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APRENDENDO COM VÍRUS

Sara Wagner York


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Mar 29 · 21 min readp
porPAUL PRECIADO
TRADUÇÃO: Sara Wagner Pimenta Gonçalves Junior

A gestão política das epidemias põe em cena a utopia da


comunidade e as fantasias imunes de uma sociedade,
externalizando seus sonhos de onipotência de sua soberania
política.

SR. GARCÍA em ElPais.com

Se Michel Foucault tivesse sobrevivido ao flagelo da AIDS e


tivesse resistido até à invenção da tríplice-terapia, teria hoje
93 anos: teria ele aceito de bom grado ficar fechado no seu
apartamento na rue Vaugirard? O primeiro filósofo da
história a morrer das complicações geradas pelo vírus da
imunodeficiência adquirida deixou-nos algumas das noções
mais eficazes para pensar na gestão política da epidemia que,
em meio ao pânico e à desinformação, se tornam tão úteis
como uma boa máscara cognitiva.

A coisa mais importante que aprendemos com Foucault é que


o corpo vivo (e portanto mortal) é o objeto central de toda
política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une
politique des corps (não há política que não seja uma
política de corpos). Mas o corpo não é para Foucault um
determinado organismo biológico sobre o qual o poder age. A
própria tarefa da ação política está em fabricar um corpo, pô-
lo a funcionar, definir os seus modos de reprodução,
prefigurar os modos de discurso através dos quais esse corpo
é ficcionado até ser capaz de dizer “eu”. Todo o trabalho de
Foucault pode ser entendido como uma análise histórica das
diferentes técnicas através das quais o poder gere a vida e a
morte das populações. Entre 1975 e 1976, os anos em que
publicou “Vigiar e Punir” e o primeiro volume da História da
Sexualidade, Foucault usou a noção de “biopolítica” para
falar de uma relação que o poder estabeleceu com o corpo
social nos tempos modernos. Ele descreveu a transição do
que ele chamou de “sociedade soberana” para uma
“sociedade disciplinar” como a passagem de uma sociedade
que define a soberania em termos de tomada de decisões e
ritualização da morte para uma sociedade que gere e
maximiza a vida das populações em termos do interesse
nacional. Para Foucault, as técnicas de governo biopolítico
espalharam-se como uma teia de poder que foi além da esfera
legal ou punitiva para se tornar uma força “somatopolítica”,
uma forma de poder espacializado que se estendeu por todo
o território e para o corpo individual.

Durante e após a crise da AIDS, numerosos autores


expandiram e radicalizaram as hipóteses de Foucault e as
suas relações com as políticas imunitárias. O filósofo italiano,
Roberto Esposito, analisou as relações entre a noção política
de “comunidade” e a noção biomédica e epidemiológica de
“imunidade”. Comunidade e imunidade, compartilham uma
raiz comum, o muni, em latim, o munus, era a homenagem
que alguém tinha que pagar por viver ou fazer parte da
comunidade. A comunidade é, cum (con) munus (dever, lei,
obrigação, mas também oferta): um grupo humano que está
ligado por uma lei e uma obrigação comum, mas também por
um dom, por uma oferta. O substantivo inmunitas, é um
vocábulo privativo, que deriva da negação do munus. No
direito romano, a immunitas, era uma dispensa ou privilégio
que exonerava alguém de deveres corporativos comuns a
todos. Aquele que tinha sido exonerado era imune. Enquanto
que aquele que era des-imune, era aquele removido de todos
os privilégios da vida comunitária.

Roberto Esposito nos ensina que toda biopolítica é


imunológica: assume uma definição de comunidade e o
estabelecimento de uma hierarquia entre aqueles corpos que
estão isentos de impostos (aqueles que são considerados
imunes) e aqueles que a comunidade percebe como
potencialmente perigosos (os demuni) e que serão excluídos
em um ato de proteção imunológica. Este é o paradoxo da
biopolítica: todo ato de proteção implica uma definição,
imune da comunidade, segundo a qual a comunidade dará a
si mesma a autoridade de sacrificar outras vidas, em benefício
de uma ideia de sua própria soberania. O estado de exceção é
a normalização deste paradoxo insuportável.

