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Suicídio: tema de reflexão bioé ca

Edilberto Raimundo Daolio ¹

Resumo
O texto analisa o fenômeno do suicídio, procurando demonstrar como este ato, sempre reves do de violên-
cia, acontece mais frequentemente do que se imagina e é de extrema complexidade, devendo ser mais bem
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estudado e observado. Discute a per nência de o tema ser melhor trabalhado em bioé ca, disciplina em ple-
na ascensão e cuja metodologia interdisciplinar favorece o entendimento do fenômeno. Procura-se, por fim,
demonstrar como a bioé ca pode colaborar numa percepção mais humana e completa do suicídio, agindo
nos mais variados campos do conhecimento.
Palavras-chave: Suicídio. Bioé ca. Morte. Comportamento. Saúde.

Resumen
Suicidio: tema de reflexión bioé ca
El ar culo analiza el fenómeno del suicidio, tratando de demostrar que este acto de violencia siempre recu-
bierto ocurre con más frecuencia de lo que piensa y cómo un acto de extrema complejidad, que debe ser
mejor estudiado y observado. Discute la importancia de este tema mejor trabajo en materia de bioé ca,
una disciplina cuyo auge enfoque interdisciplinario promueve la comprensión del fenómeno. El obje vo es
demostrar cómo la bioé ca en úl ma instancia, pueden colaborar en una percepción más humano y llena de
suicidio, que actúa en diversos campos del conocimiento.
Palabras-clave: Suicidio. Bioé ca. Muerte. Comportamiento. Salud.

Abstract
Suicide: issue that bioethics reflexions
The paper analyzes the phenomenon of suicide, trying to demonstrate how this act of violence always co-
ated happens more o en than you think and how an act of extreme complexity, which should be be er
studied and observed. Discusses the relevance of this topic be be er working in bioethics, discipline whose
booming interdisciplinary approach promotes the understanding of the phenomenon. Looking to finally de-
monstrate how bioethics can contribute to a more human and full awareness of suicide, ac ng in various
fields of knowledge.
Key words: Suicide. Bioethics. Death. Behavior. Health.

1. Mestre edilbertodaolio@uol.com.br – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas (Faex), Extrema/MG, Brasil.

Correspondência
Rua Professor Antonio Di Franco, 54, Vila Municipal CEP 12912-340. Bragança Paulista/SP, Brasil.

Declara não haver conflito de interesse.

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A frase de Camus permanece atual e profun- mento, sufocação, uso de armas de fogo e explosi-
da: Só existe um problema filosófico realmente sé- vos, envenenamento 6.
rio: o suicídio 1. O suicídio direto, ou seja, o defini- Sem apegar-se a determinismos, o suicídio
do como dar fim à própria vida voluntariamente, é é fenômeno universal e persistente ao longo da
fenômeno de grande complexidade e que desafia história. Geralmente, é mo vado por problemas
desde as ciências – como a Sociologia, Psicologia,
econômicos, amores não correspondidos, ato de

