Follow Mar 29 · 21 min readp porPAUL PRECIADO TRADUÇÃO: Sara Wagner Pimenta Gonçalves Junior
A gestão política das epidemias põe em cena a utopia da
comunidade e as fantasias imunes de uma sociedade, externalizando seus sonhos de onipotência de sua soberania política.
SR. GARCÍA em ElPais.com
Se Michel Foucault tivesse sobrevivido ao flagelo da AIDS e
tivesse resistido até à invenção da tríplice-terapia, teria hoje 93 anos: teria ele aceito de bom grado ficar fechado no seu apartamento na rue Vaugirard? O primeiro filósofo da história a morrer das complicações geradas pelo vírus da imunodeficiência adquirida deixou-nos algumas das noções mais eficazes para pensar na gestão política da epidemia que, em meio ao pânico e à desinformação, se tornam tão úteis como uma boa máscara cognitiva.
A coisa mais importante que aprendemos com Foucault é que
o corpo vivo (e portanto mortal) é o objeto central de toda política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une politique des corps (não há política que não seja uma política de corpos). Mas o corpo não é para Foucault um determinado organismo biológico sobre o qual o poder age. A própria tarefa da ação política está em fabricar um corpo, pô- lo a funcionar, definir os seus modos de reprodução, prefigurar os modos de discurso através dos quais esse corpo é ficcionado até ser capaz de dizer “eu”. Todo o trabalho de Foucault pode ser entendido como uma análise histórica das diferentes técnicas através das quais o poder gere a vida e a morte das populações. Entre 1975 e 1976, os anos em que publicou “Vigiar e Punir” e o primeiro volume da História da Sexualidade, Foucault usou a noção de “biopolítica” para falar de uma relação que o poder estabeleceu com o corpo social nos tempos modernos. Ele descreveu a transição do que ele chamou de “sociedade soberana” para uma “sociedade disciplinar” como a passagem de uma sociedade que define a soberania em termos de tomada de decisões e ritualização da morte para uma sociedade que gere e maximiza a vida das populações em termos do interesse nacional. Para Foucault, as técnicas de governo biopolítico espalharam-se como uma teia de poder que foi além da esfera legal ou punitiva para se tornar uma força “somatopolítica”, uma forma de poder espacializado que se estendeu por todo o território e para o corpo individual.
Durante e após a crise da AIDS, numerosos autores
expandiram e radicalizaram as hipóteses de Foucault e as suas relações com as políticas imunitárias. O filósofo italiano, Roberto Esposito, analisou as relações entre a noção política de “comunidade” e a noção biomédica e epidemiológica de “imunidade”. Comunidade e imunidade, compartilham uma raiz comum, o muni, em latim, o munus, era a homenagem que alguém tinha que pagar por viver ou fazer parte da comunidade. A comunidade é, cum (con) munus (dever, lei, obrigação, mas também oferta): um grupo humano que está ligado por uma lei e uma obrigação comum, mas também por um dom, por uma oferta. O substantivo inmunitas, é um vocábulo privativo, que deriva da negação do munus. No direito romano, a immunitas, era uma dispensa ou privilégio que exonerava alguém de deveres corporativos comuns a todos. Aquele que tinha sido exonerado era imune. Enquanto que aquele que era des-imune, era aquele removido de todos os privilégios da vida comunitária.
Roberto Esposito nos ensina que toda biopolítica é
imunológica: assume uma definição de comunidade e o estabelecimento de uma hierarquia entre aqueles corpos que estão isentos de impostos (aqueles que são considerados imunes) e aqueles que a comunidade percebe como potencialmente perigosos (os demuni) e que serão excluídos em um ato de proteção imunológica. Este é o paradoxo da biopolítica: todo ato de proteção implica uma definição, imune da comunidade, segundo a qual a comunidade dará a si mesma a autoridade de sacrificar outras vidas, em benefício de uma ideia de sua própria soberania. O estado de exceção é a normalização deste paradoxo insuportável.
