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Introdução
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Doutorando pelo PPGE (Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de São
Paulo – UMESP).
1. Soberania, Biopolítica, Racismo e Estado de Exceção:
Mbembe, leitor de Michel Foucault e Giorgio Agamben
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O verbo sulear, foi criado por Marcio D’Olne Campos e utilizado por Paulo Freire como uma bússola
que aponta para outras perspectivas epistemológicas e metodológicas que levariam ao pensamento
anticolonial e crítico. Uma forma de direcionar o conhecimento e pensamento para o Sul ao invés do
Norte, como tradicionalmente ocorre com o verbo nortear.
ainda mais ao nível do detalhe, observaremos que o direito do rei diante da vida só se
torna praticável dado lhe cabe, de forma irrestrita, o poder de matar:
É evidente, que o direito de espada não fora subtraído por completo das
constituições atuais, haja vista que em muitas jurisprudências – a exemplo da norte-
americana do Texas ou da Indonésia – a pena de morte conserva-se em pleno vigor.
Desta maneira, não restam dúvidas de que o Estado continua a dispor de mecanismos
afirmativos – isto é, positivos – de morte, nos padrões das cadeiras elétricas,
enforcamentos, apedrejamentos, decapitações, fuzilamentos e aplicações de injeções
letais, todos eles salvaguardados pela legitimidade dos códigos penais locais.
Destarte, faz-se possível dizer que o DNA de muitas estruturas estatais dos dias
de hoje ainda guardam, em sua essência, parcela considerável da genética dos antigos
modelos soberanos. Conforme prenunciamos, entretanto, Foucault constatará que uma
mudança fundamental se deu quanto ao alvo – ou, para sermos mais específicos, ao
campo de abrangência – do poder. Se em outrora o suplício público situava-se na esfera
individual, incidindo por meio de castigos disciplinadores aplicados sobre os corpos dos
desarranjados3, o que se verá, então, é o surgimento de uma modalidade de poder cujas
práticas se estenderão à espécie humana em sua totalidade. Disso, resultarão tecnologias
inovadoras de aparelhamento e regulação das massas, visando a manutenção do
equilíbrio global da população, ou seja, sua homeóstase, expressão retirada por Foucault
do léxico das Ciências Naturais. Notemos, que a fórmula relativa ao poder soberano
será, de acordo com a concepção foucaultiana, colocada às avessas:
E eu creio que [...] uma das mais maciças transformações do direito político
do século XIX constituiu, não digo exatamente em substituir, mas em
completar esse velho direito de soberania – fazer morrer ou deixar viver –
com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo,
modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente
inverso: poder de “fazer” viver e de ‘deixar” morrer. O direito de soberania é,
portanto, o de fazer morrer ou de deixar viver. E depois, este novo direito é
que se instala: o direito de fazer viver e de deixar morrer (FOUCAULT,
2005, p.287).
3
Cf. FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã, e meu irmão: um
caso de parricídio do século XIX. Rio de Janeiro, RJ: Graal, 1977. 294 p. (Biblioteca de ciências sociais.
Saber e sociedade; 1).
Aqui, reside uma das problemáticas centrais que orientam a proposta deste
trabalho: considerando-se que os dispositivos biopolíticos não dizem respeito
exclusivamente à disciplinarização anatômica de homens e mulheres em caráter pessoal
(seja produzindo seus gestos, estabelecendo critérios no que alude às suas relações com
o tempo ou mesmo delimitando como cada um deles deve se alocar nos mais diversos
espaços de sequestro, tais quais as fábricas, os hospitais, as casernas, os asilos, etc.),
estaríamos a falar, neste contexto, em determinados agrupamentos humanos que, não
por simples obra do acaso, mas pelos desígnios assassinos do maquinário estatal,
viveriam entregues à si mesmos, sendo abandonados à morte. Assim, temos que:
4
Cf. MARTINEZ, Nicole. Os Ciganos. Tradução de Josette Gian. Campinas: Papirus, 1989. 130 p.
