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UM ROTEIRO PARA LEITURA DE WINNICOTT*

José Outeiral.

É muito mais difícil ocupar-se da saúde do que da doença.


Donald Winnicott

O HOMEM

Donald Woods Winnicott nasceu em Plymouth, Inglaterra em 1886, crescendo em uma propriedade
rural, único menino cercado por duas irmãs mais velhas. Masud Khan, seu analisando e colega, escreveu
que ¨ele foi uma criança amável, acomodada e um aluno brilhante. De repente, porém, resolveu virar tudo
de cabeça para baixo; fez, então, uma enorme confusão nos cadernos e, durante um ano, suas provas foram
péssimas¨. Essa talvez seja uma boa ¨descrição¨de Winnicott.
Clare Winnicott, sua segunda esposa, contou uma passagem da autobiografia de Donald, não
publicada e encontrada somente após sua morte, que revela uma passagem interessante da vida do ¨mais
freudiano¨dos analistas ingleses. Ele escreveu:
Peguei meu taco de críquete (com um tamanho de 30 cm, pois eu não tinha mais de três anos) e destruí
o nariz da boneca de minhas irmãs. Aquela boneca havia se convertido para mim em uma fonte de
irritação, pois meu pai não deixava de brincar comigo. Ela se chamava Rosie e ele, parodiando uma
canção popular, me dizia (com uma voz que me exasperava):

Rosie disse a Donald


Eu te amo
Donald disse a Rosie
Eu não creio

Assim, pois eu sabia de tinha que destroçar aquela boneca, e grande parte da minha vida se baseou no
fato que eu realmente havia cometido esse ato, sem me conformar em deseja-lo e arquiteta-lo apenas.
Provavelmente me senti aliviado quando meu pai, acendendo vários fósforos seguidos, esquentou o nariz
de cera para modela-lo e o rosto voltou a ser um rosto. Aquela primeira demonstração do ato de restituição
e reparação me impressionou e talvez me fez aceitar o fato de que eu, pequeno e querido ser inocente, me
havia tornado violento, de maneira direta com a boneca e indireta com aquele pai que naquele justo
momento acabava de entrar na minha vida consciente¨.
Depois de uma infância relativamente feliz, de poder ¨brincar com todas as experiências¨, Donald
Winnicott foi para a escola de Cambridge: corria, nadava, praticava ciclismo e rúbgi, tinha amigos,
cantava no coro, fazia parte dos escoteiros, e lia, todas as noites, uma história em voz alta para seus
companheiros de quarto. Aos 16 anos, ao fraturar a clavícula jogando, ele formulou seu desejo de ser
médico: ¨Não poderia imaginar que toda a minha vida dependeria de médicos... resolvi converter-me eu
mesmo em médico¨.
Winnicott passou seu primeiro ano de medicina como enfermeiro, em conseqüência da Primeira Guerra
Mundial. Algum tempo depois, não desejando permanecer fora do front enquanto seus colegas e amigos
partiam, ele solicitou ingresso e foi aceito na Marinha de Guerra. Terminado o conflito, ele prosseguiu
seus estudos médicos em Londres. Nesse tempo contraiu um abscesso pulmonar e ficou três meses

