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EDUCAÇÃO PARA UMA CULTURA DE PAZ NO CONTEXTO DA

NECROPOLÍTICA: INTERSECÇÕES POLÍTICO-FILOSÓFICAS COM


ACHILLE MBEMBE

EDUCACIÓN PARA UNA CULTURA DE PAZ EN EL CONTEXTO DE


LA NECROPOLÍTICA: INTERSECCIONES POLÍTICO-FILOSÓFICAS
CON ACHILLE MBEMBE

Rafael Augusto de Assis1

Resumo
O texto aborda a relação entre educação para uma cultura de paz no contexto da
necropolítica, com intersecções político-filosóficas com Achille Mbembe, Giorgio
Agamben e Michel Foucault. O artigo buscar defender que a análise crítica das
estruturas de poder e violência presentes na sociedade pode pavimentar caminhos para a
transformação social e para a promoção de valores que sustentem uma cultura de paz.
Nesse sentido, consideramos fundamental a reflexão crítica sobre a educação e seu papel
no contexto da necropolítica e biopolítica, visando alternativas que promovam uma
educação mais inclusiva, plural e respeitosa das diferenças. O artigo também apresenta
as contribuições de Giorgio Agamben e Michel Foucault para a compreensão da
biopolítica e do poder soberano.

Palavras-chave: Necropolítica; Educação; Biopolítica.

Resumén
El texto aborda la relación entre la educación para una cultura de paz en el contexto de
la necropolítica, con cruces político-filosóficos con Achille Mbembe, Giorgio Agamben
y Michel Foucault. El artículo busca defender que el análisis crítico de las estructuras de
poder y violencia presentes en la sociedad puede allanar el camino para la
transformación social y para la promoción de valores que sustenten una cultura de paz.
En este sentido, consideramos fundamental la reflexión crítica sobre la educación y su
papel en el contexto de la necropolítica y la biopolítica, apuntando a alternativas que
promuevan una educación de las diferencias más inclusiva, plural y respetuosa. El
artículo también presenta las contribuciones de Giorgio Agamben y Michel Foucault a la
comprensión de la biopolítica y el poder soberano.

Palabras clave: Necropolítica; Educación; Biopolítica.

1 Doutorando pelo PPGE (Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de São


Paulo – UMESP).
Introdução

Achille Mbembe é um renomado pensador, filósofo e historiador camaronês,


conhecido por suas contribuições nos estudos pós-coloniais e nas áreas de política,
poder e violência. Ele é professor de História e Ciência Política na Universidade de
Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul, e leciona na Universidade Duke, nos
Estados Unidos.

Embora Mbembe seja reconhecido por sua obra Crítica da Razão Negra (2018) e
por sua reflexão sobre temas como Necropolítica (2020) e políticas de inimizade, não há
referências diretas à sua abordagem específica em relação à educação para uma cultura
de paz. Suas pesquisas concentram-se principalmente nas questões pós-coloniais e na
análise crítica do legado colonial, bem como nas estruturas de poder e violência
presentes na sociedade contemporânea.

Apesar disso, suas reflexões sobre poder, violência e colonialismo podem ter
implicações indiretas na construção de uma cultura de paz. Ao analisar criticamente as
estruturas de poder e as dinâmicas de violência presentes nas sociedades, é possível
pavimentar caminhos para a transformação social e para a promoção de valores que
sustentem uma cultura de paz. Embora não haja uma abordagem específica de Achille
Mbembe sobre a educação para uma cultura de paz, podemos tecer estruturas de caráter
relacional da Necropolítica com a educação sustentadas nas análises críticas de Mbembe
que nos fornecem compreensões valiosas para repensar as relações sociais e os sistemas
de poder presentes na Educação formal.

Para sulear2 o desenvolvimento deste trabalho, consideramos justa uma breve


introdução ao conceito de Necropolítica. Desta forma, a Necropolítica é um conceito
cunhado por Achille Mbembe que se refere ao uso do poder político e social para
controlar a vida e a morte das pessoas. Essa abordagem analisa como certos grupos são
submetidos a condições precárias de existência e até mesmo à morte, enquanto outros
têm acesso privilegiado à vida e seus recursos. A Necropolítica questiona a distribuição
desigual das oportunidades de viver e morrer em uma sociedade, evidenciando como
certas políticas de segurança, estereótipos, segregações e até mesmo extermínio de
grupos são reforçados por discursos políticos e práticas estatais.
2 O verbo sulear, foi criado por Marcio D’Olne Campos e utilizado por Paulo Freire como uma
bússola que aponta para outras perspectivas epistemológicas e metodológicas que levariam ao
pensamento anticolonial e crítico. Uma forma de direcionar o conhecimento e pensamento para o Sul ao
invés do Norte, como tradicionalmente ocorre com o verbo nortear.
Achille Mbembe utiliza o conceito de Necropolítica para refletir sobre como o
Estado pode exercer um poder de vida e morte sobre as populações, restringindo seu
acesso a condições mínimas de sobrevivência e perpetuando estruturas de desigualdade.
Ele amplia o entendimento acerca do conceito de Biopolítica e Biopoder segundo
Michel Foucault e Giorgio Agamben, destacando como o racismo de Estado e outras
formas de discriminação podem influenciar as condições de vida e morte das pessoas.

