Você está na página 1de 14

A NECROPOLÍTICA E A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO: QUAL O SUJEITO

DESSA LEI?
Raquel Alves Barreto1

RESUMO: O referido artigo tem, como ponto central, analisar como a criminalização do
aborto está diretamente relacionada com a necropolítica, evidenciando a norma penal não como
um empecilho para a prática abortiva, mas como um mecanismo capaz de estabelecer um corpo
punível e suscetível à morte. O objetivo da pesquisa é demonstrar de que modo as condições
sociais de classe e raça nas quais as mulheres estão inseridas impactam diretamente na
distribuição dos riscos que o tipo penal produz. Os resultados demonstram que mulheres negras
e de baixa renda são as que mais sentem o impacto da atuação clandestina. Desse modo, o
necropoder, além de expô-las a morte ou multiplicar seus riscos de ocorrência, atua dentro da
perspectiva de um sistema de justiça penal seletivo que se manifesta através do racismo e da
vulnerabilidade dessas mulheres. Enquanto a norma continuar em descompasso com a
realidade, processos de morte e sujeição continuarão sendo legitimados.
Palavras-chave: NECROPOLÍTICA; ABORTO; RACISMO; CRIMINALIZAÇÃO;
SISTEMA PENAL;

ABSTRACT: The present essay has, as leading proposition, to analyse how abortion
criminalization is directly related with the issue of necropolitics, evidencing the criminal norm
not as an abortion practice obstacle, but most like a tool powered to standardize a dead-likely
punishable body. The purpose is to demonstrate how women’s inserted race and class social
conditions make immediate impact at risks distribution within criminal norm prescription. As
results shows, low-income black women are most sensitive and awareness to abortion backdoor
practice. Hence, the “necropower”, besides exposes they to death or multiply their chance to it,
operate within a selective criminal system of Justice that expressed through racism and these
women vulnerability. In still this norm persists in realness unconformity, death operation and
it’s liability still being legitimazed.
Keywords: NECROPOLITICS; ABORTION; RACISM; CRIMINALIZATION; PENAL
SYSTEM

1 Graduanda em Direito pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão. E-mail para contato:
rraquelbarreto@gmail.com
2

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO 2 CONSIDERAÇÕES GERAIS ACERCA DA


NECROPOLÍTICA 3 A PRÁTICA DO ABORTO CRIMINALIZADO 4 O RACISMO
DO NECROPODER E OS CORPOS PUNÍVEIS 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS

1 INTRODUÇÃO

Conquanto o aborto seja disciplinado penalmente, esse é um tema que ainda


propulsiona profundas discussões. O debate acerca da sua descriminalização ou não ultrapassa
os limites meramente legais, perpassando sobre demais aspectos sociais, como os morais,
religiosos e políticos. Outrossim, com o advento das teorias feministas, o debate toma nova
forma, fazendo surgir argumentos principalmente no que concerne aos direitos reprodutivos e
sexuais das mulheres.
Em suma, no entanto, a fundamentação deve ser acompanhada por um recorte
interseccional, para modo de compreender que o assunto tem peso diverso para diferentes
mulheres. Com essa noção, é possível perceber seus aspectos discriminatórios e de dominação.
Esse trabalho, pois, tem o desígnio de analisar como a criminalização do aborto
impacta nas mulheres mais vulneráveis e como esse impacto está relacionado com a
necropolítica. Fornecendo, desse modo, subsídios para uma crítica referente ao tipo penal e sua
aplicabilidade prática.
Para tanto, faz-se necessária a análise do conceito de necropolítica e como ela se
manifesta, bem como demonstrar sua atuação como um poder de controle sobre a morte e
desumanização de mulheres específicas, as transformando em corpos puníveis. No exposto, é
demonstrada a ineficácia da legislação vigente em relação a constante prática clandestina e
perigosa. Sendo, ainda, apresentado como o racismo atua como elemento das instituições
modernas envolvidas e naturaliza seus processos violentos.

