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Revista Redbioética/UNESCO, Año 5, 2 (10): 27-37, julio - diciembre 2014

ISSN 2077-9445
Caponi, S. - Viver e deixar morrer...

Viver e deixar morrer


Biopolítica, risco e gestão das desigualdades
Live and Let Die
Biopolitics, risk management and inequalities

Sandra Caponi*

Resumo
Tomando como ponto de partida os cursos ministrados por Michel Foucault no College de France entre os anos
1976 e 1979, o artigo propõe-se a explicitar a utilidade do conceito de Biopolítica para compreender os mecanis-
mos e as estratégias discursivas sobre as quais se sustentam os processos de governo e gestão das populações
que perpetuam a existência de desigualdades sociais injustas e multiplicam mecanismos securitários de antecipa-
ção de riscos. Analisa-se o modo como se vinculam os conceitos de “bios” e de “política” para, posteriormente, re-
fletir sobre os dois eixos que podem ser considerados como articuladores da biopolítica na modernidade: o racismo
nas sociedades colonialistas e totalitárias e a gestão de riscos nas sociedades liberais e neoliberais.

Palavras chave: biopolítica, risco, governo, populações, desigualdades

Abstract
Taking as starting point the courses offered by Michel Foucault at the College of France, between 1976 and 1979,
the paper seeks to clarify the usefulness of the concept of Biopolitics for the understanding of mechanisms and dis-
cursive strategies that sustain government processes and management of populations that perpetuate unjust social
inequalities and multiply mechanisms of risk anticipation. We analyze how the concepts of “bios” and “politics” are
linked, for then reflect on the two axes that can be considered as articulators of biopolitics in modern society: colo-
nialism and racism in totalitarian societies and risk management in liberal and neoliberal societies.

Keywords: biopolitics, risk, government, population, inequality

Resumen
Tomando como punto de partida los cursos dictados por Michel Foucault en el College de France entre los años
1976 y 1979, el trabajo se propone explicitar la utilidad del concepto de biopolítica para comprender los mecanis-
mos y las estrategias discursivas sobre las que se sustentan los procesos de gobierno y gestión de las poblacio-
nes que perpetuan la existencia de desigualdades sociales injustas y multiplican mecanismos aseguradores de
anticipación de riesgos. Se analiza el modo como se vinculan los conceptos de “bios” y de “política” para, pos-
teriormente, reflexionar sobre los dos ejes que pueden ser considerados como articuladores de la biopolítica en
la modernidad: el racismo en las sociedades colonialistas y totalitarias y la gestión de riesgos em las sociedades
liberales y neoliberales.

Palabras clave: biopolítica, riesgo, gobierno, poblaciones, desigualdades.

Meu objetivo aqui é tentar compreender a ope- tão das populações que perpetuam a existência
ratividade do conceito foucaultiano de biopolítica de iniquidades ou desigualdades sociais injustas
como auxílio para uma problematização crítica de ao mesmo tempo em que reforçam e multiplicam
nosso presente. Acredito que esse conceito pode mecanismos securitários de antecipação e pre-
resultar um instrumento eficaz para compreender venção de riscos.
de que modo operam esses processos de ges-

* Doutora em Filosofia (Unicamp), Pós-doutorados em Paris VII e na EHESS. Professora Associada IV do


Departamento de Sociologia e Ciências políticas da Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora
de CNPq. sandracaponi@gmail.com

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Lembremos que o conceito de ‘biopolítica’ foi soberania descobrisse sua inoperância para lidar
enunciado pela primeira vez em uma conferência com os fenômenos próprios da nascente socieda-
ministrada por Foucault, em 1974, na Universida- de industrial: a explosão demográfica, os proble-
de Estadual do Rio de Janeiro. Essa palestra foi mas de urbanização, os novos conflitos derivados
publicada em 1977 com o nome de O nascimento da industrialização.
da medicina social. O texto aponta um desloca-
Esse poder de soberania sofrerá um primeiro pro-
mento significativo nas estratégias de poder:
cesso de acomodação com as tecnologias disci-
o controle da sociedade sobre os indiví- plinares estudadas por Foucault em Vigiar e Punir
duos não se opera simplesmente pela (1979): estratégias que se dirigem aos corpos,
consciência ou pela ideologia, mas co- e que estão destinadas a multiplicar sua força e
meça no corpo, com o corpo. Foi no bioló- sua capacidade de trabalho e a diminuir sua força
gico, no somático, no corporal que, antes política. Um segundo processo de acomodação
de tudo, investiu a sociedade capitalista. surgirá algo mais tarde, fortalecendo-se ao longo
O corpo é uma realidade biopolítica. (Fou- do século XIX sem excluir ou substituir a tecno-
cault, 1989:82) logia disciplinar, mas integrando-a e utilizando-a
parcialmente para dirigir-se a um novo objeto: a
Poucos anos mais tarde, em 1976, esse concei-
população e seus processos biológicos e bio-so-
to foi retomado e analisado no último capítulo de
ciológicos.
A Vontade de saber (1978) e posteriormente nos
cursos ministrados no College de France Em de- A nova tecnologia que será posta em prá-
fesa da sociedade (1997); Segurança território tica se refere à multiplicidade de homens,
e população (2009) e o Nascimento da biopolí- não enquanto corpos individuais, mas
tica (2004), onde desenvolve um estudo sobre a na medida em que eles constituem uma
arte de governar no liberalismo e neo-liberalismo massa global afetada por esses proces-
como condição de possibilidade de existência da sos de conjunto que são próprios da vida,
biopolítica. A publicação dos cursos ministrados como os processos de nascimento, mor-
por Foucault desde 1971 até sua morte em 1984, te, reprodução, doenças, etc. (Foucault,
ainda inacabada, contribuiu a despertar um reno- 1997:216)
vado interesse por seu trabalho, e muito particu-
Temos assim, duas estratégias de poder que se
larmente pelo conceito de biopolítica, multiplican-
sucedem: a primeira individualizante, a segunda
do-se nos últimos anos os estudos dedicados a
massificadora, a primeira referida ao homem en-
esse conceito não somente na França, mas tam-
quanto possuidor de um corpo, a segunda referi-
bém na Itália, nos Estados Unidos e na América
da ao homem enquanto faz parte de uma espécie
Latina.
biológica, a espécie homem.

