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10. SER OU NAO SER IMPRESCINDIVEL: ESTA E A.QUESTAO Sobre o canibalismo e a ética da psicandlise Para Patricia, meu amor de sempre No meu foro interior eu nao creio que seja necessario um talento particular para decolar do solo e flutuar no ar. Todos nés temos isso em nds — homens, mulheres e criangas — e, mediante bastante esforco e concentragao, todo ser humano é capaz de re- petir as exploraces que eu realizei quando eu era Walt o Prodi- gio. E necessdrio aprender a nao ser mais vocé mesmo. E ai que tudo comeca e o resto resulta disso. E necessario se deixar eva- porar. Deixar os misculos se tornar inertes, respirar até sentir a alma escorrer fora de si e depois fechar os olhos. E assim que se faz. O vazio no interior do corpo se torna mais ligeiro que o ar em torno de nés. Pouco a pouco acaba-se por pesar menos que nada. Fecham-se os olhos; separam-se os bracos, deixa-se evapo- rar. E entao, pouco a pouco, pode-se sair do chao. E assim. I. NA TRILHA DO MAL-ESTAR Quando decidi interromper por um ano e meio as minhas atividades como psicanalista para realizar um periodo sabatico em Paris, acabei por provocar, 4 minha revelia, um certo mal-estar em torno de mim. Este mal-estar assumiu contornos bastante es- pecificos e se referiu a um grupo bem particular de pessoas, como assinalarei em seguida. Contudo, é preciso dizer logo, no come- ¢0 deste texto, que o mal-estar produzido e sobretudo 0 seu cam- po de referéncia se constituiram numa experiéncia inesperada para mim e mesmo numa verdadeira surpresa. Foi justamente o meu Por uma Estilistica da Existéncia 199 espanto com o que se registrava a minha volta que se transfor- mou na condicao de possibilidade de uma reflexao renovada so- bre a ética da psicandlise e sobre alguns impasses da experiéncia analitica. Esta é a razdo pela qual me dedico agora ao trabalho de escrever algo sobre tudo isso, maneira de transmitir para os outros a elaboragao que realizei deste mal-estar bastante particu- lar. Em se tratando, pois, de um ensaio de elaboragao de uma ex- periéncia psiquica, o que estd em questo é o enunciado de uma interpretacdo, de ordem psicanalitica, evidentemente. Localizarei inicialmente o mal-estar em pauta. Evidentemente, este mal-estar no estava presente na minha familia. Nao obstante os temores iniciais que so produzidos pela transposi¢ao de um pais para um outro e o estranhamento abso- luto que isso representa, todos estavam dispostos e mesmo dese- josos de viverem uma experiéncia temporaria na Europa. Assim, minha mulher iria fazer também o seu periodo sabatico e nao sim- plesmente me acompanhar: caso contrario seria um absurdo. Para ela entao a instalagao por um certo tempo na Franca era uma experiéncia desejada. Os meus trés filhos queriam viver uma ex- periéncia escolar ¢ cultural diferentes. Desta forma, o meu filho adolescente foi para o Liceu e as duas outras, adultas jovens, fo- ram para a Universidade. Para poderem fazer isso, todos eles se prepararam bem no que concerne A lingua francesa, para pode- rem ser matriculados nos seus cursos respectivos. Enfim, a minha ida para Paris nao se constituiu, pois, em qualquer fonte de in- quictude para os meus familiares. Portanto, o dito mal-estar deve estar em outro lugar. Entre os meus analisandos, talvez? Estes receberam mal a idéia de que o seu analista pudesse interromper a sua atividade clinica por este tempo e reagiram conforme o esperado, evidentemente. Desta maneira, eles se sentiram abandonados e rejeitados por mim, vi- venciando, em conseqiiéncia, grandes angistias e um gigantesco desamparo. Tudo isso se inscreveu devidamente no campo trans- ferencial de cada uma das experiéncias analiticas em pauta. Con- tudo, todos os meus analisandos ficaram comigo até o fim, com 200 Joel Birman a excecdo de um que interrompeu a andlise um més antes, bas- tante incomodado pela interrupgao. Os demais elaboraram os seus terrores de maneira satisfatria, nao obstante o desamparo e as angtistias primordiais provocadas por uma situacao como esta. Com a excegao de um analisando, nao deixei qualquer in- dicagao de um outro analista para os demais, caso precisassem. Nao fiz isso porque estes nao me pediram e respeitei a inexisténcia de qualquer demanda nesta diregao. Pelo contrario, todos os ou- tros tinham a firme convicc4o de me esperar, para retomarem a andlise na minha volta. Considero tudo isso quase como um in- dicador seguro de que houve uma elaboraco razoavel das angtis- tias e do desamparo em questo, de forma que poderiam me es- perar, pois nao se encontravam numa situacao catastréfica. En- fim, o mal-estar provocado pela interrup¢ao de minha atividade psicanalitica nao se encontrava entre os meus analisando, que viveram a suspensao da andlise como deviam e como podiam, de forma até mesmo admiravel para a situagdo-limite em que se per- ceberam langados. Onde se encontrava entao o mal-estar? Entre os meus cole- gas, os psicanalistas. Isso nao deixa de ser surpreendente, eviden- temente. Eu diria que é algo quase escandaloso! Por que a inter- rup¢4o da atividade analitica de um