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hospitalizado, sobre esse período ele escreveu em sua autobiografia: ¨Estou convencido de que pelo menos
uma vez na vida é necessário que o médico tenha estado no hospital como paciente¨.
Como aconteceu com outros analistas ingleses, dentre eles W. Bion, Winnicott formulou algumas de
suas idéias durante o período de guerra, baseado em suas observações sobre o funcionamento mental das
pessoas envolvidas no conflito, vivendo experiências traumáticas. Na segunda Guerra Mundial, ele foi
consultor para uma região no interior da Inglaterra que recebia crianças e adolescentes evacuadas de
Londres e que eram acolhidas em lares ou instituições. Essa experiência lhe permitiu formular o conceito
de tendência anti-social, ao estudar os efeitos da separação de crianças e adolescentes da família. Para ele
a delinqüência é uma tendência anti-social ¨que não foi tratada¨.
Embora tenha desejado ser clínico geral e trabalhar no campo, ele se tornou pediatra e, ao ler um
trabalho de Freud, decidiu iniciar uma análise e tornar-se psicanalista. Buscando Ernest Jones, este o
encaminhou para James Strachey, que traduziu as obras de Freud do alemão para o inglês, e com que se
analisou por dez anos, tendo retomado sua análise depois com Joan Riviére. Sua formação psicanalítica se
iniciou em 1923, mesmo ano em que obteve dois postos como pediatra, um no Queen’s Hospital for
children e outro no Paddington Greeenn Childrens Hospital, neste último trabalhou durante cerca de 40
anos, organizando um serviço para onde acorriam profissionais ingleses e do exterior e que ele,
carinhosamente, chamava de ¨meu snackbar psiquiátrico¨.

CONSULTA TERAPÊUTICA

Sentindo a pressão que resultava de um número elevado de crianças e adolescentes que buscavam
atendimento, Winnicott dedicou-se a fundo a estudar os meios de utilizar o espaço terapêutico da forma
mais produtiva e obter os melhores resultados terapêuticos possíveis. Desenvolveu, então, o ¨jogo dos
rabiscos¨ e a ¨consulta terapêutica¨, escrevendo que ¨quando posso, faço análise standard, senão faço algo
orientado analiticamente...e por que não?¨.
Clare Winnicott registrou:
¨Ele se esforçava por tornar a consulta significativa para a criança, dando-lhe alguma coisa para
levar e que pudesse ser utilizada e/ou destruída. Donald se armava de papel e, na maioria das vezes, fazia
um avião ou um leque com o qual um pouco; depois, dava o brinquedo para a criança, despedindo-se
dela. Jamais se soube de uma criança que houvesse rechaçado seu gesto¨.
No acampo da psicanálise, Donald Winnicott manteve sempre, durante as controvérsias que
envolveram a Sociedade Britânica de Psicanálise e nos anos que se seguiram, uma posição independente,
não se envolvendo diretamente com nenhum dos dois grupos em contenda, nem com os partidários de
Melanie Klein e, tampouco com os seguidores de Anna Freud. Manteve, entretanto, uma relação
satisfatória com ambas.
Como outros analistas, passou a se ¨localizar¨ no independent group ou middle group, recusando-se
sempre a liderar os colegas que se colocavam, como ele, nesta posição, mantendo um estilo próprio
independente. Foi, em reconhecimento de seus pares, eleito por duas vezes presidente da Sociedade
Britânica de Psicanálise, associada da Associação Internacional de Psicanálise, instituição criada por
Sigmund Freud. Donald Winnicott manteve durante toda a sua vida uma ¨filiação¨ dentro da tradição
freudiana, dos seus primeiros anos de formação até final de sua vida. Suas idéias, sem dúvida criativas e
inovadoras, foram desenvolvimentos do pensamento psicanalítico freudiano, na linha percorrida por
Sándor Ferenaczi, Michel Balint, Melanie Klein e Wilfred Bion, entre outros.

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A concepção de que o pensamento de Donald Winnicott representou uma ruptura com a criação
freudiana, a psicanálise, antes de representar um reconhecimento teórico e clínico do autor, nos remete à
conhecida e antiga resistência ao conhecimento psicanalítico.