O vírus atua à nossa imagem e semelhança, apenas


se reproduz e estende a toda a população, as formas
dominantes de gestão biopolítica e necropolítica
que já estavam em funcionamento no território
nacional.

A partir do século XIX, com a descoberta da primeira vacina


contra a varicela e as experiências de Pasteur e Koch, a noção
de imunidade migrou da esfera legal e adquiriu significado
médico. As democracias europeias liberais e patriarcais do
século XIX construíram o ideal do indivíduo moderno não só
como um agente econômico livre (masculino, branco,
heterossexual), mas também como um corpo imune,
radicalmente separado, que nada deve à comunidade. Para
Esposito, a forma como a Alemanha nazista caracterizou
parte de sua própria população (judeus, mas também
ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência) como
corpos que ameaçavam a soberania da comunidade ariana é
um exemplo paradigmático dos perigos da gestão imune. Este
entendimento imunológico da sociedade não terminou com o
nazismo, mas, pelo contrário, sobreviveu na Europa
legitimando as políticas neoliberais de gestão das suas
minorias racializadas e das populações migrantes. Foi este
entendimento imunológico que forjou a comunidade
econômica europeia, o mito de Shengen e as técnicas da
Frontex nos últimos anos.

Em 1994, na Flexible Bodies, a antropóloga da Universidade


de Princeton, Emily Martin, examinou a relação entre
imunidade e política na cultura americana durante as crises
da poliomielite e da AIDS. Martin chegou a algumas
conclusões que são relevantes para analisar a crise atual. A
imunidade corporal, argumenta Martin, não é apenas um
mero fato biológico independente de variáveis culturais e
políticas. Pelo contrário, o que entendemos por imunidade é
construído coletivamente através de critérios sociais e
políticos que, alternativamente, produzem soberania ou
exclusão, proteção ou estigma, vida ou morte.

Se repensarmos a história de algumas das epidemias


mundiais dos últimos cinco séculos através do prisma
oferecido por Michel Foucault, Roberto Esposito e Emily
Martin, é possível elaborar uma hipótese que poderia tomar
a forma de uma equação: diga-me como sua comunidade
constrói sua soberania política e eu lhe direi que formas suas
epidemias tomarão e como você lidará com elas.
As diferentes epidemias materializam no âmbito do corpo
individual as obsessões que dominam a gestão política da
vida e da morte das populações num determinado período.
Para colocar nos termos de Foucault, uma epidemia
radicaliza e desloca as técnicas biopolíticas aplicadas ao
território nacional para o nível da anatomia política,
inscrevendo-as no corpo individual. Ao mesmo tempo, uma
epidemia torna possível estender a toda a população as
medidas políticas de “imunização” que até então tinham sido
aplicadas violentamente àqueles que tinham sido
considerados “estrangeiros”, tanto dentro como fora das
fronteiras do território nacional.

A gestão política das epidemias põe em cena a utopia da


comunidade e as fantasias imunes de uma sociedade,
externalizando seus sonhos de onipotência (e os retumbantes
fracassos) de sua soberania política. A hipótese de Michel
Foucault, Roberto Esposito e Emily Martin nada tem a ver
com uma teoria da conspiração. Não é a ridícula ideia de que
o vírus seja uma invenção de laboratório ou um plano
maquiavélico para difundir políticas ainda mais autoritárias.
Pelo contrário, o vírus atua à nossa imagem e semelhança,
apenas reproduz, materializa, intensifica e estende a toda a
população, as formas dominantes de gestão biopolítica e
necropolítica que já estavam a funcionar no território
nacional e nos seus limites. Assim, cada sociedade pode
definir-se pela epidemia que a ameaça e pela forma como se
organiza face a ela.