O vírus atua à nossa imagem e semelhança, apenas
se reproduz e estende a toda a população, as formas dominantes de gestão biopolítica e necropolítica que já estavam em funcionamento no território nacional.
A partir do século XIX, com a descoberta da primeira vacina
contra a varicela e as experiências de Pasteur e Koch, a noção de imunidade migrou da esfera legal e adquiriu significado médico. As democracias europeias liberais e patriarcais do século XIX construíram o ideal do indivíduo moderno não só como um agente econômico livre (masculino, branco, heterossexual), mas também como um corpo imune, radicalmente separado, que nada deve à comunidade. Para Esposito, a forma como a Alemanha nazista caracterizou parte de sua própria população (judeus, mas também ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência) como corpos que ameaçavam a soberania da comunidade ariana é um exemplo paradigmático dos perigos da gestão imune. Este entendimento imunológico da sociedade não terminou com o nazismo, mas, pelo contrário, sobreviveu na Europa legitimando as políticas neoliberais de gestão das suas minorias racializadas e das populações migrantes. Foi este entendimento imunológico que forjou a comunidade econômica europeia, o mito de Shengen e as técnicas da Frontex nos últimos anos.
Em 1994, na Flexible Bodies, a antropóloga da Universidade
de Princeton, Emily Martin, examinou a relação entre imunidade e política na cultura americana durante as crises da poliomielite e da AIDS. Martin chegou a algumas conclusões que são relevantes para analisar a crise atual. A imunidade corporal, argumenta Martin, não é apenas um mero fato biológico independente de variáveis culturais e políticas. Pelo contrário, o que entendemos por imunidade é construído coletivamente através de critérios sociais e políticos que, alternativamente, produzem soberania ou exclusão, proteção ou estigma, vida ou morte.
Se repensarmos a história de algumas das epidemias
mundiais dos últimos cinco séculos através do prisma oferecido por Michel Foucault, Roberto Esposito e Emily Martin, é possível elaborar uma hipótese que poderia tomar a forma de uma equação: diga-me como sua comunidade constrói sua soberania política e eu lhe direi que formas suas epidemias tomarão e como você lidará com elas. As diferentes epidemias materializam no âmbito do corpo individual as obsessões que dominam a gestão política da vida e da morte das populações num determinado período. Para colocar nos termos de Foucault, uma epidemia radicaliza e desloca as técnicas biopolíticas aplicadas ao território nacional para o nível da anatomia política, inscrevendo-as no corpo individual. Ao mesmo tempo, uma epidemia torna possível estender a toda a população as medidas políticas de “imunização” que até então tinham sido aplicadas violentamente àqueles que tinham sido considerados “estrangeiros”, tanto dentro como fora das fronteiras do território nacional.
A gestão política das epidemias põe em cena a utopia da
comunidade e as fantasias imunes de uma sociedade, externalizando seus sonhos de onipotência (e os retumbantes fracassos) de sua soberania política. A hipótese de Michel Foucault, Roberto Esposito e Emily Martin nada tem a ver com uma teoria da conspiração. Não é a ridícula ideia de que o vírus seja uma invenção de laboratório ou um plano maquiavélico para difundir políticas ainda mais autoritárias. Pelo contrário, o vírus atua à nossa imagem e semelhança, apenas reproduz, materializa, intensifica e estende a toda a população, as formas dominantes de gestão biopolítica e necropolítica que já estavam a funcionar no território nacional e nos seus limites. Assim, cada sociedade pode definir-se pela epidemia que a ameaça e pela forma como se organiza face a ela.
