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Educação para uma cultura de paz no contexto da Necropolítica:

intersecções político-filosóficas com Achille Mbembe

Rafael Augusto de Assis1

Introdução

Achille Mbembe é um renomado pensador, filósofo e historiador camaronês,


conhecido por suas contribuições nos estudos pós-coloniais e nas áreas de política,
poder e violência. Ele é professor de História e Ciência Política na Universidade de
Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul, e também leciona na Universidade
Duke, nos Estados Unidos.
Embora Mbembe seja reconhecido por sua obra Crítica da Razão Negra e por
sua reflexão sobre temas como Necropolítica e políticas de inimizade, não há
referências diretas à sua abordagem específica em relação à educação para uma cultura
de paz. Suas pesquisas concentram-se principalmente nas questões pós-coloniais e na
análise crítica do legado colonial, bem como nas estruturas de poder e violência
presentes na sociedade contemporânea.
Apesar disso, suas reflexões sobre poder, violência e colonialismo podem ter
implicações indiretas na construção de uma cultura de paz. Ao analisar criticamente as
estruturas de poder e as dinâmicas de violência presentes nas sociedades, é possível
pavimentar caminhos para a transformação social e para a promoção de valores que
sustentem uma cultura de paz. Embora não haja uma abordagem específica de Achille
Mbembe sobre a educação para uma cultura de paz, podemos tecer estruturas de caráter
relacional da Necropolítica com a educação sustentadas nas análises críticas de Mbembe
que nos fornecem compreensões valiosas para repensar as relações sociais e os sistemas
de poder presentes na Educação formal.

1
Doutorando pelo PPGE (Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de São
Paulo – UMESP).
1. Soberania, Biopolítica, Racismo e Estado de Exceção:
Mbembe, leitor de Michel Foucault e Giorgio Agamben

Para sulear2 o desenvolvimento deste trabalho, consideramos justa uma breve


introdução ao conceito de Necropolítica. Desta forma, a Necropolítica é um conceito
cunhado por Achille Mbembe que se refere ao uso do poder político e social para
controlar a vida e a morte das pessoas. Essa abordagem analisa como certos grupos são
submetidos a condições precárias de existência e até mesmo à morte, enquanto outros
têm acesso privilegiado à vida e seus recursos. A Necropolítica questiona a distribuição
desigual das oportunidades de viver e morrer em uma sociedade, evidenciando como
certas políticas de segurança, estereótipos, segregações e até mesmo extermínio de
grupos são reforçados por discursos políticos e práticas estatais.
Achille Mbembe utiliza o conceito de Necropolítica para refletir sobre como o
Estado pode exercer um poder de vida e morte sobre as populações, restringindo seu
acesso a condições mínimas de sobrevivência e perpetuando estruturas de desigualdade.
Ele amplia o entendimento acerca do conceito de Biopolítica e Biopoder segundo
Michel Foucault e Giorgio Agamben, destacando como o racismo de Estado e outras
formas de discriminação podem influenciar as condições de vida e morte das pessoas.
De imediato, contudo, faz-se necessário realizarmos um recorte específico em
relação àquilo que, de fato, Foucault irá compreender como racismo, termo em torno do
qual múltiplas e, quiçá, divergentes significações, orbitam. Para tanto, realizaremos uma
sucinta incursão pelo curso Em Defesa da Sociedade, ministrado pelo autor de 7 de
janeiro a 17 de março de 1976, no Còllege de France, ocasião em que o pensador
francês fará importantes apontamentos relacionados ao respectivo tema. Vejamos.
Precisamente, na última aula proferida por Foucault nesta oportunidade,
localizaremos uma distinção fulcral concernente à questão do direito nas sociedades de
soberania e nas socied1ades modernas, tendo como linha demarcatória o século XIX.
Trazendo à tona a figura do rei, Foucault sublinhará que a ele cabia o direito exclusivo
sobre a vida e a morte de seus súditos. Em outras palavras, permanecer vivo ou estar
morto era uma condição estritamente condicionada à vontade do monarca. Descendo

