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“A Bela Adormecida do Bosque”

Um Estudo da Temporalidade na Adolescência Normal.


(publicado na Revista De Psiquiatria do RGS, Ano V-Vol V- janeiro a abril de
1983)________________
José Ottoni Outeiral*

RESUMO
O autor comenta os aspectos com a temporalidade na adolescência, fazendo
referências à literatura e ao final, comentando alguns aspectos do conto “A Bela
Adormecida” no que diz respeito ao tema do trabalho.

INTRODUÇÃO

Maurício Knobel (6) considera que o adolescente tem uma característica muito especial
em relação ao tempo. Ele escreve:
“Desde o ponto de vista da conduta observável é possível dizer que o adolescente vive
com uma certa desconexão temporal; converte o tempo em presente a ativo como uma
maneira de manejá-lo. No tocante a sua expressão de conduta o adolescente parece viver
em processo primário com respeito ao temporal. As urgências são enormes e às vezes as
postergações são aparentemente irracionais” (6).

Este é, sem dúvida, um dos aspectos pouco desenvolvidos no estudo da adolescência


normal e meu objetivo é fazer alguns comentários sobre o tema, a partir do conto “A
Bela Adormecida do Bosque”, de Perrault (7).

Os marcos referenciais teóricos são basicamente os estudos de José Bleger*, acerca da


Parte Psicótica da Personalidade, e de Arminda Aberastury e colaboradores (1), sobre os
lutos da adolescência. É indispensável considerar também dois trabalhos onde Maurício
Knobel trata, especificamente, sobre o tema temporalidade na adolescência: “El
pensamiento y la temporalidad em psicoanálisis de la adolescência” (5) e “El suídrome
de la adolescência Normal” (6).

MARCOS REFERENCIAIS TEÓRICOS


A Noção do Tempo e a Parte Psicótica da Personalidade

O crescimento corporal e as modificações biológicas que ocorrem na adolescência, com


a eclosão e o desenvolvimento puberal, são vividos, como um fenômeno psicótico e
psicotizante. Essa situação (ansiedades psicóticas) se torna incrementada pela
possibilidade real de concretização das fantasias edípicas (6). Nesta etapa do
desenvolvimento o equilíbrio obtido na latência é rompido e predomina por momentos,
no adolescente, a Parte Psicótica da Personalidade, com características de uma
modalidade de pensamento própria do processo primário. **

O adolescente apresenta, então, dificuldades de discriminar entre ego-não-ego, interno-


externo, adulto-infantil, etc., e o que nos interessa particularmente – discriminar passado
– presente – futuro.
Dessa forma, a noção de tempo – na adolescência – fica relacionada com a irrupção da
Parte Psicótica da Personalidade, mobilizando ansiedades confusionais e paranóides e
determinando pautas de condutas psicóticas.

A Noção de Tempo e os Lutos da Adolescência

O adolescente já viveu vários momentos de separação, morte de objetos internos e


externos e de partes d ego; isto lhe permite observar uma limitação do tempo no plano
vital.
Maurício Knobel escreve:
“O transcorrer do tempo se vai fazendo mais objetivo (conceitual) adquirindo-se noções
de lapsos cronologicamente relacionados. Por isso creio que se poderia falar de um
tempo existencial, que seria o tempo em si, um tempo vivencial ou experiencial e um
tempo conceitual” (6).

A aceitação da perda do corpo infantil, da identidade infantil e dos pais da infância,


significa aceitar a morte de uma parte do ego e de aspectos d Self e colocá-los no
passado.

“Como defesa, o adolescente espacializa o tempo, para poder manejá-lo vivendo sua
relação como o mesmo como um objeto. Com este tempo – espaço – objeto pode
manejar-se de forma fóbica ou obsessiva, convertendo as situações psicóticas em
neuróticas ou psicopáticas. Se a passagem do tempo é negada, pode-se conservar a
criança dentro do adolescente como um objeto morto-vivo” (6).

Nesta etapa do processo a noção de tempo assume, basicamente, características


corporais e rítmicas: tempo de dormir, tempo de comer, tempo de estudar, etc.
Progressivamente, acompanhando a lenta evolução da elaboração dos lutos, o
adolescente vai adquirindo uma noção de tempo conceitualizada, que implica na
discriminação entre presente - passado - futuro e a aceitação da morte do corpo infantil,
da identidade infantil e dos pais da infância. Surge então a capacidade de reconhecer o
passado e pensar projetos para o futuro, com capacidade de espera e elaboração do
presente.

