremosos cuidados de
sua viúva, que só existe para chorá-lo, e sepultados na igreja do conven-
to do Carmo desta cidade, assistindo às exéquias tudo quanto nela havia
de mais nobre em cidadãos, autoridades, corporações, e fazendo-lhe as
honras fúnebres que competiam a um dos reis do pensamento.
Esta inteligência tão vasta como pronta, este belo tipo moral que
reunia todas as virtudes do homem e do cidadão, este homem verda-
deiramente extraordinário e superior, que rivalizava na fecundidade do
engenho e dotes do espírito com as primeiras celebridades literárias do
século em que vivemos, era sujeito a frequentes ataques de hipocondria,
que o faziam passar por um misantropo, e até por orgulhoso para alguns
que o não conheciam de perto, ou com quem não costumava expandir-
-se em sentimentos afetuosos e amena conversação. A natureza huma-
na, ainda nas entidades as mais ilustres, nunca é isenta de fraquezas que
atestem a sua origem terrena.
Concluirei esta sucinta notícia biográfica sobre homem de tão subido
mérito reproduzindo o retrato fisionômico que dele traçou com bem
aparada pena o Sr. Dr. Antônio Henriques Leal! Ei-lo:

Trazia na fisionomia estampada a rigidez de seus princípios e a austerida-


de de seus costumes. A vasta abóbada cerebral, terminada por uma fronte
altiva e cortada de sulcos denunciadores do precoce meditar, era terrestre
invólucro dessa inteligência tão magnífica quanto bem aquinhoada e ilu-
minada pelas línguas de fogo do gênio. Seus olhos brilhantes e penetran-
tes faiscavam-lhe as sublimes ideias, antes que os lábios as traduzissem em
sons ou a pena em caracteres. Para completar este esboço físico, resumindo,
direi apenas que era Lisboa grosso de corpo, cabelos negros e corridos, tez
morena, barba espessa, rosto cheio e redondo, olhos pardos, se não gran-
des, vivos, lábios espessos e rasgados, ombros largos e estatura um pouco
abaixo da meã.
Autores brasileiros  321

Em outro discurso ocupar-me-ei com o primeiro volume do Jornal


de Timon.

LIÇÃO XCIII

O primeiro volume do Jornal de Timon, de João Francisco Lisboa,


que me proponho apreciar neste discurso no que contém de melhor,
atesta, Senhores, um grande e profundo estudo das instituições, usos
e costumes, dos povos antigos e modernos, porque compreende nada
menos que a história resumida dos diversos sistemas de eleições em seu
modo prático desde os tempos da civilização grega e romana até nos-
sos dias. É um livro precioso para quem deseja instruir-se nesta parte
curiosíssima da história política, antiga e moderna, porque reúne com
seleção e critério magistral tudo quanto a tal respeito se acha espalhado
em muitos e grossos volumes, escritos em diversas línguas.
Se a isto juntarmos o juízo seguro e ilustrado do crítico, do filósofo,
do jurisconsulto, do publicista, do historiador, porque todos estes ca-
racteres assume o autor no seu trabalho, e ainda por cima a eloquência
natural e irresistível, o estilo nobre, animado e terso, a frase numerosa e
cheia, a linguagem copiosa e pura do escritor elegante, correto e conhe-
cedor das belezas da língua, convencer-nos-emos, como vos disse, de
que há muito que aprender, seja quanto ao fundo, como dizem os fran-
ceses, seja quanto à forma, tanto neste como nos outros dois volumes do
Jornal de Timon, que compreendem estudos históricos de outro gênero,
mas não menos importantes.
Apreciando pelo estudo dos fatos com sumo critério as eleições dos
diversos povos, antigos e modernos, teve o autor em vista compará-
-las com as do Brasil, e muito principalmente com as da província, que
haviam chegado no seu tempo a extremo de degradação tal que eram
umas verdadeiras saturnais, que ele descreve e mete a ridículo numa
série de quadros, nos quais pinta sob nomes supostos as principais figu-
ras que nelas representavam, quer como chefes de partido, quer como
autoridade. Da comparação feita pelo autor resulta que nós só havíamos
copiado das eleições dos outros povos o grotesco e a corrupção, sem
adotar o que nelas podia haver de bom; a pintura que ele faz de nossos
costumes abastardados neste ponto tinha por fim corrigir-nos, porque
322  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

o seu livro tanto é escrito para o cidadão da classe elevada ou média,


que tomava parte nas eleições, como para o estadista a quem cumpria
melhorar uma tão desagradável ordem de coisas; e a arte com que pinta
é tal que as mesmas figuras retratadas nos seus quadros, ainda que neles
se reconhecessem, tinham todo o interesse em não se dar por ofendidas,
porque, tomando a si o barrete, cobrir-se-iam de indelével ridículo.
Livros como o primeiro volume do Jornal de Timon são sempre bem
aceitos e lidos com avidez, porque, apresentando a descrição dos cos-
tumes e achaques contemporâneos, traçada por mão de mestre, são a
história fiel e eloquente da sua época. Assim, quem quiser saber o que
era o Maranhão em 1840 e anos imediatamente posteriores, época que
descreve o autor em seus quadros, leia o volume sobredito, e ficará com-
pletamente inteirado, porque o livro nada deixa a desejar, nem quanto
a costumes e caracteres, nem quanto à chamada política de então. Será
ele ainda de não pequeno socorro a quem tiver de escrever a nossa his-
tória, porque, suprimidos os nomes supostos com que o autor disfarçou
as suas pinturas, ficaram neles unicamente os traços característicos da
verdadeira fisionomia da época.
Tendo-vos dado ideia da matéria deste primeiro volume, do princi-
pal fim com que foi escrito e do seu mérito, passarei a ler-vos o melhor
de um dos mais belos quadros históricos dele, o das eleições da antiga
Roma.

Imagine o leitor duas multidões de adversários rancorosos e exasperados,


reunidos em dous locais vizinhos, como, por exemplo, em Santana e S.
João.106 Um dia que Tibério Graco assistia no capítulo à assembleia do povo
veio de repente um senador de sua amizade avisá-lo que o senado estava
reunido, e os seus inimigos, não obstante a oposição do cônsul, resolutos a
matá-lo, havendo para isso convocado grande cópia de escravos e clientes.
Derramada a notícia entre os que se achavam mais próximos, cada um se
armou para a defesa, conforme permitiam as circunstâncias, partindo-se
até em pedaços para esse fim os chuços de que os litores se serviam para
arredar e conter a multidão. Surpresos e enleados os que ficavam à larga
distância pelo que viam fazer, pois não tinham ouvido o aviso, pediam em

  Igrejas desta cidade onde, pelo tempo em que escreveu o autor, reuniam-se os partidos
106

políticos para tratar de questões eleitorais, e às vezes saíam em procissão a percorrer as ruas.
(Nota do autor.)
Autores brasileiros  323

altos gritos a significação daqueles desusado movimento. Foi então que Ti-
bério Graco lembrou-se de levar a mão à cabeça, buscando, por este sinal,
dar a conhecer aos que não podiam ouvi-lo o perigo que o ameaçava.
Denunciado imediatamente este gesto no senado como prova manifesta e
irrefragável de que Tibério aspirava à realeza, isto é, a pôr o diadema na
cabeça, os Padres conscritos, como cada um pode imaginar, fizeram uma
admirável explosão de patriotismo antimonárquico Deuses imortais! (ex-
clamavam voz em grita). Que crime abominável! Aspirar à realeza! Atentar
à majestade do povo romano! E sobressaía entre todos Cipião Nasica, a
quem a perda de uma imensa quantidade de terras tornara furioso contra
o tribuno,107 e que nesta ocasião, aludindo à oposição e tibieza do cônsul,
homem justo e moderado, ergueu-se e exclamou: “Pois que o primeiro ma-
gistrado atraiçoa a república, sigam-me todos aqueles que quiserem acudir
à liberdade e às leis em perigo!” Dito isto, guiou ao Capitólio, seguido de
uma imensa tropa armada de punhais e pesadas massas e bastões, sendo
que os veneráveis senadores, porque não foram prevenidos a tempo, viram-
-se obrigados a armar-se com os fragmentos de bancos e outros móveis da
cúria, que o tumultuoso arranco havia feito pedaços.
Desarmado pela maior parte e assoberbado pela fúria do inopinado aco-
metimento, o povo reunido no Capitólio, não lhes pode suster o ímpeto e
disparando em confusa e desordenada fuga, uns se precipitavam sobre os
outros, embaraçando-se reciprocamente Os agressores, caceteando a um
e outro lado, com galhardia sem igual e como quem não encontrava resis-
tência, mataram cerca de 300; e o próprio Tibério Graco, arrastado na fuga,
resvalou, caiu e foi imediatamente morto. O primeiro que o feriu foi Públio
Satureio, um de seus colegas, dando-lhe com uma perna de banco na cabe-
ça; seguiu-lhe Lúcio Rufo e outros que o acabaram, vangloriando-se sempre
daí por diante desta imortal proeza. Os cadáveres de Tibério e das demais
vítimas, depois de mil ultrajes, foram arrastados e lançados no Tibre, recu-
sados pela crueldade dos vencedores à piedade dos parentes e amigos que
os solicitaram em vão para render-lhes as honras fúnebres.
Ignoro se a cidade iluminou-se depois desta esplêndida vitória, que aliás
foi festejada com o suplício e desterro de muitos dos cúmplices do odioso
conspirador popular. Tudo isso entretanto encontra a sua natural explicação

107
  Por causa das famosas leis sobre terras, propostas por Tibério Graco, conhecidas pelo
nome de leis agrárias. (Nota do autor.)
324  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

na embriaguez da mesma vitória. O que é porém mais para notar-se é que


cerca de 60 anos depois, Cícero, o grande orador, o virtuoso cidadão, es-
pírito tão vasto e brilhante como caráter fraco e vaidoso, para desterrar as
irresoluções do senado, puxar-lhe pelos brios, e fazê-lo votar a morte dos
cúmplices de Catilina, citasse a ação de Nasica como digna de imitação e
de louvor, e exemplo de decidido e ardente patriotismo! Quanto a este pre-
tendido vingador das leis, pouco se logrou do seu triunfo; preponderando
algum tempo depois a facção popular, não podia ele sair à rua que se não
visse assaltado das invectivas e clamores públicos; e obrigado a deixar a
Itália, errou sem destino certo por algum tempo, devorado de melancolia, e
por ventura acossado dos remorsos, até que em Pérgamo deu fim sua triste
existência.
Morto Tibério, Caio Graco, seu irmão, determinou seguir o exemplo glo-
rioso que lhe ele legara, renovar as suas leis e vingar a sua morte. Na sua
primeira eleição ao tribunado, concorreu uma tal multidão de toda a Itália
que em Roma não havia casas onde se agasalhassem, e sendo a praça insu-
ficiente para conter o povo, no dia dos comícios, muitos votaram de cima
dos tetos e muros. Impotente para resistir-lhe de outro modo, o partido dos
nobres tentou primeiro superar a Caio nas liberalidades e favores concedi-
dos ao povo, aliciando para esse fim, como no tempo de Tibério, um dos
tribunos, seus colegas. Maquiavel observou depois, bem que a outro propó-
sito, que o meio mais fácil e seguro de contrastar a ambição, normalmente
nas repúblicas corrompidas, é antecipá-la em todos os caminhos por onde
ela pode chegar a seus fins. Não surtindo porém estes expedientes todos os
bons resultados que deles se prometiam os nobres, suscitaram uma sedi-
ção, na qual Caio Graco, assassinado, não já com 300 dos seus concidadãos
somente, senão com perto de três mil, foi, como o irmão mais velho, ar-
remessado ao Tibre, depois porém de previamente degolado, e pagando o
cônsul Opímio, a quem lhe apresentou a cabeça decepada, o equivalente do
seu peso em ouro de lei.
Um fragmento dos seus discursos que nos foi conservado dá a conhecer
como teve a previsão de seu triste fim, e como, salteado de um desses súbi-
tos esmorecimentos a que não são estranhas ainda as almas de mais forte
têmpera, hesitou algum tempo se abandonaria a carreira tempestuosa dos
negócios. “Ó romanos — dizia ele —, Caio Graco, descendente de tão no-
bres avós, perdido o irmão por vossa causa, único resta, com um tenro filhi-
nho, da casa ilustre de Cipião Africano e Tibério Graco. Se eu vo-la pedisse,
Autores brasileiros  325

acaso me negaríeis a graça de buscar no retiro, com o descanso, a salvação


das últimas relíquias desta raça, a fim de que não pereça toda inteira a me-
mória do seu nome?” Palavras penetrantes e dolorosas, se as aproximamos
do seu final destino!
Antes de encerrar a época dos Gracos, referirei um caso que pela sua mes-
ma singeleza serve de caracterizar a integridade e inocência daqueles tem-
pos, em que aliás os costumes começaram a declinar. Depois de concluídas
umas eleições consulares, a que presidira Tibério Graco, recordou-se ele de
haver por inadvertência preterido certa cerimônia augural, aliás de pouca
importância, pelo que participou incontinenti a omissão ao colégio dos áu-
gures, e por ordem deste os dois cônsules, que haviam já partido, um para
as Gálias Cisalpinas, e outro para a Córsega, regressaram a Roma e depuse-
ram a autoridade, procedendo-se a novas eleições.
Nos nossos tempos parece que não reinam os mesmos escrúpulos e supers-
tições; pelo menos os jornais têm referido, sob impressões e tons diversos,
que nas nossas eleições provinciais de fevereiro, neste ano da graça de 1852,
nem um só dos eleitores do colégio do Itapicuru-Mirim acudiu a ouvir a
missa do Espírito Santo, tendo acontecido a mesma cousa, no precedente
janeiro, ao parlamento português, que todavia sempre mandou dous dos
seus membros à patriarcal da antiga Ulisseia, como para representá-lo em
comissão perante o poder legal e constituído da Divindade.

Da passagem que acabei de ler-vos, reproduzirei os seguintes tre-


chos, em que o autor descreve a morte de Tibério Graco, porque são
digno objeto de estudo por sua incontestável beleza e perfeição:

Surpresos e enleados os que ficavam à larga distância pelo que viam fazer,
pois não tinham ouvido o aviso, pediam em altos gritos a significação da-
quele desusado movimento. Foi então que Tibério Graco lembrou-se de
levar a mão à cabeça, buscando, por este sinal, dar a conhecer aos que não
podiam ouvi-lo o perigo que o ameaçava.
Denunciado imediatamente este gesto no senado como prova manifesta e
irrefragável de que Tibério aspirava à realeza, isto é, a pôr o diadema na
cabeça, os Padres conscritos, como cada um pode imaginar, fizeram uma
admirável explosão de patriotismo antimonárquico. “Deuses imortais! (ex-
clamavam voz em grita). Que crime abominável! Aspirar à realeza! Atentar
à majestade do povo romano!” E sobressaía entre todos Cipião Nasica, a
326  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

quem a perda de uma imensa quantidade de terras tornara furioso contra


o tribuno, e que nesta ocasião, aludindo à oposição e tibieza do cônsul,
homem justo e moderado, ergueu-se e exclamou: “Pois que o primeiro ma-
gistrado atraiçoa a república, sigam-me todos aqueles que quiserem acudir
à liberdade e às leis em perigo!” Dito isto, guiou ao Capitólio, seguido de
uma imensa tropa armada de punhais e pesadas massas e bastões, sendo
que os veneráveis senadores, porque não foram prevenidos a tempo, viram-
-se obrigados a armar-se com os fragmentos de bancos e outros móveis da
cúria, que o tumultuoso arranco havia feito pedaços.
Desarmado pela maior parte e assoberbado pela fúria do inopinado aco-
metimento, o povo reunido no Capitólio, não lhes pôde suster o ímpeto, e
disparando em confusa e desordenada fuga uns se precipitavam sobre os
outros, embaraçando-se reciprocamente. Os agressores, caceteando a um
e outro lado com galhardia sem igual e como quem não encontrava resis-
tência, mataram cerca de 300; e o próprio Tibério Graco, arrastado na fuga,
resvalou, caiu e foi imediatamente morto. O primeiro que o feriu foi Públio
Satureio, um de seus colegas, dando-lhe com uma perna de banco na cabe-
ça; segui-lhe Lúcio Rufo e outros que o acabaram, vangloriando-se sempre
daí por diante desta imortal proeza. Os cadáveres de Tibério e das demais
vítimas, depois de mil ultrajes, foram arrastados e lançados no Tibre, recu-
sados pela crueldade dos vencedores à piedade dos parentes e amigos que
os solicitaram em vão para render-lhes as honras fúnebres.

