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Comentários sobre a ideação suicida, tentativas de suicídio e suicídios

José Outeiral

Médico. Psiquiatra. Psicanalista. Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio


de Janeiro. Full Member da Internaional Psycho-Analytical Association e da
FREBRAPSI

Quanta gente queria suicidar-se e contentou-se em rasgar a própria


fotografia
Jules Renard (1864-1910)

Alguns comentários gerais

Há mais suicídios no mundo do que imaginamos, mas são suicídios


parciais. Muita gente destrói as mais belas porções de si mesmo, e não
sua vida. Eis tudo O homem que põe termo à vida não é culpado de
deformação própria. Destruir-se por inteiro, de um só golpe, é respeitar
mais seu ser imortal do que seria mutilá-lo em vida, das suas mais nobres
faculdades e aspirações.
G. Flaubert (1821-1880)

O suicídio embora não seja um fato incomum na sociedade humana,


presente em todos os tempos e em todas as culturas, é sempre tratado com
cuidado, reserva e mesmo negado. A própria palavra suicídio é
compreendida de maneira muitas vezes de forma equivocada: deve haver
uma intenção deliberada de acabar com a própria vida ou pode ser uma
manifestação inconsciente, como em determinados acidentes? O que é, na
verdade, o suicídio?

Certas religiões não permitem que o suicida seja enterrado junto com os
outros mortos ou o corpo do suicida não pode receber rituais religiosos. A
imprensa, por exemplo, evita divulgar notícias sobre suicídio a partir da
idéia de que este comportamento possui uma característica indutora. Idéia
que não deixa de conter certo sentido. Na verdade, após W. Goethe (1749-
1832) ter publicado sua novela Os sofrimentos do jovem Werther (1774),
narrando o suicídio de um jovem que tem um amor contrariado, inúmeros
adolescentes tentaram e conseguiram se suicidar quando suas pretensões
amorosas não eram correspondidas, originando a Síndrome de Wherter. Os
suicídios coletivos também não são eventos raros e temos muitos exemplos
destas condutas em momentos de guerra, como aconteceu, por exemplo,
entre os militares japoneses durante a Segunda Guerra Mundial frente a
derrota, ou como atos religiosos extremamente primitivos, como aconteceu
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há 30 anos, na Guiana, com os seguidores do “reverendo” americano Tim


Jones que se suicidaram às centenas. Que pensamentos tão destrutivos que,
coletivamente, são capazes de exercer tamanho poder sobre os grupos
humanos? A destruição do meio ambiente pode ser considerada uma forma
de suicídio coletivo? Ou devemos falar de “suicídio” apenas quando
alguém deliberadamente tira sua própria vida com um tiro ou saltando de
uma ponte? Acidentes repetidos serão formas inconscientes e parciais de
suicídio, mesmo quando acontece com crianças? O leitor está convidado a
pensar conosco.

Ideação suicida, tentativa de suicídio e suicídio

No momento atual, o homem está em vias de aniquilar a comunidade dos


seres vivos, entre os quais ele esmo vive e dos quais depende: ou seja, está
em vias de suicidar-se.
K. Lorenz (1903-1989)

É interessante estabelecer uma diferença entre alguns termos que


habitualmente utilizamos quando nos referimos ao assunto suicídio.

A ideação suicida é uma idéia que ocorre em determinados momentos na


vida de muitos indivíduos. Corresponde, na maioria das vezes, a
sentimentos e pensamentos depressivos de “não seguir existindo” ou,
inclusive, em um extremo, de produzir a própria morte de forma violenta.
As tentativas de suicídio são atos e condutas que de forma manifesta, ou
não (poderão ser manifestações inconscientes não percebidas claramente),
colocam em risco a vida do indivíduo. Estas condutas são por vezes
claramente identificáveis ou podem se apresentar através de
comportamentos de risco. Dirigir perigosamente, provocar situações de
briga, como no trânsito, que podem em resultar em violência contra a
própria pessoa, atividades de risco, esportes perigosos sem o devido
cuidado e treinamento, acidentes repetidos, situações em que saúde é
exposta, enfim, uma série muito grande de comportamentos. O suicídio, na
verdade, pode ser definido quando a tentativa suicida, consciente ou
inconsciente, se realiza ou obtém “êxito”.

As estatísticas revelam que, em geral, as mulheres tentam mais o suicídio


do que os homens, mas estes apresentam um índice de suicídio maior do
que as mulheres. O suicídio é encontrado em todas as idades, inclusive na
infância, mas é na adolescência e na velhice que encontramos as maiores
incidências. A estatística de suicídio varia em diferentes países (parece ser
mais freqüente nos países nórdicos do que os mediterrâneos) e em
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determinadas épocas do ano (nos finais de ano nos defrontamos com mais
tentativas de suicídio e, mesmo, suicídios do que em outras épocas, assim
como é mais comum no inverno do que no verão).