O conceito de Biopolítica Essa nova tecnologia de poder demanda a cons-


Foucault afirma que a fins do século XVIII e iní- trução de novos saberes sobre as populações:
cios do século XIX se produz uma transformação os registros e estatísticas referidas à proporção
no modo de organizar e gerir o poder. A antiga de nascimentos e mortes, às taxas de reprodu-
potestade do soberano, seu direito sobre a vida ção, de fecundidade, de longevidade. Um imenso
e a morte dos súbditos, considerada como um de conjunto de dados demográficos começará a ser
seus atributos fundamentais pela teoria jurídica coletado, inicialmente em nível local, para logo
clássica, deixará lugar a um novo modo de orga- possibilitar comparações e estatísticas globais
nizar as relações de poder. O velho direito de dei- que serão centralizadas por organismos Estatais
xar viver e de fazer morrer próprio do soberano, como os registros nacionais de estatística e de-
será substituído pelo direito ou pelo poder de fa- mografia.
zer viver e deixar morrer, configurando-se assim Os indicadores quantitativos, na medida em que
o domínio dos biopoderes referidos aos corpos e são pensados como um fiel reflexo da realidade
às populações. Todo ocorre como se o poder de

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econômica de um país, do poder de um Estado, média estatística desejada (baixar a mortalidade,


ou do progresso dos povos, constituem a base alongar a vida, estimular a natalidade) (Foucault,
privilegiada a partir da qual serão construídas es- 2004).
tratégias concretas de intervenção sobre as po-
O objetivo último da biopolítica será instalar para
pulações.
cada risco ou perigo que possa vir a ocorrer, me-
Surgirão assim alguns espaços privilegiados de canismos de segurança que têm certas seme-
intervenção, dentre eles: as políticas de controle lhanças e certas diferenças com os mecanismos
de natalidade; o controle das morbidades e en- disciplinares. Ambos propõem-se a aumentar e
demias (que substituirá o temor pelas grandes maximizar a vitalidade das populações, temos as-
epidemias vistas como ameaça desde a Idade sim: “Uma tecnologia de poder sobre a população
Media); o estudo e o controle da extensão e dura- enquanto tal, sobre o homem como ser vivo, um
ção das patologias prevalentes, pensadas como poder contínuo, científico, que é o poder de fazer
fatores que debilitam a força de trabalho e impli- viver” (Foucault 1997, p. 220).
cam custos econômicos para todos; as interven-
Assim e do mesmo modo que nas disciplinas se
ções sobre a velhice, os acidentes, as doenças e
conjuga a maximização das forças produtivas
anomalias que excluem os indivíduos do mercado
com a diminuição da capacidade política, na bio-
de trabalho; a gestão das relações entre espécie
política se conjuga a maximização da força e da
humana e o meio externo, seja que se trate de
vitalidade de determinadas populações com a
problemas com o clima e a natureza (os pânta-
exclusão ou o esquecimento de outras. Aquelas
nos, por exemplo), ou com o meio urbano. Nessas
populações cujos indivíduos se mantém fora do
estratégias de intervenção se articulam diversos
auxílio e da proteção estatal, aquelas cujos gover-
domínios do saber e da ação política. Por um
nos simplesmente “deixam morrer”, fato que se
lado, os conhecimentos elaborados pela higiene,
traduz na limitada expectativa de vida, hoje de 52
a medicina social, a demografia e a estatística,
anos, existente em países como Uganda. Como
por outro as estratégias de poder que adotam a
tentaremos mostrar, Foucault considera que um
forma de esquemas de regulação, gestão, assis-
elemento essencial para compreender essa dupli-
tência, controle de riscos e mecanismos de segu-
cidade é o papel exercido pelo racismo (em suas
rança (Foucault, 2009).
diversas formas), considerado como eixo privile-
Desse modo, a biopolítica se constitui como uma giado de articulação das estratégias biopolíticas
tecnologia científica e política que se exerce so- nos Estados totalitários e colonialistas. Veremos
bre as populações entendidas como uma multipli- que esse eixo articulador se deslocará, mais tar-
cidade biológica, que se refere especificamente de, para os dispositivos securitários, de preven-
aos processos vitais, e que tem como preocu- ção de riscos, que de acordo a Foucault caracteri-
pação imediata antecipar os riscos. Assim, esse za a biopolítica nos Estados liberais e neoliberais.
conjunto de fenômenos que se apresentam como
O certo é que, analisar o surgimento dessas no-
aleatórios e imprevisíveis, quando se analisam
vas formas de maximização da vida que adota a
como fatos que afetam a um determinado indiví-
biopolítica na contemporaneidade, e os modos de
duo, aparecerão como constantes que é possível
exclusão que ela implica, exige compreender de
antecipar, quando são observados em perspecti-
que modo se articulam os conceitos de “bios” e
va populacional.
de “política” nessa tecnologia de poder. Centrar-
Os estudos estatísticos permitirão analisar esses me-ei aqui a analisar o modo como se relacionam
fenômenos em séries de curta ou longa duração esses conceitos exclusivamente na biopolítica
e desse modo antecipar os riscos ou perigos ao tal e como foi analisada por Foucault, deixando
qual essa população estaria submetida. Essas de lado as abordagens dos diversos autores que
predições e estimações estatísticas referidas a posteriormente tematizaram esse conceito.
fatos sociais (populacionais) e não a indivíduos,
permitem criar mecanismos reguladores destina-
dos a manter um estado de equilíbrio ou atingir a