Nestes admiráveis trechos se pode bem avaliar o talento do autor como


historiador eloquente e como escritor elegante. Tudo neles é movimento,
pintura, calor e concisão, sem a menor circunstância e palavra inútil que
os enfraqueça. Um escritor novel sobrecarregaria a narração de incidentes
e pormenores minuciosos e insignificantes, julgando embelezá-la; João
Francisco Lisboa, porém, mestre na arte de escrever, lança unicamente
mão das circunstâncias essenciais, e pinta a largos traços, mas com todas
as cores da verdade; por isso a sua narração, sem coisa alguma que a esfrie,
avulta sempre em interesse e produz um grande efeito.
Vede como são naturais a surpresa e o enleio dos que ficavam a
larga distância e ignoravam o aviso que recebera Tibério Graco de que
os senadores pretendiam matá-lo, vendo o movimento extraordinário
que se operava em torno dele; como é bem aproveitada a circunstância
de haver o mesmo levado a mão à cabeça, a qual serviu de pretexto
Autores brasileiros  327

a seus inimigos para dizerem que ele pedira a coroa ao povo; como
é soberanamente pintada a explosão de fingido patriotismo dos Pa-
dres conscritos que prorromperam, voz em grita, nestas exclamações:
“Deuses imortais! Que crime abominável! Aspirar à realeza! Atentar
à majestade do povo romano!”; e como termina bem este trecho pela
pintura do ridículo furor dos senadores, armando-se com os fragmen-
tos de bancos e outros móveis da cúria, que o tumultuoso arranco ha-
via feito pedaços.
Notai agora a mestria com que é magistralmente descrita a final ca-
tástrofe. Começa o autor por pintar o efeito que produziu o inopinado
acometimento no povo reunido no Capitólio, o qual, pela maior parte
desarmado, não pôde suster o ímpeto dos que vinham armados, e, dis-
parando em confusa e desordenada fuga, uns se precipitaram sobre os
outros, embaraçando-se reciprocamente; descreve depois o estrago que
fizeram os agressores em homens inermes, pondo em relevo a morte
de Tibério Graco, o qual, arrastado na fuga, resvalou, caiu e foi imedia-
tamente morto, sendo o primeiro a feri-lo na cabeça com uma perna
de banco Públio Satureio, seu colega no tribunado, seguindo-lhe Lú-
cio Rufo e outros que o acabaram; pinta por último a crueldade dos
vencedores que, depois de mil ultrajes, arrastaram e lançaram no Tibre
os cadáveres de Tibério e das demais vítimas, recusados à piedade dos
parentes e amigos que os solicitaram em vão para render-lhes as honras
fúnebres.
Nada em suma falta ao admirável quadro traçado nestes trechos,
nem quanto ao essencial da pintura, ou apanhamento das circunstân-
cias principais do fato, nem quanto aos ornatos da mesma, ou estilo
cheio de movimento, imagens e colorido apropriado.
Depois desses só reproduzirei mais o seguinte trecho que nos apre-
senta o autor debaixo de novo ponto de vista:

Ignoro se a cidade iluminou-se depois desta esplêndida vitória, que aliás


foi festejada com o suplício e desterro de muitos dos cúmplices do odioso
conspirador popular. Tudo isso entretanto encontra a sua natural explica-
ção na embriaguez da mesma vitória. O que é porém mais para notar-se é
que cerca de 60 anos depois Cícero, o grande orador, o virtuoso cidadão,
espírito tão vasto e brilhante como caráter fraco e vaidoso, para desterrar
as irresoluções do senado, puxar-lhe pelos brios e fazê-lo votar a morte dos
328  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

cúmplices de Catilina, citasse a ação de Nasica como digna de imitação e de


louvor, e exemplo de decidido e ardente patriotismo!

Se nos outros trechos citados apreciastes o autor como historiador


eloquente e como escritor elegante, podeis avaliá-lo neste como crítico
ilustrado e austero. Vede como, depois de tantos séculos que têm eleva-
do às nuvens a eloquência de Cícero, de quem diz Quintiliano, Cicero
non homines, sede eloquentiae nomen habetur,108 o historiador filósofo,
tendo de avaliar este personagem à luz da crítica severa e justa, não pou-
pa no homem eloquentíssimo a indesculpável fraqueza que teve, de elo-
giar, para servir às paixões de momento, uma ação digna da reprovação
do gênero humano, e que ele próprio seguramente reprovava em sua
consciência, como qualquer outro. Esta ilustrada imparcialidade, que
não se deixa cegar pelo mérito eminente do indivíduo apreciado, é que
constitui a primeira qualidade dos grandes historiadores, ou antes, dos
grandes escritores em mais de um gênero, a cujo número pertence in-
contestavelmente João Francisco Lisboa e com os quais ombreia, pois a
nenhum deles cede a palma nos diversos assuntos que tratou.
Em outro discurso apreciarei o segundo volume do Jornal de Timon:
por hoje aqui faço ponto.

LIÇÃO XCIV

O segundo volume do Jornal de Timon, que me proponho apreciar


hoje em um dos seus excertos, consta de sete livros, e compreende, sob
o modesto título de “Apontamentos. Notícias e Observações para servi-
rem à história do Maranhão”, uma série de estudos históricos importan-
tes sobre as cousas do antigo Estado do Maranhão e Pará, desde os pri-
meiros tempos coloniais até o estabelecimento das missões dos jesuítas
nele. É um trabalho muito judiciosamente feito à vista dos documentos
impressos e manuscritos que o autor pôde haver à mão, precedido de
notícias e observações críticas acerca do descobrimento da América por

  O trecho de Quintiliano (Institutio oratoriae, liber X – I, CXII) acha-se mal transcrito,


108

sendo sua formulação correta a seguinte: “... Cicero iam non hominis nomen sed eloquentiae
habetur”. Assim pode traduzir-se: “Cícero já não é um nome de homem, mas o da própria
eloquência.”
Autores brasileiros  329

Colombo e do Brasil por Pedro Álvares Cabral, e enriquecido não só de


esclarecimentos sobre a povoação de outros pontos do Brasil além do
Maranhão, como de apreciações as mais completas sobre o regime co-
lonial em todos os seus ramos, sobre os nossos aborígenes e as missões
de diversas ordens religiosas estabelecidas para catequizá-los. E muito
melhor se pode conhecer o verdadeiro estado do Maranhão naqueles
tempos primitivos por estes conscienciosos estudos, que nada deixam
a desejar quanto ao objeto histórico, que nos Anais de Berredo, que só
tratam de ordinário de insignificantes feitos militares escritos em estilo
túrgido e às vezes ininteligível.
O autor não se limita a narrar os fatos, acompanhado-os de reflexões
mais ou menos triviais, como quase todos os que escreveram antes sobre
nossas coisas; fez deles um estudo profundo, apreciando-os em sua ori-
gem, encadeamento e consequências, como praticaram os grandes his-
toriadores modernos, Cantù,109 Thierry,110 Guizot.111 Mas estes estudos,
aliás já de si tão apreciáveis, ainda o não contentavam, porque, na sua
longa estada em Portugal, tinha coligido materiais para escrever uma
história do Maranhão, a cuja realização a morte veio obstar, privando a
nossa literatura de uma obra que, a julgar por tais preliminares, sobre-
modo a enriqueceria. Tendo entretanto de avaliá-lo como historiador
unicamente no que nos legou, direi que não houve questão alguma das
que podem interessar à história do Maranhão que deixasse de ser por ele
ventilada e esclarecida, como colonização, catequese, escravidão e liber-
dade dos indígenas, escravidão dos africanos, administração civil e po-
lítica da colônia, sua cultura e comércio nascentes, usos e costumes dos
colonos, suas revoltas, já contra os jesuítas, já contra os capitães-mores e
governadores. Disto dá-nos amplo testemunho tanto este volume como
o terceiro, que brevemente apreciarei.
A forma que o autor deu ao seu trabalho é a mais apropriada, porque
o seu estilo nobre, fluido, correto, e por vezes pitoresco, é justamente o
que convém à história filosófica e crítica, e às cenas da natureza e aos
costumes singulares que descreve. Ocasiões há em que levanta a voz e
é eloquente, antes eloquentíssimo, como ele o sabe ser, quando o caso
pede. A sua dicção, sobre rica, é toda de lei, como de um escritor que
109
  Cesare Cantù (1804-1895).
110
  Augustin Thiery (1795-1856).
111
  François Guizot (1787-1874).
330  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

conhecia todos os recursos da língua e a manejava superiormente. As-


sim, os que se propõem o estudo das belas-letras podem aprender no
seu livro não só a história de nossas coisas, mas a escrever com correção
e elegância. Nada vos digo entretanto de mais, porque nenhum dos nos-
sos prosadores iguala certamente a este em gosto e perfeição de estilo.
Podia ler-vos diversas passagens notáveis deste livro, como a fun-
dação da Bahia e o estabelecimento dos jesuítas no Maranhão, porém
prefiro a todas, não porque seja a mais notável, mas pelo interesse his-
tórico que deve ter, a da conquista do Maranhão sobre os franceses. Por
ela podeis ajuizar do mérito do autor, que se mostra sempre digno do
assunto, seja ele qual for.
Ei-la:

Hoje em dia não se sabe ao certo o lugar onde foi assentado o aquartela-
mento português, pois que este nome de Guaxenduba perdeu-se de todo.
Da Jornada de Diogo de Campos colige-se apenas que ficava entre os rios
Mamuna e Muni, quatro léguas para lá da embocadura deste, fronteiro e
à vista da ilha de S. Luís em distância de uma duas léguas e meia. Não há
que fiar porém na indicação destas distâncias, porque eram seguramente
esmagas a olho, confundindo estes conquistadores a cada passo, em razão
da absoluta falta de conhecimentos dos lugares, qualquer estreito ou braço
de mar com rios, a ponto de pôr Diogo de Campos a embocadura do Ita-
pucuru (Tapucuru ou Maranhão lhe chama ele) junto e quase unida à do
Munim!
O coronel Lago diz na sua Estatística que, pelas combinações que fez, julga
que a enseada de Guaxenduba é a mesma que hoje se chama baía de Ana-
jatuba, quase norte-sul com a ponta de S. José, porque acha-se perto dali
uma ponta junto da qual corre o rio Tatuaba, onde apareceram vestígios de
um forte.
Qualquer que fosse, porém, a verdadeira posição do presídio, Diogo de
Campos o descreve como uma vasa de lama, com algumas pedras, e a par-
tes areia e todo espacejado ao mar mais de meia légua, que de maré vazia
ficava sem gota de água, e tão desabrigado que, refrescando a viração, não
havia maneira de chegar os navios à terra, nem desembarcar cousa algu-
ma. Era o sítio abundante de águas e sombreado de denso arvoredo; mas
o sargento-mor o critica como péssima posição militar, pois que, ficando
a barra a mais de quatro léguas, era facílimo com quaisquer embarcações
Autores brasileiros  331

cortar-lhe toda comunicação com a costa. Mas, já descobertos, não havia


remédio senão fortificarem-se ali a toda pressa.
Posta a gente em terra, abicados os navios à praia e explorados os arredores,
no que se despendeu um dia, logo se levantaram as costumadas disputas
entre o sargento-mor e o engenheiro de um lado, e Jerônimo de Albuquer-
que de outro, porque, levado este da sua índole aventurosa e do seu co-
nhecido sistema, ora queria abalar dali para estabelecer-se mais avante, nas
bocas do Munim ou do Itapucuru, onde acharia índios em quantidade para
o contentar, ora, em vez de fortaleza, queria uma simples casa no mato,
como as fazem os mesmos índios, que é uma cerca de mato cortado, com as
ramas e folhagens para fora, à feição de um curral de gado; e dizia ele que
aquilo bastava, pois não estavam em Flanardes, nem se haviam ali mister
outras fortalezas mais que daquela espécie. Venceu porém a opinião oposta
e, feita a escolha do sítio, traçou logo o engenheiro um hexágono perfeito
para a fortaleza, onde toda aquela gente se pudesse alojar, e com pouca
se defendesse. No dia seguinte (28) celebrou-se missa e, tirado à sorte o
nome da fortaleza, que saiu o da Natividade de Nossa Senhora, logo se deu
começo à obra.
Quando estavam todos muito embebidos no trabalho, apontou uma em-
barcação de índios da ilha, os quais, saltando em terra, foram recebidos do
capitão-mor com grande alegria e bom gasalhado; e por mais que eles, na
torvação e susto de que estavam tomados, dessem pouca aparência de ver-
dade às vozes de paz com que vinham, e nas informações discordassem ab-
solutamente, dizendo uns que a ilha estava cheia de franceses e outros que
os franceses já eram idos, pela qual razão vinham eles a saber quem eram
os novos hóspedes, pois os desejavam por seus compadres, o capitão-mor,
levado sempre das suas imaginações, cuidou que já tinha feita a aliança e
os despediu a todos com muitos mimos, tomando só dous reféns pelos cin-
co índios aliados que mandou com os outros a tomarem língua, e um dos
quais era o principal Mucura-pirá, velhaco muito autorizado por sua expe-
riência e mais partes. Entretanto, como depois se soube, eram estes tapuias
espias dos franceses, e vinham ver e explorar o acampamento.
Dois dias depois (30 de outubro), havendo-se derramado pelos arredores
a mariscar alguns dos índios aliados com suas mulheres e meninos, foram
salteados por uma partida dos da ilha, que cativaram uns e mataram outros,
mutilando os corpos com grande ferocidade e fazendo pedaços as cabe-
ças, o que entre estes indígenas era sinal de declaração de guerra e ódio
332  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

irreconciliável; mas, acudindo um reforço de portugueses, chegou ainda a


tempo não só de libertar os cativos, mas de matar alguns e de colher vivo às
mãos o capitão dos contrários.
Este sucesso, como era natural, confirmou os receios nos ânimos dos que já
os alimentavam, despertado-os em todos os outros, menos no do capitão-
-mor, que, com os olhos cravados de contínuo no horizonte, esperava que
a cada momento lhe chegassem da ilha os embaixadores tupinambás a ferir
pazes, e todo embebido nesse conceito, não só não sofria a menor observa-
ção que pusesse em dúvida o acerto das suas ideias, como não olhava de boa
sombra para o trabalho das fortificações.
Nisto o índio prisioneiro, fosse inconstância, ou desejo de agradar o recente
Senhor, ou gratidão de lhe deixarem a vida salva, revelou detalhadamente
assim a ocupação estável da ilha pelos franceses, e as suas grandes forças em
navios, fortalezas, artilharia, senão que, mal o permitisse o tempo, deman-
dariam aquele ponto, e deu por sinal que no dia seguinte apareceriam duas
embarcações pequenas a reconhecê-lo. E acrescentou que todos os portos
estavam tomados, todas as canoas de índios à disposição dos franceses, e
estes perfeitamente informados do estado do acampamento, pelos cinco
índios mandados pelo capitão-mor, os quais se achavam a bom recado na
fortaleza de S. Luís e tudo haviam descoberto, obrigados das torturas.
E de feito no dia imediato (2 de novembro) apareceram as duas lanchas
anunciadas, mas, sendo perseguidas com força superior, recolheram-se
imediatamente.
Parece incrível que, ainda depois deste sucesso, porfiasse o capitão-mor que
os índios da ilha deviam de ser por ele, e que, se já não tinham vindo a
buscá-lo, era porque os franceses os traziam como bloqueados; mas é de
crer que falasse assim por compostura somente, e em obséquio ao próprio
orgulho, porque nas obras já ia desmentindo a confiança que respiravam
as palavras. Propondo-lhe o sargento-mor que se mandassem avisos a Per-
nambuco em ordem a virem socorros, anuiu sim a que se expedissem dous
caravelões por mar, mas opô-se vigorosamente a que se mandassem índios
por terra, confessando que já dos próprios aliados receava que, aberto o
exemplo com a partida deste correios, todos os mais os seguissem, desam-
parando o forte.
Os caravelões partiram, e começou-se então a cuidar deveras nas forti-
ficações. O caso era em verdade urgente e apertado, porque, no meio de
todas essas intermináveis delongas e misérias da expedição portuguesa, o
Autores brasileiros  333

