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José Outeiral
( Médico. Psicanalista. Full Member e Didata da International Psychoanalytical
Association )
Quero iniciar minha exposição com uma pequena história clínica, de um grupo familiar.
Trata-se de uma família de classe média, um casal e dois filhos, um rapaz e uma moça,
adolescentes. O pai compra um computador e instala a internet, para que os filhos
façam suas pesquisas para trabalhos escolares. O pai trabalha o dia todo, os filhos
estudam pela manhã e pela tarde e a mulher é professora pela manhã e a tarde
dedica-se aos afazeres domésticos... Uma vida comum e, até certo ponto, monótona e
sem emoções...
Um dia a mulher " entra " na internet e num determinado " chat " encontra um homem
do outro lado do mundo. Começam a conversar; era um homem gentil, que dizia coisas
muito interessantes e que a " compreendia ", segundo o que ela relatou depois. No dia
de seu aniversário, que o marido quase esquecera, este homem mandou-lhe um cartão
de " feliz aniversário " com um " coração vermelho palpitante "... ela se sentiu
emocionada como há muitos anos não se sentia... Começou então uma conversa mais
sensual, mais erótica e, por fim, um diálogo que, soube depois, faria inveja a Bocage e
a Bukovisky ... A mulher, antiga, pois era moderna e não pós-moderna, apertava uma
tecla do computador - delete - e acreditava que tudo ficava apagado...
Num domingo a tarde, toda a família na sala ( o computador em famílias de classe
média fica, como a televisão, na sala ), o marido, que entendia um pouco mais desta
fascinante máquina, foi procurar alguns E-mails na lixeira do computador e - atônito - "
puxou " todas as conversas da esposa e do homem... Ficou Apavorado pois convivia
com a esposa há mais de vinte anos, e nunca imaginara que ela quizesse ouvir tais
coisas e, muito menos, escrever o que ele lia... os filhos colocaram-se contra a mãe,
que de Mãe Santa passou a " mulher adúltera "... e o mais impressionante, a própria
mulher não reconhecia o que via como algo seu, que tudo aquilo tivesse sido uma
expressão de seu self !
O que aconteceu...
Esta mulher, cuja narrativa de self, escreveria Ch. Bollas,, se relaciona ao " moderno ",
de certa maneira ao antigo e ao passado, só reconhecia dois espaços ( interno e
externo ), e o espaço virtual, espaço do presente, terceiro espaço, espaço do hight-tec,
lhe é estranho, " desconstrói " sua estrutura de self quando ela penetra nele e, uma
possibilidade, é que a violência aconteça... A correspondência entre Sérgio Rouanet,
pensador brasileiro, e Otto Kernberg, presidente da IPA, sobre a
psicanálise&modernidade&pós-modernidade, nos levanta questões bastante oportunas
para uma discussão, ao situar a psicanálise como uma área do conhecimento que
busca preservar a subjetividade do homem, ato essencial neste momento de
transição .
O ESPAÇO VIRTUAL
" A força e a velocidade da virtualização contemporânea são tão grandes que exilam as
pessoas dos seus próprios saberes, expulsam-nas de sua identidade…"
Pierre Lévy ( 1995 )
Pierre Lévy, filófoso francês bastante conhecido e cujas palavras utilizo como epígrafe,
publicou em 1995 um livro significativamente entitulado " Qu'est-ce que le virtuel"
( Editions La Decouverte, Paris 1985) que nos auxilia bastante a definir além de
considerações pessoais, o " espaço virtual". Seguindo ao tempo que disponho hoje,
vou direto à tarefa, abrindo ,sem muitas delongas, caminho para nossa discussão.
Esclarece este autor que a palavra "virtual" vem do latim medievo "virtualis", cuja
derivação os remete a "virtus", força, potência. Prosseguindo em delimitar o sentido
deste conceito, Pierre Lévy escreve que na filosofia escolástica é "virtual o que existe
em potência e não em ato" ("O virtual tenda a atualizar-se, sem ter passado no entanto
a concretização efetiva ou formal…virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras
de ser diferentes"). Para Pierre Lévy, desta maneira o termo "virtual" é utilizado na
linguagem corrente de uma maneira simplista, " para significar a pura e simples
ausência de existência, da realidade". Ele considera também que a partir de Gilles
Deleuze, "que o virtual não se opões ao real, mas sim ao atual", enfatizando o conceito
de "atualização" e que a virtualização é um dos principais vetores da criação da
realidade. Ao seguir definindo o conceito de "virtual" o autor opõe ao conceito de
"dasein", conceito de Heidegger do "ser-um-ser-humano" ou, literalmente, "ser-ai" , ao
"ser-lá" do "virtual": o "virtual", ao contrário do "dasein", é a "não presença". E mais,
segue escrevendo esse filósofo, que pode ser localizado na pós modernidade:
"Quando uma pessoa, uma coletividade, uma ato, uma informação se virtualizam, eles
se tornam não presentes, se desterritorializam… a virtualização submete a narrativa
clássica a uma prova rude: unidade de tempo sem unidade de lugar".