2 CONSIDERAÇÕES GERAIS ACERCA DA NECROPOLÍTICA

Achille Mbembe (2018, p.5-9) trata da necropolítica a partir de uma abordagem


acerca da soberania, da guerra e do biopoder. Em seus escritos, a soberania se manifesta a partir
da construção de normas por sujeitos livres e iguais escolhidos por uma coletividade. Nesse
3

passo, a política é definida como um projeto de autonomia e realização para os sujeitos; a


produção dessas normas seria a diferença para um estado de guerra.
Por outra forma, é como de fato se observa em um Estado Democrático de Direito,
no qual as normas construídas por representantes legitimam o poder soberano extraído de seu
verdadeiro titular, qual seja, o povo.
O problema, entretanto, é quando a soberania se manifesta sob a ótica da destruição
dos sujeitos, quando acontece “a instrumentalização generalizada da existência humana e a
destruição material de corpos humanos e populações”. Nessa leitura, quando a soberania e
guerra se confundem, ela se expressa através de um direito de matar, bem como a política como
um trabalho sobre a morte (MBEMBE, p.10-11).
Mas a guerra nesses novos moldes, não mais se traduz como um confronto bélico,
e sim como algo intrínseco nas relações sociais, sendo manifestada pelas relações de poder das
instituições existentes, como é o fato da própria lei e do direito (FOUCAULT, 1999, p. 10-11).
Segundo Mbembe (1999, p. 55), a própria política seria “a guerra continuada por outros meios”.
Seguindo os ensinamentos de Foucault (1999, p. 28-29), isso representa o “como
do poder”, isto é, o tratamento de seus mecanismos a partir de dois pontos de referência: As
regras de direito, tais quais o delimitam formalmente e, de outro modo, os efeitos de verdade
que ele reproduz. E é nesse aspecto que se concentra o eixo central de crítica do referido artigo.
Na análise feita sobre o aborto criminalizado, chama atenção o seu poder simbólico
como um mecanismo de controle sobre as mulheres dentro de um recorte econômico, social e
racial. Maria Fernanda de Mattos Calil (2014, p. 3) traz que a lei punitiva é incapaz de evitar a
redução da conduta típica, ao passo que tem como seu único mérito, a punição para com um
perfil determinado de mulher, as quais, como será demonstrado no mais da pesquisa, são tidas
como “corpos puníveis”.
Porquanto, o necropoder atua na clandestinidade; quando, separada da prática, uma
norma é imposta e tem como efeito a seleção das mulheres que podem viver e daquelas que
devem morrer.
Sobre isso, salienta Foucault que (1999, p.306):
É claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também
tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para
alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a
rejeição etc.
Trata-se, pois, da morte física ou a morte de toda e qualquer condição humana digna
que as envolve e as caracteriza como sujeito.
4

Prosseguindo por esse raciocínio, esse “velho poder soberano de matar”, chamado
de biopoder, funciona através da divisão da sociedade em grupos e subgrupos, perpassados pelo
que se denominou “racismo” (FOUCAULT, 1999, p.304-310).
O termo tão familiar representa o mecanismo fundamental do poder nos Estados
modernos. Como acima dito, o biopoder funciona através da fragmentação da espécie humana;
pois, o racismo faz surgir grupos diversos classificados como “raças” e elencados de maneira
hierárquica, os distinguindo e qualificando como boas/ruins, superiores/inferiores
(FOUCAULT, 1999, p. 304).
Achille Mbembe (2018, p.27-30) exemplifica o racismo na escravidão como uma
das suas primeiras manifestações enquanto mecanismo da política de morte. O escravo, como
instrumento de trabalho, somente era mantido vivo por necessidade, mas mergulhado em um
mundo de crueldade e controle. O poder sobre a vida do escravo atingiu tamanho aspecto que
poderia ser dito que ela era como propriedade do seu senhor (MBEMBE, 2018, p. 29).
É possível que se diga, portanto, que o racismo é conditio sine qual non para que se
torne aceitável o exercício da necropolítica; é uma manobra para que sejam escolhidos aqueles
que devem morrer e os que podem viver, possibilitando o chamado “domínio biológico”
(FOUCAULT, 1999, p.305).