Soberania, Biopolítica, Racismo e Estado de Exceção:


Mbembe, leitor de Michel Foucault e Giorgio Agamben

De imediato, contudo, faz-se necessário realizarmos um recorte específico em


relação àquilo que, de fato, Foucault irá compreender como racismo, termo em torno do
qual múltiplas e, quiçá, divergentes significações, orbitam. Para tanto, realizaremos uma
sucinta incursão pelo curso Em Defesa da Sociedade, ministrado pelo autor de 7 de
janeiro a 17 de março de 1976, no Còllege de France, ocasião em que o pensador
francês fará importantes apontamentos relacionados ao respectivo tema. Vejamos.

Precisamente, na última aula proferida por Foucault nesta oportunidade,


localizaremos uma distinção fulcral concernente à questão do direito nas sociedades de
soberania e nas sociedades modernas, tendo como linha demarcatória o século XIX.
Trazendo à tona a figura do rei, Foucault sublinhará que a ele cabia o direito exclusivo
sobre a vida e a morte de seus súditos. Em outras palavras, permanecer vivo ou estar
morto era uma condição estritamente condicionada à vontade do monarca. Descendo
ainda mais ao nível do detalhe, observaremos que o direito do rei diante da vida só se
torna praticável dado lhe cabe, de forma irrestrita, o poder de matar:

Em última análise, o direito de matar é que detém efetivamente em si a


própria essência desse direito de vida e de morte; é porque o soberano pode
matar que ele exerce seu direito sobre a vida. É essencialmente o direito de
espada [...]. É o direito de fazer morrer ou de deixar viver (FOUCAULT,
2005, pp.286287).

É evidente, que o direito de espada não fora subtraído por completo das
constituições atuais, haja vista que em muitas jurisprudências – a exemplo da norte-
americana do Texas ou da Indonésia – a pena de morte conserva-se em pleno vigor.
Desta maneira, não restam dúvidas de que o Estado continua a dispor de mecanismos
afirmativos – isto é, positivos – de morte, nos padrões das cadeiras elétricas,
enforcamentos, apedrejamentos, decapitações, fuzilamentos e aplicações de injeções
letais, todos eles salvaguardados pela legitimidade dos códigos penais locais.

Destarte, faz-se possível dizer que o DNA de muitas estruturas estatais dos dias
de hoje ainda guardam, em sua essência, parcela considerável da genética dos antigos
modelos soberanos. Conforme prenunciamos, entretanto, Foucault constatará que uma
mudança fundamental se deu quanto ao alvo – ou, para sermos mais específicos, ao
campo de abrangência – do poder. Se em outrora o suplício público situava-se na esfera
individual, incidindo por meio de castigos disciplinadores aplicados sobre os corpos dos
desarranjados3, o que se verá, então, é o surgimento de uma modalidade de poder cujas
práticas se estenderão à espécie humana em sua totalidade. Disso, resultarão tecnologias
inovadoras de organização e regulação das massas, visando a manutenção do equilíbrio
global da população, ou seja, sua homeóstase4, expressão retirada por Foucault do léxico
das Ciências Naturais. Notemos, que a fórmula relativa ao poder soberano será, de
acordo com a concepção foucaultiana, colocada às avessas:

E eu creio que, justamente, uma das mais maciças transformações do direito


político do século XIX constituiu, não digo exatamente em substituir, mas em
completar esse velho direito de soberania – fazer morrer ou deixar viver –
com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo,
modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente
inverso: poder de “fazer” viver e de ‘deixar” morrer. O direito de soberania é,
portanto, o de fazer morrer ou de deixar viver. E depois, este novo direito é
que se instala:
o direito de fazer viver e de deixar morrer (FOUCAULT, 2005, p.287).

Aqui, reside uma das problemáticas centrais que orientam a proposta deste
trabalho: considerando-se que os dispositivos biopolíticos não dizem respeito
exclusivamente à disciplinarização anatômica de homens e mulheres em caráter pessoal
(seja produzindo seus gestos, estabelecendo critérios no que alude às suas relações com
3 Cf. FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã, e meu irmão: um
caso de parricídio do século XIX. Rio de Janeiro, RJ: Graal, 1977. 294 p. (Biblioteca de ciências sociais.
Saber e sociedade; 1).
4 Conceito fundamental na biologia e na fisiologia que descreve a capacidade dos organismos de
manter condições internas estáveis e equilibradas, apesar das mudanças no ambiente externo. O termo
"homeostase" foi proposto pelo fisiologista Walter Bradford Cannon no início do século XX e é derivado
das palavras gregas "homoios" (igual) e "stasis" (estado).
o tempo ou mesmo delimitando como cada um deles deve se alocar nos mais diversos
espaços de sequestro, tais quais as fábricas, os hospitais, as casernas, os asilos, etc.),
estaríamos a falar, neste contexto, em determinados agrupamentos humanos que, não
por simples obra do acaso, mas pelos desígnios assassinos do maquinário estatal,
viveriam entregues à si mesmos, sendo abandonados à morte. Assim, temos que:

O termo “biopolítica” designa a maneira pela qual o poder tende a se


transformar [...] a fim de governar não somente os indivíduos por meio de um
certo número de procedimentos disciplinares, mas o conjunto dos viventes
constituídos em população: a biopolítica – por meio dos biopoderes locais –
se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da
sexualidade, da natalidade, etc., na medida em que elas se tornaram
preocupações políticas (RAVEL, 2005, p.26).