O próprio Winnicott escreveu que ¨ninguém pode ser original senão baseado na tradição¨. Ele foi,
fundamentalmente um clínico, nunca pretendendo ser um mestre, como Melanie Klein ou Lacan, ou um
grande teórico. Para ele, a experiência e a clínica eram soberanas e não pretendia fazer ¨filosofia¨,
advertindo, inclusive, em O brincar e a realidade, que tomássemos cuidado com os ¨filósofos de
poltrona¨.
Sévulo Figuiera, ao escrever o artigo ¨Algumas idéias sobre Winnicott¨ (1990), para o primeiro dos
dois números da Revista Brasileira de Psicanálise dedicados a Donald Winnicott, registrou:
¨No caso de Winnicott, ser um Englishman significa que ele encarna em sua vida os valores básicos da
cultura inglesa na área de organização da subjetividade: o cultivo da diferenciação individual e do lado
positivo da idiossincrasia, o cultivo da independência do pensamento e de julgamento, o respeito pela
opinião, pela liberdade e pela autonomia do outro, a valorização da experiência e da observação, em
suma, o cultivo da diferenciação.

O GRUPO DE BLOOMSBURY

A formação cultural e psicanalítica de D.W. aconteceu próxima a um grupo intelectual inglês,


conhecido com Bloomsbury. Desse grupo fizeram parte intelectuais importantes do período conhecido
como ¨eduardiano¨(que se seguiu ao período ¨vitoriano¨, caracterizado, este último, entre outros
elementos, por uma repressão moral e sexual das idéias e dos costumes), identificado como uma visão
liberal e aberta do pensamento e das atitudes e condutas sociais e no respeito às idiossincrasias pessoais.
Do Bloomsbury fizeram parte pessoas, com um engajamento maior ou menor, como Virginia e Leonard
Woolf, Lytton Strachey, John Maynard Keynes, T.S. Eliot, entre outros destacados participantes, de
diferentes setores do pensamento britânico da época. Virginia e Leonard Woolf, escritores e donos da
Hogarth Press, editaram alguns livros de D.W., da mesma forma que o fizeram com as obras de Freud
em inglês. Lytton Strachey era o irmão mais velho de James Strachey, analista de Winnicott e tradutor das
obras de Freud do alemão para o inglês. Donald participou desta ¨atmosfera¨de liberdade intelectual e suas
idéias representam essa forma de pensar.
Donald e Clare Winnicott não tiveram filhos e, ao perceber que sua situação clínica se tornava mais
difícil, ele registrou que ¨é muito difícil um homem morrer quando não teve um filho para mata-lo na
fantasia e poder sobreviver a ele, proporcionando a única continuidade que os homens conhecem¨.
Ao sentir a proximidade do fim de sua vida, em 1971, ele escreveu em sua autobiografia, que chamou
de Not less than everything, uma descrição imaginária de sua morte.
¨Estive morto. Não era particularmente agradável e me pareceu que levou um bom tempo (porém
apenas um momento na eternidade). Chegado o tempo, eu sabia tudo sobre o meu pulmão cheio de água.
Meu coração não conseguia fazer seu trabalho, pois o sangue já não podia circular livremente pelos
alvéolos. Havia falta de oxigênio e asfixia. Não havia porque ficar revolvendo a terra, como dizia nosso
velho jardineiro. Minha vida foi longa. Vejamos um pouco do que aconteceu quando eu morri? Meu
pedido havia sido ouvido (meu Deus, faz com que eu viva o momento de minha morte)¨.
Clare Winnicott comentou, sobre esse trecho, que se pode ter uma idéia da capacidade de Donald
Winnicott para compor, brincando, com a realidade de dentro e de fora, de modo a permitir ao indivíduo

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suportar a realidade, evitando a negação e podendo realizar tão plenamente como seja possível a
experiência da vida, seja de um bebê que nasce ou um velho que morre.