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O bios como objeto de saber biologia, da medicina, em fim desses saberes de-
nominados, justamente, ciências da vida.
Ainda que nos Cursos do College de France, Fou-
cault explore as diversas faces que adota a biopo- E é nesse contexto que devemos situar a tese
lítica na modernidade, não existe uma referência central entorno á qual se articula o conceito de
clara à noção de vida ou “bios”, sobre a qual se biopolítica. Isto é, a afirmação de que o fato deter-
constrói e se articula esse conceito. Alguns au- minante na construção das sociedades modernas
tores, como Didier Fassin opinam que essa no- é o processo pelo qual a vida passa a ser inves-
ção, que constitui o coração da biopolítica, não tida por cálculos explícitos e por estratégias de
foi suficientemente explicitada por Foucault (Fas- poder: o momento em que o biológico ingressa
sin, 2006). É verdade que nos cursos não existe como elemento privilegiado no registro da políti-
nenhum momento dedicado a analisar exclusiva- ca. Assim, no Nascimento da biopolítica afirma
mente essa noção, porem, para poder compreen- que seu objetivo é:
der a especificidade desse bios que antecede à
política resulta necessário situá-lo em uma pers- “entender de que modo a prática governa-
pectiva mais ampla, lembrando que Foucault de- mental tentou racionalizar os fenômenos
dicou diversos textos e estudos à problematizar colocados por um conjunto de seres vivos
essa noção. constituídos como uma população: proble-
mas relativos à saúde, à higiene, à nata-
De fato a problemática da vida acompanha a Fou- lidade, à longevidade, a raças y outros”.
cault desde seus primeiros escritos. Vemos rea- (Foucault, 2005:27)
parecer essa preocupação desde O Nascimento
da clinica (1987) e As Palavras e as coisas (1983) Para poder tematizar esse ¨bios¨, entorno ao qual
até o último texto que envia para publicação pou- se estruturam as estratégias biopolíticas, será ne-
co antes de sua morte, uma texto em homena- cessário fazer referência a um registro que é ao
gem a Georges Canguilhem denominado A vida, mesmo tempo científico e político, pois a vida se
a experiência e a sociedade (1994). apresenta ao mesmo tempo como fato biológico e
como objeto de intervenção e de poder.
A centralidade da noção de vida nos estudos bio-
políticos, torna-se evidente na seguinte afirmação Será necessário olhar para a construção de dis-
de Foucault: cursos e classificações científicas e, ao mesmo
tempo, para as práticas concretas de intervenção
Parece-me que um dos fenômenos fun- que transformam a vida dos indivíduos e das po-
damentais do século XIX tem sido o que pulações. Certamente, para compreender essas
poderíamos denominar uma invasão da redes de saber e essas tecnologias de poder re-
vida pelo poder: ou se vocês desejam, um feridas ao saber médico, à higiene, à medicina
exercício de poder sobre o homem entan- social e à psiquiatria deveremos lembrar o lugar
to que ser vivo, uma sorte de estatização de destaque que a figura de Georges Canguilhem
do biológico, ou pelo menos uma certa tem no pensamento de Foucault.
tendência ao que se poderia denominar
uma estatização do biológico. (Foucault, Os estudos que Canguilhem dedica à medicina
1997:212) e à biologia, em particular sua crítica frontal ao
modo como se estabelecem os parâmetros de
Esse texto não só permite situar a noção vida normalidade e patologia nas ciências da vida pelo
como articuladora de novos domínios de saber recurso a padrões estatísticos, não podem ser
e de intervenção, ele delimita claramente o al- desconsiderados quando analisamos os alcan-
cance dessa noção. O poder não se refere aqui ces e limites da noção de “vida” entorno à qual se
à vida cotidiana, nem ao nosso dia a dia, nem à articula o conceito de biopolítica.
vida como fato existencial, trata-se de uma clara
identificação da vida com o domínio do biológi- Canguilhem soube mostrar, com extrema clareza,
co, trata-se da vida enquanto objeto de estudo da a duplicidade constitutiva do conceito de normal.
Por um lado, o normal define os valores de refe-