colega, por um certo tem- po, se transformou na fonte de uma certa inquietude para alguns analistas? Onde estava a fonte desta inquietude? E bom que se diga que nem todos os meus colegas assim reagiram, mas ape- nas alguns entre eles. A minha preocupagao aqui vai se centrar nestes ultimos, é dbvio. Isso porque é o mal-estar que foi provo- cado 4 minha revelia que me interessa circunscrever aqui de ma- neira bem precisa. II. A INQUIETUDE E SEUS DESTINOS NO BRASIL Vou me referir primeiro aos analistas brasileiros, certamen- te, porque foi entre estes que me deparei inicialmente com o mal- estar em questo. Assim, comecei a perceber, no inicio, de forma velada e depois ostensiva, a presenga de uma certa hostilidade no Por uma Estilistica da Existéncia 201 ar, um certo desconforto que eu provocava com 0 meu ato. Esta inquietude hostil podia se enunciar de forma discursiva, ou se manter num siléncio polido, mas estava l4 sempre presente. Quan- do se ordenava como discurso, podia assumir diferentes formas ese apresentar de maneiras diversificadas, conforme os argumen- tos arrolados. Assim, alguns me diziam diretamente ou a outros colegas de forma indireta que o que eu estava fazendo era um absurdo, algo que um analista nao poderia fazer jamais. Afinal das con- tas como é que um analista podia abandonar os seus analisandos, suspender as suas andlises de uma hora para outra € simplesmen- te ir embora para um outro pais! Além disso, como é que eu dei- xava os meus analisandos ao léu e nao indicava um outro ana- lista para eles continuarem as suas andlises! Havia entao um pro- cedimento acusatério evidente na maneira de colocarem as coi- sas para mim. A finalidade escarrada deste tipo de discurso era de me culpabilizar, como se tivesse realizado aquilo que um ana- lista nao poderia nunca fazer. Enfim, eu teria agido, pois, de uma forma antiética. Outros nao entendiam muito bem por que eu fazia isso. A construgao discursiva aqui é diferente da anterior. Assim, me di- ziam.de forma frontal: para que interromper a minha atividade psicanalitica no Brasil e ir para a Franca estudar e pesquisar, se eu ja estava com a “vida ganha” nas nossas paragens! Se eu ja tinha uma posigao privilegiada no campo psicanalitico brasilei- ro e um grande reconhecimento universitario, por que fazer isso? Neste ponto o enunciado podia se desdobrar em duas dire- Ges opostas. Pela primeira possibilidade, o argumento assumia uma diregao acusatéria e se formulava como uma interpretacao “selvagem”. Assim, se eu jd tinha conseguido tanto nos registros psicanalitico e universitario, e ainda queria mais, seria porque eu deveria ser um sujeito muito “voraz” e tinha essa dimensio mi- nha muito “mal” analisada. Enfim, eu teria um sintoma a ser analisado e seria isso o que deveria fazer, ao invés de interrom- per a pratica analitica e viajar para Europa. 202 Joel Birman Pela segunda possibilidade, contudo, o argumento se trans- formava num enunciado politico e numa formulacao sobre a acu- mulacao de bens simbélicos. Assim, me diziam que se eu jé tinha tanto, do ponto de vista simbdlico, eu deveria me alimentar da minha “gloria” e “militar” pela psicandlise no Brasil, me valen- do, pois, de meu capital simbélico para isso e aumentd-lo mais ainda desta forma! Enfim, havia aqui uma mentalidade acumu- lativa em aco, que pensa a existéncia das pessoas em termos de concentracao de capital simbélico e financeiro, sendo, pois, regu- lado este discurso pela légica da caderneta de poupanga. Se eu tivesse ainda decidido interromper o meu trabalho aqui para me reanalisar, num outro lugar e numa outra tradi¢ao anali- tica, tudo isso seria ainda aceitavel, me diziam outros. Ainda que eu pudesse dispor na atualidade brasileira de um campo analitico bastante complexo e pudesse me reanalisar no Brasil, afastar-me para fazer uma outra andlise seria compreensivel, apesar da cen- sura. Esta possibilidade de se reanalisar se inscreve, pois, num reper- torio preestabelecido, com uma tradicao longa no Brasil eno campo analitico internacional, de maneira que nesta condi¢ao 0 meu ges- to seria bem aceito. Caso contrario, o meu ato nao fazia sentido e seria irresponsdvel. Enfim, meu ato nao passaria de um sintoma. Foi isso tudo o que escutei de alguns dos analistas brasileiros, a partir do mal-estar neles provocado pela minha decisao de inter- romper a minha pratica analitica temporariamente. As quatro for- mas de enunciados referidas estavam presentes de acordo com os interlocutores em pauta. Algumas vezes, todavia, estas diferentes ordens de discurso se misturavam de maneira completa, sendo, pois, enunciadas pelos mesmos interlocutores ao mesmo tempo, de forma a passarem de forma quase insensivel de um discurso para 0 outro. Foram estes os destinos da inquietude que provoquei entie os analistas no cenario brasileiro. II. Do OUTRO LADO DO ATLANTICO Contudo, esta inquietude dos analistas nao se restringiu ao Brasil, pois pude registra-la também na Franca. Entre alguns co- Por uma Estilistica da Existéncia 203 legas parisienses, pude perceber que 0 mesmo mal-estar estava presente. As formas pelas quais