Pensemos, por exemplo, na sífilis. A epidemia atingiu pela


primeira vez a cidade de Nápoles em 1494. A empresa
colonial europeia tinha acabado de começar. A sífilis era
como a arma de partida para a destruição colonial e as
políticas raciais que viriam com ela. Os ingleses chamavam-
lhe “a doença francesa”, os franceses diziam que era “a doença
napolitana” e os napolitanos diziam que tinha vindo da
América: dizia-se que tinha sido trazida pelos colonizadores
que tinham sido infectados pelos índios… O vírus, como
Derrida nos ensinou, é, por definição, o estrangeiro, o outro,
o estranho. Uma infecção sexualmente transmissível, a sífilis
materializou nos corpos dos séculos XVI a XIX as formas de
repressão e exclusão social que dominaram a modernidade
patriarcal-colonial: a obsessão pela pureza racial, a proibição
dos chamados “casamentos mistos” entre pessoas de
diferentes classes e “raças”, e as múltiplas restrições às
relações sexuais e extramatrimoniais.

O que estará no centro do debate durante e depois


desta crise é que vidas estaremos dispostos a salvar
e que serão sacrificadas.

O modelo comunitário de imunidade à utopia e sífilis é o do


corpo branco burguês sexualmente confinado à vida de
casado como núcleo de reprodução do corpo nacional. Assim,
a prostituta tornou-se o corpo vivo que condensou todos os
significantes políticos abjetos durante a epidemia: uma
mulher trabalhadora e muitas vezes racializada, um corpo
fora dos regulamentos do lar e do casamento, que tornou a
sua sexualidade o seu meio de produção, a trabalhadora do
sexo tornou-se visível, controlada e estigmatizada como o
principal vetor da propagação do vírus. Mas não foi a
repressão da prostituição ou o confinamento de prostitutas
em bordéis nacionais (como a Restif de la Bretonne
imaginava) que curou a sífilis. Bem ao contrário. O
confinamento das prostitutas só as tornava mais vulneráveis
à doença. O que curou a sífilis foi a descoberta de antibióticos
e especialmente a penicilina em 1928, precisamente um
momento de profundas transformações da política sexual na
Europa com os primeiros movimentos de descolonização, o
acesso das mulheres brancas ao voto, as primeiras
descriminalizações da homossexualidade e uma relativa
liberalização da ética do casamento heterossexual.
Meio século depois, a AIDS era para a sociedade
heteronormativa neoliberal do século XX, o que a sífilis tinha
sido para a sociedade industrial e colonial. Os primeiros casos
surgiram em 1981, precisamente no momento em que a
homossexualidade já não era considerada uma doença
psiquiátrica, depois de ter sido objeto de perseguição e
discriminação social durante décadas. A primeira fase da
epidemia afetou principalmente os então chamados 4 H’s:
homossexuais, (hookers) prostitutas, hemofílicos e usuários
de heroína. A AIDS, remasterizou e atualizou a rede de
controle sobre o corpo e a sexualidade que a sífilis tinha
tecido e que a penicilina e a descolonização, movimentos
feministas e homossexuais, tinham desmantelado e
transformado nas décadas de 1960 e 1970. Como no caso das
prostitutas na crise da sífilis, a repressão da
homossexualidade só causou mais mortes. O que está
progressivamente transformando a AIDS em uma doença
crônica tem sido a despatologização da homossexualidade, a
autonomia farmacológica do Sul, a emancipação sexual das
mulheres, seu direito de dizer não a práticas sem
preservativos e o acesso da população afetada,
independentemente de sua classe social ou grau de
racialização, a tríplice-terapias. O modelo
comunitário/imunitário de AIDS tem a ver com a fantasia da
soberania sexual masculina entendida como o direito de
penetração não negociável, enquanto que todo o corpo
sexualmente penetrado (homossexual, mulher, toda a forma
de análise) é percebido como desprovido de soberania.

Vamos agora voltar à nossa situação atual. Muito antes do


aparecimento do Covid-19 já tínhamos iniciado um processo
de mutação planetária. Já estávamos passando, antes do
vírus, por uma mudança social e política tão profunda quanto
a que afetou as sociedades que desenvolveram a sífilis. No
século XV, com a invenção da imprensa gráfica e a expansão
do capitalismo colonial, houve uma mudança de uma
sociedade oral para uma sociedade escrita, de uma produção
feudal para uma forma de escravidão industrial e de uma
sociedade teocrática para uma sociedade governada por
acordos científicos em que as noções de sexo, raça e
sexualidade se tornariam dispositivos de controle
necrobiopolítico da população.