Pensemos, por exemplo, na sífilis. A epidemia atingiu pela
primeira vez a cidade de Nápoles em 1494. A empresa colonial europeia tinha acabado de começar. A sífilis era como a arma de partida para a destruição colonial e as políticas raciais que viriam com ela. Os ingleses chamavam- lhe “a doença francesa”, os franceses diziam que era “a doença napolitana” e os napolitanos diziam que tinha vindo da América: dizia-se que tinha sido trazida pelos colonizadores que tinham sido infectados pelos índios… O vírus, como Derrida nos ensinou, é, por definição, o estrangeiro, o outro, o estranho. Uma infecção sexualmente transmissível, a sífilis materializou nos corpos dos séculos XVI a XIX as formas de repressão e exclusão social que dominaram a modernidade patriarcal-colonial: a obsessão pela pureza racial, a proibição dos chamados “casamentos mistos” entre pessoas de diferentes classes e “raças”, e as múltiplas restrições às relações sexuais e extramatrimoniais.
O que estará no centro do debate durante e depois
desta crise é que vidas estaremos dispostos a salvar e que serão sacrificadas.
O modelo comunitário de imunidade à utopia e sífilis é o do
corpo branco burguês sexualmente confinado à vida de casado como núcleo de reprodução do corpo nacional. Assim, a prostituta tornou-se o corpo vivo que condensou todos os significantes políticos abjetos durante a epidemia: uma mulher trabalhadora e muitas vezes racializada, um corpo fora dos regulamentos do lar e do casamento, que tornou a sua sexualidade o seu meio de produção, a trabalhadora do sexo tornou-se visível, controlada e estigmatizada como o principal vetor da propagação do vírus. Mas não foi a repressão da prostituição ou o confinamento de prostitutas em bordéis nacionais (como a Restif de la Bretonne imaginava) que curou a sífilis. Bem ao contrário. O confinamento das prostitutas só as tornava mais vulneráveis à doença. O que curou a sífilis foi a descoberta de antibióticos e especialmente a penicilina em 1928, precisamente um momento de profundas transformações da política sexual na Europa com os primeiros movimentos de descolonização, o acesso das mulheres brancas ao voto, as primeiras descriminalizações da homossexualidade e uma relativa liberalização da ética do casamento heterossexual. Meio século depois, a AIDS era para a sociedade heteronormativa neoliberal do século XX, o que a sífilis tinha sido para a sociedade industrial e colonial. Os primeiros casos surgiram em 1981, precisamente no momento em que a homossexualidade já não era considerada uma doença psiquiátrica, depois de ter sido objeto de perseguição e discriminação social durante décadas. A primeira fase da epidemia afetou principalmente os então chamados 4 H’s: homossexuais, (hookers) prostitutas, hemofílicos e usuários de heroína. A AIDS, remasterizou e atualizou a rede de controle sobre o corpo e a sexualidade que a sífilis tinha tecido e que a penicilina e a descolonização, movimentos feministas e homossexuais, tinham desmantelado e transformado nas décadas de 1960 e 1970. Como no caso das prostitutas na crise da sífilis, a repressão da homossexualidade só causou mais mortes. O que está progressivamente transformando a AIDS em uma doença crônica tem sido a despatologização da homossexualidade, a autonomia farmacológica do Sul, a emancipação sexual das mulheres, seu direito de dizer não a práticas sem preservativos e o acesso da população afetada, independentemente de sua classe social ou grau de racialização, a tríplice-terapias. O modelo comunitário/imunitário de AIDS tem a ver com a fantasia da soberania sexual masculina entendida como o direito de penetração não negociável, enquanto que todo o corpo sexualmente penetrado (homossexual, mulher, toda a forma de análise) é percebido como desprovido de soberania.
Vamos agora voltar à nossa situação atual. Muito antes do
aparecimento do Covid-19 já tínhamos iniciado um processo de mutação planetária. Já estávamos passando, antes do vírus, por uma mudança social e política tão profunda quanto a que afetou as sociedades que desenvolveram a sífilis. No século XV, com a invenção da imprensa gráfica e a expansão do capitalismo colonial, houve uma mudança de uma sociedade oral para uma sociedade escrita, de uma produção feudal para uma forma de escravidão industrial e de uma sociedade teocrática para uma sociedade governada por acordos científicos em que as noções de sexo, raça e sexualidade se tornariam dispositivos de controle necrobiopolítico da população.
