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Organização
Roberto Acízelo de Souza
Editora Caetés
Rio de Janeiro
2014
Copyright © 2014 – Roberto Acízelo de Souza
Editora Caetés
Rua General Roca, 429 sl 01 – www.editoracaetes.com.br
Coordenação Editorial
Francisco Venceslau dos Santos
Revisão
Roberto Acízelo de Souza
Diagramação
DTPhoenix Editorial
Capa
Miriam Lerner
Imagem da capa
Largo do Carmo, São Luís do Maranhão, em foto de 1908; em destaque, a Igreja
e o Convento do Carmo. Neste funcionou inicialmente o Liceu Maranhense,
escola de ensino secundário fundada em 1838 (a segunda mais antiga do Brasil,
precedida apenas pelo Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro), estabelecimento de
que Sotero dos Reis foi o primeiro diretor.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-86478-89-5
Apresentação 9
Critérios da edição 31
Fundamentos teóricos 37
Introdução [ao volume 1] 39
Lição I 44
Lição VI 52
Lição VII 54
Lição VIII 61
Duas palavras ao leitor [Introdução ao volume 2] 64
Introdução [ao volume 3] 66
Introdução [ao volume 4] 72
Introdução [ao volume 5] 74
Autores brasileiros 75
Frei José de Santa Rita Durão: Lição LXX / LXXI 77
José Basílio da Gama: Lição LXXII / LXXIII 97
Padre Antônio Pereira de Sousa Caldas:
Lição LXXIV / LXXVII 118
Manuel Odorico Mendes: Lição LXXVIII / LXXIX 160
Antônio Gonçalves Dias – poesia: Lição LXXX / LXXXIV 173
Antônio Gonçalves Dias – teatro e prosa:
Lição LXXXV / LXXXVI 229
Marquês de Maricá: Lição LXXXVII / LXXXVIII 269
Frei Francisco de Mont’Alverne: Lição LXXXIX / XC 285
Antônio Henriques Leal: Lição XCI 305
João Francisco Lisboa: Lição XCII / XCVI 314
APRESENTAÇÃO
A pequena fortuna crítica do autor tem início com uma série de ar-
tigos de Lafaiete Rodrigues Pereira,1 publicados no Diário do Povo, do
Rio de Janeiro, em 1868, a propósito do primeiro volume do Curso de
1
Jurista e político (Queluz [atual Conselheiro Lafaiete], 1834 – Rio de Janeiro, 1917).
12 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
2
A rigor, a primeira manifestação crítica referente a publicações de Sotero data de 1862.
Trata-se de um “juízo crítico sobre as Postilas gramaticais de Sotero dos Reis”, assinado por
Trajano Galvão de Carvalho (1830-1864) e apenso à primeira edição das Postilas de gramá-
tica geral. Sendo, no entanto, relativa a uma obra específica, além de anterior à publicação
do Curso, não integra a fortuna crítica geral do autor, não nos interessando aqui.
3
Médico, historiador, tradutor, biógrafo (Itapicuru-Mirim, 1828 – Rio de Janeiro, 1885).
4
Bacharel em direito e escritor (Caxias, 1817 – São Luís, 1881).
Apresentação 13
Ainda não vi obra deste gênero tão pobre de crítica. Ou seja geral o assunto
ou limitado à literatura dos dous países a que ela se refere, nada há aí que
se possa considerar original e bom; a análise resolve-se num bataclan de
louvores destemperados, acompanhados sempre do estribilho: “Como isto
é belo!” (ibid., p. 89).
Agrippino Grieco, por sua vez, com indulgência por assim dizer
cruel, o qualifica como “parafrasta de Camões [...] e humanista mais
próximo da gramática que da estética” (1947 [1933], p. 29), “roído de
14 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Quanto aos critérios do autor para a seleção com que trabalha, con-
vêm algumas observações.
Em relação aos escritores da época colonial, nada declara quanto às
clamorosas exclusões de figuras como Gregório de Matos, Botelho de
Oliveira, Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga
Peixoto, Silva Alvarenga, todos, na altura em que profere suas palestras e
publica os volumes do Curso (década de 1860), já devidamente tratados
nos primeiros trabalhos historiográficos consagrados à literatura brasi-
leira (cf.: Parnaso brasileiro, de Januário da Cunha Barbosa – 1829-1832;
“Bosquejo da história da poesia brasileira”, de Joaquim Norberto – 1841;
Florilégio da poesia brasileira, de F. A. Varnhagen – 1850-1853; Curso
elementar de literatura nacional, de Fernandes Pinheiro – 1862). Quanto
às inclusões — Santa Rita Durão, Basílio da Gama e Sousa Caldas —,
assim as justifica o mestre maranhense:
9
Assinale-se que resta um pouco irônica a posição desses poetas nos estudos de Sotero;
pois, excluídos do rol dos brasileiros, por identificação com os portugueses, não deveriam
eles ser tratados a par com estes últimos, em vez de meramente ignorados, considerando
que, conforme o próprio autor, “pertencem [...] ao tempo em que a literatura era comum aos
dois povos, brasileiro e português, que formavam então uma só nação” (Reis, 1866-1873, v.
4, p. 171)? De fato, dado que, tendo em vista a época em questão, o critério da nacionalidade
se revela impertinente, como se justificaria, por um critério estritamente literário, ficar com
os portugueses Garção, Cruz e Silva, Filinto Elísio e Bocage, em detrimento dos brasileiros
Cláudio, Gonzaga e os dois Alvarengas? Quanto à exclusão de Gregório e Botelho de Oliveira,
aí se observa coerência, pois, por um critério literário, o autor também exclui os líricos
seiscentistas portugueses, referindo-se a sóror Violante do Céu e à Fênix renascida apenas
para detratar a poesia do século XVII, cujo “mau gosto”, segundo seu parecer, “deve[ria] ser
evitado com cuidado” (Reis, v. 3, p. XIII).
10
As justificativas para a inclusão de Antônio Henriques Leal, contudo, parece que não
passam de racionalização para interesses de capelinhas literárias. Observe-se que Leal, na
condição de membro mais jovem, integrava o mesmo círculo literário de que fazia parte
Sotero, mais tarde caracterizado pelas nossas histórias literárias como o “Grupo maranhense”,
além de ter sido um dos coautores, com Sotero e outros, da brincadeira literária constituída
pela novela A casca da caneleira (1866). Não surpreende, pois, que, numa passagem do
Curso, Sotero a ele se refira como “o meu amigo o Sr. Dr. Antônio Henriques Leal” (Reis,
1866-1873, v. 5, p. 1). Leal, por seu turno, retribuiria a gentileza, pois, morto Sotero em
1871, consagraria ao amigo um dos capítulos do seu Pantheon maranhense, publicado
em 1873, em que não economiza nos elogios, como se vê na seguinte passagem, em que,
aliás, salvo engano, dá a entender que teria sido seu aluno: “Venerando patriota, incansável
evangelizador, não foram baldados os sacrifícios que fizeste com prodigalizar teu tempo a
18 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
espancar as trevas de quem te procurava para iluminá-lo com a muita luz que possuías; que
bem mereceste da pátria, mas também o pedestal, onde se ergue vivedoira a tua memória,
firma-se em nossos corações agradecidos! Três gerações quase inteiras de teus conterrâneos
passaram pela fieira de teu ensinamento e se apuraram no crisol de teu espírito esclarecido,
ouvindo tuas conceituosas e sábias lições, e são os melhores pregoeiros de teu nome” (Leal,
1987 [1873], p. 69).
Apresentação 19
[A] palavra literatura na sua mais lata acepção significa a totalidade dos
escritos literários ou científicos, e é neste sentido que dizemos “literatura
teológica, médica, jurídica.” Mas daqui se não segue que devamos admi-
tir tal acepção quando se trata da literatura propriamente dita. Ninguém
ainda procurou a literatura italiana, inglesa ou francesa nas Memórias da
Academia del Cimento, nas Transações filosóficas ou no Journal des Savants
ou de Physique. Não é de Lancisi, Galileu, Volta e Galvani que se nos fala
na história literária, não de Boyle, Cavendish, Davy, etc., mas de Dante, Pe-
trarca, Ariosto, Maquiavel, Tasso, Shakespeare, Milton, Bossuet, Corneille
(Ribeiro, 2014 [1843], p. 173).
Muitos literatos, porém, e com especialidade dos que têm tratado ex-profes-
so da matéria, concordam em distinguir a literatura das ciências e da eru-
dição propriamente dita, limitando-a unicamente ao estudo daquele ramo
de conhecimentos nossos a que se dá o nome de humanidades ou belas-
-letras, isto é, ao estudo da poesia, da eloquência, da história. Ainda tomada
a palavra neste sentido restrito, são preliminares indispensáveis, ou antes,
parte integrante da literatura: a gramática geral ou estudo comparado das
línguas, a filosofia ou ciência dos princípios, a história, a crítica, a retórica, a
geografia, a aritmética, a geometria e noções elementares de todos os outros
conhecimentos (Sotero, 1866, v. 1, p. 3).
11
O humilde e mestiço Teixeira e Sousa, cuja novela O filho do pescador se publicara em
1843, embora morto em 1861, muito menos teria credenciais para ser reconhecido por
Sotero, se é que o mestre maranhense chegou a ter alguma notícia dele.
12
Na Introdução ao volume póstumo do Curso — o de 1873 —, assinada pelo seu
organizador, Américo Vespúcio dos Reis, filho do autor, se lê, no entanto, o seguinte: “Teria
[Sotero], de certo, aberto mais outra honrosa exceção [isto é, tratar de autor vivo], se tivesse
vivido mais algum tempo, para o Sr. Araújo Porto Alegre, pois lhe ouvimos por muitas
vezes que pretendia analisar o Colombo deste autor, poema a que fazia grandes elogios.
Também manifestou a intenção de apreciar as obras de Álvares de Azevedo” (in Reis, 1866-
1873, v. 5, p. VI). Quanto a Porto Alegre, nenhuma surpresa na revelação, vistos os pálidos
traços de romantismo que a custo sobrenadam no neoclassicismo oceânico de sua poesia;
o apreço, contudo, por Álvares de Azevedo, certamente o mais “moderno” dos poetas que
despontaram nos anos de 1850 no Brasil, a de fato proceder criaria um problema para
explicar-se a coerência das escolhas do professor Sotero.
Apresentação 21
13
No romance Casa de pensão (1884), de Aluísio Azevedo, Sotero dos Reis faz duas “apa-
rições” fugazes. Como documentam sua atuação como professor, chegando a referir o tipo
de sua voz, vale a pena citar as cenas: “Houve muita formalidade [no exame de portu-
guês]. A congregação era presidida pelo Sotero dos Reis; havia vinte e tantos examinandos”
(Azevedo, 1965 [1884], p. 25); “Era a mesma salinha do mestre-escola, a mesma banca de
paparaúba manchada de tinta, o mesmo fanhoso Sotero dos Reis presidindo a mesa [...]”
(ibid., p. 217). Se acrescentarmos aos f lashes do romancista o testemunho de um contem-
porâneo — “Tinha [Sotero] o dom da facilidade e da clareza, mas nenhuma eloquência.
Sempre a mesma frase, sempre a mesma expressão, sempre a mesma frieza [...]” (Correia,
1878, p. 69). —, podemos fazer uma ideia razoável da monotonia de suas aulas, se é que, no
ato de ministrá-las, limitava-se o professor à mera leitura das lições — inclusive com suas
extensíssimas citações —, na forma em que aparecem publicadas nos volumes do Curso.
22 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
1 - Tomo primeiro
- Introdução
- Livro I
- Seção I: conceitos de base e a língua
- Lição I a VIII: discurso preliminar (definição, divisão, objeto e fim
da literatura; melhor método para seu ensino); origem, formação,
polimento, fixação, f lorescimento, decadência e restauração da lín-
gua portuguesa, de fins do século XII a meados do XIX
- Seção II: primeiro período da literatura portuguesa (poetas, de fins
do século XII a meados do XVI)
- Lição IX a XII: D. Dinis, Bernardim Ribeiro, Gil Vicente, Sá de Mi-
randa
- Seção II: primeiro período da literatura portuguesa (prosadores, do
segundo quartel do século XV a meados do XVI)
- Lição XIII a XVII: D. Duarte, Gomes Eanes Azurara, Garcia de Re-
sende, Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda
2 - Tomo segundo
- Duas palavras ao leitor
- Livro II: segundo período da literatura portuguesa
- Seção I
- Lição XVIII a XIX: Antônio Ferreira
- Seção II
- Lição XX a XXVIII: Camões épico
- Seção III
- Lição XXIX a XXXII: Camões lírico e dramático
24 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
- Seção IV
- Lição XXXIII a XXXV: João de Barros
3 - Tomo terceiro
- Introdução
- Livro III: terceiro período da literatura portuguesa
- Seção I
- Lição XXXVI: Vasco Mousinho de Quevedo Castel-Branco
- Lição XXXVII: Gabriel Pereira de Castro
- Seção II
- Lição XXXVIII a XLI: frei Luís de Sousa
- Seção III
- Lição XLII: abade Jacinto Freire de Andrade
- Seção IV
- Lição XLIII a XLIX: padre Antônio Vieira
- Livro IV: quarto período da literatura portuguesa
- Seção I
- Lição L a LIII: Antônio Correia Garção
- Seção II
- Lição LIV a LVIII: Antônio Dinis da Cruz e Silva
4 - Tomo quarto
- Introdução
- Livro V: quarto período da literatura portuguesa (continuação)
- Seção I
- Lição LIX a LXV: Francisco Manuel do Nascimento, vulgo Filinto
Elísio
- Seção II
- Lição LXVI a LXIX: Manuel Maria Barbosa du Bocage
- Livro VI: Literatura brasileira
- Parte I: precursores
- Seção I
- Lição LXX a LXXI: frei José de Santa Rita Durão
- Seção II
- Lição LXXII a LXXIII: José Basílio da Gama
- Seção III
Apresentação 25
5 - Tomo quinto
- Introdução
- Livro VII / Parte I: literatura brasileira propriamente dita (conti-
nuação)
- Seção I
- Lição LXXXV e LXXXVI: Antônio Gonçalves Dias – teatro e prosa
- Seção II
- Lições LXXXVII e LXXXVIII: marquês de Maricá
- Seção III
- Lições LXXXIX e XC: frei Francisco de Mont’Alverne
- Seção IV
- Lição XCI: Antônio Henriques Leal
- Seção V
- Lição XCII a XCVI: João Francisco Lisboa
- Livro VIII / Parte II: quinto período da literatura portuguesa
- Seção I
- Lição XCVII a CII: visconde de Almeida Garrett
- Seção II
- Lição CIII: Alexandre Herculano
- Literatura bíblica
- Lição I: generalidades
- Lição II a VI: Jó, Davi, Salomão, Isaías, Jeremias
Sotero dos Reis se aproxima de Fernandes Pinheiro, que, nas suas obras
— Curso elementar de literatura nacional (1862) e Resumo de história
literária (1873) —, propõe a mesma solução para o problema da origem
da literatura brasileira. Afasta-se, consequentemente, da concepção de
uma origem mais remota, situável no século XVI ou XVII, concepção
que, partindo de Januário da Cunha Barbosa, e prosseguindo, entre
outros, com Gonçalves de Magalhães, Nunes Ribeiro, Pereira da Silva,
Joaquim Norberto, Varnhagen, Antônio Henriques Leal, Sílvio Rome-
ro e José Veríssimo, estava destinada a tornar-se amplamente aceita, a
ponto de instalar-se no nosso sistema de ensino literário, na condição de
evidência refratária a qualquer problematização.15 Assim, o Curso situa
no século XVIII o início da nossa história literária, com os poetas que
considera “precursores” (cf. Reis, 1867, v. 3, p. VIII e IX) de uma tradi-
ção especificamente brasileira — Durão, Basílio e Sousa Caldas —, para
depois tratar dos representantes da “literatura brasileira propriamente
dita” (cf. Reis, 1868, v. 4, p. V e 286), escritores pertencentes ao período
posterior a 1822: Odorico Mendes, Gonçalves Dias, marquês de Maricá,
Mont’Alverne, Antônio Henriques Leal e João Francisco Lisboa.
A presente edição tem por objetivo disponibilizar uma das obras
fundadoras da historiografia literária do Brasil, a fim de que se possam
cotejar sua concepção e seus fundamentos teóricos com os rumos pos-
teriormente tomados por esses estudos entre nós, de fins do século XIX
a este início do XXI. Assim, aqui se reproduzem as partes preambulares
da obra — as introduções de cada um dos cinco volumes, bem como as
Lições I, VI, VII e VIII —, imprescindíveis para a compreensão tanto
do seu sistema de conceitos quanto da tese do autor sobre a relativa dis-
tinção entre as literaturas nacionais do Brasil e de Portugal, bem como
todo o seu segmento dedicado à literatura brasileira, que se estende da
Lição LXX à XCVI, correspondente aos livros VI e VII.
Esclarecemos, por fim, que, se a edição operou alguns cortes nas par-
tes preambulares, visando a eliminar passagens impertinentes para os
15
Ainda que, de acordo com praxe dos nossos manuais de história literária e do sistema de
ensino consolidada a partir de fins do século XIX e até hoje vigente, as origens da literatura
brasileira sejam situadas no século XVI, convém lembrar que um dos mais importantes
ensaios novecentistas sobre a questão propõe solução semelhante à formulada no Curso
de Sotero dos Reis. Referimo-nos, naturalmente, à obra de Antonio Candido, Formação da
literatura brasileira (1959).
Apresentação 27
Referências
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p. 157-167.
16
Aproveitaram-se, neste ensaio introdutório, trechos de matérias do autor antes publica-
das, com adaptações e emendas pontuais, a saber: “O culto brasileiro da literatura portu-
guesa: suas raízes oitocentistas” (in: MONTEIRO, Conceição & LIMA, Teresa Marques de
Oliveira, org. Dialogando com cultura: questões de memória e identidade. Niterói [RJ]: Vício
de Leitura, 2003. p. 139-154; SOUZA, Roberto Acízelo de. Introdução à historiografia da li-
teratura brasileira. Rio de Janeiro: Eduerj, 2007. p. 67-79.); “Identidade nacional e história da
literatura: as contribuições de Fernandes Pinheiro e Sotero dos Reis” (in: JOBIM, José Luís &
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257-269.); “Francisco Sotero dos Reis” (in: SOUZA, Roberto Acízelo de, org. Historiografia
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30 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
* V. 1 (1866), p. V-XXII.
Fundamentos teóricos 41
Esta analogia tão perfeita com o latim, na qual leva o português van-
tagem a todos os idiomas da mesma filiação, provém, quanto a mim,
de se haver ele, por isso mesmo que é o mais moderno dos seus aná-
logos, polido e aperfeiçoado, já quando, desde a invasão dos bárbaros
que destruíram o Império Romano, se entrou a fazer um estudo sério
do latim em toda a Europa e por conseguinte em Portugal, ou depois
do estabelecimento das letras na Itália, ao passo que o italiano, e ainda
o espanhol, eram antes disso línguas cultas, não podendo o francês for-
necer argumentos em contrário, porque foi refeito do antigo romance,
ou língua romana, que precedeu à sua formação. Coincide esta minha
opinião com o fato incontestável de se haver o português, que era a prin-
cípio uma verdadeira algaravia, aproximado tanto mais do latim quanto
mais se poliu.
Analiso neste período alguns autores de mérito literário mui some-
nos, contra o plano que concebi, ou porque só neles se podem bem co-
nhecer as diversas modificações pelas quais foi passando o português,
que devia fixar-se no seguinte período com o aparecimento dos Lusía-
das, de Camões, e cujo primeiro balbuciar e crescente desenvolvimen-
to importa não perder de vista, ou porque com seus escritos, bem que
medíocres, deram algum passo na via do progresso artístico. D. Dinis,
por exemplo, foi não só o nosso primeiro poeta, mas o nosso primeiro
escritor, e por conseguinte só nele se pode bem avaliar o que era a poe-
sia e língua portuguesa do seu tempo; Sá de Miranda, poeta e prosador,
foi o introdutor dos metros toscanos e de diversos gêneros de poesia,
bem como da comédia clássica, e como tal só ele nos pode dar ideia
dos primeiros acanhados passos da arte nascente; Garcia de Resende,
cronista, escreveu em uma época em que a língua passou por notável
42 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
***
2
Abreviatura de Monsieur.
3
Louis-Gabriel-Ambroise, visconde de Bonald (1754-1840); pensador tradicionalista,
adversário do Iluminismo.
4
Abreviatura de Monsieur, que, na edição-fonte, se alterna com Mr. (ver nota 2). Mantivemos
a alternância.
5
Alphonse de Lamartine (1790-1869); poeta, prosador e político francês, muito influente
na difusão e consolidação do romantismo.
Fundamentos teóricos 47
6
Abel-François Villemain (1790-1870); político e escritor, considerado um dos fundadores
da historiografia da literatura francesa.
7
Na verdade, escocês (1718-1800).
8
O título correto, traduzido, é Conferências sobre retórica e belas-letras, obra publicada
originalmente em 1783.
9
Acreditamos que a formulação mais apropriada seria “e de que participa”.
50 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
O autor emprega artigo na expressão por ventura — grafada, pela otografia ora em vigor,
11
como uma só palavra: porventura —, mais comumente utilizada sem a partícula, inclusive
— acreditamos — na sua própria época. Aliás, pela frequência com que ocorre no texto,
parece que a expressão contava com seu especial apreço.
52 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
com o provençal, onde mais tarde bebeu Petrarca a inspiração para al-
gumas de suas admiráveis canções; a língua dos sábios, a língua culta,
em que oravam e escreviam tanto italianos, como franceses, como es-
panhóis, era a língua latina, ainda dominante para a eloquência, para
a história, para a diplomacia, para a ciência. Abrasado em santo amor
da pátria, o grande poeta florentino tomou esse rude idioma vulgar da
boca do povo, desbastou-o, poliu-o, fixou-o, elevando-o desde logo nas
páginas do seu imortal poema à nobre categoria de língua culta.