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Direito, Psiquiatria, por exemplo – até as religiões,
heroísmo, influência do meio social ou distúrbios
passando pela bioé ca e não deixando de lado o
mentais. Porém, o que se evidencia é sua paradoxal
senso comum 2.
ocorrência em todas as culturas, em todos os tem-
Os dados fornecidos pela Organização Mun- pos e idades 7.
dial da Saúde (OMS) são alarmantes e nos revelam
Valiosas são as correntes do pensamento que,
que aproximadamente um milhão de pessoas co-
baseadas em pesquisas, tratam do suicídio – contu-
mete suicídio anualmente no planeta, e entre 10
do, com enfoque quase sempre no impacto do fe-
e 20 milhões de pessoas o tentam. O relatório da
nômeno ou no estudo de causas unilaterais para a
OMS aponta ainda que o suicídio é uma das princi-
compreensão de tema tão complexo e influenciado
pais causas de morte entre jovens em grande parte
por inúmeros fatores. Na perspec va biológica, es-
dos países desenvolvidos, mas também nos em de-
tuda-se o suicídio que se repete em uma família, su-
senvolvimento 3. Se esses números chocam, a OMS
gerindo que fatores biológicos desempenham forte
adverte que muitos países não fornecem dados fi-
papel de risco. Na perspec va psiquiátrica, tem-se
dedignos – o que poderia elevá-los em até 20 vezes.
Ressalte-se que o número de mortes por suicídio é o suicídio diretamente ligado às perturbações men-
maior que o de mortes por homicídio ou nos confli- tais, depressões graves, melancolias, desequilíbrios
tos armados em todo o planeta 3. emocionais e obsessões, entre outros fatores. Na
perspec va sociológica, Émile Durkheim inaugura,
Segundo o Ministério da Saúde (MS), em 2004 ainda no século XIX, corrente teórica para a qual o
a média nacional de mortes por suicídio foi de 4,5 suicídio só pode ser visto como concernente a influên-
por 100 mil habitantes – considerada baixa em com- cias sociais 8.
paração a países como o Japão, onde a média é de
25 mortes por 100 mil habitantes. A OMS informa Facilmente percebe-se que o homem contem-
que, similarmente ao Brasil, as médias da Itália, Ir- porâneo não está habituado com a morte e o mor-
landa e Egito alcançam menos de 10 mortes por 100 rer. Muito menos com o suicídio. É raro encontrar
mil habitantes. pessoas dispostas a conversar sobre isso. Mas ele
acontece a nosso lado, com vizinhos e conhecidos –
Porém, o dado surpreendente é que para o e em grande número. A sociedade contemporânea
MS a média brasileira de mortalidade por suicídio não admite certos sinais de fraqueza, como os mani-
passou de 3,9 por 100 mil habitantes, em 1994,
festados no idoso, no deficiente e no suicida. Nossa
para 4,5 por 100 mil habitantes, em 2005 – índice
sociedade triunfante precisa de êxitos ou sucessos
que tem aumentado nos úl mos anos, principal-
para alimentar seus mitos de vida e de no cias aus-
mente na faixa de 15 a 29 anos 4. Vale lembrar que
piciosas 7.
os números que atestam o suicídio no Brasil inspi-
ram pouca confiança, quer pela subno ficação de- Os próprios governos não possuem um pro-
corrente da falta de cuidado do profissional da área grama de saúde específico e eficiente des nado
quer por tabu, o que leva muitas famílias a omi r a àqueles suicidas em potencial. Os profissionais de
verdadeira razão da morte, que não consta no ates- saúde não dispõem de capacitação humana e pro-
tado de óbito 4. fissional adequadas para receber, atender e encami-
nhar – se for o caso – sujeitos que tentaram o suicí-
Émile Durkeim, no final do século XIX, em cé-
dio, com vistas a atendê-los em sua integralidade e
lebre publicação sobre o suicídio, destaca a prepon-
encaminhá-los aos setores que possam tratar seus
derância da influência dos padrões sociais no com-
problemas 9.
portamento do indivíduo, inovadora visão que inclui
uma aplicação da Sociologia ao fenômeno sempre Enfim, muito se teoriza sobre o suicídio, mas
diferentemente tratado por outras áreas do conhe- falta maior preocupação e elaboração sobre o suici-
cimento – inclusive, tratando o suicídio como ação da: ouvi-lo, compreendê-lo, com vistas a dimensio-
posi va e violenta 5. Corroborando o aspecto violen- nar o fenômeno e perceber até que ponto nossa so-
to do ato suicida, os dados do MS/Datasus apontam ciedade, preocupada com as aparências e descom-
suas principais formas: enforcamento, estrangula- prome da com as pessoas, influi ou é responsável