A Noção de Tempo e a Identidade

Leon e Rebeca Grimberg (3) consideram que a aquisição do sentimento de identidade é


resultado de um processo de inter-relação contínua entre três vínculos, que eles
denominavam vínculos de integração espacial, temporal e social respectivamente.

O vínculo de integração temporal, que nos interessa particularmente neste trabalho,


compreende as relações entre as diferentes representações do Self no tempo,
estabelecendo uma continuidade entre elas e formando a base do sentimento de “ser o
mesmo” através do tempo.

“Muitos fatores concorrem para que isto seja assim. A não-presença permanente do
peito, cujas aparições e desaparições não coincidem exatamente com os desejos do
bebê, nem satisfazem a fantasia onipotente de oferecimento incondicional e inesgotável,
vai estabelecendo um princípio de discriminação entre um sujeito que deseja e um
objeto que satisfaz ou frustra. Esse ritmo de aparições e desaparições do peito, que
condiciona ciclos de satisfação e necessidade, junto com os ciclos de sonho-vigília,
contribui para desenvolver a experiência temporal. Ao mesmo tempo, a criança
descobre que a mãe que o gratifica e a mãe que o frustra é uma só. Pode conseguir
integrar, então, as imagens provenientes de diferentes momentos de sua experiência.
Esta integração na figura da mãe no tempo é correlacionada a sua própria integração
temporal” (3).

Esta postulação se completa com outra observação que Leon Grimberg, seguindo a E.
Erikson, faz em seu trabalho “O indivíduo frente a sua identidade”, referindo-se ao
problema do tempo na formação da identidade na adolescência.

“A desconfiança básica frente ao tempo pode ser expressa de diversos modos e às vezes
dá lugar a uma ansiedade persecutória grande. Em todos os casos o tempo deve ser
detido, seja pelo meio mágico da imobilização catatônica ou por meio da morte” (4).

UMA RELEITURA DO CONTO “A BELA ADORMECIDA DO BOSQUE”

O conto infantil “A Bela Adormecida do Bosque”, do escritor francês Perrault, nos


fornece uma rica compreensão da questão do tempo na adolescência (7).

A história se centraliza em uma adolescente de “quinze ou dezesseis anos”, que ao


iniciar o processo puberal, cai em profundo adormecimento do qual “cem anos depois”,
desperta acordada por um príncipe.

Esta “maldição” foi-lhe dada feita por uma fada velha que não havia sido convidada,
pelos pais da “Bela Adormecida”, para o batizado deste: a fada má disse, então, que a
princesa atravessaria a palma da mão com um fuso e morreria. A princesa foi salva por
uma outra fada que, para remediar a situação, predisse que ela não morreria, “senão
cairia em profundo sono que levaria cem anos, ao cabo do qual viria o filho de algum rei
e a salvaria”.

O núcleo central da história é, então, o adormecimento de cem anos, desencadeado


quando a princesa, aos quinze ou dezesseis anos, se fere num fuso de fiar. Esta situação
é, sem dúvida, uma descrição de um tipo de defesa utilizada pelo adolescente: a
imobilização do tempo e sua espacialização, como defesa contra as ansiedades
psicóticas e psicotizantes vividas durante o processo adolescente.

Embora não seja o objetivo deste trabalho, é importante abordar alguns aspectos
simbólicos: a fada velha que amaldiçoa e a fada boa que salva são aspectos dissociados
da imagem materna e o fuso de fiar que fere a princesa quando ela faz quinze ou
dezesseis anos é uma alusão ao início da eclosão puberal marcada, aqui, pela menarca.

Há no conto, várias outras referências ao tempo. “Os pais da princesa não podiam ter
filhos. Finalmente, a rainha deu a luz a uma filha, quando menos esperava”.

Neste início da história há uma dessexualização dos pais e a gravidez e o nascimento


ocorre “quando menos o esperava”. Surge assim uma negação do tempo em função da
necessidade de negar a sexualidade dos pais, tão comum na adolescência.
Em outro trecho, logo após a princesa adormecer, Perrault escreve:
“Em menos de um quarto de hora cresceram ao redor do parque tantas árvores
entrelaçadas de espinhos que era impossível que atravessasse tal muralha homens ou
animais”

Ou ainda, referindo-se à fada velha e má:


“Não havia convidado a fada velha porque havia mais de século que não saía da torre e
supunham que estava morta ou inválida”.