Ora, mas se a Biopolítica se ocupa da vida, alcançando “...toda a superfície que


se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das
tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra
(FOUCAULT, 2005, p.302), de que modo a mortalidade de fatia significativa da
população escaparia à racionalidade do Estado? Como explicar os elevados indicadores
sociais referentes às epidemias infantis ou a desnutrição de indivíduos pertencentes à
esta mesma faixa etária em dimensões mundiais? A estes e outros paradoxos de natureza
semelhantes, Foucault encontrará uma resposta pontual. Na realidade, ao invés de
fugirem do mapeamento biopolítico, os índices de letalidade – nesse caso, de crianças e
recém-nascidos – são minimamente calculados e aceitáveis (dentro de uma série de
percentuais convencionais), desde que não comprometam a estabilidade de todo o
corpus social. E, baseando-se em que fatores, decide-se quais serão os grupos que terão
direito à vida, contrariamente àqueles que estarão fadados ao extermínio? Descreve
Foucault: “A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa
sociedade de normalização (FOUCAULT, 2005, p.306). Doravante, o conceito de raça
adquire uma conotação absolutamente outra, que será atravessada, de ponta a ponta,
pelo discurso científico:

Com efeito, que é o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse


domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que
deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o
aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a
qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como
inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo biológico
de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da
população uns grupos em relação aos outros (FOUCAULT, 2005, p.304).

Em razão desta cisão, surgirá uma disposição verticalizada, piramidal, onde raças
inferiores ou sub-raças – o povo cigano é uma clara amostra disto, posto que sobre ele,
há séculos, pairam estereótipos demeritórios, tal como episódios históricos de tortura,
perseguição étnica e expulsões territoriais5 – ocuparão uma posição de inferioridade
quanto à outras, sendo passíveis de eliminação, movimento visto de forma igualmente
nítida mediante ao massacre dos judeus no transcorrer da Segunda Guerra Mundial.

Todavia, isso não significa que o racismo tenha sido uma invenção exclusiva
desta época. Voltando-nos à Grécia Antiga – à Atenas do período clássico, em especial –
não se constituirá nenhuma tarefa árdua encontrarmos menções de rebaixamento ou de
plena negação ontológica àqueles que permaneciam alheios à língua e à cultura locais,
os ditos bárbaros.

A principal desconformidade que perpassa esta modalidade de racismo – se é que


se faz admissível considerarmos as práticas segregativas ocorridas na pólis ateniense
nestes termos – e aquela considerada por Foucault, oriunda da Era Industrial, faz jus,
pois, ao seu leitmotiv6: se no primeiro momento o fundamento de discriminação estava
atrelado ao perfeito funcionamento político da cidade-estado grega (sendo os
estrangeiros considerados inaptos ao exercício das funções governamentais, ao direito
público de utilização da palavra, ao voto e à própria tarefa filosófica do pensamento), o
racismo contemporâneo segue outros rumos, a saber:

[...] é ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça,


a eliminação das raças e a purificação da raça para exercer seu poder
soberano [...] os Estados mais assassinos são, ao mesmo tempo, forçosamente
os mais racistas [...] Não há Estado mais disciplinar, claro, do que o regime
nazista; tampouco há Estado onde as regulamentações biológicas sejam
adotadas de maneira mais densa e mais insistente (FOUCAULT, 2005,
p.309).

5 Cf. MARTINEZ, Nicole. Os Ciganos. Tradução de Josette Gian. Campinas: Papirus, 1989. 130 p.
6 O termo é frequentemente usado no contexto da música e da literatura, referindo-se a um tema
ou motivo recorrente que representa um personagem, ideia ou emoção específica ao longo de uma obra.
Na literatura, um leitmotiv pode ser um símbolo, frase ou ideia recorrente que serve como elemento
unificador na narrativa.
Em suma, o racismo moderno é antes de tudo uma política expansionista e
disciplinarizadora de morte, levada à termo historicamente pelo nazifascismo. A
primazia do Estado alemão nacional-socialista deu-se à base dos campos de trabalhos
forçados e de extermínio, característica presente, em diferentes contornos, mas, em
análogo grau de violência, nos Estados soviéticos 7. Capitalistas ou Socialistas, os
Estados guardam entre si, no parecer foucaultiano, mais afinidades do que dissensões:
são irmãos gerados no mesmo ventre, quem sabe, apartados na infância.

Se os russos não foram responsáveis diretos pela quase completa varredura


global de um grupo étnico particular, verificaremos em muitas das políticas internas da
antiga URSS um racismo metamorfoseado, do tipo evolucionista, de poderio destrutivo
similar às técnicas empregadas pela medicina nazista em suas experimentações
eugenistas. Antagônicos em divisas oficiais, o modus operandi dos expostos Estados
declarados publicamente como inimigos universais – tenhamos em vista o advento da
Guerra Fria – acabariam, caso os critérios de aproximação atinentes às trágicas
consequências de suas atividades de aniquilamento às minorias fossem colocados lado a
lado, por se entrecruzar. Em ambas as ocasiões, o que se vislumbra no horizonte de
ataque é o elemento outro, o estranho, o protótipo a ser arrasado, o perigo planetário que
supostamente colocaria em risco iminente o domínio político e econômico das
respectivas nações. Lemos:

A ideia, em suma, de que a sociedade ou o Estado, ou o que deve substituir o


Estado, tem essencialmente a função de incumbir-se da vida, de organizá-la,
de multiplicá-la, de compensar suas eventualidades, de percorrer e delimitar
suas chances e possibilidades biológicas, parece-me que isso foi retomado tal
qual pelo socialismo [...] E é assim que, inevitavelmente, vocês vão encontrar
o racismo – não o racismo propriamente étnico, mas o racismo de tipo
evolucionista, o racismo biológico – funcionando plenamente nos Estados
socialistas (tipo União Soviética), a propósito dos doentes mentais, dos
criminosos, dos adversários políticos, etc. (FOUCAULT, 2005, p.313).