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pelo aumento, diminuição e ocorrência de gesto tão expecta va de vida em muitos países, inclusive no
dramá co e comprometedor. Brasil – mas mesmo assim o suicídio permanece 11.
À guisa de entendimento preliminar e con-
Fundamentação teórica ceitual do suicídio, é ú l observar alguns dos sub -
pos de suicidas. Ressalve-se, entretanto, que essas
classificações não encerram todos os suicidas nos
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O tema suicídio e as várias questões em torno tópicos a seguir, apenas apresentam alguns deles:
de sua órbita estão presentes no pensamento hu- a) o suicídio desesperado caracteriza-se pela in-
mano desde a An guidade, quer pelo desconforto tolerabilidade e falta de esperança que a situação
que acarretam quer por extremamente paradoxais. oferece ao sujeito, sendo meio de fuga visto como
Entretanto, ao falarmos em suicídio não podemos única possibilidade; b) os suicidas psicó cos se-
furtar-nos a discu r a vida e a qualidade de vida 8. riam pacientes que experimentam alucinações. Por
Dentre os suicidas famosos, podemos par r da exemplo, os esquizofrênicos; c) os suicidas racionais
mitologia grega. O grande Ajax, retratado na Ilíada geralmente sofrem de doença terminal ou progres-
de Homero, crava a espada no próprio peito; Hér- siva, e a necessidade de alívio dos sintomas sicos e
cules, o mais importante herói da mitologia, a ra-se incapacitações seriam os principais mo vadores; d)
ao fogo; Narciso, apaixonado pela própria imagem o suicida histriônico, compulsivo ou manipulador é
refle da na água, nela se joga, suicidando-se; o fi- aquele que tem como maior mo vação o desejo de
lósofo Pitágoras para de se alimentar e morre em atenção ou vingança 8.
quatro dias; Sócrates e Demóstenes ingerem cicuta Não se pode determinar com precisão a exis-
– Sócrates foi obrigado a tal escolha pelo governo da tência de uma causa para o suicídio. Este fenômeno
pólis. A lei de Atenas lhe possibilitava o exílio, mas redunda de uma série de fatores de ordem ambien-
devido às suas convicções preferiu o suicídio; Cleópa- tal, cultural, biológica, psicológica e polí ca, acumu-
tra deixou-se picar por uma víbora; Judas Iscariotes, ladas na biografia de um sujeito. O estudo unilateral
arrependido pela traição a Jesus, enforcou-se nos dos fatores acima exemplificados levará, fatalmen-
galhos de uma figueira; Pôncio Pilatos a rou-se a te, a resultados também unilaterais, que não conse-
um lago, após desentendimentos polí cos; Vincent guem compreender o ser humano e mais especifi-
