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REVISTA ESTUDOS LIBERTÁRIOS – UFRJ | VOL.

03 № 08 | 1º SEMESTRE DE 2021 | ISSN 2675-0619

UMA PERSPECTIVA ANARQUISTA SOBRE O SUICÍDIO, A PRODUÇÃO DA


MORTE E A PRESERVAÇÃO DA VIDA
Bruno Latini Pfeil*
Cello Latini Pfeil**
RESUMO
Apresentando uma revisão da forma como a Igreja, o Estado e as instituições médicas
concebiam o fenômeno do suicídio na Europa dos séculos XV ao XX, o presente artigo
ambiciona demonstrar as contradições existentes entre a exploração da vida pelo Estado
e a preservação da vida por meio da penalização do suicídio, que, por sua vez, mascara
seu caráter de manutenção da produtividade. Se o soberano, por um lado, detém o poder
de matar seus súditos e a si, os súditos, por outro, não detém poder sobre seus corpos,
devendo não só produzir riqueza para o soberano, como também permanecer vivos,
porém na iminência da morte. Pretendemos comprovar que esses processos, embora
tenham mudado de forma e justificação, seguiram princípios semelhantes, guiados por
motivações econômicas e políticas.
Palavras-chave: suicídio; anarquismo; soberania; morte.

ABSTRACT
By presenting a review of the way in which the Church, the State and medical institutions
conceived the phenomenon of suicide, in Europe from the 15th to the 20th centuries, this
article aims to demonstrate the contradictions between the exploitation of life by the State
and the preservation of life by the penalization of suicide, which, in its turn, masks its
character of maintaining productivity. If the sovereign, on the one hand, has the power to
kill his subjects and himself, the subjects, on the other, do not have power over their
bodies, and they must not only produce wealth for the sovereign, but also remain alive,
on the verge of death. We intend to prove that these processes, although they have
changed in form and justification, followed the same principles, guided by economic and
political motivations.
Key-words: suicide; anarchism; sovereignty; death.

*
Graduando em Psicologia (USU/RJ). Graduando em Antropologia (UFF/RJ). Coordenador da Revista
Estudos Transviades.
**
Mestrando em Filosofia (PPGF/UFRJ). Pesquisador do CPDEL/UFRJ. Coordenador da Revista Estudos
Transviades.

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INTRODUÇÃO MORAES, 2020), concebendo o


nascimento da modernidade pela
Seguimos Camus, quando diz,
perspectiva de Grosfoguel (2016), desde
em sua primeira obra43, que o suicídio é
1492, com a conquista de Al-Andalus.
o grande problema filosófico. Entre
Ou seja, o modo como determinados
decidir viver e suprimir a vida,
governos europeus conceberam o
encontramos o ultimato da filosofia. No
fenômeno do suicídio e trataram das
entanto, não nos voltamos ao suicídio
famílias e dos sujeitos suicidas
com vista aos aspectos subjetivos da
influenciou a construção dos imaginários
existência, ou à necessidade de sentido,
sociais e das legislações de outras
ou à angústia. Nosso foco aqui não é o
populações em outros territórios em
sujeito suicida, mas o que o circunda. O
relação a esse mesmo fenômeno.
que nos chama a atenção é o impacto que
o suicídio provoca em suas testemunhas, Explicando como se deram os
e não testemunhas quaisquer, muito processos de condenação do suicídio,
menos em relação a qualquer suicídio. principalmente dos séculos XV ao XX,
em alguns países europeus, pretendemos
Nosso objetivo neste estudo é
comprovar que esses processos, embora
demonstrar como as respostas de
tenham mudado de forma e justificação,
diferentes Estados europeus para com o
seguiram princípios semelhantes,
fenômeno do suicídio denunciam o
guiados por motivações econômicas e
cerceamento da liberdade por suas
políticas. Com isso, demonstraremos a
instituições autoritárias – no caso, a
contradição existente entre a exploração
Igreja, as instâncias jurídicas e médicas.
da vida pelo Estado e a preservação da
A escolha da geografia de nosso objeto
vida por meio da penalização do
se dá em razão de sua impositiva
suicídio, que mascara seu caráter de
regência em relação aos governos dos
manutenção da produtividade.
mais diversos territórios ocidentalizados,
tendo em vista que organizações estatais Pela lente da filosofia anarquista,
de outros territórios, como terras latino- procuramos identificar os processos de
americanas, são herdeiras diretas dos pecaminação44, criminalização e
Estados modernos europeus (DE patologização do suicídio, apontando

43
Referimo-nos a O mito de Sísifo, publicado em 44
Processo a partir do qual determinado
1942. elemento se torna pecado.

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para o significado valioso deste “deixar viver”. A vida só existe para e a


fenômeno em meio ao exercício da partir do soberano, e seus súditos, sem o
autoridade governamental. Antes de direito de vida e da morte, não são nem
revisarmos a história do suicídio no vivos nem mortos antes do soberano,
Ocidente, disporemos desta introdução mas somente para e a partir dele
com algumas definições centrais: em que (FOUCAULT, 1999). Foucault (1999, p.
consiste a teoria na qual nos 286) compreende o súdito como “nem
basearemos? Como propomos vivo nem morto. Ele é, do ponto de vista
compreender os processos que fizeram da vida e da morte, neutro, e é
do suicídio uma ofensa contra o Estado, simplesmente por causa do soberano que
seja pela ótica do pecado, do crime ou da o súdito tem direito, eventualmente, de
patologia? O que caracteriza essa ofensa, estar morto”. Soberanos, por outro lado,
escamoteada e dilacerada publicamente têm tanto o direito de matar o súdito
às ordens da Igreja e do Estado? Como como o direito de matar a si, movimento
atua a soberania, que, diferenciando o que pode ser visto nos processos de
suicídio egoísta do suicídio altruísta, pecaminação e criminalização do
manuseia os mecanismos de poder suicídio. Reconhecemos que a soberania
religiosos, jurídicos e médicos e os é o exercício da autoridade. Seguindo
imaginários sociais de vergonha e para as palavras de Bakunin (1975, p. 28-
obscuridade referentes a esse fenômeno? 29),
As dinâmicas de poder concernentes à
Toda a teoria conseqüente e sincera do Estado
relação entre soberano/súdito ou baseia-se essencialmente no princípio da
autoridade, isto é, nesta ideia eminentemente
dominus/colonus são essenciais para teológica, metafísica, política, segundo a qual as
massas, sempre incapazes de se governarem,
compreendermos as movimentações deverão sofrer o jugo benfeitor duma sabedoria e
duma justiça que, de uma maneira ou de outra,
políticas e econômicas que determinam a
lhes serão impostas de cima.
condenação do suicídio.
Embora Bakunin se refira à
Introduzindo-nos à teoria generalidade da teologia e da metafísica,
clássica da soberania, Foucault (1999) a seu pensamento volta-se especialmente
define fundamentalmente como o direito ao cristianismo. Muito por isso,
da vida e da morte, de forma que o apontamos a Igreja como expoente
soberano, detentor da lei e legitimado fundamental do poder do Estado, sendo
por ela, tem o direito de produzir a morte este a “soma da negação das liberdades
e assegurar a vida: o “fazer morrer” e o individuais de todos os seus membros;

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ou melhor, a dos sacrifícios que fazem me rodeiam e quanto mais profunda e


todos os seus membros, ao renunciarem maior for a liberdade, tanto mais vasta,
a uma parte da sua liberdade em proveito mais profunda e maior será a minha
do bem comum” (BAKUNIN, 1975, p. liberdade” (BAKUNIN, 1975, p. 22-23).
26). Em suma, é a institucionalização da Deste pensamento, surge a célebre frase
autoridade e sua ramificação, de Bakunin (1975, p. 22-23): “A minha
capilarização, como diria Foucault, nas liberdade pessoal, assim confirmada pela
demais instituições que exercem o poder liberdade de todos, estende-se até o
soberano sobre o ser. Revoltando-nos infinito”. Portanto, a teoria anarquista
contra qualquer exercício de autoridade
é intrinsecamente antiestatal, anticapitalista,
e opressão, encontramos a teoria antidiscriminatória e defende a máxima da ajuda
mútua, caracterizada pela solidariedade e pelo
anarquista como base para nosso livre entendimento das pessoas, sem a
necessidade de uma instituição que contenha
pensamento, devido à sua crítica total às supostamente seus sentidos utilitaristas e
violentos, que os fariam matar uns aos outros.
instituições e ao autoritarismo. Além do mais, é a única que acredita
Compreendemos a anarquia como verdadeiramente na capacidade popular de se
autogovernar. (DE MORAES, 2020, p. 69)
“negação de toda e qualquer tipo de
O suicídio enquanto fenômeno
autoridade quer seja religiosa, militar,
social não escapa das rédeas do Estado.
estatal, econômica, social. [...] negação
Se somente soberanos detêm o poder
de todo governo, negação do Estado”
sobre a vida, então o suicídio é um
(DE MORAES, 2020, p. 65).
verdadeiro crime, pois não só atenta
A anarquia se fundamenta na luta contra a vida – que pertence unicamente
contra a autoridade, tendo a liberdade e a ao soberano –, como também atinge as
igualdade como forças complementares; riquezas que essa vida poderia gerar se
e a liberdade plena só poderia ser não fosse interrompida. Nesse sentido,
atingida “na medida em que existir a suicidar-se pode ser interpretado como
autogestão em todos os sentidos da vida um ato de revolta; significaria a fuga do
e for realizada pela ação dos próprios controle e da violência do soberano.
interessados” (DE MORAES, 2020, p. Contudo, da mesma forma com que o
68). A liberdade promulgada pelo suicídio revolta-se contra o Estado –
anarquismo não se limita ao sujeito personificado pelo soberano –, este
anarquista que a brada, mas a todos os mesmo Estado suicida corpos
seres que o rodeiam, pois “quanto mais negligenciados e excluídos socialmente
numerosos forem os homens livres que ao relegá-los a condições indignas de