De Treblinka às Gulags, a utilização de aparatos de higienização social voltados


à preservação da pureza da raça ariana ou à eliminação de religiosos opositores à
Revolução Bolchevique foi um ferramental biopolítico disseminado em larga escala

7 Sobre este tema, cf. também: MERLEAU-PONTY, Maurice. Humanismo e terror: ensaios
sobre o problema comunista. Tradução de Naume Ladosky. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro, 1968.
183 p. 10 Foi o quarto campo de extermínio alemão onde judeus foram exterminados em câmaras de gás
alimentadas por motores a explosão localizado nos arredores da cidade de Treblinka, na Polônia ocupada
pelos alemães.
pelos Estados que espraiaram a economia de guerra por todas as suas engrenagens,
intentando de tal modo promover a normalização do corpo populacional. E se,
frequentemente, associamos a morte às investidas afirmativas dos braços armados do
Estado (exércitos, polícias, etc.), Foucault nos alertará de que, para além delas, há
muitos outros meios de suscitá-la. Alguns, inclusive, desprovidos das marcas de
sangue das vítimas, não se dando através da ação, mas, ao contrário, pela proposital
inação estatal:

“[...] por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas
também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de
multiplicar para alguns o risco ou, pura e simplesmente, a morte política, a
expulsão, a rejeição, etc.” (FOUCAULT, 2005, p.306).

Nesta direção, no escrito O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha –


publicado no ano de 1998, integrante do projeto Homo Sacer8 – o teórico italiano
Giorgio Agamben, trilhando as pistas deixadas por Foucault, irá aprofundar as análises
realizadas pelo autor de Vigiar e Punir (1975) e trazer um ponto de vista diferenciado
envolvendo o problema da Biopolítica. Tomando os campos de concentração por objeto
de ponderação, Agamben apresentará aquilo que podemos qualificar como uma terceira
via – não destituindo, por certo, as anteriores – em alusão aos supracitados poderes
monárquicos e aos modos mortíferos de intervenção dos Estados de nossos tempos.

Do portão de acesso às cercas eletrificadas que estabeleciam seus limites


territoriais, a quadratura arquitetônica de um campo fora minuciosamente esquadrinhada
para que nenhuma particularidade fugisse à lógica usinar de produção de corpos ali
difundida. O grau de racionalidade que permeava cada instrumento do imenso sistema-
morte que vitimou, em números aproximados, 6 milhões de seres humanos, passava pela
rigorosa aplicação dos saberes adquiridos nos âmbitos da psicologia, da física, da
química e do aparelho médico, resultando em meios cada vez mais eficazes –
notadamente, sob o viés logístico e operacional – de destruição em massa.

Agamben, que ao longo do acenado texto dialoga em vias diretas com as


produções do escritor italiano Primo Levi 9 – uma das testemunhas oculares dos horrores
produzidos pelo regime nazista, que acabaria por cometer o suicídio décadas após ter
abandonado Auschwitz-Birkenau – trará à luz, porém, uma estranha personagem, um

8 Compilado de 9 livros publicados por Agamben entre os anos de 1995 e 2014.


9 Cf. LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução de Luigi Dei. São Paulo: Rocco, 2013. 176 p.
habitante de gênero único, uma genuína classe de mortos-vivos, capaz de ser concebida,
excepcionalmente, nas condições dentro das quais a rotina dos prisioneiros em questão
se dava: referimo-nos ao muçulmano (der Muselmann). Diremos, perante os
testemunhos apresentados por Agamben, que o mulçumano é alguém que experimentou
a morte, mas permaneceu com a posse de seu corpo, perdendo – tão extremo era o nível
de embrutecimento pelo qual encontrava-se consumido – qualquer traço que pudesse
aproximá-lo minimamente da decência e por que não, da vergonha humana.

Errante, desvalido, o muçulmano era motivo de rechaço mesmo entre os internos,


sofrendo espancamentos constantes e humilhações de toda ordem sem conseguir
manifestar o mais insignificante ato de resistência. Vale frisar, que embora o termo
aludido esteja entrepassado de significações difamatórias, ele não está ligado
unicamente aos fiéis do Islã, mas a um paradigma de cunho ontológico-político
desdobrado a quaisquer credos e etnias. Por isso, “o mulçumano penetrou em uma
região do humano – pois, negar-lhe simplesmente a humanidade significaria aceitar o
veredicto das SS [...] onde, dignidade e respeito de si não são de nenhuma utilidade
(AGAMBEN, 2008, pp.70- 71). Acompanhemos, a declaração pronunciada pelo
sobrevivente Wlodzimierz Borkowski:

Já havia provado o pressentimento deste estado. Na cela, havia conhecido a


sensação da vida que se ia: todas as coisas terrenas não tinham mais
importância. As funções corpóreas definhavam. Até a fome me atormentava
menos. Sentia uma estranha doçura, porém não tinha mais a força de me
levantar do colchão de palha e, se o conseguia fazer, para ir à latrina, tinha
que me apoiar nas paredes... (AGAMBEN, 2008, p.166)10.

Imerso num estágio onde nem a fome e nem a dor eram capazes de violentá-lo
expressivamente, Borkowski indica-nos que a morte nos campos adquiria muitas
roupagens, não se restringindo tão-só às câmaras de gás e execuções sumárias. A
gratuita perambulação, o nomadismo depauperado, desprovido de sinais de esperança,
que equiparava o mulçumano à um cão vagabundo (AGAMBEN, 2008, p.169), explicita
como um vivente pode ser reduzido às cinzas e ainda assim prosseguir existindo.