3 A PRÁTICA DO ABORTO CRIMINALIZADO

Os dados sobre aborto não são precisos como de fato se gostaria para mensurar
melhor o problema. Pesquisar sobre o tema já impõe grandes desafios mesmo onde sua prática
é legal, e ele somente se agrava quando em um contexto de ilegalidade, tendo em vista a
clandestinidade que ocasiona procedimentos realizados em condições inseguras, por indivíduos
não qualificados ou em condições insalubres (MENEZES, AQUINO, FONSECA,
DOMINGUES, 2020, p.3).
Com efeito, mesmo com tamanha complexidade a temática, os estudos são capazes
de dimensionar tendências quanto a prática abortiva. É nesse aspecto que essa análise se refere:
A existência de predominâncias para com um biotipo que é destinado à morte.
Isso significa dizer, e conforme irá se constatar, que questões como raça e classe
fazem as mulheres em situações de abortamento seguir um caminho de maior ou menor dor,
mais ou menos morte (CISNE, CASTRO, OLIVEIRA, 2018, p. 453).
5

Neste seguimento, o aborto é amplamente praticado no Brasil, a despeito das leis


restritivas vigentes (MCCALLUM, MENEZES, REIS, 2016, p.38). Uma pesquisa de âmbito
nacional com mulheres alfabetizadas de áreas urbanas constatou que, em 2016, aos 40 anos de
idade, quase uma em cada cinco mulheres já fez aborto (DINIZ, MEDEIROS, MADEIRO,
2016, p. 3).
Os índices abortivos há nível nacional faz com que ele esteja entre as quatro
principais causas de mortalidade materna no país. Ademais, os dados referentes à hospitalização
no Sistema Único de Saúde (SUS) mostram que a curetagem pós-aborto – feito para completar
o esvaziamento uterino – representa um dos procedimentos obstétricos mais realizados
(MCCALLUM, MENEZES, REIS, 2016, p.39)
Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto feita em 2016, no ano de 2015 ocorreram
cerca de meio milhão de abortos. Considerando que grande parte dos abortos é ilegal e, portanto,
feito fora das condições plenas de atenção à saúde. Essas magnitudes colocam o aborto com um
dos maiores problemas de saúde pública do Brasil (DINIZ, MEDEIROS, MADEIRO, 2016, p.
7).
Em outra pesquisa referente a experiência hospitalar de mulheres que sofreram
abortos provocados e espontâneos, nota-se uma estrutura de atendimento desumano e cruel, que
fazem parte um contexto social e simbólico de estigma que impacta na própria dinâmica
cotidiana nessas maternidades e a violência obstétrica institucional (MCCALLUM,
MENEZES, REIS, 2016, p.39).
Isso, por si só, já configura mais de uma forma de violência, ainda mais quando
pensado que quando a mulher chega a uma maternidade pública com aborto induzido, ela já
passou por uma série de experiências que a testaram tanto física quanto emocionalmente
(MCCALLUM, MENEZES, REIS, 2016, p.50).
Ademais, a procura pelo Sistema de Saúde depende das condições sociais em que a
mulher interessada se encontra. Diante de uma gravidez não prevista, apenas pequena parcela
delas pode arcar com os custos de uma intervenção em clínica privada, enquanto as demais,
recorrem a técnicas inseguras, sendo que algumas até letais. Em eventuais complicações são
condicionadas em procurar uma ajuda de profissionais (MCCALLUM, MENEZES, REIS,
2016, p.39).
Constata-se, pois, que a prática e as consequências abortivas dependem do poderio
econômico envolvido na questão.
6