a inquietude se apresentava eram diferentes, sem duivida. Porém, a fonte que alimentava a produ- Gao desses novos discursos era seguramente 0 mesmo mal-estar. Nao deixa de ser surpreendente e até mesmo espantoso! Vou comegar pelo que é mais brutal e caricato, para me des- locar em seguida para os discursos mais delicados e suaves. O que se formulou primeiro foi a nao aceitagao e o nao reconhecimen- to por parte de alguns analistas dos argumentos que enuncie minha interrupcao da atividade analitica. Assim, que eu quisesse ficar um tempo dedicado ao estudo e 4 pesquisa nao era reconhe- cido como tal, pois nao eram raz6es suficientes para satisfazer a fera na sua féiria contra mim! Era um discurso raivoso e acusatorio. Era evidente, me diziam alguns colegas, que eu devia estar com algum “problema” com relagao 4 minha atividade psicanalitica e que cu me “defendia” desta dificuldade pela suspensdo tempo- raria da pratica analitica. Entao, eu teria feito um acting out de meus impasses, como se diz na linguagem técnica da psicandlise. Trata-se, pois, de um discurso curto e grosso, como se diz na lin- 5 para guagem comum. Em seguida, o discurso que se enunciou foi de que eu teria feito um ato “onipotente”, nao escutando os meus analisandos e agindo de forma unilateral. Afinal das contas, um analista que resolve de maneira “unilateral” a suspensio temporaria de suas anilises, sem consultar sequer os seus analisandos, funciona de uma forma completamente todo poderosa! Enfim, eu teria agido de maneira abusiva, como se fosse um deus do Olimpo. Bem, a psicandlise ¢ uma atividade pela qual os analistas precisam para existir de uma maneira fundamental. Eles nao pres- cindem dela, em hipétese alguma! Por isso, os analistas trabalham até uma idade muito avancada, quase até a morte, 0 que nao acon- tece com as outras profissdes em que as pessoas se aposentam numa certa idade, regulamentada devidamente pelo Estado. En- tdo, se eu estava interrompendo a minha atividade analitica, con- siderando tudo isso, algo certamente muito “problematico” es- 204 Joe! Birman taria acontecendo na minha relagao com a pratica analitica. Por conseguinte, como é que eu poderia abrir mao desta fonte de exis- téncia e de reconhecimento, o que nao costuma fazer nenhum analista? Assim me diziam outros colegas. Outros ainda me falaram outras coisas, de cardter agora mais delicado e suave, é verdade. O discurso agora muda de tom e ganha outras ressonancias afetivas, perdendo a sua marca acusatoria. Assim, alguns colegas me disseram que gostariam de fazer o que eu tinha feito, de forma a suspender as suas atividades analiticas temporariamente para disporem de mais tempo para estudar e escrever. Aqui, contudo, o argumento se bifurcava, a partir desta base inicial. Uns me diziam entdo que nao podiam fazer isso, apesar do desejo de fazé-lo. Isso porque, se interrompessem as suas prati- cas clinicas por trés ou seis meses, nao poderiam reconstituir em seguida os seus consultérios. Tudo seria muito dificil e levaria muito tempo. A competi¢gdo no mercado psicanalftico parisiense era tao intensa e violenta que, neste breve tempo de interrupcao, perderiam os seus lugares conquistado a duras penas! O argumen- to pode parecer excessivo e até mesmo exagerado para alguns ou- vidos, mas era nisso que algumas pessoas acreditavam firmemente e diziam isso de forma literal. Contudo, a delicadeza marcava esta fala de fio a pavio. Outros, pelo contrario, me diziam que, se interrompessem a pratica analitica por um tempo, o que gostariam firmemente de fazer, seriam muito malvistos pela comunidade psicanalitica pari- siense. Passariam a ser, por conseguinte, malvistos pelos demais analistas, que passariam a encar4-los como pessoas “nao sérias” ou “pouco sérias”. Com isso perderiam a credibilidade entre os colegas. A angistia que isso provocava era de tal ordem que elas preferiam nao interromper temporariamente as suas atividades ¢ continuariam as suas vidas como estavam, sem satisfazer este de- sejo. Paciéncia! Enfim, seria bem melhor se proteger do que cor- rer o risco de ousar e de perder o seu lugar ao Sol, nao obstante o desejo efetivo de querer realiza-lo. Por uma Estilistica da Existéncia 205 Estes dois tiltimos discursos podem ser percebidos como provenientes de um mesmo lugar simb6l mo nticleo da enunciagao. Assim, temer pe nico por interromper as suas atividades psican: amente, por um lado, e nao ser visto como uma pessoa “séria” por isto, pelo outro, implicam ambos no fundo a mesma ques- to e a mesma angiistia: perda de lugar social e nao reconheci- mento simbélico, pela nao aceitagao pelos outros € por si mes- mo de seus atos como sujeitos desejantes. Uma razao se imbrica sem solugao de continuidade e sem esta- lico e tem assim o mes- rder 0 seu espaco cli- aliticas provisori- e se desdobra na outra, belecer nenhuma ruptura. Evidentemente, a referéncia a falta de seriedade, pela inter- rup¢ao temporaria da atividade analitica, poderia ser interpreta- da por mim como uma alusao a minha condic¢ao de sul-america- no. Bem, um brasileiro pode fazer perfeitamente o que eu fiz, mas um