Em concordância com Agamben, chamaremos esta categoria de morte de


sobrevivência. É nesse sentido, que a leitura agambiana empreende um passo adiante
aos comentários de Foucault quando o assunto reporta-se à Biopolítica. Na perspectiva
10 Mantivemos a grafia da respectiva referência em itálico, segundo citada pelo autor.
antecedente, tínhamos um poder monacal que fazia morrer e deixava viver, ao que se
sucedeu o fazer viver e deixar morrer – com o estímulo de políticas de incentivo à
natalidade, mapeamentos da mortalidade populacional (Biorregulação) e ao controle
endêmico – dos órgãos estatais. Agamben não desvia-se demasiado disto, mas assinala
uma passagem que necessita de propriedade interpretativa diferenciada para olharmos
ao que se passara no século XX e nos aproximarmos da apreciação mbembeniana em
relação à Necropolítica com maior pertinência:

À luz das considerações precedentes [...] insinua-se uma terceira [...] já não
fazer morrer, nem fazer viver, mas fazer sobreviver. Nem a vida nem a morte,
mas a produção de uma sobrevivência modulável e virtualmente infinita
constitui a tarefa decisiva do biopoder em nosso tempo. Trata-se, no homem,
de separar cada vez a vida orgânica da vida animal, o não-humano do
humano, o muçulmano da testemunha, a vida vegetal mantida em
funcionamento mediante as técnicas de reanimação da vida consciente, até
alcançar um ponto- limite que, assim como as fronteiras da geopolítica, é
essencialmente móvel e se desloca segundo o progresso das tecnologias
científicas e políticas (AGAMBEN, 2008, pp.155-156).

Eis o que Agamben nomeia de Estado de Exceção: uma anomalia jurídica que,
sob justificavas variadas, converteu-se em status quo definitivo. Tomando qualquer
constituição de um dito Estado Democrático em mãos, iremos notar que os direitos
fundamentais de todos os cidadãos às condições básicas de saúde, trabalho, moradia,
segurança e educação – além disso, à alimentação – aparecem previstos já em seus
primeiros incisos. Ou seja, o asseguramento de tais garantias não dependeria, em caráter
de possibilidade, da junção de uma série favorável de fatores, tampouco, da
benevolência deste ou daquele departamento governamental. Antes, trata-se de um dever
institucional a ser cumprido. O que sucede na prática, inversamente, indica uma
realidade antagônica, e não coloca – dirá Agamben – a negligência estatal na instância
do imponderável: a supressão de centenas e milhares de vidas humanas periodicamente
compõe parte imprescindível das políticas públicas vigentes nas ordens do dia:

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a


instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que
permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de
categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não
integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um
estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado
no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados
contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos (AGAMBEN, 2004,
p.13).
Vidas nuas, sujeitos sacrificáveis, matáveis. A proposital criação de ameaças
hipotéticas e de arquétipos atemorizantes que devem ser combatidos em nome da
segurança pública, do bem-estar das famílias tradicionais, acabam por servir como
pressuposto para que a truculência do Estado não seja economizada. Não
ocasionalmente, tendo sido incutido o medo e a insegurança nas populações urbanas, a
indústria cinematográfica absorve bilhões de dólares e euros anuais com seus super-
heróis à serviço da tranquilidade dos moradores dos grandes centros.

Entre youtubers e formadores de opinião ligados ao armamentismo, o número de


simpatizantes obtidos nas redes sociais é crescente: propagam-se adversários a serem
suplantados – condenados, de preferência, sem direito de defesa em idades mínimas,
haja vista que a redução da maioridade penal e a pena de morte são bandeiras defendidas
com veemência por estes discursos – sumariamente. Em entrevista concedida ao
periódico El País no ano de 2016 (publicado no Brasil em 2018), Agamben esclarece
que a situação excêntrica das políticas de arrasamento estatais – outrora aplicadas,
sobremaneira, em casos de guerras declaradas contra oponentes externos – acabaram por
se tornar procedimentos de manejo cotidiano:

O estado de exceção era um dispositivo provisório para situações de perigo.


Hoje se tornou um instrumento normal de governo. Com a desculpa da
segurança diante do terrorismo, se generalizou. A exceção, por isso se
chamava estado de exceção, é norma. O terrorismo é inseparável do Estado
porque define o sistema de governo. Sem o terrorismo, o sistema atual de
governo não pode funcionar. Há dispositivos como o controle das impressões
digitais, ou o escaneamento que te fazem nos aeroportos, que foram adotados
para controlar os criminosos e agora são aplicados a todos. Da perspectiva do
Estado, o cidadão se transformou em um terrorista virtual. Do contrário, não
se explica o acúmulo de câmeras que nos vigiam em todas as partes. Somos
tratados como criminosos virtuais. O cidadão é um suspeito, numerado, como
em Auschwitz, onde cada deportado tinha seu número. (AGAMBEN, 2018)11

Em potência, todos os cidadãos passam a carregar o estigma de serem suspeitos.


Em ato, um sem-número deles experimenta as implicações das mais severas
condenações antes mesmo do nascimento. Estes, são os sobreviventes de uma guerra em
curso e permanente, da qual desconhecem os propósitos e sobretudo as causas. Partindo
deste pressuposto, Achille Mbembe publicará o ensaio Necropolítica (2003),

11 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/19/cultura/1461061660_628743.html. Acesso


em 12 Jul. 2023.
investigação pela qual, sob o prisma do colonialismo e da inferiorização das raças, um
contorno ainda mais contundente às averiguações dos mencionados autores surge. Em
um plano geral, conceitualmente, Mbembe seguirá o percurso inaugurado pelas noções
de Biopolítica e Estado de Exceção para elaborar suas reflexões.