2
O verbo sulear, foi criado por Marcio D’Olne Campos e utilizado por Paulo Freire como uma bússola
que aponta para outras perspectivas epistemológicas e metodológicas que levariam ao pensamento
anticolonial e crítico. Uma forma de direcionar o conhecimento e pensamento para o Sul ao invés do
Norte, como tradicionalmente ocorre com o verbo nortear.
ainda mais ao nível do detalhe, observaremos que o direito do rei diante da vida só se
torna praticável dado lhe cabe, de forma irrestrita, o poder de matar:

Em última análise, o direito de matar é que detém efetivamente em si a


própria essência desse direito de vida e de morte; é porque o soberano pode
matar que ele exerce seu direito sobre a vida. É essencialmente o direito de
espada [...] É o direito de fazer morrer ou de deixar viver (FOUCAULT,
2005, pp.286-287).

É evidente, que o direito de espada não fora subtraído por completo das
constituições atuais, haja vista que em muitas jurisprudências – a exemplo da norte-
americana do Texas ou da Indonésia – a pena de morte conserva-se em pleno vigor.
Desta maneira, não restam dúvidas de que o Estado continua a dispor de mecanismos
afirmativos – isto é, positivos – de morte, nos padrões das cadeiras elétricas,
enforcamentos, apedrejamentos, decapitações, fuzilamentos e aplicações de injeções
letais, todos eles salvaguardados pela legitimidade dos códigos penais locais.
Destarte, faz-se possível dizer que o DNA de muitas estruturas estatais dos dias
de hoje ainda guardam, em sua essência, parcela considerável da genética dos antigos
modelos soberanos. Conforme prenunciamos, entretanto, Foucault constatará que uma
mudança fundamental se deu quanto ao alvo – ou, para sermos mais específicos, ao
campo de abrangência – do poder. Se em outrora o suplício público situava-se na esfera
individual, incidindo por meio de castigos disciplinadores aplicados sobre os corpos dos
desarranjados3, o que se verá, então, é o surgimento de uma modalidade de poder cujas
práticas se estenderão à espécie humana em sua totalidade. Disso, resultarão tecnologias
inovadoras de aparelhamento e regulação das massas, visando a manutenção do
equilíbrio global da população, ou seja, sua homeóstase, expressão retirada por Foucault
do léxico das Ciências Naturais. Notemos, que a fórmula relativa ao poder soberano
será, de acordo com a concepção foucaultiana, colocada às avessas:

E eu creio que [...] uma das mais maciças transformações do direito político
do século XIX constituiu, não digo exatamente em substituir, mas em
completar esse velho direito de soberania – fazer morrer ou deixar viver –
com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo,
modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente
inverso: poder de “fazer” viver e de ‘deixar” morrer. O direito de soberania é,
portanto, o de fazer morrer ou de deixar viver. E depois, este novo direito é
que se instala: o direito de fazer viver e de deixar morrer (FOUCAULT,
2005, p.287).
3
Cf. FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã, e meu irmão: um
caso de parricídio do século XIX. Rio de Janeiro, RJ: Graal, 1977. 294 p. (Biblioteca de ciências sociais.
Saber e sociedade; 1).
Aqui, reside uma das problemáticas centrais que orientam a proposta deste
trabalho: considerando-se que os dispositivos biopolíticos não dizem respeito
exclusivamente à disciplinarização anatômica de homens e mulheres em caráter pessoal
(seja produzindo seus gestos, estabelecendo critérios no que alude às suas relações com
o tempo ou mesmo delimitando como cada um deles deve se alocar nos mais diversos
espaços de sequestro, tais quais as fábricas, os hospitais, as casernas, os asilos, etc.),
estaríamos a falar, neste contexto, em determinados agrupamentos humanos que, não
por simples obra do acaso, mas pelos desígnios assassinos do maquinário estatal,
viveriam entregues à si mesmos, sendo abandonados à morte. Assim, temos que:

O termo “biopolítica” designa a maneira pela qual o poder tende a se


transformar [...] a fim de governar não somente os indivíduos por meio de um
certo número de procedimentos disciplinares, mas o conjunto dos viventes
constituídos em população: a biopolítica – por meio dos biopoderes locais –
se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da
sexualidade, da natalidade, etc., na medida em que elas se tornaram
preocupações políticas (RAVEL, 2005, p.26).