Em suma, o racismo moderno é antes de tudo uma política expansionista e
disciplinarizadora de morte, levada à termo historicamente pelo nazifascismo. A
primazia do Estado alemão nacional-socialista deu-se à base dos campos de trabalhos
forçados e de extermínio, característica presente, em diferentes contornos, mas, em
análogo grau de violência, nos Estados soviéticos 5. Capitalistas ou Socialistas, os
Estados guardam entre si, no parecer foucaultiano, mais afinidades do que dissensões:
são irmãos gerados no mesmo ventre, quem sabe, apartados na infância.
Se os russos não foram responsáveis diretos pela quase completa varredura
global de um grupo étnico particular, verificaremos em muitas das políticas internas da
antiga URSS um racismo metamorfoseado, do tipo evolucionista, de poderio destrutivo
similar às técnicas empregadas pela medicina nazista em suas experimentações
eugenistas. Antagônicos em divisas oficiais, o modus operandi dos expostos Estados
declarados publicamente como inimigos universais – tenhamos em vista o advento da
Guerra Fria – acabariam, caso os critérios de aproximação atinentes às trágicas
consequências de suas atividades de aniquilamento às minorias fossem colocados lado a
lado, por se entrecruzar. Em ambas as ocasiões, o que se vislumbra no horizonte de
ataque é o elemento outro, o estranho, o protótipo a ser arrasado, o perigo planetário
que supostamente colocaria em risco iminente o domínio político e econômico das
respectivas nações:
5
Sobre este tema, cf. também: MERLEAU-PONTY, Maurice. Humanismo e terror: ensaios sobre o
problema comunista. Tradução de Naume Ladosky. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro, 1968. 183 p.
frequentemente, associamos a morte às investidas afirmativas dos braços armados do
Estado (exércitos, polícias, etc.), Foucault nos alertará de que, para além delas, há
muitos outros meios de suscitá-la. Alguns, inclusive, desprovidos das marcas de sangue
das vítimas, não se dando através da ação, mas, ao contrário, pela proposital inação
estatal: “[...] por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também
tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para
alguns o risco ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.”
(FOUCAULT, 2005, p.306).
Nesta direção, no escrito O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha –
publicado no ano de 1998, integrante do projeto Homo Sacer6 – o teórico italiano
Giorgio Agamben, trilhando as pistas deixadas por Foucault, irá aprofundar as análises
realizadas pelo autor de Vigiar e Punir (1975) e trazer um ponto de vista diferenciado
envolvendo o problema da Biopolítica. Tomando os campos de concentração por objeto
de ponderação, Agamben apresentará aquilo que podemos qualificar como uma terceira
via – não destituindo, por certo, as anteriores – em alusão aos supracitados poderes
monárquicos e aos modos mortíferos de intervenção dos Estados de nossos tempos.
Do portão de acesso às cercas eletrificadas que estabeleciam seus limites
territoriais, a quadratura arquitetônica de um campo fora minuciosamente esquadrinhada
para que nenhuma particularidade fugisse à lógica usinar de produção de corpos ali
difundida. O grau de racionalidade que permeava cada instrumento do imenso sistema-
morte que vitimou, em números aproximados, 6 milhões de seres humanos, passava
pela rigorosa aplicação dos saberes adquiridos nos âmbitos da psicologia, da física, da
química e do aparelho médico, resultando em meios cada vez mais eficazes –
notadamente, sob o viés logístico e operacional – de destruição em massa.
Agamben, que ao longo do acenado texto dialoga em vias diretas com as
produções do escritor italiano Primo Levi7 – uma das testemunhas oculares dos horrores
produzidos pelo regime nazista, que acabaria por cometer o suicídio décadas após ter
abandonado Auschwitz-Birkenau – trará à luz, porém, uma estranha personagem, um
habitante de gênero único, uma genuína classe de espectros, capaz de ser concebida,
excepcionalmente, nas condições dentro das quais a rotina dos prisioneiros em questão
se dava: referimo-nos ao muçulmano (der Muselmann). Diremos, perante os
testemunhos apresentados por Agamben, que o mulçumano é alguém que experimentou
6
Compilado de 9 livros publicados por Agamben entre os anos de 1995 e 2014.
7
Cf. LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução de Luigi Dei. São Paulo: Rocco, 2013. 176 p.
a morte, mas permaneceu com a posse de seu corpo, perdendo – tão extremo era o nível
de embrutecimento pelo qual encontrava-se consumido – qualquer traço que pudesse
aproximá-lo minimamente da decência e por que não, da vergonha humana.