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rência, as médias e as variações admissíveis para no que se exercem sobre os corpos e as popula-
um determinado fenômeno biológico (seja a taxa ções. A noção de vida situa-se no centro da cena,
de colesterol ou de suicídio), estabelecidas a par- não só como objeto de tematização das ciências
tir dos valores estatisticamente mais frequentes. biológicas, mas também como um espaço privile-
Por outro lado, trata-se de um conceito valorativo giado para garantir a governabilidade e a gestão
e normativo que define àquilo que deve ser consi- das populações nas sociedades modernas.
derado desejável em determinado momento e em
O exercício da biopolítica supõe que, para poder
determinada sociedade. Assim, é pelo recurso
governar as sociedades, basta reduzir a multipli-
às normas e médias estatísticas que a medicina
cidade de circunstâncias próprias da condição
pode chegar a afirmar de que modo um fato bioló-
humana a sua dimensão biológica, ao domínio
gico, uma função orgânica, um processo vital ou
do vital, a esse domínio que limita a pluralidade
uma conduta, deve ou deveria ser.
humana a sua identidade enquanto espécie. No
O saber médico e a noção de norma, entorno à entanto, e aqui se encontra a maior contradição
qual esse saber se constrói, são indispensáveis inerente ao conceito de biopolítica, na medida em
para compreender as estratégias biopolíticas: que o governo das populações opera exclusiva-
não somente porque permitem a articulação entre mente sobre fatos biológicos, ele deverá deixar
o conhecimento científico e as intervenções con- nas sombras, como já o antecipara Aristóteles,
cretas, mas também porque é entorno da norma justamente a dimensão política da existência,
que podem ser criadas estratégias de poder que nossa capacidade de reflexão e diálogo argumen-
correspondem aos corpos dos indivíduos (as dis- tativo, nossos vínculos sociais, nossos afetos, so-
ciplinas) e aos processos biológicos da espécie (a nhos e pesadelos.
biopolítica). Como afirma Foucault:
Lembremos que, não por acaso, é justamente por
o elemento que circula do disciplinário ao oposição à concepção aristotélica de ‘homem’
regulador, que se aplica do mesmo modo que Foucault pensa o exercício da biopolítica.
aos corpos e às populações, que permite Essa afirmação o levará a enunciar no último ca-
controlar a ordem disciplinar dos corpos pitulo de “A Vontade de saber” uma frase que foi
e os eventos aleatórios de uma multipli- inúmeras vezes referenciada: “Por milênios o ho-
cidade biológica, esse elemento que cir- mem permaneceu o que era para Aristóteles: um
cula de um a outro, é a norma (Foucault, animal vivente que, além disso, é capaz de exis-
1997:225). tência política; o homem moderno é um animal
em cuja política está em questão sua existência
Assim, falar de um poder que se refere à vida sig-
como ser vivo” (Foucault, 1978:184).
nifica afirmar que o homem enquanto espécie se
transformou em objeto de tecnologias do saber Dois anos mais tarde, em Segurança, território
e poder normalizadoras que permitem regulari- e população, Foucault explorará o alcance des-
zar os fatos biológicos próprios das populações, sa afirmação quando se interroga pela oposição
tendo como marco de referência os parâmetros entre o exercício do governo sobre as popula-
estabelecidos pelas ciências da vida. ções e o exercício da política, então ele retornará
a Grécia, analisará o texto O político de Platão,
A biopolítica como governo sobre a debaterá sobre o lugar que no mundo grego ocu-
vida pava o poder do pastor e poder do rei (2009:185).
Duas dimensões que pareciam ser perfeitamente
A vida a qual se refere a biopolítica remete por diferenciáveis para Platão e para a filosofia grega
um lado ao campo dos discursos biológicos, mé- em geral, duas dimensões que começarão a se
dicos e higiênicos, porém, ela se vincula também sobrepor e a confundir a partir do século XVIII,
e de um modo peculiar ao campo do político. De momento em que o exercício da política se subor-
fato, deveríamos dizer que quando Foucault fala dinará ao governo sobre a vida.
de biopolítica não é realmente a política da vida o
que está em questão, mas as práticas de gover-

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Assim é por referencia á Grécia clássica, parti- tematizadas e questionadas. No momento em
cularmente a Platão e Aristóteles, que é possível que o domínio da ética e da política é substituído
compreender a grande novidade que se produz e reduzido ao campo do biológico, a corpo es-
no mundo moderno: a identificação entre o vital pécie, nossos padecimentos individuais e cotidia-
e o político. Uma novidade que será considera- nos, nossos vínculos sociais, passarão a estar
da fundamental, tanto para Foucault como para mediatizados por intervenções terapêuticas ou
Hannah Arendt, para poder compreender o lugar preventivas, médicas ou psiquiátricas, interessa-
peculiar e subordinado que a política ocupa, nas das em classificar todos os assuntos próprios da
sociedades contemporâneas, em relação ao pro- condição humana em termos de normalidade ou
blema da gestão e administração das populações. de patologia.

Se aceitamos a distinção entre vida e política es- Partindo desse marco de análise podemos afir-
tabelecida por Aristóteles, a qual se referem tanto mar, em primeiro lugar, que a vida não é consi-
Foucault quanto Arendt, deveremos afirmar que o derada pela biopolítica em um sentido coloquial
conceito de biopolítica, que literalmente significa ou vulgar. Pelo contrário, ela leva a carga episte-
“política de ou sobre a vida”, implica uma contra- mológica de uma vida objetivada pelos discursos,
dição entre dois domínios irredutíveis. Mais que os modos de classificar, medir, intervir e avaliar
uma política da vida, a biopolítica refere-se a um próprios das ciências biológicas e médicas, cons-
modo de gerir e administrar as populações. A vida truídos entorno à oposição normal-patológico.
que aqui está em jogo não é a de cidadãos com Por essa razão a medicina, a higiene e a saúde
capacidade de dialogo e existência jurídica e po- pública, ocupam um lugar privilegiado nas socie-
lítica, mas sim a vida de populações reduzidas a dades modernas, possibilitando a articulação en-
corpo-espécie. tre um saber sobre o biológico e as intervenções
governamentais sobre indivíduos e populações.
O paradoxo dos refugiados analisado por Arendt
pode auxiliar a ilustrar com dura clareza o que im- Em segundo lugar pode-se afirmar que a vida a
plica a pura “vida” para aqueles aos que só resta qual se refere a biopolítica não é um complemen-
seu reconhecimento como seres vivos, isto é, cor- to da política mas seu oposto, aquilo que anula
pos sem existência política é sem direitos. Como e nega a política. De modo que a biopolítica não
afirma Arendt: pode entender-se em sentido literal, como sendo
uma “política da vida”. Em sentido estrito, a biopo-
O conceito de direitos humanos, baseado
lítica deveria traduzir-se como: “governo sobre a
na suposta existência de um ser humano
vida”. Lembremos que já em Segurança, territó-
em si, desmoronou-se no mesmo instan-
rio e população Foucault começará a distanciar-
te em que aqueles que diziam acreditar
se do conceito de biopolítica e a substituí-lo pelo
nele se confrontaram pela primeira vez
conceito de “governamentalidade”. Analisará as-
com seres que haviam realmente perdi-
sim, a partir da aula do dia 8 de fevereiro de 1978,
do todas as outras qualidades e relações
uma variedade de estratégias de governo e ges-
específicas – exceto que ainda eram hu-
tão sobre as populações que inclui, mas já não
manos. O mundo não viu nada de sagra-
se reduz ao governo sobre o corpo- espécie que,
do na abstrata nudez de ser unicamente
como ocorre no caso das estratégias biopolíticas,
humano [...] Os sobreviventes dos campos
precisa da mediação de saberes estatísticos, mé-
de extermínio, os internados nos campos
dicos e psiquiátricos.
de concentração e de refugiados, e até
os relativamente afortunados apátridas, Em esse contexto entendo que a biopolítica deve
puderam ver [...] que a nudez abstrata de ser pensada como um modo de “gestão” ou de
serem unicamente humanos era o maior “governo sobre a vida” que se opera sobre o cor-
risco que corriam. ( Arendt, 1990, p. 333) po- espécie, a partir de uma perspectiva popu-
lacional que está sustentada na lógica médico
Não é somente em relação a essas situações li-
-estatística de hierarquização e partição entre o
mites que as estratégias biopolíticas devem ser
normal e o patológico. É nessa lógica, de sobre-