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vida. O suicídio está preso em suicidavam, os que tentavam se suicidar


contradição: enquanto é resistência às e suas famílias. Em seguida, apontamos
opressões do Estado, é provocado pelo o processo de descriminalização do
mesmo; enquanto contraria a suicídio, que passa a ser caracterizado
transformação dos corpos em como resultado de transtornos mentais.
ferramentas produtivas e subordinadas Apresentando as dinâmicas de poder
ou em sujeitos sistematicamente voltadas aos sujeitos que consumavam
negligenciados, o suicídio também ou tentavam o suicídio e às suas famílias,
possui alvos definidos pelo aparato suscitamos questionamentos acerca das
estatal. Ao mesmo tempo em que é a instituições médicas que se propõem a
ação de uma política de Estado, pessoas prevenir a morte e a preservar a vida.
que tentam o suicídio e sobrevivem têm
um histórico de encarceramento forçado,
O SUICÍDIO COMO PECADO E
estigmatização, tutela médica,
CRIME
difamação pública e exclusão social. Por
vezes, em tempos passados, as sentenças Das três concepções de suicídio
para estes sujeitos não se limitavam ao que abordaremos ao longo deste artigo,
encarceramento: estendiam-se à pena de iniciaremos por aquela que se manifesta
morte. A penalidade para o autocídio por um viés moral e jurídico. A
seria morrer, não pelas mãos do sujeito, concepção de criminalidade enquanto tal
mas pelas forças repressivas do Estado. se instaura tão logo haja centralização de
poder e de riqueza para uma elite. E
A partir do cenário apresentado,
percebe-se, também, que a instauração
partimos para a revisão histórica e
do suicídio enquanto crime percorre o
anarquista das implicações do suicídio
mesmo trajeto. Kropotkin (2005, p. 181)
no contexto europeu, especialmente do
logo afirma: “Esta imensa categoria dos
século XV ao XIX. Identificamos, de
chamados “crimes e delitos”
início, suas atribuições ao fenômeno do
desaparecerá no dia em que a
suicídio: o caráter de pecado e o caráter
propriedade privada cessar de existir”,
de crime. Demonstraremos o vínculo
isto é, os processos de criminalização
entre Igreja e Estado, a moralização do
sustentam-se e são mutuamente
sagrado e a sacralização da lei, dispondo
sustentados pelos regimes políticos e
do tratamento religioso, governamental e
econômicos da sociedade em que
social para com os sujeitos que se

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ocorrem. Desse modo, investigar a estabelecer o domínio da Igreja em


concepção criminosa e, antes, benefício das elites econômicas e
pecaminosa do suicídio nos ajudará a políticas. O igrejismo é, junto com o
compreender o papel desse fenômeno militarismo e os governantes, atributo
nas dinâmicas políticas e econômicas no fundamental da instituição estatal, tendo
contexto aqui apresentado. a autoridade, a hierarquia, a disciplina e
a obediência como traços fundamentais.
Estas duas categorias – pecado e
crime – se complementam quase que Além de dispensável para a
instantaneamente, impactando a forma organização social, a autoridade estanca
como o suicídio mais foi e é concebido o desenvolvimento de uma sociedade e
no mundo ocidental – e, por extensão, beneficia uma classe em detrimento da
em terras ocidentalizadas –, fortemente exploração das demais (MALATESTA,
delineado pelos ditames do cristianismo, 2009), o que se reflete no igrejismo,
a “religião por excelência” (BAKUNIN, considerando que membros de altas
2001, p. 18). O cristianismo, para hierarquias clericais participaram, com
Bakunin (2001, p. 18), expressa o forte impacto, das instâncias de
“empobrecimento, a escravização e o manutenção da ordem e da exploração. A
aniquilamento da humanidade em exploração somente pode ser realizada
proveito da divindade”, exercendo o na medida em que a vida dos explorados
domínio soberano sobre a vida de é mantida, ainda que em condições
outrem. Mas não é somente por meio da execráveis, porém segura de sua
crença que essa dominação é exercida; permanência. Daí a afirmação de que o
são necessárias instituições que domínio sobre a vida e a condenação do
produzam a execução do aniquilamento, suicídio não servem, portanto, para um
a perseguição de corpos dissidentes, o propósito moral, mas sim econômico.
domínio sobre corpos que se recusem a
Embora Georges Minois (1999)
corroborar com a produtividade que lhes
se atenha inicialmente à Idade Média, ele
é demandada. A violenta
aponta para o caráter criminoso do
institucionalização do cristianismo com
suicídio logo em Roma Antiga, em que
forças políticas opressivas se expressa no
soldados e pessoas escravizadas não
conceito de igrejismo (DE MORAES,
tinham permissão legal para se
2018), segundo o qual se compreende a
suicidarem, pois seus corpos deviam
utilização do cristianismo para

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servir à ascensão da pátria e da O domínio sobre a manutenção


economia: da vida e pelo controle da morte se
fortalece na Roma do século XV. Em
For obvious economic and patriotic reasons,
suicide was forbidden to two categories of meio a crises econômicas e territoriais,
ancient Romans, slaves and soldiers. The suicide
of slaves was considered an affront to private Roma fortalecia seu sistema totalitário.
property (a notion that was later essential in
medieval serfdo); the army had specific pênaltis Famílias perdiam seus direitos sobre
for soldiers who survived an attempted suicide. 45
suas propriedades e sobre si mesmas
(MINOIS, 1999, p. 48)
para um dominus, uma espécie de
O suicídio de pessoas
soberano mercantil (MINOIS, 1999).
escravizadas configurava uma ofensa à
Embora permanecessem em suas terras,
propriedade privada, e soldados que se
eram propriedade de um ‘mestre’, ou
suicidavam sofriam penalidades – ainda
melhor, tornavam-se seu colonus. Com
que somente seus cadáveres sofressem a
isso, legislações mais incisivas
punição. Um pouco mais tarde, a prática
voltaram-se ao suicídio, pois, pela regra,
da extorsão dos bens de sujeitos que se
somente o dominus poderia tirar a vida
suicidavam ou das famílias desses
de seu colonus. Nenhum servo tinha
sujeitos foi disseminada, beneficiando
poder sobre propriedade ou bens, e
economicamente o Estado. Famílias
menos ainda sobre a escolha de estar
perdiam patrimônios inteiros em
vivo.
decorrência de parentes suicidas,
atribuindo ao suicídio sentimentos de Em um contexto de pobreza e
vergonha e repulsa; todo suicídio – trabalho compulsório, a impossibilidade
proibido pelo Senado – seria egoísta, de poder “escolher” tirar a própria vida
pois o sujeito não só deixaria de significava que os camponeses não
contribuir economicamente para sua poderiam não trabalhar para seu
família, como seria responsável por soberano, já que somente a morte
promover a confiscação de bens pelo poderia livrá-los disso. Tal domínio
Estado. Sua família “pagaria” por seu conferia ao soberano controle absoluto
pecado (MINOIS, 1999). sobre o corpo de seu colonus. Para a
população livre, soberana, não havia

45
Por óbvias razões econômicas e patrióticas, o propriedade privada (noção que posteriormente
suicídio era proibido a duas categorias de foi essencial no servo medieval); o exército tinha
romanos antigos, escravos e soldados. O suicídio punições específicas para soldados que
de escravos era considerado uma afronta à sobreviviam a uma tentativa de suicídio.
(tradução nossa)

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condenações ao suicídio, já que este seria subjetivas. O suicídio, ou sua tentativa,


considerado o exercício do livre arbítrio. não se configura somente como a
Logo nessa organização política, que se violação da propriedade privada do
reflete um tanto mais um tanto menos mestre soberano, mas também, e
nas estratificações das sociedades principalmente, como a revolta contra
europeias, localizamos o exercício da sua soberania. A morte se apresenta
soberania. Minois (1999, p. 30) nos diz como uma alternativa para não se viver
que “The servant who kills himself robs em subjugação, considerando que uma
his master and owner; his suicide is an vida dedicada exclusivamente à
act of revolt, and he himself is “filled produção de riqueza para o soberano, sob
with diabolic fury””46; dito de outra risco de punição caso a produção seja
forma, o colonus, sujeito colonizado, não insuficiente, é uma morte antecipada.
tem posse sobre o próprio corpo, pois Mbembe (2016) aloca o suicídio entre os
este é propriedade do dominus. Portanto, limites da resistência e da libertação:
suicidar-se é violar a propriedade antes que me mate, eu mesmo me mato.
privada do mestre soberano e, como Nesse contexto, o suicídio se mostra
veremos adiante, é contrariar as forças como uma forma de resistir às opressões
igrejistas (DE MORAES, 2018) de governamentais, fazendo deste
justificação da dominação. fenômeno um grande problema para a
manutenção do poder soberano.
Na medida em que a soberania é
Condenando o suicídio, o direito de
concebida como o direito de matar, a
morte retorna ilusoriamente às mãos do
política se compreende como a distorção
soberano.
dos limites entre a vida e a morte: a
política é o trabalho da morte Remetendo o suicídio à morte de
(MBEMBE, 2016). O soberano “dribla” Judas, por exemplo, os cristãos do século
a morte ao provocar constantemente a XV o condenam enquanto pecado, no
morte do outro, de forma que a morte só intuito de diminuir as ocorrências de
exista na realidade do outro; e este outro, suicídio pelo medo do pós-morte no
sujeitado à soberania, tem sua sujeição inferno. Todavia, as argumentações
legitimada pela lei mediante cristãs contra o suicídio são paradoxais:
discrepâncias demográficas, culturais e devemos, por um lado, odiar a vida e