francés? Impossivel! A falta de seriedade pode existir na Amé- rica Latina, mas na Franga seria algo da ordem do impensdvel. Portanto, inconseqiiéncia sul-americana, mas responsabilidade francesa e européia. Afinal das contas, o mundo vive dos contrastes € as pessoas se alimentam disso para se valorizarem no seu nar- cisismo das pequenas diferengas. Finalmente, outros analistas se referiram ao meu gesto como alguma coisa da ordem do heroismo e da ousadia. De uma certa maneira valorizaram o meu ato de uma forma positiva e instigante. Assim, eu teria feito 0 que os psicanalistas nao fazem nunca, ou mesmo néo 0 realizam quase nunca. Existe, neste discurso, uma reago positiva de espanto e até mesmo de admiragao pelo meu ato ousado, nao obstante a pouca clareza do que isso podia querer exa- tamente dizer, além desta obviedade. Contudo, existia o reconhe- cimento de uma ousadia digna de ser valorizada e reconhecida. IV. EU NAO PRECISO DE VOCES PARA EXISTIR Tudo isso para mim, o que escutei tanto na Franca como no Brasil, foi a fonte de um grande ensinamento. Uma grande licao de vida. Como aprendi com tudo isso, nao apenas como analista 26 Joel Birman mas também como sujeito. Nao porque eu acreditasse no que me era dito literalmente, bem entendido. Longe disso. Mas, pelo con- trario, eu pude aprender muito com tudo isso porque pude pen- sar de forma sistematica sobre 0 que estava sendo dito para mim com um ouvido de analista, seguramente. Pois é evidente que nao deixei de ser psicanalista apesar da interrupgao-temporaria de minhas atividades formais enquanto tal. Pude reconhecer com toda esta experiéncia, e isso pode parecer uma grande ironia, que con- tinuei a ser psicanalista apesar da suspensao de minhas ativida- des formais analiticas, 0 que pode parecer um contra-senso para aescuta de alguns de meus citados colegas. O sentido do que quero dizer com tudo isso ficaré mais claro em seguida, com o desdo- bramento deste texto, mais adiante. Contudo, é evidente que para ser psicanalista nao é preciso se restringir aos aspectos formais da prdtica psicanalitica, mas que é preciso ir além disso. E preciso radicalizar sobre isso e reconhe- cer efetivamente que ser analista é uma forma de ser e de existir diante das coisas, que nao se restringe apenas ao quadro formal da cura psicanalitica. Pelo contrério, este a priori ético é a base insofismavel que deve fundar, de fato e de direito, a experiéncia psicanalitica enquanto tal. O resto € 0 resto, isto é, no tem qual- quer importancia, pois nao passa de algo da ordem das lantejoulas ede um formalismo destituido do que é fundamental na experién- cia psicanalitica. Vale dizer, 0 que importa é ser tocado efetiva- mente pelo que se processa no registro do inconsciente e adquirir devidamente a escuta disso de forma elogiiente e densa. Para explicitar bem tudo isso, é preciso que eu deixe claro o que vivi de fato, antes de tomar uma decisao de interromper pro- visoriamente a minha pratica clinica por um ano e meio. Expli- citarei agora apenas uma parte desta experiéncia. Adiante inclui- rei o resto desta historia. O que se segue, pois, € uma narrativa condensada da elaboracao psiquica que tive que realizar para empreender 0 que fiz. Antes de mais nada, é preciso que se diga que nao foi uma decisao facil para mim. Pelo contrario, foi uma decisdo muito Por uma Estilistica da Existéncia 207 dificil e até mesmo angustiada, como nao poderia alias deixar de ser. Seria estranho se nao fosse assim. Desta maneira, apesar de sempre ter desejado viver um tempo fora do Brasil, para estudar livremente e me inserir provisoriamente numa outra cultura, este desejo era contudo abstrato. Enquanto universitario eu poderia fazer isso sem qualquer dificuldade, evidentemente. Seria até bom. Eu interromperia as minhas atividades académicas regulares, isto é, os cursos, as orientagdes de tese, as reuni6es interminaveis ea pesada burocracia universitaria. Ufa! Seria um grande alivio, apés tantos anos de trabalho. Com isso, me livraria do peso das obri- gacées cotidianas e iria apenas estudar e pesquisar. O que pode- ria desejar mais? Durante muito tempo, porém, me perguntei muito se eu que- ria realmente fazer isso. Seria mesmo este o meu desejo? Eu nao era mais um estudante, certamente, quando as pessoas costumam viajar e ficar fora por um longo perfodo de tempo. Pelo contra- tio, eu ja tinha um longo percurso profissional. Por que entao interromper as minhas atividades, que amava tanto? Para estu- dar? Para pesquisar livremente, sem ter as amarras e as obriga- Ges do cotidiano do trabalho? E por que nao? Eu retorquia as- sim, amainando as minhas diividas iniciais e abrindo entdo ou- tras possibilidades de sustentar o meu desejo. A minha cabega dava voltas, evidentemente, oscilando con- tinuamente, nas suas idas e vindas. Seguir 0 canto desejante das sereias me fascinava e me deixava com os olhos brilhando, mas também me angustiava e me colocava muitas diividas. Logo em seguida, contudo, predominou o fascinio pela aventura, pois era este efetivamente o meu desejo. Com a assunco deste, sabia per- feitamente que estava caminhando em direcao ao imprevisivel. Por que a imprevisibilidade se colocava como inquietude, se era este o meu desejo? Porque eu nao era apenas um professor universitario, mas também um psicanalista. Enquanto tal eu tinha compromissos fun- damentais com os meus analisandos. Eu me refiro a compromis- Sos vitais e nao formais, evidentemente. Como fazer isso, entao? 