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posição do vital ao político, que é possível com- ras colonialistas, quanto seu exercício indireto,
preender as desigualdades entre populações, a como quando indivíduos considerados biologica-
hierarquização de populações consideradas mais mente inferiores foram excluídos ou expostos à
ou menos saudáveis, a exclusão de grupos huma- morte nas mais diversas circunstâncias, desde os
nos, o estabelecimento de rangos e hierarquias controles de natalidade à exposição a múltiplos
entre o que se consideram como sendo boas e riscos evitáveis. Em esses casos, o problema
más raças. colocado pela biopolítica não era vencer um ad-
versário político, não se tratava de disputas entre
Será justamente a temática das raças e sua vin-
sujeitos de direito, tratava-se da exclusão de in-
culação com a sexualidade, o que centrará a
divíduos que representavam um perigo biológico,
atenção de Foucault na analise que dedica á bio-
uma ameaça para garantir o objetivo de maximi-
política no último capitulo da A vontade de saber
zar a vida, garantir a longevidade e aumentar a
e no curso Em defesa da sociedade, o primeiro
vitalidade das populações.
publicado e o segundo ministrado no mesmo ano
de 1976. De acordo a Foucault, o racismo constitui um
marco essencial para compreender as estraté-
Biopolítica e racismo gias de exclusão e morte edificadas nos séculos
XVIII e XIX pelos nascentes Estados modernos.
No curso Em defesa da Sociedade, Foucault ex-
Nesse momento os discursos racistas pareciam
plora as alianças entre a constituição dos esta-
estar validados e legitimados por uma prolifera-
dos modernos e a biopolítica, destacando o lugar
ção de novos saberes considerados científicos,
estratégico ocupado pelas empresas colonialista
particularmente aqueles saberes provenientes
e pelas tecnologias de governo destinadas aos
do campo da medicina, da biologia e da crimi-
povos colonizados. Dirá que, para que a biopo-
nologia que, na última metade do século XIX, se
lítica possa exercer uma relação positiva com a
transformaram em referência inquestionável para
vida, para que ela possa construir técnicas de go-
as intervenções dos médicos e higienistas. Mas
verno destinadas a maximizar e aumentar a for-
também pelo discurso das ciências sociais que
ça e o equilíbrio das populações, as sociedades
no século XIX parecia estar obsecado pela hierar-
modernas aceitaram conviver, de modo explícito
quização das raças.
ou implícito, com sua negação: a exclusão ou a
morte de tudo aquilo que possa aparecer como O racismo é o que possibilita que seja realizada
uma ameaça, ou como uma fonte de degradação uma partição entre aquilo que deve ser elimina-
da vida. do e aquilo que deve ser maximizado. Permite
construir um modo peculiar de estabelecer uma
Foucault falará de um poder de morte ou de es-
relação positiva com a vida que adota a forma
tratégias que se validam num processo de regula-
de: “quanto mais tu deixes morrer, e por causa de
rização por exclusão. A aceitação dessas estraté-
esse mesmo fato, mais e melhor tu poderás viver,
gias ocorre como resultado de uma partição que
ou, para que tu vivas será preciso deixar morrer”
foi operada no campo do biológico pelo racismo.
(Foucault, 1997). Foucault entende que essa par-
O racismo deve entender-se em sentido amplo e
tição operada no campo do biológico pelo racis-
não literal, não se limita a distinção de raças, mas
mo entendido como um fenômeno social amplo,
que se refere a uma verdadeira hierarquização
não limitado à distinção de raças, mas referido a
biológica pela qual se instalam vínculos de exclu-
uma verdadeira hierarquização biológica de gru-
são, de negação e até de aversão, entre grupos
pos humanos foi possibilitada pelas teorias vincu-
humanos (Foucault,1999).
ladas, por um lado ao evolucionismo spenseriano
O racismo se configura, assim, como condição e por outro aos processos colonialistas.
para que os Estados modernos legitimem suas
Só nessa perspectiva tornou-se possível criar
intervenções biopolíticas caracterizadas como
estratégias estatais ou paraestatais perpassadas
“poder de morte”. Isto é, permite tanto o exercício
por uma lógica que induzia a aceitação da morte
direto de esse poder, como ocorreu com as guer-
ou da exclusão daqueles considerados como má