Ora, mas se a Biopolítica se ocupa da vida, alcançando “...toda a superfície que


se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das
tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra
(FOUCAULT, 2005, p.302), de que modo a mortalidade de fatia significativa da
população escaparia à racionalidade do Estado? Como explicar os elevados indicadores
sociais referentes às epidemias infantis ou a desnutrição de indivíduos pertencentes à
esta mesma faixa etária em dimensões mundiais? A estes e outros paradoxos de
natureza semelhantes, Foucault encontrará uma resposta pontual. Na realidade, ao invés
de fugirem do mapeamento biopolítico, os índices de letalidade – nesse caso, de
crianças e recém-nascidos – são minimamente calculados e aceitáveis (dentro de uma
série de percentuais convencionais), desde que não comprometam a estabilidade de todo
o corpus social. E, baseando-se em que fatores, decide-se quais serão os grupos que
terão direito à vida, contrariamente àqueles que estarão fadados ao extermínio?
Descreve Foucault: “A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida
numa sociedade de normalização (FOUCAULT, 2005, p.306). Doravante, o conceito de
raça adquire uma conotação absolutamente outra, que será atravessada, de ponta a
ponta, pelo discurso científico:
Com efeito, que é o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse
domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que
deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o
aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a
qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como
inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo biológico
de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da
população uns grupos em relação aos outros (FOUCAULT, 2005, p.304).

Em razão desta cisão, surgirá uma disposição verticalizada, piramidal, onde


raças menores ou sub-raças – o povo cigano é uma clara amostra disto, posto que sobre
ele, há séculos, pairam estereótipos demeritórios, tal como episódios históricos de
tortura, perseguição étnica e expulsões territoriais 4 – ocuparão uma posição de
inferioridade quanto à outras, sendo passíveis de eliminação, movimento visto de forma
igualmente nítida mediante ao massacre dos judeus no transcorrer da Segunda Guerra
Mundial.
Todavia, isso não significa que o racismo tenha sido uma invenção exclusiva
desta época. Voltando-nos à Grécia Antiga – à Atenas do período clássico, em especial
– não se constituirá nenhuma tarefa árdua encontrarmos menções de rebaixamento ou de
plena negação ontológica àqueles que permaneciam alheios à língua e à cultura locais,
os ditos bárbaros, o que levará a filósofa Bárbara Cassin a identificar “...um duplo
problema: o racismo dos gregos e a relação entre racismo e democracia” (CASSIN,
1993, p.107).
A principal desconformidade que perpassa esta modalidade de racismo – se é
que se faz admissível considerarmos as práticas segregativas ocorridas na pólis
ateniense nestes termos – e aquela considerada por Foucault, oriunda da Era Industrial,
faz jus, pois, ao seu leitmotiv: se no primeiro momento o fundamento de discriminação
estava atrelado ao perfeito funcionamento político da cidade-estado grega (sendo os
estrangeiros considerados inaptos ao exercício das funções governamentais, ao direito
público de utilização da palavra, ao voto e à própria tarefa filosófica do pensamento), o
racismo contemporâneo segue outros rumos, a saber:

[...] é ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça,


a eliminação das raças e a purificação da raça para exercer seu poder
soberano [...] os Estados mais assassinos são, ao mesmo tempo, forçosamente
os mais racistas [...] Não há Estado mais disciplinar, claro, do que o regime
nazista; tampouco há Estado onde as regulamentações biológicas sejam
adotadas de maneira mais densa e mais insistente (FOUCAULT, 2005,
p.309).