A OBRA

SONO
Deixa penetrar a raiz
No centro da tua alma
Aspira a seiva
da fonte infinita
de teu inconsciente
e
conserva teu verdor
(Donald Winnicott)

Para conhecer a obra de Donald Winnicott é necessário brincar com seu pensamento, ou seja, criar um
espaço transicional (ou potencial como ele escreveu) que permita o brincar, lócus do gesto espontâneo e
da criatividade; depois, e só então tratamos de compreender a experiência que sua teoria e sua clínica
possibilitam.
Há uma grande divulgação das obras e do pensamento de Winicott que pode ser avaliada, pois, além de
todos os seus trabalhos estarem publicados em nosso idioma, é muito numerosa a publicação de livros e
artigos, assim como trabalhos universitários sobre ele. O número de eventos em torno de seu nome
também é muito grande. Ele é, da mesma forma, um dos autores mais citados em revistas psicanalíticas,
como a Revista Brasileira de Psicanálise; basta o leitor buscar as referências bibliográficas dos artigos
para constatar o que escrevo.
Quando estudamos os textos de D.W. , defrontamo-nos com um estilo do qual podemos dizer, como ele
próprio referira, Lê style, c’est l’homme même – e o estilo dele é extremamente pessoal e sofisticado e, ao
mesmo tempo, simples e natural. Estilo paradoxal, mostrando a importância do paradoxo em sua obra. Ele
buscava escrever de forma a ser compreendido pelo ¨homem comum¨, como referiu, e se afastou da escrita
estilo paper para uma redação mais livre. Praticamente não citava autores e dizia, brincando, que primeiro
escrevia e depois tratava de saber de quem havia ¨roubado¨ determinada idéia. As referências
bibliográficas de seus trabalhos e livros eram organizadas por Clare Winnicott, Masud Khan e outros
colaboradores.
Masud Khan, seu analisando e colaborador registrou que Winnicott, ao longo dos mais de 40 anos em
que exerceu sua clínica, atendeu cerca de 60 mil pacientes, crianças, adolescentes e suas famílias e,
também pacientes adultos, como Harry Guntrip, analista reconhecido, que com mais de 70 anos o
procurou para uma nova análise. Seu material clínico enfrentou dificuldades para sr divulgado, pois
muitos de seus pacientes pertenciam ao círculo psicanalítico de Londres, como eram os filhos de Melanie
Klein, o editor Harry Karnac e analistas como Margareth Little, Masud Khan, Harry Guntrip, entre muitos
outros.
André Green escreveu que o pensamento de D.W. forma uma rede, um tecido de fios entrecruzados,
distinguindo-se como principais os seguintes:
1.Teoria da Situação Psicanalítica, cujo o modelo é o setting;
2. Teoria das Pulsões, que introduz novos conceitos sobre a agressividade (com a noção de uma
destrutividade sem cólera) e sobre sexualidade (com a idéia de ¨elemento feminino puro¨ e ¨elemento
masculino puro¨);

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3. Teoria do Objeto, enfocada pelas relações entre o objeto subjetivamente concebido e o objeto
objetivamente percebido: seu corolário é o objeto transicional;
4. Teoria do Self, com conceitos de verdadeiro self e falso self;
5. Teoria do Espaço, pela noção de área intermediária, espaço potencial e transicional, fonte da
sublimação e da experiência cultural, criada através do brincar;
6. Teoria da Comunicação e da Não-comunicação;
7. Teoria do Desenvolvimento, que introduz a noção de ambiente facilitador (mãe suficientemente boa) e a
evolução da dependência à independência.

Masud Khan, por sua vez, ao escrever o extenso e precioso prefácio para o livro Da Pediatria à
Psicanálise, enfoca os seguintes aspectos: conceito de realidade interna versus o fantasiar; do objeto
transicional ao uso do objeto; regressão, manejo e o brincar no setting psicanalítico; a estruturação e a
formação da pessoa total.