Por este só fato, ainda sem falar na admirável poesia de sua engenho-
sa criação, é Dante um verdadeiro prodígio, um gênio igual a Homero.
Com justo fundamento, pois, dão os mais dos profissionais o primei-
ro lugar aos poetas como a nossos primeiros mestres, quando se trata da
exposição e análise de autores da mesma época.
Tencionava eu, quando me encarreguei desta cadeira, ocupar-me
com a literatura antiga antes da nossa; refletindo porém que isso não
era matéria para um só curso letivo, mudei inteiramente de resolução.
Assim, tratarei no atual da literatura portuguesa e de nossa nascente
literatura, de que a primeira é parte principal, dando antes da análise
crítica dos respectivos modelos algumas preleções sobre a origem, for-
mação e aperfeiçoamento da língua portuguesa, como preliminar para
aquela indispensável.
Ponho aqui termo ao meu discurso.
LIÇÃO VI*
............................................................................................................................
[...] outros fatos [...] deviam por suas consequências políticas influir
no destino da literatura, e de feito influíram. Por ocasião da primeira
invasão francesa em Portugal, a família real portuguesa transportou-se
para o Brasil em fins de 1807, ficando este sendo a sede da monarquia. O
Brasil foi elevado à categoria de reino, e o príncipe regente, por morte de
Dª Maria I, foi aclamado, sob o nome de D. João VI, rei do Reino Unido
de Portugal, Brasil e Algarves, em 1818.
Com a família real, passaram-se também para o Brasil, na mesma
ocasião ou depois, não poucos literatos portugueses, e ainda brasilei-
ros que viviam na Metrópole. Os conhecimentos começaram então a
difundir-se no Brasil com mais profusão, especialmente na capital do
Rio de Janeiro, onde residia a Corte, se bem que isso se infira mais dos
interessantes escritos que foram depois impressos que das notícias do
tempo, porque não havia ainda liberdade de imprensa, nem jornais nas
províncias. O que é fato averiguado é que o Rio de Janeiro, onde se acha-
vam reunidos hábeis professores e muitos literatos, começou a ser o foco
de instrução literária e científica para o resto do Brasil.
A ausência do rei, o desgosto produzido pela execução do general
Gomes Freire12 e seus infelizes companheiros, e as ideias de liberdade e
progresso causaram em Portugal a revolução de 1820, que regenerou a
nação portuguesa, acabando com o Tribunal da Inquisição e adotando
instituições livres para o regime político de Portugal, que proclamava
uma constituição. A revolução portuguesa foi abraçada com entusiasmo
por todo o Brasil, que já abundava nas mesmas ideias, comunicando-se
com a rapidez do relâmpago do Amazonas ao Prata;13 mas o desgosto
Assim como, no século XX, se tornou usual a expressão “do Oiapoque ao Chuí”,
13
54 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
16
A constituição de 1824, primeira do Brasil independente, outorgada por D. Pedro I depois
da dissolução da Assembleia Nacional Constituinte, por ato de força do monarca; vigoraria
até 1891, data da primeira constituição republicana.
17
Referência à estátua equestre de D. Pedro I inaugurada no Rio de Janeiro em 1862, na
então Praça da Constituição, hoje Praça Tiradentes.
18
Confederação do Equador (1824), Guerra dos Cabanos (1832-1835), Cabanagem (1835-
1840), Guerra dos Farrapos (1835-1845), Sabinada (1837-1838), Balaiada (1838-1841),
levantes liberais de São Paulo e Minas (1842), Revolução Praieira (1848).
Fundamentos teóricos 57
19
Guerra da Cisplatina (1825-1828).
20
Chamada “Guerra contra Rosas” (1852).
21
Era isto escrito em maio de 1864. (Nota do autor.)
22
Conforme se lê na nota anterior, do próprio autor, o texto foi escrito em 1864. Ora, em
dezembro daquele ano tem início a Guerra do Paraguai, que se prolongaria até março de
1870, tornando-se assim a mais longa das guerras externas sustentadas pelo Brasil. Como o
livro só sairia em 1866, o autor poderia perfeitamente ter feito emendas que atualizassem as
informações apresentadas; não o fez, contudo, preferindo a salvaguarda da nota, certamente
porque uma retificação que mencionasse a guerra então em curso teria inviabilizado seu
argumento, segundo o qual a paz e a estabilidade conquistadas pelo Brasil nos anos de 1850,
após o período turbulento da Regência (1831-1840) e o início do Segundo Reinado (1840-
1889), estaria favorecendo o desenvolvimento da cultura literária.
23
Guerra de Secessão (1861-1865).
24
Invasão francesa (1862), inicialmente com apoio de forças espanholas e britânicas.
58 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
dos três últimos senhores, e nada deixa a desejar quanto ao fogo sagrado
da inspiração, abundância de fantasia imaginosa, sublime de pensamen-
to e colorido de estilo, se bem que em alguns deles se possam enxergar
defeitos na pureza da dicção e exageração no emprego da cor local.
O Sr. Odorico Mendes é um verdadeiro poeta clássico por sua admi-
rável tradução de Virgílio, superior a quantos se têm feito em português
do mesmo poeta, e uma das melhores em língua viva pela riqueza da
linguagem e metrificação, poesia imitativa, viveza de imagens e perfei-
ção de estilo. As suas bem acabadas traduções da Mérope e do Tancredo
não lhe são também pequeno título de glória. Um dos mais profundos
conhecedores atuais da bela língua de Camões e de Ferreira,26 o Sr. Odo-
rico Mendes presta por seus escritos à literatura brasileira no século XIX
quase o mesmo serviço que Francisco Manuel do Nascimento27 prestou
à portuguesa no século XVIII. Propõe-se ainda o exímio poeta a enri-
quecer as duas literaturas com a importante tradução que fez da Ilíada e
da Odisseia de Homero, e que será brevemente publicada, segundo nos
consta.28
O Sr. Gonçalves Dias, que não tem rival entre nós no colorido e per-
feição de estilo, é sem dúvida, pelo seu elevado e aceso imaginar, o pri-
meiro poeta lírico da época; e direi não só no Brasil, mas ainda nos
países de língua portuguesa.
O Sr. Gonçalves de Magalhães, que passa pelo fundador da escola
romântica entre nós, é também, quanto a inspiração e estilo, um poeta
de primeira ordem naquelas de suas obras que têm chegado ao nosso
conhecimento, que são as acima citadas.
O Sr. Araújo Porto Alegre, a julgarmos por algumas de suas “brasi-
lianas”, é igualmente um poeta de primeira ordem, quanto a inspiração e
estilo. Este Senhor vai de mais a mais enriquecer a nossa literatura com
um poema épico, intitulado Colombo, ou O descobrimento da América.29
Bem haja a sua eloquente pena, que assim paga uma dívida em que esta-
mos todos os americanos para com o maior homem do século XV.
26
Antônio Ferreira (1528-1569), poeta renascentista.
27
O poeta árcade Filinto Elísio, nascido em 1734 e morto em 1819.
28
A tradução da Ilíada por Odorico Mendes seria publicada em 1874, e a da Odisseia
somente em 1923.
29
O poema viria a ser publicado em 1866; Sotero, escrevendo em 1864, como declara (ver
nota 21), de algum modo teve notícia de seu processo de elaboração.
60 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Julguei dever apenas emitir este juízo sucinto acerca dos três poetas
que escreveram obras originais, não só porque se trata de autores vivos,
como porque na análise terei de dar o meu juízo circunstanciado sobre
as obras de cada um deles, não militando a mesma razão para com o Sr.
Odorico Mendes, porque nas traduções só se aprecia o mérito da execu-
ção, e não o da invenção e distribuição.
São prosadores mais notáveis: o marquês de Maricá, autor das Máxi-
mas; frei Francisco de Mont’Alverne, orador sagrado; e João Francisco
Lisboa, autor do Timon, da biografia do Sr. Odorico Mendes e da vida
do padre Antônio Vieira, todos já falecidos.
O primeiro é um modelo de estilo conciso e sentencioso, onde há
muito que aprender para os homens de todas as condições; o segundo é
um modelo de eloquência sagrada, em que se notam a cada passo ver-
dadeiros rasgos oratórios e o lampejar do gênio da tribuna, não obstan-
te algumas incorreções; o terceiro, que, pelos trabalhos históricos que
nos legou no seu Timon, e outros que ficam citados, já pode passar por
modelo do verdadeiro historiador crítico e eloquente, o seria de certo
completo, se a morte o não viesse interromper no meio de seus estudos
literários.
Apresentarei ainda, dentre os autores que atualmente vivem, o Sr.
João Manuel Pereira da Silva, como um escritor diligente e bem infor-
mado no seu Plutarco brasileiro, onde se encontra o que falta nos nossos
poetas que só veem índios e mais índios, o homem civilizado do Brasil,
ou brasileiro de origem ou para ele transplantado, colocado em presen-
ça do selvagem, habitador dos bosques.
Já é tempo de irmos dando de mão30 a tanta lenda sobre os aboríge-
nes, para pintarmos também os usos e costumes do homem civilizado
do Brasil, ou do verdadeiro atual brasileiro. Já João Francisco Lisboa
censurava no seu Timon este pendor exclusivo para os índios no meio
de uma nação civilizada, e com muita razão, porque estamos no Brasil
de 1864, e não no Brasil de 1500, no qual Pedro Álvares Cabral só en-
controu selvagens.
Bem desejava apresentar-vos aqui os nossos mais distintos oradores
na tribuna parlamentar, mas infelizmente não se acham colecionados os
Dar de mão alguma coisa, isto é, “abandoná-la com desprezo”; expressão antiquada,
30
Nascido em Vila Rica, atual Ouro Preto, no ano de 1795, e morto no Rio de Janeiro, em
32
1850.
LIÇÃO VIII*
35
Segue-se trecho, impertinente para os fins desta edição, em que o autor menciona
sumariamente poetas e prosadores portugueses que, “nestes últimos tempos [...], julg[a]
com direito a ocupar o lugar mais distinto” (v. 1, p. 78). Entre os poetas, cita Almeida Garrett
e Castilho, e entre os prosadores, o mesmo Garrett, Herculano e Rebelo da Silva.
36
A passagem tomada a Horácio (Sátiras, I, 1, 106) assim se traduz: “Haja medida em
tudo”, tratando-se, pois de exortação à necessidade de moderação, evitando-se todo tipo
de excesso.
37
Até pelo menos meados do século XIX, no âmbito da educação literária usava-se a
expressão “castigar o estilo”, no sentido de apurá-lo, aperfeiçoá-lo.
64 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
* V. 3 (1867), p. V-XIV.
68 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
história literária de Portugal, seguido do Resumo da história literária do Brasil (1826); nasceu
em 1798 e morreu em 1890.
Fundamentos teóricos 69
***
palavras que versa sobre a ideia de Lua e a da tal coleção de poesias, a que
a poetisa chama “Jardim de harmonia” e “Jardim canoro”. Assim nem
Bouterwek,46 nem Sismondi47 entraram na verdadeira inteligência deste
soneto, ou deste enigma, cuja decifração nos é dada por José Maria da
Costa e Silva, e que por sua singularidade foi traduzido em prosa fran-
cesa por M. Ferdinand Denis.
Tal era o estilo alambicado e a linguagem enigmática — antes gíria,
como lhe chama Francisco Manuel48 — daquela época de corrupção,
cujo mau gosto passou dos poetas aos prosadores, de alguns dos quais
não se pode ler meia dúzia de páginas sem cansaço, como, por exemplo,
de Berredo,49 autor dos Anais do Maranhão, o qual nos diz que levou
sete anos a polir o estilo; isto é, a estragá-lo!
Apreciar escritos de autores que não só não estão no caso de servir
de modelo aos que se propõem o estudo das boas letras, mas cujo mau
gosto deve ser evitado com cuidado, seria perder tempo e trabalho inu-
tilmente, quando não resultasse daí perigo a algumas inteligências que
começam a desenvolver-se, e podem por isso mesmo deixar-se iludir
com os falsos brilhantes que neles flamejam como fogo-fátuo. Ainda
bem que as poesias dos seiscentistas, cuja lição é prejudicial ao bom
gosto, já se vão tornando mui raras no Brasil. Hoje, por exemplo, não
me foi possível encontrar aqui a Fênix renascida,50 que contém muitos
versos de sóror Violante do Céu e de outros poetastros contemporâneos
da mesma, obra que li na minha mocidade em um exemplar já bem
danificado.
INTRODUÇÃO [AO VOLUME 4]*
Consta este volume de dois livros, o quinto, que ainda diz respei-
to à literatura portuguesa e brasileira, e o sexto, que trata da literatura
brasileira propriamente dita, e termina com a apreciação dos poetas da
segunda parte desta, Odorico Mendes e Gonçalves Dias, sem abranger a
dos prosadores da mesma época, por falta de margem.
Preferimos terminar neste ponto a dar uma apreciação incompleta
de nossos prosadores, com supressão de autores eminentes e das pas-
sagens notáveis donde tiramos os modelos de análise; pois restam-nos
ainda em ser,51 e prontas para a impressão, duas preleções sobre o mar-
quês de Maricá, duas sobre o frei Francisco de Mont’Alverne, cinco
sobre João Francisco Lisboa, uma sobre o seu biógrafo, duas sobre as
obras em prosa de Gonçalves Dias, bem como uma vista de olhos sobre
a literatura portuguesa contemporânea, que compreende seis preleções
sobre Garrett e uma sobre a prosa poética do Sr. A. Herculano, ou sobre
o seu Eurico, o que tudo reunido prefará52 um volume quase igual ao que
agora se publica.
Compreender toda essa matéria com a que fica publicada em um só
volume de perto de 600 páginas, recorrendo às supressões sobreditas,
seria não só faltar ao que nos requer a literatura brasileira, como dar
à mocidade noções incompletas sobre nossos principais prosadores, e
deixar por conseguinte de preencher o fim que nos propusemos.
Assim, se pudermos contar para a publicação de mais um volume
com o mesmo animador auxílio que tivemos para a dos quatro impres-
sos, visto como entre nós o produto só da assinatura não cobre as des-
pesas da impressão em uma obra de algum vulto, cuja extração é aliás
lenta, daremos ainda um quinto volume com a apreciação dos mencio-
nados autores; se não, ficará no ponto em que a deixamos a publicação
74 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
deste Curso, a qual, sem aquele animador auxílio, não teria passado do
primeiro volume.
Quanto ao que fica publicado da literatura brasileira, já é uma tal
amostra para dar-nos dela mui vantajosa ideia, porque o padre Sousa
Caldas e Gonçalves Dias são dois poetas da primeira ordem, que, por seu
extraordinário engenho e cabal instrução, honram não só a nossa, que
enriqueceram com seus escritos, mas a mesma literatura moderna, onde
quer que chegue o conhecimento da língua portuguesa. Esta vantajosa
ideia, porém, continuará a ser confirmada por alguns de nossos eminen-
tes prosadores, se pudermos publicar o volume com a apreciação deles.
Na apreciação publicada dos autores da segunda parte da literatu-
ra brasileira, julgamos conveniente não compreender os que ainda vi-
vem, suposto haja entre eles poetas de mui elevado mérito, de alguns
dos quais demos notícia nas preleções que servem de introdução a este
Curso, quando tratamos de determinar as diferenças entre a nascente
literatura brasileira e a portuguesa, pois são de primeira intuição os in-
convenientes que resultam da apreciação de autores vivos, não só por-
que se não dá a respeito deles a mesma liberdade que a respeito dos
mortos, como porque nunca fica completo o trabalho, podendo o autor
ou produzir mais ou alterar o que tem produzido. Neste ponto, apenas
nas preleções que estão por imprimir fizemos duas exceções em mui
pequena escala, se tal nome merecem — os juízos sobre a biografia de
João Francisco Lisboa e sobre a prosa poética do Eurico —, sendo que
versam sobre trabalhos especiais sem pretensões a uma apreciação com-
pleta sobre as demais obras dos respectivos autores, e isso pelas razões
plausíveis aí alegadas.
INTRODUÇÃO [AO VOLUME 5]*53
............................................................................................................................
Compõe-se este último volume de dois livros: o sétimo, que com-
preende os prosadores brasileiros mais distintos — Gonçalves Dias,
marquês de Maricá, frei Francisco de Mont’Alverne, o Sr. Antônio Hen-
riques Leal e João Lisboa: e o oitavo, que consta dos dois maiores vultos
literários de Portugal, neste século, o visconde de Almeida Garrett e o
Sr. Alexandre Herculano.
Tendo-se o autor traçado, por considerações que são óbvias, o pro-
pósito de só tratar de autores mortos, abriu, por mui justas razões, que
apresenta em lugar competente, duas exceções, uma em favor deste úl-
timo dos dois ilustres literatos portugueses, e outro do insigne biógrafo
de João Francisco Lisboa.
Teria, de certo, aberto mais outra honrosa exceção, se tivesse vivido
mais algum tempo, para o Sr. Araújo Porto Alegre, pois lhe ouvimos por
muitas vezes que pretendia analisar o Colombo deste autor, poema a que
fazia grandes elogios.
Também manifestou-nos a intenção de apreciar as obras de Álvares
de Azevedo.
............................................................................................................................
* V. 5 (1873), p. V-VIII.
O quinto e último volume do Curso é de publicação póstuma, sendo sua Introdução,
53
datada de 2 de setembro de 1873, assinada pelo filho do autor, Américo Vespúcio dos Reis.
AUTORES BRASILEIROS
FREI JOSÉ DE SANTA RITA DURÃO*
LIÇÃO LXX
A sua grande proficiência nas letras revela que teve uma educação
mui acurada, a qual sem dúvida começou no Brasil, onde os jesuítas ha-
viam então fundado boas escolas, e onde aprendeu também José Basílio
da Gama, seu conterrâneo, com quem me hei de ocupar depois, bem
como antes deles o padre Antônio Vieira. Mas não consta quem foram
seus pais, nem tampouco a época em que passou à Europa, sendo ainda
fácil averiguar o primeiro ponto, se fôramos mais curiosos de nossas
coisas.
Pouco depois de sua formatura achava-se, ao que se sabe, conventual
em Leiria, em cuja Sé pregou em 1758 um magnífico sermão em ação
de graças, por haver el-rei D. José escapado com vida dos tiros contra
ele disparados a 3 de setembro do mesmo ano. Não foi porém longa ali a
sua persistência. Saiu do reino e percorreu a Espanha e a Itália, gastando
uns 18 anos nestas viagens. Deu motivo à sua saída, antes expatriação
de Portugal, o seguinte fato relatado pelo Sr. Varnhagen no seu Florilégio
da poesia brasileira:
Um ano depois (diz este Sr., referindo-se a 1758), sendo decretada a expul-
são dos jesuítas, o bispo de Leiria, célebre mais tarde com o título de cardeal
da Cunha, aproveitou-se da ocasião para argumentar seu valimento com
Pombal, publicando uma pastoral fulminante contra os mesmos jesuítas.
E ou porque a dita pastoral continha proposições injustas, ou porque pela
própria forma se prestava à sátira, é certo de que Durão saiu a campo pulve-
rizando-a, a ponto de se comprometer e ver-se obrigado, a fim de livrar-se
das iras do prelado, a evadir-se para a Espanha.
pátria; entre os ouvintes não faltam outros brasileiros, tanto nas doutorais,
como nos bancos dos estudantes. Filho do Brasil é também o orador, que
não terá ainda 50 anos de idade; o seu rosto grande e trigueiro se destaca
perfeitamente junto do alvo do capelo, que tira por vênia de quando em
quando. Elogiando os antigos reis portugueses, exalta os monumentos por
eles deixados, como quem tinha direitos para o fazer em comparação dos
que vira por outros países, circunstância que faz sentir nas quatro palavras
do discurso: Perambulantem me saepe obem.
Muito havia (diz este) que a tuba épica estava entre nós silenciosa, quando
frei José Durão a embocou para cantar as romanescas aventuras de Cara-
muru. O assunto não era verdadeiramente heroico, mas abundava em ri-
quíssimos e variados quadros, era vastíssimo campo sobretudo para a poe-
sia descritiva. O autor atinou com muitos tons, que deviam naturalmente
combinar-se para formar a harmonia do seu canto; mas de leve o fez: só
se estendeu em os menos poéticos objetivos, e daí esfriou muito do gran-
de interesse que a novidade do assunto e a variedade das cenas prometia.
Notarei por exemplo o episódio de Moema, que é dos mais gabados, para
demonstração do que assevero. Que belíssimas coisas da situação da aman-
te brasileira, da do herói, do lugar, do tempo, não poderia tirar o autor, se
tão de leve não tivera desenhado este, assim como outros painéis? O estilo é
ainda por vezes afetado; lá surdem aqui e ali seus gongorismos; mas onde o
poeta se contentou com a natureza, e com a simples expressão da verdade,
há oitavas belíssimas, ainda sublimes.
Autores brasileiros 81
LIÇÃO LXXI
Uma epopeia digna deste nome é coisa tão elevada que, ainda sen-
do da segunda ordem, excita a nossa admiração; e com razão, porque
uma boa epopeia é um dos maiores esforços do espírito humano. As-
sim, depois da Eneida, de Virgílio, é justamente admirada a Farsália,
de Lucano.
De todas as literaturas modernas a literatura portuguesa é sem con-
tradição a mais rica em epopeias, pois possui, além de uma de primeira
84 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
[...]
[...]