4
Cf. MARTINEZ, Nicole. Os Ciganos. Tradução de Josette Gian. Campinas: Papirus, 1989. 130 p.
Em suma, o racismo moderno é antes de tudo uma política expansionista e
disciplinarizadora de morte, levada à termo historicamente pelo nazifascismo. A
primazia do Estado alemão nacional-socialista deu-se à base dos campos de trabalhos
forçados e de extermínio, característica presente, em diferentes contornos, mas, em
análogo grau de violência, nos Estados soviéticos 5. Capitalistas ou Socialistas, os
Estados guardam entre si, no parecer foucaultiano, mais afinidades do que dissensões:
são irmãos gerados no mesmo ventre, quem sabe, apartados na infância.
Se os russos não foram responsáveis diretos pela quase completa varredura
global de um grupo étnico particular, verificaremos em muitas das políticas internas da
antiga URSS um racismo metamorfoseado, do tipo evolucionista, de poderio destrutivo
similar às técnicas empregadas pela medicina nazista em suas experimentações
eugenistas. Antagônicos em divisas oficiais, o modus operandi dos expostos Estados
declarados publicamente como inimigos universais – tenhamos em vista o advento da
Guerra Fria – acabariam, caso os critérios de aproximação atinentes às trágicas
consequências de suas atividades de aniquilamento às minorias fossem colocados lado a
lado, por se entrecruzar. Em ambas as ocasiões, o que se vislumbra no horizonte de
ataque é o elemento outro, o estranho, o protótipo a ser arrasado, o perigo planetário
que supostamente colocaria em risco iminente o domínio político e econômico das
respectivas nações:

A ideia, em suma, de que a sociedade ou o Estado, ou o que deve substituir o


Estado, tem essencialmente a função de incumbir-se da vida, de organizá-la,
de multiplicá-la, de compensar suas eventualidades, de percorrer e delimitar
suas chances e possibilidades biológicas, parece-me que isso foi retomado tal
qual pelo socialismo [...] E é assim que, inevitavelmente, vocês vão encontrar
o racismo – não o racismo propriamente étnico, mas o racismo de tipo
evolucionista, o racismo biológico – funcionando plenamente nos Estados
socialistas (tipo União Soviética), a propósito dos doentes mentais, dos
criminosos, dos adversários políticos, etc. (FOUCAULT, 2005, p.313).

De Treblinka às Gulags, a utilização de aparatos de higienização social voltados


à preservação da pureza da raça ariana ou à eliminação de religiosos opositores à
Revolução Bolchevique foi um ferramental biopolítico disseminado em larga escala
pelos Estados que espraiaram a economia de guerra por todas as suas engrenagens,
intentando de tal modo promover a normalização do corpo populacional. E se,