As contribuições da psicanálise

Na verdade o suicida não se mata. Elimina, com sua morte, os que o


aborrecem ou incomodam. É portanto um assassino.
Mário da Silva Brito (1916)

Existe uma relação muito estreita entre o sofrimento psíquico e as


patologias mentais e as questões relacionadas ao suicídio. Fatores
hereditários e ambientais (educação, identificações, cultura, etc.) estão em
jogo. A atuação suicida requer ser avaliada sob diversos aspectos.

A Psicanálise nos oferece uma importante contribuição para a compreensão


do suicídio, desde um viés que não exclui, certamente, outras áreas do
conhecimento. Sigmund Freud (1905;1916) ao definir a “equação
etiológica das doenças mentais” nos auxilia e visualizar com maior nitidez
o tema de nosso interesse, o suicídio. Ele estabeleceu o seguinte esquema
para entendermos o desenvolvimento da personalidade :

Personalidade = (1)constituição + (2)vivências infantis + (3)situação atual.

A personalidade de uma pessoa que poderá cometer um suicídio deve ser


considerada a partir destes aspectos. A (1) constituição refere-se, neste
caso, aos aspectos hereditários que sabemos são importantes na
predisposição à doença mental, particularmente quando há uma história
familiar de sofrimento psíquico. A depressão endógena, por exemplo, tem
uma participação importante dos aspectos genéticos. Na avaliação do risco
de suicídio é importante investigar a existência de ascendentes com
histórico de doença mental e suicídio. As (2) vivências infantis dizem
respeito aos cuidados dispensados ao bebê e a criança nos primeiros anos
de vida. Cuidados não só com os aspectos físicos como, especialmente, a
atenção aos aspectos emocionais. Não devemos esquecer que o bebê
humano nasce em grande estado de desamparo físico e psíquico,
necessitando de um outro (a mãe, o pai, outros adultos, etc.) para se
constituir como um indivíduo saudável física e emocionalmente. A doença
depressiva, ou outras formas de sofrimento psíquico, de um dos pais, ou de
ambos, poderão produzir cuidados insuficientes ou inadequados,
contribuindo para a constituição de uma estrutura frágil de personalidade
da criança. A (3) situação atual nos remete a experiências traumáticas que
podem ocorrer ao longo da vida, como perdas de pessoas amadas, doenças,
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guerras, situações de variados tipos que produzem sofrimento psíquico. Os


dois primeiros fatores desta equação, os aspectos constitucionais e as
experiências infantis, são muito importantes e poderão tornar mais apto o
indivíduo a enfrentar as situações difíceis que, inevitavelmente, se
apresentam ao longo da vida. O suicídio, assim, não costuma ser devido a
uma única causa, mas determinado por vários fatores que atuam em maior
ou menor grau.

Ao desenvolver o estudo dos fatores heredo-constitucionais, Sigmund


Freud considerou que o homem nasce com uma vida instintiva
caracterizada por uma dualidade: instinto de vida (Eros) e instinto de morte
(Tanatos). Estes instintos fazem parte de nosso existir cotidiano. O instinto
de morte, cuja existência pode ser contestada por alguns, é responsável por
uma tendência a volta ao “inorgânico”, ao que “não é vida”. Alguns
indivíduos poderão ter aspectos instintivos mais ou menos exacerbados,
tanto em relação ao instinto de vida como ao instinto de morte. As
experiências de cuidados iniciais, nos primeiros anos de vida e mesmo na
adolescência, poderão mitigar ou exacerbar estes instintos. Bons cuidados
amenizam o instinto de morte e favorecem o instinto de vida. Quando o
cuidado não existe ou é inadequado acontece o inverso: se incrementa o
instinto de morte. Evidentemente estas idéias podem ser discutíveis, mas
constituem uma forma de podermos entender determinadas condutas dos
seres humanos.

Roosevelt Cassorla, em seu livro Do suicídio. Estudos brasileiros (1991)


considera que existem algumas fantasias básicas encontradas nas atuações
suicidas. Ele descreve alguns tipos.

1) O encontro com uma vida cheia de paz, sem sofrimento. À fantasia


comumente se acrescenta o componente do reencontro com uma
figura querida ou idealizada, morta no passado do indivíduo...
2) O componente agressivo: o suicida vinga-se de inimigos reais ou
fantasiados. “Visualiza” o sofrimento deles após sua morte,
esquecendo-se, em seu delírio, de que ele não poderá “ver” nada,
pois estará morto...
3) Outras fantasias encontradas no indivíduo que pensa em tirar sua
vida tem que ver com a punição por sentimentos de culpa, os mais
variados...que passam por fantasias ligadas à sexualidade
reprimida e à destrutividade...