van Gogh deu um ro no próprio peito; Santos Du- camente o suicídio, em toda a sua complexidade 12.
mont, deprimido pela forma de u lização de seu
A maior ocorrência de suicídio em algumas
invento na Revolução Cons tucionalista de 1932,
faixas etárias ou grupos determinados não diminui
enforcou-se com a própria gravata; Getúlio Vargas
o espanto de sua existência em alguns grupos espe-
deu um ro no peito; Adolf Hitler, um ro na cabeça.
cíficos, como entre os idosos. A terceira idade pode
Enfim, os exemplos célebres são muitos 8.
ser considerada um período de caracterís cas pró-
David Hume, filósofo empirista escocês, possui prias, no qual ocorre a possibilidade de déficits cog-
desconhecido e precioso texto denominado “Do sui- ni vos, biológicos e sociais que podem desencadear
cídio”, no qual, dentro do inovador espírito de sua transtornos que desemboquem no suicídio. Porém,
época, traz novo modo de ver este ato. U lizando é também um momento da vida do ser humano que
suas próprias palavras: Não seria um crime eu des- passou por dificuldades e experiências. Por isso,
viar o Nilo ou o Danúbio, se eu fosse capaz de rea- deveria encontrar tranquilidade e segurança, mas
lizar esses propósitos. Onde está então o crime de nossa sociedade ainda não se conforma com o indi-
desviar algumas onças de sangue dos meus canais víduo mais debilitado e marcado pelos anos 8.
naturais!”. Ou seja, um homem que se re ra da vida Outra mo vação que causa espécie é o suicí-
não faz mal algum à sociedade. Pode somente dei- dio de natureza religiosa. Normalmente, as religiões
xar de fazer algum bem, mas nenhum mal 10. politeístas da An guidade não reprovavam o sui-
Quer por amor, ódio, heroísmo, altruísmo, cídio, tendo-o inclusive como prá ca comum, até
solidão, falta de iden dade na mul dão, excesso mesmo no Cris anismo primi vo. Contudo, a par r
de sofrimento, tédio existencial, problemas psico- da Idade Média, o suicídio passa a ser condenado e
lógicos, depressão ou influência de ordem social as comba do por Santo Agos nho e outros padres da
pessoas se suicidam desde tempos imemoriais. Na Igreja – posição hoje acompanhada pelas principais
atualidade, pelo menos em parte do planeta, com religiões. Na atualidade, têm-se os homens-bomba,
os mais significa vos avanços tecnológicos relacio- que numa mistura de mo vação religiosa e polí -
nados à saúde, pode-se ter substancial melhoria na ca, além do ato de atentar contra outras pessoas,
qualidade de vida, comprovada pelo aumento da se matam 13.