46
O servo que se mata rouba de seu mestre e próprio está “cheio de fúria diabólica”. (tradução
dono; seu suicídio é um ato de revolta, e ele nossa)

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almejar o momento pós-morte, pecaminoso (MINOIS, 1999). Estas


rejeitando prazeres carnais, práticas não se limitavam à proteção dos
desprendendo-nos de tudo o que é vivos contra os mortos e os demônios;
material; contudo, não devemos desejar configuravam-se como uma segunda
a morte. Esta não pode ser auto-infligida. morte.
Nesse momento, a proibição do suicídio
Contudo, nem todo suicídio ou
ocorre de forma pouco contundente,
tentativa de suicídio tornava-se pecado
requisitando argumentações complexas
ou crime. O recorte de classe e casta
que foram rompidas e reconstruídas ao
determinava como o suicídio seria
longo dos séculos. O desespero
concebido publicamente e diante das
(despair), enquanto causa do suicídio,
instâncias governamentais, incluindo a
teria como cura a confissão, que
Igreja. Suicídios de pessoas que
abdicaria o sujeito de seus pecados e o
pertenciam à elite, englobando desde
reconciliaria com Deus. As práticas
classes sociais elevadas até classes
confessionais, desenvolvidas
clericais, costumavam ser indiretos. Por
principalmente entre os séculos XI e XII,
exemplo, um cavaleiro que, após perder
foram cruciais para a argumentação
uma batalha, pedia que outro o matasse
cristã e para sua constituição enquanto
se enquadraria em um suicídio
instituição política.
“altruísta”. Encontramos esse suicídio
Tempos depois, na Inglaterra do altruísta na literatura, em heróis que
século XVI, o suicídio é considerado imploram para que Deus ou terceiros
uma obra estritamente demoníaca, tirem-lhes a vida (MINOIS, 1999). Tais
demandando práticas ritualísticas personagens suscitam admiração, pois a
radicais da população para combater as morte ocorreria em virtude de sua
assombrações do mal. Tais práticas se redenção diante de Deus, do sentimento
resumiriam, em geral, a atravessar o de inferioridade frente ao Todo
cadáver com uma estaca e posicioná-lo Poderoso.
como um espantalho em beiras de
Heroes make the supreme sacrifice when it is the
estradas, com o objetivo de confundir o only way to compensate for a shameful fault or
to overcome an obstacle insurmountable by
espírito e impedi-lo de voltar à cidade human means. Through suicide they surpass their
natal, além de impressionar quem quer
que avistasse o corpo, fortalecendo o
horror ao suicídio e seu caráter

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mortal condition and rise above ordinary criminalizado, muito menos


humanity.47 (MINOIS, 1999, p. 16)
demonizado, pois o sujeito que se suicida
Por outro lado, um camponês se
é soberano e, portanto, detém o direito
suicidaria sozinho, majoritariamente por
de matar, ainda que seja a si próprio. O
enforcamento, por suas próprias mãos;
suicida criminoso não é soberano de si
um suicídio “egoísta”, sem possibilidade
mesmo, pois pertence a outrem, e o
de redenção. Ressalta-se que as mãos
caráter demoníaco do suicídio obedece a
costumavam ser separadas do corpo do
uma rígida hierarquia. Embora sejamos
sujeito que se suicidara, na Idade Média,
todos submissos a deus, ele insere
atribuindo ao suicídio o caráter de
hierarquia entre os indivíduos em termos
“homicídio de si mesmo”. Quando o
de inspiração: os mais inspirados estão
suicídio ocorria por intermédio de
em posição de prestígio e de
outrem, mais especificamente pelas
pronunciamento, os menos inspirados
mãos de outrem, não mais era
devem escutá-los e obedecê-los. Igreja e
penalizado. Como Minois nos mostra,
Estado, protegidos pelas forças militares,
tais tipos de suicídio não se distribuíam
se sustentam na autoridade fundada por
aleatoriamente pelos segmentos sociais,
esta relação, que legitima, através da
pelo contrário: sua distribuição era muito
palavra divina, a superioridade de elites
bem definida: “Medieval society, which
proprietárias. A Igreja e o Estado se
was governed by a military and priestly
constituem, assim, como as instituições
caste, was consistent with itself when in
fundamentais da exploração
established the chivalric ideal and the
(BAKUNIN, 2001).
quest for Christian sacrifice as the moral
norm”48 (MINOIS, 1999, p. 12). Se deus é soberano e o homem é
seu servo, aquele que se proclama divino
Em outras palavras, o suicídio
somente o faz por meio de uma revelação
cometido pela nobreza, pelo clero e pelas
divina, experimentada por si mesmo ou
forças militares, que, juntos,
por outrem. A revelação demanda
compunham o Estado, não podia ser
sujeitos que a interpretem e que

47
Os heróis realizam o sacrifício supremo 48
A sociedade medieval, governada por uma
quando esta é a única maneira de compensar por casta militar e sacerdotal, foi consistente consigo
uma falha vergonhosa ou de superar um mesma quando se estabeleceu o ideal
obstáculo intransponível por meios humanos. cavalheiresco e a busca do sacrifício cristão
Por meio do suicídio. Eles ultrapassam sua como norma moral. (tradução nossa)
condição mortal e se elevam acima da
humanidade comum. (tradução nossa)

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defendam sua veracidade, ou seja, à do Estado, não podiam roubar de si


soberania divina integram-se sujeitos mesmos. Nesse sentido, com relação ao
que, a partir de sua posição social, detêm suicídio eclesiástico, Minois percebe
o poder de justiça e da salvação: o poder uma perspectiva diferenciada. Os
absoluto. Se deus é o senhor e os homens pouquíssimos registros de suicídios de
são seus servos, o homem que se vê membros do clero fizeram com que o
como divino, o detentor de uma ligação historiador supusesse que ou tais
estreita com deus, tem o poder de registros fossem escondidos, ou que
determinar os seus servos, assim como fossem alterados de forma a constarem
de legitimar sua exploração. Os órgãos como mortes naturais ou acidentais.
que fazem justiça são aqueles que se Além disso, o corpo do clérigo que
proclamam detentores da palavra divina, cometesse suicídio não era submetido às
ou intérpretes de sua veracidade. Assim penalidades da justiça.
o igrejismo se estrutura. Como
Escondidos, alterados ou
funcionários do Estado, não há o que
‘admirados’, os suicídios da elite militar,
impeça sua autoridade sem rejeitar a
eclesiástica e da nobreza não eram
palavra divina, e “contra a justiça de
concebidos como crimes nem como
Deus não há justiça terrestre que se
pecados. Tal perspectiva afeta até
mantenha” (BAKUNIN, 2001, p. 18).
mesmo a forma como o sujeito soberano
Bakunin encontra facilidade em se suicida: altruisticamente, disposto de
provar que a Igreja atuou massivamente méritos divinos, deixando para o vassalo
na exploração econômica das massas, e o suicídio egoísta e penalizado.
os Estados, trabalhando em consonância
Both in romance and in life, the peasant who
com a Igreja e sendo legitimados por ela, hanged himself as a way out of his misery was a
coward whose corpse deserved to be subjected to
nada mais fizeram do que perpetuar a torture and whose soul was relegated to hell; the
impetuous knight who chose death over
dominação sobre os povos. Tendo como surrender on the battlefield was a hero deserving
of both civical and religious honors. We cannot
costume a confiscação de bens de find a single instance of judiciary punishment
pessoas que se suicidavam, não faria meted out to the corpse of a noble who died by
his own hand during the Middle Ages.49
sentido atribuir o “suicídio” a causas de (MINOIS, 1999, p. 15-16)

morte de membros internos das Igrejas e

49
Tanto no romance como na vida, o camponês o impetuoso cavaleiro que escolheu a morte em
que se enforcou como forma de sair de sua vez da rendição no campo de batalha era um
miséria era um covarde, cujo cadáver merecia ser herói que merecia honras cívicas e religiosas.
torturado e cuja alma estava relegada ao inferno; Não podemos encontrar uma única instância de