estabelecimento francês tinha medrado consideravelmente. As suas forças


numéricas haviam duplicado, com a chegada de novos socorros, e só o ca-
pitão de Pratz, aquele mesmo que de passagem tentara surpreender o presí-
dio da Tartarugas, havia trazido 300 homens em uma alterosa nau. Na ilha
havia já quatro fortes, bem que só nos ficassem os nomes de dous, o de S.
Luís e o de S. José do Itapari. Os índios, tanto da ilha, onde havia mais de
20 aldeias populosíssimas, como do vizinho continente de Tapui-tapera e
Cumã, estavam todos à sua devoção. E por fim senhoreavam completamen-
te o mar pela superioridade da sua esquadra. Valeu aos portugueses que a
grande nau de Pratz que se adiantara a buscá-los sofreu tamanho temporal
na costa do Araçaji (Arasanhug, chama-lhe Diogo de Campos) que se viu
necessitada a arribar a S. Luís, e tiveram assim os portugueses alguma folga
para adiantar as suas obras, no que punham grande vigor e diligência, como
quem receava ser acometido a cada instante.
“Trabalhava-se, escreve Diogo de Campos, de noite e de dia, coisa que se
não pode crer de gente tão cansada e tão mal provida, e que continuamen-
te andava com as armas nas mãos, e atravessando matos, e rondando as
praias, guardando portos, fazendo emboscadas, batendo veredas, reconhe-
cendo pistas, vigiando lanchas e trabalhando nas obras e na descarga dos
navios, de sorte que não havia sair de um trabalho sem se deixar de entrar
em outro; de todos a guarda no mar e dos navios dava mais cuidado, porque
por momentos as lanchas, canoas e patachos apareciam em diversas partes,
e como nenhuma era segura aos novos hóspedes, de todos se arreceavam e
convinha guardarem-se, de modo que, descalços, despidos, rotos do mato,
transidos, pálidos, mas muito animosos, andavam todos os soldados e ofi-
ciais com uma conformidade grande.”
Esta triste situação tornava-a ainda mais aflitiva a falta de boa comida, pois,
como a terra nada podia fornecer pelo enquanto, continuavam todos redu-
zidos a farinha e água. Nestes corpos assim extenuados, as moléstias come-
çaram de pronto os costumados estragos; alguns faleciam, muitos eram os
prostrados, incomodados todos. As fileiras do pequeno exército se desfare-
lavam a olhos vistos, pois, além dos mortos e enfermos, outros se tinham
ido nas dous caravelões.
Por este teor foram as coisas até o dia 7, em que os franceses arvoraram
uma bandeira branca em uma coroa fronteira ao forte. Palpitou o cora-
ção a Jerônimo de Albuquerque, que logo em altas vozes manifestou que
não deviam de ser senão os seus compadres Tupinambás que, fugindo à
334  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

tirania dos franceses, ou a nado, ou por qualquer outra indústria, vinham


ali buscar a sua proteção. Neste pressuposto mandou embarcações que os
conduzissem, mas estas acharam inimigos em vez de amigos, e à fuga de-
veram a salvação.
No dia 10 uma partida portuguesa surpreendeu um canoa e aprisionou
todos os índios que vinham nela, à exceção de dous que, lançando-se ao
mar, nadaram como golfinhos mais de duas léguas. Os prisioneiros, fa-
zendo da necessidade virtude, e não tendo naquele aperto outro remédio,
asseguraram com intrepidez e descaramento que vinham de paz. Saiu ale-
gremente a recebê-los Jerônimo de Albuquerque, mas Diogo de Campos,
a quem doíam estas coisas no coração, não se pôde ter que lhe não dissesse;
“Senhor, não sejam estes como os outros, mandem-se pôr a recado, e sai-
bamos o que se passa, que tanta gente, nem tão bem concertada, não vem
senão a tomar língua por parte dos franceses”. A isto lhe respondeu o ca-
pitão-mor publicamente: “Senhor, isto não é guerra de Frandes. Vmc. me
deixe com os índios por me fazer mercê, que eu sei como me hei de haver
com eles, que sei que me vêm buscar de paz.” E dizendo isto, os despediu e
deixou ir livremente, enchendo-os de afagos e mimos!
De maravilha um dos índios, que tinha a mãe em Pernambuco, deixou-se
ficar no acampamento, e revelou ao Padre fr. Manuel, que era muito ver-
sado nos seus dialetos, que a canoa não tinha ali vindo a outro fim senão
a fazer um último reconhecimento, sendo a tenção dos franceses assaltar
os navios àquela mesma noite e, depois de os render e queima, pôr cerco à
fortaleza por mar e por terra.
Como isto viesse ao conhecimento de Diogo de Campos, à boca da noite,
fez aviso ao capitão-mor para se precaver e puxou ele com parte da força
a guarnecer os navios, entendendo talvez, como Temístocles, que a salva-
ção desta singular Atenas estava toda naquelas muralhas de madeira; mas,
saindo-lhe o capitão-mor por diante no ato mesmo do embarque, opôs-se
a este desígnio, dizendo que tinham vindo ali não a defender meia dúzia
de tábuas podres, senão a terra que pisavam e haviam ocupado em nome
d’el-rei. Tornou-lhe Diogo de Campos que contas dariam ao mesmo rei da
armada, se a perdessem, sendo ela o seu único recurso e meio de salvação?
E assim continuou a disputa, vencendo afinal a autoridade de Jerônimo de
Albuquerque, que mandou abicar e atoar os navios à terra, quanto fosse
possível, e, deixando-lhes alguma gente para sua guarda, dispôs tudo em
terra para repelir o ataque.
Autores brasileiros  335

Na madrugada de 11 de novembro, envoltos numa densa escuridão, chega-


ram os franceses silenciosamente; mas, sendo em breve percebidos, travou-
-se a canhonada e fuzilaria de parte a parte. Entretanto a artilharia do forte
jogava com pouco efeito, e os guardas postos aos navios os abandonaram
depois de uma fraca resistência. Três dos navios caíram em poder do ini-
migo, escapando os outros três, ou por estarem já em seco mui próximo à
terra, ou por mais abrigados pela artilharia do forte.
Ficaram os franceses tão enfunados com este sucesso que dali por diante
começaram a correr o mar livremente em face do aquartelamento portu-
guês, e armando as três embarcações que haviam tomado, ocupavam e en-
chiam o canal com as suas velas, vindo até a meter-se debaixo da artilharia
do forte, e às arcabuzadas molestavam a gente que andava pela praia, não
lhes consentido mais nem o repouso, nem o trabalho.
Nestas arriscadas conjunturas, cortados os portugueses por mar e por terra,
por um inimigo poderoso em si mesmo, e ao demais assistido de inumerá-
vel multidão de índios, com suas imensas canoas de 60 e 70 palmos de com-
prido, já os valentões do Preá se arrependiam da sua temeridade e estima-
riam muito ver-se de novo naquele ponto. Os índios amigos, esses, vendo
que os franceses haviam tomado os navios tanto a mãos lavadas, andavam
tão encolhidos e espantados que já lançavam novas contas, e nem acudiam
mais ao trabalho como dantes, nem o capitão-mor ousava de ordenar-lhes
coisa alguma, quase certificado do pouco que podia esperar deles.
Começou-se também a sentir a penúria, porque os índios amigos já não ou-
savam alongar-se do acampamento, para colher alguma cousa, temerosos
com razão dos contrários que, em numerosas emboscadas, infestavam to-
dos os arredores. A consternação tornava-se geral e sugeria alternativamen-
te em uns projetos criminosos, e em outros pouco cordatos, sendo evidente
que ninguém quase sabia já dar-se a conselho.
Um dia teve o sargento-mor denúncia de que estava urdida uma numero-
sa conjuração para pôr fogo à pólvora, a fim que, forçados os chefes pela
falta de munições, abandonassem o acampamento e retrocedessem, fosse
para onde fosse. O único embaraço que detinha os conjurados era o re-
ceio de que, ardendo toda a pólvora dos armazéns, não lhes viesse depois
faltar a indispensável para se defenderem na retirada, e por isso andavam
cogitando maneira de esquivar este inconveniente. Nas críticas circunstân-
cias em que se achavam, viu-se o sargento-mor obrigado a dissimular, sem
nada fazer ostensivamente para reprimir tamanho atentado, e, despedindo
336  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

o conjurado delator com palavras ambíguas e vagas promessas de libertar


brevemente a todos dos grandes vexames que estavam passando, proveu
imediatamente à segurança da pólvora, dobrando-lhe as guardas, escolhen-
do-as de toda a sua confiança, e havendo-se em tudo com tal disfarce que
ninguém suspeitasse o que ele só sabia.
Feito isto, determinaram os chefes de fazer uma exploração, a ver se por
entre as ilhas e a coberto dos navios franceses descobriam algum canal, pelo
qual ou pudessem retirar-se com segurança, ou pelo menos mandar esta-
belecer um presídio no Preá, onde fossem avisadas as embarcações que por
ventura viessem de Pernambuco, não fossem elas cair nas mãos do inimigo,
privando assim os portugueses do único socorro de que já agora esperavam
a salvação.
A este fim partiu Belchior Rangel no dia 17, caminhando pela praia, com
60 arcabuzeiros, 30 índios e um excelente guia; mas, posto fosse o caminho
já de antes frequentado, andaram eles todo aquele dia e noite, e parte do
seguinte, sem acertar por onde deveriam seguir, e depois de levar atolados
algum tempo em um igarapé que tentaram atravessar, por estar a maré va-
zia, voltaram ao acampamento tão descompostos e sórdidos da lama, e tão
quebrantados de fadiga, como se tiveram andado na vasa um ano inteiro.
Este sucesso, que acharia a sua explicação natural no desalento e má von-
tade dos exploradores, se capitulou pouco depois quase como milagroso,
porque, se Belchior Rangel tivesse seguido por diante, o acampamento,
desfalcado de uma parte tão considerável das suas forças, mal poderia re-
sistir no dia seguinte ao vigoroso assalto do inimigo. Mas o sargento-mor,
que o não previa, tomou grave despeito daquele malogro, e determinou ele
mesmo de ressarci-lo, indo aquela noite, e mais o engenheiro Frias, a fazer
a exploração, cada um em seu batel com 10 homens. Quando porém pela
madrugada do dia 19 estavam a ponto de embarcar, deram vista de uma
imensa multidão de embarcações de remo que, cozidas com o mangue, se
vinham em grande silêncio aproximando do forte. Eram os franceses que
vinham a tomá-lo.
Ao amanhecer, nada fizeram os portugueses por lhes defender a desembar-
cação, e eles a efetuaram com gentil despejo e galhardia, que na competên-
cia de quem primeiro tocaria em terra, muitos se lançaram à água, o que foi
causa de molharem frascos e bandoleiras, e talvez de se lhes estragar parte
da munição. Os índios fizeram o mesmo, e saltaram cada um com uma es-
pécie de faxina na mão, cobertos de paveses e rodelas, tintos de variegadas
Autores brasileiros  337

cores e arreados de penas a seu modo, fazendo mil trejeitos e esgares medo-
nhos, e arrancando tão temerosa grita que parecia estar ali o inferno todo,
diz Diogo de Campos.
A armada francesa era em verdade formidável, se a compararmos com o ex-
tenuado e desprovido destacamento português, pois compunha-se de sete
navios de alto bordo e de 46 grandes canoas, com 400 soldados e para mais
de dois mil índios.
Berredo e outros dizem quatro mil; mas, além de que só falam no desem-
barque da metade desta força, sem explicar o destino da outra, Diogo de
Campos, que menciona só dois mil, acrescenta que as canoas maiores ti-
nham 75 palmos de comprido e eram guarnecidas com 25 remos por ban-
da, o que dá para as 46 que vieram justamente cousa de dous mil índios,
número sem dúvida muito mais provável.
O forte da Natividade ou de Santa Maria estava situado sobre uma pequena
eminência, arvoredo frondoso derredor, e a praia imensa na frente; mas de
lado lhe ficava a cavaleiro outra eminência mais elevada, que o descuido
ou imperícia do engenheiro deixou vaga e acessível ao inimigo. Junto a esta
corria um ribeiro, de onde o forte se provia de água.
Era tal a confiança dos franceses nas suas forças que só desembarcaram os
índios e 200 soldados, ficando a bordo das grandes embarcações outra igual
porção. A mesma força desembarcada se dividiu em duas; uma foi ocupar
a eminência que dominava o forte português, e com as varas e faxinas que
levava em breve conseguiu levantar ali uma cerca a modo de fortificação; e
outra ficou ocupando a praia, onde ergueu alguns redutos que por meio de
outra extensa cerca comunicavam com a colina.
Diogo de Campos, antes que estas obras se fizessem e logo no ato do de-
sembarque, veio com alguns arcabuzeiros apalpar o inimigo, mas, depois de
uma ligeira escaramuça, mortos dois franceses e um português, acolheu-se
ao forte, onde traçou rapidamente com o colega a ordenança que na defe-
sa deviam guardar. As suas forças eram minguadas e ainda assim comete-
ram o mesmo erro que o inimigo, dividindo-as. Jerônimo de Albuquerque
devia acometer a colina com cerca de 80 soldados e um número menor
de índios, e marchou primeiro rebuçado pelos matos. Diogo de Campos
devia acometer os redutos da praia com um punhado de homens quase
igual. O capitão Fragoso ficou no forte com uma pequena companhia de
reserva para acudir onde a urgência do caso o pedisse. No mesmo forte
ficaram também de guarnição uns 30 homens, os mais deles enfermos, e
338  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