Numa tentativa de desenvolver e ampliar os esquemas apresentados, Julio de Mello Filho, introdutor,
há cerca de 40 anos, do pensamento de Winnicott no Brasil, junto com Luis E. Prego-Silva, do Uruguai,
resume o conjunto de contribuições desse autor em seu livro O ser e o viver:
1. Teoria do Desenvolvimento, com um estudo pormenorizado da relação mãe-filho e das influências da
família e do ambiente, postulando a interação de processos inatos de maturação com a presença de um
ambiente facilitador, desde uma fase de dependência absoluta à independência humana.
2. Teoria dos Impulsos, em que reestuda os papéis da sexualidade (elemento feminino e elemento
masculino) e da agressividade, relacionando-os em seus primórdios ao desenvolvimento motor e
questionando a existência de um instinto de morte. Aqui também é importante a noção da agressividade
sem cólera, através da qual o bebê se desliga da mãe num abandono de catexis, sem uma intencionalidade,
em si, destrutiva.
3. Teoria do Objeto, que postula a existência de um objeto subjetivo (inicial) e de um objeto objetivo
(posterior), como também de um objeto transicional, formulando o conceito de fenômenos transicionais
em psicanálise.
4. Teoria do Espaço, em que formula a existência de um espaço potencial, de uma zona intermediária
entre realidade interna e a realidade externa, onde se realizam o jogo e o brincar, origem de todas as
atividades sócio-criativo-culturais.
5. Teoria do Self, da polarização entre um verdadeiro self, espontâneo e criativo, fonte de alegria e da
saúde mental, em oposição ao falso self, artificialmente constituído por submissão e excessiva adaptação
ao meio.
6. Teoria da Comunicação, na qual estuda as formas de comunicação e os seus contrários, e o
problema da incomunicabilidade humana a da esquizoidia, e onde afirma que o núcleo do verdadeiro
self é um santuário inviolável, que nunca se comunica com o exterior.
sete.Teoria da Regressão, na qual estuda o problema da regressão no setting analítico a etapas
primitivas de dependência absoluta, possibilitando descongelar situações iniciais de fracasso
ambiental e retomar o desenvolvimento com um novo sentido de viver.
8. Teoria do Setting, na qual estuda a estruturação, significação e função e seu manejo pelo analista,
incluindo a possibilidade de sua ruptura parcial ou transgressão.
9. Teoria da Contratransferência, na qual afirma que ao lado da contratransferência comum e habitual
existe uma outra verdadeira e objetiva representada pelo amor e pelo ódio do analista, que se justificam
na situação clínica. O autor também estuda as falhas do analista e da possibilidade de seu uso pelo
paciente.

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10. Teoria Psicossomática, baseada na existência inicial de um psique-soma instintivo-fisiológico, do
qual se desenvolve, mais tarde, a mente, com suas completas funções. A doença psicossomática,
caracterizada por múltiplas cisões, encerraria, contudo, uma tentativa de retorno (aspecto positivo) à
situação de integração inicial.
11. Teoria da tendência Anti-social, conseqüente de uma deprivação inicial representada pelo roubo e pela
destrutividade, condutas de desafio ao meio que contêm, paradoxalmente, um sinal de esperança de que o
indivíduo ainda possa corrigir falhas que possibilitaram o surgimento desta tendência.

Julio de Mello conclui, escrevendo o seguinte::

¨Finalmente, embora se diga que tudo que Winnicott escreveu, em função de seu espírito, ele deixou em
elaboração, em transicionalidade, algumas dessas teorias se mostram muito mais acabadas , completas,
como a Teoria do Desenvolvimento, do Setting e do Objeto. Outras estão, ainda em esboços, como a
Teoria Psicossomática, a ser posteriormente desenvolvida. Nesse sentido, podemos dizer que ele também
esboçou uma
Teoria dos Limites, dos limites do setting, dos limites da analisibilidade, dos limites pessoais ou
contratransferências do analista.

Acredito que uma forma, complementar a autores acima referidos, de pensar e sistematizar o
pensamento e a clínica de Winnicott pode ser feita como se segue, enfocando principalmente o
desenvolvimento emocional primitivo.