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Será que a forma como o suicídio maioria dos registros de suicídio


ocorria nas tragédias ficcionais, concentrava-se em pessoas oriundas de
atribuindo status honroso ao herói, foi classes pobres, e supõe-se que a ausência
apropriada pela nobreza, deixando a de pessoas nobres e ricas dos registros de
população subalterna sem possibilidade suicídio se devia ao fato de que elas
de honra nem dignidade? Será que o tipo controlavam o sistema jurídico e penal.
de suicídio (altruísta ou egoísta) era Famílias ricas, com poder aquisitivo e
atribuído simbolicamente a diferentes influência política, tinham como alterar
segmentos sociais, de acordo com sua as causas de morte de familiares suicidas
localização soberana ou subalterna? As para “morte acidental” ou “morte
tragédias inglesas do fim do século XVI natural”, tal como ocorria com o clero.
e começo do século XVII detêm uma
Esse esforço das elites em não
estética bastante específica com relação
constarem nos registros de suicídio não
ao suicídio: “deitar sobre a própria
se devia somente ao status: as famílias de
espada” em campo de batalha, por
pessoas que tentavam suicídio ou que o
exemplo, é motivo de honra, comum a
consumavam tinham seus bens
militares da nobreza; enforcar-se e
confiscados pelo Estado e pela Igreja, os
afogar-se são acontecimentos raros na
quais não se dissociavam tanto até a
literatura inglesa da época, pois denotam
Revolução Francesa, ao fim do século
covardia e se referiam às classes sociais
XVIII, que influenciou movimentos
inferiores (MINOIS, 1999).
secularistas. Violando a propriedade
Os registros de suicídio seguiam privada do rei e de deus, as famílias
fielmente os estereótipos sociais com deveriam indenizar o Estado e a Igreja
relação à classe e ao status. O suicídio dando-lhes as suas riquezas. Além disso,
acometia pessoas de todas as classes e cerimônias funerárias cristãs eram
grupos sociais, mas a forma como se proibidas para suicidas, obrigando as
registravam e, portanto, categorizavam famílias a enterrarem-nos em solos
tais mortes dependia exatamente do profanos. Com os bens confiscados e
lugar social de prestígio ou de submissão com um familiar ‘amaldiçoado’, as
de quem se matava (MINOIS, 1999). A famílias se encontravam em completa

punição judicial aplicada ao cadáver de um nobre


que morreu por suas próprias mãos durante a
Idade Média. (tradução nossa)

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miséria. Mas que famílias? As ricas, que tentava suicídio ou que o


alterando as causas de morte, não tinham consumava.
seus bens confiscados; as pobres, sem
Em relação à forma com a qual os
condições nem influência para alterá-la,
corpos de suicidas eram tratados, o
empobreciam ainda mais. Pela teoria da
século XVII nos traz algumas inovações,
soberania, o poder se exerce pela
especialmente na França.
apreensão do corpo e de suas posses, de
Primeiramente, o acontecimento seria
forma a “se apoderar da vida para
propriamente julgado, com as
suprimi-la” (FOUCAULT, 1988, p.
circunstâncias da morte detalhadamente
127). O status de propriedade se refere
descritas. Do momento em que
tanto ao corpo quanto aos bens. Essa
encontravam o corpo até o término do
prática de extorsão de bens se perpetuou
julgamento e da sentença, o corpo
mediante a criminalização do suicídio:
deveria ser quimicamente untado para
enquanto era crime, era punido.
adiar sua decomposição. Feito o
Mudanças significativas para veredicto, o cadáver seria arrastado pelas
com o suicídio ocorreram do século XVI ruas, de cabeça para baixo, depois
ao XVIII na Europa. No período da pendurado pelos pés e exposto em praça
Renascença, os argumentos que pública, para em seguida ser despejado
imperavam contra o suicídio em uma vala comum contendo carcaças
concentravam-se na ideia de que este é podres de cavalos. Assim como ocorria
“an affront to Love of oneself, the state, nos suplícios, em que o criminoso era
and society; it offends the God who has torturado vivo em praça pública, os
given us life”50 (MINOIS, 1999, p. 71). corpos suicidados não escapavam dessa
Embora sinais do que poderíamos demonstração do poder soberano. O
chamar de ‘medicalização’ do suicídio já caráter espetacular e teatral das punições
surgissem nesse período, a visão públicas mostrava à população onde o
religiosa e pecaminosa predominava, poder se centralizava. Este período foi
contribuindo para a culpabilização e marcado pelo esforço conjunto das
punição – jurídica e religiosa – do sujeito autoridades religiosas e políticas em
contrariar qualquer tentativa de fazer do

50
uma afronta ao Amor de si mesmo, do estado
e da sociedade; ofende o Deus que nos deu vida.
(tradução nossa)

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suicídio um fenômeno “legítimo”, como ideia divina, serviu como motor da


uma possível escolha racional ou moral. exploração das massas, das
Com o igrejismo e a lógica cristã de escravizações e da desumanização. Por
demonização do suicídio, este ainda era isso, tanto a criminalização como a
visto pela legislação como crime. pecaminação do suicídio conferiam
lucro ao Estado e à Igreja, e os alvos
Bakunin não concebe a
deste lucro – famílias pobres e
existência de um Estado sem religião. A
economicamente exploradas,
existência de Deus demanda a
subordinadas – mostram a indissociação
escravidão humana, pois a religião tem
entre o regime político – do qual advinha
como fundamento o sacrifício.
a moralidade que justificava a
Distorcendo a aparência benevolente do
condenação – e o regime econômico das
Divino, Bakunin (2001, p. 21) afirma
sociedades (KROPOTKIN, 2005). A
que “um senhor, por mais que ele faça e
organização política modela-se de
por mais liberal que queira se mostrar,
acordo com as organizações econômicas.
jamais deixa de ser, por isso, um
O crescimento é econômico, e não
senhor”. Por mais laicas que as
social. Autoridade alguma contribui para
instituições jurídicas se enunciem, a
o desenvolvimento do corpo social em
cruz, a bíblia ou os versos cristãos são
sua coletividade, por igualdade e
referenciados como legitimadores da
liberdade recíprocas (MALATESTA,
justiça, do direito e da humanidade. E
2009). A política, a centralização de
mesmo que materialmente não disponha
poder e a autoridade são a manutenção e
destes símbolos, o cristianismo se
consagração da economia, aproveitando-
enraizou tão intrinsecamente no
se das ferramentas jurídicas e médicas
organismo social que, falsamente
para fazê-la crescer, em detrimento da
desprovido de espiritualidade, tornou-se
miséria de muitos – miséria corroborada
a moral, afirmando uma laicidade neutra
pelo controle sobre como se deve
e transformando o pecado em crime.
direcionar a vida, à produção de riqueza
Para Bakunin, a opressão da para o dominus e para o Estado, e sobre
Igreja e do Estado data desde sua como deve-se direcionar à morte, à
criação. O “erro historicamente exaustão, ao descarte do corpo não mais
necessário” (BAKUNIN, 2001, p. 16), útil para o ritmo da produção –, e sob
que Bakunin entende como a crença na justificação do poder divino igrejista.

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Kropotkin ainda denuncia, e com jurisdição; multiplica os delitos e as penas e


enriquece-se na proporção dos delitos cometidos,
bastante similaridade a Minois, que boa visto que é para seus cofres-fortes que vai o
produto das multas. (KROPOTKIN, 2005, p.
parte dos crimes, principalmente os 174)
“atentados contra as pessoas”, atua pelo Sendo assim, por um viés crítico
“desejo de apoderar-se das riquezas a toda autoridade, identificamos uma
pertencentes a alguém” (KROPOTKIN, função exploratória de uma Lei
2005, p. 181). A Lei, sancionada pelo sacralizada, espraiada no senso comum
Estado e cunhada pela Igreja, serve até hoje. Ainda há noções do suicídio
somente para garantir a perpetuação da como egoísta ou louvável, ou como
exploração. Para Kropotkin (2005, p. desperdício de força produtiva.
171), ela surge para “imobilizar os Procuramos apontar que as jurisdições
costumes vantajosos à minoria de condenação do suicídio não
dominadora, e a autoridade militar derivavam do desejo de preservação da
encarrega-se de assegurar-lhe poder”. vida, mas sim de preservação da
Com a lei, os dominadores soberanos produtividade. Porém, não é somente à
sacralizam o direito ao corpo e à Lei que se confere esta função
propriedade, universalizando uma teoria exploratória. Como vimos, pessoas com
bastante seletiva no campo prático. É status social elevado que se
proibido matar, ao mesmo tempo em que suicidavam/tentavam se suicidar
o criminoso assassino é enforcado em dispunham de duas alternativas: ou
praça pública. É proibido se suicidar, ao alteravam a causa de morte, ou eram
mesmo tempo em que o sujeito suicida, juridicamente consideradas loucas,
quando sobrevive à tentativa, é morto, sendo encarceradas em hospitais em vez
esquartejado e enterrado em valas, e de presídios, e isentas da extorsão do
quando não sobrevive seu corpo é Estado. Com o tempo, e apesar de ainda
conservado, somente para ser exposto e ser legalmente considerado crime, o
dilacerado em praça pública – pelas veredicto non compos mentis – que
mãos das autoridades: isentava o sujeito de responsabilidade
À medida que a Igreja, por um lado, e o senhor, sobre seus atos em virtude de insanidade
por outro, conseguiam escravizar o povo, o
direito de legislar escapa das mãos da nação para – ganhou fama, e o suicídio passou a ser
passar aos privilegiados. A Igreja estende seus cada vez mais explorado pelo campo
poderes; sustentada pelas riquezas que se
acumulam em seus cofres, imiscui-se cada vez científico.
mais na vida privada e, sob o pretexto de salvar
as almas, apodera-se do trabalho de seus servos;
cobra impostos de todas as classes, estende sua