[...]
versos: “Avista-se um com outro: a massa ardente / Deixa cair com bár-
baro alarido; / Corresponde o clamor da bruta gente, / E treme a terra
em roda, do mugido.” E para fazer-vos sentir a verdade da pintura, citar-
-vos-ei unicamente os três últimos da segunda oitava: “E sem mover-se
em torno a gente fraca / Olham lutando os dois no fero abraço, / Pé com
pé, mão com mão, braço com braço.”
A segunda passagem, ou o belo episódio de Moema, é notável pela
força do patético, nascido da situação da amante, que, segura ao leme da
nau, luta com as ondas e a morte, para exprobrar a ingratidão ao herói,
que parte para a Europa com outra, abandonando-a. Nesta passagem
com tanta razão louvada pelos homens de gosto, é mais que todas admi-
rável a seguinte oitava:
Que belíssima poesia! Não sei o que seja mais para admirar, se a co-
moção, que excita a desditosa amante, expirando vítima do seu amor no
meio das ondas, se a verdade e o colorido da pintura, que faz o poeta
do seu último transe. Não me recordo de haver lido nada mais poético
e patético, que o sentimento expresso nestes dois últimos versos entre as
agonias da morte: “Ah Diogo cruel! disse com mágoa, / E sem mais vista
ser, sorveu-se n’água.” Um tal quadro não é só belo, é sublime!
Já no precedente discurso emiti o meu juízo sobre este excelente epi-
sódio, a que nada falta quanto à situação da amante, que se acha ma-
gistralmente descrita, mas em que há alguma coisa a desejar quanto à
situação do herói, cuja dor devia ser expressa em termos menos vagos.
Na terceira passagem, que é a descrição do descobrimento do Brasil
por Pedro Álvares Cabral, há a admirar a insigne mestria com que o
poeta pinta as poéticas cenas que apresenta a nova terra de Santa Cruz
96 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Esta bela pintura de uma terra virgem de clima doce, de campo ame-
no e imenso arvoredo entressachado de fértil erva em sua viçosa ex-
tensão, bem como de uma nação incógnita, que se exprime por acenos,
encanta por sua amenidade, ao mesmo tempo que surpreende por sua
novidade, e faz palpitar o coração de todo brasileiro, que nela reconhece
a pintura da terra pátria. Como este se notam outros belos quadros em
toda esta rica passagem, que não é mais do que uma soberba galeria
deles. E se o autor nos tivesse dado mais vezes a descrição destas cenas
Autores brasileiros 97
LIÇÃO LXXII
Na edição-fonte, “Termindio”.
60
100 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Justo elogio mereceu (diz este ilustrado crítico) o sensível cantor da infeliz
Lindoia, que mais nacional foi que nenhum de seus compatriotas brasi-
leiros. O Uraguai, de José Basílio da Gama, é o moderno poema que mais
mérito tem na minha opinião. Cenas naturais mui bem pintadas, de grande
e bela execução descritiva; frase pura e sem afetação; versos naturais sem
ser prosaicos, e quando cumpre sublimes sem ser guindados, não são qua-
lidades comuns. Os brasileiros principalmente lhe devem a melhor coroa
de sua poesia, que nele é verdadeiramente nacional e legítima americana.
Mágoa é que tão distinto poeta não limasse mais o seu poema, lhe não des-
se mais amplidão, e quadro tão magnífico o acanhasse tanto. Se houvera
tomado esse trabalho, desapareceriam algumas incorreções de estilo, algu-
mas repetições e um certo desalinho geral, que muitas vezes é beleza, mas,
continuado e constante em um poema longo, é defeito.
Eis agora sobre o mesmo objeto o juízo do Sr. Varnhagen, digno tam-
bém de apreço no que se refere à forma:
com a mão larga por composição que devia aliás apresentar maiores
dimensões elevam sem dúvida à categoria de grande poeta épico ao seu
autor, a quem só faltou tempo, e não engenho, para produzir uma obra
em tudo prima.
Este abalizado poeta em suma, que deixou o cunho do gênio impres-
so nos seus versos feitos a pressa, foi também, se deixarmos de atender a
datas, o verdadeiro fundador da poesia brasileira, porque soube empre-
gar a cor local com mais arte que Durão, que o procedeu na ordem cro-
nológica, ou aquele a quem, na frase de Almeida Garrett, os brasileiros
devem a melhor coroa de sua poesia.
Tendo-vos dado neste uma ideia geral do mérito do Uraguai, com
a notícia da vida de seu autor, passarei em outro discurso a analisar o
mesmo poema por partes, esmerilhando as suas belezas uma por uma.
Disse.
LIÇÃO LXXIII
61
Nascido em 1533 e morto em 1594; seu poema, La Araucana, teve suas três partes
respectivamente publicadas em 1569, 1578 e 1589.
Autores brasileiros 105
Visionária, supersticiosa,
Que de abertos sepulcros recolhia
Nuas caveiras, e esburgados ossos,
A uma medonha gruta, onde ardem sempre
Verdes candeias, conduziu chorando
Lindoia, a quem ama como filha,
E em ferrugento vaso licor puro
De viva fonte recolheu. Três vezes
Girou em roda, e murmurou três vezes,
Co’a carcomida boca, ímpias palavras,
E as águas assoprou: depois com o dedo
Lhe impõe silêncio, e faz que as águas note.
Como no mar azul, quando recolhe
A lisonjeira viração as asas,
Adormecem as ondas, e retratam
Ao natural as debruçadas penhas,
O copado arvoredo, e as nuvens altas.
Não de outra sorte a tímida Lindoia
Aquelas águas fielmente pintam
O rio, a praia, o vale e os montes, onde
Tinha sido Lisboa, e viu Lisboa
Entre despedaçados edifícios,
Com o solto cabelo descomposto,
Tropeçando em ruínas encostar-se;
Desamparada dos habitadores
A Rainha do Tejo, e solitária
No meio de sepulcros, procurava
Com seus olhos socorro; e com seus olhos
Só descobria de um e de outro lado
Pendentes muros e inclinadas torres.
Vê mais o luso Atlante, que forceja
Por sustentar o peso desmedido
Nos roxos ombros. Mas do céu sereno,
Em branca nuvem próvida donzela
Rapidamente desce, e lhe apresenta
Da sua mão, espírito constante,
Gênio de Alcides, que de negros monstros
108 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
______
______
[...] Podem
Daquela altura, por espaço imenso,
62
Antônio Gomes Freire de Andrade (1685-1763); general português, comandou as tropas
luso-espanholas na chamada Guerra Guaranítica (1750-1756), episódio histórico de que
trata o poema.
63
Alusão ao poema Jerusalém libertada (1581), de Torquato Tasso (1544-1595), cujo herói
é o cavaleiro cruzado Godofredo de Bulhões.
116 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
LIÇÃO LXXIV
* V. 4 (1868), p. 231-286.
120 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Também Sousa Caldas gemeu nos cárceres desta, como o segundo, por-
que não pode expatriar-se como o primeiro. Era esse então o batismo do
gênio, e felizmente que já não era de sangue, como o que teve o infeliz
Antônio José.64 Que tempos para os homens de letras!
De volta à Universidade, continuou o poeta os seus estudos de juris-
prudência e, conseguidos os graus acadêmicos, dedicou-se à profissão
de advogado, que exerceu por algum tempo, recusando o lugar de juiz
de fora de uma das comarcas do Brasil, para que fora despachado por
solicitações de seus amigos.
A notícia porém da morte de seu pai, que sobreveio pouco depois,
ocasionou-lhe tão profundo desgosto que se resolveu a deixar Portugal
e a viajar pela Europa, para distrair-se com a locomoção e ao mesmo
tempo instruir-se, cultivando o seu espírito nos focos mais notáveis das
ciências.
A França de cujos escritores célebres tinha grande lição, foi a primei-
ra parte do continente europeu que atraiu as suas vistas, e para aí dirigiu
seus passos. Era isto em 1785; e já então esse país começava a agitar-se
com os prelúdios da imensa revolução de que foi ensanguentado teatro.
A geral efervescência que aí notou não podia de certo convir ao seu
espírito, que só ambicionava cultivar-se no remanso da paz. Por isso,
sem fazer longa demora no território francês, encaminhou-se logo para
a Itália, cujas principais cidades e monumentos visitou com proveito
de seus estudos, porque aí viveu vida repousada e conforme aos seus
desejos. Em Roma estabeleceu por fim a sua residência, para dedicar-se
inteiramente à cultura das letras. Aí, estimado do papa Pio VI, abraçou
a vida eclesiástica, compôs grande parte de suas poesias sagradas e en-
treteve relações com os mais acreditados sábios da época.
Depois de residir alguns anos em Roma, como o célebre padre An-
tônio Vieira, regressou a Portugal, onde recusou, para viver em inde-
pendente pobreza, a rendosa abadia de Lobrigos e a mitra episcopal do
Rio de Janeiro, que lhe foram oferecidas em consequência da grande
nomeada de suas letras e virtudes, mostrando-se ainda nisto semelhante
àquele padre, que também rejeitou bispados, para ficar isento de toda
e qualquer sujeição oficial. Nos quatro anos que residiu em Portugal
depois da sua vinda de Roma, entregou-se com ardor ao ministério do
distinto; mas nota-se que o poeta acha-se nelas menos em sua esfera. A Ode
ao homem selvagem porém é igual no poético aos seus mais belos hinos
sagrados.
LIÇÃO LXXV
Tradução I
Feliz aquele que os ouvidos cerra
A malvados conselhos,
E não caminha pela estrada iníqua
Do pecador infame,
Nem se encosta orgulhoso na cadeira
Pelo vício empestada;
Mas na lei do Senhor fitando os olhos,
A revolve e medita,
Na tenebrosa noite e claro dia
A fortuna e a desgraça,
Tudo parece a seu sabor moldar-se:
Ele é, qual tenro arbusto,
Plantado à margem de um ribeiro ameno,
Que de virentes folhas
A erguida frente bem depressa ornando,
Na sazão oportuna,
De frutos curva os suculentos ramos.
Não sois assim, ó ímpios;
Mas qual o leve pó que o vento assopra,
Aos ares alevanta,
E abate, e espalha, e com furor dissipa.
Por isso vos espera
O dia da vingança, e o frio sangue
Vos coalhará de susto;
Nem surgireis, de glória revestidos,
Na assembleia dos justos.
O Senhor da virtude é firme esteio,
Enquanto o ímpio corre,
128 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Tradução II
Venturoso o que não vaga
Pela estrada criminosa
Da impiedade, e a voz dolosa
Do malvado, que extravaga
Com sorriso, não afaga;
Nem do vício corruptor
Na cadeia pestilenta
Se assentou, com cego ardor;
Antes posta sempre a mente
Traz na lei do Criador.
Tradução I
Tradução II
1
Um Deus imenso
Os céus ressoam,
E a glória entoam
Do Criador:
No firmamento,
Astros brilhantes
Cantam, constantes,
O seu Senhor.
2
O claro dia,
Que foge, o conta
À que desponta
Seguinte luz:
Por entre as trevas
Da noite escura,
A face pura
De Deus traluz.
Autores brasileiros 131
3
Ouvem da Terra
Os povos todos,
Em vários modos,
Tão alta voz:
Do Tejo ao Ganges,
Jaz descoberto
Este concerto
Que ele compôs.
4
No sol se estriba
O sublimado
Trono sagrado
Do grande Deus:
E como belo
Rompe do dia
O astro, e alumia
A Terra e os Céus!
5
Vede como ergue,
Na madrugada,
A face ornada
D’almo esplendor!
Qual sai do leito
Nupcial o esposo
Ledo, e mimoso
De um puro amor.
6
Apenas surge
No firmamento,
Eis, num momento,
Gigante audaz
Exulta, vendo
Que, a largo passo,
132 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
De imenso espaço
O giro faz.
7
Ao sumo vértice
Dos céus se lança,
E não descansa
Té os girar:
Nada a seus raios
Se esconde, e rápido
Aquece, impávido,
A terra e o Mar.
8
Se me namora
Tanta beleza
Que à natureza
Deus emprestou;
Mais me transporta
A lei benina
Que a mão divina
Nos outorgou.
9
É justa e santa,
Converte o espírito,
E o peito aflito
Banha em prazer;
Seu testemunho
Fiel, constante,
Faz o ignorante
Rico em saber.
10
Os seus preceitos
Resplandecentes
Às cegas gentes
Autores brasileiros 133
Cercam de luz:
De Deus é santo
O temor terno,
Coroa eterno
A quem conduz.
11
É a verdade
Quem vivifica,
E justiça
De Deus a lei;
À vista dela,
O ouro brilhante
E o diamante
Desprezarei.
12
De mal excede
Favo dourado
Seu delicado
Doce sabor;
Eu o conheço,
Pois fiel servo
A lei observo
Do meu Senhor.
13
Que cópia ingente
De bens espera
A quem se esmera
Em a guardar!
Mas seus pecados
Quem há que entenda,
E a sua venda
Possa rasgar?
134 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
14
O Deus perdoa
Os que eu não vejo,
E que forcejo
Por ver, em vão:
Se dei motivo
A alheia culpa,
O Deus desculpa
Meu coração.
15
Se não me acurva
Tão grande peso,
Contente e ileso,
Puro serei;
E o meu horrendo
Fatal pecado,
Purificado
Enfim verei.
16
As minhas vozes,
Meus pensamentos,
A Ti atentos,
Te agradarão;
Que és meu escudo
E me resgatas
Das mãos ingratas
Do atroz Dragão.
Neste salmo, “Beatus vir qui non abiit”, é admirável a pintura do ho-
mem justo em contraposição à do ímpio que se lhe segue.
A comparação, por que termina a primeira por mim reproduzida —
“Ele é, qual tenro arbusto / Plantado à margem de um ribeiro ameno”
—, é do mais belo e poético efeito. A poesia de estilo que revela o talento
e o bom gosto do tradutor é do mais vivo colorido e nada deixa a desejar,
porque os tropos são os mais expressivos e todos os epítetos formam
imagens.
É igualmente bela a segunda tradução em versos octossílabos,70 na
qual a mesma comparação sobressai por um modo eminentemente gra-
cioso:
70
Pelo sistema de contagem das sílabas métricas progressivamente adotado em língua
portuguesa ao longo do século XIX a partir da chamada reforma de Castilho (consubstan
ciada no Tratado de metrificação portuguesa, obra do poeta português Antônio Feliciano
de Castilho, publicada em 1851), os versos da tradução citada possuem sete sílabas (são
heptassílabos, portanto), não constituindo assim octossílabos. Desse modo, observa-se
que Sotero, em meados da década de 1860, quando proferia suas palestras e ia publicando
os volumes do Curso, ainda não seguia o critério preconizado por Castilho e atualmente
observado, segundo o qual não se contam as sílabas átonas posteriores à última tônica dos
versos. O fato é mais um indício do conservadorismo do autor.
136 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Um Deus imenso
Os ecos ressoam,
E a glória entoam
Do Criador:
No firmamento,
Astros brilhantes
Cantam constantes
O seu Senhor.
O claro dia,
Que foge, o conta
À que desponta
Seguinte luz:
Por entre as trevas
Da noite escura
A face pura
De Deus traluz.
LIÇÃO LXXVI
composição alguma poética nas línguas vulgares que exceda, nem talvez
possa entrar em paralelo com esta produção, verdadeiramente original, de
um gênio extraordinário, tanto na sua força como na sua vastidão.
Passarei agora a ler-vos a ode sobredita, para que dela possais fazer
ajustada ideia. Ei-la:
Ó cantor portentoso
Das grandezas do Nume soberano!
Se aterraste o gigante pavoroso,
Se o destronaste ufano,
Imagem és do vencedor da morte;
Mas, não é, como o seu, teu braço forte.
O mar encapelado,
O sustém sobre as ondas, que se espantam,
E adora humilde os pés do Ser amado
Que os céus, e a terra cantam:
Judá retumba a voz sublime e forte,
Que Lázaro arrancou das mãos da morte.
Ao clarão luminoso
De inspirados profetas, que cantaram
Os fatos, que contemplo fervorosa,
As dúvidas se aclaram
Ah! rende, ó Musa, o teu inquieto espírito,
E de alegria banha o peito af lito.
LIÇÃO LXXVII
Esta ode, onde brilha um estro superior ao que se distingue nas mais belas
composições deste gênero escritas na língua portuguesa, e talvez mesmo
que em todas as línguas vivas, foi composta no ano de 1784, tendo o autor
apenas 21 anos de idade, por ocasião de uma disputa que, em conversação
amigável, casualmente se levantou entre mim e ele, acerca das vantagens da
vida social. A leitura do célebre discurso de João Jacques Rousseau, sobre a
origem da desigualdade entre os homens, foi a ocasião que motivou a nossa
pequena controvérsia.
Da majestosa Juno,
Que junto colocara
Ao implacável, fero Deus Netuno:
Lança mão do cinzel; ergue o martelo
Repoli-los intenta,
E o extremo ideal tocar do belo.
Mas o cinzel da mão se lhe extravia;
Frouxo o martelo assenta,
E na vivaz ardente fantasia,
Só Galateia com prazer revia
Aceso, arrebatado
De insólito furor, quebra, esmigalha
O mármore inculpado
Dos bustos, que polia:
Arremessa por terra, e à toa espalha
O martelo, e o cinzel, com que trabalha.
Volve os olhos, repara
De Galateia amada
Na formosura rara,
E ferido de Amor, curva tremendo
Os joelhos, e já não lhe cabendo
Dentro d’alma encantada
O transporte que o agita, ardido brada:
Criar o sentimento
De mil novos prazeres:
Eis, ó Deuses! Sem dúvida a ambrosia,
O divinal sustento,
A suave celeste melodia,
Que embebe de alegria,
E torna glorioso o Firmamento!”
Prazeres fervorosos,
Suspiros incendidos,
Transportes ansiosos,
Mil ais interrompidos,
Afagos e deleites, como em bando,
Pela voluptuosa
Cintura, mais que airosa
Qual a hera se enrolam, misturando
As engraçadas frentes;
E de mimos ardentes,
De delícias minha alma repassando.
Que linguagem tão nova, tão ardente, e ao mesmo tempo tão natural
em quem abria os olhos à luz só por milagre de amor! Não era de certo
possível pôr na boca da feliz e admirada Galateia expressões mais apro-
priadas para exprimir o seu amor ao apaixonado artista, a quem devia
todo o seu ser: “Este mármore que toco, / Essa flor tão graciosa, / Nem
essa árvore frondosa, / Nada disso, nada é eu: / Mas ó tu, quem quer que
és, / Que todo o meu peito abalas, / Que tão doce de amor falas, / Ah!
Tu sim, tu inda és eu.” Que expressiva e divinal poesia! Quão superior
não é esta admirável ária final, em que o patético é levado ao supremo
grau, à tão fria da cantata de Garção: “Dido infelice / Assaz viveu / D’alta
Cartago / O muro ergueu / Agora nua / A sombra sua / Já de Caronte /
Na barca feia / A negra veia / Do Flegetonte / Cortando vai.” Quem ao
comparar uma com outra não dirá que a primeira serve merecidamente
de coroa a mais linda e animada poesia, e a segunda apenas de cauda a
uma peça tão primorosa e rica, da qual em tudo desdiz?
Com análise desta sublime poesia, verdadeiro primor de engenho e
arte, tenho concluído o exame das obras poéticas do padre Sousa Caldas,
que, brasileiro de nascimento, ainda floresceu durante o governo portu-
guês, e passarei a ocupar-me nos seguintes discursos com a nascente e
já brilhante literatura brasileira propriamente dita, fazendo ponto neste.
MANUEL ODORICO MENDES*
LIÇÃO LXXVIII
77
Manuel Beckman (1630-1685), dito também Bequimão; senhor de engenho, executado
por sua liderança do movimento nativista conhecido como Revolta de Beckman, que teve
lugar no Maranhão, de 1684-1685.
78
Movimento contra D. Pedro I, que resultou em sua abdicação, no dia 7 de abril de 1831,
164 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
túmulo de Virgílio, seu poeta querido, e nele depor uma coroa de flores
em testemunho de sua admiração por tão singular engenho. Em 1864
partiu para o Maranhão, fazendo viagem por Inglaterra, que desejava
visitar; e aí nos foi roubado por uma morte súbita na idade de 65 anos e
alguns meses, quando se dispunha a vir imprimir no Império a sua tra-
dução da Ilíada e da Odisseia, de Homero, que tinha concluído,81 e não
deve por certo ser menos rica que a da Eneida, de Virgílio.
O maior elogio que se pode fazer a um homem de bem, que recu-
sou um dos maiores cargos do Império, e que, tendo tantas ocasiões de
engrandecer-se, sempre desprezou as honras e a riqueza, para viver em
honrada mediania, acha-se consignado nas seguintes palavras de João
Francisco Lisboa na bela biografia que lhe compôs:
LIÇÃO LXXIX
Na verdade, “ut pictura poesis” (“como a pintura, assim a poesia”); máxima de Horácio
82
168 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
não era mister entesourar nos armazéns de memória, que apurado gos-
to e critério, que talento poético não convinha possuir, para chegar a
esse resultado por tantos desejado e de tão poucos conseguido?! E com
efeito Odorico Mendes, de quem Gonçalves Dias, juiz mui competente
na matéria, dizia que metrificava como um rei em poesia, era poeta que
possuía todas essas qualidades, por ser profundo no conhecimento da
literatura clássica antiga e moderna, bem como no das línguas que com
ela jogam, e excetuarmos as do norte da Europa, mais sabedor de nosso
pátrio idioma que nenhum poeta contemporâneo, nos dois países de
língua portuguesa, dotado de mui rico engenho poético, bem como de
longa paciência para polir os seus versos, e era por conseguinte o mais
próprio para dar-nos o belo transunto que nos deixou da Eneida, cuja
inimitável perfeição de estilo é não só obra do gênio, mas também de
longo estudo e paciência, como referem os biógrafos de Virgílio.