Hoje estamos passando de uma sociedade escrita para uma


cibersociedade, de uma sociedade orgânica para uma
sociedade digital, de uma economia industrial para uma
economia imaterial, de uma forma de controle disciplinar e
arquitetônico, para formas de controle microprotéticos e de
controle mídia-cibernético. Em outros textos denominei
farmacopornografia o tipo de gestão e produção do corpo e da
subjetividade sexual dentro desta nova configuração política.
O corpo e a subjetividade contemporânea já não são
regulados apenas através da sua passagem por instituições
disciplinares (escola, fábrica, quartel, hospital, etc.), mas
sobretudo através de um conjunto de biomoleculares,
micropróteses, digitais e de transmissão e tecnologias de
informação. No campo da sexualidade, a modificação
farmacológica da consciência e do comportamento, a
globalização da pílula contraceptiva para todas as
“mulheres”, assim como a produção de tríplices-terapias,
terapias preventivas para a AIDS ou viagra são alguns dos
indicadores da gestão biotecnológica. A extensão global da
Internet, a generalização do uso de tecnologias de
computadores móveis, o uso de inteligência artificial e
algoritmos na análise de grandes dados, o intercâmbio de
informação a alta velocidade e o desenvolvimento de
dispositivos de vigilância global por satélite são indicadores
desta nova gestão digital semi-técnica. Se lhes chamei
pornográficos, é, em primeiro lugar, porque estas técnicas de
bio-vigilância são introduzidas no corpo, atravessam a pele,
penetram-nos; e em segundo lugar, porque os dispositivos de
bio-controlo já não funcionam através da repressão da
sexualidade (masturbatória ou não), mas através do
incitamento ao consumo e da produção constante de um
prazer regulado e quantificável. Quanto mais consumimos e
quanto mais saudáveis somos, melhor somos controlados.
A mutação que está ocorrendo poderia ser também a
passagem de um regime patriarcal-colonial e extrativista, de
uma sociedade antropocêntrica e de uma política onde uma
parte muito pequena da comunidade humana planetária se
autoriza a realizar práticas de predação universal, para uma
sociedade capaz de redistribuir energia e soberania. De uma
sociedade de energias fósseis para uma sociedade de energias
renováveis. Também em questão está a passagem de um
modelo binário de diferença sexual para um paradigma mais
aberto em que a morfologia dos órgãos genitais e a
capacidade reprodutiva de um corpo não definem a sua
posição social desde o momento do nascimento; e de um
modelo heteropatriarcal para formas não-hierárquicas de
reprodução da vida. O que estará no centro do debate durante
e depois desta crise é o que estaremos dispostos a salvar e o
que será sacrificado. É no contexto desta mutação, da
transformação das formas de entender a comunidade (uma
comunidade que hoje é a totalidade do planeta) e a
imunidade que o vírus opera e se torna uma estratégia
política.

Imunidade e política de fronteiras

O que tem caracterizado as políticas governamentais nos


últimos 20 anos, desde pelo menos a queda das Torres
Gêmeas, diante das aparentes idéias de liberdade de
movimento que dominaram o neoliberalismo da era
Thatcher, tem sido a redefinição dos estados-nação em
termos neocoloniais e de identidade e o retorno à ideia de
fronteiras físicas como condição para a restauração da
identidade nacional e da soberania política. Israel, os Estados
Unidos, a Rússia, a Turquia e a Comunidade Econômica
Europeia lideraram o desenho de novas fronteiras que, pela
primeira vez em décadas, não só foram vigiadas ou vigiadas,
mas também restabelecidas através da decisão de levantar
muros e construir diques, e defendidas com medidas que não
são biopolíticas, mas necrópoles, com técnicas de morte.
O Covid-19 legitimou e ampliou estas práticas
estatais de bio-vigilância e controle digital,
padronizando-as e tornando-as “necessárias” para
manter uma certa ideia de imunidade

Como sociedade europeia, decidimos construir-nos


colectivamente como uma comunidade totalmente imune,
fechada ao Leste e ao Sul, enquanto o Leste e o Sul, em termos
de recursos energéticos e de produção de bens de consumo,
são o nosso armazém. Fechamos a fronteira na Grécia,
construímos os maiores centros de detenção a céu aberto da
história nas ilhas limítrofes da Turquia e do Mediterrâneo e
imaginamos que isso nos daria uma forma de imunidade. A
destruição da Europa começou paradoxalmente com esta
construção de uma comunidade europeia imune, aberta em
casa e totalmente fechada aos estrangeiros e migrantes.