Necropolítica e Biopolítica na Educação: Reflexões sobre o Poder e a Vida

Os conceitos de necropolítica e biopolítica, introduzidos por Achille Mbembe e


Michel Foucault, respectivamente, oferecem perspectivas fundamentais para
compreender como o poder se manifesta na sociedade e como isso afeta a educação.
Ambos os conceitos estão relacionados à governança da vida, mas com abordagens
distintas, focando em aspectos de controle e gestão dos corpos humanos e da vida
coletiva. Nesse contexto, a análise da relação entre necropolítica, biopolítica e educação
se torna essencial para uma compreensão mais profunda dos mecanismos de poder
presentes nas instituições educacionais e consequentemente para uma educação voltada
para uma cultura de paz.

A biopolítica, conforme concebida por Foucault, refere-se à gestão da vida


biológica e populacional por parte do Estado e das instituições de poder. Ela se
manifesta na tentativa de regular e controlar os corpos e as populações, por meio de
políticas públicas, normas sociais e práticas institucionais. Na educação, a biopolítica
pode ser observada em estratégias que visam moldar o comportamento e a subjetividade
dos indivíduos para que se tornem cidadãos "ideais" e produtivos para a sociedade. Isso
pode acontecer por meio do currículo escolar, das práticas disciplinares e das normas de
conduta impostas aos estudantes.

Por outro lado, a necropolítica, termo cunhado por Mbembe, refere-se ao poder
soberano sobre a morte e à capacidade de decidir quem vive e quem morre. Ela está
intrinsecamente ligada ao conceito de "nuda vida", que se refere a uma vida despojada
de valor político, relegada a uma existência precária e desprovida de direitos. Na
educação, a necropolítica pode se manifestar através de práticas discriminatórias que
excluem grupos minoritários ou marginalizados, negando-lhes acesso à educação de
qualidade e, assim, perpetuando desigualdades sociais.
É importante notar que biopolítica e necropolítica não são opostas, mas sim
complementares. Em muitos casos, a educação pode ser atravessada por ambos os
dispositivos de poder. Por exemplo, quando certos grupos são marginalizados na
educação, sua vida é desvalorizada e suas perspectivas são reduzidas a meras vidas
biológicas sem importância política. Ao mesmo tempo, o controle disciplinar nas
instituições educacionais busca moldar as mentes e corpos dos indivíduos, regulando
suas condutas e moldando-os de acordo com as normas estabelecidas pelo poder.

Diante dessa análise, é fundamental uma reflexão crítica sobre a educação e seu
papel no contexto da necropolítica e biopolítica. É preciso questionar as estruturas de
poder presentes no sistema educacional e buscar alternativas que promovam uma
educação mais inclusiva, plural e respeitosa das diferenças. Isso implica em reconhecer
a diversidade de experiências e perspectivas, garantindo a equidade de acesso à
educação e valorizando a singularidade de cada sujeito. Uma educação que almeje uma
transformação social.

Educação para uma transformação social: críticas sob as perspectivas de Mbembe,


Foucault e Agamben

A análise crítica das estruturas de poder e das dinâmicas de violência presentes


na sociedade pode pavimentar caminhos para a transformação social e para a promoção
de valores que sustentem uma cultura de paz. Embora não haja uma abordagem
específica de Achille Mbembe sobre a educação para uma cultura de paz, suas reflexões
sobre poder, violência e colonialismo podem ter implicações indiretas na construção de
uma cultura de paz. Assim, é possível tecer estruturas de caráter relacional da
Necropolítica com a educação, repensando as relações sociais e os sistemas de poder
presentes na Educação formal. Portanto, a educação pode ser utilizada como uma
ferramenta para a transformação social, a partir das análises críticas de Mbembe como
veremos em seguida.

Mbembe escreve que a educação deve ser um espaço de liberdade e crítica. Os


estudantes devem ser encorajados a pensar por si mesmos, e a questionar as ideias que
são apresentadas a eles. A educação também deve ser um espaço de diálogo e de
construção de consenso. Os estudantes devem ser capazes de compartilhar suas ideias, e
de aprender uns com os outros. Ele também argumenta que a educação deve ser
inclusive e acessível a todos, independentemente de sua raça, gênero, classe social ou
religião. A educação também deve ser relevante para as experiências das pessoas. Ela
deve ajudá-las a entender o mundo ao seu redor, e a encontrar um lugar nele.

A educação é uma ferramenta poderosa que pode ser usada para transformar a
sociedade. Ela pode ajudar a quebrar o ciclo da pobreza, a promover a democracia e a
criar uma sociedade mais justa e igualitária. Mbembe defende uma visão crítica da
educação, que deve ser emancipadora, inclusiva e relevante para as experiências das
pessoas.

A discussão sobre a importância da educação como instrumento de


transformação social ganhou relevância ao longo das últimas décadas, especialmente
com a crescente conscientização sobre as desigualdades e injustiças que permeiam as
estruturas sociais e políticas em todo o mundo. Nesse contexto, a visão de Achille
Mbembe, traz insights valiosos sobre a educação como uma força capaz de conduzir
mudanças significativas na sociedade.