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A DESCRIMINALIZAÇÃO DO louco ou era anulada, desacreditada,


SUICÍDIO E SUA ignorada e rechaçada, ou era vista como
HISPITALIZAÇÃO POR reveladora, profética e mais verdadeira
INTERMÉDIO DA LOUCURA que as demais. Até o século XVIII, a
medicina não se preocupava em escutar
Em contrapartida a qualquer
a palavra do louco. Não importava o que
aspecto demoníaco, a concepção do
ele dissesse, seu discurso não lhe cabia,
suicídio como um desequilíbrio mental
pois sua palavra era significada antes de
começou a surgir gradualmente no
ser pronunciada (FOUCAULT, 2014).
século XVII. Minois percebe um
Como a palavra do louco não era
movimento de cientificização do
concebida, a designação da loucura em
suicídio: enquanto o desespero (despair)
alguém poderia servir a quaisquer fins
se originaria de pecados morais, a
que retirassem do sujeito sua capacidade
melancolia seria fruto de desequilíbrio
de se defender, retratar ou justificar. Ao
psíquico. Ao fim e ao cabo, por alguma
mesmo tempo em que privava o sujeito
instância o suicídio se apresenta como
de si mesmo, por assim dizer, também o
um paradoxo, com demanda constante
isentava de total responsabilidade e
de justificação, seja pela Igreja, pelo
lucidez sobre seus atos ao visualizá-los
Estado ou pelo Hospital.
como resultado de insanidade, como no
A transformação do suicídio em veredicto non compos mentis.
resultado de loucura foi um processo
Retornando ao século XVII, este
duradouro, pois as próprias concepções
veredicto privaria a família do sujeito de
de loucura sofreram mutações. Na Idade
ter suas posses confiscadas e,
Média, por exemplo, a loucura abarcava
curiosamente, ele era aplicado
os vícios, os excessos e faltas contrários
majoritariamente a sujeitos ricos, de
à virtude. Era tida primariamente como
famílias da nobreza. Nem mesmo a
um problema de ordem moral e religiosa;
Igreja considerava ricos suicidas como
na literatura do século XV, o fenômeno
pecadores, pois suas almas seriam
da loucura ocupa o lugar de “uma sátira
privadas da loucura, embora suas mentes
moral” (FOUCAULT, 1978, p. 31),
estivessem contaminadas por ela
complementando a noção de suicídio
(MINOIS, 1999). Já pessoas de classes
como uma ofensa a Deus e a seus
sociais subordinadas, ou consideradas
representantes terrestres. A palavra do
criminosas e sentenciadas à pena de

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morte, eram duplamente criminalizadas se matar eram encaminhadas,


ao cometerem suicídio: primeiro, por compreendemos com mais nitidez os
pecarem contra deus – pois, apesar da mecanismos de encarceramento e
disseminação da medicalização, a Igreja soberania sobre o suicídio. Com o
não deixou de exercer influência sobre desenvolvimento das instituições de
decisões políticas e jurídicas – e, internamento,
segundo, por contrariarem seu soberano,
freqüentemente se encontra a menção: "Quis
representante do Estado. desfazer-se", sem que seja mencionado o estado
de doença ou de furor que a legislação sempre
considerou como desculpa. Em si mesma, a
A compreensão do suicídio como tentativa de suicídio indica uma desordem da
alma, que é preciso reduzir através da coação.
resultante de insanidade fez com que a Não mais se condena aqueles que procuraram o
loucura passasse a ser vista como um suicídio: internam-nos, impõe-se-lhes um regime
que é simultaneamente uma punição e um meio
fenômeno social, enfraquecendo a de impedir qualquer outra tentativa.
(FOUCAULT, 1978, p. 108)
contundência dos suicídios “egoístas”,
Contudo, seu dever de coação
exclusivamente individuais,
não se aproxima de um dever médico, de
pecaminosos e criminosos. Essa
saúde, mas sim de um caráter jurídico,
concepção atuou como combustível para
agente da autoridade governamental: “o
a proliferação de ‘casas de internamento’
Hospital não se assemelha a nenhuma
(maisons d’internement), como Foucault
ideia médica. É uma instância da ordem,
nos mostra. A quantidade de instituições
da ordem monárquica e burguesa que se
asilares mais que duplicou na Europa ao
organiza na França nessa mesma época”
fim do século XVII: “To prevent suicide
(FOUCAULT, 1978, p. 57). Interessante
attempts, people who had tried to kill
a menção de Foucault à ordem, e uma
themselves had their hands bound and
ordem bem específica. A ordem, para
were locked up in wicker cages”51
Kropotkin (2005, p. 88), é sempre a
(MINOIS, 1999, p. 139). Temos, no ano
“servidão, o acorrentamento do
de 1656, em Paris, a criação do Hospital
pensamento, o aviltamento da raça
Geral, instituição que propõe o
humana”, enquanto a desordem se
internamento de tudo o que se encontra
configura como a abolição da
no vasto espectro do que se entendia
autoridade, retratada pelas épocas em
como loucura. Pelo Hospital Geral, ao
que “o gênio popular toma seu livre
qual muitas pessoas que haviam tentado

51
Para evitar tentativas de suicídio, pessoas que foram trancadas em gaiolas de vime. (tradução
tentaram se matar tiveram as mãos amarradas e nossa)

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impulso e dá, em alguns anos, passos boas e más de acordo com sua submissão
gigantescos [...]” (KROPOTKIN, 2005, aos ‘tratamentos’, proposições
p. 89). Seja pelas leis, pela ciência, pela eclesiásticas – o que aponta para a
Igreja, a autoridade se manifesta em prevalência do igrejismo nas dinâmicas
benefício de uma classe, em detrimento disciplinares dos hospitais, visto que
da exploração de outras (MALATESTA, uma perspectiva de cura se conectava
2009). No caso do Hospital Geral, o que obrigatoriamente com a obediência à
encontramos é a atuação de ordens Igreja – e jurídicas.
policiais e jurídicas, sob comando do rei.
Antes de ser tratado como
Por não pertencer diretamente ao campo
“objeto de conhecimento ou piedade, ele
jurídico, nem diretamente religioso –
[o sujeito internado] é tratado como
embora não esteja isento de
sujeito moral” (FOUCAULT, 1978, p.
determinações igrejistas –, Foucault
70). Ou seja, se a conduta hospitalar se
(1978, p. 57) o destaca como uma
guiasse somente pela saúde do
“terceira ordem da repressão”.
organismo humano, o sujeito seria visto
De início, o Hospital Geral tinha somente como doente, não como imoral;
como primeira função o combate à as práticas confessionais e de oração não
mendicância, à ociosidade e a demais seriam fatores determinantes do percurso
desordens sociais, tendo em vista um dos tratamentos, nem do padrão
suposto combate ao desemprego. diagnóstico. Fora da crise econômica, a
Estabelece-se, assim, um contrato: o função dos internamentos era
sujeito desempregado tem o direito de primariamente econômica: “Não se trata
ser alimentado, contanto que se submeta mais de prender os sem trabalho, mas de
às ordens do internamento. Durante dar trabalho aos que foram presos,
muito tempo, o Hospital Geral e demais fazendo-os servir com isso a
“casas de correção” abrigaram prosperidade de todos” (FOUCAULT,
desempregados e pessoas consideradas 1978, p. 77). O internamento ocupa um
indigentes, em quantidade considerável. lugar importante na economia, tal como
Os internamentos em períodos de crise a confiscação estatal dos bens de
tenderiam a crescer drasticamente, sendo familiares de suicidas. A vida e a morte
tanto recompensas como punições: precisam ser economicamente rentáveis.
comida e asilo em troca de obediência. Os argumentos contrários à
Dividiam-se pessoas internadas entre criminalização do suicídio

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centralizavam-se na utilidade soberania ao privar o sujeito do domínio


socioeconômica do sujeito (MINOIS, sobre seu corpo. Na Inglaterra, por
1999). Para justificar a exemplo, em vez de se atentar para as
descriminalização, intelectuais casas de internamento, constroem-se
influentes e ativistas afirmavam que o workhouses (casas de trabalho) ou
suicídio deveria ser ‘permitido’, pois só houses of correction (casas de correção)
se suicidaria quem já não se consideraria em cada condado, as primeiras atingindo
útil socialmente. Se cometer suicídio maior número e sucesso. Ambos os
equivaleria a uma violação da modelos de ‘casas’ buscavam corrigir o
propriedade estatal – isto é, do corpo comportamento desviante, porém, como
produtivo, rentável –, então o suicídio de diferencial, as workhouses, como o
um corpo inútil, pouco produtivo, ainda próprio nome anuncia, propunham a
que fosse uma violação, não teria tanta correção exclusivamente pelo trabalho,
importância e impacto econômico. contribuindo imensamente para a
Quando não havia crise econômica, era economia.
como se o suicídio fosse um favor do
As workhouses, predominantes
sujeito ao Estado: sem forças e saúde
na Inglaterra a partir dos séculos XVII-
para contribuir socialmente, sair de cena
XVIII, e se disseminando por alguns
e não ser um ‘fardo’ era o caminho mais
países europeus, se destinavam a pobres
nobre, em vez de ser um desempregado.
desempregados em busca de trabalho e
De uma forma ou de outra, as instâncias
moradia. Uma vez admitido em uma
soberanas ganhavam: ou o sujeito de fato
workhouse, não se poderia sair sem
morria e deixava de ser este ‘fardo’, ou,
permissão, salvo em exceções. Nelas, as
em combate à mendicância e à
condições de vida eram propositalmente
ociosidade, o sujeito desempregado era
duras para que somente quem realmente
internado e tornava-se mão de obra. Ou,
estivesse em situação de miséria
em última instância, com o suicídio
procurasse por asilo. Contudo, o que se
consumado, seus bens eram confiscados.
encontrava estava longe de uma situação
O Estado enriquecia.
asilar, visto que os trabalhos eram pouco
Institucionalizando as remunerados ou sem remuneração, as
internações, fosse por cunho religioso ou condições de vida eram miseráveis e a
econômico, ou provavelmente por mão de obra era desprezada. Não era
ambos, o Estado e a Igreja exerciam sua incomum que autoridades parlamentares