O que está sendo testado em escala planetária através da


gestão do vírus é uma nova forma de entender a soberania
num contexto em que a identidade sexual e racial (eixos da
segmentação política do mundo patriarcal-colonial até agora)
está sendo desarticulada. O Covid-19 deslocou as políticas
fronteiriças que estavam a decorrer no território nacional ou
no super-território europeu para o nível do organismo
individual. O corpo, o seu corpo individual, como espaço vital
e como rede de energia, como centro de produção e consumo
de energia, tornou-se o novo território em que as políticas
agressivas de fronteira que temos vindo a conceber e a testar
há anos se expressam agora sob a forma de uma barreira e de
uma guerra contra o vírus. A nova fronteira necropolítica se
mudou das costas da Grécia para a porta da casa privada.
Lesbos agora começa à sua porta. E a fronteira não para de se
fechar sobre você, aproxima-se cada vez mais do teu corpo.
Calais agora, explode na tua cara. A nova fronteira é a
máscara. O ar que respiras deve ser só teu. A nova fronteira é
a tua epiderme. A nova Lampedusa é a tua pele.
As políticas da fronteira e as medidas rigorosas de
confinamento e imobilização que nós, como comunidade,
temos aplicado nos últimos anos a migrantes e refugiados —
a ponto de deixá-los fora de qualquer comunidade — estão
agora a ser reproduzidas em órgãos individuais. Durante
anos, nós os tivemos no limbo dos centros de detenção. Agora
somos nós que vivemos no limbo do centro de detenção nas
nossas próprias casas.

A biopolítica na era ‘farmacopornográfica’

Devido ao seu apelo ao estado de emergência e à imposição


inflexível de medidas extremas, as epidemias são também
grandes laboratórios de inovação social, ocasião para uma
reconfiguração em larga escala das técnicas do corpo e das
tecnologias do poder. Foucault analisou a passagem da gestão
da hanseníase para a gestão da praga como o processo através
do qual as técnicas disciplinares de espacialização do poder
da modernidade foram implantadas. Se a hanseníase tivesse
sido enfrentada através de medidas estritamente
necropolíticas que excluíssem o leproso, condenando-o, se
não à morte, pelo menos à vida fora da comunidade, a reação
à epidemia de peste inventou a gestão disciplinar e suas
formas de inclusão excludente: estrita segmentação da
cidade, confinamento de cada corpo em cada casa.

A nossa saúde não virá da imposição de fronteiras


ou separação, mas de um novo equilíbrio com
outros seres vivos do planeta.

As diferentes estratégias que diferentes países adotaram em


resposta à disseminação do Covid-19 mostram dois tipos
completamente diferentes de tecnologias biopolíticas. A
primeira, que opera principalmente na Itália, Espanha e
França, aplica medidas estritamente disciplinares que não
são, em muitos aspectos, muito diferentes daquelas utilizadas
contra a peste. São o confinamento domiciliar de toda a
população. Vale a pena reler o capítulo sobre a gestão da peste
na Europa em “Vigiar e Punir” para perceber que as políticas
francesas de gestão do Covid-19 não mudaram muito desde
então. Aqui funciona a lógica da fronteira arquitetônica e o
tratamento de casos de infecção dentro dos enclaves
hospitalares clássicos. Esta técnica ainda não mostrou
evidência de eficácia total.