Por esses indícios, Simone de Beauvoir (1967, p.251), apresenta o aborto como um
“crime de classe”. Quando detém de um estrutura bem formada, em uma situação social
avantajada, na qual ela pode se despir melhor dos preconceitos e receber os cuidados adequados,
o momento difícil acontece de maneira bem mais rápida e, de fato, suas consequências acabam
logo depois de findo o procedimento.
Situação inversa quando observada a mulher de classe não abastada, ou, como
chamou Simone “fora dos padrões burgueses”, qual comete o ato criminoso sozinha ou apela
por ajuda, qualquer que seja ela (BEAUVOIR, 1967, p. 254).
Surgem com isso, as práticas abortivas mais desagradáveis possíveis, não existindo
o acesso a clínicas, tampouco à cuidados mais humanos ou anestésicos – surgem as figuras do
gancho, da agulha de tricô, do soro introduzido ao corpo feminino, remédios oferecidos por
amigas, chás, autoagressão ou, por fim, o infanticídio no puerpério (BEAUVOIR, 1967, p. 254).
Como fica demonstrado, a necessidade de recorrer a clandestinidade afeta
profundamente a dignidade humana, princípio, este, constitucionalmente tutelado.
O próprio Ministério da Saúde, por meio da Norma técnica de Atenção Humanizada
ao Abortamento, atesta que:
Vulnerabilidades como desigualdade de gênero, normas culturais e religiosas,
desigualdade de acesso à educação, e múltiplas dimensões da pobreza – com a falta
de recursos econômicos e de alternativas, a dificuldade de acesso à informação e
direitos humanos, a insalubridade, dentre outros – fazem com que o abortamento
inseguro atinja e sacrifique, de forma mais devastadora, mulheres de comunidades
pobres e marginalizadas (BRASIL, 2011)
Ignorar esses fatos é, em curtas palavras, aceitar a ocorrência da violenta sujeição e
morte dessas mulheres.
Suas condições de vida impossibilitam que vivam a maternidade, pois o desespero
por não ver seus filhos e filhas sob as mesmas condições desumanas, por vezes, prevalece,
mesmo que isso custe também suas próprias vidas (CISNE, CASTRO, OLIVEIRA, 2018, p.
454).
Simone de Beauvoir (1967, p. 250) explora quão perverso acaba sendo a carregada
de um filho do qual não se tem condições de criar ou a carregada de um filho sem o seu real
desejo; ao passo que, os sujeitos que condenam essa mãe, não mensuram as condições
posteriores da existência do filho que se gera. Essa imposição, ela diz, “leva a deitar no mundo
crianças doentias”, que não conseguem ser sustentadas pelos pais (BEAUVOIR, 1967, p. 249).
7

Ora, pois, ninguém se incomoda com as condições posteriores e difíceis da


maternidade ou em quais condições aquela criança vai ser entregue. Em outras palavras, se
aquela criança vai ter uma vida ou se será condenado a ela (BEAUVOIR, 2967, p. 250).
Nesse passo, questiona-se: “Se a moral se satisfaz com isso, que pensar de tal
moral?” (BEAUVOIR, 1967, p. 250).
Ficou demonstrado por dados mais recentes que o perfil das mulheres brasileiras
com maior risco de morrer por aborto são as de cor preta, indígenas, de baixa escolaridade, com
mais de 40 (quarenta) ou menos de 14 (quatorze) anos de idade, das regiões Norte, Nordeste e
Centro-Oeste – consequência direta das suas condições de pobreza e marginalização geográfica
– vivendo sem união conjugal (CARDOSO, VIEIRA, SARACENI, 2020, p.11).
Por tudo isso, não é à toa que Rulian Emmerick (2007, p. 170) conclui que “o aborto
já foi legalizado no Brasil por estratificação econômica e social”. As ações provocadas pelo
tipo penal, mesmo que raras, penalizam as mulheres pobres, desprovidas dos recursos mais
básicos de manutenção da vida (EMMERICK, 2007, p.70).
Sendo que, as maiores taxas de aborto está entre mulheres de baixa escolaridade e
renda, pretas, pardas e indígenas (DINIZ, MEDEIROS, MADEIROS, 2016, p.7). Ademais, os
riscos de mortalidade recaem sobre mulheres negras em percentual duas vezes maior do que
em relação às mulheres brancas (MONTEIRO, ADESSE e LEVIN, 2008, p. 4-6).
Assim, como constatou Lívia Casseres (2018, p.81), a discussão perpassa não
somente ao poder de escolha feminino e sua autonomia sob o próprio corpo, mas atravessa à
exposição de morte pela prática insegura do aborto, uma vez que os riscos da mortalidade
demonstram essas desigualdade sociais (CASSERES, 2018, p.81).
Para Mirla Cisne, Viniane Vaz de Castro e Giulia M. J. C de Oliveira (2018, p.453),
“analisar criticamente o aborto inseguro e ilegal, é buscar descortinar as paredes de fumaça da
ideologia patriarcal que massacra e criminaliza mulheres, especialmente, as pobres e negras”.
Quando a mulher opta pelo aborto, a sua conclusão pelo procedimento significa que
ela o considerou como “única saída”, já ponderou uma variedade de aspectos, quer pese, por
exemplo, o fato de o aborto ser crime; as dificuldades de conseguir os meios para a prática ou
oposição de parceiros e família (MCCALLUM, MENEZES, REIS, 2016, p.50).
Para além de seu âmbito legal, o juízo moral existente em volta da temática não é
somente imposto pela sociedade, mas também pela própria mulher. Para uma grande parte
delas, todo o processo é composto por atos condenáveis, mas ao que pese o dilema ético, suas
8

