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IMMUNITAS

Proteção e negação da vida


UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitora Sandra Regina Goulart Almeida
Vice-Reitor Alessandro Fernandes Moreira

EDITORA UFMG
Diretor Flavio de Lemos Carsalade
Vice-Diretora Camila Figueiredo

CONSELHO EDITORIAL
Flavio de Lemos Carsalade (presidente)
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Antônio Luiz Pinho Ribeiro
Bernardo Jefferson de Oliveira
Camila Figueiredo
Carla Viana Coscarelli
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César Geraldo Guimarães
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Élder Antônio Sousa e Paiva
Helena Lopes da Silva
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João Antônio de Paula
José Luiz Borges Horta
Lira Córdova
Maria de Fátima Cardoso Gomes
Renato Alves Ribeiro Neto
Ricardo Hiroshi Caldeira Takahashi
Rodrigo Patto Sá Motta
Sergio Alcides Pereira do Amaral
Sônia Micussi Simões
Roberto Esposito

IMMUNITAS
Proteção e negação da vida

Henrique Burigo
Tradução
© 2002, Giulio Einaudi editore s.p.a., Torino, www.einaudi.it
Título original: Immunitas – Protezione e negazione della vita
© 2023, Editora UFMG

Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem
autorização escrita do Editor.

__________________________________________________________________________________

E77i.Pb Esposito, Roberto, 1950-.


Immunitas: proteção e negação da vida / Roberto Esposito;
Henrique Burigo, tradução. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2023.

243 p. (Humanitas)
Tradução de: Immunitas: protezione e negazione della vita.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5858-095-9

1. Ética política. 2. Ciência política – Filosofia. 3. Privilégos e


imunidades. 4. Biopolítica. 5. Imunização – Aspectos morais e éticos.
I. Burigo, Henrique. II. Título. III. Série

CDD: 320.01
CDU: 32
__________________________________________________________________________________
Elaborada por Vilma Carvalho de Souza – Bibliotecária - CRB-6/1390

COORDENAÇÃO EDITORIAL Rafael Chimicatti


DIREITOS AUTORAIS Anne Caroline Silva
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa
COORDENAÇÃO DE TEXTOS Clarissa Vieira
PREPARAÇÃO DE TEXTOS Ana Maria de Moraes
REVISÃO DE PROVAS Roberta Paiva
COORDENAÇÃO GRÁFICA Fernando Freitas
PROJETO GRÁFICO Cássio Ribeiro, a partir de Glória Campos – Mangá
FORMATAÇÃO Cássio Ribeiro
IMAGEM DA CAPA The Triumph of Death (detalhe), Pieter Bruegel d. Ä., 1562
PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac

EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 – CAD II / Bloco III
Campus Pampulha – 31270-901 – Belo Horizonte/MG
Tel: + 55 31 3409-4650 – www.editoraufmg.com.br – editora@ufmg.br
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 7

APROPRIAÇÃO 29
1. Direito próprio 29
2. Violência à violência 38
3. Duplo sangue 46
4. A imunização jurídica 56

O KATÉKHON 65
1. Sacer e sanctus 65
2. O freio 71
3. Teologia política 81
4. Teodiceia 91

COMPENSATIO 97
1. Antropologia imunitária 97
2. Produtividade do negativo 106
3. O risco da comunidade 113
4. Potência do vazio 123
BIOPOLÍTICA 135
1. Incorporações 135
2. O phármakon 146
3. Zellenstaat 153
4. O governo da vida 162

O IMPLANTE 173
1. Biofilosofias da imunidade 173
2. Jogos de guerra 182
3. A derrota 190
4. Imunidade comum 197

NOTAS 213

GLOSSÁRIO 237
INTRODUÇÃO

1. Um dia qualquer destes últimos anos, aconteceu de os jor-


nais noticiarem, talvez até nas mesmas páginas, eventos aparen-
temente heterogêneos. O que têm em comum fenômenos como
a luta contra um novo surto epidêmico, a recusa ao pedido de
extradição de um chefe de Estado estrangeiro acusado de vio-
lação dos direitos humanos, o reforço das barreiras contra a
imigração clandestina e as estratégias para neutralizar o último
vírus de computador? Nada, enquanto continuam sendo lidos
nos respectivos âmbitos isolados da medicina, do direito, da
política social e da tecnologia informática. As coisas mudam,
porém, se eles são remetidos a uma categoria interpretativa que
encontra sua especificidade justamente na capacidade de cortar
transversalmente essas linguagens particulares, reconduzindo-as
a um mesmo horizonte de sentido. Como é visível desde o título
deste ensaio, identifiquei tal categoria como sendo a de “imuni-
zação”. Sobre sua fonte semântica e seu mecanismo de funcio-
namento voltarei de maneira mais articulada daqui a algumas
páginas. Mas desde já, em um nível puramente fenomenológico
de discurso, é possível vislumbrar um primeiro contorno seu
em uma analogia evidente: apesar de sua disparidade lexical,
os acontecimentos anteriormente citados podem ser todos re-
lacionados a uma resposta de proteção contra um risco. Quer
se trate da irrupção de uma nova doença infecciosa, da con-
testação de prerrogativas jurídicas consolidadas, do repentino
aumento no fluxo migratório ou da invasão a grandes sistemas
de comunicação – para não falar de um atentado terrorista –,
o que se vê é sempre a ruptura de um equilíbrio precedente e,
consequentemente, a exigência de sua restauração.
Até aqui, contudo, temos uma formulação ainda genérica da
categoria em questão – que encontra, porém, uma conotação
mais peculiar quando, da referência a uma situação indeter-
minada de perigo, se passa à identificação de sua configuração
específica: o que logo se percebe é que em cada um dos casos
mencionados ela tem as características da violação de limites.
Pouco conta que o ameaçado seja o corpo individual, por uma
doença espalhada, o corpo político, por uma intervenção vio-
lenta, ou o corpo eletrônico, por uma mensagem anômala, pois
o lugar em que se situa a ameaça é sempre o mesmo: no limite
entre o interior e o exterior, o próprio e o estranho, o indi-
vidual e o comum. Alguém ou alguma coisa penetra em um
corpo – singular ou coletivo – e o altera, transforma, corrompe.
O termo que melhor se presta para representar essa dinâmica
dissolutiva – justamente pela sua polivalência semântica, que o
coloca no cruzamento entre as linguagens da biologia, do direi-
to, da política e da comunicação – é “contágio”. O que antes
era são, seguro, idêntico a si mesmo é agora exposto a uma
contaminação que ameaça devastá-lo. Naturalmente, tal risco é
constitutivamente inerente a toda forma de vida individual, as-
sim como a todo tipo de agregação humana. Mas o que confere
especial importância à exigência de imunização – dela fazendo
até mesmo o eixo de rotação simbólico e material dos nossos
sistemas sociais – é o caráter, ao mesmo tempo de aceleração
e de generalização, que há algum tempo assumiu essa deriva
contagiosa. Quando se calcula o número de mortos por AIDS
na África em mais de dois milhões por ano, com uma previsão
de mortalidade equivalente a um quarto da população total; ou
quando se estima em dezenas de milhões de pessoas o potencial
de imigração para os países europeus oriunda dos territórios do
Terceiro Mundo com um vertiginoso crescimento demográfico,