E ainda, ao final:
“Quando ocorreu tudo isto, a fada boa que havia salvado a princesa condenando-a a
dormir por um espaço de cem anos, se achava no reino de Mataquino, há umas 200 mil
éguas de distância: porém em um instante foi avisada por um anão que tinha “botas-de-
sete-léguas”, isto é, botas com as quais se adiantava sete léguas em cada passo. A fada
se pôs em marcha apenas soube da notícia e chegou a cada de uma hora em um carro de
fogo puxado por dragões”.

Estes trechos nos permitem ver como é tratado e vivido o tempo aos “quinze ou
dezesseis anos”: há momentos que demoram “cem anos” e outros em que 200 mil
léguas são percorridas “ao cabo de uma hora”. Predomina, pois, no conto em relação ao
tempo – especificamente – elementos de indiscriminação peculiares à Parte Psicótica da
Personalidade e características de pensamento determinado pelo Processo Primário.
Estes aspectos surgem e desaparecem, cedendo lugar ao Processo Secundário e à
regência da Parte Neurótica da Personalidade, conforme os momentos de flutuações
progressivas ou regressivas, a diferentes níveis do desenvolvimento, que podemos
considerar como normais em todos púbere.

“No relato, “cem anos depois, o filho de um rei que então governada, e que pertencia à
família diferente da princesa, foi por ali caçando... um camponês, já velho, tomou a
palavra e falou assim: faz príncipe, mais de cinqüenta anos, ouvi meu pai que neste
palácio havia uma princesa formosíssima, condenada a dormir um século... Ao escutar
isto o príncipe sentiu arder seu coração com um estranho fogo...”

“Avançou resolutamente para o bosque e apenas chegou, as árvores e os espinhos se


abriram para lhe dar o passo... descansava naquele leito uma princesa que parecia ter
quinze ou dezesseis anos...”.

Cem anos se passaram mas a princesa conserva seus quinze ou dezesseis anos: há, aqui,
uma referência a um tempo interno, necessário às modificações puberais e adolescentes,
o tempo existencial, e um outro, cronológico ou conceitual.

Este conto serve, como muitos outros, para ns fornecer uma idéia a cerca da
temporalidade na adolescência.

* Psiquiatra de Crianças e Adolescentes. Especialista em Psiquiatria pelo Departamento de


Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFRGS.

* Os estudos de José Bleger sobre a Parte Psicótica da Personalidade se derivam, como ele próprio
esclarece, da Teoria de Relação de Objeto de Melanie Klein e das contribuições de W. Bion (2).

** Freud (1905) em “A interpretação dos Sonhos “mostrou as características atemporais do


inconsciente, onde predomina o Processo Primário.
SUMMARY

The author makes comments about aspects related to the concept of time in
adolescence, rewiews the literature and finishes commenting some aspects of the
tale “Sleepind Beauty” in reference to the theme of this paper.

BIBLIOGRAFIA

1. ABERASTURY, A. et alii. Adolescência. Buenos Aires, Ed. Kargiemann, 1973.


2. BLEGER, J Simbrisio y ambiquiedade. Buenos Aires, Paidós, 1967.
3. GRIMBERG, L & GRIMBERG, R. Identidad y cambio. Buenos Aires, Ed.
Kargiemann, 1971.
4. KALINA, E. Estudo teóricos-clínicos sobre aspectos de lãs regréssiones e
progressionas que caracterizam el processo de la Adolecencia In: RASCOVISCKY, A,
et. alii. Niveles profundos del psiquismo. Buenos Aires, Ed. Sudamericana, 1971.
5. KNOBEL< M. El pensamiento y la temporalidad em el psicoanálises de la
Adolescência. In: ABERASTURY, A. et alii. Adolescência. Buenos Aires, Ed.
Kargiemann, 1973.
6. _ _ _. El suídrome de la adolescência normal. In: ABERASTURY, & A. KNOBEL,
M. La adolescência normal. Buenos Aires, Paidós, 3 ed. 1974.
7. PERRAULT. Contos. São Paulo, Ed. Melhoramentos, 1952.

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