Hoje estamos passando de uma sociedade escrita para uma
cibersociedade, de uma sociedade orgânica para uma sociedade digital, de uma economia industrial para uma economia imaterial, de uma forma de controle disciplinar e arquitetônico, para formas de controle microprotéticos e de controle mídia-cibernético. Em outros textos denominei farmacopornografia o tipo de gestão e produção do corpo e da subjetividade sexual dentro desta nova configuração política. O corpo e a subjetividade contemporânea já não são regulados apenas através da sua passagem por instituições disciplinares (escola, fábrica, quartel, hospital, etc.), mas sobretudo através de um conjunto de biomoleculares, micropróteses, digitais e de transmissão e tecnologias de informação. No campo da sexualidade, a modificação farmacológica da consciência e do comportamento, a globalização da pílula contraceptiva para todas as “mulheres”, assim como a produção de tríplices-terapias, terapias preventivas para a AIDS ou viagra são alguns dos indicadores da gestão biotecnológica. A extensão global da Internet, a generalização do uso de tecnologias de computadores móveis, o uso de inteligência artificial e algoritmos na análise de grandes dados, o intercâmbio de informação a alta velocidade e o desenvolvimento de dispositivos de vigilância global por satélite são indicadores desta nova gestão digital semi-técnica. Se lhes chamei pornográficos, é, em primeiro lugar, porque estas técnicas de bio-vigilância são introduzidas no corpo, atravessam a pele, penetram-nos; e em segundo lugar, porque os dispositivos de bio-controlo já não funcionam através da repressão da sexualidade (masturbatória ou não), mas através do incitamento ao consumo e da produção constante de um prazer regulado e quantificável. Quanto mais consumimos e quanto mais saudáveis somos, melhor somos controlados. A mutação que está ocorrendo poderia ser também a passagem de um regime patriarcal-colonial e extrativista, de uma sociedade antropocêntrica e de uma política onde uma parte muito pequena da comunidade humana planetária se autoriza a realizar práticas de predação universal, para uma sociedade capaz de redistribuir energia e soberania. De uma sociedade de energias fósseis para uma sociedade de energias renováveis. Também em questão está a passagem de um modelo binário de diferença sexual para um paradigma mais aberto em que a morfologia dos órgãos genitais e a capacidade reprodutiva de um corpo não definem a sua posição social desde o momento do nascimento; e de um modelo heteropatriarcal para formas não-hierárquicas de reprodução da vida. O que estará no centro do debate durante e depois desta crise é o que estaremos dispostos a salvar e o que será sacrificado. É no contexto desta mutação, da transformação das formas de entender a comunidade (uma comunidade que hoje é a totalidade do planeta) e a imunidade que o vírus opera e se torna uma estratégia política.
Imunidade e política de fronteiras
O que tem caracterizado as políticas governamentais nos
últimos 20 anos, desde pelo menos a queda das Torres Gêmeas, diante das aparentes idéias de liberdade de movimento que dominaram o neoliberalismo da era Thatcher, tem sido a redefinição dos estados-nação em termos neocoloniais e de identidade e o retorno à ideia de fronteiras físicas como condição para a restauração da identidade nacional e da soberania política. Israel, os Estados Unidos, a Rússia, a Turquia e a Comunidade Econômica Europeia lideraram o desenho de novas fronteiras que, pela primeira vez em décadas, não só foram vigiadas ou vigiadas, mas também restabelecidas através da decisão de levantar muros e construir diques, e defendidas com medidas que não são biopolíticas, mas necrópoles, com técnicas de morte. O Covid-19 legitimou e ampliou estas práticas estatais de bio-vigilância e controle digital, padronizando-as e tornando-as “necessárias” para manter uma certa ideia de imunidade
Como sociedade europeia, decidimos construir-nos
colectivamente como uma comunidade totalmente imune, fechada ao Leste e ao Sul, enquanto o Leste e o Sul, em termos de recursos energéticos e de produção de bens de consumo, são o nosso armazém. Fechamos a fronteira na Grécia, construímos os maiores centros de detenção a céu aberto da história nas ilhas limítrofes da Turquia e do Mediterrâneo e imaginamos que isso nos daria uma forma de imunidade. A destruição da Europa começou paradoxalmente com esta construção de uma comunidade europeia imune, aberta em casa e totalmente fechada aos estrangeiros e migrantes.