Achille Mbembe, oferece uma perspectiva sobre a relação entre educação e


transformação social. Para ele, a educação não é apenas um meio para a transmissão de
conhecimento e habilidades técnicas, mas uma força essencial para moldar a sociedade e
promover a emancipação humana. Em sua visão, a educação tem o potencial de ser um
catalisador poderoso para a transformação social, desde que aborde questões
fundamentais relacionadas à liberdade, consciência crítica, diversidade cultural e
solidariedade.

Em primeiro lugar, Mbembe salienta a necessidade de uma educação libertadora


que capacite os indivíduos a desafiarem as estruturas opressivas e os sistemas de
dominação. Isso implica em ir além do simples ensino de conteúdos e buscar
desenvolver uma consciência crítica nos alunos, encorajando-os a questionar as normas
sociais, políticas e econômicas vigentes. Uma educação libertadora não se limita a
reproduzir a ideologia dominante, mas busca capacitar as pessoas a pensarem de forma
independente e a se tornarem agentes ativos de mudança.

Em segundo lugar, a visão de Mbembe enfatiza a importância de incorporar uma


perspectiva intercultural na educação. Isso significa valorizar e incluir as diversas
experiências culturais, étnicas e sociais em sala de aula, permitindo que os alunos
tenham uma compreensão mais profunda da pluralidade da humanidade. Ao promover o
respeito pela diversidade, a educação pode desempenhar um papel crucial na
desconstrução de estereótipos e preconceitos, fomentando o diálogo e a colaboração
entre diferentes grupos sociais.

Além disso, Mbembe critica a tendência de muitos sistemas educacionais em


perpetuar hierarquias e desigualdades sociais. Ele argumenta que é fundamental
repensar os currículos e abordagens pedagógicas para que sejam mais inclusivos e
representativos das diversas realidades e histórias humanas. Uma educação
verdadeiramente transformadora deve dar voz às comunidades marginalizadas e
desafiadoras, contribuindo para a construção de sociedades mais justas e equitativas.

Outro aspecto relevante na visão de Mbembe é o papel da educação no


desenvolvimento do pensamento de fronteira. Isso envolve a capacidade de transcender
as divisões artificiais e as fronteiras geopolíticas, buscando uma compreensão global dos
desafios enfrentados pela humanidade como um todo. O pensamento de fronteira
incentiva a reflexão sobre as interconexões complexas que moldam o mundo
contemporâneo e inspira ações que ultrapassam limites geográficos e culturais.

Por fim, a perspectiva de Mbembe destaca que a educação para a transformação


social não pode ser uma jornada individual. Em vez disso, deve ser fundamentada na
solidariedade e na responsabilidade coletiva. Isso implica em fomentar um senso de
comunidade e em encorajar a colaboração para enfrentar os desafios sociais e
ambientais que afetam toda a humanidade. A educação deve ir além do individualismo e
do isolamento para construir uma teia de conexões e interdependências que promova o
bem-estar de todos.

Michel Foucault, filósofo e teórico social francês, trouxe um panorama único e


provocativo sobre a relação entre educação e transformação social. Em suas obras,
Foucault abordou a maneira como o poder e o conhecimento se entrelaçam nas
instituições sociais, incluindo o sistema educacional, e como essas dinâmicas moldam as
formas de pensar, agir e ser dos indivíduos. Sua análise sobre a educação e seu papel na
transformação social está fundamentada em três principais conceitos: poder, disciplina e
resistência.
Em primeiro lugar, Foucault destacou o poder como um elemento central nas
relações sociais, incluindo o âmbito da educação. Para ele, o poder não é apenas uma
entidade repressora, mas algo que permeia todas as esferas da sociedade, moldando
discursos, normas e práticas. No contexto educacional, o poder se manifesta através de
mecanismos de controle e disciplina, que têm o objetivo de produzir sujeitos obedientes
e adaptados às estruturas de poder vigentes.

Em segundo lugar, Foucault analisou o papel da disciplina na educação e sua


influência na construção de corpos e mentes obedientes ao status quo. As instituições
educacionais, como escolas e universidades, se tornam espaços de normalização, onde
padrões comportamentais e cognitivos são estabelecidos para produzir cidadãos "ideais"
de acordo com os interesses dominantes. A disciplina na educação busca moldar o
comportamento dos indivíduos, controlando seus desejos, pensamentos e ações.

Em terceiro lugar, Foucault abordou a questão da resistência e da possibilidade


de transformação social dentro desse contexto de poder e disciplina. Ele argumentou
que, mesmo em meio às relações assimétricas de poder, existem brechas e margens de
resistência que os indivíduos podem explorar. A resistência não precisa ser
necessariamente uma ação coletiva ou uma revolta aberta, mas pode ser uma forma de
subversão no cotidiano, como questionar normas, desconstruir discursos hegemônicos e
buscar formas alternativas de pensar e agir.

Para Foucault, a educação é tanto uma instituição de controle e reprodução do


poder quanto um espaço onde resistências podem emergir. Ele instiga a reflexão sobre
as práticas educacionais e a necessidade de questionar as normas e discursos que
moldam a formação dos indivíduos. A transformação social, segundo Foucault, não viria
necessariamente de grandes revoluções, mas do questionamento constante das estruturas
de poder e das práticas disciplinares que moldam nossa maneira de pensar e agir.