Aspectos culturais e sociológicos

Não me suicidei porque queria aprender mais matemática


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Bertrand Russel (1872-1970)

É interessante o que nos apontam alguns autores sobre a alta incidência de


suicídio entre os adolescentes guaranis na região de Dourados (MS). O
mundo mítico destes índios considera que a mãe-terra esgota sua
generosidade após cerca de três anos é necessário, então, migrar para outros
sítios. Isolados em suas reservas, cercados pelo avanço progressivo do
agro-negócio na região, quando se dá o esgotamento da mãe-terra estes
adolescentes, através do suicídio, como uma viagem ou passagem, buscam
novos espaços, espaço mítico, a mãe-terra fértil novamente. Um suicídio
que, sob certos aspectos, preserva a cultura e seus mitos. A perda da
identidade no processo de aculturação promove uma despersonalização,
próxima a psicose, levando os jovens índios a estados mentais de profundo
sofrimento.

Um dos mais importantes estudos sociológicos sobre o suicídio foi escrito


por Émile Durkeim. Este trabalho considera como suicídio somente quando
a pessoa atenta conscientemente contra si própria, sabendo, desta forma,
que será a causadora de sua morte. Ele escreve em O suicídio. Estudo
sociológico (1897):

...há suicídio quando a vítima, no momento em que comete o ato que deve
por fim aos seus dias sabe, com toda a certeza, o que daí deve
resultar...Um homem que conscientemente se expõem por outrem, sem
saber se o desfecho da situação lhe traz ou não a morte, não é, sem
dúvida, um suicida, como não o é o imprudente que em pleno
conhecimento de causa brinca com a morte embora procurando evitá-la,
ou o apático que, não tendo nada que o prenda à vida, não cuida da
saúde e a compromete por negligência...

O mesmo autor, no livro citado, descreve alguns tipos de suicídio


descrevendo as características de cada um: suicídio egoísta, suicídio
altruísta e suicídio anômico.

Como foi escrito antes a Psicanálise, estudando as motivações


inconscientes, considera o suicídio de uma forma mais ampla. Ao
racionalismo cartesiano de Émile Durkeim a Psicanálise, ciência-arte
descoberta e desenvolvida por Sigmund Freud, vai mais além do consciente
e desenvolve a concepção de inconsciente. A consciência, na metáfora
criada pelo próprio Sigmund Freud, é apenas a ponta do iceberg que está
acima da linha d´agua, o décimo que aflora, sendo o inconsciente os outros
nove décimos submersos. Sofremos uma ferida no narcisismo ao
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descobrirmos que não somos senhores de nós mesmos através da


consciência e da razão.

Sigmund Freud, mostrando uma preocupação com o suicídio entre os


jovens, escreveu um trabalho em 1910, intitulado Contribuições a uma
discussão sobre o suicídio, onde desenvolve uma idéia de como a escola
tem um papel importante na prevenção da conduta suicida em jovens,
escrevendo que ela “deveria oferecer aos seus alunos apoio e amparo” num
período de muitas tensões emocionais. Escrito no início do século passado
estas idéias são muito importantes passados quase cem anos.

Aspectos psiquiátricos e epidemiológicos

Alguns autores consideram que pesquisando as histórias de vida em cerca


da metade dos suicidas não encontraremos evidências claras de doenças
psiquiátricas. Não é fácil, entretanto, fazer o levantamento da história
clínica após o suicídio de alguém. Em vários casos, entretanto,
encontramos casos depressões severas e psicoses, dentre outras patologias.

No tocante a epidemiologia, a taxa de suicídio no Brasil de 1980 1 1998


variou entre 3 e 4,3 suicídios para cada cem mil habitantes. Alguns países
nórdicos e o Estados Unidos, por exemplo, apresentam uma incidência
maior que a brasileira. Devemos considerar, entretanto, que a notificação
em saúde pública nestes países seja mais efetiva que a nossa e suas taxas,
por este motivo, possam parecer maiores que as nossas.

O suicídio é uma preocupação muito grande em saúde pública


principalmente no que tange aos jovens. A Folha de São Paulo, de 13 de
abril de 2001, apresentou um editorial intitulado “Juventude Assassinada”,
onde relata o seguinte:

...segundo a recém-divulgada síntese dos Indicadores Sociais do IBGE,


homicídios, acidentes de trânsito e suicídios (as chamadas mortes por
causas violentas) foram responsáveis, no ano de 1998, por 68% dos óbitos
entre homens na faixa entre 15 e 19 anos...Em 1992 essa proporção era
de 62%...

O ultimo censo do IBGE nos revela que as estatísticas de morte entre os


jovens por causas violentas chegam a 72%, sendo o suicídio a terceira
causa de morte.
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Bibliografia
Cassorla, R. Do suicídio. Estudos brasileiros. Papirus Editora. Campinas.
1991
Outeiral, J. Adolescer. Terceira edição. Revinter. Rio de Janeiro. 2008

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