O que está sendo testado em escala planetária através da
gestão do vírus é uma nova forma de entender a soberania num contexto em que a identidade sexual e racial (eixos da segmentação política do mundo patriarcal-colonial até agora) está sendo desarticulada. O Covid-19 deslocou as políticas fronteiriças que estavam a decorrer no território nacional ou no super-território europeu para o nível do organismo individual. O corpo, o seu corpo individual, como espaço vital e como rede de energia, como centro de produção e consumo de energia, tornou-se o novo território em que as políticas agressivas de fronteira que temos vindo a conceber e a testar há anos se expressam agora sob a forma de uma barreira e de uma guerra contra o vírus. A nova fronteira necropolítica se mudou das costas da Grécia para a porta da casa privada. Lesbos agora começa à sua porta. E a fronteira não para de se fechar sobre você, aproxima-se cada vez mais do teu corpo. Calais agora, explode na tua cara. A nova fronteira é a máscara. O ar que respiras deve ser só teu. A nova fronteira é a tua epiderme. A nova Lampedusa é a tua pele. As políticas da fronteira e as medidas rigorosas de confinamento e imobilização que nós, como comunidade, temos aplicado nos últimos anos a migrantes e refugiados — a ponto de deixá-los fora de qualquer comunidade — estão agora a ser reproduzidas em órgãos individuais. Durante anos, nós os tivemos no limbo dos centros de detenção. Agora somos nós que vivemos no limbo do centro de detenção nas nossas próprias casas.
A biopolítica na era ‘farmacopornográfica’
Devido ao seu apelo ao estado de emergência e à imposição
inflexível de medidas extremas, as epidemias são também grandes laboratórios de inovação social, ocasião para uma reconfiguração em larga escala das técnicas do corpo e das tecnologias do poder. Foucault analisou a passagem da gestão da hanseníase para a gestão da praga como o processo através do qual as técnicas disciplinares de espacialização do poder da modernidade foram implantadas. Se a hanseníase tivesse sido enfrentada através de medidas estritamente necropolíticas que excluíssem o leproso, condenando-o, se não à morte, pelo menos à vida fora da comunidade, a reação à epidemia de peste inventou a gestão disciplinar e suas formas de inclusão excludente: estrita segmentação da cidade, confinamento de cada corpo em cada casa.
A nossa saúde não virá da imposição de fronteiras
ou separação, mas de um novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta.
As diferentes estratégias que diferentes países adotaram em
resposta à disseminação do Covid-19 mostram dois tipos completamente diferentes de tecnologias biopolíticas. A primeira, que opera principalmente na Itália, Espanha e França, aplica medidas estritamente disciplinares que não são, em muitos aspectos, muito diferentes daquelas utilizadas contra a peste. São o confinamento domiciliar de toda a população. Vale a pena reler o capítulo sobre a gestão da peste na Europa em “Vigiar e Punir” para perceber que as políticas francesas de gestão do Covid-19 não mudaram muito desde então. Aqui funciona a lógica da fronteira arquitetônica e o tratamento de casos de infecção dentro dos enclaves hospitalares clássicos. Esta técnica ainda não mostrou evidência de eficácia total.