marinheiros desembarcados. Os três navios restantes estavam varados na


praia, desaparelhados e com muitas tábuas arrancadas, em ordem a não se
aproveitar deles o inimigo. E eis aí tudo.
Enquanto Jerônimo de Albuquerque, metido por uma estreita vereda,
procurava flanquear a colina sem ser sentido, Diogo de Campos guiava
silenciosamente para a praia, mascarando-se também com os matos quanto
podia, para que não dessem fé de sua marcha. Durante ela porém percebeu
que os seus soldados o seguiam remissos e descoroçoados, e como pesa-
rosos de abandonarem o abrigo do forte. Receando ele então que a tibie-
za e frouxidão degenerasse bem depressa em coisa pior, arrancou de uma
pistola e, aceso em cólera, afetou-lhes uma covardia tão indigna, e mais
em quem se havia amotinado no Preá para avistar-se com o inimigo; e,
acrescentando que ao primeiro que torcesse o rosto faria saltar os miolos
com um tiro, concluiu animando-os a que fizessem o que lhe vissem fazer, e
certificando-os da vitória, se por um pouco tivessem a barba tesa à primeira
fúria do inimigo.
Chegado a este momento supremo, que para sempre decidiu dos destinos
da nossa pátria, o escritor destas memórias não pode passar adiante sem fa-
zer algumas rápidas considerações sobre as circunstâncias dos dois partidos,
que prometiam resultados tão outros dos que a fortuna proporcionou. De
que fios misteriosos pende a sorte dos impérios e das nações? Os franceses
senhoreavam o mar com uma possante armada; a sua superioridade em ho-
mens, armas e provimentos de todo gênero era imensa, e para coroa de tudo
tinham por si o formidável apoio de toda a população indígena. Inchados
além disso com a recente vitória e cheios, com razão, de confiança nas pró-
prias forças, como não haviam de contar que a fortuna, que desde o princí-
pio lhes sorria, não coroasse todas as suas fadigas com o derradeiro triunfo?
É certo que os franceses acumularam faltas sobre faltas. Quando deviam
atacar a expedição, antes que ela tomasse pé e criasse raízes, consumiram
o tempo em repetidas explorações e reconhecimentos. Tendo depois toma-
do e destruído a flotilha portuguesa, e senhoreando exclusivamente o mar,
era-lhes bem fácil interceptar todos os socorros e obrigar o pequeno pre-
sídio português a render-se pela fome ou a tentar uma retirada desastroso
por terra, muito antes mesmo que tais socorros aparecessem. E, preferindo
por fim jogar a sorte da colônia numa batalha, houveram-se com tão pre-
sunçosa confiança que partiram as suas tropas, fazendo desembarcar me-
tade delas somente, e esta mesma dividiram e encaminharam a dois pontos
Autores brasileiros  339

diversos, como já se viu. Entretanto, em nenhuma destas situações, mesmo


na mais desvantajosa, eram os franceses inferiores aos seus adversários, e
mais achando-se assistidos de tão crescida multidão de índios.
Da parte dos portugueses porém que contraste! Um pobre expedição, fruto
mesquinho de um parto laborioso de uns poucos anos de contradições,
embaraços e misérias de todo gênero, arrastando-se languidamente de es-
tação em estação desde Pernambuco até Guaxenduba, e depondo em cada
estação parte das minguadas forças; minada e dizimada pela penúria, pe-
las moléstia e pela insubordinação; desmoralizada e abatida pela perda da
armada, e, por fim de tudo, no momento supremo e decisivo, entorpecida
pelo medo e covardia, a maior degradação e infâmia a que um soldado
pode chegar. E nada menos os portugueses venceram! Mais tarde havemos
de ver que a Providência foi justa nos seus desígnios.
Diogo de Campos foi o primeiro que feriu a batalha, bradando — Santiago
— e arremetendo denodado contra o inimigo. Não tardaram muito pri-
meiro a reserva do capitão Fragoso, e logo após o capitão-mor, que, vendo
a briga acesa, desistiu do primeiro intento de atacar a colina e acudiu pres-
suroso onde o chamavam a honra e o perigo. Deste jeito viu-se o inimigo
acometido inopinadamente por diversos lados. Foi curta a peleja, porém
vigorosa e mortífera. Que decidiu do êxito? Algum imprevisto e ligeiro aci-
dente, algum brado de terror ou de coragem solto no meio de conflito, e por
ventura a morte do general francês Mr. de Pizieux, derribado logo às pri-
meiras arcabuzadas. Foram os índios os primeiros a afrouxar, exemplo que
não tardaram os franceses a seguir, descoroçoados a um tempo e baldos da
principal direção, com a morte de seu chefe. Bem depressa disparou tudo
em desordenada fuga, ficando o campo do combate alastrado de cadáveres
e despojos.
Durante a refrega, que se concluiu em menos de uma hora, Ravardière, que
do mar contemplava a derrota dos seus, tentou com a esquadra prevenir
as suas últimas consequências, divertindo com o fogo da sua artilharia a
atenção dos vencedores; mas, estando a maré baixa, os vasos maiores não
puderam aproximar, e os que o conseguiram foram de maneira servidos
pelo fogo do forte que, sem poder obstar a cousa alguma, se tornaram a
fazer ao largo.
Tomado um breve descanso, guiaram os vencedores à fortificação da emi-
nência, de onde os vencidos não receberam socorro algum durante o primei-
ro conflito, porque Pizieux havia positivamente determinado à guarnição
340  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

que, por mais que visse ferida e peleja, por nenhum caso se movesse, antes
se fortificasse cada vez mais, entendendo achar ali um abrigo, se fosse mal
sucedido. Este ataque foi o mais perigoso e difícil; a guarnição se refizera
com a turbamulta dos fugitivos e, resguardada pela cerca, fuzilava os portu-
gueses que marchavam descobertos a meter-se na boca dos seus arcabuzes.
Não poucos deste caíram junto à fortificação, mortos ou feridos, e entre eles
um filho do capitão-mor, ferido, e Luís de Gaevara, sobrinho do sargento-
-mor, que, ainda depois de morto, tinha as mãos ambas seguras à cerca, em
posição de quem procurava vencê-la de salto. Nada porém foi cabal a suster
o ímpeto dos assaltantes, nem podia ser muito longa a resistência dos sitia-
dos já quebrantados pela rota lastimosa que haviam testemunhado. Os ín-
dios, que ali estavam em número maior de 600 homens, foram os primeiros
que afrouxaram e, retraindo-se à retaguarda, arrojaram-se com tal ímpeto
pela colina abaixo que arrebataram consigo os matos da cerca, semelhante
na violência e estrépito da fuga à queda ruidosa de uma torrente caudal. Os
franceses, a quem para cúmulo de infortúnio se acabou a pólvora, saíram
também em debandada pela mesma aberta.
Neste segundo ataque, em que os franceses fizeram honradamente o seu
dever até a última extremidade, estiveram os portugueses a sós, porque os
seus índios se haviam desmandado pelo campo e andavam encarniçados
em despir os cadáveres dos franceses e em quebrar os crânios aos índios
inimigos.
A jornada com todas as suas fases e acidentes durou desde as 10 horas da
manhã até quase ao cair da noite, em que todos se recolheram ao forte, sem
mais perseguir o inimigo que fugia pelo bosque, por lhe dar ponte de prata,
dizia Diogo de Campos. Este dia os dois velhos, sempre tão avessos em
tudo, se mostraram perfeitamente semelhantes, no valor como na fortuna.
A perda dos franceses foi imensa, pois deixaram nove dos seus em poder
do vencedor, e cento e 15 mortos no campo da batalha, entre os quais
se contavam, além do comandante em chefe Pizieux, muitos oficiais de
distinção que todos combateram até a morte, por mais que Diogo de
Campos lhes bradasse em francês que se rendessem. Apenas o senhor
de Pratz buscou a salvação na fuga, escapando a nado e com a espada na
boca. Entre os índios que pereceram, ficou o denominado Mingau, gran-
de inimigo dos portugueses, a quem por 14 vezes havia escapado desde
as guerras do Rio Grande e Ibiapaba. Se a estes mortos juntarmos os que
se afogaram no mar, e os que deviam de ir feridos, ver-se-á que o desastre
Autores brasileiros  341

foi completo. E sobre isto, os portugueses, logo depois da primeira vitória,


puseram fogo à armada das 46 canoas, que arderam todas até a última. A
perda do vencedor foi comparativamente insignificante, pois não excedeu
a 10 mortos e 18 feridos.
Ainda assim, como os franceses conservavam intactas as mais de suas
forças e esperavam para o dia seguinte um grande auxílio de refresco de
índios do Cumã, com quem os dispersos, refazendo-se, se podiam juntar
e tentar de novo a fortuna das armas, Diogo de Campos nada quis confiar
ao acaso, antes teve toda a gente acautelada e recolhida durante a noite,
de cansando, enterrando os mortos e curando os feridos. “A gente estava
tal, diz ele, e havia tanto que entender com feridos e mortos, e com vivos
mortos de fome, que bem o havíamos mister assim. No quartel — a Deus
louvores! —, não havia cirurgião nem mezinha alguma mais que um po-
bre moço que, ainda que soubesse atar uma ferida, não tinha coisa que lhe
pôr mais que azeite comum ou de copaíva e pano d’água com ensalmo,
que para tão terríveis feridas, como alguns tinham, era coisa lastimosa;
somente entre os índios havia ao seu modo bailas e cantos toda a noite,
e as mulheres, apregoando pelo quartel, andavam cantando das proezas
de seus maridos e publicando os nome dos homens de guerra que haviam
tomado nos contrários, quebrando-lhes as cabeças, cerimônia notável e
de muita graça, pelo fervor com que as mulheres índias de aquelas partes
dão à execução este rito.”
Ao amanhecer do dia 20 de novembro os do forte deram vista da armada
com as vergas e bandeiras abatidas e desarvoradas, em profundo silêncio,
sem toque de alvorada, nem os tiros do costume, tudo em sinal de dó, pela
perda do general e de tantos bravos, senão é que a principal causa de aflição
estava na derrota e malogro de tantas esperanças. O certo é que Ravardière,
de anojado, esteve dois dias retraído em sua câmara sem falar a ninguém,
como depois se soube. Mas os vencedores nem por isso tinham grande mo-
tivo de contentamento, pois viam o mar tomado, achavam-se sem um único
batel em que navegar e começavam a ser apertados pela fome, acrescendo a
tudo os receios de algum novo ataque.
E de feito, pelas sete horas da manhã, assomaram no horizonte as preco-
nizadas canoas dos índios cumã, em número de dezesseis16 com 600 ho-
mens, aproando para a armada e forte de Guaxenduba, e enfileiradas uma
trás das outras. Estes auxiliares tentaram fazer o seu desembarque para o
lado do Muniam; mas, obstados por cem mosqueteiros portugueses que
342  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

lhes saíram ao encontro, e informados um pouco além pelos extraviados


da grande rota da véspera, se deram pressa em fugir para as suas aldeias,
sem fazer nenhum cabedal dos repetidos sinais da capitania francesa, tão
infiéis e esquivos na presente desgraça, como prontos e dedicados na boa
fortuna.
Ravardière, que sempre fora tão mimoso dela, não pôde sofrer de boa
sombra este estrondoso revés que o tinha quase derribado de suas mais
claras esperanças; e ele, que no momento do ataque escrevera ao chefe
português uma carta arrogante e ameaçadora, a que se lhe respondera
pela maneira que já fica referida, isto é, com a batalha e a vitória, exalou
agora o seu despeito e mau humor em outra não menos incongruente.
Jerônimo de Albuquerque respondeu-lhe com dignidade e moderação; e
daí estabeleceu-se essa famosa correspondência, que Diogo de Campos
nos conservou, e é um curioso monumento da petulância como da corte-
sia francesa, não menos que do estilo e dos costumes militares daqueles
tempos e paragens, e das importantes negociações diplomáticas, que de-
ram em último resultado a evacuação dos franceses e o estabelecimento
permanente dos nossos maiores.

Da passagem que vos li reproduzirei os seguintes trechos relativos ao


combate de Guaxenduba, o qual decidiu da sorte do Maranhão:

Quando porém pela madrugada do dia 19 estavam a ponto de embarcar,


deram vista de uma imensa multidão de embarcações de remo que, cosidas
com o mangue, se vinham em grande silêncio aproximando do forte. Eram
os franceses que vinham a tomá-lo.
Ao amanhecer, nada fizeram os portugueses por lhes defender a desembar-
cação, e eles a efetuaram com tão gentil despejo e galhardia que na compe-
tência de quem primeiro tocaria à terra muitos se lançaram à água, o que foi
causa de molharem frascos e bandoleiras, e talvez de se lhes estragar parte
da munição. Os índios fizeram o mesmo, e saltaram cada um com uma
espécie de faxina na mão cobertos de paveses e rodelas, tintos de variadas
cores e arreados de penas a seu modo, fazendo mil trejeitos e esgares medo-
nhos, e arrancando tão temerosa grita que parecia estar ali o inferno todo,
diz Diogo de Campos.
A armada francesa era em verdade formidável, se a compararmos com o ex-
tenuado e desprovido destacamento português, pois compunha-se de sete
Autores brasileiros  343

navios de alto bordo e de 46 grandes canoas, com 400 soldados e para mais
de dois mil índios.

[...]

O forte da Natividade ou de Santa Maria estava situado sobre uma pequena


eminência, arvoredo frondoso derredor e a praia imensa na frente; mas de
lado lhe ficava a cavaleiro outra eminência mais elevada, que o descuido
ou imperícia do engenheiro deixou vaga e acessível ao inimigo. Junto a esta
corria um ribeiro, donde o forte se provia de água.
Era tal a confiança dos franceses nas suas forças que só desembarcaram os
índios e 200 soldados, ficando a bordo das grandes embarcações outra igual
porção. A mesma força desembarcada se dividiu em duas; uma foi ocupar
a eminência que dominava o forte português, e com as varas e faxinas que
levava em breve conseguiu levantar ali uma cerca a modo de fortificação; e
outra ficou ocupando a praia, onde ergueu alguns redutos que por meio de
outra extensa cerca comunicavam com a colina.
Diogo de Campos, antes que estas obras se fizessem e logo no ato do de-
sembarque, veio com alguns arcabuzeiros apalpar o inimigo; mas, depois de
uma ligeira escaramuça, mortos dois franceses e um português, acolheu-se
ao forte, onde traçou rapidamente com o colega a ordenança que na defesa
deviam guardar. As suas forças eram minguadas e ainda assim cometeram
o mesmo erro que o inimigo, dividindo-as. Jerônimo de Albuquerque devia
acometer a colina com cerca de 80 soldados e um número menor de índios,
e marchou primeiro rebuçado pelos matos. Diogo de Campos devia acome-
ter os redutos da praia com um punhado de homens quase igual. O capitão
Fragoso ficou no forte com uma pequena companhia de reserva para acudir
onde a urgência do caso o pedisse.

[...]

Diogo do Campos foi o primeiro que feriu a batalha, bradando — Santiago


— e arremetendo denodado contra o inimigo. Não tardaram muito pri-
meiro a reserva do capitão Fragoso e logo após o capitão-mor, que, vendo
a briga acesa, desistiu do primeiro intento de atacar a colina e acudiu pres-
suroso onde o chamavam a honra e o perigo. Deste jeito viu-se o inimigo
acometido inopinadamente por diversos lados. Foi curta a peleja, porém
vigorosa e mortífera. Que decidiu do êxito? Algum imprevisto e ligeiro aci-
dente, algum brado de terror ou de coragem solto no meio do conflito, e
344  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

por ventura a morte do general francês, Mr. de Pizieux, derribado logo às


primeiras arcabuzadas. Foram os índios os primeiros a afrouxar, exemplo
que não tardaram os franceses a seguir, descoroçoados a um tempo e bal-
dos da principal direção, com a morte de seu chefe. Bem depressa disparou
tudo em desordenada fuga, ficando o campo do combate alastrado de ca-
dáveres e despojos.