A segunda estratégia, implementada pela Coreia do Sul,


Taiwan, Singapura, Hong Kong, Japão e Israel, envolve
passar das modernas técnicas de controle disciplinar e
arquitetônico para as técnicas de bio-vigilância farmaco-
pornográficas: aqui a ênfase está na detecção individual de
vírus através da multiplicação de testes e vigilância digital
constante e rigorosa dos pacientes através dos seus
dispositivos informáticos móveis. Os telemóveis e os cartões
de crédito tornam-se ferramentas de vigilância que permitem
o rastreio dos movimentos individuais do corpo. Não
precisamos de pulseiras biométricas: o celular tornou-se a
melhor pulseira, ninguém a deixa nem para dormir. Uma
aplicação GPS informa a polícia sobre os movimentos de
qualquer corpo suspeito. A temperatura e o movimento de
um corpo individual são monitorados através de tecnologias
móveis e observados em tempo real pelo olhar digital de um
Estado ciber-autoritário para o qual a comunidade é uma
comunidade de ciber-usuários e a soberania é, acima de tudo,
transparência digital e grande gestão de dados.

Mas essas políticas de imunização política não são novas e


não foram implantadas antes apenas para a busca e captura
dos chamados terroristas: desde o início de 2010, por
exemplo, Taiwan legalizou o acesso a todos os contatos de
celulares em aplicações de encontros sexuais, a fim de
“prevenir” a disseminação da AIDS e da prostituição na
Internet. A Covid-19 legitimou e ampliou essas práticas
estatais de bio-vigilância e controle digital, padronizando-as
e tornando-as “necessárias” para manter uma certa ideia de
imunidade. No entanto, os mesmos Estados que estão
implementando medidas de vigilância digital extrema ainda
não estão considerando a proibição do tráfico e consumo de
animais selvagens, ou a produção industrial de aves e
mamíferos, ou a redução das emissões de CO2. O que tem
aumentado não é a imunidade do corpo social, mas a
tolerância dos cidadãos ao cibercontrole estatal e
empresarial.

A gestão política do Covid-19 como forma de administração


da vida e da morte desenha os contornos de uma nova
subjetividade. O que terá sido inventado após a crise é uma
nova utopia da comunidade imunológica e uma nova forma
de controle do corpo. O tema do tecnopatriarcado neoliberal
que a Covid-19 fabrica não tem pele, é intocável, não tem
mãos. Ele não troca bens físicos, não toca em moedas, paga
com cartões de crédito. Ele não tem lábios, não tem língua.
Ele não fala ao vivo, deixa uma mensagem de voz. Ele não se
encontra nem coletiviza. Ele é radicalmente individual. Ele
não tem cara, tem uma máscara. Seu corpo orgânico está
oculto para existir por trás de uma série indefinida de
mediações semi-técnicas, uma série de próteses cibernéticas
que servem como máscara: a máscara do endereço de e-mail,
a máscara da conta no Facebook, a máscara da Instagram.
Não é um agente físico, mas um consumidor digital, um
teleprodutor, é um código, um pixel, uma conta bancária,
uma porta com um nome, um endereço para o qual a Amazon
pode enviar seus pedidos.

A prisão amena: bem-vindo ao público telerepública


de sua casa

Uma das mudanças centrais nas técnicas


farmacopornográficas biopolíticas que caracterizam a crise
da Covid-19 é que o lar pessoal — e não as instituições
tradicionais de confinamento e padronização (hospital,
fábrica, prisão, escola) — aparece agora como o novo centro
de produção, consumo e controle biopolítico. Já não se trata
apenas de a casa ser o local onde o corpo está fechado, como
era o caso na gestão da peste. A casa pessoal tornou-se agora
o centro da economia de teleconsumo e teleprodução. O
espaço doméstico existe agora como um ponto num espaço
cibervigiado, um lugar identificável num mapa do Google,
uma caixa reconhecível por um drone.

Se eu estava interessado na Mansão Playboy na época, é


porque ela funcionava no meio da Guerra Fria como um
laboratório no qual novos dispositivos de controle
farmacopornográfico do corpo e da sexualidade estavam
sendo inventados, que seriam estendidos a ela desde o início
do século 21 e que agora estão sendo estendidos a toda a
população mundial com a crise do Covid-19. Quando fiz
minha pesquisa na Playboy, fiquei impressionado com o fato
de Hugh Hefner, um dos homens mais ricos do mundo, ter
passado quase 40 anos sem sair da Mansão, vestido apenas
de pijama, roupão e chinelos, bebendo coca-cola e comendo
Butterfingers, e que ele poderia ter dirigido e produzido a
revista mais importante dos Estados Unidos sem sair de casa
ou mesmo de sua cama. Complementada com uma câmara de
vídeo, uma linha telefônica, rádio e música canalizada, a
cama de Hefner era uma verdadeira plataforma de produção
multimédia da vida do seu habitante.