Assim como o poeta latino se ensaiou na composição das Bucólicas
e das Geórgicas, antes de compor a Eneida, assim também o tradutor
português, antes de empreender a versão desta, ensaiou-se na tradução
das tragédias de Voltaire, Mérope e Tancredo, que são duas obras mui
bem acabadas.
A tradução da Eneida que passo a analisar reúne às mais qualidades
que se requerem em uma obra destas a virtude de ser a mais concisa
de todas as de que há notícia, pois os versos portugueses em que é feita
igualam quase em número aos hexâmetros latinos, o que é um verdadei-
ro milagre de concisão, porque os segundos são, como se sabe, menores
que os primeiros. O Sr. Inocêncio Francisco da Silva, que se deu ao tra-
balho de contá-los, verificou que os 9901 hexâmetros latinos da Eneida
foram convertidos em 9944 portugueses na tradução sobredita, que tem
menos 1913 versos que a de Lima Leitão!!!
Para que possais fazer ajustada ideia de tão primorosa versão, passa-
rei a ler-vos uma certa passagem do I livro, e a bela e extensa passagem
do II, em que se descreve a destruição de Troia.86
Na primeira passagem que vos li, Senhores, é logo notável o princípio
pela suavidade dos versos:
86
Sendo esta tradução mui conhecida e manuseada nas aulas de latinidade,
dispenso-me, para não avolumar muito o livro, de reproduzir aqui as passagens
lidas. (Nota do autor.)
170 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
LIÇÃO LXXX
* V. 4 (1868), p. 309-387.
Autores brasileiros 175
para viver com decência e sustentar família, pois por último casara-se
com Dª Olímpia da Costa, de quem teve uma filha, que morreu em
tenra idade.
Encarregado pelo governo de estudar o estado da instrução pública
nas províncias, fez por este tempo uma excursão ao norte do Império.
Em 1854 foi enviado em comissão à Europa para estudar o estado da
instrução pública nos países mais adiantados, examinar os arquivos e
bibliotecas de Portugal e Espanha, e extrair deles cópias de documentos
relativo à história do Brasil.
Em 1860 fez parte da comissão científica que se enviou ao Cea-
rá, sendo encarregado dos trabalhos etnográficos e dos relatórios da
mesma.
Em 1862 partiu muito doente para a Europa, a ponto de o darem
como falecido na viagem e de ser a sua morte lamentada nos jornais
como fato averiguado. Apesar do seu mau estado de saúde, foi ali de
novo encarregado de extrair cópias dos arquivos portugueses. Agra-
vando-se porém de novo os seus padecimentos, regressou de França no
brigue Ville de Boulogne, que naufragou nas costas de Guimarães, na
madrugada do dia 3 de novembro de 1864, e, vindo quase moribundo,
pereceu no naufrágio, tendo seu corpo por sepultura o oceano, mas já
nas águas da pátria.
Assim acabou, com pouco mais de 41 anos de idade, um dos mais
belos talentos que há produzido a Terra de Santa Cruz, sem que tivesse
a extrema satisfação de fechar os olhos na terra da pátria, para onde se
dirigia já exausto de forças, apenas animado por um débil sopro de vida,
e sem que o seu cadáver, que não pôde ser encontrado, apesar de todas
as diligências, tivesse sequer nela o último jazigo!
Quem diria que a falsa notícia, que se espalhou dois anos antes,
de haver perecido no mar, era como um fatal presságio da triste rea-
lidade?!...
Quanto não amava ele esta terra, que nunca deixou de visitar nas
diversas excursões que fazia; esta terra, objeto quase constante de seus
lindos versos e de todos os seus sonhos; esta terra, para onde vinha mo-
ribundo, a fim de ver nela pela última vez a luz e expirar, legando-lhe os
seus restos mortais! Não o podendo fazer sobre seu túmulo, reprodu-
zirei aqui, como eco de seu último desejo não cumprido, a bela canção
com que em país estrangeiro exprimira as saudades da pátria:
178 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
88
Não se tem por certo que tenha o poeta concluído a obra, da qual chegou a publicar apenas
os quatro primeiros cantos, em 1857. Mais provável que tenha simplesmente desistido de
arrematá-la, por não reconhecer-lhe qualidade. Consta que teria escrito 12 dos 16 cantos
planejados, e que a parte inédita do poema — canto quinto a décimo segundo — se teria
perdido no naufrágio que vitimou o autor.
180 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
LIÇÃO LXXXI
Antônio Pereira de Sousa Caldas, isto sem falar nos valiosos espécimes
que nos deu nos gêneros épicos e dramáticos, tão rico e vasto foi o enge-
nho com que o dotou a natureza!
Os Primeiros cantos do poeta, por que tenho de começar minha apre-
ciação, são poesias dos seus primeiros anos, feitas pela maior parte du-
rante o tempo que frequentou a Universidade de Coimbra, ou pouco
depois, mas que já atestam o seu singular talento, e sobre as quais se
exprime pela seguinte maneira o distinto literato A. Herculano:
O mar
A ideia de Deus
I
À voz de Jeová infinitos mundos
Se formaram do nada;
Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia,
E a noite foi criada.
II
Oh! Como é grande o Senhor Deus, que os mundos
Equilibra nos ares;
Que vai do abismo aos céus, que susta as iras
Do pélago fremente,
A cujo sopro a máquina estrelada
Vacila nos seus eixos,
A cujo aceno os querubins se movem
Humildes, respeitosos,
Cujo poder, que é sem igual, excede
A hipérbole arrojada!
Oh! Como é grande o Senhor Deus dos mundos,
O Senhor dos Prodígios.
III
Ele mandou que o sol fosse princípio,
E razão de existência,
Que fosse a luz dos homens — olho eterno
Da sua providência.
Nesta descrição do mar, uma das mais belas que tenho lido, o subli-
me do pensamento, que eleva o espírito a Deus, anda a par do sublime
da pintura, que subjuga os sentidos, porque tudo nela é grandioso, mag-
nífico, elevado, como seu objeto: “Ó Mar, o teu rugido é um eco incerto
/ Da criadora voz, de que surgiste. / Seja, disse; e tu foste, e contra as
rochas / As vagas compeliste.” Após o sublime desses quatro versos vem
o pitoresco dos quatro últimos, que fazem com os primeiros um belo
contraste: “ E à noite, quando o céu é puro e limpo, / Teu chão tinges de
azul, — tuas ondas correm / Por sobre estrelas mil; turvam-se os olhos /
Entre dois céus brilhantes.”
A segunda estrofe, sem falar na bela comparação de se que adorna,
não podia terminar de um modo mais apropriado e sublime, que pelo
seguinte magnífico conceito: “Férvida a Musa, co’os teus sons casada /
Glorifica o Senhor de sobre os astros / Co’a fronte além dos céus, além
das nuvens, / E co’os pés sobre ti.”
E com efeito, quem observa a vastidão do mar, que com seus inco-
mensuráveis abismos se apresenta a nossos olhos, ora agitado e terrível,
ora sereno e pacífico, e sempre sem limites visíveis, representando-nos
em certo modo a imagem do infinito, não pode deixar de conceber a
mais alta ideia do imenso poder de Deus, manifestado nesta e outras
admiráveis obras da criação; exprimi-lo porém em tão magníficos e ex-
pressivos versos, como os que ficam citados, só ao gênio é permitido,
porque só ele encontra expressões próprias para bem pintar tanta gran-
deza. Esta bela poesia, que vimos ainda em manuscrito com outras do
poeta, quando na Revista89 saudamos o seu singular talento, foi uma das
que mais nos impressionou, por sua elevação nunca desmedida, quer no
conceito, quer no estilo.
Do segundo hino, não menos belo, é logo notável o princípio:
89
Um dos periódicos fundados pelo autor, que circulou de 1840 a 1850 (cf. Leal, 1987
[1873], p. 76).
Autores brasileiros 189
LIÇÃO LXXXII
[...]
Nada mais sinistro e feroz que esse gesto de moiro com o furor pin-
tado nos olhos; nada mais apropriado que o terror do frade preso a tal
vista por força oculta, e sem poder mover-se do lugar em que se acha;
é o sublime da sanha em um, é o do medo em outro. Não há nas cinco
sextilhas citadas uma só que não concorra por diversas circunstâncias
para a beleza do quadro tão magistralmente traçado pelo poeta, mas são
sobretudo magníficas as duas últimas, que o rematam do modo o mais
surpreendedor:
LIÇÃO LXXXIII
não tem rival nas suas “Poesias americanas”, porque nenhum dos con-
temporâneos sobe em seus voos tão alto como ele, quer nos descreva o
imenso Gigante de Pedra, quer o trágico caso de I-Juca-Pirama.
Em linguagem pitoresca e poética nenhum poeta romântico é mais
rico do que este, que fez um estudo especial de sua língua a ponto de
nos poder dar as poesias as mais deleitáveis na antiga linguagem que
falavam nossos avós há mais de cinco séculos. Nas suas “Poesias ameri-
canas” deu foro de cidade a não pequeno número de termos indígenas,
fazendo-os sobressair por sua valentia ou suavidade no meio das mais
engenhosas ficções, das mais ricas imagens poéticas e dos mais harmo-
niosos versos. Para operar o prodígio de adotar tantos termos da língua
tupi sem quebra do primor poético, prodígio não menor que o outro
de reproduzir a velha linguagem do cancioneiro de D. Dinis no belo
romance de “Gulnare e Mustafá”, era mister ser não só um grande poeta,
mas um verdadeiro gênio em poesia, e Gonçalves Dias o era em toda a
plenitude da expressão.
Dos Últimos cantos escolherei para o objeto de minha análise o “Gi-
gante de Pedra”, soberba poesia do gênero das americanas pelo assunto,
e a “Menina e moça”, poesia de grande beleza no gosto romântico, as
quais passarei a ler-vos, para que façais ideia do extraordinário talento
do poeta em um e outro gênero, ou de como o seu riquíssimo engenho
se prestava admiravelmente a toda a sorte de concepções poéticas por
mais variadas e diversas que parecessem.
Ei-las:
O gigante de pedra
I
Gigante orgulhoso, de fero semblante
Num leito de pedra lá jaz a dormir!
Em duro granito repousa o gigante,
Que os raios somente puderam fundir.
II
Banha o sol os horizontes,
Trepa os castelos dos céus,
Aclara serras e fontes,
Vigia os domínios seus:
Já descai p’ra o ocidente,
E em globo de fogo ardente;
204 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
E no féretro de montes
Inconcusso, imóvel, fito,
Escurece os horizontes
O gigante de granito:
Com soberba indiferença
Sente extinta a antiga crença
Dos tamoios, dos pajés;
Nem vê que duras desgraças,
Que luta de novas raças
Se lhe atropelam aos pés!
III
E lá na montanha deitado dormindo
Campeia o gigante, — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, e os pés sobre o mar!...
IV
Viu primeiro os íncolas
Robustos, das florestas,
Batendo os arcos rígidos,
Traçando homéreas festas,
À luz dos fogos rútilos,
Aos sons do murmuré!
E em Guanabara esplêndida
As danças dos guerreiros,
206 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
E o gérmen da discórdia
Crescendo em duras brigas,
Ceifando os brios rústicos
Das tribos sempre amigas,
— Tamoi a raça antiga,
Feroz Tupinambá.
Lá vai a gente impróvida,
Nação vencida, imbele,
Buscando as matas ínvias,
Donde outra tribo a expele;
Jaz o pajé sem glória,
Sem glória a maracá.
E do sangrento pélago
Em míseras ruínas
Surgir galhardas, límpidas
As portuguesas quinas,
Murchos os lises cândidos
Do impróvido gaulês!
V
Mudaram-se os tempos e a face da terra,
Cidades alastram o antigo paul;
Mas ainda o gigante, que dorme na serra,
Se abraça ao imenso cruzeiro do sul,
Menina e moça
O que aqui descreve o poeta, o tem sido por milhares de poetas antes
dele, e o será por milhares de poetas depois dele; mas tão poéticas são
as imagens com que faz a pintura do dia e da noite, e tal é a suavidade
dos versos em que se exprime, que tudo é belo e nos parece novo, apesar
de velho. Descrever as cousas de todos observadas, e por muitos pinta-
das, por uma maneira tão nova como brilhante, é unicamente privilégio
do gênio, que ninguém desconhecerá jamais neste grande poeta, cujo
berço foi embalado pelas Musas que o guiaram ao Parnaso desde os
mais verdes anos. Desta admirável pintura são logo mui belos os quatro
primeiros versos de cada estância: “Banha o sol os horizontes, / Trepa
os castelos dos céus, / Aclara serras e fontes, / Vigia os domínios seus.”;
Autores brasileiros 211
94
Na métrica latina, baseada na quantidade, dáctilo era a unidade métrica constituída por
uma sílaba longa e duas breves. A métrica da língua portuguesa, contudo, é qualitativa, silábica
ou acentual, baseando-se na alternância de sílabas átonas e tônicas, de modo que o conceito
não se aplica ao verso português, salvo de modo bastante forçado. De resto, não atinamos com
a aplicação do conceito à descrição dos versos em causa, dadas suas cadências variadas.
212 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Nada me recordo de haver lido em poeta algum que seja tão delicioso
e puro, como esta lindíssima poesia, a que nenhuma outra se iguala no
seu gênero. É ela como uma música angelical, uma verdadeira essência
de poesia tão delicada e primorosa como a flor a que o poeta compara a
virgem em sua inocência, pureza e formosura, na mais viçosa quadra da
vida, quando tudo lhe sorri, a natureza e os homens. Versos tais podem
ser reputados como balsâmicas flores entre as produções do gênio que
se compraz às vezes em fazê-los.
Tendo apreciado as melhores poesias líricas do nosso poeta Gon-
çalves Dias, consagrarei ainda o seguinte discurso à apreciação do seu
incompleto poema Os Timbiras. Por hoje aqui faço ponto.
LIÇÃO LXXXIV
das selvas, sem que nelas figure o homem civilizado, como figura no
Caramuru, de frei J. de S. Rita Durão, e no Uraguai, de J. Basílio da Gama.
Sou de opinião que, para que os modernos poemas ou épicos ou dramá-
ticos, em que se descrevem os usos e costumes de nossos aborígenes, nos
interessem vivamente, é mister que neles figurem, a par do indígena, o
homem civilizado, seja para que a presença de algum herói conhecido
torne verossímil a existência de heróis de pura invenção, seja para que o
poeta, podendo apresentar o contraste da vida social com a selvática, gire
em uma esfera moral, religiosa, histórica e política mais vasta. Os tempos
de Homero, em que só existia a civilização nascente dos gregos e a dos
povos da Ásia Menor em que se compreendia o Egito, já lá vão há três
mil anos; hoje a civilização tem invadido em seu progresso as selvas, os
ermos os mais recônditos, e é por demais exigente em suas aspirações.
Contudo, não só não é possível formar ideia da contextura do todo
de um poema incompleto por quatro cantos somente, como também
muito haveria a esperar, se ele se completasse, do singular engenho do
poeta que modela a estatura de seus heróis e as cores com que os pinta
pelas dos magníficos quadros de Homero e de Ossian, e sabe, apesar de
tudo, interessar-nos por uma raça que vai desaparecendo, ou por cruza-
mentos ou por outras causas, e cujos usos e costumes tão nobre e poe-
ticamente descreve.
E com efeito, se havia poeta que pudesse escrever bem sobre tal assun-
to, era Gonçalves Dias, que, sobre ser dotado de superior talento, fez um
estudo especial da língua tupi, com cujos termos mais sonoros enriqueceu
o nosso dialeto poético, assim como dos usos e costumes dos aborígenes
do Brasil, que vão sendo todos os dias absorvidos por nossa civilização
crescente, e cujas poéticas tradições nos conservará nos seus belos versos.
De um tão acurado estudo na matéria dão testemunho tanto os quatro
cantos do seu poema como as suas “Poesias americanas”, de que já tratei.
Não podendo apresentar o argumento do poema incompleto, que
só apreciarei em algumas de suas partes, recorrerei, para dar-vos ideia
do assunto, aos próprios versos do poeta, que assim o resume em sua
introdução:
“Nessas trevas,
Replicava Itajuba, — inteira a noite,
Louco vaguei, corri d’encontro às rochas,
Meu corpo lacerei nos espinheiros,
Mordi sem tino a terra já cansado:
Soluçavam porém meus frouxos lábios
O nome dela tão querido, e o nome...
Aos vis Tupinambás nunca os eu veja,
Ou morra, antes de mim, meu nome e glória
Se os não hei de punir ao recordar-me
A aurora infausta que me trouxe aos olhos
O cadáver...” Parou, que a estreita gorja
Recusa aos cavos sons prestar acento.
Não menos natural e belo é o remate de uma tal cena, já pelo súbito
desaparecimento de Jurucei, já pelo receio do castigo do atentado que
mostra Gurupema, já porque nenhum dos presentes denuncia o autor
crime: “... E como raio em noite escura / Cegou, despareceu! De timo-
rato / Procura Gurupema o autor do crime / E autor lhe não descobre;
inquire... em balde! / Ninguém foi, ninguém sabe, e todos viram.” Toda
esta soberba pintura em suma é feita com mão de mestre pelo poeta, e
nada deixa a desejar em seus menores traços e toques.
Autores brasileiros 229
LIÇÃO LXXXV
* V. 5 (1873), p. 1-56.
Autores brasileiros 231
Cena 5a
Os mesmos (Ayxa e Boabdil) e Zoraima
Zoraima:
Senhor!...
Boabdil, asperamente:
Que viestes aqui fazer?
Zoraima:
Um recado que recebi de vossa parte...
Boabdil:
Mudei de vontade!
Autores brasileiros 233
Zoraima:
Retiro-me, Senhor (vai para sair):
Boabdil:
Zoraima!... (ela volta-se). Perdoai-me.
Zoraima:
O que, Senhor?
Boabdil:
Não era isso o que vos queria dizer! Não sei o que digo. Escutai-me: não é o
rei, é um amigo quem vós fala, respondei-me singelamente.
Zoraima:
Eu vos escuto.
Boabdil:
Depois que Alá e vosso pai me deram possuir-vos, jurei a mim mesmo em-
pregar todos os momentos da minha vida em cumprir os vossos desejos,
em fazer-vos se não feliz, ao menos tão afortunada quanto uma mulher o
pudesse desejar.
Zoraima:
Por que me dizeis isso, Senhor?
Boabdil:
Por que?!... Porque talvez não tenha feito quanto me tinha prometido,
quanto vós mesma poderíeis ter esperado de mim. Por isso vos pergunto:
tendes encontrado no meu palácio o agasalho que esperavas? Faltei jamais
com as atenções que devo ao lugar que junto a mim ocupais, com os desve-
los de um homem extremoso com a solicitude que merece o vosso amor?
Zoraima:
Sempre vos houvestes como um rei.
Zoraima:
Acaso me queixei eu?
Boadbil:
Não vos queixastes nunca: digo isto por dizer; sei que sois boa e generosa,
mas já vo-lo disse: não é o rei, é um amigo quem vos fala, respondei-lhe
francamente. Poderia alguma vez na nossa vida íntima, sem querer, sem
pensar, somente porque algum cuidado me preocupasse a fantasia, porque
algum pensamento me estivesse dilacerando o coração, ter-vos dito algu-
ma palavra... talvez o não saibais?!... Há palavras que se engasgam na alma
como a ferrugem na lâmina de uma espada: crescem, tomam corpo, avul-
tam com o tempo, não se apagam, não se esquecem nunca. Acaso vos disse
eu algumas destas palavras — poderia ser — lembrai-vos!
Zoraima:
Não: mas permiti...
Boabdil:
Ainda uma pergunta: tendes confiança no meu amor?
Zoraima:
Senhor!...
Boabdil:
Bem vejo, duvidais!...
Zoraima:
Nunca me deixastes dúvidar.
Autores brasileiros 235
Boabdil:
Bem. Assim que, Zoraima, se vos chegastes a persuadir de que vos era im-
possível a felicidade passando a vida a meu lado... Deixai-me concluir — se
sentísseis brotar, enraizar-se em vossa alma um sentimento irresistível por
alguém ou por alguma coisa, teríeis confiança em mim, não é verdade? Bem
sei que os afetos não se governam: não há contra eles vontade, nem esforços
que valham. Nós outros os muçulmanos muitas vezes nos desquitamos das
nossas esposas; o que outros fazem por mero capricho, por que eu não o
faria por amor? Sou bom, procuro ao menos ser bom para com todos, — e
a vós, Zoraima, ainda que muito me custasse, ainda que me fosse de grande
sacrifício, o que me pediríeis que eu houvesse de vos negar?
Zoraima:
Perdoai-me, Senhor, vejo que me tratais com a bondade que sempre usastes
para comigo, mas há nas vossas palavras alguma coisa que não compreen-
do. Se vos dignásseis de explicar-vos melhor!...
Boabdil:
Digo-vos que se assim vos houvestes portado, seria esse comportamento
de uma alma grande e generosa, que não sabe trair a confiança de ninguém
nem postergar os seus mais sagrados deveres!
Zoraima:
Rei, sou vossa escrava, por que insultais-me, quando tão facilmente me po-
deis fazer morrer?
Boabdil:
E ai de vós, Zoraima, ai de vós se vil e indignadamente zombastes da
minha credulidade. Ai de vós! porque eu mesmo com estas mãos, que só
me pesa de as não poder despedaçar, porque tantas vezes vos apertaram
contra o meu seio, convertido em ódio o amor grande que outrora senti
por vós aqui neste momento, com a primeira arma que no meu furor
encontrasse...
(Arranca o punhal).
Ayxa:
Lembra-te do meu juramento.