Não irei por diante na reprodução da descrição do combate, ou an-


tes do seguimento da vitória; pois é sabido que a derrota dos franceses
foi completa, sendo desalojados, mortos ou aprisionados os que ocupa-
vam a colina, sem que a esquadra de La Ravardière, ou os navios mais
possantes dela, pudessem aproximar-se de terra para valer aos seus, em
razão do inconveniente da maré baixa. Bastam os trechos citados para
dar-nos ideia da beleza da narração, que é um verdadeiro modelo no seu
gênero, porque o autor soube lançar mão de tudo quanto podia realçá-
-la, como circunstâncias de maior vulto e interesse, e colorido conve-
nientemente adaptado para descrevê-la.
Já não é a primeira vez que tenho de render homenagem ao talento
descritivo do autor, que pinta sempre com pincel de mestre, sem desfi-
gurar os seus quadros com acidentes e ornatos inúteis ou prejudiciais.
Leia-se, ainda que seja rapidamente, esta descrição, e logo conhecer-se-
-á o seu mérito, seja no essencial, seja nos acessórios, pela impressão
que nos causa o conjunto apropriado de uma e outra coisa, e que não
experimentamos, lendo algum outro escritor que tratasse da matéria.
Podem objetar-nos que o autor tirou de fontes conhecidas os fatos
que constituem a sua descrição, assim é; mas o que o torna incontes-
tavelmente superior a quantos o precederam na narração do sucesso é
justamente o apanhamento magistral que fez dos mesmos fatos, ado-
tando só os que tinham interesse real, expondo-os com ordem, clareza
e lucidez admiráveis, e revestindo-os do colorido próprio, e tal como ele
sabia dar a tudo que saía de sua pena. Este supremo discernimento, tato
e gosto por ele empregados para fazer sobressair o que nos apresenta
aos olhos do entendimento são qualidades que só pertencem ao grande
escritor, ou, para melhor dizer, ao gênio que por elas brilha.
Nesta magistral descrição que nos dá do combate que naqueles
tempos decidiu da sorte do Maranhão vem-nos logo impressionar
agradavelmente a beleza de sua dicção pitoresca, e toda portuguesa
Autores brasileiros  345

de lei, como se nota nas seguintes frases: Deram vista de uma imensa
multidão de embarcações que, cosidas com o mangue, se vinham em
grande silêncio aproximando do forte; mas de lado lhe ficava a ca-
valeiro outra eminência mais elevada; veio com alguns arcabuzeiros
apalpar o inimigo; Diogo de Campos foi o primeiro que feriu a batalha;
e logo após o capitão-mor que vendo a briga acesa desistiu do primeiro
intento de atacar a colina, e acudiu pressuroso onde o chamavam a
honra e o perigo. Escusado é dizer que os tropos que contribuem para
este belo estilo pitoresco são todos muito expressivos, porque tanto
têm de arrojados como de felizes.
Era pois João Francisco Lisboa um escritor que sabia tratar supe-
riormente qualquer assunto que se propunha, seja no que se refere à
invenção e distribuição, seja no que é propriamente elocução, em que
ombreia com os Freires, Sousas e Vieiras. Quem, ao ler esta e outras
passagens do Jornal de Timon, não dirá que está fazendo a leitura de um
autor clássico? Porém o que é ainda mais digno de louvor é que Lisboa
nos reproduz nos seus escritos a beleza de dicção dos clássicos, não os
defeitos de alguns deles; pois nem é declamador como Jacinto Freire,
nem cheio de antíteses e trocadilhos de palavras como Vieira. Por isso
não hesitarei em propor este escritor à nossa mocidade como verdadei-
ro modelo na arte de escrever.
Em outro discurso apreciarei o terceiro volume do Jornal de Timon:
por hoje aqui faço ponto.

LIÇÃO XCV

O terceiro volume do Jornal de Timon, que me proponho apreciar


neste discurso, não se acha dividido em livros como o precedente, mas
forma como um só corpo de livro dividido em simples seções ou gran-
des capítulos. É pela ventura o mais importante dos três no que se refere
a estudos feitos em vista de documentos manuscritos, que o autor teve
ocasião de consultar durante a sua longa residência em Portugal, onde
lhe foram franqueados os da Torre do Tombo. Compreende este volume
a narração das cenas animadas e dramáticas que comoveram profunda-
mente a nascente cidade de S. Luís nos anos de 1684 e 1685, como diz
o próprio autor, com sumária indicação prévia dos sucessos anteriores
346  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

mais notáveis desde a fundação da colônia e estudos muito profundos


sobre a administração colonial feitos na respectiva legislação em todas
as suas relações. É um trabalho completo.
As cenas animadas e dramáticas a que se refere o autor são as da
revolução operada no Maranhão a 23 de fevereiro de 1684 pelos co-
lonos que, dirigidos por Manuel Bequimão, Jorge de Sampaio e ou-
tros chefes prenderam o capitão-mor Baltasar Fernandes, depuseram
o governador Francisco de Sá e Meneses, ausente no Pará, aboliram o
estanco, ou monopólio da venda das fazendas, e expulsaram os jesuí-
tas, fazendo-os embarcar violentamente para Portugal em março do
mesmo ano. Esta revolução, chamada a do Bequimão, ou Beckman,
seu chefe mais notável, que foi depois enforcado no ano seguinte jun-
tamente com Jorge de Sampaio, governando já o Maranhão Gomes
Freire de Andrade, que viera da metrópole com uma companhia de
soldados substituir a Sá e Meneses, é em todas as suas causas e porme-
nores magistralmente apreciada e descrita pelo autor, que, estudando
os fatos com esmero, os expõe com ordem e critério admiráveis, sobre
revesti-los com a magia do seu estilo, que lhes dá um interesse quase
contemporâneo.
Não se poupa ele a trabalho, e vai nos defeitos da própria legislação e
vícios da administração colonial buscar as causas da revolta, que não era
senão o efeito dessas causas aglomeradas e que um ou outro incidente,
como a introdução do estanco, fez rebentar.
Nada escapa à sua judiciosa pena, nem a sórdida ganância dos colo-
nos em manter em sua plenitude a escravidão dos índios, a cuja cabal
realização se opunham as missões dos jesuítas; nem a proteção inte-
resseira que estes padres davam aos indígenas, mais com vistas no en-
grandecimento de sua ordem que na prosperidade da colônia; nem o
exclusivo de compras e vender aos colonos que a metrópole concedia a
alguns tratantes; nem a prevaricação dos governadores e capitães-mo-
res que, com poucas e honrosas exceções, só tratavam de locupletar-
-se nestes estabelecimentos longínquos; nem finalmente a negligência
ou falta de tino da metrópole em promover-lhes o engrandecimento,
como cumpria. Verdade é que já o padre Antônio Vieira, que visitou
por duas vezes o Maranhão, como se sabe, tinha já assinalado algumas
das causas do atraso da nascente colônia, mas não com tanta amplidão
Autores brasileiros  347

e profundeza, nem sobretudo com tanta imparcialidade, porque, na sua


qualidade de jesuíta, advogava os interesses da ordem.
Deste excelente excerto histórico com que o autor enriqueceu a nos-
sa literatura escolherei para ler-vos duas passagens das mais notáveis,
como a partida dos jesuítas e a execução do Bequimão. Por elas ajuiza-
reis do mérito do autor naquelas narrações históricas que, pelo jogo do
afetos, tanto se aproximam do drama e tanto nos cativam.
Ei-las:

Chegadas as coisas a este extremo, aprazaram os chefes a última conferên-


cia para a noite de 23 de fevereiro, véspera de sexta-feira de passos. Nessa
mesma tarde a imagem do Senhor tinha de ser transferida da igreja do Car-
mo para a da Misericórdia, a fim de sair no dia seguinte em solene procis-
são, segundo o costume. O grande concurso de povo naquele ato religioso
determinou sem dúvida a escolha da ocasião. Os convites fizeram-se com
tanta publicidade como audácia durante o curto trânsito.
A reunião, que foi das mais numerosas, efetuou-se alta noite, no lugar cos-
tumado, isto é, na cerca dos capuchos, sítio ainda então ermo e apartado do
coração da cidade. Como mais autorizado ou mais eloquente, o Bequimão
tomou um lugar conveniente e expôs em um conciso discurso as causas e os
fins daquele ajuntamento e da revolução que dele devia sair. A expulsão dos
assentistas e do estanco, nunca contestada, sempre se teve por coisa simples e
decidida; mas a dos Padres, e sobretudo a deposição do capitão-mor e do go-
vernador, posto que desejadas por uns e previstas e subentendidas por outros,
propostas então formalmente pela primeira vez, foram acolhidas com certa
estranheza e sobressalto. Aventuraram-se algumas objeções sobre os graves
comprometimentos que resultariam destes ousados alvitres. Assomado e im-
petuoso de seu natural e como surpreendido por uma oposição intempestiva,
o Bequimão as rebateu cheio de sobranceria e de despeito. Responderam-lhe
no mesmo tom, e dentro em pouco estava travada uma confusa e renhida
disputa. Debalde acudiu Tomás Bequimão a compor os ânimos com palavras
brandas e conciliadoras; a reunião ia dissolver-se sem haver resolvido coisa
alguma, quando um ilhéu, de nome Manuel Serrão de Castro, homem brutal
e de pouca suposição, arrancando e brandindo a espada exclamou furioso
que, pois haviam chegado até ali, já agora não havia recuar do propósito co-
meçado com tanto perigo, e que o traidor que o contrário sustentasse ali mes-
mo acabaria às suas mãos. A este gesto e grito igualmente enérgicos, todos
348  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

tiveram mão em si, e a turba guiou imediatamente ao seu destino, após dos
chefes, que, sem mais disputar, deixaram ao curso dos acontecimentos e ao
comprometimento que deles necessariamente resultaria o suprir o que havia
de incompleto na deliberação interrompida.
[...]
Era preciso completar e legalizar estas medidas, e a esse intento convocou-
-se imediatamente para a casa da câmara uma junta geral do clero, nobreza
e povo. O Bequimão inaugurou as deliberações com um discurso em que
referiu largamente as causas, a marcha e o êxito da revolução. Foi calorosa-
mente aplaudido e vitoriado. Depois votaram-se por aclamação a aprova-
ção das medidas já tomadas, a expulsão definitiva dos Padres, a abolição do
estanco, a deposição do governador ausente no Pará e a criação de um novo
governo, composto da câmara e de três adjuntos que se lhe nomearam, to-
dos eles postos sob a suprema inspeção de dois procuradores do povo. O
Bequimão foi o primeiro nomeado para um destes dois lugares, dando-se
por colega Eugênio Ribeiro Maranhão, e seu irmão Tomás ficou pertencen-
do ao número dos adjuntos.
Durante a sua ausência,112 os Padres, reclusos no colégio, mas frouxamente
vigiados, não se deixaram ficar ociosos; e, dando mais um exemplo daquela
tenaz perseverança, que era o característico da ordem, e com ajuda da qual
dominavam as situações que pareciam mais desesperadas, souberam tirar
partido daquilo mesmo que do primeiro lanço se afiguraria uma insuportá-
vel vexação a vistas menos perspicazes. Os grupos populares tinham de uso,
nas suas divagações quotidianas, invadir o pátio do colégio, a fim de verifi-
car se os Padres continuavam a bom recado, e os acolhiam com vozerias e
baldões, se alguns acaso se mostravam nas janelas ou corredores. Mas eles,
afrontando com aparente humildade aquele molesto tratamento, dirigiam-
-se ao povo, justificavam-se das arguições de que eram objeto e, inculcando
um desinteresse a toda prova, declaravam-se prontos a resignar toda a ju-
risdição temporal que se lhes contestava, uma vez que os deixassem exer-
cer em paz e liberdade o seu ofício de simples missionários e pregadores
evangélicos, única coisa a que aspiravam, segundo diziam. Procedendo por
este teor, calculavam habilmente que os sentimentos religiosos, arreigados
no povo, não deixariam por fim de produzir o seu costumado efeito; e bem
112
  Bequimão tinha ido à vila de Tapuitapera em missão especial. (Nota do autor do trecho
citado.)
Autores brasileiros  349

que não fosse esta a primeira vez que com semelhante artifício procurassem
rebuçar tenções bem opostas, já a distinção começava a parecer razoável a
não poucos, e falava-se pela cidade em aceitar o compromisso proposto,
quando Bequimão, de volta da sua breve excursão, informado do que se
passava, atalhou prontamente as negociações, fazendo saber aos Padres que
o povo não podia recuar do começado sem desdouro da sua recente resolução,
cuja mudança seria sem dúvida atribuída a alguma indecorosa inconstância
do juízo.
Receoso ainda de novos manejos, cuidou de apressar a sua partida, e para
melhor assegurá-la marcou o dia dela por um bando e mandou intimar
aos Padres o seguinte protesto, misto singular de temor e de precaução dos
habitantes contra as suas astúcias costumadas, e do ódio implacável que
lhes consagravam enquanto homens dados e sujeitos a todas as fraquezas
e interesses profanos, não menos que de veneração profunda para com o
caráter sagrado de que se achavam revestidos.

[...]

Domingo de ramos, dia aprazado para o embarque, os Padres, em número


de 27, depois de ouvirem missa e de se despedirem um por um de Nossa
Senhora da Luz, padroeira do seu colégio, saíram pela porta chamada do
carro, fronteira ao mar, conduzido em rede um deles, que de velho e acha-
cado não podia caminhar, e os mais a dois e dois, com as palmas bentas
inclinadas sobre os ombros, reportados e tranquilos no porte e nos gestos,
os semblantes graves e tristes, os olhos baixos e lacrimosos, indicando tudo
mansidão e resignação, e por nenhum caso a cólera ou a impaciência.
A multidão, prevenida e curiosa, entre a qual avultavam inúmeros índios
armados de arco e flechas, apinhava-se nas duas colinas que ficam frontei-
ras, uma do lado da sé e outra de Santo Antônio; o cortejo desfilava pelo
centro entre ambas ao som dos sinos que tocavam como a rebate, e enca-
minhava-se lentamente ao lugar de partida, que era onde hoje se chama a
Praia Pequena. A este espetáculo desusado e triste, o povo mostrou uma
consternação profunda; e conta-se que o próprio Bequimão, tão comovido
como os mais, e sem poder conter as lágrimas, adiantou-se para abraçar
publicamente um dos Padres de quem era particular amigo. Mas este pas-
sageiro acesso de ternura e compaixão não podia de modo algum obstar à
execução de uma medida ditada por interesses profundos e arreigados, e
por paixões tão implacáveis como antigas. O embarque verificou-se sem
350  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

mais incidente. Deixemos por enquanto estes proscritos de um dia segui-


rem a sua viagem, e volvamos outra vez ao centro do pequeno povo onde
novas e variadas cenas estão chamando a nossa atenção.

[...]