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colhe-se apenas o dado macroscópico de um fenômeno bem
mais difuso e estratificado. O que assusta, hoje, não é tanto a
contaminação enquanto tal – há muito tida como inevitável –,
mas o seu alastramento sem controle e irreprimível por todos
os núcleos produtivos da vida.

2. Tome-se o caso, aparentemente marginal, dos computa-


dores. Comparados aos primeiros vírus transmitidos por floppy
disk, os introduzidos por correio eletrônico têm um poder de
difusão não apenas enormemente mais rápido, mas potencial-
mente ilimitado, pois é praticamente coextensivo com o espaço
atingido pela Internet: basta, por exemplo, que o usuário abra
o documento infectado para que ele se multiplique instanta-
neamente por todos os contatos em sua lista de endereços, que
por sua vez estão fadados a replicá-lo de forma exponencial. Se
considerarmos que a cada dia são descobertos cerca de trinta
novos tipos de vírus, compreenderemos o motivo das enormes
cifras destinadas pelos governos (nos Estados Unidos, quatro
vezes superior à reservada para a luta contra a AIDS) ao de-
senvolvimento de programas antivírus capazes de combatê-los.
Ainda que à primeira vista o paralelo possa parecer arbi-
trário, a controvérsia jurídica em torno da imunidade de al-
gumas personalidades políticas apresenta uma fenomenologia
estruturalmente análoga. A questão deve ser vista pelo lado da
relação entre o direito interno de cada estado – com todas as
prerrogativas que ele comporta, não apenas para os parlamen-
tares, mas também para os membros do governo e para o corpo
diplomático – e o que atualmente se vem configurando como
uma nova forma de justiça internacional. Ora, é evidente que –
como para qualquer outra modalidade de violação de limites –,
sempre que um juiz apresenta um pedido de extradição contra
um sujeito jurídico estrangeiro coberto por imunidade, ele pro-
duz uma lesão no corpo da soberania nacional que, mais cedo
ou mais tarde, está fadada a transmitir-se também aos outros
organismos estatais. É isso que está realmente em jogo na guer-
ra legal em torno da imunidade de Pinochet (mas, em outros

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aspectos, também de Milosevic): não apenas a sua eventual
condenação, mas a consequência contagiosa que teria em uma
ordem mundial ainda substancialmente baseada na autonomia
recíproca dos Estados soberanos. Não foi por acaso que a Anis-
tia Internacional saudou a sentença dos Lordes e, em seguida,
a decisão do ministro britânico Strawson, ambas desfavoráveis
ao ex-ditador, como uma primeira brecha aberta no coração
do direito imunitário em favor de algo que se poderia definir
como uma “lei comum”: se é verdade que um crime cometido
por um tirano atinge não apenas o seu próprio povo, mas todo
cidadão do mundo, isso significa que ele poderá ser perseguido
em qualquer lugar e por qualquer um. Que existe uma instância
de justiça que atravessa as fronteiras territoriais do direito e o
próprio direito como forma de delimitação territorial. Não é
para uma noção de justiça extranacional desse tipo que tacita-
mente apela o imigrado clandestino, ou o refugiado destituído
de direitos civis, expulso pelas polícias de Estado para além dos
confins que violou?
A esta altura, eventos que de início pareciam heterogêneos
começam a delinear-se como as polaridades interdependentes
de uma única figura. Se considerarmos o contínuo deslizamen-
to lexical que se produz de uma a outra – correspondendo a
mais um efeito de contágio que atinge a própria linguagem –,
teremos uma comprovação definitiva disso. É conhecida a di-
mensão ao mesmo tempo social, política e jurídica do fenôme-
no da imigração. Mas este, além de como ameaça para a ordem
pública, não raro é apresentado pela mídia também como um
potencial risco biológico para o país que hospeda, segundo um
modelo de patologização do estrangeiro que tem raízes tragi-
camente profundas no imaginário europeu do século que acaba
de passar. De resto, é perfeitamente compreensível que o ata-
que terrorista mais temido hoje, por ser o menos controlável,
seja o bacteriológico – germes de varíola, ebola e até mesmo
de peste negra lançados no ar, na água, nos alimentos. Por sua
vez, a emergência epidêmica das grandes doenças infecciosas

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tem precisas implicações econômicas, jurídicas, políticas e até
militares. Um recente relatório da CIA – que prevê a possibi-
lidade de revoluções, genocídios e instaurações de ditaduras
como consequência do colapso demográfico em diversas zo-
nas do Terceiro Mundo – classifica a AIDS entre os primeiros
cinco dos setenta e cinco fatores de desestabilização em escala
planetária. Quando se considera, de um lado, o vocabulário
explicitamente médico – e até mesmo epidemiológico –, adota-
do na batalha contra os vírus informáticos, eles mesmos temi-
dos como potencial veículo de terrorismo internacional, e de
outro, a terminologia expressamente militar com que também
no âmbito científico é ilustrado o funcionamento do sistema
imunitário diante das ameaças ambientais, o círculo se fecha
perfeitamente sobre si mesmo. Quanto mais o perigo pelo qual
a vida é ameaçada circula indistintamente em todas as suas
práticas, mais a resposta converge para as engrenagens de um
único dispositivo: de fato, ao risco cada vez mais disseminado
do comum revida a defesa cada vez mais cerrada do imune.