Boabdil:
Pobre Zoraima! Sabes de que eles te acusam? De mil coisas monstruosas,
nem eu mesmo sei dizer-te quais sejam! Defende-te! Dize que nada vistes,
que nada sabes, acreditarei o que disseres. Não, nada digas! Como podia
por tanto tempo viver tranquilo, se tu me fosses falsa? Como tanto prazer
sentia de achar-me a sós contigo, se me traías ? Nada digas: em tempos mais
felizes por ventura, que me agradecerás de haver eu sozinho acreditado na
tua inocência nesta dura provação por que passamos agora.
Ayxa:
O eunuco recebeu a grinalda. Muley Hassam os viu!
Boabdil:
Pois vós, Muley Hassan e Eunuco, todos!... (mudando de tom). Oh! minha
mãe, se soubésseis como eu vivia tranquilo antes que me viésseis despertar
do meu letargo! Se soubésseis como venturosos me corriam todos os ins-
tantes da vida! Não me viríeis roubar este alegre encanto da alma, em que
eu vivia tão ditoso e há tanto tempo! Embora fosse falsa, eu era feliz, que
me importava o resto?
Ayxa:
Rei fraco!
Boabdil:
Chamai-me antes cruel, Senhora: porque, se não me puderdes convencer a
ponto que eu não possa duvidar da minha desonra, lembrar-me-ei que sou
Autores brasileiros 237
rei para punir-vos, como vos esquecestes que éreis minha mãe para me fa-
zer sofrer tantos tormentos. Destes exemplos, e por motivos menos ponde-
rosos, estão cheias as nossas histórias. Fostes vós quem primeiro solicitastes
a nossa justiça — ainda bem que não tereis de queixar-vos se a torre que
minais com tanto custo desabar enfim sobre a vossa cabeça!
Cena 6a
Os mesmos e um pajem
O Pajem:
Muley Hassan!
Boadbil:
Que entre.
Ayxa:
Enfim!
(O Pajem sai.)
Boabdil:
Vou saber a verdade!
Zoraima:
Rei, fortes e poderosos são os meu inimigos e eu sou fraca e só...
Boabdil:
O meu amor te defende
Zoraima:
Embora! Quando eles na vossa presença levantarem a voz para me acu-
sarem, não serei eu quem lhes responda: não quero que diante de mim se
acovardem nem tomar-lhes o campo para as suas arguições.
Ayxa:
Ficai, rainha!
238 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Zoraima:
Vi-os muitas vezes fadigados armando laços a meus pés, dispondo-os cau-
telosamente para que neles me embaraçasse. Poderia frustrar as suas ma-
quinações, fazendo reverter sobre eles os danos de que me ameaçavam. Era
trabalho de mover o braço, ou quando muito de vos dizer uma palavra:
nada fiz. Que me prestava isso? Esta vida minha tão cansada que vos per-
tence, se a não defendeis vós, Senhor, deixai que também eu a não defenda.
Boabdil:
Travo de lágrimas sinto eu nas palavras que me falais: seja-me Alá testemu-
nha de quanto elas me pesam, melhor testemunha ainda de que te não hão
de afligir impunemente. (Zoraima sai).
ATO 5o
Sala do julgamento
Cena 1a
Boabdil, Muley Hassan
Boabdil:
Deste as tuas ordens?
Muley:
Estão dadas, Senhor.
Boabdil:
Os Zegris, os Gomeles já entraram?
Muley:
Estão no pátio dos leões.
Boabdil:
Armados?
Muley:
Estão prontos.
Autores brasileiros 239
Boabdil:
Crês tu que executem cegamente as tuas ordens?
Muley:
Senhor, bem sabem eles que a obediência é o seu primeiro, se não único
dever.
Boabdil:
E não se arrependerão de haverem nesta ocasião obedecido. (Momento de
silêncio.) Que disse ela?
Muley:
A rainha?
Boabdil:
Zoraima — o que disse ela?
Muley:
O mesmo que sempre disse.
Boabdil:
Teima então em asseverar acintemente que o seu cúmplice é esse infeliz
mancebo.
Muley:
Esse mesmo, Senhor, o filho de Mohamed-Abencerrage, morto, segundo é
voz na sua tribo, há já alguns anos.
Boabdil:
Imprudente! Até aos mortos atraiçoa!
Cena 2a
Os mesmos e Ayxa
Ayxa:
Perdoai-me se vos interrompo.
240 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Ayxa:
Senhor, será acaso verdade o boato que ouço na boca de todos?
Boabdil:
Que boato, Senhora?
Ayxa:
Que, havendo reunido os vossos guerreiros com a promessa de que vos íeis
pôr a sua frente para marchar contra os espanhóis, mandastes repentinamen-
te e sem motivo mais que um capricho inexplicável que se debandassem!
Boabdil:
É certo.
Ayxa:
E será também certo que na mesma ocasião convocastes os Abencerragens
para com eles vos aconselhardes sobre os negócios do estado?
Boabdil:
Acreditai-o: ninguém vo-lo proíbe!
Ayxa:
Rei, não serei eu quem vos acoroçoe a progredir na estrada onde a passos
desenvoltos ides caminhando para a vossa perdição. Não é esta ocasião de
se desperdiçar o tempo com palavras inúteis. O que premeditais fazer, Se-
nhor? Derribar o vosso apoio mais forte, cercear ao trono de Granada os
seu mais seguros defensores? E o motivo qual é? Por que pelo cego amor de
uma mulher, que vos foi traidora, tão irrefletido na escolha das pessoas em
quem vos confiais, como inconsiderado e injusta em punir todos os mem-
bro de uma família pelo crime de um só?...
Boabdil:
Basta: fostes vós quem, solícita pela minha honra, lançastes mão de tudo
para me convencer da minha vergonha; fostes vós quem, com os vossos
Autores brasileiros 241
Ayxa:
Queixar-me-ei, não porque perdeis o trono que é vosso, mas porque vai
com ele a santa religião de Mafoma, não porque abandonais os vossos vas-
salos à fúria castelhana, mas porque entregais manietados os crentes aos
incrédulos, porque destruís as esperanças deste império árabe, que se havia
de estender pelas Espanha e pelo mundo; porque sois o primeiro a cavar
os alicerces, onde bem cedo se há de erguer o estandarte de Cristo sobre o
turbante do profeta. Se só vos contenta a matança dos Abencerragens nada
vos será mais fácil, mandai abrir as portas de Granada, mostrai-lhe onde
estão os inimigos, e podereis depois subir a uma das mais elevadas torres de
Granada para ver como eles acabam às mãos dos infiéis: O sangue das suas
feridas vos não há de então enferrujar a coroa porque eles morrerão como
guerreiros no campo da batalha.
Boabdil:
Morrerão como traidores: não merecem outra morte.
Ayxa:
Um só homem poderá talvez pôr as mãos no peito à fortuna contrária que
nos ameaça. Rei, sabeis quem seja este homem? E um Abencerragem!
Boabdil:
Morrerá também.
Ayxa:
Longe da corte por muitos anos não pode ter parte no crime de que a sua
tribo acusais. Apareceu entre nós como um milagre da providência e foi
recebido com entusiasmo pelo povo que já tratava de resguardar os seus te-
souros, e as pessoas que tinham mais caras. Rei, confiai o mando dos vossos
exércitos ao Abencerragem Ibraim.
Boabdil, vivamente:
Ibraim! dizeis que se chama Ibraim?
242 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Ayxa:
É esse o seu nome.
Boabdil:
O filho de Mohamed, o Abencerragem?
Ayxa:
Esse é.
Boabdil:
E sabeis que está em Granada: não vos enganaram?
Ayxa:
Eu o vi!
Boabdil:
Oh! Mafoma, eu to agradeço! (Pausa.) Dizeis então?
Ayxa:
Que é o único homem capaz de vos salvar.
Boabdil:
Não trato disso: como foi recebido?
Ayxa:
O povo festeja-o como um amigo que volta de uma longa peregrinação,
querem-no por chefe, aclamam-no e levam-no em triunfo pelas ruas.
Boabdil:
Então vale muito com o povo?
Ayxa:
Muito, mais do que o podeis imaginar.
Boabdil:
Tendes razão: mandai-o chamar.
Autores brasileiros 243
Ayxa:
E haveis de perdoar-lhe, haveis de pô-lo à frente do vosso exército: não é
assim, meu filho? É isto de bom conselho, além de ser um ato de justiça.
Boabdil:
É o homem de quem mais careço nesta ocasião; fazei-o vir a minha pre-
sença já.
Ayxa:
Confio na vossa palavra.
Boabdil:
Nada prometo! (emendando-se.) Não vos posso dizer senão que o hei de
premiar segundo as suas obras.
Ayxa:
Ainda melhor.
Boabdil:
O tempo urge!
Ayxa:
Alá vos abençoe, meu filho.
Cena 4a
Boabdil (só):
Ibraim está vivo! E hei de perdoar-lhe! Hei de pô-lo à frente dos meus
exércitos para que vá combater os meus inimigos e volte depois carregado
de loiros afrontar-me com redobro de insolência! E eu de mãos atadas
para o galardão como para o castigo hei de agradecer-lhe a conservação
de uma coroa já tingida em tanto sangue. E com a fronte baixa. Hei de
ouvir a narração dos seus feitos, julgando-me vil na minha consciência!
Não! Pereça embora este trono malfadado, onde jamais me tem corrido
uma hora de ventura; pereça o meu nome e glória e acabe a minha gera-
ção comigo; mas não se dirá nunca que deixei vivo o miserável que me
injuriou cobardemente, nem que por amor de um prêmio vil, de uma
244 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
coroa mal sofrida, consenti em lhe ser agradecido! Hassan! Hassan! Não
houve, Hassan!
Muley:
Aqui me tendes, Senhor.
Boabdil:
Faz-se conduzir Zoraima para o pátio dos leões; já, quanto antes.
Muley:
Senhor, pois também ela?
Boabdil:
Quero que assista à execução.
Muley:
Meditai, Senhor...
Boabdil:
Não ouviste ainda? Quero-a no pátio dos leões.
Cena 5a
Os mesmos e um Abencerragem
Boabdil a Muley:
O mais saberás depois. (Muley sai.)
Abencerragem:
Senhor, perdoai-me se me demorei: os espanhóis começam a atacar-nos.
Boabdil:
És o primeiro que chegas: não tens que pedir desculpas.
Abencerragem:
Tanto pior, Senhor, que, se não empregardes toda a diligência, com mágoa
o digo, Granada cairá hoje mesmo em poder dos infiéis.
Autores brasileiros 245
Boabdil:
Já deliberei tudo.
Abencerragem:
E o que determinais?
Boabdil:
Podes entrar.
Abencerragem:
Pois quereis sempre reunir conselho?
Boabdil:
Entra. (O Abencerragem sai.)
Cena 6a
Boabdil, 2º Abencerragem
2º Abencerragem:
Começou o ataque da parte dos espanhóis; alguns dos nossos bastiões já
caíram em seu poder.
Boabdil:
Podes entrar. (O Abencerragem sai.)
Cena 7a
Boabdil, 3º Abencerragem
3º Abencerragem:
Senhor, Senhor, valei-nos!
Boabdil:
Entra. (Ouve-se um grito; o Abencerragem que sai para entrar recua.)
3º Abencerragem:
Não ouvistes?
246 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Boabdil:
O quê?
3º Abencerragem:
Um grito de arrepiar as carnes, um rouquejar de quem se debate entre as
vascas da morte.
Boabdil:
Vê o que é. (O 3º Abencerragem sai. Entram muitos outros: Boabdil com a
mão lhes indica a porta por onde devem entrar.)
Cena 8a
Boabdil e Aben-Hamet
Boabdil:
Tu, Aben-Hamet! Que vieste aqui fazer?
Aben-Hamet:
Senhor, não me quereis falar?
Boabdil:
Em verdade, és a pessoa que eu menos desejava ver neste lugar e neste mo-
mento.
Aben-Hamet:
Se a minha presença vos é agora importuna...
Boabdil:
Nunca! Nunca. Se te não desejava agora era só para que não fosses testemu-
nha de um espetáculo bem triste.
Aben-Hamet:
Para vós, Senhor?
Boabdil:
Para todos.
Autores brasileiros 247
Aben-Hamet:
E não poderei saber qual a causa que tanto vos aflige?
Boabdil:
Podes, sim; mas antes de tudo: quando outro dia rondavas os jardins do
serralho, não viste nenhum vulto desconhecido? Não descobriste nenhum
indício que pudesse confirmar as minhas suspeitas?
Aben-Hamet:
Por que essa pergunta, Senhor?
Boabdil:
Não duvido da tua diligência, não te crimino: és leal, és meu amigo. Mas
sabe: desde aquela noite adquiri a fatal certeza de que Zoraima...
Aben-Hamet:
Acabai!...
Boabdil:
Basta: bem me entendes.
Aben-Hamet:
E o que pretendes fazer?
Boabdil:
Vingar-me!
Aben-Hamet:
De quem? Conheceis acaso o criminoso?
Boabdil:
Pouco importa! Quando em uma casa se comete um grande delito, arra-
sam-se-lhe as paredes com o solo, e no lugar que ela deixou vazio planta-
-se cânhamo e linho para que de todo se apague a lembrança do atentado
cometido.
248 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Aben-Hamet:
E se o criminoso viesse oferecer a vossa vingança, pedindo-vos que vos
compadecêsseis daquela pobre e desgraçada criatura e que sobre ele somen-
te caísse todo o peso da vossa cólera?
Boabdil:
Não, nunca!
Aben-Hamet:
Ponderai, Senhor, quão grande é a fraqueza de uma mulher, quão facilmen-
te se pode deixar arrastar pelos protestos talvez lisonjeiros, talvez fingidos
de uma língua mentirosa. Facilmente seduzidas pela lisonja, mal podendo
resistir à paixão que se lhe revela entre lágrimas... a natureza as criou fracas,
mas são os homens que as fazem traidoras.
Boabdil:
Fraqueza de víbora que assassina mordendo! Mede o crime não pelo que é
em si, mas pela qualidade da pessoa ofendida, e verás depois se sou rigoroso
em demasia, ou se basta o sangue dos Abencerragems para lavar a nódoa
que a sua infâmia lançou sobre o meu nome!
Aben-Hamet:
Os Abencerragems!
Boabdil:
Morrerão todos.
Aben-Hamet:
E Alhamur! Alhamur! Também o condenastes?
Boabdil:
Já morreu!
Aben-Hamet:
Rei, pois que a tal ponto vos cega a paixão que sacrificais sem motivo a
flor dos vossos cavalheiros, pois que punis milhares de inocentes por um
só criminoso, sem atenção ao bem do vosso estado, à dedicação da vossa
Autores brasileiros 249
nobreza, que melhor acabaria num dia de batalha morrendo por amor do
vosso trono, pois que basta pertencer à mais nobre, à mais generosa, à mais
guerreira tribo do Granada para incorrer no vosso desagrado, para merecer
a morte por mão de um carrasco. Aqui me tendes: sou eu... (Emendando-
-se.) Sou também Abencerragem!
Boabdil:
Pesa-me de os não poder odiar sem exceção de um só!
Aben-Hamet:
Digo-vos que sou Abencerragem! A exceção que fazeis de mim quando
mandais trucidar os meus irmãos, os meus amigos, os meus companheiros
de armas é uma vergonha, um insulto; ponderai bem que é um insulto: eu
o rejeito. Mandai que vos tragam o cepo do padecente, o cutelo do algoz,
os aprestos desta horrível carnificina, mandai que me decepem a cabeça na
vossa presença e não cubrais de infâmia o homem de quem, ao menos o
dissestes, de quem já fostes amigo.
Boabdil:
Tardias são as tuas palavras, Aben-Hamet. A um deles não concederia eu
a vida nem pela tua amizade nem por todos os tesouros do Califa. Quanto
ao mais, ainda que eu agora o quisesse, movido pelos teus rogos, já não é
tempo de perdoar-lhe.
Aben-Hamet:
É sempre tempo para a clemência, Senhor.
Boabdil:
Não, já não é tempo. Vê tu mesmo. (Abre-se o reposteiro do fundo e vê-se
entre sombras os Zebrais e os Gomeles: Zoraima entre os soldados e os
cadáveres dos Abencerragems.)
Aben-Hamet:
Horror! Horror!
250 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Cena 9a
Os mesmos e Zoraima, lançando-se ao meio da cena
Zoraima:
Foge, Ibraim, foge. Não são homens os que vês, são feras carniceiras, que
respiram sôfregas o odor do sangue: a morte é para eles um banquete e as
agonias do passamento um concerto que os embriaga. Foge, eu te suplico:
foge, se ainda é tempo.
Boabdil:
Tu chamas-te Ibraim?
Aben-Hamet:
Ver-te assim entregue nas mãos dos teus algozes, e não ter forças, não ter
posses para te arrancar do abismo onde eu te precipitei com a minha im-
prudência! Oh! Zoraima, somente agora é que posso ler na sorte que te
espera quão grande foi o meu delito! Mas por grande e horrendo que seja,
basta, é de sobras este momento para apagar a sua lembrança na memória
do meu mais encarniçado inimigo!
Boabdil:
Tu és Ibraim?
Aben-Hamet:
Eu sou: se a mais tempo vo-lo não confessei não foi por disputar esta vida
que de bom grado vos cedo: mas já com ela a sorte de outra criatura!...
Boabdil:
Também és Abencerragem: agora o creio!
Aben-Hamet:
Rei, dai um só momento àquele que para todo o sempre vai comparecer
perante a justiça do eterno. Não vos peço mercê...
Boadbil:
Ibraim! Aben-Hamet! O nome do homem que me era mais caro, o nome
da criatura que mais aborrecia; um traidor, um amigo, e são ambos uma só
Autores brasileiros 251
criatura: era isto. E que outra coisa poderia ser senão um monstro para re-
sumir em si as mais violentas, as mais disparatadas afeições da minha alma?
Zoraima:
E eu sou que te denuncio! Quando julgava ter a ira de Deus acumulado
sobre a minha cabeça todas quantas misérias podem sobrevir a uma triste
criatura, por cúmulo de infortúnio sou eu quem te condena à morte! Sou
eu quem te mata! Eu, cuja única consolação nos meus derradeiros instantes
seria saber que ficava em vida guardando a memória daquele nosso amor
da infância, lembras-te? Oh! tão puro! E tão desgraçado também!
Aben-Hamet:
Anjo do céu! Bem vinda me seria a morte que eu recebesse das tuas mãos:
mas a folha da minha vida rompeu-se à primeira gota de sangue Abencer-
ragem, que por meu respeito se derramou! Nobre e desgraçados irmãos!
Como poderia eu viver depois deles e depois de ti, Zoraima? Morrerei, sim,
morrerei, sem queixar-me, e mil vezes bem dito seja Alá, que na sua bon-
dade me permite esta derradeira, esta grande consolação que não mereço:
a de morrer contigo!
Boadbil:
Oh! Quando o homem na vida passa por uma destas terríveis provações
que apraz a Alá mandar aos seu filhos miseráveis como um raio de mal-
dição implacável, descrê da sua justiça e da humanidade e consigo mes-
mo se envergonha de pertencer à indigna espécie que produz tão negros
frutos!
Cena 10a
Os mesmos e Ayxa
Ayxa:
Senhor, os espanhóis penetraram na cidade, já correm pelas ruas, incen-
diam as casas e os templos, os nossos soldados sem chefes; um punhado
apenas pelejam descoroçoados, disputando a subida de Vivarambla que
dá entrada para o castelo. (Boabdil conserva-se pensativo e silencioso.)
Por Deus, Senhor, que silêncio é este? Vosso trono se espedaça como uma
árvore tocada pelo raio; vossos soldados carecem de chefe; um último
252 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Boabdil:
Ibraim! Quem falou em Ibraim?
Ayxa:
Eu! (Ouvem-se descargas.)
Boadbil:
Que ruído é aquele?
Ayxa:
São os espanhóis que atacam o vosso palácio.
Boadbi:
Guardas, guardas! Zegris, Gomeles.
Ayxa:
Enfim, acordastes!
Cena 11ª
Os mesmos e guardas
Boabdil:
Segurai-o!
Ayxa:
A quem?
Aben-Hamet:
Rei, deixai-me primeiro correr ao encontro dos vossos inimigos; eu vo-lo
peço de joelhos: vencedor ou vencido fica minha vida ou o meu cadáver
para saciar a vossa vingança.
Ayxa:
Não sabeis que esse é Ibraim, Senhor, que loucura é a vossa?
Boabdil:
Pelo inferno: mata-o mata-o!
Zoraima:
Morreremos ambos, morreremos juntos; exalaremos juntos o último sus-
piro.
Aben-Hamet:
Vem, só a morte agora te poderá tirar daqui, onde deveras ter vivido sempre!
Boabdil:
Separai-os!
Zoraima:
Quem de vós se atreverá a tocar-me?
Boabdil:
Separai-os!...Covardes! Arranca-a dos braços de Aben-Hamet.
Boabdil:
Matai-o! Matai-o! (Cresce fora o tumulto.)
254 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Aben-Hamet:
Ai de ti, porque, despedaçando estas fracas prisões dos teus soldados, esta
barreira desprezível que opões à minha fúria!...
Zoraima:
Ibraim!
Boabdil:
Cala-te!
Zoraima:
Enquanto a minha voz te puder chegar aos ouvidos escuta-me: eu te amo!
Boabdil:
Cala-te!
Zoraima:
Eu te amo.
Boabdil:
Cala-te! (Sufocando-a.)
Zoraima:
Eu te amo!
Boabdil:
Cala-te! (Apunhala-o.)
Aben-Hamet:
Ah! (Cai apunhalado.) Perdoai-me, rei; tu, Zoraima, perdoa-me!
Boabdil:
Eu te odeio!
Zoraima, caindo:
Eu te perdôo!
(Cai o pano.)
Autores brasileiros 255
Bem. Assim que, Zoraima, se vos chegásseis a persuadir de que vos era
impossível a felicidade passando a vida a meu lado... Deixai-me concluir.
