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DESSA LEI?
Raquel Alves Barreto1
RESUMO: O referido artigo tem, como ponto central, analisar como a criminalização do
aborto está diretamente relacionada com a necropolítica, evidenciando a norma penal não como
um empecilho para a prática abortiva, mas como um mecanismo capaz de estabelecer um corpo
punível e suscetível à morte. O objetivo da pesquisa é demonstrar de que modo as condições
sociais de classe e raça nas quais as mulheres estão inseridas impactam diretamente na
distribuição dos riscos que o tipo penal produz. Os resultados demonstram que mulheres negras
e de baixa renda são as que mais sentem o impacto da atuação clandestina. Desse modo, o
necropoder, além de expô-las a morte ou multiplicar seus riscos de ocorrência, atua dentro da
perspectiva de um sistema de justiça penal seletivo que se manifesta através do racismo e da
vulnerabilidade dessas mulheres. Enquanto a norma continuar em descompasso com a
realidade, processos de morte e sujeição continuarão sendo legitimados.
Palavras-chave: NECROPOLÍTICA; ABORTO; RACISMO; CRIMINALIZAÇÃO;
SISTEMA PENAL;
ABSTRACT: The present essay has, as leading proposition, to analyse how abortion
criminalization is directly related with the issue of necropolitics, evidencing the criminal norm
not as an abortion practice obstacle, but most like a tool powered to standardize a dead-likely
punishable body. The purpose is to demonstrate how women’s inserted race and class social
conditions make immediate impact at risks distribution within criminal norm prescription. As
results shows, low-income black women are most sensitive and awareness to abortion backdoor
practice. Hence, the “necropower”, besides exposes they to death or multiply their chance to it,
operate within a selective criminal system of Justice that expressed through racism and these
women vulnerability. In still this norm persists in realness unconformity, death operation and
it’s liability still being legitimazed.
Keywords: NECROPOLITICS; ABORTION; RACISM; CRIMINALIZATION; PENAL
SYSTEM
1 Graduanda em Direito pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão. E-mail para contato:
rraquelbarreto@gmail.com
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1 INTRODUÇÃO
Prosseguindo por esse raciocínio, esse “velho poder soberano de matar”, chamado
de biopoder, funciona através da divisão da sociedade em grupos e subgrupos, perpassados pelo
que se denominou “racismo” (FOUCAULT, 1999, p.304-310).
O termo tão familiar representa o mecanismo fundamental do poder nos Estados
modernos. Como acima dito, o biopoder funciona através da fragmentação da espécie humana;
pois, o racismo faz surgir grupos diversos classificados como “raças” e elencados de maneira
hierárquica, os distinguindo e qualificando como boas/ruins, superiores/inferiores
(FOUCAULT, 1999, p. 304).
Achille Mbembe (2018, p.27-30) exemplifica o racismo na escravidão como uma
das suas primeiras manifestações enquanto mecanismo da política de morte. O escravo, como
instrumento de trabalho, somente era mantido vivo por necessidade, mas mergulhado em um
mundo de crueldade e controle. O poder sobre a vida do escravo atingiu tamanho aspecto que
poderia ser dito que ela era como propriedade do seu senhor (MBEMBE, 2018, p. 29).
É possível que se diga, portanto, que o racismo é conditio sine qual non para que se
torne aceitável o exercício da necropolítica; é uma manobra para que sejam escolhidos aqueles
que devem morrer e os que podem viver, possibilitando o chamado “domínio biológico”
(FOUCAULT, 1999, p.305).
Os dados sobre aborto não são precisos como de fato se gostaria para mensurar
melhor o problema. Pesquisar sobre o tema já impõe grandes desafios mesmo onde sua prática
é legal, e ele somente se agrava quando em um contexto de ilegalidade, tendo em vista a
clandestinidade que ocasiona procedimentos realizados em condições inseguras, por indivíduos
não qualificados ou em condições insalubres (MENEZES, AQUINO, FONSECA,
DOMINGUES, 2020, p.3).