208 Inel Birman £ bom que se diga logo que eu nao estava nem um pouco preocupado em sair da cena clinica, por um tempo relativamente Jongo, para reconstitui-la em seguida, com a minha volta. Isso no me inquietava. Eu compreendo perfeitamente a preocupagio de alguns colegas com isso, pois considero perfeitamente legitima tal inquietagao. Da minha parte, entretanto, acreditava que poderia restaurar a minha clinica ao retornar ao Brasil. Portanto, a questo da falta de “seriedade”, do meu gesto, levantado por alguns colegas, nao me tocava por causa disso. O que me inquietava era a dimensao ética do meu ato. Esta era a questo que me afligia de fato, quando aos poucos fui desbastando o que era essencial em todo este cenario, retirando deste o entu- lho das coisas supérfluas. Se, ao separar 0 joio do trigo, o compromisso ético com os meus analisandos era 0 que existia de fundamental para mim nesta situa¢ao, como fazer isso, entao? Este foi o impasse em que me encontrei por muito tempo, desde que a questo foi reconhe- cida por mim como um desejo verdadeiro de viver um tempo fora do Brasil. O reconhecimento do que estava efetivamente em questo teve o poder de incrementar a minha angiistia. E pée angistia nisso! Existiam coisas af que me preocupavam bastante e que me perturbaram profundamente. Com isso, se passaram intimeras noites de ins6énia. Nem sei mais quantas. Uma infinidade, certa- mente, pois nas experiéncias limites passamos a vivenciar 0 tem- po com uma densidade e com uma duracao incomensurdvel. As davidas me possufram inteiramente. Fui tomado de corpo intei- ro pela angiistia. Os pesadelos me perseguiram nas noites infin- daveis. Quantas vezes nao acordei assustado, no meio da noite escura, me sentindo julgado pelos meus analisandos que, de dedo m riste e olhar soturno, me censuravam pelo meu gesto frivolo? Eu estava basicamente preocupado com a natureza € a res- sonancia do meu ato: poderia um. analista fazer isso? Nao seria um gesto antiético de minha parte? Neste contexto, eu era lite- ralmente assombrado pela historia singular de cada um de meus Por uma Estilistica da Existéncia 209 analisandos, que circulava pelas minhas lembrancas, los meno- res detalhes. Eu evocava os fragmentos da densa experiéncia trans- ferencial destas pessoas, repassando tudo em pente fino: as feri- das de cada uma delas que as dignificavam, as suas magoas que as tornavam belas, as esperancas que tinham langado sobre mim para sairem do atoleiro de isténcias e o alento que busca- ram na andlise para‘Saportar o peso da vida. Mas, em meus pio- res momentos, ev'imaginava o destino funesto que provocaria na irresponsabilidade de meu ato. existéncia destas pessoas com a Enfim, eu estava decididamente assustado com o meu desejo ecom © potencial tragico do meu gesto. Dentio disso, entretanto, algumas coisas foram me tranqiii- lizando. Uma delas foi a evocacao de que ja tinha vivido a mes- ma posig&o, de meus pacientes, como analisando. Com efeito, quando era jovem, um de meus analistas tinha suspendido a ex- periéncia psicanalitica para viajar. Foi uma ruptura violenta e inesperada, pois nao me dissera nem para que nem para onde viajara. Tudo isso em nome da sacrossanta neutralidade analitica. Soube depois, pelos outros e por acaso, que tinha ido se reanalisar. Nao me dissera também quando regressaria e nem mesmo se vol- taria para o Brasil! Foi uma experiéncia psiquica de absoluto de- samparo, seguramente. Porém, esta experiéncia foi fundamental para a minha exis- téncia: nao apenas como futuro analista, mas principalmente como sujeito. Por qué? Eu pude descobrir, a duras penas, que poderia nie apenas sobreviver, mas mesmo viverrelativamente ber sern o meu analista. O meu desejo de existir estava em mim e nao nele, _gue me oferecia apenas um suporte para isso. Apds isso, recordo que nao procurei um outro analista logo em seguida. Nao se tro- ca de analista como se muda de roupa todos os dias, com certe- za. O analista nao é um objeto descartavel, pois a experiéncia em jogo é radicalmente singularizada: a misica me tocava num dia- pasao de alta intensidade! Com isso, apenas dois anos depois procurei uma outra andlise. Creio, hoje, que foi o tempo que eu Precisei para realizar o trabalho de luto da anélise interrompida. 