circunstâncias de vida em que ocorrera a gravidez não lhe permitiria ter um filho (PEDROSA,
GARCIA, 2000, p. 55).
Há muito, Simone de Beauvoir (1967, p. 254) trouxe que:
É difícil imaginar abandono mais horrível do que esse em que a ameaça da morte se
confunde com a do crime e da vergonha [...] O fato de ser a operação clandestina e
criminosa, multiplica-lhe os perigos e dá-lhe um caráter abjeto e angustiante. Dor
doença, morte assumem um aspecto de castigo: sabe-se que distância separa o
sofrimento da tortura, o acidente da punição; através dos riscos que assume, a mulher
apreende-se como culpada- é essa interpenetração da dor e do erro que se apresenta
como singularmente penosa.
Portanto, criminalizar uma prática corriqueira, que já traz sua própria penalidade e,
como se viu, é ineficaz - somente levando mais mulheres à clandestinidade e dialética entre
vida e morte, é compactuar com uma política de crueldade.

4 O RACISMO DO NECROPODER E OS CORPOS PUNÍVEIS

Como ficou demonstrado, a inconsistência entre os dados apresentados sobre o


aborto e a efetiva aplicação da norma penal possibilita o questionamento sobre qualquer função
preventiva que poderia pretender-se. Pelo contrário, a proibição penal estimula práticas de risco
(CASSERES, 2018. p.80).
Não somente isso, todo o exposto denota que a penalização sobre a prática abortiva
recai predominantemente sobre aquelas mulheres envoltas de um contexto de vulnerabilidade.
Entendam “penalização” como a sujeição dessas mulheres à morte, quer seja pela prática
clandestina, quer seja por sua criminalização pelo sistema penal.
Sobre esse último ponto em específico, será agora melhor tratado. Pois, afinal, o
necropoder opera escolhendo aqueles para viver e morrer e faz isso através de seus próprios
mecanismos de Estado. Por isso, é essencial que se entenda o eixo principal dessa engrenagem:
O racismo.
O racismo, como se viu no início da pesquisa, é fundamental no exercício do
necropoder, pois, ele condiciona a aceitabilidade da retirada da vida. Podemos dizer, então, que
os Estados mais assassinos são aqueles também mais racistas (FOUCAULT, 1999, p. 306-309).
Silvio Almeida (2018, p.16), ao escrever sobre racismo estrutural, define que é o
racismo que “fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para as formas de desigualdade e
9