Com efeito, mesmo com tamanha complexidade a temática, os estudos são capazes
de dimensionar tendências quanto a prática abortiva. É nesse aspecto que essa análise se refere:
A existência de predominâncias para com um biotipo que é destinado à morte.
Isso significa dizer, e conforme irá se constatar, que questões como raça e classe
fazem as mulheres em situações de abortamento seguir um caminho de maior ou menor dor,
mais ou menos morte (CISNE, CASTRO, OLIVEIRA, 2018, p. 453).
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Por esses indícios, Simone de Beauvoir (1967, p.251), apresenta o aborto como um
“crime de classe”. Quando detém de um estrutura bem formada, em uma situação social
avantajada, na qual ela pode se despir melhor dos preconceitos e receber os cuidados adequados,
o momento difícil acontece de maneira bem mais rápida e, de fato, suas consequências acabam
logo depois de findo o procedimento.
Situação inversa quando observada a mulher de classe não abastada, ou, como
chamou Simone “fora dos padrões burgueses”, qual comete o ato criminoso sozinha ou apela
por ajuda, qualquer que seja ela (BEAUVOIR, 1967, p. 254).
Surgem com isso, as práticas abortivas mais desagradáveis possíveis, não existindo
o acesso a clínicas, tampouco à cuidados mais humanos ou anestésicos – surgem as figuras do
gancho, da agulha de tricô, do soro introduzido ao corpo feminino, remédios oferecidos por
amigas, chás, autoagressão ou, por fim, o infanticídio no puerpério (BEAUVOIR, 1967, p. 254).
Como fica demonstrado, a necessidade de recorrer a clandestinidade afeta
profundamente a dignidade humana, princípio, este, constitucionalmente tutelado.
O próprio Ministério da Saúde, por meio da Norma técnica de Atenção Humanizada
ao Abortamento, atesta que:
Vulnerabilidades como desigualdade de gênero, normas culturais e religiosas,
desigualdade de acesso à educação, e múltiplas dimensões da pobreza – com a falta
de recursos econômicos e de alternativas, a dificuldade de acesso à informação e
direitos humanos, a insalubridade, dentre outros – fazem com que o abortamento
inseguro atinja e sacrifique, de forma mais devastadora, mulheres de comunidades
pobres e marginalizadas (BRASIL, 2011)
Ignorar esses fatos é, em curtas palavras, aceitar a ocorrência da violenta sujeição e
morte dessas mulheres.
Suas condições de vida impossibilitam que vivam a maternidade, pois o desespero
por não ver seus filhos e filhas sob as mesmas condições desumanas, por vezes, prevalece,
mesmo que isso custe também suas próprias vidas (CISNE, CASTRO, OLIVEIRA, 2018, p.
454).
Simone de Beauvoir (1967, p. 250) explora quão perverso acaba sendo a carregada
de um filho do qual não se tem condições de criar ou a carregada de um filho sem o seu real
desejo; ao passo que, os sujeitos que condenam essa mãe, não mensuram as condições
posteriores da existência do filho que se gera. Essa imposição, ela diz, “leva a deitar no mundo
crianças doentias”, que não conseguem ser sustentadas pelos pais (BEAUVOIR, 1967, p. 249).
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circunstâncias de vida em que ocorrera a gravidez não lhe permitiria ter um filho (PEDROSA,
GARCIA, 2000, p. 55).
Há muito, Simone de Beauvoir (1967, p. 254) trouxe que:
É difícil imaginar abandono mais horrível do que esse em que a ameaça da morte se
confunde com a do crime e da vergonha [...] O fato de ser a operação clandestina e
criminosa, multiplica-lhe os perigos e dá-lhe um caráter abjeto e angustiante. Dor
doença, morte assumem um aspecto de castigo: sabe-se que distância separa o
sofrimento da tortura, o acidente da punição; através dos riscos que assume, a mulher
apreende-se como culpada- é essa interpenetração da dor e do erro que se apresenta
como singularmente penosa.
Portanto, criminalizar uma prática corriqueira, que já traz sua própria penalidade e,
como se viu, é ineficaz - somente levando mais mulheres à clandestinidade e dialética entre
vida e morte, é compactuar com uma política de crueldade.
violência que moldam a vida social contemporânea”. É, então, uma parte estruturante do próprio
Estado, algo profundo.