1n A evocagéo desta experiéncia analitica foi crucial para eu colocar as coisas nas suas devidas dimensées, isto 6 definindo o seu comprimento, 0 seu peso € 0 seu volume. Aos poucos passei a acreditar que seria efetivamente muito dificil Para os meus ana- lisandos viverem a interrupcao da andlise, mas que ninguém iria morrer por conta disso. A vida deles seria retomada sem mim e seus destinos nao seriam assim tao funestos, como cheguei a pen- sar no inicio. Com este insight continuei a elaborar aos poucos esta pos- sibilidade e a transformé-la em realidade, nao obstante a angiis- tia e a culpa que me devoravam em relac4o aos meus analisandos. Sobre isso, eu e minha mulher fomos pensando neste impasse de forma continuada e sistematica, de maneira a ir dissolvendo aos poucos os obstaculos que tudo isso representava para mim. A resolugao passou por um momento decisivo, em que tudo se transformou para mim. O ponto central de inflexao foi a des- coberta de algo que sempre soube. Assim, trata-se, pois, de uma verdadeira redescoberta. Contudo, eu sabia muito menos sobre isso do que imaginava, de acordo com o que pude verificar a pos- teriori. Eu sabia disso de forma te6rica e passei a saber, a partir de entiio, de maneira visceral. Isso faz toda a diferenga, pois tudo muda com a passagem da cabega para as tripas. rs O que eu pude redescobrir é que os analistas em geral preci- sam de seus analisandos para viver de forma quase absoluta. E, mais do que isso, existe uma fragilidade narcisica nos analistas, de maneira que lidam com esta fragilidade através de seus anali- sandos, que tamponam as suas faltas e falhas psiquicas. Estas formulagées te6ricas existem certamente na meméria da psicandli- se, e podemos encontrar diversos textos escritos sobre a questo, mesmo que esta seja tratada de forma superficial ¢ pontual. Con- tudo, esta formulagao, abstrata até entao para mim, passou a assumir coloragées e tonalidades bastante concretas, marcadas por uma grande intensidade afetiva. O que pretendo dizer com isso? Pude descobrir entdo que, apesar de estar bem coma minha existéncia, eu vivia de uma certa forma através de meus analisan- Por uma Estilistica da Existéncia ait dos, Pode ser duro dizer isso, mas € preciso fazé-lo para que se ue esté em questao nisso tudo. Esta foi a eu poder sair da angistia e da culpa que meus analisandos temporariamente. Isso de tudo isso e de estar muito bem infor- ma do ponto de vista teérico, a minha ex- eus analisandos era bastante importante uanto sujeito. Eu me alimentava, pois, possa reconhecer © 4) condigao essencial par me provocava deixar 0: quer dizer que, apesar mado sobre este proble! periéncia clinica com os m para a minha existéncia enq| de uma certa maneira, da exis preencher algumas de minhas d Problematico isso? Sim, muito problematico. Evidentemen- te, coloca-se aqui uma questao crucial para mim e para qualquer psicanalista. Por que eu satisfazia certas caréncias e certas feri- das narcisicas minhas pela via da experiéncia da transferéncia, sa- tisfazendo-me relativamente com isso, apesar de saber perfeita- mente que as coisas nao deveriam se passar desta maneira? Con- tudo, isso acontecia justamente desta maneira, nao posso nega- lo e no reconhecer a minha experiéncia como sujeito. E ébvio sténcia de meus analisandos, para lemandas como sujeito. que isso se passava. Foi com isso que tive de romper radicalmente para fazer 0 que eu fiz, interrompendo temporariamente a minha pratica psi- canalitica. Foi isso que se passou comigo de forma rica ¢ inten- sa. Assim, fiz uma ruptura absoluta com qualquer possibilidade de precisar existir através de meus analisandos, por minima que fosse esta demanda. Evidentemente, eu nao soube inicialmente que era com isso que estava rompendo ao assumir 0 meu gesto de interrupgao, mas aos poucos as coisas foram ficando eviden- tes para mim. Eu queria existir apenas com as minhas possibili- dades psiquicas, contar apenas com elas, e poder também com- partilhar a minha vida com as pessoas com quem eu tinha lagos afetivos reais: a minha mulher, os meus filhos, a minha familia e Os meus amigos. Isso quer dizer que, para realizar 0 meu ato de ruptura, eu pude dizer para mim e para os meus analisandos, de forma meta- forica, o seguinte: “eu nao preciso de vocés para existir voces 212 Toel Birman também podem existir sem mim. Nés nao somos absolutamente imprescindiveis uns para os outros. N6s nos queremos muito bem, fazemos um bom trabalho em conjunto, mas a minha existéncia pode prescindir de vocés ea de vocés também em relacao a mim.” Foi porque eu pude dizer isso, no registro simbélico, que pude in- terromper temporariamente a minha pratica psicanalitica, sem sentir mais a culpa ea angtistia que sentira até ento. Foi por isso também que os meus analisandos puderam elaborar, de alguma forma, a ruptura da experiéncia analitica de forma satisfatéria, sem © que isso teria sido impossivel: a culpa e o ressentimento teriam impedido. V. UMA VEZ ANALISANDO, SEMPRE ANALISANDO A realizacao deste gesto implicou a assungio e 0 exercicio da liberdade. Atingimos aqui a questao fundamental, que esta no cerne deste profundo mal-estar gerado, entre alguns analistas, com a interrupcao de minha atividade psicanalitica. Porém, a palavra liberdade fica aquém e além do que eu quero dizer sobre a minha experiéncia psiquica com isso tudo. Esta pa- lavra diz pouco, porque ela se coloca entre pélos extremos, per- dendo a especificidade da experiéncia em pauta. Isso porque é uma palavra muito abstrata ¢ metafisica, por um lado, e muito vulga- rizada pelo senso comum, na linguagem cotidiana, pelo