3. Mas, se a comunidade constitui o fundo de sentido no


qual a imunidade assume relevo unicamente, como se determina
a sua relação? Trata-se de uma relação de simples oposição ou
de uma dialética mais complexa, na qual um termo não se limi-
ta a negar o outro, mas subterraneamente o implica como seu
pressuposto necessário? Uma primeira resposta a essas interro-
gações vem da etimologia. Os dicionários latinos nos ensinam
que o substantivo immunitas – assim como o corresponden-
te adjetivo immunis – é um vocábulo privativo, ou negativo,
que deriva seu sentido daquilo que nega, ou de que é privado,
a saber, do munus. Se examinarmos o significado prevalente
deste último termo, obteremos por contraste o de immunitas:
relativamente ao “ofício” – encargo, ônus, dever (também no
sentido de um dom a restituir) – representado pelo munus, “e
contrario immunis dicitur qui nullo fungitur officio”. Quem é
muneribus vacuus, sine muneribus, desencarregado, exonerado,

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“dispensado” do pensum de tributos ou serviços em relação
a outros. É imune quem não deve nada a ninguém, conforme
o duplo registro da vacatio e da excusatio: quer se trate de
autonomia originária, quer de sucessiva liberação de uma dí-
vida anteriormente contraída, o que conta na determinação do
conceito é a isenção da obrigação do munus – pessoal, fiscal
ou civil que seja.
Até aqui, porém, permanecemos em um nível muito geral
de definição para poder avançar com a questão levantada no
início. Para chegar mais próximo dela é preciso trazer à baila
outro vetor do conceito que ficou até agora na sombra. Foi dito
que a immunitas é uma dispensa. Mas – como nos advertem
os dicionários antigos e modernos – também um privilégio.
Ora, é justamente a superposição – ou o cruzamento – dessas
duas acepções que nos restitui a conotação mais significativa
do termo: a imunidade é sentida como tal se ela se configura
como uma exceção a uma regra observada, alternativamente,
por todos os outros: “immunis est qui vacat a muneribus, quae
alii praestare debent”. O acento deve ser colocado na segunda
parte da frase. O conceito de “imunidade”, além de privativo,
é um conceito essencialmente comparativo: é a diversidade em
relação à condição do outro – mais do que a isenção em si mes-
ma – o seu foco semântico. A tal ponto que se poderia supor
que o verdadeiro antônimo de immunitas não seja o munus
ausente, mas sim a communitas daqueles que, inversamente,
dele se fazem portadores. Se a privação, em suma, diz respeito
ao munus, o ponto de contraste do qual a imunidade assume
sentido é o cum em que ele se generaliza na forma da communi-
tas, como de resto é atestado por outra definição mais precisa:
“immunis dicitur, qui civitatis, seu societatis officia non praes-
tat; qui vacat ab iis societatis officiis, quae omnibus communia
sunt.” Em relação a tal generalidade, a imunidade é uma con-
dição de particularidade: quer se refira a um indivíduo, quer
a uma coletividade, ela é sempre “própria”, no sentido espe-
cífico de “pertencente a alguém” e, logo, de “não comum”.

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Isso também é corroborado pela definição oficial de imunidade
eclesiástica no direito canônico: “jus quo loca, res vel personae
ecclesiasticae a communi onere seu obligatione liberae sunt et
exemptae.” Aqui vem para o primeiro plano seu caráter antis-
social, e mais precisamente anticomunitário: a immunitas não
é apenas a dispensa de um ofício ou a isenção de um tributo,
mas algo que interrompe o circuito social da doação recíproca,
ao qual remete em vez disso o significado mais originário e
obrigante da communitas. Se os membros da comunidade são
vinculados pelo dever da restituição do munus que os define
enquanto tais, é imune aquele que, liberando-se dele, se coloca
fora dela. E que se revela, portanto, constitutivamente “ingra-
to”: “immunes ingratos significat, quemadmodum munificos
dicebant eos qui grati et liberales exstitissent”.

4. Contudo, ainda que a contraposição de princípio com a


comunidade exprima o mais relevante vetor de sentido da ideia
de imunidade, ela não exaure todo o seu significado. Para che-
gar mais próximo deste, convém seguir, em vez disso, outro
percurso semântico que não coincide completamente com o pri-
meiro, mas que, antes, cruza com ele formando uma figura com-
plexa. Ele originalmente se volta – mais do que para a vertente
jurídica a que até agora nos referimos – para a vertente biomé-
dica que, pouco a pouco, começa a juntar-se àquela. Como se
sabe, deste ponto de vista a imunidade deve ser entendida como
a condição de refratariedade do organismo ao perigo de con-
trair uma doença contagiosa. Na realidade, é também esta uma
acepção muito antiga – encontra-se uma primeira atestação dela
na Farsália de Lucano, a propósito da resistência de uma tribo
africana ao veneno de cobra. Mas o que a torna significativa
para nossa reconstrução é a reviravolta interna que ela conhece
entre os séculos XVIII e XIX, quando, primeiramente com a
descoberta da vacina antivariólica por Jenner e, em seguida,
com os experimentos de Pasteur e de Koch, nasce a bacteriolo-
gia médica propriamente dita. A passagem que nos interessa é