violência que moldam a vida social contemporânea”. É, então, uma parte estruturante do próprio
Estado, algo profundo.
Se as instituições materializam o racismo dentro da ordem social, não há como fugir
do fato de que as normas de Direito, porventura, também são racistas; se não na sua composição,
que seja na sua prática.
Foucault (1999, p. 29) traz que,
somos igualmente submetidos a verdade, no sentido de que a verdade e a norma; é o
discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio propulsa
efeitos de poder. Afinal de contas, somos julgados, condenados, classificados,
obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira
de morrer, em função de discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos
de poder. Portanto: regras de direito, mecanismos de poder, efeitos de verdade.
Ele cuida na sua abordagem dos chamados “efeitos específicos de poder” que, como
se vislumbrou, são trazidos pela própria norma detentora da verdade. É expressamente o que se
demonstra com o problema da criminalização do aborto. A imposição dessa verdade, na prática,
representa o assujeitamento.
Será nesse espaço não alcançado pela norma que o necropoder é revelado. O
Direito, dessa vez, não representa um limite para o poder estatal, mas um fundamento retórico
para o assassinato (ALMEIDA, 2018, p. 92).
Seria como dizer, no caso tratado por esse estudo, que a criminalização do aborto é
argumento para ser dito quanto ao abandono dessas mulheres para o morte. Lembrando que, a
morte estende seus limites não somente como a morte física e direta, mas a exposição para com
ela ou multiplicação de seus riscos, bem como a morte política, podendo ser interpretada
também como morte social.
Esse sofrimento exprime a perda de direitos sobre seu próprio corpo, e representa o
direito que o biopoder entrega ao Estado para tomar a vida de outrem (MBEMBE, 2018, p. 33).
Nesse cenário, a “criminosa”, detentora do “corpo punível”, enfrenta uma única
possibilidade – sua sujeição à morte, quer seja nos moldes acima tratados, quer seja pela ótica
de um possível encarceramento.
O racismo, nesses moldes, permite a conformação da sociedade quanto a extrema
violência contra o corpo negro (ALMEIDA, 2018, p. 94). Logo, o pensamento social vai sendo
moldado para que se saiba classificar exatamente aquela mulher: Uma criminosa que tem que
pagar pelo que fez. Assim, não podendo uma vida ser cessada, é permitido o sacrifício de uma
mãe (BEAUVOIR, 1967, p. 250).
10

Com efeito, a opção legislativa em tratar desse problema social como crime tem
suas justificativas:
[A] prisão é a solução punitiva para uma gama completa de problemas sociais que não
estão sendo tratados pelas instituições sociais que deveriam ajudar as pessoas na
conquista de uma vida satisfatória. Esta é a lógica do que tem sido chamado de farra
do aprisionamento: em vez de construírem moradias, jogam os sem-teto na cadeia.
Em vez de desenvolverem o sistema educacional, jogam ao analfabetos na cadeia.
Jogam na prisão os desempregados decorrentes da desindustrialização, da
globalização do capital e do desmantelamento do welfare state. Livre-se de todos eles.
Remova essas populações dispensáveis as sociedade. Seguindo essa lógica, as prisões
tornam-se uma maneira de dar sumiço nas pessoas com a falsa esperança de dar
sumiço nos problemas sociais latentes que elas representam (DAVIS, 2009, p.47-48).
Trata-se, pois, da tentativa em estancar “o sol com a peneira”. O Estado tem sido
incapaz de oferecer respostas para as desigualdades e seus problemas sociais decorrentes, logo,
não vê outra medida se não o “alívio” em escolher um outro culpado e penalizá-lo.
Em 2014 o Brasil possuía uma população prisional de 622.202. Sendo que, no que
diz respeito à relação de gênero, a população prisional era de 37.380 presas e, no período de
2000 a 2014, o aumento da população feminina foi de 567,4%, ao passo que, no mesmo período,
o crescimento da masculina foi de 220,20% - uma curva, portanto, ascendente de
encarceramento feminino (ALVES, 2017, p. 103).
Ao traçar o perfil de 14.810 presas só em 2014 em São Paulo, constatou-se que as
negras correspondiam a 67% do total (ALVES, 2017, p. 104). Assim, as interseções desses
eixos de vulnerabilidade – gênero e raça, afunilam o perfil daqueles que são postos em cárcere
como medida de contenção de problemas sociais.
Angela Davis (2009, p. 49), analisa que as práticas condenatórias que aconteceram
nas duas últimas décadas são responsáveis pelo grande número de pessoas atrás das grades, por
isso, pode-se dizer que a chamada indústria carcerária e o judiciário fazem parte de um mesmo
sistema: “lei, cumprimento das leis e punição”.
Em trabalho de campo desenvolvido, Rulian Emmerick (2007, p.154) analisou
os processos penais oriundos da prática de aborto no Estado do Rio de Janeiro. Nos processos
analisados, figurando como rés estavam predominantemente mulheres de baixa renda familiar,
negras ou pardas, com empregos precários, vítimas de violência em suas relações afetivas ou
sendo as únicas responsáveis pela reprodução.
Nos relatos, há predominância de mulheres negras denunciadas e processadas,
junto com a descrição de tratamentos desumanizados desde internações em hospitais
11