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lucrassem com o trabalho pesado e não e crime, o suicídio enriquece as elites


remunerado dos moradores. Foucault governantes pela extorsão de
(1978) nos mostra a amplitude desse patrimônio. Como patologia, o suicídio
movimento – ao fim do século XVIII, a produz mão de obra. Não à toa, vivemos
quantidade de workhouses pela em plutocracias, em sistemas de governo
Inglaterra chegou a 126. Ao passar dos daqueles que detêm poder econômico e
anos, esses espaços se direcionaram, em favor dos ricos (DE MORAES,
também, ao tratamento violento de 2019). As elites dominantes são as elites
indivíduos considerados loucos. governantes, explicitamente ou por
debaixo dos panos.
Poderíamos afirmar, talvez e com
bastante estreiteza, que o domínio da Apesar dos esforços de punição e
loucura sobre o suicídio tirou muitas correção de pessoas com comportamento
pessoas do corredor da morte; que a suicida, de propaganda e criminalização
tutela médica, comumente confundida do suicídio, os índices de suicídio não
com cuidado, conferia um mínimo de variaram tanto. Com a crescente
conforto ao oferecer asilos para pessoas preocupação dos governos europeus com
desabrigadas, ao garantir mínima epidemias, principalmente da peste
subsistência a pessoas que atentaram bubônica do século XIV, da varíola e da
contra a própria vida. Tal pensamento cólera, começaram a ser semanalmente
não nos engana. Conquanto as instâncias publicadas listas de causas de morte para
governamentais e autoridades jurídicas contabilizar as mortes e “casualidades”.
sejam defendidas, em larga ou menor O modo de classificação dessas listas
escala, é ingênuo afirmar que as grandes separava as mortes causadas por doenças
“conquistas” sociais foram epidêmicas daquelas provocadas por
integralmente movidas por puro espírito outras doenças – como endemias,
revolucionário ou por apelo problemas de saúde menos graves, etc. –
governamental e religioso às mazelas ou por loucura, o que nos remete ao
sociais. Liberdade e igualdade suicídio.
facilmente se tornam slogans, “inscritas
A partir da noção de população e
nos muros das igrejas e das prisões”
das estatísticas sobre as mortalidades e
(KROPOTKIN, 2005, p. 133) e,
suas causas, Minois conclui que as
adicionamos, dos hospitais, quando as
condenações infernais do clero e a
elites dominantes lucram. Como pecado

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repressão jurídica contra o suicídio não In Château-Gontier in 1718 Marie Jaguelin, a


poor girl six months pregnant, poisoned herself
exerceram muito efeito: as pessoas, pelo out of shame. The unfortunate girl did not realize
that only the nobility could kill themselves with
jeito, continuavam se matando de uma impunity. Her cadaver was disinterred, brought
to trial, sentenced, then dragged on a hurdle face
forma ou de outra. “What hold could down. When the group reached the town square,
threats of hell have when people thought the executioner slit her womb and extracted what
remained of the foetus, which was buried in the
life worse than hell?”52 (MINOIS, 1999, section of the cemetery reserved to the
unbaptized. Marie’s lacerated body was hanged
p. 154). by the feet and left, ignominiously exposed to the
public gaze, until it rotted. It was eventually
burned, and the ashes were thrown to the winds.
O Estado propunha a diminuição (MINOIS, 1999, p. 202)
das ocorrências de suicídio por punições
É pelo direito de matar que o
severas, suplícios póstumos, e
soberano se torna habilitado a “deixar
posteriormente, ao curso da História, por
viver” e a “fazer morrer” (FOUCAULT,
internações, tratamentos, patologização
1999), e é pelo desmembramento do
e julgamentos “mais humanizados”.
cadáver que o Estado reitera sua
Essa segunda forma ambicionava a
soberania, expressa seu poder, como
correção, a recuperação da moralidade e
uma morte “póstuma”, que pune o corpo,
a salvação das almas dos suicidas.
o dilacera e o expõe em praça pública.
Contudo, é pelas punições físicas,
também presentes nos hospitais, naquilo Como disposto na seção anterior,

que vieram a se tornar hospícios e até o século XVII o tema do suicídio era

manicômios, que a soberania universalmente condenado por meio de

governamental se expressa. Em relação repressões religiosas e jurídicas. Com a

aos suplícios dos cadáveres, imaginava- insurgência da medicalização, a Igreja

se que, se ao suicídio fossem acoplados não deixa de exercer seu poder. Embora

o desmembramento póstumo do corpo, a não mais atribua ao suicídio o caráter de

confiscação de bens e a condenação da pecado, a Igreja se encontra bastante

alma à eterna danação, talvez as pessoas ativa na organização das instituições

refletissem um pouco mais antes de hospitalares – se as ameaças de danação

tentar o suicídio. Como exemplo, Minois pós-morte não impediam que as pessoas

nos traz o caso de Marie Jaguelin: se matassem, infiltrar-se nos esquemas


de internação poderia ser uma alternativa

52
Que influência as ameaças do inferno podem
ter se as pessoas pensavam que a vida era pior do
que o inferno? (tradução nossa)

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menos ineficaz. Tanto o Hospital Geral Segundo Minois, os olhares voltados ao


como demais casas de internação suicídio ganharam mais compaixão do
submetiam as pessoas internadas a que condenação, implicando em
exercícios religiosos: dificuldades governamentais para
‘controlar’ os discursos populares e
em cada uma dessas casas, leva-se uma vida
quase de convento, escandida por leituras, midiáticos sobre o tema. No caso da
ofícios, orações meditações: Faz-se oração em
comum de manhã e à noite nos dormitórios; e em França, em sua monarquia absolutista, o
diferentes momentos do dia, fazem-se exercícios
pios, orações e leituras espirituais. rei encarnava o verdadeiro soberano,
(FOUCAULT, 1978, p. 60)
detendo poder sobre a vida de seus
Para a Igreja, o objetivo da súditos. Se o suicídio era uma ofensa ao
internação é a construção do sujeito Estado e à Igreja, pois a vida do sujeito
virtuoso e da cidade ideal. Para isso, pertencia ao rei e a Deus, como conciliar
requisita-se uma polícia devidamente a necessidade de controlar o corpo e a
armada e “transparente aos princípios da ‘compaixão’ popular sobre o suicídio? A
religião” (FOUCAULT, 1978, p. 88), “jaula de vime” surge como uma solução
que promova a internação de sujeitos eficiente para impedir uma segunda
incongruentes com a paisagem ordenada tentativa de suicídio, reiterando o poder
da cidade; dentre estes tais soberano sobre o corpo ao lado de
incongruentes, estão os desempregados, propostas ‘curativas’: o sujeito que
as pessoas sem moradia, os loucos, as tentou suicídio seria preso à jaula, “com
pessoas cuja sexualidade, identidade e um buraco feito na parte superior para a
expressão de gênero – em termos atuais cabeça, e à qual as mãos estão
– têm caráter de pecado ou crime, amarradas, ou o “armário” que fecha o
pessoas que “se deixam ir de si mesmas”. indivíduo em pé, até o pescoço, deixando
Além de inserir-se nas instituições apenas a cabeça de fora” (FOUCAULT,
“médicas” jurídicas, a Igreja constrói, 1978, p. 108). A compaixão, em
por si mesma, congregações com realidade, mascarava o desejo de
funções semelhantes às dos hospitais. correção; e a correção mascarava o
desejo de punição àqueles que se
Contudo, ao longo do século
opusessem a compor o corpo produtivo
XVIII, especialmente na França,
pertencente aos governantes políticos e
percebe-se certo afrouxamento das
econômicos.
autoridades governamentais com relação
às punições e julgamentos ao suicídio.