Já referimos como o governador prometera largas recompensas a quem


prendesse o Bequimão, e era uma delas a anistia completa para o crime
daquela mesma rebelião. Lázaro de Melo, mancebo pertencente à nobreza
da terra, de onde era natural afilhado e pupilo do proscrito, segundo uns,
compadre, segundo outros, mas sem a menor dúvida, pois que todos nisso
são contestes, seu íntimo amigo e obrigado, sendo que desde pequeno lhe
frequentava a casa, onde era recebido quase como pessoa da família, levado
menos do temor do castigo, que lhe não tocava, por se não contar no nú-
mero dos cabeças, que da vil ambição do prêmio, foi quem concebeu, e por
obra de um modo odioso e infame, o plano da sua prisão.
Acompanhado de uma boa escolha de escravos e fâmulos, encaminhou-se
o miserável ao derradeiro asilo do seu antigo benfeitor. Prevenido o Be-
quimão pela vigilância dos seus de que uma canoa bem equipada aportava
ao sítio, acolheu-se ao mato; mas, sabendo logo que era o amigo, saiu a
encontrá-lo, levado a um tempo da confiança da amizade antiga e da curio-
sidade e ânsia de saber notícias, tão natural na sua triste situação. Lázaro
dirigiu-lhe algumas palavras próprias a adormecer quaisquer suspeitas que
tivesse, e enquanto procurava entretê-lo, um dos seus mais robustos sequa-
zes lança-se a ele de improviso, cinge-o fortemente nos braços e procura
subjugá-lo ajudado pelos demais. Ao ruído desta ação, os escravos do enge-
nho acodem em defesa do Senhor, e uma luta renhida ia travar-se quando,
à voz d’el-rei, proferida em altos brados pelo traidor, todas as frontes se
curvaram e ninguém mais ousou mover-se. A vítima, ignominiosamente
amarrada, foi arrastada até a canoa e ali carregada de grilhões.
Nos primeiros momentos, entre colérico e consternado, o Bequimão expro-
brou ao seu algoz a negra ingratidão e infame aleivosia com que o levava a
uma morte certa; mas dentro em pouco, abafando vãos queixumes, pediu-
-lhe somente que o aliviasse das cordas e dos ferros, pois lhe dava a sua
palavra de que se não aproveitaria daquela liberdade para fugir. E tal era o
respeito e confiança que inspirava o caráter deste homem raro que o mesmo
miserável que naquele instante acabava de atraiçoá-lo não duvidou anuir ao
seu pedido, não podendo aliás, nem devendo, esperar que em circunstância
Autores brasileiros  351

alguma se julgasse alguém obrigado a guardar as leis da honra a quem tão


indignadamente as violava.
Fiel ao seu empenho, o Bequimão não fez sequer a menor tentativa de
evasão, que, numa viagem de 60 léguas, que durou alguns dias, dormindo
sempre em terra e mal vigiado, lhe não seria difícil efetuar, principalmente
quando, ao desembarcar na ilha, atravessou para chegar à cidade um longo
espaço solitário e coberto de matos, acompanhado somente pelo traidor.
Dir-se-ia que a ruína de todas as suas esperanças, a fraqueza e esquivança
dos amigos, e sobretudo a última e abominável traição, ferindo-o cruel e
sucessivamente, o haviam tornado indiferente à conservação de uma exis-
tência, que agora se lhe afigurava inútil para o bem a que sempre aspirara.
Nestas circunstâncias, ao governo já não restava mais do que consumar o
sacrifício, de antemão resolvido, e a que a própria vítima parecia oferecer-se
quase voluntária. Os povos civilizados têm isto de comum com os selvagens
antropófagos: matam os seus prisioneiros em público terreiro, com gran-
des aparatos e cerimônias, equivalendo as fórmulas judiciárias, vão simu-
lacro de acusação e de defesa, às injúrias acerbas e aos cânticos funéreos
que entre os canibais precedem o golpe supremo. “Fulminou-se o processo
(diz nuamente Teixeira de Morais) mais que sumário, evitando-se alguns
termos dilatórios e supérfluos.” As testemunhas chamadas a depor incre-
param-se umas às outras de um modo vergonhoso, mas a principal culpa,
como era de esperar, lançaram sobre os presos. Fr. Domingos Teixeira de
Morais, que o refere, acrescenta que Gomes Freire assinou a sentença tão
cheio de mágoa e de piedade, e com o braço tão trêmulo, que a firma, exa-
minada depois, pareceu de alheia mão. Mas, na participação que dirigiu ao
governo, o próprio general diz secamente que apressara o negócio, porque,
havendo-se-lhe repetido os antigos achaques, receava que se agravassem de
modo que depois o impossibilitassem de concluir aquela diligência com a
pontualidade e exação que S. M. confiara do seu zelo, sendo que por outra
parte já os soldados não podiam aturar o contínuo trabalho da guarda da
cadeia; que Manuel Bequimão e Jorge de S. Paio haviam sido condenados à
morte, e na perda dos bens para a coroa, porque para o castigo eram os mais
culpados, e para o exemplo os mais poderosos.113

113
  Oficio de 15 de novembro de 1685, e consulta de 12 de fevereiro de 1686. (Nota do autor
do trecho citado.)
352  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Levantou-se a forca na praia chamada do Armazém, hoje da Trindade, dan-


do-se execução à sentença no dia 2 de novembro.114
Jorge de S. Paio era um ancião maior de 70 anos, casado e carregado de fi-
lhos. O veterano dos motins não podia acabar de crer que era chegada a sua
hora, e foi mister, por assim dizer, a vista do cadafalso, para desenganá-lo
daquela triste ilusão, sem dúvida filha do medo e do aferro a uma vida aliás
tão cansada, e já tão próxima ao seu termo natural.
O Bequimão, deposta aquela coragem ativa, que brilha principalmente na
luta e na resistência, conservava todavia a da firmeza e da resignação, que
só uma fé viva e pura na bondade da sua causa pode dar ao homem traído
pelo destino. No momento supremo cumpriu intrepidamente a promessa
que havia feito em dias menos aziagos, e na mesma ocasião em que, como
verdadeiro cristão, pedia do alto do patíbulo o perdão de todas as ofensas
feitas ao próximo, declarou que pelo povo do Maranhão morria contente!
Grito sublime e derradeiro de um coração altivo e generoso, admirável so-
bretudo naqueles tempos, em que as revoluções, simples fato material, não
constituíam doutrina nem direito, e em que os condenados, ordinariamen-
te humilhados diante da justiça, morriam protestando o seu arrependimen-
to e beijando a mão que os punia.115
Assim terminaram, feridas do mesmo golpe, esta singular revolução e a
nobre existência que fora ao mesmo tempo a sua força e o seu lustre. A his-
tória, imparcial e severa, mas não dura e insensível, apraz-se em recordar
tantos atos de desinteresse, lealdade e abnegação, a sua eloquência persua-
siva e forte, e aquela coragem serena e firme que, sem nunca abandoná-lo

114
  “Quando imprimir as Obras do Lisboa, escreveu-nos de Paris Odorico Mendes, não
se esqueça de pôr em nota o seguinte: ‘Gomes Freire de Andrade mandou injustamente
decapitar Manuel Beckman como inconfidente; e, passado século e meio, a 18 de outubro
de 1817, um descendente do governador e do mesmo nome, isto é, o general Gomes Freire
de Andrade, foi fuzilado na esplanada da torre de S. Julião, em Lisboa, como inconfidente,
e também injustamente.’ ” (Nota do autor do trecho citado.)
115
  A coragem com que Manuel Bequimão recebeu a morte é atestada tanto pelo P. Betten­
dorf, jesuíta expulso, e seu adversário, como por Teixeira de Morais, seu encarniçado
detrator. É o próprio Teixeira de Morais que, para ultrajá-lo, nos refere, sem as compre-
ender, as suas últimas palavras. Eis como ele se exprime: “O Bequimão recebeu a mor-
te catolicamente animoso, suposto se escandalizassem os entendidos e timoratos de ele
dizer do alto do patíbulo, pouco antes de precipitado, que morria satisfeito de dar pelo
povo do Maranhão a vida. Não faltaram muitos que sentiram a sua tragédia, uns de pios
e compassivos, os mais de ignorantes e interessados, os quais somente à conveniência
própria os demove de qualquer tirano lastimar-se.” Rel. Hist. P. 2ª e C. 13º. (Nota do autor
do trecho citado.)
Autores brasileiros  353

durante a vida, brilhou com mais vivo fulgor em face da morte; raro con-
junto de grandes qualidades que, acareando e subjugando o amor e o ódio
dos contemporâneos, imprimiu à revolução um caráter de honestidade e
moderação que faria a glória dos melhores tempos, e que mesmo então lhe
permitiu atravessar as suas fases mais perigosas tão pacificamente como
pode sê-lo uma comoção popular pura e extrema de quaisquer excessos, e
tão respeitadora da vida e da fazenda, como de todos os outros interesses
e direitos dos seus adversários. Mas o coração não pode deixar de contris-
tar-se quando vemos este homem notável dissipar em vão esforço todo
aquele tesouro de virtudes e altas faculdades, numa época de ignorância,
egoísmo e corrupção, que não era a sua, e abismar-se por fim numa em-
presa temerária e insensata, sem êxito provável, iníqua em alguns dos seus
fundamentos, e tão efêmera que da sua passagem nem deixaria vestígios,
se infelizmente não houvera servido a consolidar a mesma influência que
se propunha a destruir.
Mas, pois, na noite dos tempos, brilham tão raros os caracteres desta têm-
pera, condenando os erros e lastimando o extemporâneo e inútil do sacrifí-
cio, a história não deve recusar-lhes, quando acaso os encontra, a expressão
ardente das suas simpatias e o tributo de admiração e de piedade que sobre-
tudo lhes é devido, se um grande infortúnio vem no fim coroar e consagrar
um grande merecimento.

Da primeira passagem que vos li, reproduzirei os seguintes trechos


que são muitos primorosos:

Domingo de ramos, dia aprazado para o embarque, os Padres, em número


de 27, depois de ouvirem missa e de se despedirem um por um de Nossa
Senhora da Luz, padroeira do seu colégio, saíram pela porta chamada do
carro, fronteira ao mar, conduzido em rede um deles, que de velho e acha-
cado não podia caminhar, e os mais a dois e dois, com as palmas bentas
inclinadas sobre os ombros, reportados e tranquilos no porte e nos gestos,
os semblantes graves e tristes, os olhos baixos e lacrimosos, indicando tudo
mansidão e resignação, e por nenhum caso a cólera ou a impaciência.
A multidão, prevenida e curiosa, entre a qual avultavam inúmeros índios
armados de arco e flechas, apinhava-se nas duas colinas que ficam fron-
teiras, uma do lado da Sé e outra de Santo Antônio; o cortejo desfilava
pelo centro entre ambas, ao som dos sinos que tocavam como a rebate, e
354  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

encaminhava-se lentamente ao lugar da partida, que era onde hoje se cha-


ma Praia Pequena. A este espetáculo, desusado e triste, o povo mostrou
uma consternação profunda; e conta-se que o próprio Bequimão, tão co-
movido como os mais, e sem poder conter as lágrimas, adiantou-se para
abraçar publicamente um dos Padres de quem era particular amigo. Mas
este passageiro acesso de ternura e compaixão não podia de modo algum
obstar à execução de uma medida ditada por interesses profundos e arrei-
gados, e por paixões tão implacáveis como antigas. O embarque verificou-
-se sem mais incidente.

São verdadeiramente admiráveis estes trechos, já pela cabal enume-


ração das circunstâncias que concorrem para a beleza da pintura, já pelo
natural movimento de afetos que nela sobressai, já pela própria contex-
tura do discurso, que é em tudo perfeita.
Nada esquece ao autor que possa tornar o ato solene, extraordinário,
compungente e enternecedor. Os padres só deixam a sua igreja depois
de ouvirem a missa de ramos, e de se despedirem um por um da pa-
droeira do colégio, ou depois de preenchidas todas as cerimônias reli-
giosas. Exceto um, que de velho e achacado é conduzido em rede, todos
os mais vão a dois e dois com as palmas bentas inclinadas sobre os om-
bros, reportados e tranquilos no porte e nos gestos, os semblantes gra-
ves e tristes, e os olhos baixos e lacrimosos, indicando tudo mansidão e
resignação. O povo, que se apinhara nas duas colinas fronteiras, do lado
da Sé e de Santo Antônio, para vê-los passar quando se dirigiam à Praia
Pequena, lugar do embarque, mostrou a este desusado e triste espetá-
culo uma consternação profunda. O próprio Bequimão, tão comovido
como os mais, e sem poder conter as lágrimas, adiantou-se para abraçar
publicamente um dos Padres de quem era particular amigo.
Ninguém, ao ler esta narração de um fato que se deu há quase dois
séculos, lhe recusará o cunho de verdadeira; porque o fato se acha des-
crito com todas as circunstâncias que fazem ao propósito, ou justamente
como passou, ou devera ter passado. Descrever por esta forma é pintar
as coisas com todas as cores da verdade, e torná-las visíveis aos olhos do
entendimento; o que só é próprio de um grande engenho como era o
autor. Não é menos admirável em tal situação o jogo de afetos que tanto
aproxima este sublime quadro do drama, dando-lhe um interesse que
cativa o leitor.
Autores brasileiros  355

Pelo que respeita à forma, admire-se na estrutura do primeiro perío-


do a rara habilidade com que o autor liga ao sujeito e ao atributo de uma
só proposição um sem-número de circunstâncias que todas servem a
dar realce ao quadro, sem que o sentido seja de leve ofendido, nem o
estilo se torne pesado ou arrastado. Para fazer isto impunemente ou jo-
gar assim com a língua e a gramática, é necessário ser grande mestre na
arte de escrever; pois outro que o não fosse naufragaria certamente na
empresa.
Da segunda passagem reproduzirei unicamente os seguintes trechos
que relatam a final catástrofe:

Levantou-se a forca na praia chamada do Armazém, hoje da Trindade, dan-


do-se execução à sentença no dia 2 de novembro.
Jorge de Sampaio era um ancião maior de 70 anos, casado e carregado de
filhos. O veterano dos motins não podia acabar de crer que era chegada a
sua hora, e foi mister, por assim dizer, a vista do cadafalso, para desenganá-
-lo daquela triste ilusão, sem dúvida filha do medo e do aferro a uma vida
aliás tão cansada, e já tão próxima ao seu termo natural.
O Bequimão, deposta aquela coragem ativa, que brilha principalmente na
luta e na resistência, conservava todavia a da firmeza e da resignação, que
só uma fé viva e pura na bondade da sua causa pode dar ao homem traído
pelo destino. No momento supremo cumpriu intrepidamente a promessa
que havia feito em dias menos aziagos, e na mesma ocasião, em que, como
verdadeiro cristão, pedia do alto do patíbulo o perdão de todas as ofensas
feitas ao próximo, declarou que pelo povo do Maranhão morria contente!
Grito sublime e derradeiro de um coração altivo e generoso, admirável so-
bretudo naqueles tempos, em que as revoluções, simples fato material, não
constituíam doutrina nem direito, e em que os condenados, ordinariamen-
te humilhados diante da justiça, morriam protestando o seu arrependimen-
to e beijando a mão que os punia.

Lúgubre é, Senhores, o quadro que vos ponho diante dos olhos, mas
é justamente o desfecho do terrível drama historiado pelo autor, cujo
protagonista, o homem mais popular do Maranhão naqueles tempos
por sua coragem cívica, depois de haver figurado na cena como chefe do
maior movimento político que viu a colônia no século XVII, traído na
desgraça por um miserável que lhe devia tudo, terminou seus dias num
356  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

patíbulo juntamente com outro companheiro de infortúnio. Com ser


porém lúgubre não deixa ele de ser perfeito, como ides ver.
Começa o autor por estabelecer o contraste no passo extremo entre
a pusilanimidade de Jorge de Sampaio, o veterano dos motins, que não
podia acabar de crer que era chegada a sua hora, e a coragem da firmeza
e da resignação, apresentada pelo Bequimão, o homem traído pelo des-
tino nas suas malogradas esperanças de regeneração da colônia. Resulta
do contraste sobredito que o primeiro era apenas um triste objeto de
lástima aos olhos dos homens, mas o segundo, um verdadeiro mártir da
liberdade, ou melhor, daquilo que então era reputado causa de sua nova
pátria pelos colonos.
Onde porém o autor se eleva a toda a altura do sublime é na expres-
são do último grito soltado pelo Bequimão, que ia morrer mais como
vítima expiatória dos erros de um governo fraco, que dos próprios,

e na mesma ocasião, em que, como verdadeiro cristão, pedia do alto do pa-


tíbulo perdão de todas as ofensas feitas ao próximo, declarou que pelo povo
do Maranhão morria contente! Grito sublime e derradeiro de um coração
altivo e generoso, admirável sobretudo naqueles tempos, em que as revo-
luções, simples fato material, não constituíam doutrina nem direito, e em
que os condenados, ordinariamente humilhados diante da justiça, morriam
protestando o seu arrependimento, e beijando a mão que os punia.