5
Sobre este tema, cf. também: MERLEAU-PONTY, Maurice. Humanismo e terror: ensaios sobre o
problema comunista. Tradução de Naume Ladosky. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro, 1968. 183 p.
frequentemente, associamos a morte às investidas afirmativas dos braços armados do
Estado (exércitos, polícias, etc.), Foucault nos alertará de que, para além delas, há
muitos outros meios de suscitá-la. Alguns, inclusive, desprovidos das marcas de sangue
das vítimas, não se dando através da ação, mas, ao contrário, pela proposital inação
estatal: “[...] por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também
tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para
alguns o risco ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.”
(FOUCAULT, 2005, p.306).
Nesta direção, no escrito O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha –
publicado no ano de 1998, integrante do projeto Homo Sacer6 – o teórico italiano
Giorgio Agamben, trilhando as pistas deixadas por Foucault, irá aprofundar as análises
realizadas pelo autor de Vigiar e Punir (1975) e trazer um ponto de vista diferenciado
envolvendo o problema da Biopolítica. Tomando os campos de concentração por objeto
de ponderação, Agamben apresentará aquilo que podemos qualificar como uma terceira
via – não destituindo, por certo, as anteriores – em alusão aos supracitados poderes
monárquicos e aos modos mortíferos de intervenção dos Estados de nossos tempos.
Do portão de acesso às cercas eletrificadas que estabeleciam seus limites
territoriais, a quadratura arquitetônica de um campo fora minuciosamente esquadrinhada
para que nenhuma particularidade fugisse à lógica usinar de produção de corpos ali
difundida. O grau de racionalidade que permeava cada instrumento do imenso sistema-
morte que vitimou, em números aproximados, 6 milhões de seres humanos, passava
pela rigorosa aplicação dos saberes adquiridos nos âmbitos da psicologia, da física, da
química e do aparelho médico, resultando em meios cada vez mais eficazes –
notadamente, sob o viés logístico e operacional – de destruição em massa.
Agamben, que ao longo do acenado texto dialoga em vias diretas com as
produções do escritor italiano Primo Levi7 – uma das testemunhas oculares dos horrores
produzidos pelo regime nazista, que acabaria por cometer o suicídio décadas após ter
abandonado Auschwitz-Birkenau – trará à luz, porém, uma estranha personagem, um
habitante de gênero único, uma genuína classe de espectros, capaz de ser concebida,
excepcionalmente, nas condições dentro das quais a rotina dos prisioneiros em questão
se dava: referimo-nos ao muçulmano (der Muselmann). Diremos, perante os
testemunhos apresentados por Agamben, que o mulçumano é alguém que experimentou

6
Compilado de 9 livros publicados por Agamben entre os anos de 1995 e 2014.
7
Cf. LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução de Luigi Dei. São Paulo: Rocco, 2013. 176 p.
a morte, mas permaneceu com a posse de seu corpo, perdendo – tão extremo era o nível
de embrutecimento pelo qual encontrava-se consumido – qualquer traço que pudesse
aproximá-lo minimamente da decência e por que não, da vergonha humana.
Errante, desvalido, o muçulmano era motivo de rechaço mesmo entre os
internos, sofrendo espancamentos constantes e humilhações de toda ordem sem
conseguir manifestar o mais insignificante ato de resistência. Vale frisar, que embora o
termo aludido esteja entrepassado de significações difamatórias, ele não está ligado
unicamente aos fiéis do Islã, mas a um paradigma de cunho ontológico-político
desdobrado a quaisquer credos e etnias. Por isso, “o mulçumano penetrou em uma
região do humano – pois, negar-lhe simplesmente a humanidade significaria aceitar o
veredicto das SS [...] onde, dignidade e respeito de si não são de nenhuma utilidade
(AGAMBEN, 2008, pp.70-71). Acompanhemos, a declaração pronunciada pelo
sobrevivente Wlodzimierz Borkowski:

Já havia provado o pressentimento deste estado. Na cela, havia conhecido a


sensação da vida que se ia: todas as coisas terrenas não tinham mais
importância. As funções corpóreas definhavam. Até a fome me atormentava
menos. Sentia uma estranha doçura, porém não tinha mais a força de me
levantar do colchão de palha e, se o conseguia fazer, para ir à latrina, tinha
que me apoiar nas paredes... (AGAMBEN, 2008, p.166)8.

Imerso num estágio onde nem a fome e nem a dor eram capazes de violentá-lo
expressivamente, Borkowski indica-nos que a morte nos campos adquiria muitas
roupagens, não se restringindo tão-só às câmaras de gás e execuções sumárias. A
gratuita perambulação, o nomadismo depauperado, desprovido de sinais de esperança,
que equiparava o mulçumano à um cão vagabundo (AGAMBEN, 2008, p.169), explicita
como um vivente pode ser reduzido às cinzas e ainda assim prosseguir existindo.
Em concordância com Agamben, chamaremos esta categoria de morte de
sobrevivência. É nesse sentido, que a leitura agambiana empreende um passo adiante
aos comentários de Foucault quando o assunto reporta-se à Biopolítica. Na perspectiva
antecedente, tínhamos um poder monacal que fazia morrer e deixava viver, ao que se
sucedeu o fazer viver e deixar morrer – com o estímulo de políticas de incentivo à
natalidade, mapeamentos da mortalidade populacional (Biorregulação) e ao controle
endêmico – dos órgãos estatais. Agamben não desvia-se demasiado disto, mas assinala
uma passagem que necessita de propriedade interpretativa diferenciada para olharmos