Se sentistes brotar, enraizar-se em vossa alma um sentimento irresistível
por alguém ou por alguma coisa, tereis confiança em mim, não é verda-
de? Bem sei que os afetos não se governam: não há contra eles vontade,
nem esforços que valham. Nós outros os muçulmanos muitas vezes nos
desquitamos de nossas esposas; o que outros fazem por mero capricho
por que não o faria eu por amor? Sou bom, procuro ao menos ser bom
para com todos, e a vós, Zoraima, ainda que muito me custasse, ainda
que me fosse de grande sacrifício, o que me pediríeis vós que houvesse
de vos negar?
Zoraima:
Perdoai-me. Senhor, vejo que me tratais com a bondade que sempre usastes
para comigo; mas há nas vossas palavras alguma coisa que não compreen-
do. Se vos dignásseis de explicar-vos melhor!...
Boabdil:
Digo-vos que, se assim vos houvestes portado, seria esse comportamento
de uma alma grande e generosa, que não sabe trair a confiança de ninguém
nem postergar os seu mais sagrados deveres.
256 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Zoraima:
Rei, sou vossa escrava, por que insultar-me, quando tão facilmente me po-
deis fazer morrer?
Boabdil:
E ai de vós, Zoraima, ai de vós, se vil e indignadamente zombastes de mi-
nha credulidade! Ai de vós! Porque eu mesmo com estas mãos, que só me
pesa de as não poder despedaçar porque tantas vezes vos apertaram con-
tra o meu seio, convertido em ódio o amor grande que outrora senti por
vós, aqui neste momento com a primeira arma que meu furor encontraste...
(Arranca o punhal.)
Ayxa:
Vem comigo, Ibraim!
Boabdil:
Ibraim! Quem falou em Ibraim?
Ayxa:
Eu! (Ouvem-se descargas.)
Boabdil:
Que ruído é aquele?
Ayxa:
São os espanhóis que invadem o vosso palácio!
Boabdil:
Guardas, guardas! Zegris, Gomeles!
Ayxa:
Enfim acordastes! (Acodem os guardas.)
Boabdil:
Segurai-o!
Ayxa:
A quem?
LIÇÃO LXXXVI
O que admira porém é que, tendo sido este trabalho tão completo lido
no Instituto em presença de S. M. Imperial, e seguramente com o aplau-
so que merece, o não mandasse o Instituto imprimir como importava à
propagação dos conhecimentos sobre nossas coisas, sendo que o duplo
interesse que inspira a quem deseja instruir-se compensaria em aprovei-
tamento científico toda e qualquer despesa que com isso se fizesse.
O Brasil e a Oceania é uma obra no gênero histórico, didático e filo-
sófico, que nada deixa sem solução e desempeno, nem na maneira por
que o autor encarou a questão e a elucidou, nem na linguagem em que
é escrita, que é português castiço e de lei, contra o que se observa em al-
gumas de nossas obras modernas, aliás não destituídas de mérito. É um
poderoso auxiliar para difusão das luzes, já sobre o estado da raça pri-
mitiva da América, quando começou a ser povoada pelos europeus, já
sobre o progresso da ciência em geral, porque, além da justa apreciação
dos fatos que contém, dá-nos a explicação de muitos termos indígenas,
sem cujo perfeito conhecimento não é possível saber bem nem a geo-
grafia, nem a história do país. Trabalhos tais são uma verdadeira riqueza
para a nossa literatura, que não possui outros da mesma natureza, nem
tão completos, nem tão bem escritos.
Constando a obra de um volume in-fólio e compreendendo duas
partes ou dois tomos, não cabe no tempo ler-vos dela mais que um capí-
tulo destacado. Assim passarei a ler-vos o capítulo 5º da primeira parte,
ou um dos menores, e por ele ajuizareis do mérito do autor como prosa-
dor da língua portuguesa.
Capítulo V
Tratando dos caracteres físicos genéricos dos Tupis, não nos ocuparemos
do que diz respeito à fisiologia geral do homem americano; não entraremos
numa discussão que seria sem dúvida interessante para a ciência, mas para
a qual não estamos preparados, e que de mais não se prende senão muito
remotamente ao nosso programa. Contentando-nos pois de descrever os
caracteres, não entraremos na explicação dos fatos: deixamos isso aos mes-
tres das ciências e àqueles que por seus estudos especiais e por observações
próprias puderem esclarecer a questão.
Acreditou-se por muito tempo que a cor da pele americana era uma e uni-
forme em todas as tribos de todas as partes da América, quaisquer que
Autores brasileiros 261
regime, senão o vegetal; negamos porém que desta ideia se deva logicamen-
te concluir que a um selvagem não era possível combater corpo a corpo
com um europeu. Não obstante não lhe serem favoráveis as experiências do
dinamômetro sobre a sua força muscular, alguns se tem visto laçar com a
mão leques de palmeiras, mergulhar por largo espaço, nadar dias inteiros e
cansar os mais infatigáveis andarilhos.
Neste trecho, com ser tão curto, e tomado quase ao acaso, conhece-se
nada obstante tanto a mestria do escritor habituado a manejar a pena,
como a ciência do profundo conhecedor da índole da língua. Não só
as palavras se acham colocadas com tal arte, mas ainda as proposições
dispostas em ordem tal que da colocação de uma e da disposição de
outras resulta a maior harmonia que se podia dar à frase para lisonjear
o ouvido, e fazer por este meio calar melhor o sentido em nosso espí-
rito. Os dois primeiros períodos sobretudo são admiráveis no efeito de
sua estrutura harmônica e expressiva. Pela disposição na ordem inversa
das proposições que o comportam e colocação das palavras em lugar
próprio, denuncia-se logo o escritor versado na leitura dos clássicos e
iniciado nos segredos da composição numerosa. A prosa tem o seu nú-
mero, assim como a poesia tem o seu metro.
Basta deslocar algumas dessas palavras ou colocar na ordem direta
alguma das proposições que se acham na inversa para que desapareça
logo todo o efeito harmônico da frase. Façamos a experiência com a
primeira proposição, colocando-a na ordem direta: “Os indígenas pri-
mavam em todos estes e nos demais exercícios corporais.” A graça desa-
parece toda com o número que lhe soube dar o autor e fica unicamente
prosa insossa. O número é a primeira qualidade pela qual se distingue o
bom do mau prosador.
Assim, se os versos não atestassem o profundo estudo que Gonçalves
Dias tinha feito da língua portuguesa, bastaria a sua prosa, evidente-
mente superior à da maior parte dos escritores contemporâneos, seja no
número da frase, seja na pureza da dicção, para demonstrá-lo a todas
as luzes. É pois o grande poeta, autor dos primeiros, segundos e últi-
mos cantos, um prosador também mui distinto, como atestam os seus
dramas, em prosa, e sobretudo esta sua obra com que hoje me ocupo,
trabalho de mais vulto e digno de figurar entre o que há de mais bem
escrito a tal respeito.
Autores brasileiros 269
Marquês de Maricá;
sua biografia; seu livro de Máximas.
LIÇÃO LXXXVII
* V. 5 (1873), p. 57-83.
Autores brasileiros 271
O marquês de Maricá (diz o Sr. Porto Alegre) era homem de estatura me-
diana, de modesta aparência, de uma fisionomia grave, e de um caráter
austero; a natureza e a sociedade haviam estampado no seu aspecto fisio-
nômico os traços característicos do pensador e do magistrado, do filósofo
e do diplomata, do tribuno e do burguês. Amava a conversação, a música
e a leitura; e era difícil acompanhá-lo todas as vezes que se entranhava nas
grandes abstrações filosóficas: a volubilidade de suas palavras, a agudeza de
seu espírito e o seu gênio um tanto sarcástico o tornavam extremamente
agradável. Era apaixonado pela poesia italiana e havia decorado os melho-
res pedaços do imortal Torquato.
LIÇÃO LXXXVIII
A máxima moral (diz o Sr. Porto Alegre), aquela que é filha da verdade
eterna, é um monumento que pede outro monumento em recompensa.
Entre as 3169 máximas que o nosso sócio honorário tirou à luz da im-
prensa, se encontram algumas cujos pensamentos estão elaborados por
276 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Este juízo é tanto mais autorizado e competente, por isso mesmo que,
a par das belezas, aponta os descuidos, declarando que entre as máximas
do autor se encontram algumas cujos pensamentos estão elaborados
por formas diferentes, e que só pedem um coordenador. E com efeito
não é para admirar que no avultadíssimo número de 3169 aparecessem
algumas repetições de pensamentos, se é que o autor não teve em vista
vestir algumas vezes o mesmo pensamento por forma diferente, como
parece mais natural e se inclina a crer o mencionado crítico, fazendo ver
a necessidade de um coordenador para tais pensamentos.
Passarei agora a ler-vos algumas máximas do precioso livro, para que
por elas possais formar juízo do mérito do autor como moralista e como
escritor.
Uns homens sobem por leves como os vapores e gases, outros como os pro-
jetis pela força do engenho e dos talentos.
Um século censura outro século, como em nossa vida uma idade condena
a outra idade.
Não podemos fitar os olhos no sol, nem o pensamento em Deus, sem que
fiquem deslumbrados.
Os arrufos entre amantes podem ser renovações de amor, mas entre os ami-
gos são deteriorações da amizade.
Ninguém é mais adulado que os tiranos: o medo faz mais lisonjeiros que o
amor.
É necessário que nos habilitemos, para ser felizes; a felicidade sensual exige
poucas habilitações; mas a moral, intelectual e religiosa reclamam um pro-
longado tirocínio de saber, experiência e virtudes.
Ninguém nos aconselha tão mal como o nosso amor próprio, nem tão bem
como a nossa consciência.
Com trabalho, inteligência e economia, só é pobre quem não quer ser rico.
Ninguém nos lisonjeia tanto como o nosso amor próprio, nem nos argúi
com mais perseverança do que a própria consciência.
Os bons exemplos dos pais são as melhores lições e a melhor herança para
os filhos.
Os bons presumem sempre bem dos outros: os maus, pelo contrário, sem-
pre mal: uns e outros dão o que tem.
Ciência é poder, força e riqueza: a nação mais inteligente e sábia será conse-
quentemente a mais rica, forte e poderosa.
Nada incomoda tanto aos homens maus como a luz, a consciência e a razão.
Que juízo não é necessário que tenhamos para conhecer toda a extensão da
nossa loucura!
Dentre as máximas que vos li, citar-vos-ei as seguintes, que mais im-
pressão fizeram no meu espírito, seja pelo conceito, seja pela forma que
o reveste, e julgo produziram no vosso o mesmo efeito:
Uns homens sobem por leves como os vapores e gazes, outros como os
projetis pela força do engenho e dos talentos.
Não podemos fitar os olhos no sol, nem o pensamento em Deus, sem que
fiquem deslumbrados.
LIÇÃO LXXXIX
102
Frei Francisco de São Carlos (1768-1829); poeta e orador sacro.
103
Frei Francisco de Santa Teresa de Jesus Sampaio (1778-1830).
104
Não foi possível elucidar a referência.
105
Januário da Cunha Barbosa (1780-1846); orador sacro, poeta, historiador e político.
Autores brasileiros 289
notáveis que assinalaram aquela época, poderá dizer com o velho Chactas,
no sublime episódio do Atalá, falando de sua viagem à França no reinado
de Luís XIV, que ele assistiu às festas da corte do Rio de Janeiro e as orações
fúnebres de frei Francisco de Sampaio.
LIÇÃO XC
O mestre de tantos mestres está acima dos elogios que poderíamos fazer à
sua obra; a impressão que ela produziu no espírito público já selou o seu mé-
rito; ninguém houve que não admirasse a frase castigada, o estilo correto, a
inspiração nunca amortecida, a ilustração sempre abundante, a propriedade
e brilhantismo das imagens, a argumentação enérgica do grande pregador
brasileiro; ninguém houve que não se deixasse prender à sua eloquência arre-
batadora, que às vezes inflama como o raio, às vezes suaviza como o orvalho
matutino, e acaba sempre por acender a esperança em nossa alma e entornar
a fé em nosso coração; ninguém houve finalmente que, ao ler as obras ora-
tórias de frei Francisco de Mont’Alverne, não conversasse ao mesmo tempo
com um Padre sábio, com um filósofo profundo e com um poeta inspirado.
Este juízo em nada desdiz do mérito real do autor, que possui todas
as qualidades que constituem o grande orador, como riqueza de enge-
nho, elevação nas ideias, vigor de raciocínio, facúndia natural, entusias-
mo nunca desmentido, propriedade de dicção, estilo fluente, imaginoso
e cheio de majestade. A sua eloquência é verdadeiramente arrebatadora,
Autores brasileiros 293
Não era preciso ir mais longe para revelar os mistérios tenebrosos desta
filosofia ímpia, que tinha achado o segredo de corromper o coração e o
espírito, para levantar uma barreira contra os progressos do Cristianismo.
Seria baldado todo o empenho das paixões para apagar a letra imortal gra-
vada em nosso rosto; a mão do homem não ousará jamais abalar a pedra
sobre que descansa a obra dos séculos; mas o gênio da revolta subtraiu à
Fé milhares de seus filhos, lisonjeando seus sentidos e opondo à rigidez da
moral o encanto, o atrativo e as seduções do prazer. Haec cogitaverunt, etc.
Esta árvore funesta, cujos frutos envenenados fizeram morrer a geração que
a viu nascer, reverdece a despeito dos esforços reiterados e vitoriosos da
Religião que a desgalhara, que a cortara mesmo. Novos filhos da orgulhosa
Babilônia reproduzem seus combates e ameaçam, depois de tantas derrotas,
quebrar as colunas que sustentam o edifício eterno. A besta de 10 pontas
se levanta sobre as ruínas da Revelação e da moral universal, e marcha à
testa de suas coortes para esmagar a Esposa de J. C. — Eu vou falar sem
figuras. Uma seita funesta, depois de sufocar todos os princípios da Reve-
lação, assoalha máximas subversivas da são doutrina. Rebelde às leis, que
contrariam seus desejos e envenenam sua alegria, corrompe uma mocida-
de ignorante e sem educação e forte em seu número, e ainda mais forte
em sua audácia; ameaça os restos da sociedade cristã; cobre de vilipêndio
os ministros da Religião; zomba de nossos mais alados mistérios; insulta a
294 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Pecadores, vós temereis à vista do abismo que vossas desordens cavam de-
baixo de vossos pés, fechando todos os caminhos da conversão! Ó Deus!
Os gritos da Religião oprimida e enxovalhada chegam ao vosso trono! Dai
à minha voz o ruído espantoso do trovão e penetrai os corações dos que me
ouvem do terror de vossos juízos.
[...]
seduziriam os povos e estenderiam um véu sobre seus olhos para não ve-
rem a verdade. Novos discípulos de Epicuro invectivam os ministros da
Religião, porque envenenam com os tristes pensamentos da vida futura
prazeres de que gozam nesta vida. Qui dicunt videntibus nolite videre. Ini-
migos irreconciliáveis da verdade, eles nos instigam para que atraiçoemos
o nosso ministério, ocultando a seus olhos os preceitos severos da moral
cristã e os castigos eternos que aguardam seus infratores. Loquimini nobis
placentia: videte nobis errores. Eles pretendem que roubemos de sua lem-
brança a ideia de um Deus vingador dos crimes do homem e que deixe-
mos de propugnar por os interesses da fé. Auferte a me viam, declinate a
me semitam. Pouco importa que sejamos cúmplices de suas prevaricações,
contanto que encantemos sua imaginação com os quatros risonhos de um
Deus indiferente para as ações do homem, cheio de condescendência com
as suas paixões e tão dissoluto como os Deuses do paganismo: Cesset a
facie nostra Sanctus Israel.
Uma liberdade desenfreada insulta nossas máximas as mais veneráveis;
nossos mais respeitáveis Mistérios são o objeto das conversações ordinárias
e o motivo das zombarias de moços libertinos, a quem as desordens de
sua vida aparta dos mais pequenos empregos. A incredulidade contamina
todos os estados; seus escritos sopram o contágio de todas as partes: os
pais abandonam a educação de seus filhos e dão o exemplo funesto de sua
indiferença para a Religião. A esposa persuade-se que seu gosto é a regra
de seus deveres; a virtude é desprezada, e o vício recebe as homenagens e a
consideração da virtude; a Fé enfraquece todos os dias; e no fim de alguns
anos veremos uma mocidade que nem conhecerá o primeiro Autor e Con-
servador de sua existência; perguntaremos a um menino que Religião pro-
fessa, e ele responderá que não sabe: a erva crescerá nas portas dos nossos
templos e os animais imundos virão pastar nos mesmos lugares em que os
Fiéis recebem hoje o pão da vida.
Quais poderão ser as causas que forcem o ímpio a abjurar sua crença antiga;
menos apreciar a religião em que foi educado; alterar as primeiras lições de
sua mocidade; e proscrever a convicção de todos os sábios do Universo? Es-
sas miseráveis compilações que formam todos os seus conhecimentos; esses
dicionários em que está impresso o cunho da má fé, da ignorância, serão
capazes de vos deixar indecisos sobre a verdade de uma religião, e de uma
religião tão bem fundada como o cristianismo; poderão contrariar tantas
provas, tantos exemplos e tantas autoridades; e desmentir uma tradição de
Autores brasileiros 297
medo e vos nutria das mais lisonjeiras esperanças? Sem dúvida que não: eu
ouso prevenir vossa resposta. Não é pois a obscuridade ou a sublimidade dos
mistérios da Religião que vos escandaliza; é a santidade, é a severidade de
sua moral que vos revolta: vós sois descontentes de suas provas, porque sois
espantados de seus dogmas: vós sois incrédulos, porque sois viciosos.
O transtorno da razão do pecador! É preciso que um Deus seja excluído do
número dos Seres, porque se existe um Deus, o pecador é desgraçado!... É
forçoso que a redenção do gênero humano, a encarnação do Verbo Divino,
sua Cruz, sua morte e sua ressurreição sejam fábulas porque, se tudo isto
é verdade, o pecador é um ingrato!...Convém que o Evangelho e suas má-
ximas, o jejum, a abstinência, a confissão e os outros Sacramentos sejam
partes da imaginação e da impostura, porque, sendo obra de um Deus e
deveres impostos ao homem, o pecador é um insensato, é um rebelde!...
É mister que o inferno e seus fogos sejam vãs puerilidades, porque, tendo
uma existência, serão a partilha do pecador!...
Triunfai, ímpios; cerrai vossos olhos à luz que não cessa de iluminar-vos,
zombai dos princípios mais sublimes da Fé, no meio das delícias da mesa,
entre os companheiros de vossas dissoluções; insultai a Divindade, quando
a saúde vos anima, e o sangue escaldado por o vinho borbulha e ferve nas
vossas veias. Eis aqui o Senhor, que bate com força à vossa porta de barro.
Chegou o fim, diz o Senhor por Ezequiel, o fim chegou, agora o fim está
sobre ti: Finis venit, renit finis, nunc finis super te. A justiça, que julgavas
adormecida, acordou contra ti: ela está à tua porta: Evigilavit adversum te:
ecce venit. Todos os horrores da eternidade te pareciam sonhos vãos: tu di-
zias que minhas ameaças se guardavam para muito tarde; eu agora te ferirei
de perto: amontoarei todos os teus delitos sobre a tua cabeça: e tu saberás
que eu sou o Senhor que te firo: Et imponam tibi omnia scelera tua, et scietis
quia ego sum Dominus percutiens.
Correi ao leito de suas dores; vede com que humildade protesta sua con-
vicção este Espírito forte, que nos círculos mais brilhantes menosprezava o
Deus de seus pais! Ministros do Senhor, não temais aparecer diante deste
frenético, que ainda ontem nos tratava com tanta ignomínia, e proclamava
que nós éramos inúteis e pesados à sociedade. Não é já o pretendido filó-
sofo, que nos chamava fanáticos e tinha jurado romper todas as relações
com as pessoas de nossa classe; é um homem convencido de suas iniqui-
dades, certo destas mesmas verdades, de que escarnecia na efervescência
das paixões. Vede como está carregado de relíquias dos Santos!... Ele, que
300 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Deus entorna seus benefícios com tanta profusão; quando não cessa de cha-
mar-vos por suas inspirações santas e as exortações de seus ministros, não
achais ainda o momento de vos subtrairdes aos vossos desvarios?
Vinde, Ó Deus, vinde mostrar a este povo ingrato os esmeros de vossa be-
neficência! Vinde acabar de confundi-lo com o espetáculo do vosso amor!
Vede, ó meus irmãos, o Reparador, que foi ferido por as iniquidade de seu
povo! E com que eloquência repreende vossa ingratidão e vossa insensibili-
dade! Como é sublime a linguagem que escapa das feridas, abertas por nos-
sos crimes, no corpo de Jesus Cristo! Quando ele mesmo caminha diante
de nós, enchendo com seus sofrimentos toda a letra da lei; quando ele nos
penhora a salvação, e a misericórdia nos transportes de sua ternura, ousa-
remos ainda opor obstáculos à nossa conversão? Ecce Homo! Eis aqui, nos
diz ele, eis aqui o Medianeiro, de quem tínheis necessidade para serdes re-
conciliados com Deus! Eis aqui o Salvador, que só podia curar vossas enfer-
midades e livrar-vos do castigo que tínheis merecido! Vinde a mim, ó meu
filhos, vinde esconder-vos nas minhas chagas; vinde banhar-vos no sangue
que se derrama do meu coração! Vossas forças não bastam para combater
as vossas paixões? Eu combaterei convosco, eu vos comunicarei a minha
força e triunfarei dos vossos inimigos. Cristãos, o tempo foge e desaparece;
não percais o momento de vos reconciliardes com o vosso Deus. E quem
ousará separar-vos mais dele? Quem sufoca em vosso peito a linguagem
do arrependimento? Por que tardais em implorar a misericórdia de nosso
Deus? Dizei com a mais viva contrição: “Meu Deus, meu Jesus, meu Salva-
dor, não merecemos tanto amor, não merecemos tantos sacrifícios: temos
insultado vosso nome, temos profanado vosso Sacramento. Somos réus de
vossa justiça: merecemos vossos f lagelos. Mas quem nos livrará de tantas
desgraças? Quem nos defenderá de vossa ira, quando se acender contra nós
o vosso furor? Deus de bondade, compadecei-vos de nossa miséria! Deus
de misericórdia, tende piedade de nossa desgraça. Pesa-nos, Senhor, de
tantas iniquidade: pesa-nos, ó Deus, de tanta ingratidão! Arrancai, Senhor,
este coração, que só serve para ofender-vos; dai-nos um coração que seja
digno de vós. Meu Pai, meu criador, meu redentor, vede nossas lágrimas;
ouvi os nosso gemidos. Perdoai-nos, Senhor, por vosso sangue, por vossas
chagas, e por vossa misericórdia.