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aquela que conduz da imunidade natural à imunidade adquirida
– vale dizer, de uma condição essencialmente passiva a outra,
ao contrário, ativamente induzida. A ideia de fundo que a certa
altura intervém é a de que uma infecção atenuada é capaz de
proteger contra outra mais virulenta, do mesmo tipo. Daí a
dedução – comprovada pela eficácia das várias vacinas – de
que a inoculação de quantidades não letais de vírus estimula a
formação de anticorpos capazes de neutralizar antecipadamente
seus efeitos patogênicos.
Deixando para os próximos capítulos uma averiguação mais
aprofundada do fenômeno de um ponto de vista biológico, dete-
nhamo-nos em uma consideração mais geral sobre os efeitos de
sentido que ele produz em relação ao paradigma imunitário em
seu conjunto. O primeiro elemento a ser assinalado é que este
último se apresenta não em termos de ação, mas sim de reação
– mais que de uma força própria, trata-se de um contragolpe,
de uma contraforça, que impede a manifestação de outra força.
Isso significa que o mecanismo da imunidade pressupõe a pre-
sença do mal que deve contrastar. E isso não só no sentido de
que dele deriva sua própria necessidade – é o risco da infecção
que justifica a medida profilática. Mas também naquele, mais
forte, de que funciona precisamente por meio de seu uso. Que
reproduz de forma controlada o mal contra o qual deve prote-
ger. Já aqui começa a esboçar-se aquela relação entre proteção
e negação da vida que constitui o objeto do presente ensaio:
por meio da proteção imunitária a vida combate aquilo que a
nega, mas segundo uma estratégia que não é a da contraposição
frontal, e sim a do contorno e da neutralização. O mal deve ser
contrastado – mas não o mantendo longe das próprias frontei-
ras. Ao contrário, incluindo-o em seu interior. A figura dialética
que assim se delineia é a de uma inclusão excludente ou de uma
exclusão mediante inclusão. O veneno é vencido pelo organis-
mo não quando é expulso para o seu exterior, mas quando, de
algum modo, vem a fazer parte dele. Como se dizia: mais que a
uma afirmação, a lógica imunitária remete a uma não-negação,

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à negação de uma negação. O negativo não apenas sobrevive
à sua cura, mas constitui sua condição de eficácia. É como se
ele se dividisse em duas metades, das quais uma é necessária à
contenção da outra – um negativo menor destinado a bloquear
o maior, mas no interior da mesma linguagem.
Naturalmente, essa prática homeopática de proteção – que
exclui incluindo e afirma negando – não se consuma sem dei-
xar marcas na constituição do próprio objeto: não apenas pelo
mecanismo compensatório de subtração que desse modo vem
a contrabalançar seu aumento de vitalidade, mas porque esse
mesmo aumento assume a forma de uma subtração. Não de um
bem adquirido, mas de um mal tolhido. Ou melhor, deslocado,
desviado, adiado. Se a vida – é esta, em todas as suas valências,
o objeto da imunização – não é preservável senão por meio da
introdução em seu interior de algo que sutilmente a contradiz,
isso significa que sua manutenção coincide com uma forma de
restrição que de algum modo a separa de si mesma. Que a sua
salvação está condicionada a uma ferida que não pode sanar,
porque é ela mesma que a produz. A vida, para continuar como
tal, deve dobrar-se a uma força estranha, se não hostil, que inibe
seu desenvolvimento. Incorporar um fragmento daquele nada
que deseja evitar – na realidade, simplesmente o adiando. Daí
o caráter estruturalmente aporético do procedimento imunitá-
rio: não podendo atingir diretamente seu objetivo, é obrigado
a persegui-lo invertido. Mas, assim agindo, ele o mantém no
horizonte de sentido do próprio oposto: pode prolongar a vida
somente fazendo com que ela prove continuamente a morte.

5. Pode-se dizer que essa antinomia atravesse todas as lin-


guagens da modernidade, levando-as ao seu desfecho autodis-
solutivo. De tal processo, o livro busca reconstruir os desliza-
mentos lexicais, mas também a genealogia profunda, por meio
de uma série de figuras que apenas por comodidade expositiva
podemos relacionar a diferentes ordens disciplinares – o direito,
a teologia, a antropologia, a política e a biologia –, pois elas

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indicam, ao invés disso, a sua tendencial superposição. Como
foi dito, esta se determina ao longo do clivage que, ao mesmo
tempo, justapõe e coliga imunidade e comunidade, fazendo de
uma não apenas o fundo contrastante, mas também o objeto e
o conteúdo da outra. Nessa perspectiva, não se deve perder de
vista a circunstância de que a imunidade, enquanto categoria
privativa, não assume relevo senão como modalidade negativa,
precisamente, da comunidade. Assim como, de um ângulo si-
metricamente invertido, a comunidade hoje se revela totalmente
imunizada, atraída e absorvida pela forma do próprio oposto.
A imunidade, enfim, é o limite interno que corta a comunidade,
dobrando-a sobre si mesma de uma forma que se revela, ao
mesmo tempo, constitutiva e destitutiva: que a constitui – ou
reconstitui – precisamente a destituindo.
Essa dialética negativa adquire especial importância na esfera
da linguagem jurídica ou, para sermos mais precisos, do direi-
to como dispositivo imunitário do sistema social inteiro. Que,
a partir do século XVIII – como afirma Niklas Luhmann –, a
semântica da imunidade se tenha progressivamente estendido
a todos os setores da sociedade moderna significa que não é
mais o mecanismo imunitário função do direito, e sim o direito
função do mecanismo imunitário. Essa passagem decisiva – que
o sociólogo alemão tende a apresentar em sua formulação mais
neutra e, portanto, tão mais ideologicamente marcada – consti-
tui na realidade o ponto de precipitação de um percurso que é,
bem ao contrário, aporético e que tem na sua origem a relação
estrutural entre lei e violência. Esta, longe de limitar-se ao papel,
desempenhado pela lei, de imunização da comunidade contra a
violência que a ameaça, caracteriza os próprios procedimentos
imunitários: mais do que eliminada, a violência é incorporada
ao aparato destinado a reprimi-la – mais uma vez violentamen-
te. É o curto-circuito que Walter Benjamin reconhece na figura
ambivalente da Gewalt, entendida como entrelaçamento indisso-
lúvel de direito e força. No interior desse nó – ao qual Benjamin
atribui os traços míticos de um destino inelutável – toda forma