outro. Para se deslocar destes polos extremos, € preciso tematizar um pouco 0 que esta em questdo neste ato de liberdade, isto é, 0 que ele implica nos termos de uma experiéncia psiquica profun- da, que nao se restrinja as adjetivagoes faceis e rapidas. Isso por- que é preciso dar materialidade afetiva ao gesto de liberdade. A o que implica em suma pergunta que se impde aqui é a seguinte: ea prati- esta experiéncia psiquica da liberdade, no que concern! ca psicanalitica? Vou direto ao ponto, sem rodeios. Para isso pretendo falar a partir de minha experiéncia psiquica, pela qual posso ter algum acesso a dos outros e fazer a leitura de seus signos insofismaveis. O que redescobri foi o Gbvio, o que qualquer analista sabe sem Por uma Estilistica da Existéncia 213 se dizer sempre, € mesmo quase nunca: que, para viver, eles se alimentam de seus analisandos. Eles precisam disso para existir e manter as suas identidades. Nao me refiro aqui, bem entendido, aidentidade psicanalitica, pois € evidente que a figura do analis. ta precisa psicanalisar os outros para ee produzir e se reproduzir enquanto analista, € ser entio reconhecido como tal. Aludo a iden. tidade do analista enquanto sujeito. Ao dizer isso sei perfeitamente que me refiro a uma coisa muito séria e até mesmo grave, tanto do ponto de vista subjetivo como ético. Por que precisariam os analistas de seus analisandos para manter o seu sentimento de existéncia e o sentido de suas identi- dades enquanto sujeito? E aqui que deve ser circunscrita a ques- tio fundamental. Bem, confrontando-se com esta questao, alguém poderia argumentar de maneira incisiva: a figura do analista precisa da figura de seus analisandos desta forma radical, pois o analista continuaria a sua anélise através de seus analisandos. Assim, ape- sar da inversio dos papéis — agora analista, antes analisando — © psicanalista continuaria a sua experiéncia analitica quando re- aliza a sua funcao analisante. Desta maneira, ele retomaria um didlogo criativo com a sua figura origindria do analista e com a psicandlise, de forma a colocar em questio certas coisas escuta- das, e poderia reafirmar a veracidade de outras, elevando-as as- sim ao nivel da certeza. Com isso, ele poderia também, em con- trapartida, relativizar o sentido de sua experiéncia psiquica par- ticular ao confront4-la com a dos outros, de maneira que a sua singularidade enquanto sujeito pudesse se circunscrever de forma mais consistente e concreta, ao ser contraposta a outras singula- ridades. A psicandlise deixa de ser assim um universal abstrato, Para se transformar numa universalidade que se singulariza se- gundo condigées de alta especificidade. ___ Desta forma, pode-se compreender que a identidade ¢ 0 sen- timento de existéncia da figura do analista passam necessariamente pela funcao analisante, pois o psicanalisar reenvia a exigéncia de Continuar em andlise, em deixar esta possibilidade sempre ¢™ 214 Teel Birman aberto. Com isso, a andlise € relancada para novos desafios, até entao inimaginaveis. Continuar, pois, em anélise implica que se possa se reanalisar de forma continua. Seria este o sentido freudiano da andlise sem fim (Laplanche) ow infinita (Lacan) ou ainda interminavel (Strachey), s¢ voces qui serem. Assim, a anélise sem fim implica ento que 0 analista termi- nou a sua experiéncia analitica de maneira formal e até mesmo satisfatoria, pois deixa de ir regularmente as suas sessdes, mas ele acontinua efetivamente através de cada novo analisando. Enfim, uma vez analisando, sempre analisando. Pode-se considerar por este viés a selecdo que os analistas fazem de seus analisandos. Nao acredito que as escolhas se rea- lizem pela consideragao de problemas de ordem intelectual, isto é,o interesse por um certo problema teérico ou clinico. Isso tam- bém existe, evidentemente. Porém, esta preocupacao é sobredeter- minada, em se tratando da psicanilise. A curiosidade do psicana- lista se funda no inconsciente e nas suas demandas pulsionais, de maneira que busca encontrar, através de seus analisandos, a elu- cidacao ea satisfacdo de outras inquietacdes mais fundamentais. Acredito que isso se passa também com outros oficios, so- bretudo no campo das ciéncias humanas. Este nao € 0 caso das ciéncias naturais, em que 0 ideal de cientificidade e a exigéncia de universalidade dos enunciados tedricos tem como contrapar- tida a colocacdo entre parénteses do sujeito do inconsciente. Po- rém, no que se refere a psicanilise, todo este processo fica mais evidente, pois a identificacao do sujeito do saber e do objeto do conhecimento atinge patamares absolutos, de forma a no exis- tir discriminacao possivel entre eles. Estou plenamente de acordo com tudo isso. Acredito firme- mente nisso que foi formulado acima, como um argumento con- sistente e sério de um suposto interlocutor para justificar a deman- da dos analistas de existirem através de seus analisandos. De fato, é com este fio condutor que compreendo 0 meu engajamento como analista, pelo qual se funda a ética do psicanalisar. Enfim, os ana- listas continuam as suas andlises com 0s seus analisandos e por Por uma