Começa por ser exórdio do sermão que vos li uma peça magnífica
em tudo, pois nos dá logo testemunho da eloquência caudal, força de
Autores brasileiros 303
Vede que veemência nas apóstrofes, que viveza nas imagens, que ar-
rojo nas figuras, em que se nota a valente prosopopeia da Religião per-
sonalizada; e como é bela a apóstrofe última, que termina em súplica:
“Ó Deus!... Dai à minha voz o ruído espantoso do trovão e penetrai os
corações dos que me ouvem do terror de vossos juízos.” Não era de certo
possível terminar melhor este soberbo exórdio em que o orador por um
modo esperado chama a atenção para o elevado assunto de que pre-
tende tratar. Outro qualquer pediria a atenção do auditório em termos
obsequiosos; ele não, arrebata-a e prende-a pela força de sua eloquência
a que nada resiste.
Da pintura do ímpio à hora da morte reproduzirei o seguinte trecho:
Abandonado das criaturas, que lhe escapam; deste mundo, que desapare-
ce; dos homens, que lhe não podem valer; de Deus, a quem considera seu
inimigo; ele se revolve em sua af lição, atormenta-se, agita-se, para fugir
da morte, que lança mão dele, ou ao menos para fugir de si mesmo. Ele
articula palavras entrecortadas de gemidos, formadas por a desesperação,
e que apenas são entendidas; lança em torno de si vistas ferozes filhas do
medo e da raiva; suspira profundamente no meio das convulsões horríveis,
que anunciam a chegado do seu juiz. No meio desta luta seus olhos ficam
imóveis; suas feições se alteram; seu rosto se decompõe; sua boca lívida se
entreabre por si mesma; todo o seu corpo treme, e por este último esforço
sua alma desgraçada arranca-se da sua prisão de lodo, e cai entre as mãos
de um Deus terrível!... Ó Religião, eis aqui o teu triunfo e tua apologia a
mais completa.
304 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
meras, feitas pela natureza. Assim é que Camões se parece com Homero,
e Tasso com Camões.
Tendo apreciado o grande pregador brasileiro Mont’Alverne em suas
obras oratórias, passarei em outros discursos a avaliar o nosso ilustre
comprovinciano João Francisco Lisboa nas suas. Por hoje aqui faço ponto.
ANTÔNIO HENRIQUES LEAL*
LIÇÃO XCI
* V. 5 (1873), p. 115-127.
Autores brasileiros 307
literário. Compreende este trabalho 195 páginas das 203 que, com nú-
meros romanos, precedem o primeiro volume das obras do autor, e
constitui um livro de tamanho regular: é portanto um livro que tenho
de apreciar.
O Sr. Dr. Antônio Henriques Leal, comprovinciano igualmente nos-
so e literato distinto, já era conhecido entre nós pelos diversos jornais
políticos ou não que tem redigido com habilidade e critério insignes,
mas esta soberba estreia que fez de seu talento como autor o torna im-
preterivelmente conhecido não só dentro como fora do país, porque
trabalho tão bem desempenhado não pode deixar de adquirir-lhe nome
onde quer que se fale a língua portuguesa. E é de notar que não pres-
ta ele unicamente serviço às letras pátrias com o seu incontestável ta-
lento de escritor, mas também colecionando e revendo os escritos de
nossas principais celebridades literárias que o honraram com sua ami-
zade, como Gonçalves Dias e João Lisboa, muitos dos quais se teriam
irremissivelmente perdido sem a sua diligência e zelo em procurá-los e
coordená-los.
Não sou para comparar-me com tais escritores, mas de mim con-
fesso que lhe devo o obséquio de muitos esclarecimentos e livros no
desempenho deste meu curso de literatura, que ficaria incompleto, prin-
cipalmente no que respeita aos autores sobreditos, se não fosse o seu
auxílio em prestar-me não só os manuscritos dos mesmos, como ainda
copiosas notícias sobre sua vida. Assim, duplo é a nossos olhos o mérito
literário do Sr. Dr. Leal, já como autor, já como infatigável perscrutador
de preciosos escritos de outros.
Voltando porém ao seu trabalho biográfico, direi que é obra com to-
das as dimensões de história política e literária, uma completa aprecia-
ção filosófica e crítica, digna em tudo do talento que a empreendeu. A
forma elegante que lhe soube dar seu autor em nada desdiz do mérito
de invenção com que é tratado o assunto, como se vê logo deste começo:
A análise deste interessante escrito, que nada tem que invejar às me-
lhores biografias modernas, muitas das quais ao contrário lhe são de
certo inferiores em ajustada apreciação, ou crítica, ou filosófica, ou lite-
rária, há de ser necessariamente dupla; a primeira, com que me vou ocu-
par hoje, versará unicamente sobre o mérito intrínseco do escrito, como
é de razão; a segunda consistirá no resumo do mesmo para servir-me
de notícia biográfica, quando tiver de apreciar a João Francisco Lisboa,
pois seria em mim extrema vaidade, tendo à mão trabalho tão bem feito,
empreender outro inferior sob novas bases.
Passarei agora a ler-vos algumas passagens notáveis da biografia para
que por vós mesmos formeis ideia do mérito de seu autor, e vejais que
não exagero, quando vos afirmo que é subido.
III
que os separavam dos povoados. Entre esses potentados um havia que, so-
bressaindo aos mais em crimes, não andava, contudo, erradio e embrenha-
do, vivia antes na populosa e comercial cidade de Caxias, horrorizando e
maculando o berço do mavioso poeta dos Cantos e dos Timbiras, estimado
e protegido por um dos partidos políticos que o havia erigido ali em chefe.
Sua hedionda passagem sobre a terra foi marcada por um longo rastro de
sangue, que enche ainda de pavor os caxienses, tornando-lhe o nome, que
escuso aqui lembrar, conhecido por toda parte e celebrado nas rudes toadas
dos romeiros que navegam o Itapicuru.
Quando Feijó no seu patriotismo, que teve só igual nos tempos do heroís-
mo da antiga Roma, entendeu que devia resignar o poder nas mãos dos
adversários, veio com a mudança de política no Império o domínio dos
conservadores ou partido do regresso, como era então chamado, corres-
pondendo-lhe nesta província os cabanas. Pelo número e sucessivos triun-
fos eleitorais, campeava em Caxias o partido liberal, tendo na direção su-
prema, entre outros caracteres honestos, Raimundo Teixeira Mendes, que
gozava a justo título de preponderância e popularidade. Aos primeiros
sopros da reação concertou com os seus sequazes aquele façanhudo po-
tentado, a quem talvez o odre de Tomíris não bastasse para saciar a sede
de sangue, desfazer-se deste e de outros populares e poderosos adversários
para mais desafogada e facilmente poder firmar seu domínio de terror na
comarca.
Depois de ter, ao cair da noite de 25 de novembro de 1837, alvorotado e
alegre, discreteado em uma casa de bilhar com os amigos as boas novas que
recebera da capital, voltava o infeliz Teixeira Mendes para casa, inerme e
acompanhado apenas por um jovem, quando, ao passar pelo largo da Ma-
triz, foi às nove horas e meia acometido por dois assassinos, que o mataram
após desesperada e corajosa luta.
[...]
VI
livros, atentai em seus discursos, lede as cartas que escreveu com a franca
singeleza da amizade, que neles achareis patente e sem refolho a alma ge-
nerosa e de forte têmpera deste escritor brasileiro. Vede-me aquele ardor e
entusiasmo com que desde os anos juvenis se dedicou com a mais comple-
ta dedicação e desambiciosamente à causa política que abraçara e que lhe
resumia a pátria que foi o culto por toda a vida das suas adorações mais
puras, o estímulo de suas mais sérias lucubrações, o espírito que o excitara
nos verdores das crenças e esperanças, como o alentava ainda nos abor-
ridos e últimos dias da existência. E os sacrifícios da fazenda, da saúde, e
da vida mesmo, que não deixou de estar exposta ao ferro dos sicários nos
tempos mais atribulados e tempestuosos das lutas políticas, como os ele
aceitou com varonil intrepidez, e, mais ainda do que os sacrifícios, a ingra-
tidão com que pagaram os próprios correligionários, no dia do triunfo!
Vede-me também aquela nobre e rara ação de resignar o cargo, embora
o acobertasse da miséria, só porque a delicadeza do sentimento e o dever
lhe impunham não continuasse a exercê-lo. Não menos para admirar é o
desinteresse, o denodo e a isenção com que sempre falou da tribuna, esti-
mando mais quebrar relações e alienar simpatias do que cortejar vícios e
preconceitos com remordimentos da consciência e esquecimento do seu
mandato; e que gladiador houve aí mais ardido e experimentado nas lutas
temerosas e travadas do jornalismo, quando acinte e sem descanso o asses-
tavam com repetidos e alentados golpes adversários, nem todos generosos,
e muitos ferozes e audaciosos? Vede-me o advogado consciencioso, que
nunca mercadejou os dotes com que Deus fora tão pródigo para com ele, e
que bem de vezes ergueu a voz eloquente em prol do infortúnio persegui-
do que só tinha para remunerá-lo do trabalho as lágrimas da gratidão. Mas
para que ir mais longe quando nestes quatro volumes de suas obras podeis
de ânimo forro apreciar por vós o historiador imparcial, o filósofo de vistas
largas e profundas, o publicista de subidos quilates, o moralista severo, que
para aí derramou de grado e com franqueza os seus pensamentos e ideias,
elevando-se no conceito de cidadão e escritor que tinha por farol a pátria,
por divisa a verdade, por fim moralizar seus conterrâneos, instruindo-os
e admoestando-os como lição, e apregoando e exalçando as grandes vir-
tudes e altos feitos como exemplo a seguir. É belo ver como implacável e
irritado fulmina o crime com os raios do seu estilo e esmaga o vício com
o sarcasmo eloquente da indignação, que exacerba as iras e provoca as
censuras do homem honesto.
Autores brasileiros 311
traçada com o mais rigoroso e animado pincel, sem que a verdade his-
tórica seja em coisa alguma prejudicada. O principal assassino é pintado
com cores tais que, sem que se profira seu nome, se torna logo conhe-
cido para quem tem notícia das coisas de Caxias naquele desgraçado
tempo: “Sua hedionda passagem sobre a terra foi marcada por um longo
rastro de sangue, que enche ainda de pavor os caxienses”; e mais abai-
xo: “aquele façanhudo potentado, a quem talvez o odre de Tomíris não
bastasse para saciar a sede de sangue.” As imagens e figuras empregadas
são as mais vivas e apropriadas, pois nada se podia dizer de mais de um
homem que havia feito derramar tanto sangue e era por seus crimes o
terror de uma comarca inteira.
O último parágrafo, que começa, “Depois de ter ao cair da noite”, é
um modelo de narração precisa e ao mesmo tempo animada pelo con-
traste de espírito que oferece a vítima com o seu lamentável fim, dis-
creteando pouco antes com os amigos, alvorotado e alegre, as boas novas
que recebera da capital. Nada em uma palavra falta à perfeição deste
lúgubre quadro, que se prende naturalmente à biografia pela parte ativa
que tomou na reprovação do delito e acusação do assassino o redator da
Crônica, ou João Francisco Lisboa.
Assim é que os homens de talento sabem ligar a história do país aos
grandes caracteres que descrevem, e nela figuraram por qualquer ma-
neira; porque neste caso o interesse torna-se duplo para o leitor. A cir-
cunstância da ser João Francisco Lisboa chefe de um partido e redigir
uma folha em sentido liberal serviu de elo de cadeia a seu habilíssimo
biógrafo para reproduzir em quadro fiel e resumido a história política
de então. Um escritor menos amestrado ter-se-ia limitado a narrar a
parte ativa que o redator da Crônica tomou na reprovação do assassinato
e acusação do assassino, sem descrever o estado do país naquela época,
e daria a seu quadro um interesse puramente individual, ao passo que o
Sr. Dr. Leal soube, pela ligação sobredita, dar ao seu um interesse todo
coletivo, sem todavia deixar de pôr em relevo o grandioso vulto que
pinta.
Só reproduzirei da segunda passagem em que se descreve a nobreza
de caráter de João Francisco Lisboa o trecho seguinte por que começa:
escrito, por qualquer lado que se encare, é tal em minha opinião que
eleva seu autor não à categoria de simples biógrafo, mas à de um histo-
riador profundo e eloquente, sobre conhecedor das belezas de estilo e
dos recursos da língua. Por ele adquiriu certamente o Sr. Dr. Henriques
Leal um lugar distinto na república das letras, estreando a carreira de
autor por onde outros acabam a sua.
No seguinte discurso darei o resumo da biografia de João Francisco
Lisboa para servir de introdução à análise de suas obras.
JOÃO FRANCISCO LISBOA*
LIÇÃO XCII
* V. 5 (1873), p. 129-210.
316 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Entre todos esses vultos de talentos superiores que colocamos em lugar pró-
prio nesta espécie de galeria jornalística, o Sr. João Francisco Lisboa, que à
318 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Este juízo não deve ser taxado de parcial, porque a política fez infe-
lizmente o mestre e o discípulo adversários no jornalismo, sem que to-
davia deixassem de estimar-se quanto isso podia caber em antagonistas
tão pronunciados.
Foi João Francisco Lisboa por diversas vezes membro da assembleia
legislativa provincial, em cuja tribuna proferiu alguns discursos muito
eloquentes, que se perderam porque a assembleia não tinha taquígrafo
que tomasse os discursos de seus membros, correndo apenas impresso o
que proferiu na sessão de 1849 sobre a conveniência de se solicitar dos po-
deres do estado uma anistia para os revoltosos praieiros de Pernambuco.
Exerceu por três anos o lugar de secretário do governo da provín-
cia, para o qual foi nomeado a 9 de novembro de 1835 pelo presidente,
Antônio Pedro da Costa Ferreira — depois senador do Império e barão
do Pindaré —, e do qual pediu exoneração no tempo do sucessor deste,
porque a política do governo se achava em oposição com os princípios
que ele professava.
Até 1840 figura este homem extraordinário como jornalista eloquen-
te, órgão e chefe de um partido, mas, tendo-se por esse tempo retirado
da redação dos jornais e da cena política por haver sido a sua candi-
datura de deputado à assembleia geral legislativa rejeitada pelo mesmo
partido, cuja causa defendera com tanta habilidade e dedicação, deu-se
a novo gênero de estudos, e pôs banca de advogado, para poder sub-
sistir com sua família. O seu singular talento, que já vimos brilhar na
imprensa e na tribuna parlamentar da província, não brilhou menos na
tribuna forense; e tais foram os créditos que logo adquiriu nesta nova
carreira que obteve por ela não só decente subsistência, mas uma mó-
dica fortuna.
Assim este prodigioso engenho foi unicamente filho de suas obras,
tanto na cultura do espírito, como na aquisição dos bens da fortuna e
Autores brasileiros 319
LIÇÃO XCIII
Igrejas desta cidade onde, pelo tempo em que escreveu o autor, reuniam-se os partidos
106
políticos para tratar de questões eleitorais, e às vezes saíam em procissão a percorrer as ruas.
(Nota do autor.)
Autores brasileiros 323
altos gritos a significação daqueles desusado movimento. Foi então que Ti-
bério Graco lembrou-se de levar a mão à cabeça, buscando, por este sinal,
dar a conhecer aos que não podiam ouvi-lo o perigo que o ameaçava.
Denunciado imediatamente este gesto no senado como prova manifesta e
irrefragável de que Tibério aspirava à realeza, isto é, a pôr o diadema na
cabeça, os Padres conscritos, como cada um pode imaginar, fizeram uma
admirável explosão de patriotismo antimonárquico Deuses imortais! (ex-
clamavam voz em grita). Que crime abominável! Aspirar à realeza! Atentar
à majestade do povo romano! E sobressaía entre todos Cipião Nasica, a
quem a perda de uma imensa quantidade de terras tornara furioso contra
o tribuno,107 e que nesta ocasião, aludindo à oposição e tibieza do cônsul,
homem justo e moderado, ergueu-se e exclamou: “Pois que o primeiro ma-
gistrado atraiçoa a república, sigam-me todos aqueles que quiserem acudir
à liberdade e às leis em perigo!” Dito isto, guiou ao Capitólio, seguido de
uma imensa tropa armada de punhais e pesadas massas e bastões, sendo
que os veneráveis senadores, porque não foram prevenidos a tempo, viram-
-se obrigados a armar-se com os fragmentos de bancos e outros móveis da
cúria, que o tumultuoso arranco havia feito pedaços.
Desarmado pela maior parte e assoberbado pela fúria do inopinado aco-
metimento, o povo reunido no Capitólio, não lhes pode suster o ímpeto e
disparando em confusa e desordenada fuga, uns se precipitavam sobre os
outros, embaraçando-se reciprocamente Os agressores, caceteando a um
e outro lado, com galhardia sem igual e como quem não encontrava resis-
tência, mataram cerca de 300; e o próprio Tibério Graco, arrastado na fuga,
resvalou, caiu e foi imediatamente morto. O primeiro que o feriu foi Públio
Satureio, um de seus colegas, dando-lhe com uma perna de banco na cabe-
ça; seguiu-lhe Lúcio Rufo e outros que o acabaram, vangloriando-se sempre
daí por diante desta imortal proeza. Os cadáveres de Tibério e das demais
vítimas, depois de mil ultrajes, foram arrastados e lançados no Tibre, recu-
sados pela crueldade dos vencedores à piedade dos parentes e amigos que
os solicitaram em vão para render-lhes as honras fúnebres.
Ignoro se a cidade iluminou-se depois desta esplêndida vitória, que aliás
foi festejada com o suplício e desterro de muitos dos cúmplices do odioso
conspirador popular. Tudo isso entretanto encontra a sua natural explicação
107
Por causa das famosas leis sobre terras, propostas por Tibério Graco, conhecidas pelo
nome de leis agrárias. (Nota do autor.)
324 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
Surpresos e enleados os que ficavam à larga distância pelo que viam fazer,
pois não tinham ouvido o aviso, pediam em altos gritos a significação da-
quele desusado movimento. Foi então que Tibério Graco lembrou-se de
levar a mão à cabeça, buscando, por este sinal, dar a conhecer aos que não
podiam ouvi-lo o perigo que o ameaçava.
Denunciado imediatamente este gesto no senado como prova manifesta e
irrefragável de que Tibério aspirava à realeza, isto é, a pôr o diadema na
cabeça, os Padres conscritos, como cada um pode imaginar, fizeram uma
admirável explosão de patriotismo antimonárquico. “Deuses imortais! (ex-
clamavam voz em grita). Que crime abominável! Aspirar à realeza! Atentar
à majestade do povo romano!” E sobressaía entre todos Cipião Nasica, a
326 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
a seus inimigos para dizerem que ele pedira a coroa ao povo; como
é soberanamente pintada a explosão de fingido patriotismo dos Pa-
dres conscritos que prorromperam, voz em grita, nestas exclamações:
“Deuses imortais! Que crime abominável! Aspirar à realeza! Atentar
à majestade do povo romano!”; e como termina bem este trecho pela
pintura do ridículo furor dos senadores, armando-se com os fragmen-
tos de bancos e outros móveis da cúria, que o tumultuoso arranco ha-
via feito pedaços.
Notai agora a mestria com que é magistralmente descrita a final ca-
tástrofe. Começa o autor por pintar o efeito que produziu o inopinado
acometimento no povo reunido no Capitólio, o qual, pela maior parte
desarmado, não pôde suster o ímpeto dos que vinham armados, e, dis-
parando em confusa e desordenada fuga, uns se precipitaram sobre os
outros, embaraçando-se reciprocamente; descreve depois o estrago que
fizeram os agressores em homens inermes, pondo em relevo a morte
de Tibério Graco, o qual, arrastado na fuga, resvalou, caiu e foi imedia-
tamente morto, sendo o primeiro a feri-lo na cabeça com uma perna
de banco Públio Satureio, seu colega no tribunado, seguindo-lhe Lú-
cio Rufo e outros que o acabaram; pinta por último a crueldade dos
vencedores que, depois de mil ultrajes, arrastaram e lançaram no Tibre
os cadáveres de Tibério e das demais vítimas, recusados à piedade dos
parentes e amigos que os solicitaram em vão para render-lhes as honras
fúnebres.
Nada em suma falta ao admirável quadro traçado nestes trechos,
nem quanto ao essencial da pintura, ou apanhamento das circunstân-
cias principais do fato, nem quanto aos ornatos da mesma, ou estilo
cheio de movimento, imagens e colorido apropriado.
Depois desses só reproduzirei mais o seguinte trecho que nos apre-
senta o autor debaixo de novo ponto de vista:
LIÇÃO XCIV
sendo sua formulação correta a seguinte: “... Cicero iam non hominis nomen sed eloquentiae
habetur”. Assim pode traduzir-se: “Cícero já não é um nome de homem, mas o da própria
eloquência.”