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possível de vida “justa”, ou “comum”, é sacrificada à mera so-
brevivência de seu nu conteúdo biológico.
O motivo de fundo de semelhante redução da vida a simples
matéria vivente é associado por Simone Weil ao caráter em si
privado, e privativo, de todo direito, inclusive daquele que se
define público. O direito, na sua forma historicamente consti-
tuída, é sempre de alguém – jamais de todos. É este o elemento
que determina seu contraste fundamental com aquela comu-
nidade cuja própria salvaguarda lhe é confiada –, mas de uma
forma que inverte seu caráter mais intrínseco: o que é comum,
na ordem jurídica moderna, é apenas a reivindicação daquilo
que é próprio. Daí o necessário recurso àquela força que, do
direito, constitui ao mesmo tempo o pressuposto transcendental
e a garantia de eficácia. É a conclusão à qual, de outra perspec-
tiva, chega também René Girard, em um quadro analítico que
dispõe ao longo de um mesmo traçado genealógico a violência
persecutória do mecanismo vitimário e o aparato repressivo de
tipo jurídico destinado a secularizá-lo, mas justamente por isso
também a duplicá-lo. O fato de o direito ser indispensável à
proteção de todo tipo de convivência associada contra os con-
flitos que a percorrem não elimina o núcleo de violência que ele
leva cravado não apenas em sua gênese, mas no cerne mesmo
de seu funcionamento. Como era expressamente declarado na
definição arcaica do primeiro nómos1 – aquele, soberano, de
vida e de morte –, o direito se coloca no ponto de indistinção
entre conservação e exclusão da vida. Conserva a vida dentro
de uma ordem que exclui seu livre desenvolvimento, porque a
mantém no limiar negativo definido pelo seu oposto. A própria
pretensão da lei de prever, sancionando-os, todos os atos que a
possam contradizer coloca a vida em uma situação de antecipa-
ção pressuposta pela qual ela se vê, ao mesmo tempo, protegida
e prejudicada.

6. É exatamente essa persistência do negativo na forma de


sua contenção o vetor de sentido que liga, no plano categorial,

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a linguagem do direito à da teologia. Não me refiro tanto – ou
somente – ao caráter inevitavelmente jurídico assumido por
todas as dogmáticas religiosas, no momento que se passa da
fase da palavra profética à de sua codificação eclesial. Embora
já esta passagem – necessária a todo tipo de religião que se
proponha a durar no tempo – tenha o significado defensivo de
uma autoimunização contra as tendências heréticas que amea-
çam sua estabilidade. Mas o que liga de maneira ainda mais
profunda a forma da religio à semântica imunitária é a super-
posição que desde a origem se determina entre os seus dois
principais vetores de sentido: um de tipo salvífico – também na
acepção biológica daquilo que sana ou mantém são – e o outro
de caráter normativo. O significado determinado por seu cru-
zamento pode ser associado à ideia de que a sobrevivência da
vida – corporal ou espiritual – é condicionada à observância de
um ritual, mas também ao acatamento de uma proibição, que
não pode ser violada. Isso significa que seu desdobramento
– ou ao menos a sua conservação – depende da submissão a
uma potência estranha que não nasce dela, mas constitui ao
mesmo tempo sua condição de existência e fim destinado.
Essa copresença de desenvolvimento e de freio, de abertura
e de encerramento, de positivo e de negativo – típica do para-
digma imunitário – é exemplarmente representada pela enigmá-
tica figura do katékhon: seja quem for seu portador no plano
histórico e político, ele de todo modo encarna o princípio da
defesa contra o mal mediante o seu englobamento preliminar.
Em termos biológicos, ele poderia ser comparado ao anticorpo
que protege o corpo cristão mediante a assimilação do antí-
geno. Ou, em um vocabulário mais jurídico, ao nómos que se
opõe à anomia de uma forma ela mesma antinômica, vale dizer,
assumindo sua linguagem. A categoria de “teologia política”
constitui o seu mais evidente produto na medida em que remete
ao ponto de conjunção legitimante entre um plano de imanência
e um de transcendência. Quer este último seja referido direta-
mente a Deus, quer ao seu representante terreno, é a este que

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em todo caso se atribui o papel de unificação da cristandade
– ela mesma suspensa entre a esfera religiosa do corpo místico
e a profana, mas sempre teologicamente garantida, do corpo
político. Onde a própria terminologia de “corpo” e de “incor-
poração”, que precocemente tomou o lugar da de “carne” e de
“encarnação”, marca o encerramento do vocabulário cristão em
um quadro institucional destinado a neutralizar as tensões de
tipo anárquico e apocalíptico originariamente presentes nele. O
que em relação àquelas logo se afirma é a referência normativa
a uma ordem definida pela divergência entre o desenvolvimento
da existência e o seu sentido último. É a partir da pressuposi-
ção desse hiato que até mesmo o mal, inevitavelmente atuante
ao longo do curso da história, pode ser subsumido e supera-
do pelo seu oposto. Quando esse procedimento dialético, da
comunidade cristã a cuja legitimação originalmente atende, se
volta para a justificação do próprio Deus, imputado em primei-
ra pessoa dos males do mundo, o dispositivo adquire os traços
compensatórios da teodiceia: nenhum mal, por insustentáveis
que possam parecer seus efeitos, pode anular o bem que não
somente o acompanha contrabalançando-o, mas que, visto em
uma perspectiva mais ampla, dele até mesmo descende.

7. Não surpreende que, ao completar-se a secularização mo-


derna, a categoria de compensatio retorne ao centro daquela
interrogação sobre o homem a que se deu o nome de “antro-
pologia filosófica”. Tendo na origem uma valência econô-
mico-jurídica, ela foi progressivamente se estendendo, primeiro
à linguagem cosmológica, depois à psicanalítica, até adquirir
um alcance ainda mais geral: independentemente do âmbito em
questão, tem-se compensação quando se determina o contra-
balanceamento de uma falta – de um dano, de um débito, de
um defeito – que reconduz à situação de equilíbrio inicial. Mas
para que tal dinâmica compensativa possa situar-se no cen-
tro do vocabulário antropológico, é preciso aguardar por uma
nova passagem conceitual que serve para caracterizá-la em uma