decorrentes de complicação, até o trato policial. Como foi o caso de “J.A.C.”, negra, diarista,
solteira e desempregada: “J. recebeu ordem de prisão em flagrante no Hospital Juscelino
Kubitschek. Em seguida foi algemada na cama em que estava e permaneceu por uma semana
algemada e com escolta policial em um quarto [...]” (EMMERICK, 2007, p. 161).
Pelo exposto, evidencia-se que “J.A.C.” se enquadra perfeitamente no perfil das
selecionadas pelo Sistema Penal: é uma mulher negra e sem condições econômicas. Com tudo
isso, é possível dizer então que existe um poder simbólico envolta da criminalização do aborto,
ocasionando a chamada criminalização secundária (CALIL, 2014, p.17).
A referida criminalização secundária acontece quando vemos os efeitos penais na
prática, a punição exercida em concreto. Lívia Miranda Casseres (2018, p. 79) explica que ela
acontece quando realizada a efetiva decisão em selecionar dentre todas as mulheres que
praticam o aborto, aquelas que serão conduzidas ao sistema de justiça criminal.
A escolha legislativa pela tipificação reforça mecanismos que sujeitam mulheres
negras ao nível de subcidadania e alimenta a perpetuação do racismo. Nesse passo, raça e
sistema penal de confundem mutuamente (CASSERES, 2018, p. 82). Por isso, dissemos que o
necropoder é impulsionado pelo racismo e contribui com a composição dos corpos puníveis.
Dina Alves (2017, p. 109), quando analisou as condições penosas dentro de um
presídio paulista, bem como do crescente número de negras presas, definiu o ordenamento
jurídico brasileiro como uma “(re)atualização” da ordem escravocrata, pois tem no corpo da
mulher negra o seu principal alvo. Não é nada distante do que Achille Mbembe (2018, p.29)
escreveu quando falou sobre a escravidão que, em muitos aspectos, a vida do escravo era uma
forma de “morte-em-vida”.
É por todo esse arcabouço que, ao comparar a realidade com o disposto em lei,
percebemos não somente uma norma racista, mas que traduz o poder de morte trazido por
Foucault quando analisa a soberania (CASSERES, 2018. p. 81). O sistema penal é somente a
configuração última de todo um processo de imposições e violência sobre esses corpos
criminalizados.
Nesse ínterim, o Estado está deixando de cuidar dos seus sujeitos e passa a matar,
leia-se, deixar matar, pois são seus institutos que a ocasiona.
Tudo isso denota a urgência do aborto ser debatido em todos os seus aspectos, seja
pelo aspecto da liberdade ou da vida, pois, enquanto isso não acontece, a norma proibitiva
continuará funcionando como um mecanismo segregador, naturalizando a morte-em-vida
dessas mulheres. É por isso, pois, que se faz emergente uma mudança de paradigma.
12

Como assinala Lívia Casseres (2018, p. 83):


Quando o Direito está a serviço de projetos de discriminação sistemática,
como vimos ser o caso da criminalização do aborto, é preciso olhar debaixo
da superfície, para identificar as implicações de regras aparentemente
neutras e democraticamente discutidas que representam, em verdade, a
perpetuação da situação de subordinação de grupos historicamente
discriminados.
Nessa mesma linha de raciocínio, como bem trouxe Silvio Almeida (2018, p. 105),
se o direito pode atuar em conjuntura com o racismo, servindo, portanto, à projetos de
discriminação sistemática; ele também pode atuar de maneira a corrigir os excessos
institucionais e atuar, portanto, de maneira antirracista.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfim, a pesquisa teve o escopo de analisar criticamente os dados da realidade