Autores brasileiros 329
Hoje em dia não se sabe ao certo o lugar onde foi assentado o aquartela-
mento português, pois que este nome de Guaxenduba perdeu-se de todo.
Da Jornada de Diogo de Campos colige-se apenas que ficava entre os rios
Mamuna e Muni, quatro léguas para lá da embocadura deste, fronteiro e
à vista da ilha de S. Luís em distância de uma duas léguas e meia. Não há
que fiar porém na indicação destas distâncias, porque eram seguramente
esmagas a olho, confundindo estes conquistadores a cada passo, em razão
da absoluta falta de conhecimentos dos lugares, qualquer estreito ou braço
de mar com rios, a ponto de pôr Diogo de Campos a embocadura do Ita-
pucuru (Tapucuru ou Maranhão lhe chama ele) junto e quase unida à do
Munim!
O coronel Lago diz na sua Estatística que, pelas combinações que fez, julga
que a enseada de Guaxenduba é a mesma que hoje se chama baía de Ana-
jatuba, quase norte-sul com a ponta de S. José, porque acha-se perto dali
uma ponta junto da qual corre o rio Tatuaba, onde apareceram vestígios de
um forte.
Qualquer que fosse, porém, a verdadeira posição do presídio, Diogo de
Campos o descreve como uma vasa de lama, com algumas pedras, e a par-
tes areia e todo espacejado ao mar mais de meia légua, que de maré vazia
ficava sem gota de água, e tão desabrigado que, refrescando a viração, não
havia maneira de chegar os navios à terra, nem desembarcar cousa algu-
ma. Era o sítio abundante de águas e sombreado de denso arvoredo; mas
o sargento-mor o critica como péssima posição militar, pois que, ficando
a barra a mais de quatro léguas, era facílimo com quaisquer embarcações
Autores brasileiros 331
cores e arreados de penas a seu modo, fazendo mil trejeitos e esgares medo-
nhos, e arrancando tão temerosa grita que parecia estar ali o inferno todo,
diz Diogo de Campos.
A armada francesa era em verdade formidável, se a compararmos com o ex-
tenuado e desprovido destacamento português, pois compunha-se de sete
navios de alto bordo e de 46 grandes canoas, com 400 soldados e para mais
de dois mil índios.
Berredo e outros dizem quatro mil; mas, além de que só falam no desem-
barque da metade desta força, sem explicar o destino da outra, Diogo de
Campos, que menciona só dois mil, acrescenta que as canoas maiores ti-
nham 75 palmos de comprido e eram guarnecidas com 25 remos por ban-
da, o que dá para as 46 que vieram justamente cousa de dous mil índios,
número sem dúvida muito mais provável.
O forte da Natividade ou de Santa Maria estava situado sobre uma pequena
eminência, arvoredo frondoso derredor, e a praia imensa na frente; mas de
lado lhe ficava a cavaleiro outra eminência mais elevada, que o descuido
ou imperícia do engenheiro deixou vaga e acessível ao inimigo. Junto a esta
corria um ribeiro, de onde o forte se provia de água.
Era tal a confiança dos franceses nas suas forças que só desembarcaram os
índios e 200 soldados, ficando a bordo das grandes embarcações outra igual
porção. A mesma força desembarcada se dividiu em duas; uma foi ocupar
a eminência que dominava o forte português, e com as varas e faxinas que
levava em breve conseguiu levantar ali uma cerca a modo de fortificação; e
outra ficou ocupando a praia, onde ergueu alguns redutos que por meio de
outra extensa cerca comunicavam com a colina.
Diogo de Campos, antes que estas obras se fizessem e logo no ato do de-
sembarque, veio com alguns arcabuzeiros apalpar o inimigo, mas, depois de
uma ligeira escaramuça, mortos dois franceses e um português, acolheu-se
ao forte, onde traçou rapidamente com o colega a ordenança que na defe-
sa deviam guardar. As suas forças eram minguadas e ainda assim comete-
ram o mesmo erro que o inimigo, dividindo-as. Jerônimo de Albuquerque
devia acometer a colina com cerca de 80 soldados e um número menor
de índios, e marchou primeiro rebuçado pelos matos. Diogo de Campos
devia acometer os redutos da praia com um punhado de homens quase
igual. O capitão Fragoso ficou no forte com uma pequena companhia de
reserva para acudir onde a urgência do caso o pedisse. No mesmo forte
ficaram também de guarnição uns 30 homens, os mais deles enfermos, e
338 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
que, por mais que visse ferida e peleja, por nenhum caso se movesse, antes
se fortificasse cada vez mais, entendendo achar ali um abrigo, se fosse mal
sucedido. Este ataque foi o mais perigoso e difícil; a guarnição se refizera
com a turbamulta dos fugitivos e, resguardada pela cerca, fuzilava os portu-
gueses que marchavam descobertos a meter-se na boca dos seus arcabuzes.
Não poucos deste caíram junto à fortificação, mortos ou feridos, e entre eles
um filho do capitão-mor, ferido, e Luís de Gaevara, sobrinho do sargento-
-mor, que, ainda depois de morto, tinha as mãos ambas seguras à cerca, em
posição de quem procurava vencê-la de salto. Nada porém foi cabal a suster
o ímpeto dos assaltantes, nem podia ser muito longa a resistência dos sitia-
dos já quebrantados pela rota lastimosa que haviam testemunhado. Os ín-
dios, que ali estavam em número maior de 600 homens, foram os primeiros
que afrouxaram e, retraindo-se à retaguarda, arrojaram-se com tal ímpeto
pela colina abaixo que arrebataram consigo os matos da cerca, semelhante
na violência e estrépito da fuga à queda ruidosa de uma torrente caudal. Os
franceses, a quem para cúmulo de infortúnio se acabou a pólvora, saíram
também em debandada pela mesma aberta.
Neste segundo ataque, em que os franceses fizeram honradamente o seu
dever até a última extremidade, estiveram os portugueses a sós, porque os
seus índios se haviam desmandado pelo campo e andavam encarniçados
em despir os cadáveres dos franceses e em quebrar os crânios aos índios
inimigos.
A jornada com todas as suas fases e acidentes durou desde as 10 horas da
manhã até quase ao cair da noite, em que todos se recolheram ao forte, sem
mais perseguir o inimigo que fugia pelo bosque, por lhe dar ponte de prata,
dizia Diogo de Campos. Este dia os dois velhos, sempre tão avessos em
tudo, se mostraram perfeitamente semelhantes, no valor como na fortuna.
A perda dos franceses foi imensa, pois deixaram nove dos seus em poder
do vencedor, e cento e 15 mortos no campo da batalha, entre os quais
se contavam, além do comandante em chefe Pizieux, muitos oficiais de
distinção que todos combateram até a morte, por mais que Diogo de
Campos lhes bradasse em francês que se rendessem. Apenas o senhor
de Pratz buscou a salvação na fuga, escapando a nado e com a espada na
boca. Entre os índios que pereceram, ficou o denominado Mingau, gran-
de inimigo dos portugueses, a quem por 14 vezes havia escapado desde
as guerras do Rio Grande e Ibiapaba. Se a estes mortos juntarmos os que
se afogaram no mar, e os que deviam de ir feridos, ver-se-á que o desastre
Autores brasileiros 341
navios de alto bordo e de 46 grandes canoas, com 400 soldados e para mais
de dois mil índios.
[...]
[...]
de lei, como se nota nas seguintes frases: Deram vista de uma imensa
multidão de embarcações que, cosidas com o mangue, se vinham em
grande silêncio aproximando do forte; mas de lado lhe ficava a ca-
valeiro outra eminência mais elevada; veio com alguns arcabuzeiros
apalpar o inimigo; Diogo de Campos foi o primeiro que feriu a batalha;
e logo após o capitão-mor que vendo a briga acesa desistiu do primeiro
intento de atacar a colina, e acudiu pressuroso onde o chamavam a
honra e o perigo. Escusado é dizer que os tropos que contribuem para
este belo estilo pitoresco são todos muito expressivos, porque tanto
têm de arrojados como de felizes.
Era pois João Francisco Lisboa um escritor que sabia tratar supe-
riormente qualquer assunto que se propunha, seja no que se refere à
invenção e distribuição, seja no que é propriamente elocução, em que
ombreia com os Freires, Sousas e Vieiras. Quem, ao ler esta e outras
passagens do Jornal de Timon, não dirá que está fazendo a leitura de um
autor clássico? Porém o que é ainda mais digno de louvor é que Lisboa
nos reproduz nos seus escritos a beleza de dicção dos clássicos, não os
defeitos de alguns deles; pois nem é declamador como Jacinto Freire,
nem cheio de antíteses e trocadilhos de palavras como Vieira. Por isso
não hesitarei em propor este escritor à nossa mocidade como verdadei-
ro modelo na arte de escrever.
Em outro discurso apreciarei o terceiro volume do Jornal de Timon:
por hoje aqui faço ponto.
LIÇÃO XCV
tiveram mão em si, e a turba guiou imediatamente ao seu destino, após dos
chefes, que, sem mais disputar, deixaram ao curso dos acontecimentos e ao
comprometimento que deles necessariamente resultaria o suprir o que havia
de incompleto na deliberação interrompida.
[...]
Era preciso completar e legalizar estas medidas, e a esse intento convocou-
-se imediatamente para a casa da câmara uma junta geral do clero, nobreza
e povo. O Bequimão inaugurou as deliberações com um discurso em que
referiu largamente as causas, a marcha e o êxito da revolução. Foi calorosa-
mente aplaudido e vitoriado. Depois votaram-se por aclamação a aprova-
ção das medidas já tomadas, a expulsão definitiva dos Padres, a abolição do
estanco, a deposição do governador ausente no Pará e a criação de um novo
governo, composto da câmara e de três adjuntos que se lhe nomearam, to-
dos eles postos sob a suprema inspeção de dois procuradores do povo. O
Bequimão foi o primeiro nomeado para um destes dois lugares, dando-se
por colega Eugênio Ribeiro Maranhão, e seu irmão Tomás ficou pertencen-
do ao número dos adjuntos.
Durante a sua ausência,112 os Padres, reclusos no colégio, mas frouxamente
vigiados, não se deixaram ficar ociosos; e, dando mais um exemplo daquela
tenaz perseverança, que era o característico da ordem, e com ajuda da qual
dominavam as situações que pareciam mais desesperadas, souberam tirar
partido daquilo mesmo que do primeiro lanço se afiguraria uma insuportá-
vel vexação a vistas menos perspicazes. Os grupos populares tinham de uso,
nas suas divagações quotidianas, invadir o pátio do colégio, a fim de verifi-
car se os Padres continuavam a bom recado, e os acolhiam com vozerias e
baldões, se alguns acaso se mostravam nas janelas ou corredores. Mas eles,
afrontando com aparente humildade aquele molesto tratamento, dirigiam-
-se ao povo, justificavam-se das arguições de que eram objeto e, inculcando
um desinteresse a toda prova, declaravam-se prontos a resignar toda a ju-
risdição temporal que se lhes contestava, uma vez que os deixassem exer-
cer em paz e liberdade o seu ofício de simples missionários e pregadores
evangélicos, única coisa a que aspiravam, segundo diziam. Procedendo por
este teor, calculavam habilmente que os sentimentos religiosos, arreigados
no povo, não deixariam por fim de produzir o seu costumado efeito; e bem
112
Bequimão tinha ido à vila de Tapuitapera em missão especial. (Nota do autor do trecho
citado.)
Autores brasileiros 349
que não fosse esta a primeira vez que com semelhante artifício procurassem
rebuçar tenções bem opostas, já a distinção começava a parecer razoável a
não poucos, e falava-se pela cidade em aceitar o compromisso proposto,
quando Bequimão, de volta da sua breve excursão, informado do que se
passava, atalhou prontamente as negociações, fazendo saber aos Padres que
o povo não podia recuar do começado sem desdouro da sua recente resolução,
cuja mudança seria sem dúvida atribuída a alguma indecorosa inconstância
do juízo.
Receoso ainda de novos manejos, cuidou de apressar a sua partida, e para
melhor assegurá-la marcou o dia dela por um bando e mandou intimar
aos Padres o seguinte protesto, misto singular de temor e de precaução dos
habitantes contra as suas astúcias costumadas, e do ódio implacável que
lhes consagravam enquanto homens dados e sujeitos a todas as fraquezas
e interesses profanos, não menos que de veneração profunda para com o
caráter sagrado de que se achavam revestidos.
[...]
[...]
113
Oficio de 15 de novembro de 1685, e consulta de 12 de fevereiro de 1686. (Nota do autor
do trecho citado.)
352 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
114
“Quando imprimir as Obras do Lisboa, escreveu-nos de Paris Odorico Mendes, não
se esqueça de pôr em nota o seguinte: ‘Gomes Freire de Andrade mandou injustamente
decapitar Manuel Beckman como inconfidente; e, passado século e meio, a 18 de outubro
de 1817, um descendente do governador e do mesmo nome, isto é, o general Gomes Freire
de Andrade, foi fuzilado na esplanada da torre de S. Julião, em Lisboa, como inconfidente,
e também injustamente.’ ” (Nota do autor do trecho citado.)
115
A coragem com que Manuel Bequimão recebeu a morte é atestada tanto pelo P. Betten
dorf, jesuíta expulso, e seu adversário, como por Teixeira de Morais, seu encarniçado
detrator. É o próprio Teixeira de Morais que, para ultrajá-lo, nos refere, sem as compre-
ender, as suas últimas palavras. Eis como ele se exprime: “O Bequimão recebeu a mor-
te catolicamente animoso, suposto se escandalizassem os entendidos e timoratos de ele
dizer do alto do patíbulo, pouco antes de precipitado, que morria satisfeito de dar pelo
povo do Maranhão a vida. Não faltaram muitos que sentiram a sua tragédia, uns de pios
e compassivos, os mais de ignorantes e interessados, os quais somente à conveniência
própria os demove de qualquer tirano lastimar-se.” Rel. Hist. P. 2ª e C. 13º. (Nota do autor
do trecho citado.)
Autores brasileiros 353
durante a vida, brilhou com mais vivo fulgor em face da morte; raro con-
junto de grandes qualidades que, acareando e subjugando o amor e o ódio
dos contemporâneos, imprimiu à revolução um caráter de honestidade e
moderação que faria a glória dos melhores tempos, e que mesmo então lhe
permitiu atravessar as suas fases mais perigosas tão pacificamente como
pode sê-lo uma comoção popular pura e extrema de quaisquer excessos, e
tão respeitadora da vida e da fazenda, como de todos os outros interesses
e direitos dos seus adversários. Mas o coração não pode deixar de contris-
tar-se quando vemos este homem notável dissipar em vão esforço todo
aquele tesouro de virtudes e altas faculdades, numa época de ignorância,
egoísmo e corrupção, que não era a sua, e abismar-se por fim numa em-
presa temerária e insensata, sem êxito provável, iníqua em alguns dos seus
fundamentos, e tão efêmera que da sua passagem nem deixaria vestígios,
se infelizmente não houvera servido a consolidar a mesma influência que
se propunha a destruir.
Mas, pois, na noite dos tempos, brilham tão raros os caracteres desta têm-
pera, condenando os erros e lastimando o extemporâneo e inútil do sacrifí-
cio, a história não deve recusar-lhes, quando acaso os encontra, a expressão
ardente das suas simpatias e o tributo de admiração e de piedade que sobre-
tudo lhes é devido, se um grande infortúnio vem no fim coroar e consagrar
um grande merecimento.
Lúgubre é, Senhores, o quadro que vos ponho diante dos olhos, mas
é justamente o desfecho do terrível drama historiado pelo autor, cujo
protagonista, o homem mais popular do Maranhão naqueles tempos
por sua coragem cívica, depois de haver figurado na cena como chefe do
maior movimento político que viu a colônia no século XVII, traído na
desgraça por um miserável que lhe devia tudo, terminou seus dias num
356 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
LIÇÃO XCVI
Fez mais ainda. Subindo ao púlpito para sustentar as suas ideias (instituição
das companhias com a inserção do fisco), os argumentos de que se serviu,
para desarmar o ódio da multidão, não podiam ser mais contraditórios com
as suas próprias doutrinas. A nossa terra, disse ele, afronta justamente com
o nome de cães os convencidos do crime contra a fé, a quem aborrece; e
daí vem que este remédio, não só aprovado, mas admirado das nações mais
Autores brasileiros 359
bens adquiridos à coroa pelas condenações, o que era coisa muito outra, e
não menos por haver ocultado o fim com que se fazia a remissão, qual era
a criação das armadas a bem da fé na recuperação de Pernambuco e mais
conquistas do poder dos hereges, circunstância que dava à mesma remissão
o caráter de um contrato oneroso, muito diverso da simples graça, e de que
já houvera exemplos nos reinados de D. Manuel e de D. João III.
O papa, como é sabido, não havia reconhecido a nova ordem de coisas em
Portugal, e por isso o breve vinha concebido em termos vagos, sem nem
sequer citar a data do decreto, ou nomear o rei, quer pelo seu nome, quer
pela sua dignidade real — destas reticências tomava ocasião o Padre para
declarar o breve nulo, segundo o direito, por falta de menção especificada
de cláusulas essenciais. El-rei fora tão pouco ouvido pelo papa — outra
causa de insanável nulidade, pela regra de direito natural de que ninguém
pode ser condenado sem ser previamente ouvido.
Ora, aos reis assiste incontestável direito de impedir a execução dos breves,
sem embargo da bula da ceia e outras, que o proíbem com penas e censu-
ras, uma vez que tais breves sejam contrários e prejudiciais ao temporal do
Estado e às regalias do poder real. A bula da ceia e outras iguais se deviam
entender em termos hábeis, e S. M. devia escrever ao papa para mostrar-lhe
as razões do impedimento posto, e a verdade inteira do decreto aleivosa-
mente denunciado.
Finalmente não se ignorava que o breve houvera sido alcançado em Roma
por negociação de Castela contra um decreto por nenhum modo contrário
aos cânones, à conservação da fé e exercício da Inquisição, que em nada
era impedido, pois podia ela proferir as suas sentenças, que seriam execu-
tadas, salvo a remissão estipulada, e compensada com os ônus impostos
aos condenados; logo, os que se lhe opunham e queriam executar o breve
procuravam a ruína da companhia, mostrando-se nisso pouco zelosos da
conservação do reino e pessoa de S. M., e parciais de Castela, tão interes-
sada por sua parte na ruína da companhia que promulgara graves penas
contra todos os seus súbitos que nela metessem cabedais.
A acusação de traição não podia ser mais clara, e ia direita à Inquisição.
Mais tarde veremos a maneira cruel por que ela replicou a tanta audácia e
imprudência.
Quanto à companhia, é sabida a sua triste história, que de resto não é para
este lugar. Pelo alvará de 6 de fevereiro de 1649, e estatutos de 8 de março
seguinte, D. João IV decretou a sua instituição com duração de 20 anos, e
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São passados mais de dois séculos depois destes graves debates em que cor-
reu tanto risco a integridade do futuro Império de Santa Cruz; os atores
que figuraram nessas cenas, os interesses e paixões que os moviam, tudo
desapareceu, e a justiça da história pode já agora proferir desassombrada
a sua sentença. Se nos é permitido ser o seu órgão, o nosso juízo não será
duvidoso um só instante: a razão estava toda da parte dos antagonistas do
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Seja como for, e qualquer que tenha sido a extensão dos seus benefícios nos
destinos de Portugal e do Brasil, durante a primeira fase da sua existência, o
366 Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira | Francisco Sotero dos Reis
que está demonstrado pelo testemunho irrefragável de todos os fatos que fi-
cam expostos é que o P. Antônio Vieira, um dos primeiros, se não o primei-
ro iniciador da ideia da sua criação, foi o seu principal fautor, nos conselhos
do monarca, nos púlpitos, nos escritos políticos e na correspondência pri-
vada, por toda parte e por todos os meios enfim, em que se lhe deparava
ocasião de defender uma causa, pela qual foi o único que veio a padecer os
trabalhos e afrontas que veremos, ao passo que os simples cooperados não
sofreram o mais leve incômodo, ou porque souberam retrair-se a tempo,
curvando-se ante as influências contrárias vitoriosas, ou porque renegaram
abertamente, convertendo-se em perseguidores, como o secretário de Es-
tado Pedro Vieira, depois bispo de Leiria, que não só referendou o decreto
de revogação, como, mais tarde, escreveu violentas consultas contra os des-
graçados cristãos novos.
São passados mais de dois séculos depois destes graves debates em que
correu tanto risco a integridade do futuro Império de Santa Cruz; os ato-
res que figuraram nessas cenas, os interesses e paixões que os moviam,
tudo desapareceu, e a justiça da história pode já agora proferir desassom-
brada a sua sentença. Se nos é permitido ser o seu órgão, o nosso juízo
não será duvidoso um só instante: a razão estava toda da parte dos an-
tagonistas do astuto jesuíta, se não em todos os pormenores, ao menos
no essencial da questão, que é o que importa. Nunca em verdade se vira
palinódia mais solene, nem a falsa política acumulou jamais tantas con-
tradições e incoerência, tantos sofismas e tantas máximas imorais para
desfigurar a verdade e justificar o erro e a iniquidade. Dir-se-ia que o
autor do parecer, como esses advogados resolvidos de antemão a susten-
tar indiferentemente o pró e o contra, fazia valer como podia todos os
argumentos, bons e maus, para sustentar a tese preferida, sem se lhe em-
baraçar absolutamente com a realidade dos fatos, a natureza das coisas
e a justiça da causa, sem hesitar um momento diante das contradições e
incoerências mais f lagrantes.
São passados mais de dois séculos depois destes graves debates em que cor-
reu tanto risco a integridade do futuro Império de Santa Cruz; os atores
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