Em verdade! Qual será a tragédia que produzirá sobre nós o mes-


mo efeito que a realidade dos grandes dramas da história, quando são
escritos por penas tão bem aparadas como a de João Francisco Lisboa?
Nenhuma, certamente. Para se conhecer a sua rara habilidade no pre-
cioso excerto histórico que nos deu, basta considerar o excelente parti-
do que ele soube tirar de um fato que jazia inteiramente sepultado no
esquecimento, ou quando muito desfigurado e adulterado nas parciais
e incompletas memórias da época. Não contente com esses juízos apai-
xonados e superficiais, Lisboa compulsou os documentos manuscritos,
sem se poupar a fadigas, desenterrou, por assim dizer, e tirou à luz do
dia, com todos os seu incidentes notáveis e peripécias, o grande e inte-
ressantíssimo drama político que abalou o Maranhão em 1684 e 1685, e
consternou por seu sanguinolento desfecho toda a população da então
pequena cidade S. Luís, que dele sem dúvida se recordava com comoção
Autores brasileiros  357

profunda ainda anos depois em presença dos descendentes dos supli-


ciados.
Escrever a história com imparcialidade, critério e talento dignos dela,
eis a nobre missão do verdadeiro historiador, ou a que desempenhou o
autor no seu excerto.
Em outro discurso passarei a apreciar a Vida do Padre Antônio Viei-
ra, do mesmo autor: por hoje aqui termino.

LIÇÃO XCVI

Vou hoje, Senhores, apreciar a João Francisco Lisboa como biógrafo


propriamente dito, na Vida do Padre Antônio Vieira, obra que deixou
manuscrita e que se está atualmente imprimindo na província sob a di-
reção dos Srs. Dr. Antônio Henriques Leal e Luís Carlos Pereira de Cas-
tro, a cujo obséquio devo as respectivas folhas impressas em quase sua
totalidade. O autor que, escrevendo excertos da história coletiva do Ma-
ranhão, se ostentou historiador profundo e eloquente no seu Jornal de
Timon, já nos tinha também dado um amostra de rara aptidão para este
gênero de história individual na excelente biografia que traçou a Manuel
Odorico Mendes, e que saiu estampada na Revista contemporânea de
Portugal e Brasil e em um folheto avulso. O ensaio que então nos deu era
como prelúdio da Vida do Padre Antônio Vieira, trabalho de muito mais
vulto e muito mais completo em todas as suas partes, porque é feito não
só sobre todas as notícias e documentos que se têm até hoje publicado,
relativos ao célebre jesuíta, como, e muito principalmente, sobre os seus
próprios escritos analisados, comentados e decifrados com um tato e
critério verdadeiramente superiores.
Na ordem das modernas biografias é esta do Padre Antônio Vieira
sem contradição uma das melhores de que tenho notícia, porque dá-nos
o fiel e cabal transunto do original, copiado com esmero do grande qua-
dro que esse singular engenho nos deixou traçado da própria vida em
seus numerosos escritos sobre tantos e tão diversos assuntos, religiosos,
morais, filosóficos, políticos, administrativos e até cabalísticos. O Padre
Vieira do autor é, para dizer tudo, o Padre Vieira retratado e caracteri-
zado segundo os produtos do seu engenho, que são muito variados e
desiguais, pois o autor não faz como certos biógrafos que atenuam as
358  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

fraquezas daqueles cuja vida escrevem, como se estivessem compon-


do um poema ou um romance, mas apresenta-nos o seu personagem,
como cumpre, com todos os defeitos e virtudes, ou tal qual o revelam as
suas obras. Por isso a sua biografia traz o cunho da verdadeira história
do indivíduo, que descreve bem no revés de tantas outras.
Tem ainda ela a vantagem de descrever com todas as suas feições
características a época em que viveu Vieira, o valido, o conselheiro d’el-
-rei D. João IV, que o empregava em comissões importantes estranhas
ao seu ministério dentro e fora do reino, e quase nada fazia sem o seu
parecer, ou de dar-nos um apanhado da história política de Portugal
daquele tempo em todos os negócios em que interveio o mencionado
jesuíta, que foram muitos, bem como amplas notícias do pé em que se
achava então a colônia do Brasil, em que ele igualmente tanto figurou.
Assim Vieira não só nos é debuxado tal qual foi, mas de mais a mais
em toda a sua esfera de ação. É uma grande figura colocada sobre o seu
verdadeiro pedestal, porque nos é representada com todos os ademanes
do seu século.
Apesar de ter ficado este importante trabalho biográfico com muitas
entrelinhas e raspagens, ou sem a última demão que lhe daria o autor
quando o imprimisse, é a sua forma tão bela como a dos demais escri-
tos que saíram de sua pena, pois não se descobre diferença notável na
perfeição de estilo de um e outros. Neste ponto porém é de justiça que
se tribute o merecido louvo ao Sr. Luís Carlos Pereira de Castro, que,
encarregado da correção das provas e de restabelecer alguns lugares do
manuscrito quase ininteligíveis pelas muitas emendas, lhe tem prestado
o mesmo serviço que o autor, se fosse vivo.
Passarei agora a ler-vos duas passagens notáveis da biografia para que
façais ideia do mérito do autor neste gênero de história individual, a que
deu um desenvolvimento e amplidão como poucos costumam fazê-lo.
Ei-las:

Fez mais ainda. Subindo ao púlpito para sustentar as suas ideias (instituição
das companhias com a inserção do fisco), os argumentos de que se serviu,
para desarmar o ódio da multidão, não podiam ser mais contraditórios com
as suas próprias doutrinas. A nossa terra, disse ele, afronta justamente com
o nome de cães os convencidos do crime contra a fé, a quem aborrece; e
daí vem que este remédio, não só aprovado, mas admirado das nações mais
Autores brasileiros  359

cultas da Europa, só na portuguesa é reprovado, porque a experiência de


serem mal reputados na fé alguns dos seus comerciantes torna suspeitosa
e até perigosa a união e mistura do dinheiro menos cristão com o católico.
Mas que política sublime e cristã não é servir a fé, e alcançar-lhe vitória,
com as próprias armas da infidelidade, pagando ela em cima os soldos! E
qual a razão? É porque a bondade das obras está nos fins, e não nos instru-
mentos; as obras de Deus, todas são boas; os instrumentos de que se serve,
esses sim, podem ser boas e maus.
Em apoio destas estranhas doutrinas, duma moralidade equívoca, vinham
os costumados exemplos das escrituras, e outros a seu modo: os 30 dinhei-
ros por que Judas vendeu a Cristo aplicados à compra de um terreno para a
sepultura dos peregrinos; o ouro de um ídolo tomado por Davi aos inimi-
gos servindo a fabricar-lhe uma coroa. A Elias no deserto sustentavam-no
umas vezes os anjos, outras os corvos. E S. Roque, o herói, antes pretexto do
sermão, alimentava-se com o pão tirado da boca de um cão.
A todas estas atenuações à ousadia dos seus projetos juntou finalmente o
P. Vieira uma com a qual sem dúvida entendeu que os patrocinava a eles,
resguardava-se a si próprio e desfazia todos os escrúpulos, sinceros ou apa-
rentes, dos que lhes faziam oposição; e vinha a ser que na matéria não podia
haver fundamento para o menor receio, uma vez que a resolução dela ficava
ao juízo e disposição do sumo pontífice, a quem como vigário de Cristo e
regra única da fé competia ordenar, variar e dispor o que, segundo os tem-
pos e estado da igreja, parecesse mais conveniente com proveito das armas
e glória de Deus.
Exprimindo-se por este modo, contava evidentemente o P. Vieira, pelo que
via praticar em Roma, se não com uma aprovação explícita, ao menos com
a indiferença ou tolerância do papa para com iguais práticas introduzidas
em Portugal
Mas o papa, solicitado pela Inquisição de Lisboa, iludiu as suas esperanças
(o mesmo Padre no-lo vai dizer por que motivos), fulminando por um bre-
ve penas e censuras contra o alvará de 6 de fevereiro de 1649, pelo qual D.
João IV havia instituído a chamada companhia ocidental com diferentes
privilégios, entre os quais figurava a isenção do fisco.
O P. Antônio Vieira, que, enquanto estas coisas se passavam, percorria a
Europa, e ia mesmo a Roma, por mandado do rei, a diferentes missões,
não se deixou vencer pela contrariedade, como o prova primeiro a luta que
por esta questão se travou entre o rei e o seu governo de uma parte, e a
360  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Inquisição apoiada pelo papa, da outra; e em segundo lugar a sua própria


e direta intervenção no debate, escrevendo um novo opúsculo para que se
negasse o beneplácito ao breve do papa, e sustentando a todo o transe o real
decreto.
O que prova quão pouco este homem ardente e apaixonado atendia aos
conselhos da prudência e olhava pela própria segurança é a época mesma
em que escreveu o seu novo opúsculo. Corre este sem data, quer nas có-
pias manuscritas que temos examinado nas diversas bibliotecas do reino,
quer na recente edição geral das suas obras, em que pela primeira vez viu a
luz; mas como o seu autor, para encarecer as vantagens da companhia oci-
dental, lhe atribui em boa parte a restauração de Pernambuco, acontecida
nos primeiros dias do ano de 1654, não nos fica a menor dúvida de que o
escreveu durante a residência que fez em Lisboa, entre 1654 e 1655, à sua
primeira volta do Maranhão, para onde tinha partido em 1653, porque, na
segunda, em 1661, já o decreto estava revogado na parte essencial.
O P. Vieira fizera esta viagem do Maranhão à corte como simples missio-
nário que não vinha a outro fim mais que a pedir providências a bem da
liberdade e conversão dos índios, suas desamparadas ovelhas, conseguido o
que, muito a seu contento, tornou a voltar à longínqua missão, onde ainda
se deteve para mais de seis longos anos.
Nada pois o obrigava, ao menos aparentemente, a envolver-se com estrondo
nesta árdua e melindrosa contenda, em que se achava empenhado um ini-
migo tão poderoso e tanto para temer como era o Santo Oficio. Porque mo-
tivo pois se lançou de novo tão fora de propósito na luta e no perigo? Acaso,
oprimido neste conflito, invocaria o rei, ou exigiria mesmo o auxílio das suas
luzes? Ou o seu amor próprio de autor o impeliria a sair em defesa da própria
obra? Ou finalmente levava-o a sua conhecida inclinação à controvérsia e à
disputa, e a vaidade que o impelia a ostentar-se nas grandes cenas? O mais
provável é que todos estes motivos atuassem mais ou menos no seu ânimo.
O papel em questão é uma espécie de dissertação jurídica repleta de ci-
tações, distinções sutis e de argúcias forenses de todo gênero, em que o
seu talento mais de uma vez mostrou comprazer-se. O breve pontifício não
devia ser recebido, por haver sido alcançado com ob-repção e sub-repção.
O papa o não expedira de motu proprio, senão pela narração pouco verda-
deira do bispo inquisidor geral, que desnaturou o decreto, asseverando que
se isentavam do fisco os bens dos condenados pelos crimes de heresia e ju-
daísmo, quando o que se concedera fora a remissão antecipada dos mesmos
Autores brasileiros  361

bens adquiridos à coroa pelas condenações, o que era coisa muito outra, e
não menos por haver ocultado o fim com que se fazia a remissão, qual era
a criação das armadas a bem da fé na recuperação de Pernambuco e mais
conquistas do poder dos hereges, circunstância que dava à mesma remissão
o caráter de um contrato oneroso, muito diverso da simples graça, e de que
já houvera exemplos nos reinados de D. Manuel e de D. João III.
O papa, como é sabido, não havia reconhecido a nova ordem de coisas em
Portugal, e por isso o breve vinha concebido em termos vagos, sem nem
sequer citar a data do decreto, ou nomear o rei, quer pelo seu nome, quer
pela sua dignidade real — destas reticências tomava ocasião o Padre para
declarar o breve nulo, segundo o direito, por falta de menção especificada
de cláusulas essenciais. El-rei fora tão pouco ouvido pelo papa — outra
causa de insanável nulidade, pela regra de direito natural de que ninguém
pode ser condenado sem ser previamente ouvido.
Ora, aos reis assiste incontestável direito de impedir a execução dos breves,
sem embargo da bula da ceia e outras, que o proíbem com penas e censu-
ras, uma vez que tais breves sejam contrários e prejudiciais ao temporal do
Estado e às regalias do poder real. A bula da ceia e outras iguais se deviam
entender em termos hábeis, e S. M. devia escrever ao papa para mostrar-lhe
as razões do impedimento posto, e a verdade inteira do decreto aleivosa-
mente denunciado.
Finalmente não se ignorava que o breve houvera sido alcançado em Roma
por negociação de Castela contra um decreto por nenhum modo contrário
aos cânones, à conservação da fé e exercício da Inquisição, que em nada
era impedido, pois podia ela proferir as suas sentenças, que seriam execu-
tadas, salvo a remissão estipulada, e compensada com os ônus impostos
aos condenados; logo, os que se lhe opunham e queriam executar o breve
procuravam a ruína da companhia, mostrando-se nisso pouco zelosos da
conservação do reino e pessoa de S. M., e parciais de Castela, tão interes-
sada por sua parte na ruína da companhia que promulgara graves penas
contra todos os seus súbitos que nela metessem cabedais.
A acusação de traição não podia ser mais clara, e ia direita à Inquisição.
Mais tarde veremos a maneira cruel por que ela replicou a tanta audácia e
imprudência.
Quanto à companhia, é sabida a sua triste história, que de resto não é para
este lugar. Pelo alvará de 6 de fevereiro de 1649, e estatutos de 8 de março
seguinte, D. João IV decretou a sua instituição com duração de 20 anos, e
362  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

de mais 10 eventualmente, isenção do fisco para os capitais nela empre-


gados e diversos outros favores e obrigações correspondentes, medida em
verdade muito mais restrita que a imaginada pelo P. Vieira, que queria a
isenção do fisco ampliada a todo o comércio em geral, como já vimos. A
Inquisição impugnou-o, e o papa fez outro tanto, instigado por ela e por
outras influências. Oito anos depois, a rainha viúva D. Luísa, na qualidade
de regente, sob a pressão da Inquisição, e quiçá de escrúpulos de uma cons-
ciência timorata, deu-lhe o primeiro mortal golpe, revogando o privilégio
do fisco, pelo decreto de 2 de fevereiro de 1657, no qual contesta além disso
as vantagens que o P. Vieira continuou a atribuir-lhe durante toda a sua
vida. Outros decretos vieram depois, que a foram sucessivamente desna-
turando, ora restringindo os seus outros privilégios e a esfera da sua ação,
ora espoliando-a arbitrariamente dos seus capitais, até ao ponto de trans-
formarem em uma inútil junta e tribunal régio, sob cuja forma finalmente
se extinguiu de todo em 1720.
Seja como for, e qualquer que tenha sido a extensão dos seus benefícios nos
destinos de Portugal e do Brasil, durante a primeira fase da sua existência,
o que está demonstrado pelo testemunho irrefragável de todos os fatos que
ficam expostos é que o Padre Antônio Vieira, um dos primeiros, se não o
primeiro iniciador da ideia da sua criação, foi o seu principal fautor nos
escritos políticos e na correspondência privada, por toda parte e por todos
os meios enfim, em que se lhe deparava ocasião de defender uma causa pela
qual foi o único que veio a padecer os trabalhos e afrontas que veremos, ao
passo que os simples cooperadores não sofreram o mais leve incômodo,
ou porque souberam retrair-se a tempo, curvando-se ante as influências
contrárias vitoriosas, ou porque renegaram abertamente, convertendo-se
em perseguidores, como o secretário de Estado Pedro Vieira, depois bispo
de Leiria, que não só referendou o decreto de revogação, como mais tarde
escreveu violentas consultas contra os desgraçados cristãos novos.
______