Em síntese, a perspectiva de Michel Foucault sobre a relação entre educação e


transformação social enfatiza a análise das dinâmicas de poder, disciplina e resistência
presentes no sistema educacional. Ele nos lembra que a educação desempenha um papel
crucial na construção de sujeitos sociais e que a transformação social requer uma análise
crítica das práticas educacionais e a busca por formas alternativas de pensar, agir e
resistir às estruturas opressivas.
Giorgio Agamben, filósofo italiano, oferece um cenário interessante e complexo
sobre a relação entre educação e transformação social. Sua análise se concentra em
questões relacionadas ao poder soberano, ao estado de exceção e à biopolítica, e como
esses conceitos influenciam a educação e a sociedade como um todo.

Em sua visão, Agamben destaca que a educação desempenha um papel


fundamental na formação e controle dos indivíduos pela sociedade e pelo Estado. Ele
argumenta que o sistema educacional pode ser visto como uma extensão das práticas de
biopolítica, que envolvem a governança da vida humana e suas formas de existência.
Nesse sentido, a educação não é apenas um meio para transmitir conhecimentos, mas
também uma ferramenta para moldar identidades e subjetividades de acordo com os
interesses e valores predominantes.

Agamben critica a forma como a educação pode ser usada pelo poder soberano
para manter o status quo e perpetuar estruturas de dominação. Ele destaca como o
sistema educacional pode operar como um mecanismo de inclusão e exclusão,
determinando quem é considerado cidadão legítimo e quem é relegado ao estado de
exceção. Isso pode acontecer, por exemplo, por meio de práticas de exclusão escolar,
que negam o acesso à educação para certos grupos sociais, perpetuando desigualdades e
injustiças.

Outro conceito chave de Agamben é o "nuda vida12" (bare life), que se refere à
vida humana reduzida a uma existência biológica desprovida de direitos políticos e
sociais. Ele argumenta que a educação, em muitos casos, pode contribuir para a
produção do "nuda vida" ao impor normas, padrões e disciplinas que desumanizam e
despossuem os indivíduos de sua capacidade de agir e resistir. Isso pode ocorrer, por
exemplo, através de práticas de educação autoritárias que reprimem a criatividade e a
individualidade em prol da conformidade.

No entanto, Agamben também oferece a possibilidade de resistência e


transformação social. Ele enfatiza a importância de um pensamento crítico e uma
reflexão constante sobre as estruturas de poder e controle presentes na educação e na
sociedade. A resistência, para Agamben, está em buscar formas de vida que escapem das
lógicas de dominação e exclusão, rejeitando a "nuda vida" e reivindicando a dignidade e
os direitos fundamentais de todos os indivíduos.
12 Agamben traduzirá o conceito de “das bloβes Leben” de Walter Benjamin como “nuda vida” que se
traduz em “vida nua”.
Em resumo, a perspectiva de Giorgio Agamben sobre a relação entre educação e
transformação social destaca a interconexão entre educação, poder soberano, estado de
exceção e biopolítica. Ele nos alerta para os riscos de a educação ser instrumentalizada
pelo poder para perpetuar desigualdades e desumanização, mas também nos inspira a
buscar formas de resistência e emancipação por meio do pensamento crítico e da
reafirmação de nossa humanidade e dignidade. A transformação social, de acordo com
Agamben, requer uma análise profunda das práticas educacionais e um compromisso
com a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.

Considerações Finais

A reflexão crítica sobre a educação e seu papel no contexto da necropolítica e


biopolítica é fundamental para a promoção de uma cultura de paz. É preciso questionar
as estruturas de poder presentes no sistema educacional e buscar alternativas que
promovam uma educação mais inclusiva, plural e respeitosa das diferenças. A
diversidade de experiências e perspectivas deve ser reconhecida, garantindo a equidade
de acesso à educação e valorizando a singularidade de cada sujeito. Além disso, as
contribuições de teóricos como Mbembe, Agamben e Foucault são essenciais para a
compreensão da necropolítica, biopolítica e do poder soberano, permitindo uma análise
mais profunda das estruturas de poder que permeiam a sociedade. A educação pode ser
uma ferramenta poderosa para a transformação social, desde que seja pensada de forma
crítica e consciente.

As considerações de Achille Mbembe sobre poder, violência e colonialismo


podem ter implicações indiretas na construção de uma cultura de paz. Suas análises
críticas das estruturas de poder e dinâmicas de violência presentes nas sociedades
podem pavimentar caminhos para a transformação social e para a promoção de valores
que sustentem uma cultura de paz. Suas críticas à perpetuação de hierarquias e
desigualdades sociais no sistema educacional e sua ênfase na importância de uma
perspectiva intercultural na educação são valiosas para repensar as relações sociais e os
sistemas de poder presentes na educação formal. Portanto, a incorporação das reflexões
de Mbembe na educação pode ser uma forma de promover uma cultura de paz mais
inclusiva e respeitosa das diferenças.
Munidos desta compreensão, a percepção da fragilidade da educação em meio
aos mecanismos de poder fica muito perceptível e consequentemente as ressonâncias
sociais desta ação de velamento, ou seja, quando a educação não perpassa os caminhos
que levam a uma sociedade mais justa, plural e ancorada em direitos toda a sociedade
(ou quase toda) sente os efeitos, uma vez que, a educação pode ser compreendida como
um espelho para e da sociedade.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo:


Boitempo, 2004. 142 p. (Estado de Sítio).

_________________. O estado de exceção se tornou uma norma. El País, Brasil, 30 de


Abr. de 2018. Disponível
em:https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/19/cultura/1461061660_628743.html.
Acesso em 12 Jul. 2023.

_________________. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer


III). Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. 175 p. (Estado de
Sítio).

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-


1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 382 p.
(Tópicos).

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São


Paulo: N-1 Edições, 2018. 315 p.

_________________. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de


morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 Edições, 2020. 71 p.

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