19
direção explicitamente imunitária: a saber, a transição de signi-
ficado de um mero emparelhamento entre negativo e positivo à
funcionalização positiva do próprio negativo. É justamente este
o passo dado pela antropologia filosófica alemã no momento
em que identifica o principal recurso do homem precisamente
na carência originária de sua natureza. Como já intuíra Herder,
é a falta de especialização de seus órgãos – em comparação com
as outras espécies animais – que coloca o homem em condições
de construir artificialmente a própria experiência em qualquer
ambiente em que venha a operar. Isso significa que, para con-
servar-se, a vida humana deve transcender-se – não mais em
uma esfera exterior a ela, como quer a teologia, mas no interior
dela mesma. Ela deve objetivar-se – e, portanto, exteriorizar-se
– em formas ulteriores ao seu simples dar-se.
Quando Max Scheler reconhece a potência do espírito em
sua alteridade em relação ao fluxo da vida; quando Helmuth
Plessner busca o ponto de coincidência entre poder e sobrevi-
vência na capacidade que o homem tem de cindir-se em rela-
ção à imediatez da própria condição natural; quando, por fim
e com uma radicalidade ainda maior, Arnold Gehlen situa na
exoneração do excesso instintual a possibilidade de compensar
a desvantagem morfológica do animal-homem, todos os três, de
maneiras diversas, condicionam a manutenção da vida à cons-
trução de uma ordem artificial que a desvia dela mesma. Quer
ela assuma a forma de um ritual social, destinado a garantir
a distância entre os indivíduos, como afirma Plessner, quer a
de uma instituição capaz de estabilizar dinâmicas que de ou-
tro modo seriam destrutivas, como em Gehlen, persiste o efeito
anticomunitário ao qual a imunização antropológica chega: a
comunidade enquanto tal é literalmente insustentável. Para po-
der resistir ao risco entrópico que a ameaça – e com o qual em
última análise coincide –, ela deve ser preventivamente esteri-
lizada de seu próprio conteúdo relacional. Imunizada contra o
munus que a expõe ao contágio daquilo que de seu próprio in-
terior a excede. Essa é a finalidade das formas – papéis, normas,

20
instituições – com as quais a antropologia separa a vida de seu
conteúdo comum. O que resta em comum não é outra coisa
senão a separação recíproca. Aqui se torna explícito o caráter
intensamente niilista que a antropologia filosófica assimila da
dialética imunitária: a única proteção contra o nada sobre o
qual se apoia a natureza humana é o próprio nada. E um nada,
aliás, ainda mais profundo do que o natural, porque é artificial-
mente produzido para contê-lo.

8. Mas o excesso de mediação institucional apresentado pela


antropologia filosófica é apenas uma das duas principais moda-
lidades por meio das quais o paradigma imunitário se confron-
ta com a dimensão coletiva da vida. A ela, com efeito, vem a
juntar-se – ou, mais frequentemente, a sobrepor-se – outra que
parece seguir na direção simetricamente contrária. Refiro-me
àquele conjunto de fenômenos – ou melhor, àquele regime de
sentido – ao qual, ao menos a partir da última produção de
Foucault, foi atribuído o nome de “biopolítica”. O efeito de
contraste com o modelo antropológico nasce da circunstân-
cia de que, enquanto este leva a separar a vida dela mesma,
acentuado seus elementos formais, o dispositivo biopolítico,
ao contrário, tende a eliminar toda mediação. No momento em
que a política assume a vida como objeto de intervenção direta,
acaba reduzindo-a a um estado de absoluta imediatez. Tam-
bém nesse caso, como no precedente, fica excluída qualquer
“forma de vida” – a possibilidade mesma de uma “vida justa”
ou “comum”. Mas, em vez de por uma presença excessiva de
forma, pela sua exclusão de uma vida achatada sobre o seu nu
conteúdo biológico. É como se a política, para relacionar-se
com a vida, precisasse privá-la de toda dimensão qualitativa –
torná-la “só vida”, “pura vida”, “vida nua”.
Daí a importância decisiva atribuída à semântica do corpo.
Contrariamente a uma tese muito difundida que liga as dinâmi-
cas comunitárias da modernidade a um processo de progressiva
marginalização, ou esvaziamento, do corpo individual e social,

21
o registro biopolítico constrói-se em torno de sua renovada cen-
tralidade. É o corpo o terreno mais imediato da relação entre
política e vida, porque somente nele esta última parece protegi-
da contra aquilo que ameaça prejudicá-la e contra sua própria
tendência a ultrapassar-se, a alterar-se. É como se a vida – para
manter-se tal – devesse ser comprimida e conservada dentro dos
limites do corpo. E isso – atenção – não porque o corpo, sin-
gular e coletivo, não esteja exposto a processos de degeneração
e até de dissolução: nada sente, aliás, mais do que o corpo, o
aguilhão do mal. Mas porque é justamente esse risco que coloca
em ação os mecanismos de alarme, e, portanto, de defesa, dedi-
cados à sua proteção. Nesse sentido é verdade, como sustentou
o próprio Foucault, que o ser vivo começa a entrar no horizonte
de visibilidade do saber moderno no momento em que emerge a
sua relação constitutiva com aquilo que continuamente ameaça
eliminá-lo. É a doença – e a morte – o cone de sombra no qual
se delineia a ciência da vida.
Pode-se dizer que a biopolítica não faz mais do que levar
esse pressuposto ao ponto de máxima radicalidade e, ao mesmo
tempo, de inversão produtiva. Colocando o corpo no centro
da política e a possibilidade da doença no centro do corpo, ela
faz desta, por um lado, a margem externa da qual a vida deve
continuamente se distanciar e, por outro, a dobra interna que
a reconduz dialeticamente a ela mesma. A figura-chave dessa
passagem é aquela, clássica, do phármakon, entendido desde
a origem da tradição filosófica no duplo sentido de remédio e
de veneno – mas aqui mais especificamente interpretado como
antídoto necessário à defesa da vida contra a possibilidade dis-
solutiva de sua “situação em comum”.2 É a esse significado
imunitário que se deve associar a extraordinária longevidade
da metáfora do “corpo político”, não apenas no conjunto de
tratados sobre o governo que datam do primeiro período mo-
derno, nos quais ela emerge de maneira explícita, mas também
sucessivamente, quando a metáfora parece eclipsar-se simples-
mente porque se “realiza” no corpo mesmo da população. Para