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raça ou como raça inferior. Só nesse contexto bio- A biopolítica e a gestão dos riscos
político foi possível imaginar a difusão, aplicação
Dois anos mais tarde, no curso do College de
e aceitação desses controles eugênicos que por
France denominado Segurança, território e po-
décadas foram destinados a impedir reprodução
pulação, que terá inicio no dia 11 de janeiro de
de certas raças e de certos indivíduos conside-
1978, Foucault revisará a tese segundo a qual a
rados como anormais, degenerados ou doentes
biopolítica estaria diretamente associada a es-
mentais. Se essas ações foram aceitas de modo
tratégias racistas e eugênicas como ele afirma-
quase generalizado no século XIX e parte do sé-
ra no curso ministrado em 1976. A partir desse
culo XX, nos regimes colonialistas e em certos
momento é possível observar uma significativa
Estados conservadores e totalitários, é porque
transformação no modo como Foucault irá a pro-
se acreditava que, de esse modo, seria possível
blematizar os alcances e implicações do conceito
garantir que a vida em geral poderia passar a ser
de biopolítica na sociedade contemporânea. No
mais saudável e mais pura. A lógica da biopolítica
curso de 1978, insistirá em distanciar a problemá-
afirma que:
tica da biopolítica do modo de governar nos esta-
Mais as espécies inferiores tendem a des- dos totalitários. Seguindo a trilha do que já tinha
aparecer, mais os indivíduos anormais são sido enunciado na aula do dia 17 de março de
eliminados, menos degenerados existirão Em Defesa da sociedade, reafirmará que o racis-
em relação à espécie e mais “eu” (não en- mo de estado, o nazismo, e as diferentes formas
tanto indivíduo mas entanto espécie) po- de exercício de poder totalitário sobre as popula-
derei viver, mais eu serei vigoroso e mais ções, devem ser consideradas como a manifesta-
poderei proliferar. (Foucault, 1997:229). ção paroxística, extrema e menos significativa de
exercício do biopoder.
O racismo, com as hierarquias que o evolucio-
nismo social estabelece e que foram apropriadas É verdade que hoje, já não parece legítimo falar
pelos discursos médico, psiquiátrico e crimino- de discursos científicos ou de estratégias de po-
lógico, permitiu dotar de legitimidade cientifica e der construídas entorno ao eixo do racismo. Ain-
política a esse poder de morte que, ao longo do da que, em muitos casos, os discursos racistas
século XIX, perpassou as relações entre a me- perduram e se multiplicam (problemas derivados
trópole e as colônias, as guerras, a identificação dos fluxos migratórios, da xenofobia e da intole-
de criminosos e os controles eugênicos sobre a rância racial em diferentes países do mundo), o
reprodução. racismo está explicitamente excluído dos saberes
aceitos, tanto pela comunidade acadêmica como
Desse modo, Em defesa da sociedade, conjun- pelas políticas de gestão das populações.
tamente com o último capítulo de A Vontade de
Saber, ambos de 1976, representam, a meu ver, Nesse contexto, a questão que eu gostaria de ex-
os textos onde Foucault expõe seus argumentos plorar aqui será a seguinte: que ocupa o lugar do
sobre o conceito de biopolítica de modo mais racismo, enquanto eixo articulador da biopolítica
radical e combativo. Esses textos referem-se às nas sociedades contemporâneas?.
consequências extremas ás que pode conduzir a
É verdade que a sociedades liberais e neoliberais
estratégia biopolítica de subordinação do político
parecem estar perpassadas pela lógica da bio-
ao biológico, tal e como efetivamente ocorreu nos
política, porém, hoje proliferam novos discursos
Estados totalitários e colonialistas. Evidenciam
e novos saberes construídos entorno ao eixo do
o que pode vir a acontecer quando a política se
normal-patológico, que deslocam ou substituem
reduz ao governo e a gestão das populações, en-
o problema do racismo problematizado por Fou-
tendidas como um conjunto de seres vivos sus-
cault no curso de 1976. Novos discursos e novas
cetíveis de ser classificados e hierarquizados de
certezas se instalam no campo das ciências da
acordo a uma lógica que supõe a existência de
vida, possibilitando intervenções sobre as popu-
características biológicas e médicas superiores e
lações que se edificam agora sobre as promes-
inferiores, normais e desviadas.
sas de um saber médico e psiquiátrico todo po-