A segunda estratégia, implementada pela Coreia do Sul,
Taiwan, Singapura, Hong Kong, Japão e Israel, envolve passar das modernas técnicas de controle disciplinar e arquitetônico para as técnicas de bio-vigilância farmaco- pornográficas: aqui a ênfase está na detecção individual de vírus através da multiplicação de testes e vigilância digital constante e rigorosa dos pacientes através dos seus dispositivos informáticos móveis. Os telemóveis e os cartões de crédito tornam-se ferramentas de vigilância que permitem o rastreio dos movimentos individuais do corpo. Não precisamos de pulseiras biométricas: o celular tornou-se a melhor pulseira, ninguém a deixa nem para dormir. Uma aplicação GPS informa a polícia sobre os movimentos de qualquer corpo suspeito. A temperatura e o movimento de um corpo individual são monitorados através de tecnologias móveis e observados em tempo real pelo olhar digital de um Estado ciber-autoritário para o qual a comunidade é uma comunidade de ciber-usuários e a soberania é, acima de tudo, transparência digital e grande gestão de dados.
Mas essas políticas de imunização política não são novas e
não foram implantadas antes apenas para a busca e captura dos chamados terroristas: desde o início de 2010, por exemplo, Taiwan legalizou o acesso a todos os contatos de celulares em aplicações de encontros sexuais, a fim de “prevenir” a disseminação da AIDS e da prostituição na Internet. A Covid-19 legitimou e ampliou essas práticas estatais de bio-vigilância e controle digital, padronizando-as e tornando-as “necessárias” para manter uma certa ideia de imunidade. No entanto, os mesmos Estados que estão implementando medidas de vigilância digital extrema ainda não estão considerando a proibição do tráfico e consumo de animais selvagens, ou a produção industrial de aves e mamíferos, ou a redução das emissões de CO2. O que tem aumentado não é a imunidade do corpo social, mas a tolerância dos cidadãos ao cibercontrole estatal e empresarial.
A gestão política do Covid-19 como forma de administração
da vida e da morte desenha os contornos de uma nova subjetividade. O que terá sido inventado após a crise é uma nova utopia da comunidade imunológica e uma nova forma de controle do corpo. O tema do tecnopatriarcado neoliberal que a Covid-19 fabrica não tem pele, é intocável, não tem mãos. Ele não troca bens físicos, não toca em moedas, paga com cartões de crédito. Ele não tem lábios, não tem língua. Ele não fala ao vivo, deixa uma mensagem de voz. Ele não se encontra nem coletiviza. Ele é radicalmente individual. Ele não tem cara, tem uma máscara. Seu corpo orgânico está oculto para existir por trás de uma série indefinida de mediações semi-técnicas, uma série de próteses cibernéticas que servem como máscara: a máscara do endereço de e-mail, a máscara da conta no Facebook, a máscara da Instagram. Não é um agente físico, mas um consumidor digital, um teleprodutor, é um código, um pixel, uma conta bancária, uma porta com um nome, um endereço para o qual a Amazon pode enviar seus pedidos.
A prisão amena: bem-vindo ao público telerepública
de sua casa
Uma das mudanças centrais nas técnicas
farmacopornográficas biopolíticas que caracterizam a crise da Covid-19 é que o lar pessoal — e não as instituições tradicionais de confinamento e padronização (hospital, fábrica, prisão, escola) — aparece agora como o novo centro de produção, consumo e controle biopolítico. Já não se trata apenas de a casa ser o local onde o corpo está fechado, como era o caso na gestão da peste. A casa pessoal tornou-se agora o centro da economia de teleconsumo e teleprodução. O espaço doméstico existe agora como um ponto num espaço cibervigiado, um lugar identificável num mapa do Google, uma caixa reconhecível por um drone.
Se eu estava interessado na Mansão Playboy na época, é
porque ela funcionava no meio da Guerra Fria como um laboratório no qual novos dispositivos de controle farmacopornográfico do corpo e da sexualidade estavam sendo inventados, que seriam estendidos a ela desde o início do século 21 e que agora estão sendo estendidos a toda a população mundial com a crise do Covid-19. Quando fiz minha pesquisa na Playboy, fiquei impressionado com o fato de Hugh Hefner, um dos homens mais ricos do mundo, ter passado quase 40 anos sem sair da Mansão, vestido apenas de pijama, roupão e chinelos, bebendo coca-cola e comendo Butterfingers, e que ele poderia ter dirigido e produzido a revista mais importante dos Estados Unidos sem sair de casa ou mesmo de sua cama. Complementada com uma câmara de vídeo, uma linha telefônica, rádio e música canalizada, a cama de Hefner era uma verdadeira plataforma de produção multimédia da vida do seu habitante.