Se as instituições materializam o racismo dentro da ordem social, não há como fugir
do fato de que as normas de Direito, porventura, também são racistas; se não na sua composição,
que seja na sua prática.
Foucault (1999, p. 29) traz que,
somos igualmente submetidos a verdade, no sentido de que a verdade e a norma; é o
discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio propulsa
efeitos de poder. Afinal de contas, somos julgados, condenados, classificados,
obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira
de morrer, em função de discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos
de poder. Portanto: regras de direito, mecanismos de poder, efeitos de verdade.
Ele cuida na sua abordagem dos chamados “efeitos específicos de poder” que, como
se vislumbrou, são trazidos pela própria norma detentora da verdade. É expressamente o que se
demonstra com o problema da criminalização do aborto. A imposição dessa verdade, na prática,
representa o assujeitamento.
Será nesse espaço não alcançado pela norma que o necropoder é revelado. O
Direito, dessa vez, não representa um limite para o poder estatal, mas um fundamento retórico
para o assassinato (ALMEIDA, 2018, p. 92).
Seria como dizer, no caso tratado por esse estudo, que a criminalização do aborto é
argumento para ser dito quanto ao abandono dessas mulheres para o morte. Lembrando que, a
morte estende seus limites não somente como a morte física e direta, mas a exposição para com
ela ou multiplicação de seus riscos, bem como a morte política, podendo ser interpretada
também como morte social.
Esse sofrimento exprime a perda de direitos sobre seu próprio corpo, e representa o
direito que o biopoder entrega ao Estado para tomar a vida de outrem (MBEMBE, 2018, p. 33).
Nesse cenário, a “criminosa”, detentora do “corpo punível”, enfrenta uma única
possibilidade – sua sujeição à morte, quer seja nos moldes acima tratados, quer seja pela ótica
de um possível encarceramento.
O racismo, nesses moldes, permite a conformação da sociedade quanto a extrema
violência contra o corpo negro (ALMEIDA, 2018, p. 94). Logo, o pensamento social vai sendo
moldado para que se saiba classificar exatamente aquela mulher: Uma criminosa que tem que
pagar pelo que fez. Assim, não podendo uma vida ser cessada, é permitido o sacrifício de uma
mãe (BEAUVOIR, 1967, p. 250).
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Com efeito, a opção legislativa em tratar desse problema social como crime tem
suas justificativas:
[A] prisão é a solução punitiva para uma gama completa de problemas sociais que não
estão sendo tratados pelas instituições sociais que deveriam ajudar as pessoas na
conquista de uma vida satisfatória. Esta é a lógica do que tem sido chamado de farra
do aprisionamento: em vez de construírem moradias, jogam os sem-teto na cadeia.
Em vez de desenvolverem o sistema educacional, jogam ao analfabetos na cadeia.
Jogam na prisão os desempregados decorrentes da desindustrialização, da
globalização do capital e do desmantelamento do welfare state. Livre-se de todos eles.
Remova essas populações dispensáveis as sociedade. Seguindo essa lógica, as prisões
tornam-se uma maneira de dar sumiço nas pessoas com a falsa esperança de dar
sumiço nos problemas sociais latentes que elas representam (DAVIS, 2009, p.47-48).
Trata-se, pois, da tentativa em estancar “o sol com a peneira”. O Estado tem sido
incapaz de oferecer respostas para as desigualdades e seus problemas sociais decorrentes, logo,
não vê outra medida se não o “alívio” em escolher um outro culpado e penalizá-lo.
Em 2014 o Brasil possuía uma população prisional de 622.202. Sendo que, no que
diz respeito à relação de gênero, a população prisional era de 37.380 presas e, no período de
2000 a 2014, o aumento da população feminina foi de 567,4%, ao passo que, no mesmo período,
o crescimento da masculina foi de 220,20% - uma curva, portanto, ascendente de
encarceramento feminino (ALVES, 2017, p. 103).