O seu biógrafo Steven Watts chamou Hefner “um voluntário


recluso no seu próprio paraíso”. Um fã de dispositivos de
arquivo multimédia de todos os tipos, Hefner, muito antes de
existir um telemóvel, Facebook ou WhatsApp, enviou mais de
vinte fitas de áudio e vídeo com dicas e mensagens, que vão
desde entrevistas ao vivo às diretrizes de publicação. Hefner
tinha instalado uma câmera de circuito fechado na mansão,
que também abrigava uma dúzia de Playmates, e podia
acessar todas as salas em tempo real a partir de seu centro de
controle. Coberto com painéis de madeira e cortinas grossas,
mas penetrado por milhares de cabos e preenchido com o que
na época era percebido como as mais altas tecnologias de
telecomunicações (e que hoje nos parece arcaico como um
tam-tam), era ao mesmo tempo totalmente opaco, e
totalmente transparente. O material filmado pelas câmeras
de vigilância também foi parar nas páginas da revista.

A silenciosa revolução biopolítica que a Playboy conduziu


significou, além da transformação da pornografia
heterossexual em cultura de massa, o questionamento da
divisão que tinha fundado a sociedade industrial do século
XIX: a separação das esferas de produção e reprodução, a
diferença entre fábrica e casa e com ela a distinção patriarcal
entre masculinidade e feminilidade. A Playboy abordou essa
diferença propondo a criação de um novo enclave de vida: o
apartamento do solteiro totalmente ligado às novas
tecnologias de comunicação das quais o novo produtor
semiótico não precisa sair nem para trabalhar nem para fazer
sexo — atividades que, além do mais, tinham se tornado
indistinguíveis. Sua cama giratória era ao mesmo tempo sua
mesa de trabalho, um escritório para o diretor, um palco
fotográfico e um lugar para encontros sexuais, assim como
um aparelho de televisão do qual foi filmado o famoso
programa Playboy depois do anoitecer. A Playboy antecipou
os discursos contemporâneos sobre teletrabalho e a produção
imaterial que a gestão da crise do Covid-19 transformou em
dever do cidadão. Hefner chamou a este novo produtor social
o “trabalhador horizontal”. O vetor de inovação social que a
Playboy colocou em marcha foi a erosão (se não a destruição)
da distância entre o trabalho e o lazer, entre a produção e o
sexo. A vida da Playboy, constantemente filmada e
transmitida através da revista e da mídia televisiva, era
totalmente pública, mesmo que a Playboy não deixasse sua
casa ou mesmo sua cama. Nesse sentido, a Playboy também
questionou a diferença entre as esferas masculina e feminina,
tornando o novo operador multimídia um homem doméstico,
que na época parecia um oximoro. O biógrafo de Hefner nos
lembra que este isolamento produtivo precisava de suporte
químico: Hefner era um usuário pesado de Dexedrina, uma
anfetamina que eliminava a fadiga e o sono. Então,
paradoxalmente, o homem que não saía da cama, nunca
dormia. A cama como novo centro de operações multimídia
era uma célula farmacopornográfica: só podia funcionar com
a pílula contraceptiva, medicamentos que mantinham o nível
de produção elevado e um fluxo constante de códigos
semióticos que se tornaram o único alimento verdadeiro que
alimentava o playboy.

Tudo isto, parece-vos familiar agora? Parece-vos tudo, muito


estranhamente, com as vossas próprias vidas confinadas?
Recordemos agora os slogans do presidente francês
Emmanuel Macron: estamos em guerra, não saiam de casa e
teletrabalhem. As medidas de gestão de infecções biopolíticas
impostas face ao coronavírus, fizeram de cada um de nós um
trabalhador horizontal mais ou menos playboyesco. O espaço
doméstico de qualquer um de nós é hoje dez mil vezes mais
avançado tecnologicamente do que a cama giratória de
Hefner era em 1968. Os dispositivos de teletrabalho e
controle remoto estão agora na palma das nossas mãos.