São passados mais de dois séculos depois destes graves debates em que cor-
reu tanto risco a integridade do futuro Império de Santa Cruz; os atores
que figuraram nessas cenas, os interesses e paixões que os moviam, tudo
desapareceu, e a justiça da história pode já agora proferir desassombrada
a sua sentença. Se nos é permitido ser o seu órgão, o nosso juízo não será
duvidoso um só instante: a razão estava toda da parte dos antagonistas do
Autores brasileiros  363

estatuto jesuíta, que é o que importa. Nunca em verdade se vira palinódia


mais solene, nem a falsa política acumulou jamais tantas contradições e
incoerências, tantos sofismas e tantas máximas imorais para desfigurar a
verdade e justificar o erro e a iniquidade. Dir-se-ia que o autor do parecer,
como esses advogados resolvidos de antemão a sustentar indiferentemen-
te o pró e o contra, fazia valer como podia todos os argumentos, bons e
maus, para sustentar a tese preferida, sem se lhe embaraçar absolutamen-
te com a realidade dos fatos, a natureza das coisas e a justiça da causa,
sem hesitar um momento diante das contradições e incoerências mais
f lagrantes.
O paralelo da superioridade, força e grandeza da Holanda com a pequenez
e fraqueza de Portugal, tão brilhantemente traçado, foi o que por ventura
fascinou o espírito do rei, já favoravelmente desperto. Mas a sua exagera-
ção é evidente, e não resiste a um exame sério, sobretudo feito à luz da apa-
rência dos sucessos posteriores, que os seus antagonistas, posto que menos
hábeis e eloquentes, anteviram contudo claramente em grande parte.
No ponto de vista do P. Vieira não havia nesta questão da guerra outro
direito senão o da força, que é quem dá e tira os reinos; e pois que a força
estava da parte da Holanda, cumpria ceder às suas exigências.
A vitória estava enfeudada às suas armas. Se algumas tinham alcançado os
insurgentes, bem averiguadas, eram verdadeiros desastres, ou milagres com
cuja repetição se não podia contar sem tentar a Deus, que sempre se punha
da parte dos mais mosqueteiros, máxima que ele tantas vezes qualificará de
herética.
A instituição das companhias, por ele mesmo anteriormente aconselhada
com tanta sabedoria e penetração, e de que se prometia tão grandiosos re-
sultados, agora que a crise apertava de nada serviria, era um meio dilatado
e moroso. Além de que, as esquadras que se organizassem seriam infalivel-
mente derrotadas. Muito melhor acordo era atar os braços e ceder, deixan-
do isso para melhor ocasião.
Alega-se que a paz não era segura, e que o inimigo, uma vez de assento e
refeitas as forças em Pernambuco, as empregaria para empolgar o resto do
Brasil. Como? respondia ele, é absolutamente impossível. A Holanda está
fatigada de uma guerra de mais de meio século, e suspira pela paz, que
sobretudo conosco lhe é indispensável, pelas dependências do seu comér-
cio, que em outras partes se não pode prover de sal, pau-brasil e escravos
africanos.
364  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

Alegava-se então que, ainda sem a restituição de Pernambuco, seria ela


obrigada à paz, não só por aqueles motivos, mas por outros muitos, como a
diversão de outras guerras na Europa e a sua forma de governo, sem um po-
der central forte, dependendo as resoluções do voto de províncias diversas,
a possibilidade de discórdias civis no seio da república, o antagonismo dos
interesses das duas companhias rivais, a ocidental e a oriental, pelo que não
poucas vezes se paralisavam mutuamente. Atendendo tudo isso, cumpria
reiterar a proposta da compra, sem olhar a preço, que a companhia, cujo
único móvel era o interesse, se daria pressa a aceitar, tanto mais que o via
quase perdido com a sublevação, e por causa desta, em vez de lucro, só lhe
acareava enormes despesas.
Como aceitar? replicava ele. A Holanda não olhava a utilidade neste caso,
senão a reputação e a honra. Ao demais, nós discursamos com o nosso
entendimento, e os holandeses com o seu. Quem nos diz a nós que eles não
tenham no pensamento não só conservar Pernambuco, mas ainda apode-
rar-se do resto do Brasil; como pois hão de dar ouvidos à ideia da compra,
só admissível em caso desesperado?
Ele esquecia neste ponto que pouco antes havia afiançado a candura da Ho-
landa e a sua fidelidade à paz jurada, quando se lhe fez sentir que talvez se
aproveitasse dela para se apoderar do resto do Brasil; e pouco depois esque-
ceu-se do seu desinteresse, pundonor e reputação, quando, para fazer tragar
o tratado, prometeu modificações, que se alcançariam com dinheiro, porque
a Holanda, como tantas vezes escreveu em diferentes circunstâncias, era o
país da mercancia e da venalidade, e com ouro tudo nele se comprava.
Invocando tantas vezes a da Holanda, o que ele esquecia de todo era a reputa-
ção de Portugal, muito mais empenhado que aquela na conservação de uma
colônia que fundara, e cuja população fazia parte da sua pela raça, costumes,
leis, linguagem e religião, entretanto que o domínio holandês só era mantido
pela violência. Em vez destas considerações, o P. Antônio Vieira calcula e
balança a receita e despesa, os cargos da sustentação da guerra, mais de cinco
milhões perdidos só no espaço de um ano, e conclui pela entrega, porque
Pernambuco dava antes prejuízo que lucro, e por causa dele era insensato
arriscar outros interesses, como a conservação da Índia, a respeito da qual já
aliás havia dito a mesma coisa, quando em uma de suas propostas acerca da
instituição das companhias dava preferência à salvação do Brasil.
Os pernambucanos se haviam levantado em nome e com aprovação secreta
do rei, e com aplauso unânime de toda a nação. O fato da aprovação e das
Autores brasileiros  365

ordens régias com que foram animados a perseverar, hoje irrecusável, o


jesuíta já desde então melhor que ninguém o conhecia. Mas que importa-
va? Os sublevados não apresentavam prova judicial e documento autêntico
que pudesse obrigar a palavra real. E que apresentassem, el-rei não estava
adstrito a cumpri-la contra o interesse geral da monarquia, tanto mais que
se iria agravar a dor e a desesperação daqueles afligidos e beneméritos vas-
salos da Índia, que, se com tanto gosto haviam aplaudido a aclamação de S.
M., fora com a esperança na paz, com que agora, por causa dos pernambu-
canos, se lhes faltava! De resto, tal palavra, se é que fora dada, fundava-se
sem dúvida em falsas promessas e esperanças de vitória que os sublevados
não tinham realizado. Era um contrato bilateral, em que a falta de uma das
partes desobrigava completamente a outra!
Sem discutir as causas que levaram a Holanda a uma invasão armada contra
o Brasil, então, como Portugal, sujeito ao jugo espanhol, o fato é que a con-
quista verificou-se, e a conquista é ocupação violenta. À prepotência militar,
aos desmandos sem conta de bandos de soldados mercenários (agregados de
todas as nações) se ajuntavam a avidez mercantil que caracterizava o povo
conquistador, a sua administração civil e judiciária parcial, venal e opressiva,
as suas herdades destruídas, o seu comércio arruinado pela concorrência e
pelos monopólios, e todos os cruéis antagonismos de costumes, linguagem,
leis e religião, entre opressores e oprimidos. Todas essas vexações, mitigadas
algum tanto durante o governo do príncipe Maurício de Nassau (triste bene-
fício, e para os corações nobres e briosos mais pesado que a opressão desca-
rada, quando recebida da mão do inimigo), redobraram de força depois da
sua ausência. Exasperados no último grau, e demais secretamente animados
pelo governador da Bahia, e depois das primeiras vitórias pelo próprio rei,
os colonos tentaram sacudir o jugo, e tomando as armas, praticaram um ato
perfeitamente legítimo. Combatiam pela liberdade e independência, pelos
campos cultivados com as suas mãos, pelo lar doméstico, pelo berço dos
filhos, pelas sepulturas dos avós, pelos templos em que adoravam a Deus,
por tudo quanto em uma palavra constitui a pátria.

Da primeira passagem que vos li, só reproduzirei a conclusão, que


nos dá ideia do mais:

Seja como for, e qualquer que tenha sido a extensão dos seus benefícios nos
destinos de Portugal e do Brasil, durante a primeira fase da sua existência, o
366  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

que está demonstrado pelo testemunho irrefragável de todos os fatos que fi-
cam expostos é que o P. Antônio Vieira, um dos primeiros, se não o primei-
ro iniciador da ideia da sua criação, foi o seu principal fautor, nos conselhos
do monarca, nos púlpitos, nos escritos políticos e na correspondência pri-
vada, por toda parte e por todos os meios enfim, em que se lhe deparava
ocasião de defender uma causa, pela qual foi o único que veio a padecer os
trabalhos e afrontas que veremos, ao passo que os simples cooperados não
sofreram o mais leve incômodo, ou porque souberam retrair-se a tempo,
curvando-se ante as influências contrárias vitoriosas, ou porque renegaram
abertamente, convertendo-se em perseguidores, como o secretário de Es-
tado Pedro Vieira, depois bispo de Leiria, que não só referendou o decreto
de revogação, como, mais tarde, escreveu violentas consultas contra os des-
graçados cristãos novos.

Refere-se o autor à companhia ocidental que se estabeleceu em


tempo d’el-rei D. João IV com certos privilégios, como a isenção do
fisco extensiva aos cristãos novos, ou judeus convertidos, embarcados
na empresa, e foi depois dissolvida por oposição da Inquisição, que
alcançou do papa um breve contra este privilégio. A ideia da criação
desta companhia partira de Vieira, que a aconselhou ao rei, e sem-
pre a sustentou ainda depois da morte deste, e a despeito do breve do
papa. Daí a origem de sua desavença com a Inquisição, que perseguia
os cristãos novos e lhes confiscava os bens. À inabalável firmeza de
Vieira, que não duvidou, para sustentar a sua ideia, indispor-se com o
terrível tribunal que o perseguiu depois, é que o autor faz justiça neste
trecho, pondo-a em todo relevo pelo contraste da nobreza do seu pro-
cedimento com a baixeza do de outros que renegaram abertamente,
convertendo-se em perseguidores, como o secretario de Estado Pe-
dro Vieira, depois bispo de Leiria, que não só referendou o decreto
de revogação, como mais tarde escreveu violentas consultas contra os
desgraçados cristãos novos.
O luminoso juízo crítico do autor sobressai em toda a passagem, de
que este trecho é conclusão, mostrando quão pouco o ardente jesuíta
atendia aos conselhos da prudência e olhava pela própria segurança, es-
crevendo e publicando o opúsculo em que aconselhava se negasse o be-
neplácito ao sobredito breve do papa em uma época em que triunfavam
Autores brasileiros  367

as ideias reacionárias da Inquisição contra a companhia, e já não podia


contar com o apoio da corte.
No que respeita à beleza da forma, atenda-se a que todo o trecho
consta de um só e muito extenso período, sem que se dê confusão no
sentido, que é mui claro, nem empeço no estilo, que é nobre, vigoroso e
fluido. É que o autor, amestrado na arte de escrever, em que era insigne,
e senhor de todos os segredos da harmonia no manejo da língua, sa-
bia dar aos seus períodos a estrutura conveniente, fazendo-os longos ou
breves, segundo o requeria a majestade ou o movimento do estilo, sem
arrastamento nem saltos que os deturpassem.
Da segunda passagem reproduzirei o seguinte trecho, que pode pas-
sar por modelo no seu gênero:

São passados mais de dois séculos depois destes graves debates em que
correu tanto risco a integridade do futuro Império de Santa Cruz; os ato-
res que figuraram nessas cenas, os interesses e paixões que os moviam,
tudo desapareceu, e a justiça da história pode já agora proferir desassom-
brada a sua sentença. Se nos é permitido ser o seu órgão, o nosso juízo
não será duvidoso um só instante: a razão estava toda da parte dos an-
tagonistas do astuto jesuíta, se não em todos os pormenores, ao menos
no essencial da questão, que é o que importa. Nunca em verdade se vira
palinódia mais solene, nem a falsa política acumulou jamais tantas con-
tradições e incoerência, tantos sofismas e tantas máximas imorais para
desfigurar a verdade e justificar o erro e a iniquidade. Dir-se-ia que o
autor do parecer, como esses advogados resolvidos de antemão a susten-
tar indiferentemente o pró e o contra, fazia valer como podia todos os
argumentos, bons e maus, para sustentar a tese preferida, sem se lhe em-
baraçar absolutamente com a realidade dos fatos, a natureza das coisas
e a justiça da causa, sem hesitar um momento diante das contradições e
incoerências mais f lagrantes.

Se no primeiro trecho o autor louva a Vieira pela nobreza do seu


procedimento, censura-o com toda a razão neste pelo célebre parecer
que deu de se ceder Pernambuco à Holanda para se alcançar a paz da
então poderosa república, que ameaçava declarar a guerra a Portugal, se
lhe não fosse entregue a colônia, de onde acabaram de ser expulsos os
holandeses mais pelos esforços dos próprios colonos que pelos socorros
368  Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira  |  Francisco Sotero dos Reis

da mãe-pátria, que, a braços com o poder de Espanha, não os podia


dispensar de valia.
Depois de haver mostrado em toda a passagem, para a qual serve de
transição o trecho reproduzido, as contradições e incoerências em que
caía a cada passo o astuto jesuíta, sustentando uma opinião contrária à
de toda a nação portuguesa, aos interesses e à dignidade de Portugal,
acrescenta o autor as seguintes belíssimas palavras:

Que os colonos pernambucanos, tomando as armas para sacudir o jugo dos


invasores holandeses, praticavam um ato perfeitamente legítimo, porque
combatiam pela liberdade e independência, pelos campos cultivados com
as suas mãos, pelo lar doméstico, pelo berço de seus filhos, pelas sepulturas
dos avós, pelos templos em que adoravam a Deus, por tudo em uma palavra
que constitui a pátria.

Este rasgo é verdadeiramente sublime; e não é raro encontrar nas


obras do autor, que é um homem muito eloquente, rasgos iguais que o
elevam acima de todos os prosadores contemporâneos.
Cito-vos esta passagem depois da primeira com preferência a outras
da biografia, não porque o sofístico parecer de Vieira por ela refutado
tenha hoje peso algum, mas pela própria beleza que nela se nota desde
princípio a fim, e muito principalmente para mostrar-vos a imparciali-
dade com que procede o autor, louvando o bom e vituperando o mau,
no trabalho que empreendeu de escrever a vida do maior vulto literário,
e pela ventura político, do reino de Portugal no século XVII.
Voltando porém ao trecho reproduzido, direi que é belo como transi-
ção natural para tão notável passagem, e belo sobretudo pela perfeição
do estilo histórico que nele brilha. O autor não concentra aí as suas ideias
em um só extenso, arredondado e majestoso período como no preceden-
te trecho, mas emite-as em quatro períodos distintos, porque neste caso a
divisão que contribui para a clareza servia ao seu propósito de insinuar-
-se no ânimo do leitor, tendo de refutar as argúcia e sutilezas de um es-
critor distinto, que é tão conhecido na república das letras. O primeiro
período principalmente é um verdadeiro modelo de perfeita transição:

São passados mais de dois séculos depois destes graves debates em que cor-
reu tanto risco a integridade do futuro Império de Santa Cruz; os atores
Autores brasileiros  369

que figuraram nessas cenas, os interesses e paixões que os moviam, tudo


desapareceu, e a justiça da história pode já agora proferir a sua sentença.

Pelas passagens analisadas podeis, Senhores, ajuizar do gosto e crité-


rio com que é escrita toda a biografia, porque o resto da obra em nada
desdiz do que fica exposto.
Tendo concluído a apreciação dos autores brasileiros, passarei nos
seguintes discursos a analisar os principais autores portugueses contem-
porâneos, começando por Garrett. Por hoje aqui termino.
Formato 16 x 23
Tipologia: Minion Pro (texto) Garamond (Títulos)
Papel: Offset 90g/m2 (miolo) Supremo 250g/m2 (capa)
CTP, impressão Offsete – acabamento: Armazém das Letras para a Editora Caetés

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