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O cenário, ao fim do século julgamentos neutros e factuais. Mas,


XVIII, após a Revolução Francesa, é da como disse Foucault, a ciência parte de
separação entre Igreja e Estado e dos uma moral há tempos sedimentada e
movimentos de secularização da política sacralizada, desbancando a possibilidade
e do ensino. As instâncias religiosas de neutralidade científica. Obedecendo
igrejistas, não podendo mais condenar aos ditames da modernidade, da moral
juridicamente o suicídio enquanto religiosa, a ciência se diz fiel à razão, e é
pecado ou reiterar seu caráter criminoso esta mesma razão adotada pelos
em âmbito legal, passaram a fazê-los por “amantes do Estado” – que, segundo De
meios adversos, fosse pelos tratamentos Moraes (2020, p. 71), seriam todos
dos hospitais ou pelas ‘casas de aqueles que defendem o Estado a todo
Caridade’, surgidas no século XVIII por custo, independentemente das dinâmicas
iniciativa das igrejas em alguns países opressivas e organizações políticas que o
europeus (FOUCAULT, 1978). Sendo compõem – para perpetuar o exercício da
assim, no meio jurídico, nas instâncias autoridade. A idolatria ao Estado é o que
administrativas governamentais, a De Moraes chama de “estadolatria”,
condenação pelo pecado não era mais segundo a qual a organização social
viável, tal como não seria a condenação centralizada em um Estado é tida como a
pelo crime, a partir de meados do século única possibilidade de existência de uma
XIX, como logo demonstraremos pelo sociedade, o que desconsidera que as
processo de descriminalização. Como populações são capazes de se
mostra Foucault: autogovernar e de se autodeterminar
coletivamente.
o sacrilégio do suicídio vê-se anexado ao
domínio neutro da insanidade. O sistema de
repressão com o qual se sanciona esse ato libera- Para De Moraes (2020, p. 71), o
o de qualquer significação profanadora e,
definindo-o como conduta moral, o conduzirá Estado se justifica pela ideia de que “as
progressivamente para os limites de uma
psicologia. Pois sem dúvida pertence à cultura pessoas precisam ser governadas pela
ocidental, em sua evolução nos três últimos sua incapacidade intelectual”,
séculos, o fato de haver fundado uma ciência do
homem baseada na moralização daquilo que para remetendo-nos à dicotomização
ela, outrora, tinha sido sagrado. (FOUCAULT,
1978, p. 108) cartesiana da razão e das paixões. Quem
A postura das autoridades governa sustenta sua soberania não só
governamentais diante do suicida pela tirania da força, mas pela tirania do
deveria se apoiar na ciência, tida como saber. No que diz respeito ao suicídio,
única possibilidade de se fazer deve haver uma justificativa viável que

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destitua, do corpo suicida, não só seus jurídicas e as famílias: corpos de pessoas


bens, como também seu pertencimento à que haviam se suicidado não seriam mais
ordem da razão, pois a única ordem arrastados pelas ruas, enforcados e
possibilitada é a da obediência. A expostos em praça pública; em troca,
loucura, como concebida pelas suas famílias promoveriam enterros
instituições médicas e jurídicas, não dentro dos cemitérios, porém discretos e
pertence a essa ordem. A concepção do sem cerimônias. Para Minois, os
suicídio como fruto de patologia não o esforços governamentais franceses em
isenta de penalidades, e seu processo de silenciar notícias e pensamentos sobre o
descriminalização somente desloca seu suicídio contribuíram para a perpetuação
local de encarceramento e seus métodos e o crescimento de seu caráter de tabu.
punitivos.
Assim como se constituiu a
Com a sensibilidade popular postura francesa perante o fenômeno do
perante o suicídio, suas ocorrências suicídio, outros países europeus
passaram a denunciar o fracasso do aderiram à mesma linha de
governo em propiciar o bem-estar social, silenciamento, com exceção da
evidenciando suas falhas e gerando Inglaterra, que agiu de forma bem
revoltas e exigências populares. A diferente. Nela, ocorreu um aumento das
solução encontrada foi o silenciamento divulgações de suicídios, acarretando em
de todo e qualquer discurso sobre o sua naturalização ao olhar do público. Os
suicídio. A imprensa francesa, na jornais da época não só noticiavam os
segunda metade do século XVIII, suicídios ocorridos no país, como
tornou-se um túmulo: sem divulgação de expunham as circunstâncias da morte, as
suicídios nacionais e locais, sem possíveis causas e, se fosse o caso, as
publicação de opiniões filosóficas sobre cartas de despedida. Publicando as
o tema. Livros que aparentavam sofridas cartas, a opinião popular sobre o
defender a escolha sobre o ato do suicídio reforçou seus sentimentos de
suicídio, ou melhor, que propunham sua compaixão e misericórdia. Na Inglaterra,
descriminalização e “despecaminação” as penalidades religiosas foram extintas
foram queimados, tal como demais em 1823, e as penais, em 1870. Contudo,
materiais com postura semelhante apesar de “normalizar” o suicídio em sua
(MINOIS, 1999). Havia uma espécie de imprensa, a Inglaterra foi o último país
acordo entre a Igreja, as autoridades europeu a oficialmente descriminalizá-

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lo, em 1931. Até a Primeira Guerra Na Europa, o suicídio deixou de


Mundial, há registros da utilização do ser um crime diretamente de forma
veredicto felo de se na Inglaterra. Ou gradual:
seja, ainda que, aos olhos do público, o
At the end of the eighteenth century, suicide was
suicídio não fosse mais considerado um being decriminalized nearly everywhere in
Europe. That process was often accompanied by
crime, o Estado não abdicou de sua a conspiracy of silence, in France in particular,
where those who held political and religious
autoridade sobre os corpos de quem se responsibility slowly but vaguely came to realize
that the suicide rate reflected the health of the
suicidava. A nação que, na perspectiva
entire social group.53 (MINOIS, 1999, p. 301)
popular, menos julgava moralmente o
Pela concepção do suicídio como
suicídio foi a que, por mais tempo, o
um fenômeno social e concernente à
condenou juridicamente.
saúde do indivíduo, o movimento de
Esses fatos remetem a certo descriminalização se fortaleceu. Temos
“balanceamento” entre o poder jurídico e então que, historicamente, o suicídio
os debates populares. A relação entre passou a ser visto juridicamente como
opinião pública e o campo jurídico foi uma patologia, ou como o resultado final
inversa. Silenciando o suicídio e de transtornos mentais, sendo o
promovendo seu tabu, como ocorrido na indivíduo que tenta suicídio
França, a descriminalização jurídica do encaminhado a instituições de saúde, o
suicídio não interferiu em sua que culminou, enfim, na retirada do
criminalização moral pela população; suicídio da categoria “crime”.
agora, em uma população que considera
Enquanto pecado, o suicídio era
o suicídio como um acontecimento
condenado violentamente pela Igreja.
normal, e até mesmo como um exercício
Enquanto crime, o suicídio, ainda que
de liberdade, pensando na libertinagem
imerso em legislação, carregava a
dos séculos XVIII e XIX, a perpetuação
imoralidade do pecado e o julgamento
da criminalização surge como um
religioso igrejista. Enquanto patologia, o
contraponto necessário para a
suicídio era enclausurado em
manutenção da soberania do Estado e da
workhouses e casas de correção, e ainda
imperatividade de suas leis.
carregava remanescentes de pecado –

53
Ao fim do século XVIII, o suicídio estava França, onde aqueles que detinham
sendo descriminalizado em quase toda a Europa. responsabilidade política e religiosa perceberam,
Esse processo foi muitas vezes acompanhado por lenta mas vagamente, que a taxa de suicídios
uma conspiração do silêncio, particularmente na refletia a saúde de todo o grupo social. (tradução
nossa)

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sob os ditames da Igreja – e de crime – CONCLUSÃO


tendo em vista o enclausuramento. Até O que nos mostram as respostas
mesmo após a separação jurídica entre
dos Estados modernos europeus – que,
Igreja e Estado, as casas de Caridade
embora sejam nossos alvos de estudo, se
continuaram sendo fortes veículos de
refletem em toda terra ocidentalizada –
atuação da Igreja, em relação a pessoas
ao fenômeno do suicídio? Como vimos,
tidas como loucas e imorais, categorias
o suicídio se divide em pecado, crime e
nas quais eram enquadrados os suicidas.
patologia. Embora não neguemos
E, como tabu, o suicídio retorna aos três
existência de uma condenação moral do
âmbitos que lhe formaram no imaginário
suicídio, no sentido religioso e no senso
social ocidental – pecado, crime e comum, este não mais consta, em
loucura. A maneira como
maioria, enquanto um crime, algo
compreendemos o suicídio hoje, sua
punível, em virtude de seu caráter
transformação em tabu, decorre desde o
patológico. Como pecado, a influência
pecado, desde a necessidade de esconder
da Igreja sempre se exerce, tanto “extra-
o suicídio de um familiar por medo da
oficialmente” em instituições de saúde
extorsão de bens para o enriquecimento
como em casas de Caridade. No entanto,
das elites, e da vergonha, pela ideia de
o caráter de crime e de pecado não possui
que o suicídio é um ato egoísta; afinal,
mais validade jurídica. O que nos resta é
não pertencemos a nós mesmos, e sim ao
a patologia.
dominus. Cometer suicídio ou tentar se
suicidar deixou de ser crime. Contudo, É ingênuo pensar que, como

podemos identificar as heranças da doença, o suicídio não mais incomoda os

pecaminação, da criminalização, dos grupos para os quais pende o poder. Os

suplícios e do enclausuramento não avanços científicos que fizeram do

somente no imaginário, como também suicídio mais doença do que crime não

nos processos modernos de internação estão isentos de teor político. Kropotkin

forçada, no desenvolvimento da nos diz: “O cientista, assim como o poeta

psiquiatria, das terapias de choque, do ou o artista, é sempre o produto da

tratamento de suicidas como culpados e sociedade na qual se movimenta e

desmerecedores de viver, por ingratidão aprende” (KROPOTKIN, 2005, p. 55);