O seu biógrafo Steven Watts chamou Hefner “um voluntário
recluso no seu próprio paraíso”. Um fã de dispositivos de arquivo multimédia de todos os tipos, Hefner, muito antes de existir um telemóvel, Facebook ou WhatsApp, enviou mais de vinte fitas de áudio e vídeo com dicas e mensagens, que vão desde entrevistas ao vivo às diretrizes de publicação. Hefner tinha instalado uma câmera de circuito fechado na mansão, que também abrigava uma dúzia de Playmates, e podia acessar todas as salas em tempo real a partir de seu centro de controle. Coberto com painéis de madeira e cortinas grossas, mas penetrado por milhares de cabos e preenchido com o que na época era percebido como as mais altas tecnologias de telecomunicações (e que hoje nos parece arcaico como um tam-tam), era ao mesmo tempo totalmente opaco, e totalmente transparente. O material filmado pelas câmeras de vigilância também foi parar nas páginas da revista.
A silenciosa revolução biopolítica que a Playboy conduziu
significou, além da transformação da pornografia heterossexual em cultura de massa, o questionamento da divisão que tinha fundado a sociedade industrial do século XIX: a separação das esferas de produção e reprodução, a diferença entre fábrica e casa e com ela a distinção patriarcal entre masculinidade e feminilidade. A Playboy abordou essa diferença propondo a criação de um novo enclave de vida: o apartamento do solteiro totalmente ligado às novas tecnologias de comunicação das quais o novo produtor semiótico não precisa sair nem para trabalhar nem para fazer sexo — atividades que, além do mais, tinham se tornado indistinguíveis. Sua cama giratória era ao mesmo tempo sua mesa de trabalho, um escritório para o diretor, um palco fotográfico e um lugar para encontros sexuais, assim como um aparelho de televisão do qual foi filmado o famoso programa Playboy depois do anoitecer. A Playboy antecipou os discursos contemporâneos sobre teletrabalho e a produção imaterial que a gestão da crise do Covid-19 transformou em dever do cidadão. Hefner chamou a este novo produtor social o “trabalhador horizontal”. O vetor de inovação social que a Playboy colocou em marcha foi a erosão (se não a destruição) da distância entre o trabalho e o lazer, entre a produção e o sexo. A vida da Playboy, constantemente filmada e transmitida através da revista e da mídia televisiva, era totalmente pública, mesmo que a Playboy não deixasse sua casa ou mesmo sua cama. Nesse sentido, a Playboy também questionou a diferença entre as esferas masculina e feminina, tornando o novo operador multimídia um homem doméstico, que na época parecia um oximoro. O biógrafo de Hefner nos lembra que este isolamento produtivo precisava de suporte químico: Hefner era um usuário pesado de Dexedrina, uma anfetamina que eliminava a fadiga e o sono. Então, paradoxalmente, o homem que não saía da cama, nunca dormia. A cama como novo centro de operações multimídia era uma célula farmacopornográfica: só podia funcionar com a pílula contraceptiva, medicamentos que mantinham o nível de produção elevado e um fluxo constante de códigos semióticos que se tornaram o único alimento verdadeiro que alimentava o playboy.
Tudo isto, parece-vos familiar agora? Parece-vos tudo, muito
estranhamente, com as vossas próprias vidas confinadas? Recordemos agora os slogans do presidente francês Emmanuel Macron: estamos em guerra, não saiam de casa e teletrabalhem. As medidas de gestão de infecções biopolíticas impostas face ao coronavírus, fizeram de cada um de nós um trabalhador horizontal mais ou menos playboyesco. O espaço doméstico de qualquer um de nós é hoje dez mil vezes mais avançado tecnologicamente do que a cama giratória de Hefner era em 1968. Os dispositivos de teletrabalho e controle remoto estão agora na palma das nossas mãos.