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deroso, que se apresenta como sendo capaz de 1978-1979, denominado O Nascimento da biopo-
antecipar os riscos, de evitar a dor e de garantir lítica, Foucault se pergunta:
uma vida sem sofrimentos.
em um sistema que diz preocupar-se pelo
Todo parece indicar que, como afirma Foucault respeito aos sujeitos de direito e pela li-
em Segurança, território e população, as socie- berdade de iniciativa dos indivíduos, de
dades liberais e neoliberais estarão menos inte- que modo os fenômenos referidos à po-
ressadas no melhoramento ou a hierarquização pulação, com seus efeitos e problemas
de raças que em antecipar e prevenir todas as for- específicos (saúde, higiene, mortalidade,
mas possíveis de perigo.E será entorno à ideia de loucura ou delinquência) podem ser admi-
risco, entendida como quantificação probabilísti- nistrados? (Foucault, 2004:324).
ca de todo aquilo que pode vir a representar um
Em nome de que, e segundo que regras podem
perigo ou ameaça para a vida das populações,
ser geridas as populações nos Estados liberais?
que se articulará esse curso. Mas precisamente,
A resposta de Foucault a estas perguntas será:
entorno ao eixo segurança- prevenção- risco.
em nome da segurança. Já não se trata de impor
Foucault aponta uma série de elementos presen- normas ou de exigir obediência como nos Esta-
tes na construção dos dispositivos de segurança, dos totalitários.
dentre eles: realizar, pela mediação das estatísti-
Nas sociedades liberais os Estados se vinculam
cas, cálculos diferenciais de risco por idade, sexo,
com a população pela mediação de um “pacto de
profissão, etc.; estabelecer diferentes curvas de
segurança”. Isto supõe que, por um lado surge o
normalidade; calcular os desvios e criar estraté-
compromisso de intervir na antecipação de tudo
gias de normalização; definir populações de risco
aquilo que possa representar acidente, dano o ris-
e comparar padrões de morbidade e mortalidade;
co, e por outro lado esse compromisso os autori-
criar intervenções preventivas, capazes de redu-
za a realizar intervenções extralegais no momen-
zir os indicadores de morbidade, de reduzir os
to em que se considere necessário. Desse modo,
desvios e de antecipar os riscos. (Foucault, 2009)
intervenções que vão desde a simples proibição
Afirmará que os dispositivos de segurança per- de fumar até os grampos nos celulares, passando
mitem tratar à população como um conjunto de pela detecção de patologias mentais na infância,
seres vivos que possuem rasgos biológicos e pa- já não serão vistas como excesso de poder, mas
tológicos particulares, que correspondem a sabe- sim como excesso de preocupação e de proteção
res e técnicas específicas. Para administrar essa dos Estados.
população serão criadas políticas de diminuição
A diferença dos Estados totalitários os dispositi-
da mortalidade infantil, prevenção de epidemias
vos de segurança aceitam comportamentos va-
e endemias, intervenção nas condições de vida
riados e diferentes, não são necessariamente im-
com o fim de modifica-las e de impor normas de
positivos, mas sim reguladores. De modo que os
alimentação, moradia, urbanização, etc.
pequenos desvios poderão ser aceitáveis sempre
Porem, Foucault dará um passo a mais, ele dirá que se mantenham dentro de certo marco e sem-
que o dispositivo risco-segurança é o modo de pre que se eliminem comportamentos considera-
exercício do poder próprio do liberalismo. Trata-se dos perigosos.
de ações que não são impostas por um soberano
Se os Estados liberais toleram uma margem de
autoritário, mas que fazem parte da lógica própria
manobra e um pluralismo infinitamente maior que
do “laissez- faire” e do Homo economicus, pois:
nos totalitarismos, é porque, como afirma Fou-
“A liberdade é o correlato necessário dos meca-
cault, no dispositivo de segurança “trata-se de um
nismos de risco-segurança” (Foucault, 2009: 63).
poder muito mais sutil e mais hábil que no totalita-
Essa questão será retomada um ano mais tarde, rismo”(Foucault, 2009:52).
quando no curso do Collège de France do ano
O Estado liberal parte de uma certeza: a de que
Homo economicus será capaz de cálculo racio-

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nal, que ele saberá evitar os perigos e antecipar sário passar por cima das estruturas jurídicas e
os riscos se estiver devidamente informado. (Do- das liberdades elementares.
ron, 2007:2). De maneira sutil e pela mediação de
Responsabilização, culpabilização e obrigação,
diversas estratégias (comunicativas, médicas, es-
quase moral, de antecipar os riscos, de não adoe-
tatísticas, psiquiátricas) nas sociedades liberais
cer, de procurar valores tais como a saúde ou a
e ainda mais nas sociedades neoliberais onde o
juventude eterna, apresentados sob a forma de
Estado de proteção foi desarticulado, o controle
um pseudo “cuidado de si” impositivo, represen-
dos riscos passou a ser, pouco a pouco, uma res-
tam, segundo entendo, os novos desafios biopolí-
ponsabilidade de cada um de nós. Saber anteci-
ticos que caracterizam a nossa modernidade.
par os riscos, estar devidamente informado e agir
de acordo às exigências impostas pelos últimos
estudos epidemiológicos e médicos, se impõe A modo de conclusão
como um dever moral a todos nós e de manei- A biopolítica exige a construção de um campo
ra idêntica. Pois, os riscos e os dispositivos de de saber referido às populações que deve fazer
segurança reduzem a pluralidade humana a um uso de instrumentos quantitativos e de estudos
conjunto de funções vitais interessadas exclusi- demográficos a partir dos quais serão definidas
vamente na proteção da vida e no prolongamento as taxas de mortalidade e natalidade existentes e
da espécie. desejáveis, o número de crimes, de suicídios, de
alcoolismo e de loucura.
Se o dispositivo de segurança pode articular-se
com o modo liberal de governar, isso ocorre por- Esse conjunto de dados permite instalar uma ló-
que este tipo de gestão biopolítica das popula- gica securitária que se apresenta como capaz de
ções se baseia na confiança absoluta na difusão antecipar todos os perigos, situando a problemá-
de informações que se apresentam como neu- tica do risco como elemento articulador da bio-
trais e objetivas, e que sutilmente somos levados política das populações na sociedade contempo-
a aceitar e a integrar a nossas vidas. A divulgação rânea. O dispositivo risco-segurança, na medida
de estudos epidemiológicos contraditórios referi- em que aparece como o modo privilegiado de
dos, por exemplo, a supostas correlações entre antecipar um perigo possível (real ou imaginado)
a dificuldade de manter a atenção em aula e a sobre a vida, garante a legitimidade e aceitabili-
alteração de certos neurotransmissores, ou entre dade do governo das populações, substituindo ou
consumo de certas drogas e psicoses, os dados sobrepondo-se ao papel articulador que ocupava
que indicam a existência de taxas alarmantes de o racismo nas estratégias biopolíticas que carac-
suicídio, criminalidade e depressão, fazem parte terizavam os Estados colonialistas e totalitários
dessa lógica securitária (Caponi,2012). do século XIX e inícios do século XX.