Errante, desvalido, o muçulmano era motivo de rechaço mesmo entre os
internos, sofrendo espancamentos constantes e humilhações de toda ordem sem
conseguir manifestar o mais insignificante ato de resistência. Vale frisar, que embora o
termo aludido esteja entrepassado de significações difamatórias, ele não está ligado
unicamente aos fiéis do Islã, mas a um paradigma de cunho ontológico-político
desdobrado a quaisquer credos e etnias. Por isso, “o mulçumano penetrou em uma
região do humano – pois, negar-lhe simplesmente a humanidade significaria aceitar o
veredicto das SS [...] onde, dignidade e respeito de si não são de nenhuma utilidade
(AGAMBEN, 2008, pp.70-71). Acompanhemos, a declaração pronunciada pelo
sobrevivente Wlodzimierz Borkowski:
Imerso num estágio onde nem a fome e nem a dor eram capazes de violentá-lo
expressivamente, Borkowski indica-nos que a morte nos campos adquiria muitas
roupagens, não se restringindo tão-só às câmaras de gás e execuções sumárias. A
gratuita perambulação, o nomadismo depauperado, desprovido de sinais de esperança,
que equiparava o mulçumano à um cão vagabundo (AGAMBEN, 2008, p.169), explicita
como um vivente pode ser reduzido às cinzas e ainda assim prosseguir existindo.
Em concordância com Agamben, chamaremos esta categoria de morte de
sobrevivência. É nesse sentido, que a leitura agambiana empreende um passo adiante
aos comentários de Foucault quando o assunto reporta-se à Biopolítica. Na perspectiva
antecedente, tínhamos um poder monacal que fazia morrer e deixava viver, ao que se
sucedeu o fazer viver e deixar morrer – com o estímulo de políticas de incentivo à
natalidade, mapeamentos da mortalidade populacional (Biorregulação) e ao controle
endêmico – dos órgãos estatais. Agamben não desvia-se demasiado disto, mas assinala
uma passagem que necessita de propriedade interpretativa diferenciada para olharmos
8
Mantivemos a grafia da respectiva referência em itálico, segundo citada pelo autor.
ao que se passara no século XX e nos aproximarmos da apreciação mbembeniana em
relação à Necropolítica com maior pertinência:
À luz das considerações precedentes [...] insinua-se uma terceira [...] já não
fazer morrer, nem fazer viver, mas fazer sobreviver. Nem a vida nem a
morte, mas a produção de uma sobrevivência modulável e virtualmente
infinita constitui a tarefa decisiva do biopoder em nosso tempo. Trata-se, no
homem, de separar cada vez a vida orgânica da vida animal, o não-humano
do humano, o muçulmano da testemunha, a vida vegetal mantida em
funcionamento mediante as técnicas de reanimação da vida consciente, até
alcançar um ponto-limite que, assim como as fronteiras da geopolítica, é
essencialmente móvel e se desloca segundo o progresso das tecnologias
científicas e políticas (AGAMBEN, 2008, pp.155-156).
Eis o que Agamben nomeia de Estado de Exceção: uma anomalia jurídica que,
sob justificavas variadas, converteu-se em status quo definitivo. Tomando qualquer
constituição de um dito Estado Democrático em mãos, iremos notar que os direitos
fundamentais de todos os cidadãos às condições básicas de saúde, trabalho, moradia,
segurança e educação – além disso, à alimentação – aparecem previstos logo em seus
primeiros incisos. Ou seja, o asseguramento de tais garantias não dependeria, em caráter
de possibilidade, da junção de uma série favorável de fatores, tampouco, da
benevolência deste ou daquele departamento governamental. Antes, trata-se de um
dever institucional a ser cumprido. O que sucede na prática, inversamente, indica uma
realidade antagônica, e não coloca – dirá Agamben – a negligência estatal na instância
do imponderável: a supressão de centenas e milhares de vidas humanas periodicamente
compõe parte imprescindível das políticas públicas vigentes nas ordens do dia:
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Cf. GILLES, Deleuze & GUATTARI, Félix. Mil Platôs 4 – capitalismo e esquizofrenia.
Tradução de Suely Rolnik. Editora 34, 1997. 170 p.