à vida – que lhes é “concedida” por deus em outras palavras, os progressos da

e que lhes é “garantida” pelo Estado. ciência só ocorrem quando o sucesso, a


aceitação acadêmica e prática já os

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prevêem no imaginário social. A lente que se opõem a tais lógicas se deparam


por meio da qual a ciência é produzida com uma barreira de autores que lhes
vale-se de valorizar e aprimorar os desacreditam e que deslegitimam suas
interesses de determinados grupos, em narrativas. Como crítica aos Estados
detrimento do aniquilamento de outros modernos, a concepção defendida no
muitos; e quando os avanços científicos presente trabalho – de que o modo como
se voltam somente a um grupo as autoridades governamentais e
específico, ou quando o caráter de religiosas lidaram e lidam com o suicídio
avanço só serve a esse mesmo grupo, a parte de um viés econômico que busca se
ciência torna-se um “objeto de luxo” justificar moralmente – se depara com
(KROPOTKIN, 2005, p. 54), garantindo autores estadolátricos (DE MORAES,
o bem-estar de uns e promovendo ou 2020), que defendem a existência do
justificando a miséria e o Estado a qualquer custo e a manutenção
encarceramento de outros. de um regime econômico que, apesar de
empurrar seus trabalhadores à beira do
Se, para Kropotkin (2005), a
abismo, não poderia deixar de existir.
ciência agia em benefício de uns em
detrimento de outros, hoje O viés do qual parte a ciência
compreendemos que a ciência se vê moderna sublinha a defesa da exploração
mergulhada na produtividade e a condenação, seja moral, jurídica ou
compulsória, na idolatria do Estado, na patológica, de quem desafia a
hierarquização e defesa da autoridade imperatividade do controle sobre seu
como fundamental para a organização corpo. Não queremos dizer, com isso,
social. Como fazer ciência se as que a ciência de nada vale. Como
ferramentas para tal já não são Bakunin, “reconhecemos a autoridade
alcançáveis àqueles que desejam romper absoluta da ciência, mas rejeitamos a
com as concepções acima apresentadas? infalibilidade e a universalidade do
A academia não admite a integração, em cientista” (BAKUNIN, 2001, p. 27), uma
seus currículos, de bibliografias que não vez este sendo o produto do meio em que
condigam com suas tradições vive. Tendo a ciência como produto da
ocidentalizadas e modernas. Se a vida, e somente existente a partir de viva
modernidade nasceu pela constituição de coletividade, a ciência deve atuar em
um Estado racista, patriarcal branco e favor da vida, iluminando-a, e não
cristão (DE MORAES, 2020), saberes governando-a. Na medida em que o

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cientista é o produto de uma sociedade Bakunin compreende a natureza, as leis


autoritária, como diria Kropotkin, a naturais, de forma um tanto diferente.
ciência como a concebemos – a ciência Para ele, a liberdade consiste unicamente
ocidental – nada mais é do que a na obediência às leis naturais, mas não
justificação dessa autoridade. Bakunin qualquer lei. Não leis externas, impostas
propõe, portanto, a revolta da vida contra por um soberano terreno ou por um ser
a autoridade da ciência, colocando-a em divinizado, mas leis reconhecidas
seu lugar de iluminar a vida, retirando- enquanto naturais pelo próprio sujeito
lhe a governança. Foi exatamente o que as segue. O cenário em que o
oposto disso que ocorreu no século dominus submetia o colonus a condições
XVII, quando a loucura passou a existir de vida miseráveis e indignas; o cenário
somente dentro dos hospitais e das casas em que as workhouses e as casas de
de internamento. correção se mostravam como a única
possibilidade de asilo, mas, em
Pelo crescimento rápido e
realidade, enclausuravam corpos
exponencial das internações,
moralmente condenados; o cenário em
observamos a vastidão da loucura em
que, juridicamente, uma pessoa não
comportamentos e características
poderia tirar sua própria vida – nem
destoantes do modelo universalizado de
realmente vivê-la –, pois esta pertenceria
normalidade. Esse “homem normal”,
ao Estado e à Igreja, e não porque toda
Foucault aponta, é alimentado pela forte
vida é digna de ser preservada; em que a
psicopatologia do século XIX, que o
medicina age para tutelar, regular o
considera como “anterior a toda
corpo que foge dos modelos de produção
experiência da doença” (FOUCAULT,
e comportamento; estes cenários
1978, p. 148), como produto da
desobedecem a defesa da igualdade e da
natureza. Anterior não só à experiência
liberdade que rege o pensamento
de doença, mas a qualquer experiência
anarquista.
humana, a concepção moderna de
natureza é bastante utilizada para a É o ser humano que produz a
propagação de determinismos, tais como natureza, e a liberdade, também
a dicotomização do normal e do produzida, depende do poder que o
patológico. Essa concepção de natureza, sujeito tem de determinar suas próprias
anterior a qualquer construção humana, leis e sua própria naturalidade. Quando o
não nos apetece. Em contrapartida, sujeito se encontra incapaz de determinar

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suas leis, sua percepção de mundo e sua corrompido, “precisamente porque ele [o
liberdade são aniquiladas. Se a natureza Estado] o impõe, e toda a ordem provoca
é produzida pela liberdade de se e suscita a revolta legítima da liberdade”
autodeterminar, o que podemos dizer da (BAKUNIN, 1975, p. 16).
imposição da loucura a sujeitos que, por
Nesse sentido, seria possível
uma razão ou outra, destoam do que seria
defender instituições de tutela e
o natural, o comportamento
regulação que afirmam prezar pelo
normalizado? O que nos preocupa não é
cuidado, estando mergulhadas na mesma
a loucura, mas a imposição de uma
substância que forma o Estado capitalista
racionalidade construída pelos
moderno e a autoridade de poucos sobre
princípios de autoridade, hierarquia,
muitos? A autoridade se revela
centralização de poder e igrejismo – o
continuamente, seja pelo pecado, pelo
que reflete a perversidade de uma ciência
crime ou pela patologia, e em nenhum
que já justificou, e justifica, o extermínio
destes contextos é possível encontrar
de nações inteiras, a escravização e o
corpos com plena liberdade sobre si
encarceramento de grupos
mesmos, com a possibilidade de se
historicamente aniquilados...
autogovernar.
Independentemente dos ‘lados’ aos quais
pertençam, a imposição de um bem é De Moraes (2020) concebe a
sempre um mal (MALATESTA, 2009). anarquia como a única teoria que afirma
Não é possível fazer um bem aos sujeitos a capacidade dos sujeitos de se
contra a vontade dos mesmos; se o autogovernarem economicamente,
processo a partir do qual o “bem” atua politicamente, socialmente. Estendemos
em nossas vidas tem alguma centelha de o autogoverno à possibilidade de viver
não consentimento, de poder soberano, dignamente. Pela Igreja, pela Justiça ou
tal processo é invariavelmente pela Medicina, a autoridade manifesta
autoritário. Seja o bem imposto de um seu poder, desde a organização política
grande número a um pequeno número, de um parlamento até a organização
seja imposto de um pequeno número de patriarcal de uma família; desde a
detentores do saber a uma legião de denominação de um sistema de governo
sujeitos anormalizados, o anarquismo se até a manutenção da sobrevida de corpos
apresenta como avesso a qualquer tipo marginalizados em vias de se obter lucro.
de imposição. O bem imposto é Para sustentar a soberania, é preciso

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deter o poder sobre a vida e sobre a constantemente submetidos, à


morte, produzindo a morte ao mesmo contradição do Estado quando proíbe a
tempo em que se pune quem a produz morte ao mesmo tempo em que a produz.
para si, pois somente domina a morte
Por uma perspectiva anarquista,
aquele que domina a vida, e a vida de
refutamos quaisquer tentativas de
muitos está nas mãos de poucos. Através
universalizar ou essencializar
de suas instituições, o Estado soberano
pensamentos acerca do suicídio e de toda
espetaculariza a morte para reiterar sua
produção de saber. Portanto,
autoridade sobre a vida, e o fenômeno do
concebemos este estudo como uma
suicídio, com todos os simbolismos
análise do fenômeno do suicídio e das
históricos aqui já apresentados, ocupa
dinâmicas que o perpassam por meio das
um lugar central na compreensão da
óticas libertárias aqui aplicadas, e
soberania.
propomos a construção de novas óticas
Não queremos dizer, com isso, através das quais a saúde sirva como uma
que rejeitamos os estudos ferramenta de cuidado e preservação da
suicidológicos, as tentativas de vida e da dignidade humana. Nesse
prevenção, os cuidados que a medicina e sentido, finalizamos com uma
a psicologia têm a oferecer. A defesa do provocação, já incitada ao longo do
autogoverno e da autodeterminação; a texto, em relação ao fenômeno do
rejeição a qualquer imposição tutelar, suicídio na Europa ao longo dos séculos
por mais que afirme promover o XV-XIX, mas aplicável também à
cuidado; a revolta contra o exercício das atualidade: o que realmente nos faz
autoridades religiosas, jurídicas e condenar a morte auto-infligida seria a
médicas: nada disso anula a necessidade preocupação genuína com o outro, ou
de acolher pessoas em sofrimento com o valor econômico da produtividade
psíquico, muito pelo contrário. Nossa do corpo, ou com a ideia de que o outro
crítica se dirige à ciência autoritária, ao não tem o direito de deixa de viver, pois
estado de iminência da morte ao qual não pertence a si, mas a uma instância
corpos subalternizados são superior?

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