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Resenha do livro O fio das palavras: um estudo de psicoterapia existencial

O livro aponta logo nas primeiras páginas o seu objetivo de ser um material
introdutório sobre a psicoterapia existencial, trazendo uma discussão acessível para iniciantes
e que não pretende se deter em pormenores específicos que por vezes tornam os textos
desnecessariamente complexos. Ele faz isso dando um breve panorama sobre o caminho da
formação do psicoterapeuta, e trazendo questões que serão trabalhadas durante o exame de
um caso clínico.
Os próximos capítulos acompanham o caso do paciente João e sua experiência com a
psicoterapia. Ele é apresentado como um homem com histórico familiar complicado: ficou
órfão cedo e foi morar com a avó, com quem não tinha um bom relacionamento. Ele relata
eventos de mal estar físico, como dores abdominais, que não têm uma causa fisiológica
aparente, e começa a relacionar-nos com sua saúde mental a partir de algumas noções
difundidas popularmente sobre psicologia que adquiriu em seu meio e na mídia. Apesar de
suas inseguranças em relação à terapia, João procura um psicólogo.
Começa então o relato das consultas. O autor descreve certos momentos do diálogo
entre ele e o paciente, relacionando o que aparece no caso com acontecimentos e caminhos
comuns na clínica. Sua tentativa inicial é a de fazer com que os relatos generalizados de João
se tornem mais singulares e pessoais. Então ele mostra como, ao começar a confiar no
terapeuta, o paciente tem medo de ser “traído”, e sobre como a intimidade se constrói
conforme ele recebe a escuta tanto de suas palavras quanto de seus silêncios.
De maneira mais específica, ele apresenta os assuntos que foram tratados, assim como
em quais momentos ele fez ou deixou de fazer uma intervenção. Entre eles, cita o momento
em que João começa a contar para ele uma lembrança e diz que, depois de ter se tornado
testemunha daquele momento, João dificilmente conseguiria esquecê-lo. Essa lembrança é
revisitada diversas vezes, e em cada uma delas o terapeuta consegue apreender algo de
diferente na fala ou no comportamento do paciente que pode levá-lo a novos
questionamentos. Em resposta a alguns desses questionamentos se cria um silêncio, e o
terapeuta opta por não intervir. Ele conta:
“Fico quieto. Intervir — seja interpretando, clarificando ou mesmo sugerindo ser
este um momento comum em terapia — romperia com a densidade da situação (...)
A interpretação, o discorrer sobre seu estado nas minhas palavras, seria quase um
roubo; tornaria meu o que é dele, em sua radical intimidade. E dizer ‘isso
acontece…’ devolveria o estado mais singular à generalidade. São traições.”
(CANCELLO, 1991, p. 26, grifo do autor.)
Depois de vários encontros, aparece na fala de João que o grande problema era que ele
parecia ser incapaz de afetar sua avó. Sentia-se um alguém genérico aos olhos dela e por isso
provocava atritos e brigas, em uma tentativa de causar um deslocamento nela, na qual não
acreditava ter sucesso. Ele relata sentimentos misturados de raiva, necessidade de afeto e
culpa em relação à avó, e como ela havia morrido, ele não tinha como redimir sua culpa. É
então que os sonhos entram em questão.
João traz o relato de um sonho com sua avó, onde ao mesmo tempo ela aparecia em
uma versão amorosa e uma versão demoníaca. A partir disso, ele tira conclusões que o
psicólogo considera precipitadas, que chama de fechar o caminho. O terapeuta então fica em
silêncio para, desse modo, provocar no paciente uma nova reflexão sobre o sonho, que traz à
tona novos sentimentos e questionamentos, com emoções intensas. Nessa parte, porém, não
ficou muito claro o que estava acontecendo, o que seria exatamente “fechar o caminho” e
como se pode mantê-lo aberto. Depois desse momento, João questiona qual o sentido de seus
sentimentos pela avó, e busca algum tipo de reconciliação com ela, agora “revivida” nessas
memórias e relatos testemunhados pelo psicólogo.
O próximo capítulo trata das palavras, dos sentidos que elas mostram e das
possibilidades que elas criam. O autor fala que não é possível saber que significados o
paciente atribuirá àqueles momentos no futuro, mas que é preciso confiar nele, e que confiar é
seguir o mesmo fio. Ele descreve padrões de comunicação que tinha reparado nas falas de
João, que se mostravam cheios de significado quando acompanhados de um olhar, um silêncio
ou uma postura diferenciada. Por exemplo, era recorrente que ao falar da morte da avó, ele
usasse expressões gerais de pesar. O terapeuta decide intervir em um desses momentos,
incentivando João a imaginar como seria apresentar sua namorada à sua família:
primeiramente a avó, depois a mãe, e finalmente o pai – com quem tinha um passado
complicado – todos já falecidos. Assim esse diálogo, com falas que seriam consideradas
loucas por outras pessoas, se constrói um momento de intimidade em que aquelas pessoas se
tornam presentes ali. A linguagem se torna uma ferramenta exclusiva do terapeuta e do
paciente ali em questão. Depois de mais alguns encontros, João decide encerrar a terapia,
dizendo que já se sentia bem. O autor, porém, segue explorando aspectos da relação dos dois
nos próximos capítulos.