8
Mantivemos a grafia da respectiva referência em itálico, segundo citada pelo autor.
ao que se passara no século XX e nos aproximarmos da apreciação mbembeniana em
relação à Necropolítica com maior pertinência:

À luz das considerações precedentes [...] insinua-se uma terceira [...] já não
fazer morrer, nem fazer viver, mas fazer sobreviver. Nem a vida nem a
morte, mas a produção de uma sobrevivência modulável e virtualmente
infinita constitui a tarefa decisiva do biopoder em nosso tempo. Trata-se, no
homem, de separar cada vez a vida orgânica da vida animal, o não-humano
do humano, o muçulmano da testemunha, a vida vegetal mantida em
funcionamento mediante as técnicas de reanimação da vida consciente, até
alcançar um ponto-limite que, assim como as fronteiras da geopolítica, é
essencialmente móvel e se desloca segundo o progresso das tecnologias
científicas e políticas (AGAMBEN, 2008, pp.155-156).

Eis o que Agamben nomeia de Estado de Exceção: uma anomalia jurídica que,
sob justificavas variadas, converteu-se em status quo definitivo. Tomando qualquer
constituição de um dito Estado Democrático em mãos, iremos notar que os direitos
fundamentais de todos os cidadãos às condições básicas de saúde, trabalho, moradia,
segurança e educação – além disso, à alimentação – aparecem previstos logo em seus
primeiros incisos. Ou seja, o asseguramento de tais garantias não dependeria, em caráter
de possibilidade, da junção de uma série favorável de fatores, tampouco, da
benevolência deste ou daquele departamento governamental. Antes, trata-se de um
dever institucional a ser cumprido. O que sucede na prática, inversamente, indica uma
realidade antagônica, e não coloca – dirá Agamben – a negligência estatal na instância
do imponderável: a supressão de centenas e milhares de vidas humanas periodicamente
compõe parte imprescindível das políticas públicas vigentes nas ordens do dia:

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a


instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que
permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de
categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não
integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um
estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado
no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados
contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos (AGAMBEN, 2004,
p.13).

Vidas nuas, sujeitos sacrificáveis, matáveis. A proposital criação de ameaças


hipotéticas e de arquétipos atemorizantes que devem ser combatidos em nome da
segurança pública, do bem-estar das famílias tradicionais, acabam por servir como
pressuposto para que a truculência do Estado não seja economizada. Não
ocasionalmente, tendo sido incutido o medo e a insegurança nas populações urbanas, a
indústria cinematográfica absorve bilhões de dólares e euros anuais com seus super-
heróis à serviço da tranquilidade dos moradores dos grandes centros. Entre youtubers e
formadores de opinião ligados ao armamentismo, o número de simpatizantes obtidos
nas redes sociais é crescente: propagam-se adversários a serem suplantados –
incriminados, de preferência, sem direito de defesa em idades mínimas, dado que a
redução da maioridade penal e a pena de morte são bandeiras defendidas com
veemência por estes discursos – sumariamente. Em entrevista concedida ao periódico El
País no ano de 2016, Agamben esclarece que a situação excêntrica das políticas de
arrasamento estatais – outrora aplicadas, sobremaneira, em casos de guerras declaradas
contra oponentes externos – acabaram por se tornar procedimentos de manejo cotidiano:

O estado de exceção era um dispositivo provisório para situações de perigo.