Em primeiro lugar, o caminho da dependência à independência, com este percurso possuindo três
etapas: a) dependência absoluta (corresponde ao conceito de narcisismo primário de Freud e relacionada à
mãe-ambiente/ objeto subjetivamente concebido, momento de ser, experiência possibilitada pelo elemento
feminino puro); b) dependência relativa (emergência do campo fusional com a mãe, surgimento da mãe
objeto/objeto objetivamente percebido, mãe-outro, ou, como brincava Winniccott, a m/other, momento do
fazer possibilitada pelo elemento masculino puro; c) caminhando em direção à independência, enfatizando
que esta nunca é absoluta. O indivíduo sadio nunca se torna isolado, mas se relaciona ao ambiente de tal
modo que se pode dizer que o indivíduo e o ambiente se tornam interdependentes. O conceito de
caminhando em direção à independência pode ser mais bem compreendido se utilizarmos uma metáfora
criada por Bion: ¨Quando um navegante se orienta por uma estrela, ele sabe que não irá alcançá-la, mas
tomará seu rumo na direção da estrela¨.
Em segundo lugar, o conceito de não-integração e integração. Esses conceitos se referem, em
princípio, o de integração à saúde, e o de desintegração à doença, como uma experiência traumática.
Em terceiro lugar, o conceito de personalização. Personalização significa a integração psique-soma, a
constituição de uma ¨trama psicossomática¨, ou seja, a ¨psique habitando o soma. Esse processo é possível
quando a mãe exerce com o bebê a preocupação materna primária.
Um quarto ponto nos remete à passagem do estado de pré-preocupação ao estado de preocupação
(concern). Jam Abram escreve sobre esse momento: Preocupação é o termo utilizado por Winnicott a fim
de destacar os aspectos positivos d sentimento de culpa. O estágio de preocupação constitui-se quando o
bebê passa a sentir-se preocupado com a mãe, que é a quem seu amor implacável havia sido até então
dirigido. A capacidade do bebê de sentir preocupação por sua mãe marca o episódio do desenvolvimento
que é a passagem do pré-remorso para o remorso.
Os processos referidos se organizam na medida em que exista a preocupação materna primária, ou seja,
a capacidade de a mãe ¨adoecer sadiamente¨ quando dos cuidados com seu bebê. Esses cuidados são

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denominados como funções de holding (sustentação), handing (manejo e apresentação de objeto (ou seja,
a mãe estar disponível para as demandas de seu bebê, quando e como ele necessitar)).
É necessário comentar que Winnicott escreveu que não existe um bebê se não houver uma mãe e,
conseqüentemente, não pode existir uma mãe sem um pai, ainda que no imaginário da mãe e referindo,
eventualmente ao próprio pai da mãe. Considero que a mãe só poderá exercer a preocupação materna
primária se houver um pai suficientemente bom. É verdade que Winnicott escreveu sobre as relações
precoces entre a mãe e o bebê, mas ele inúmeras vezes tratou, também a questão do pai.
Esta mãe, que desenvolve a preocupação materna primária, é denominada mãe suficientemente boa,
mãe devotada comum ou ambiente facilitador.
É necessário compreender que as modificações que Winnicott propõe no setting terapêutico dizem
respeito a pacientes que sofreram falhas ambientais nas primeiras etapas do desenvolvimento. Para essas
pessoas, André Green comenta que ¨o setting de Winnicott é uma metáfora de cuidados maternos¨. Para
aqueles que atingiram a organização edípica ou para os que chegaram ao estado de preocupação ou à
posição depressiva, Winnicott sugere a análise standard.
Uma das formas de realizar uma leitura introdutória da teoria, da técnica e da clínica de Donald
Winnicott pode ser feita através de um modelo que busca incluir os textos fundamentais de sua obra e suas
contribuições mais originais. Um ¨roteiro¨ apresenta todos os inconvenientes de ¨compactar¨uma obra
extensa, que abrange várias áreas de uma produção de mais de 200 trabalhos. Poderá ser útil, entretanto,
para os que desejarem uma introdução ao pensamento winnnnicottiano. Este ¨roteiro¨ de leitura
compreende 16 pontos:

. O autor e a obra: ¨D.W.W. - uma reflexão¨, Clare Winnicott, Explorações psicanalíticas.