22
que esta possa virar objeto de prática biopolítica, é preciso
relacioná-la àquele mesmo vocabulário do “corpo político”
por meio do qual, por longo tempo, primeiramente o rei e em
seguida o Estado haviam sido representados na forma do poder
soberano. Mas em um quadro que, em relação a ela, inverte
as relações de prevalência entre poder e vida: o limiar de pas-
sagem do paradigma de soberania ao de biopolítica deve ser
situado no momento que não é mais o poder o centro de impu-
tação, e mesmo de exclusão, da vida, e sim a vida – a proteção
de sua reprodução – o critério último de legitimação do poder.
Isso explica o processo de medicalização que nos últimos dois
séculos atingiu todo o leque de interações sociais. Mas tam-
bém, mais em geral, a hipertrofia dos aparatos de segurança
que caracteriza de forma cada vez mais difundida as sociedades
contemporâneas. Pode-se ver justamente nela o ponto cego a
que parece chegar o seu desenvolvimento: uma vez que essa sín-
drome de autoproteção não apenas acaba relegando ao plano
de fundo qualquer outro interesse – e, aliás, o próprio “inte-
resse” como forma da vida-em-comum –, mas produz o efeito
oposto ao desejado. Em vez de adequar a proteção ao real nível
de risco, tende a adequar a percepção do risco à crescente ne-
cessidade de proteção – fazendo assim da própria proteção um
dos maiores riscos.

9. Também desse lado retorna a relação entre proteção e


negação: a vida pode ser protegida contra aquilo que a nega
apenas por meio de uma nova negação. Mas, se é este o gargalo
em que aparentemente cai toda a experiência contemporânea,
a intenção deste livro não se limita à sua descrição. Ele antes
propõe uma questão fundamental em que a sua própria fenome-
nologia adquire uma luz menos unívoca: é possível imaginar um
ponto de interrupção – ou, ao menos, de problematização – no
circuito dialético entre proteção e negação da vida? Ela pode ser
conservada de uma forma que não seja a de sua proteção nega-
tiva? Naturalmente, procurei evitar desde o início a tentação de

23
uma resposta imediatamente afirmativa – que situasse o desen-
volvimento da vida em um horizonte radicalmente fora daquele
definido pelo paradigma de imunização. E isso por um duplo
motivo: para começar porque, como se apontou várias vezes, a
imunidade não é uma categoria separável da de comunidade –
da qual constitui antes a modalidade invertida e, portanto, não
eliminável, como é até factualmente comprovado pela circuns-
tância de não haver comunidade que não possua algum tipo de
aparato imunitário. E depois porque negar a negação mediante
a qual a imunidade por sua vez nega aquilo que ameaça a vida
significaria repetir o seu procedimento.
O caminho a ser tomado, ao contrário, não pode passar
senão pelo mesmo objeto que se pretende desconstruir – não
negando, mas eventualmente aprofundando sua contradição
interna. É por isso que a resposta à pergunta de partida eu a
procurei no coração mesmo do mecanismo de proteção que
progressivamente se estendeu a todas as linguagens da vida –
ou seja, naquele sistema imunitário que garante a sua salva-
guarda, no plano biológico, no corpo de cada indivíduo. Não
porque ele seja um objeto neutro, ou originário, em relação
ao caráter derivado ou metafórico que caracteriza as outras
formas de imunização social. Ao contrário, pode-se dizer que
nada tenha sido mais submetido do que o seu funcionamento
a um excesso de sentido que ameaça apagar, ou ao menos
confundir, seus traços constitutivos. A história da teoria imu-
nológica inteira – não apenas em suas derivas de divulgação,
mas também em sua própria elaboração científica – é a de-
monstração mais evidente disso. A leitura, mesmo tendo em
conta apenas o plano lexical dos manuais de imunologia mais
difundidos, é amplamente esclarecedora. Neles o sistema imu-
nitário é descrito como um verdadeiro dispositivo militar de
defesa e de ataque contra tudo aquilo que não é reconhecido
como “próprio”, e que deve, portanto, ser repelido e destruí-
do. O mais surpreendente é o modo como uma função bio-
lógica é submetida a uma visão geral da realidade dominada

24
por uma exigência violentamente defensiva em relação a tudo
o que seja estranho. Seja qual for a gênese ideológica a que tal
estereótipo responde, o que emerge é sua tonalidade objetiva-
mente niilista: a relação entre o eu e o outro – entre o imune
e o comum – é representada nos moldes de uma destruição
que no final tende a envolver ambos os termos da oposição.
Um impulso autodissolutivo que parece encontrar um exemplo
mais do que metafórico naquelas doenças, ditas precisamente
autoimunes, em que o potencial bélico do sistema imunitário
é tão elevado que a certa altura se volta contra ele mesmo em
uma catástrofe, simbólica e real, que provoca a implosão de
todo o organismo.
Entretanto, justamente a análise mais recente da estrutura e
do funcionamento do sistema imunitário parece abrir uma nova
possibilidade interpretativa. O que desse modo se delineia é uma
diferente filosofia da imunidade que – sem ocultar, e evidencian-
do, aliás, sua antinomia constitutiva – a situa em uma relação
não excludente com seu reverso comum. O necessário ponto de
partida – adotado recentemente até por autores muito diversos,
como Donna Haraway e Alfred Tauber – é uma concepção da
identidade individual bem distinta daquela, fechada e monolí-
tica, a que antes se fazia referência. Tal concepção, de resto, é
não apenas tornada possível, mas até mesmo inevitável, pelos
desenvolvimentos da tecnologia genética e biônica: o corpo, ao
contrário de um dado definitivo e imodificável, é um constru-
to operacional aberto a uma troca contínua com o ambiente
circunstante. Não só, mas a uma troca – é a tese, sem dúvida
problemática, apresentada na parte conclusiva do trabalho – que
precisamente no sistema imunitário pode encontrar o seu motor
central. Já a função da tolerância imunológica – entendida não
como uma falha ou uma carência, mas como um produto mes-
mo da imunidade – constitui uma primeira expressão disso. Mas
talvez seja a figura do implante – artificial, como uma prótese,
ou natural, como um óvulo fecundado no ventre da mãe – o tes-
temunho mais eloquente nesse sentido. O fato de ser justamente

25
a heterogeneidade – e não a semelhança – genética do feto a fa-
vorecer a aceitação pelo sistema imunitário da mulher significa
que este não pode ser associado a uma simples função de rejei-
ção diante do estranho, mas que deve ser, antes, interpretado
como a sua caixa de ressonância interna, como o diafragma por
meio do qual a diferença nos envolve, e nos atravessa, enquanto
tal. Como se dizia: subtraído à sua potência negativa, o imune
não é o inimigo do comum –, mas algo mais complexo que o
implica e solicita. Não só uma necessidade, mas também uma
possibilidade cujo pleno significado ainda nos escapa.