Hoje se tornou um instrumento normal de governo. Com a desculpa da
segurança diante do terrorismo, se generalizou. A exceção, por isso se
chamava estado de exceção, é norma. O terrorismo é inseparável do Estado
porque define o sistema de governo. Sem o terrorismo, o sistema atual de
governo não pode funcionar. Há dispositivos como o controle das impressões
digitais, ou o escaneamento que te fazem nos aeroportos, que foram adotados
para controlar os criminosos e agora são aplicados a todos. Da perspectiva do
Estado, o cidadão se transformou em um terrorista virtual. Do contrário, não
se explica o acúmulo de câmeras que nos vigiam em todas as partes. Somos
tratados como criminosos virtuais. O cidadão é um suspeito, numerado, como
em Auschwitz, onde cada deportado tinha seu número (AGAMBEN, 2016)9.

Em potência, todos os cidadãos passam a carregar o estigma de serem suspeitos.


Em ato, um sem-número deles experimenta as implicações das mais severas
condenações antes mesmo do nascimento. Estes, são os sobreviventes de uma guerra em
curso e permanente, da qual desconhecem os propósitos e sobretudo as causas. Partindo
deste pressuposto, Achille Mbembe publicará o ensaio Necropolítica (2003),
investigação pela qual, sob o prisma da apropriação e da inferiorização das raças, um
contorno ainda mais contundente às averiguações dos mencionados autores surge.
Conceitualmente, em um plano geral, Mbembe seguirá o percurso inaugurado pelas
noções de Biopolítica e Estado de Exceção para elaborar suas reflexões, entendendo,
não obstante, que já não é mais plausível problematizarmos as configurações sociais do
mundo atual sem reformulá-las:

Tentei demonstrar que o a noção de biopoder é insuficiente para dar conta


das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte. Além
disso, propus a noção de necropolítica e necropoder para dar conta das várias
9
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/19/cultura/1461061660_628743.html. Acesso
em 12 Jul. 2023.
maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são
dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar
“mundos de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais
vastas populações são submetidas a condições de vida que lhe conferem o
estatuto de “mortos vivos” (MBEMBE, 2020, p.71).

No muçulmano dos campos nazistas aos quais referia-se Agamben, suprimiu-se


sua anima, seu fôlego vital, o que levava tais homens e mulheres à beira da completa
despersonalização, à uma conjuntura que os avizinhava, ontologicamente falando, de
um estado de reificação. À título de diferenciação, o que ocorre entre estas figuras e
aqueles que padecem, nas palavras de Mbembe, do estatuto de mortos-vivos, é
justamente a condenação capital ser destinada à montantes humanos massivos por
premeditadas ações e omissões do Estado, pelos efeitos da desterritorialização, da
colonização apriorística de seus corpos e mentes, da abolição radical de suas tradições,
encarceradas desde o berço, não pelas teias de uma organização burocrática estatal de
exceção – como aconteceu, historicamente, com o povo judeu face aos crimes
cometidos pelo Terceiro Reich – mas, pelas fórmulas políticas de colonização há muito
tornadas regras.
Em outro empreendimento, a Crítica da Razão Negra (2013), Mbembe,
delineando uma visceral ligação entre o capitalismo e o mote racial, já na introdução do
livro – nomeada de O Devir-Negro do Mundo, em aceno ao pensamento de Gilles
Deleuze10 – denuncia as decorrências de uma nefasta invenção europeia que ainda
encabeça os projetos epistemológicos e governamentais do Ocidente: a ficção do negro
e da raça. “A que se deve então esse delírio e quais as suas manifestações mais
elementares? Primeiro, deve-se ao fato de o negro ser este [...] que vemos quando nada
se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender”
(MBEMBE, 2018, p.12), lemos. As populações negras, baixo a invisibilidade à qual
foram relegadas, existirão como se jamais tivessem existido, servirão, sob inumeráveis
estereótipos linguísticos, para designar tudo aquilo que trás em si algo de precário,
clandestino e marginal. Na canção A Carne (2002), a cantora e compositora brasileira
Elza Soares

10
Cf. GILLES, Deleuze & GUATTARI, Félix. Mil Platôs 4 – capitalismo e esquizofrenia.
Tradução de Suely Rolnik. Editora 34, 1997. 170 p.

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