. O meio ambiente facilitador: ¨Desenvolvimento emocional primitivo¨ e ¨Preocupação materna


primária¨, em Da pediatria à psicanálise.

. ¨Objetos e fenômenos transicionais¨, em Da pediatria à psicanálise.

. ¨O papel especular da mãe e da família no desenvolvimento do indivíduo¨, em o O brincar e a


realidade.

. O verdadeiro e o falso self: ¨Distorção do ego em termos de verdadeiro e falso self¨, em O ambiente
e os processos de maturação.

. ¨O temor ao colapso¨, em Explorações psicanalíticas.

. ¨A mente e sua relação com o psique-soma¨, em Da pediatria à psicanálise.

. O transtorno psicossomático: ¨A doença psicossomática em seus aspectos positivos e negativos¨, em


Explorações psicanalíticas.

. As raízes da agressão e o ódio na contratransferência. Winnicott: ¨O ódio na contratransferência¨e ¨A


agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional¨, em Da pediatria à psicanálise

. ¨Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão dentro do setting psicanalítico¨, em Da pediatria à


psicanálise.

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. Exemplos clínicos de interpretação: ¨A interpretação em psicanálise¨, em Explorações psicanalíticas, e
Holding e interpretação.

. Registros de análises com Winnicott: Registro pessoal de uma análise com Winnicott: de Margareth
Little, e My experience of analysis with Fairbain and Winnicott, de Harry Guntrip.

. ¨O jogo do rabisco, emExplorações psicanalíticas.

. ¨Defesas maníacas¨, em Da pediatria á psicanálise.

. ¨A tendência anti-social¨, em Da pediatria á psicanálise.

. ¨O uso de um objeto¨, em Explorações psicanalíticas.

Os textos estão aí para serem ¨usados¨. É como um ¨jogo de rabiscos¨, no qual Winnicott fez alguns
traços e o leitor deve fazer os seus. Desse espaço transicional é que surgirão elementos criativos,
espontâneos e concepções novas, às vezes prenhes de surpresas, indagações e paradoxos. Não tente
¨entender tudo¨ em cada trabalho para só, então, seguir para outro. Faça como os Beatles, de quem Donald
Winnicott tanto gostava e Let it be, ou ¨deixe estar¨, e siga em frente.

PARA CONHECER MAIS:

Adolescer. J. Outeiral. Revinter, 224.


Algumas idéias sobre Winnicott. S. Figueira, em Nos bastidores da psicanálise. Imago, 1991.
Da pediatria à psicanálise. D.W.Winnicott. Francisco Alves, 1988.
Explorações psicanalíticas. D.W.Winnicott. C.Winnicott, R.Schepperd e M.Davis (orgs). Artmed, 1994.
Holding e interpretação. D.W.Winnicott. Martins Fontes, 1991.
My experience of analysis with Fairbain and Winnicott. H.Guntrip, em International Rewiew of
Psychonalysis, vol.2, 1975.
O ambiente e os processos de maturação. D.W.Winnicott. Artmed,1982.
O brincar e a realidade. D.W.Winnicott. Imago, 1975.
O ser e o viver – Uma visão da obra de Winnicott. J. de Mello filho. Artmed, 1989.
Registro pessoal de uma análise com Winnicott. M.Little. Imago, 1992.
Winnicott: Seminários brasileiros. J.Outeiral, S. Hisada e R. Gabriades (orgs). Casa do Psicólogo, 2003.
Winnicott: Seminários paulistas. J.Outeiral, S. Hisada e R. Gabriades (orgs). Casa do Psicólogo, 2003.
Winnicott na América Latina. J.Outeiral e S. Abadi (orgs). Revinter, 2000.

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* Artigo publicado na Edição Especial nº 5 da revista Viver (mente e cérebro)/ Winnicott: Os Sentidos da
Realidade/ D.W. Winnicott: O Homem e a Obra

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