Ao traçar o perfil de 14.810 presas só em 2014 em São Paulo, constatou-se que as
negras correspondiam a 67% do total (ALVES, 2017, p. 104). Assim, as interseções desses
eixos de vulnerabilidade – gênero e raça, afunilam o perfil daqueles que são postos em cárcere
como medida de contenção de problemas sociais.
Angela Davis (2009, p. 49), analisa que as práticas condenatórias que aconteceram
nas duas últimas décadas são responsáveis pelo grande número de pessoas atrás das grades, por
isso, pode-se dizer que a chamada indústria carcerária e o judiciário fazem parte de um mesmo
sistema: “lei, cumprimento das leis e punição”.
Em trabalho de campo desenvolvido, Rulian Emmerick (2007, p.154) analisou
os processos penais oriundos da prática de aborto no Estado do Rio de Janeiro. Nos processos
analisados, figurando como rés estavam predominantemente mulheres de baixa renda familiar,
negras ou pardas, com empregos precários, vítimas de violência em suas relações afetivas ou
sendo as únicas responsáveis pela reprodução.
Nos relatos, há predominância de mulheres negras denunciadas e processadas,
junto com a descrição de tratamentos desumanizados desde internações em hospitais
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decorrentes de complicação, até o trato policial. Como foi o caso de “J.A.C.”, negra, diarista,
solteira e desempregada: “J. recebeu ordem de prisão em flagrante no Hospital Juscelino
Kubitschek. Em seguida foi algemada na cama em que estava e permaneceu por uma semana
algemada e com escolta policial em um quarto [...]” (EMMERICK, 2007, p. 161).
Pelo exposto, evidencia-se que “J.A.C.” se enquadra perfeitamente no perfil das
selecionadas pelo Sistema Penal: é uma mulher negra e sem condições econômicas. Com tudo
isso, é possível dizer então que existe um poder simbólico envolta da criminalização do aborto,
ocasionando a chamada criminalização secundária (CALIL, 2014, p.17).
A referida criminalização secundária acontece quando vemos os efeitos penais na
prática, a punição exercida em concreto. Lívia Miranda Casseres (2018, p. 79) explica que ela
acontece quando realizada a efetiva decisão em selecionar dentre todas as mulheres que
praticam o aborto, aquelas que serão conduzidas ao sistema de justiça criminal.
A escolha legislativa pela tipificação reforça mecanismos que sujeitam mulheres
negras ao nível de subcidadania e alimenta a perpetuação do racismo. Nesse passo, raça e
sistema penal de confundem mutuamente (CASSERES, 2018, p. 82). Por isso, dissemos que o
necropoder é impulsionado pelo racismo e contribui com a composição dos corpos puníveis.
Dina Alves (2017, p. 109), quando analisou as condições penosas dentro de um
presídio paulista, bem como do crescente número de negras presas, definiu o ordenamento
jurídico brasileiro como uma “(re)atualização” da ordem escravocrata, pois tem no corpo da
mulher negra o seu principal alvo. Não é nada distante do que Achille Mbembe (2018, p.29)
escreveu quando falou sobre a escravidão que, em muitos aspectos, a vida do escravo era uma
forma de “morte-em-vida”.
É por todo esse arcabouço que, ao comparar a realidade com o disposto em lei,
percebemos não somente uma norma racista, mas que traduz o poder de morte trazido por
Foucault quando analisa a soberania (CASSERES, 2018. p. 81). O sistema penal é somente a
configuração última de todo um processo de imposições e violência sobre esses corpos
criminalizados.
Nesse ínterim, o Estado está deixando de cuidar dos seus sujeitos e passa a matar,
leia-se, deixar matar, pois são seus institutos que a ocasiona.
Tudo isso denota a urgência do aborto ser debatido em todos os seus aspectos, seja
pelo aspecto da liberdade ou da vida, pois, enquanto isso não acontece, a norma proibitiva
continuará funcionando como um mecanismo segregador, naturalizando a morte-em-vida
dessas mulheres. É por isso, pois, que se faz emergente uma mudança de paradigma.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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