  

Falou-se do desdobramento do conceito de imunidade em


duas áreas lexicais diversas, uma de tipo jurídico-político e a
outra de caráter biomédico. A pesquisa inteira se propõe a in-
dagar a margem que as separa – e ao mesmo tempo as une – do
ponto de vista categorial. Mas existem também segmentos de
contiguidade histórica em que os dois significados da imuni-
dade se superpõem em uma mesma prática? Creio que um dos
mais significativos, porque é provavelmente o primeiro, possa
ser encontrado no direito de imunidade concedido àqueles que
exerciam a profissão de médico na Roma imperial. O quadro
em que se deve situar o evento é em si tornado incerto pela com-
plexa posição social dos médicos romanos. O que logo impres-
siona realmente é a aparente incongruência entre o alto nível de
ganho, mas também de poder, alcançado pela profissão médica
e a escassa consideração que, salvo raros casos, era reservada à
maior parte de seus membros, também em razão de sua origem
humilde. Como de fato se conclui das estatísticas com base nas
inscrições, o número dos medici ingenui – ou seja, que eram li-
vres cidadãos romanos – é absolutamente exíguo em relação ao
dos medici servi, libertos, ou peregrini, isto é, imigrados da pro-
víncia.3 Nesse cenário de decifração já difícil – um verdadeiro
“social puzzle”, como foi chamado4 – a questão da imunidade
levanta mais um problema interpretativo: como se explica, e

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como se deve entender, a atribuição de um privilégio especial
a uma categoria de origem não romana e, além do mais, fre-
quentemente caracterizada (por Plínio, por exemplo) em sentido
depreciativo pela sua ganância ou até mesmo desonestidade?
Na verdade, a própria concessão da imunidade foi tudo me-
nos pacífica.5 Para começar – como inferimos de Ulpiano (Dig.,
50.13.1.2-3) e principalmente de Modestino (Dig., 27.1.6.8-11) –,
aquela aprovada por Vespasiano (depois de César já ter conce-
dido, desde o ano de 46, a cidadania romana a quem praticava
a medicina em Roma) e que mais tarde, no tocante à isenção de
determinadas obrigações fiscais e civis, foi ratificada por Adria-
no por volta de 117, não dizia respeito apenas à categoria dos
médicos, mas também à de outros intelectuais filósofos, retóri-
cos e gramáticos. Além disso, ela estava ligada a condições es-
pecíficas, como a de se exercer a profissão na cidade de origem,
sem falar, naturalmente, da probitas morum e da peritia artis.
A despeito dessas restrições, como revela um texto relativo a
uma constituição de Cômodo, a immunitas foi ulteriormente
limitada pelo filho de Adriano, Antonino Pio, que chegou a de-
terminar um número fechado de cinco médicos para as pequenas
cidades, de sete, para as médias, e de dez, para as metrópoles
(exceto Roma). Aliás, mesmo depois, toda medida no sentido de
estendê-la foi sempre caracterizada por polêmicas e retrocessos.6
Por que tanta oscilação diante do que, afinal de contas, não
passava de uma questão menor? Para Bowersock isso está li-
gado a uma espécie de incompatibilidade com a prosperidade
econômica das províncias nas quais se estabelecera a isenção.7
Mas a coisa, como também assinala Nutton, continua um tanto
obscura.8 Como podiam alguns privilégios apenas, concedidos
a não mais do que dez médicos, colocar em crise a economia de
províncias inteiras? Creio que seja melhor buscar a resposta em
outro ou, pelo menos, também em outro fator: a saber, no esta-
tuto, em si mesmo ambíguo e oscilante, da imunidade. Tenho a
impressão de que siga na mesma direção uma observação feita
por Mario Vegetti, quando este acentua que a immunitas “tem

27
um significado socialmente ambíguo, porque alheia aquele que
dela participa de honores e munera onerosos, mas ao mesmo
tempo ricos em prestígio”.9 Se considerarmos que algumas das
isenções previstas pela imunidade incluíam não apenas sordi-
da munera, mas munera civilia de grande importância social,
como cargos edilícios e sacerdotais ou ainda a tutela de órfãos
e viúvas, compreenderemos como o privilégio adquirido seja
precisamente de tipo negativo e, enquanto tal, constitutiva-
mente ambivalente: ele consiste na privação de um munus que,
junto com o peso do onus, comporta também a dignidade de
um officium prestigioso, pois diz respeito ao âmbito da esfera
pública. É em relação a essa privação que deve ser interpretada
a contradição de uma condição lucrativa, porém socialmente
irrelevante. Não por acaso a imunidade concedida aos médicos
está incluída na concepção puramente privada – também no
sentido de “privada de algo” – da atividade médica romana.
Como ainda observa Vegetti, é precisamente esse caráter que
diferencia os médicos juridicamente imunizados daqueles, pu-
blicamente remunerados, da idade helenística: enquanto estes
tinham a obrigação – o munus – do exercício gratuito para
todos os cidadãos e para os pobres em particular, os primeiros
dela estavam isentos.10 Correspondentemente, não recebiam
nenhum salário público, mas apenas um honorário privado
potencialmente ilimitado. A tal ponto que até mesmo quando,
em 386, sob Valentiniano, foi instituído em Roma um colégio
de catorze arquiatros públicos (um por distrito), estes foram
pagos, em vez de com um salário estatal, com bens in natura
(commoda annonaria), aos quais se podiam acrescentar pro-
ventos de origem privada. Isso explica a posição constituti-
vamente dupla dos médicos romanos: privilegiados no plano
econômico – não era fixado nenhum limite para seus pedidos
de retribuição –, mas parcamente considerados no plano so-
cial. Remunerados, precisamente, mas imunes relativamente
aos ônus, e bônus,11 comuns ao resto dos cidadãos livres.

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