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Em nível pessoal, em algum momento da vida também deve passar pela compreensão das etapas
e pelas mais variadas razões, nos deparamos com o desse processo.
dilema de se a vida vale ou não a pena; se os proble- Enfim, o suicídio é sempre ato reves do de ex-
mas da vida moderna compensam ser enfrentados. trema violência. É uma das formas mais cruéis de
Esta questão, de cunho basicamente existencial, não destruição, por envolver ques onamentos que não
pode ser bem resolvida sem que se considere a in- encontram respostas nas explicações cien ficas,

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fluência da sociedade como um todo, e a influência acadêmicas e mesmo religiosas. É profundo mistério
desempenhada pelo grupo social mais próximo 14. que desafia os estudiosos que tentam elucidá-lo, na
Há que se considerar que nossa sociedade induz a vã e insustentável crença de compreendê-lo 15.
uma prá ca diária de condutas autodestru vas 13
que assumem ma zes incontáveis – o que pode ser
traduzido no consumo de 40 ou mais cigarros por A bioé ca e o suicídio
dia, na ingestão de álcool em quan dades abusivas,
no trabalho maquinal e sem limites, em excessos de
Conforme observado, as mais variadas ciên-
comida, na conservação da paz baseada em milha-
cias tratam o tema suicídio como área de seu conhe-
res de ogivas nucleares, entre outros exemplos 2.
cimento. No presente trabalho, pretende-se estudá-lo
Sinte zando, podemos considerar nossa so- sob a perspec va bioé ca, embora este campo ain-
ciedade como fomentadora de uma existência tóxi- da o trate com certa restrição, pois após intensa re-
ca, que dissemina uma práxis que implica um pro- visão de literatura pouco se encontrou acerca desse
jeto de morte, ou seja, de um viver suicidando-se. fenômeno.
Enquanto se alardeiam os avanços da medicina e da
O termo bioé ca, introduzido por Van Rensse-
sociedade em favor da qualidade de vida, es mula-se
laer Po er, que espantado com o desenvolvimento
uma prá ca na qual a vida tem pouca importância 13.
exponencial do conhecimento cien fico e com o atra-
De maneira geral, a psiquiatria encarou o suicídio
so na reflexão necessária para sua u lização propôs a
como fenômeno individual. Entretanto, as inten-
criação de nova disciplina, refere-se a uma ciência da
sas pressões que as condutas cole vas ou os fatos
sobrevivência, baseada na aliança do saber biológico
sociais exercem sobre a vida privada e profissional
(bio) com os valores humanos (é ca) 16. Po er reivin-
permitem demonstrar, sem esforço, que tal enfoque
dica para a bioé ca um vasto campo de aplicação,
não basta. Com sua morte, o suicida não apenas diz
que engloba o controle da população, a paz, a pobre-
que não se suportava mais: dá também o recado
za, a ecologia, a vida animal, o bem-estar da huma-
de não mais ser possível conviver no meio social no nidade e a sobrevivência da espécie humana e a do
qual está inserido 13. planeta como um todo, com caráter interdisciplinar.
Em cada sujeito que se mata, fracassa uma Ultrapassando os limites de determinada ciência, se
proposta social. É a constatação de que um projeto instala no plano da responsabilidade social, que deve
social falhou na pessoa do suicida. Projeto esse que ser o obje vo de todo o pensamento humano 16.
não pode ser balizado somente na dimensão da dor É neste panorama da bioé ca, como disciplina
e do sofrimento daquela ví ma – e se é certo que voltada para o estudo das questões atuais da vida
na atualidade a patologia suicida é uma patologia sob a ó ca da é ca, que o suicídio deve ser estu-
social, então a forma de entendê-la, enfrentá-la e dado. Como citado, este conceito possui caracterís-
curá-la não pode ser senão social 2. A repercussão cas sociais, culturais, biológicas e psicológicas en-
do suicídio para a sociedade e, em especial, para a volvidas por uma drama cidade e radicalidade que
família do suicida é chocante. É a percepção de que não podem ficar longe dos olhos desta disciplina tão
algo deixou de ser feito. É a constatação de que a so- atual e prolífera. Então, ao refle r sobre bioé ca e
ciedade, possuidora de alta tecnologia e poder, não suicídio, é indispensável mencionar e entender o
tem habilidade e tempo para ouvir, diagnos car e que é bioé ca, como chave de leitura da realidade
ajudar uma pessoa à beira de ato tão radical. na qual se debate. Deve-se lembrar que o sujeito
Apesar das várias concepções sobre o suicídio, dessa reflexão – e também do suicídio – é a pessoa
percebe-se hoje maior preocupação em não so- humana que vive em cenário imposto por uma ideolo-
mente analisar o fenômeno de seu desenlace, mas gia, um sistema polí co e social que muitas vezes
percebê-lo como gesto final e derradeiro, resultado provoca cobranças e desajustes tão intensos, para
de uma série de outros fatos de natureza biológi- os quais as pessoas não se encontram devidamente
ca, cultural ou social. Se o suicídio passa a ser visto preparadas, que as leva ao desespero e, consequen-
como processo, a forma de entendê-lo e preveni-lo temente, ao suicídio 17.