" As máquinas só produzem máquinas. Isto é cada vez mais verdadeiro na medida do
aperfeiçoamento das tecnologias virtuais. Num nível maquinal, de imersão na
maquinaria, não há mais distinçao homem-máquina: a máquina se situa nos dois lados
da interfase. Talvez não sejamos mais que espaços pertencentes a ela - o homem
transformado em realidade virtual da máquina, seu operador, o que corresponde à
essência da tela. Há um para além do espelho, mas não o além-tela. As dimensões do
próprio tempo confundem-se no tempo real. E a característica de todo e qualquer
espaço virtual sendo de estar ai, vazio e logo suscetível de ser preenchido com
qualquer coisa, resta entrar, em tempo real, em interação com o vazio".
E ainda:
" (Esta mãe)…começa com uma adaptação quase completa às necessidades de seu
bebê e, à medida que o tempo passa, adapta-se cada vez menos completamente, de
modo gradativo, segundo a crescente capacidade em lidar com o fracasso dela".
Repetindo que estes são conceitos bastantes conhecidos de todos, vamos aos
comentários.
A transferência cria assim, uma região intermediária entre a doença e a vida real,
através da qual a transição de uma para outra é efetuada. A nova condição assumiu
todas as características da doença, mas representa uma doença artificial, que é, em
todos os pontos, acessível à nossa intervenção. Trata-se de um fragmento de
experiência real, mas um fragmento que foi tornado possível por condições
especialmente favoráveis, e que é de natureza provisória.
Uma vez que a ação terapêutica domina o paciente, podemos comprovar que a
enfermidade muda bruscamente de orientação, refazendo agora todas as suas
manifestações à relação entre analista e paciente. Assim, pois , a transferência é
comparável à casca vegetal existente entre a casca e a madeira daas árvores, capa
que constitui o ponto de partida da formação de novos trecidos e do aumento da
espessura do tronco.
COMENTÁRIOS
A tela do computador não é um espelho, muito menos um espelho vivo como é o olhar
da mãe, como acentuou Donald Winnicott. O sujeito só se torna personagem
verdadeiro quando há uma possibilidade de separação entre a cena que transcorre no
palco e a platéia, entre sujeito e objeto, entre Eu e o Outro.
Uma oportuna discussão sobre estas questões que envolvem a psicanálise e o tema da
modernidade/pós-modernidade é dada, como referi antes, pelos trabalhos de Sérgio
Rouanet ( El malestar en la Modernidad, 1997 ) e de Otto Kernberg ( El malestar en la
Modernidad: a propósito del texto de Sérgio Rouanet, 1997), quando este último autor,
presidente da International Psychoanalytical Association, escreve:
"'El mismo Freud senãlaba a necessidade de ilusión como uma précondición para el
crescimento emocional, prefigurando así el concepto de Winnicott del mundo
transicional como el origem de la creatividad en el reino de la cultura".
A questão não é o perigo que o virtual possa representar . Ele é apenas uma
ferramenta, uma máquina, como foi, no início o " fogo ": fato fundamental a descoberta
do " fogo ", que serve para passarmos, como lembrou Claude Lévy-Strauss do " cru ao
cozido ", evoluir na cultura.
Dans la clarière de les yeux/ Montre les ravages du feu ses ouvres d´inspiré/ Et le
paradis de as cendre
( Na clareira de teus olhos/ Mostra os estragos do fogo suas obras de inspirado/ E o
paraíso de suas cinzas )
Paul Éluard ( apud Bachelard )
Para finalizar...
.
Sem dúvida a invenção da imprensa por Gutemberg representou um grande avanço
para o conhecimento humano, restrito até então há uns muito poucos. O conhecimento
se difundiu, termina a Idade Média e inicia a Modernidade. A Cibernética, é, de certa
maneira, a reinvenção de Gutemberg. Não é em si mesma nem boa nem má, nem
pacífica nem violenta, pois estas são categorias da condição e da intervenção humana
e não das ferramentas e das máquinas...
Cabe lembrar o padre Jorge, do livro " O nome da Rosa " de Humberto Eco...
Bibliografia
Bachelard, G. ( 1949 ). A Psicanálise do Fogo. Martins Fontes. São Paulo. 1994
Baudrillard, J (1997). Tela total: mito-ironias da era do virtual e da imagem.
Sulina, Porto Alegre. 1997
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Alegre. 1995
Jameson, F (1991). Postmodernism. The cultural Logic of Late Capitalism.
Duke University Press. Chicago. 1991
Kernberg, O. (1997). A propósito del texto de Sérgio Paulo Rouanet: El malestar em la
modernidad. Psicoanálisis Internacional. Informativo de la API.
Vol. 6, issue 2, 1997
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Levisky, D. et alii ( 1997 ). Adolescêcnia e violência. Artes Médicas. Porto Alegre. 1997
Levisky, D. et alii ( 1998 ). Adolescência pelos caminhos da violência. Casa do
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Lyotard, Jean-François (1986). Le posmoderne expliqué aux enfantes. Editions Galilée.
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Psicanálise Brasileira. Artes Médicas. Porto Alegre. 1995
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Ed. Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 1996
Rouanet, S. (1997). El malestar em la modernidad. Psicoanálisis International.
Informativo de la API. vol.6, issue 2, 1997
Outeirall@hotmail.com