Em “Vigiar e Punir”, Michel Foucault analisou as células


religiosas do confinamento unipessoal como autênticos
vetores que serviram para modelar a passagem das técnicas
soberanas e sangrentas de controle do corpo e da
subjetividade, anteriores ao século XVIII para as arquiteturas
disciplinares e dispositivos de confinamento, como novas
técnicas de manejo, de toda a população. As arquiteturas
disciplinares eram versões secularizadas das células
monásticas, nas quais o indivíduo moderno se desenvolveu
pela primeira vez como uma alma encerrada num corpo, um
espírito de leitura capaz de ler as instruções do Estado.
Quando o escritor, Tom Wolfe, visitou Hefner, ele disse que
vivia numa prisão tão macia como o coração de uma
alcachofra. Poderíamos dizer que a mansão da Playboy e a
cama giratória de Hefner, convertida em objeto de consumo
pop, funcionaram durante a Guerra Fria como espaços de
transição, nos quais foram inventadas as novas próteses, o
sujeito ultra-conectado e as novas formas de consumo e
controle farmacopornográfico e biovigilância que dominam a
sociedade contemporânea. Esta mutação foi ampliada e
ampliada durante a gestão da crise do Covid-19: as nossas
máquinas portáteis de telecomunicações são os nossos novos
carcereiros e os nossos interiores domésticos tornaram-se a
prisão macia e ultra-conectada do futuro.

Mutação ou submissão

Mas tudo isto pode ser uma má notícia ou uma grande


oportunidade. É precisamente porque nossos corpos são os
novos enclaves da biopotência e nossos apartamentos as
novas células da biovigilância, que se torna mais urgente do
que nunca, inventar novas estratégias de emancipação
cognitiva e de resistência e pôr em marcha novos processos
antagônicos.

Ao contrário do que se possa imaginar, a nossa saúde não virá


da imposição de fronteiras ou separação, mas de uma nova
compreensão da comunidade com todos os seres vivos, de um
novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta.
Precisamos de um parlamento planetário de corpos, um
parlamento não definido em termos de política de identidade
ou nacionalidades, um parlamento de corpos vivos
(vulneráveis) que vivem no planeta Terra. O evento Covid-19
e suas conseqüências nos chamam a nos libertar de uma vez
por todas da violência com a qual definimos nossa imunidade
social. A cura e a recuperação não pode ser um simples gesto
imunológico negativo de afastamento do social, de
fechamento da comunidade. A cura e o cuidado só podem
surgir de um processo de transformação política. Curar-nos
como sociedade, significaria inventar uma nova comunidade,
para além da política de identidade e da fronteira com a qual
temos produzido até agora a soberania, mas também para
além da redução da vida à sua ciber-vigilância. Manter-nos
vivos, mantendo-nos vivos como planeta, face ao vírus, mas
também face ao que pode acontecer, significa pôr em marcha
formas estruturais de cooperação planetária. À medida que o
vírus se modifica, se quisermos resistir à submissão, também
nós temos de sofrer uma mutação.

É necessário passar de uma mutação forçada para uma


mutação deliberada. Devemos reapropriar-nos criticamente
das técnicas de bio-política e dos seus dispositivos farmaco-
pornográficos. Em primeiro lugar, é imperativo mudar a
relação do nosso corpo com as máquinas de vigilância e
controlo biológico: estas não são simples dispositivos de
comunicação. Temos de aprender coletivamente como alterá-
los. Mas também devemos ficar desalinhados. Os governos
estão pedindo o confinamento e o teletrabalho. Sabemos que
eles exigem a descoletivização e o controlo remoto. Usemos o
tempo e a força do confinamento para estudar as tradições de
luta e resistência das minorias, que nos têm ajudado a
sobreviver até agora. Vamos desligar os nossos celulares,
desligar a Internet. Vamos fazer o grande blackout em frente
aos satélites, que estão nos observando, e imaginar juntos na
próxima revolução.

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