A partir da “alta” de João, o autor começa a discorrer sobre o que significaria ser
curado em psicoterapia. Ele começa falando sobre como a psicopatologia, se vista como uma
verdade absoluta e única possibilidade de constituição de conhecimento sobre o que chama de
doenças mentais, “corre o risco de pensar que, com essa operação verbal, passa a deter a
‘verdade’ sobre esses fenômenos.” (CANCELLO, 1991, p. 55.). Nesse caso, a cura seria algo
engessado: atingir um padrão pré-estabelecido de saúde. Talvez adquirir um comportamento,
ou se livrar de um comportamento ou de um sintoma, talvez se tornar mais adequado ou
funcional. Ele atenta para isso não ser o ideal, pois se trata de fechar possibilidades, e diz que
deve-se buscar mais o verbo “curar” do que o substantivo “a cura”.
O autor não diz que se deve ignorar todo o conhecimento da psicopatologia ou da
psiquiatria, mas sim que não se deve usá-los de maneira engessada, como se fosse a solução
definitiva para tudo. A cura assume diferentes formas para diferentes pessoas, e não há como
saber como ela é para cada um com antecedência, só se percebe a cura quando ela já
aconteceu: percebe-se que está curado depois de estar curado. Ele diz ainda que a cura, se for
buscada, foge (CANCELLO, 1991, p. 51.). Não se deve correr atrás dela, e sim criar
condições para que a cura seja possível e deixar que ela apareça.
A angústia e a culpa, dois temas já bem trabalhados em textos anteriores, aparece aqui
intimamente relacionada ao processo de curar-se. João encontrava-se angustiado diante de
diversas escolhas que precisava fazer sobre sua vida, e pedia que o psicólogo, que ele pensava
ter toda certeza do mundo para escolher sempre certo, o ajudasse. Ele reclamava de decisões
feitas no passado que, se tivessem sido diferentes, poderiam ter mudado sua vida para melhor.
A partir daí o autor discorre sobre o sentido da angústia, muito presente nesse tempo do
“poderia ter sido, mas não foi” e do “como teria sido se…?”, e que se expressa frente às
decisões. Segundo ele, a angústia reside justamente na incerteza de se ter feito a escolha certa,
e a dúvida eterna se o outro caminho não teria sido melhor. A partir disso surge a culpa por ter
escolhido errado. Ele diz que isso é consequência de ter memória, e que a cura se desenha na
direção de saber que a memória importa, mas que também importa o que se faz com ela. É
dispor da memória para construir o futuro e atribuir sentido a ele.
Logo após, o autor usa o caso de João para dar algumas elucidações mais objetivas,
que em resumo colocam que: a existência é ter a possibilidade de abertura para inúmeras
possibilidades, mas não por possibilidades infinitas. Elas são limitadas primeiramente pelo
tempo, pois a morte não permitirá que se experimente de tudo, e também por disposições
culturais e sociais que em grande parte moldam a identidade de um sujeito, tornando certas
possibilidades inconcebíveis para ele. Mais uma vez o autor questiona o fato de os
conhecimentos acadêmicos, sendo eles a biologia, a psicopatologia e outros, se tornarem um
engessamento que pode agir como um obstáculo à cura.
No capítulo final, o autor retoma as reflexões trazidas ao longo da obra para poder
ilustrar de maneira eficiente a psicologia existencial. Ele coloca que a existência é a procura, é
questionar a si mesmo, é buscar sentidos. Sendo assim, todas as intervenções dele na clínica
se dão de modo a incentivar esse questionamento, ao fazer com que o paciente possa se
afastar de todos esses sentidos engessados e possa se reconectar com sua própria existência,
com sua procura. Em diversos momentos ele relata como João estava ávido por uma solução
pronta, uma interpretação final ou um sentido determinante para suas questões. Por vezes, ele
citava um desses padrões por conta própria. Nesses casos, pôde-se perceber que o terapeuta,
no lugar de confirmar suas interpretações ou de negá-las, rompendo assim o fio, manteve-se
em aberto para que o próprio João pudesse explorar sua abertura de sentido sem uma
afirmação engessada
Ao longo de todo o livro, o autor dá bastante relevância para a abertura de
possibilidades, de sentidos, e ressalta diversas vezes durante o texto o quanto se deve tomar
cuidado para não fechar caminhos. Durante o exame do caso fica claro como ele interviu de
modo a deixar o fenômeno aparecer, ao invés de buscá-lo ou forçar o rumo da situação.
Assim, o fenômeno aparecia através de João, fruto de sua própria interpretação, de seus
próprios sentidos. E através dessas experiências de intimidade que possibilitam essa abertura,
ele foi capaz de se reconectar com sua própria existência, e então alcançar sua cura própria,
pessoal e singular. O esforço do psicólogo de abordagem existencial deve ser nesse sentido,
de possibilitar essas experiências de questionamento e reconexão, e assim, criar a
possibilidade de aparecimento da cura.

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