O certo é que a chamada “sociedade do risco” No entanto, seja pelos processos crescentes de
instala o medo como mecanismo de interação so- privatização da saúde, ou como consequência de
cial, condenando-nos a ampliar, reforçar e recriar demandas sociais recorrentes, o cuidado com a
indefinidamente novos dispositivos de segurança saúde e a antecipação dos riscos parece ter fica-
e de antecipação de riscos. Foucault enuncia, já do, nas sociedades liberais e neoliberais, quase
nos anos 70, o que se tornou evidente para todos que literalmente em nossas mãos. Nessa lógica
depois do atentado às torres gêmeas do dia 11 de securitária sempre somos culpáveis por nossas
setembro de 2001: que a segurança é um disposi- doenças, por não ter sabido antecipar correta-
tivo que pode colocar-se por cima da lei. O medo mente os riscos, ou como diária Canguilhem: “por
aos atentados terroristas permite reforçar ainda excesso ou por omissão” (Canguilhem, 1990b).
mais a lógica securitária, pois perante a sensação
de des-proteção que se espalha, se demandará Responsabilização, culpabilização e obrigação,
ao Estado que cumpra com o pacto de segurança quase moral, de antecipar os riscos, de não adoe-
a qualquer preço, ainda que para isso seja neces- cer, de procurar valores tais como a beleza ou a
juventude eterna, apresentados sob a forma de

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um contraditório “cuidado de si” impositivo, repre- Bibliografia


sentam os novos desafios biopolíticos que apare-
cem em nossa modernidade. Corpos que devem ARENDT H., 1993, La Condición Humana, Siglo XXI,
México.
ser permanentemente maximizados e melhora-
dos, apresentam-se como o objetivo último para CAPONI S., 2000, Da Compaixão à solidariedade: uma
genealogia da assistência médica, Ed. Fiocruz,
os indivíduos e para as populações.
Rio de Janeiro.
O certo é que, esse corpo que se pretende ma- _____ 2012, Loucos e Degenerados: uma genealogia
ximizar por estratégias biopolíticas, convive com da psiquiatria ampliada, Ed. Fiocruz, Rio de
formas de exclusão que não diferem demasiado Janeiro.
daquelas, identificadas por Foucault como pró- CANGUILHEM G., 1990b, La Santé, Concept Vulgaire
prias dos Estados colonialistas, no curso Em de- & Question Philosophique, Ed. Sables, Paris.
fesa da Sociedade. Vidas expostas a riscos ex-
_____, 1990a, O normal e o patológico, Forense
tremos que não cabe a elas administrar, vidas ex- Universitaria, Rio de Janeiro.
cluídas, vidas descartadas. São muitos os casos
CASTIEL L., 2007, A Saúde Persecutória e os limites da
em que vemos repetir-se hoje, como nos estados responsabilidade, Ed. Fiocruz, Rio de Janeiro.
colonialistas, estratégias de poder que supõem a
redução de indivíduos e populações a sua dimen- DORON C.O., 2007, Biopolitique et prevention de
risques, en Politique de Santé, prevention,
são puramente biológica, a estratégias de gestão normes et disciplines des corps, Musée des
que parecem responder á lógica de “deixar mor- Beaux-Arts, Caen.
rer”.
FASSIN D., 2006, Le gouvernement des corps, Editions
de l’école des Hautes Etudes en Sciences
O certo é que, falar de biopolítica hoje exige olhar
Sociales, Paris.
para dois processos em aparência contraditórios,
mas que fazem parte de uma mesma lógica: a FOUCAULT M., 1978, Historia de la Sexualidad I: la
voluntad de saber, Siglo XXI, México.
de fazer viver e deixar morrer. Por um lado, a ob-
sessão pela saúde perfeita, pela maximização da _____, 1979, Vigilar y Castigar, Siglo XXI, México.
vida, utopia inatingível que, no entanto, regula o
_____, 1983, Las Palabras y las Cosas, Siglo XXI,
dia a dia dos sujeitos, e que encontra no saber México.
médico, particularmente no discurso do risco uma
_____, 1987, El Nacimiento de la Clínica, Siglo XXI,
fonte inesgotável de estratégias hiperpreventivas
México.
(Castiel,2007) e securitárias. Por outro, a persis-
tência de vidas vulneráveis, expostas permanen- _____, 1997, Il Faut Défendre la Societé, Gallimard,
Paris.
temente a riscos evitáveis, populações conside-
radas como pura existência biológica excluídas _____, 1999, Les Anormaux, Gallimard, Paris.
do mundo político de direitos e deveres. Essas _____, 2009, Segurança, territorio e população,
populações já não são objeto dos discursos mé- Martin Fontes, Sâo Paulo.
dicos, nem alvo das políticas de antecipação de
_____, 2004, Naissance de la Biopolitique, Gallimard,
riscos, mas sim objeto de intervenções e ajudas Paris.
humanitárias que encontram nos refugiados, ou
nas populações afetadas por processos biológi- _____, 1994, La vie: l’experience et la science. Em
Dits et écrits, Gallimard, Paris.
cos como a fome ou as epidemias, um campo
inesgotável de intervenções piedosas.

Entregado 20 – 11 - 2014
Aprobado 2 – 12 - 2014

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