Em “Vigiar e Punir”, Michel Foucault analisou as células
religiosas do confinamento unipessoal como autênticos vetores que serviram para modelar a passagem das técnicas soberanas e sangrentas de controle do corpo e da subjetividade, anteriores ao século XVIII para as arquiteturas disciplinares e dispositivos de confinamento, como novas técnicas de manejo, de toda a população. As arquiteturas disciplinares eram versões secularizadas das células monásticas, nas quais o indivíduo moderno se desenvolveu pela primeira vez como uma alma encerrada num corpo, um espírito de leitura capaz de ler as instruções do Estado. Quando o escritor, Tom Wolfe, visitou Hefner, ele disse que vivia numa prisão tão macia como o coração de uma alcachofra. Poderíamos dizer que a mansão da Playboy e a cama giratória de Hefner, convertida em objeto de consumo pop, funcionaram durante a Guerra Fria como espaços de transição, nos quais foram inventadas as novas próteses, o sujeito ultra-conectado e as novas formas de consumo e controle farmacopornográfico e biovigilância que dominam a sociedade contemporânea. Esta mutação foi ampliada e ampliada durante a gestão da crise do Covid-19: as nossas máquinas portáteis de telecomunicações são os nossos novos carcereiros e os nossos interiores domésticos tornaram-se a prisão macia e ultra-conectada do futuro.
Mutação ou submissão
Mas tudo isto pode ser uma má notícia ou uma grande
oportunidade. É precisamente porque nossos corpos são os novos enclaves da biopotência e nossos apartamentos as novas células da biovigilância, que se torna mais urgente do que nunca, inventar novas estratégias de emancipação cognitiva e de resistência e pôr em marcha novos processos antagônicos.
Ao contrário do que se possa imaginar, a nossa saúde não virá
da imposição de fronteiras ou separação, mas de uma nova compreensão da comunidade com todos os seres vivos, de um novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta. Precisamos de um parlamento planetário de corpos, um parlamento não definido em termos de política de identidade ou nacionalidades, um parlamento de corpos vivos (vulneráveis) que vivem no planeta Terra. O evento Covid-19 e suas conseqüências nos chamam a nos libertar de uma vez por todas da violência com a qual definimos nossa imunidade social. A cura e a recuperação não pode ser um simples gesto imunológico negativo de afastamento do social, de fechamento da comunidade. A cura e o cuidado só podem surgir de um processo de transformação política. Curar-nos como sociedade, significaria inventar uma nova comunidade, para além da política de identidade e da fronteira com a qual temos produzido até agora a soberania, mas também para além da redução da vida à sua ciber-vigilância. Manter-nos vivos, mantendo-nos vivos como planeta, face ao vírus, mas também face ao que pode acontecer, significa pôr em marcha formas estruturais de cooperação planetária. À medida que o vírus se modifica, se quisermos resistir à submissão, também nós temos de sofrer uma mutação.
É necessário passar de uma mutação forçada para uma
mutação deliberada. Devemos reapropriar-nos criticamente das técnicas de bio-política e dos seus dispositivos farmaco- pornográficos. Em primeiro lugar, é imperativo mudar a relação do nosso corpo com as máquinas de vigilância e controlo biológico: estas não são simples dispositivos de comunicação. Temos de aprender coletivamente como alterá- los. Mas também devemos ficar desalinhados. Os governos estão pedindo o confinamento e o teletrabalho. Sabemos que eles exigem a descoletivização e o controlo remoto. Usemos o tempo e a força do confinamento para estudar as tradições de luta e resistência das minorias, que nos têm ajudado a sobreviver até agora. Vamos desligar os nossos celulares, desligar a Internet. Vamos fazer o grande blackout em frente aos satélites, que estão nos observando, e imaginar juntos na próxima revolução.