clandestina do aborto, em contraposição com a lei penal atual vigente que contribui para o
assujeitamento de determinadas mulheres em vista de um necropoder que sustenta suas mortes.
Como elemento condicionante, o racismo que impera dentro da própria estrutura de Estado,
segrega e contribui para o alargamento dessas desigualdades e vulnerabilidades sociais.
Assim, diante do exposto, foi possível extrair a ineficácia da norma penal sobre
qualquer função preventiva de salvaguardar o bem-jurídico tutelado. Pode-se concluir que,
quando imersa sob o dilema moral-criminal-social por modo de uma gravidez que não se deseja
ou na qual não existam condições para sua manutenção, a tipificação somente torna a decisão
mais sofrível e suas consequências mais sentidas.
A ilegalidade reforça mecanismos de controle e subordinação historicamente
impostos às mulher. Em conjunto, faz surgir figuras clandestinas que as expõe ao risco e ao
insalubre. Para parte dessas mulheres, contudo, o poderio econômico transforma a figura em
uma situação mais rápida, limpa e menos dolorosa.
Ao negar a morte e sujeição dessas mulheres negras e pobres, o Estado foge do
seu papel protetivo e se reveste de um perfil soberano necropolítico que, tendo condições de
agir diferente, opta por negar-lhes a vida. Por conseguinte, as direciona para um novo contexto
de margem e vulnerabilidade, qual seja, o encarceramento.
Enquanto a norma continuar em descompasso com a realidade, processos de
morte e sujeição continuarão sendo legitimados.
13

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento,
2018.

ALVES, D. Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e
classe na produção da punição em uma prisão paulistana. Revista CS, 21, pp. 97-120. Cali,
Colombia: Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Universidad Icesi, 2017.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Difusão Européia do
Livro, 1967.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações


Programáticas Estratégicas. Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica / Ministério
da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Área Técnica de Saúde da Mulher. – 2. ed. – Brasília:
Ministério da Saúde, 2011.

CARDOSO, Bruno Baptista; VIEIRA, Fernanda M. dos Santos Barbeiro; SARACENI, Valeria.
Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais? CSP – Cadernos de Saúde Pública, 2020.

CALIL, Maria Fernanda de Matos. O poder simbólico da criminalização secundária do


aborto. 2014. Artigo Científico (Pós-graduação Lato sensu) – Escola de Magistratura do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

CASSERES, L. M. M. D. Racismo estrutural e criminalização do aborto no Brasil. Revista


internacional de direitos humanos, n. 28, v. 15, p. 77-85, São Paulo Dez., 2018.

CISNE, Mirla; CASTRO, Viviane Vaz; OLIVEIRA, Giulia Maria Jenelle Cavalcante. Aborto
inseguro: um retrato patriarcal e racializado da pobreza das mulheres. R. Katál., Florianópolis,
v. 21, n. 3, set./dez. 2018, pp. 452-461.

DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império das prisões e da tortura.
Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
14

DINIZ, Debora, MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto


2016. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2017, v. 22, n. 2 [Acessado 01 Junho 2020] , pp.
653-660. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-81232017222.23812016>. ISSN
1678-4561. https://doi.org/10.1590/1413-81232017222.23812016.

EMMERICK, Rulian. Corpo e Poder: Um olhar sobre o aborto à luz dos Direitos Humanos e
da Democracia, 2007. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, Departamento de Direito, Rio de Janeiro, 2007.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São


Paulo: Martins Fontes, 1999.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018.

MCCALLUM, Cecilia; MENEZES, Greice; REIS, Ana Paula dos. O dilema de uma prática:
experiências de aborto em uma maternidade pública de Salvador, Bahia. História, Ciências,
Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.23, n.1, jan.-mar. 2016, p.37-56.

MENEZES, Greice M.S.; AQUINO, Estela M.L.; FONSECA, Sandra Costa; DOMINGUES,
Rosa Maria Soares Madeira. Aborto e saúde no Brasil: desafios para a pesquisa sobre o tema
em um contexto de ilegalidade. CSP – Cadernos de Saúde Pública, 2020.

MONTEIRO, M. F. G.; ADESSE, L.; LEVIN, J. As mulheres pretas, as analfabetas e as


residentes na Região Norte têm um risco maior de morrer por complicações de gravidez
que termina em aborto. Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos
Populacionais, realizado em Caxambu- MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de
2008.

PEDROSA, I.L.; GARCIA, T.R. “Não vou esquecer nunca!”: a experiência feminina com o
abortamento induzido. Rev.latino-am.enfermagem, Ribeirão Preto, v. 8, n. 6, p. 50-58,
dezembro 2000

Você também pode gostar