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A é ca, enquanto disciplina, se refere à refle- de equilibrar-se nas diversas situações da vida, autor-
xão crí ca sobre o comportamento humano, refle- realização, abertura para o outro e para si mesmo, li-
xão que interpreta, discute e problema za, inves ga berdade de pensamento, expressão e criação. Saúde
os valores, princípios e o comportamento moral à social - é o ajustamento do indivíduo no grupo social
procura do bom, da boa vida, do bem-estar da vida (entende-se por ajustamento a capacidade que a pes-
em sociedade. Assim, a é ca é um dos mecanismos soa tem de se situar, de se relacionar com as outras).
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de regulação das relações sociais do homem, pois Implica habitação adequada, equilíbrio dos fatores
visa garan r a coesão social e harmonizar interes- econômicos (trabalho e salários condizentes), lazer,
ses individuais e cole vos 18. A abordagem é ca educação (que permita, pela observação e análise,
contemporânea é fruto de uma sociedade secular o ques onamento da realidade), amizade, simpa a,
e democrá ca. Afasta-se das conotações das morais relacionamento. Saúde espiritual - revela-se na ma-
religiosas, apesar de ser campo de estudo e reflexão neira de encarar a vida. Todos têm uma finalidade na
de vários grupos; cons tui-se em é ca pluralista que vida, sede de um absoluto (ou transcendente): para
aceita uma diversidade de enfoques, postura e valo- os cristãos, Deus; para os muçulmanos, Alá; para os
res. A abordagem é interdisciplinar, servindo-se da ateus, o Homem. Esse absoluto é fundamental para
colaboração e interação da diversidade das ciências a superação das dificuldades, de um sofrimento ou
biológicas e humanas 18. doença. Estas quatro dimensões formam um conjun-
Portanto, a palavra bioé ca, é ca da vida, re- to em que o relacionamento humano, conectado à
mete à reflexão necessariamente mul profissional bioé ca, é a chave principal.
relacionada a diversos campos que atuam na saúde
e na vida, da qual a vamente par cipam filósofos,
teólogos, sociólogos, antropólogos, juristas, reli- Considerações finais
giosos, médicos, biólogos, polí cos, economistas e
outros. Sua perspec va é autônoma e humanista: a Para muitos, mais que disciplina a bioé ca é um
pessoa humana em sua globalidade – daí que a bioé- território, um terreno de encontro de saberes acerca
ca pode ser definida como instrumento de reflexão de problemas surgidos em decorrência do progresso
e ação a par r do princípio do respeito ao humano. das ciências, como contracepção, aborto, transplante
É preocupação desta disciplina o respeito à hu- de órgãos, drogas, degradação da biosfera, problemas
manidade em cada ser humano, ou seja, todo ato de de jus ça social na distribuição dos recursos sanitários.
violência, agressão e desrespeito a si próprio. O que Acrescente-se a isto uma conotação mul disciplinar
neste momento pode se referir ao suicídio também envolvendo problemas filosóficos, biológicos, médi-
afeta a própria essência de nossa civilização, com- cos, jurídicos, sociológicos, gené cos, teológicos e psi-
promete o bem e o futuro da própria humanidade 16. cológicos, entre outros. E é exatamente neste território
que sempre deve prevalecer a preocupação com o hu-
Nesse contexto, outro princípio ligado à bioé-
mano, que se deve colocar o tema suicídio 20.
ca é o da proteção – que não pode ser entendido
como paternalismo, mas como o ato da pessoa, dos Ante esses aspectos, pode-se afirmar que em
órgãos públicos e da própria sociedade em perce- breve a bioé ca será estratégia e ferramenta impres-
ber aqueles sujeitos vulneráveis aos mais variados cindível não apenas para a melhor compreensão do
problemas que podem levar ao suicídio. Proteger no evento suicídio, haja vista que também proporcionará
sen do de devolver ao sujeito a autonomia total so- os instrumentos necessários de reflexão para auxiliar
bre seus atos, a fim de decidir sobre seu futuro com nas mudanças de comportamento que podem vir a
liberdade e discernimento 19. Conforme explicitado, contribuir para sua redução ou ocorrência. Isto quer
o sujeito de nossa atenção é a pessoa humana. Esta dizer que o homem se preocupará mais com o seu
é um ser sico, psíquico, social e espiritual ao mes- semelhante, proporcionando-lhe oportunidades para
mo tempo. ouvi-lo, entendê-lo e novas chances para recomeçar
Para melhor entender essa abordagem, u - algo 16.
lizaremos a palavra saúde no sen do ideal para É necessário, então, que os bioe cistas estejam
qualificar as quatro dimensões do ser humano 11: cientes da gravidade do fenômeno e do expressivo nú-
saúde sica - é a ausência de mu lações, lesões, dor, mero de pessoas que realizam gesto tão radical, para
cansaço, fome ou sede. É o desenvolvimento normal que direcionemos nossas pesquisas, reflexões e esfor-
do indivíduo e o equilíbrio entre os componentes ços visando encontrar meios para minimizar a dor e o
orgânicos. Saúde psíquica - implica a orientação de desespero dos suicidas, seus familiares e de toda uma
tempo e espaço, ausência de alienação, capacidade sociedade perplexa.

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Referências

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