Estilistica da Existéncia aa isso as suas identidades enquanto sujeito se fundam no ato de psicanalisar. VI. INDISPENSAVEL? Porém, este argumento nao nos esclarece absolutamente 9 problema central, que foi levantado desde o inicio. Por que os analistas nao podem interromper nunca, temporariamente, o exer- cicio da fungao analitica? Por que manté-la de forma continua e As vezes até mesmo compulsiva? Por que a interrupgao se trans- forma em mal-estar? Por que gerei uma grande inquietude em torno de mim por uma interrupgao proviséria da minha pratica analitica? Esta é a problemética crucial em pauta e ela nao pode ser confundida absolutamente com a construc4o de uma ética gené- rica do trabalho psicanalftico. Penso até mesmo que, se tomarmos a questo por este viés inesperado, podemos relancar uma nova leitura sobre a ética da psicandlise, retomando-a, pois, de um novo Angulo. Assim, confrontar-se com algo de forma inesperada é 0 que ocorre na verdadeira interpretag4o analitica, segundo a me- lhor tradi¢ao da psicandlise. Este é o verdadeiro sentido do con- ceito psicanalitico do insight, pois é a surpresa que provoca uma espécie de luminosidade psiquica, na medida em que possibilita rearticular o contexto do campo simbilico e oferece assim novas formas de leitura, até entdo inexistentes. Os novos enunciados possiveis se caracterizam pela simplicidade e pela concisao, per- mitindo a abertura de caminhos inéditos. Pois bem, vamos agora direto ao ponto. Se os analistas nao podem nunca interromper o que fazem, pois isso é da ordem do impossivel, este processo acontece na medida em que eles se ali- mentam de seus analisandos de forma canibal. O que esta em jog nisso tudo entao, de forma tragica, é uma experiéncia psiquica da ordem da devoracao, em que é preciso canibalizar o outro para continuar a existir. Por conseguinte, se a devoracao nao pode se exercer, a anguistia aparece de forma origindria como horror, tra~ duzindo-se, pois, pelo mal-estar a que aludi. 216 Joel Birman Porém, é preciso aprofundar mais ainda o que estd em ques- to quanto a isso, de forma bem precisa. A postura canibal im- plica, da parte do analista, que este tem que se posicionar de ma- neira onipotente face a seus analisandos. Pode-se enunciar esta po- sigdo de forma bem simples. E como se 0 analista dissesse: eu sou imprescindivel para eles. Assim, os analisandos nao poderiam prescindir do analista, pois sem este eles nao sobreviveriam. Con- tudo, através disso os analistas indicam também, nas entrelinhas, que eles nao podem viver sem os analisandos, ja que estes sio indispensdveis para as suas existéncias. Existe aqui, pois, uma inversio de lugares e uma identificagdo massiva entre as figuras do analista e do analisando, de maneira a se constituir uma rela- cao identificatéria da ordem da simbiose. Neste contexto, a estrutura da relac4o analitica se funda entio na ordem da maternidade, em que os fantasmas origindri- os, centrados na mae arcaica, passam a ocupar toda a cena psi- canalitica, regulando de forma insofismavel a experiéncia trans- ferencial. Com isso, a fungao paterna fica deslocada do espaco psicanalitico e a sexualidade assume formas marcadamente nar- cisicas. Por conseguinte, o estabelecimento e a assun¢ao da dife- renca sexual sao bastante complicados, quica impossiveis. Ora, é preciso dizer que o que eu vivi com os meus ana- lisandos foi justo 0 oposto disso. Quando decidi interromper as minhas atividades clinicas, o que disse para eles, de forma meta- forica, foi que eu poderia perfeitamente existir sem eles e eles sem mim, Eu nao dependia deles para existir, nem eles de mim. Tudo isso foi dito no nivel da enunciagao e nao do enunciado, bem entendido. £ aqui que vislumbro algo de crucial sobre a experiencia da liberdade que est4 em questio em tudo isso, € se pode falar da liberdade de forma menos abstrata e metafisica. Evidentemente, poder interromper temporariamente a ati- vidade analitica implica poder prescindir do outro para existir. Em linguagem psicanalitica, isso quer dizer que se pode instituir a experiéncia da castragao, para que a diferenca sexual possa se tornar algo da ordem do possivel. Para que estas iltimas se tor- Por uma Estilistica da Existéncia a nem operatérias no registro analitico, ° analista tem que reconhe- cer que ele nao € indispensavel para ninguém, pois pode ser subs- tituido por outras figuras que também nao sto, Por conseqiién- cia, indispensaveis para 0 sujeito. Enfim, indispensdvel mesmo é apenas a figura materna originaria. Parece-me que foi por isso que levei quatro anos para tomar esta decisio radical de interromper temporariamente a minha atividade analitica. Para isso, precisei fazer o luto deste lugar oni- potente, pois acreditava, de alguma forma, que eu era indispen- savel e imprescindivel para os meus analisandos. Foi uma expe- riéncia dificil, repito. Em contrapartida, foi muito rica e comple- xa também, tanto para a minha existéncia singular enquanto su- jeito como para aprender de maneira definitiva uma outra pers- pectiva da fungao analisante. Além disso, foi por isso também que submeti, sem me dar conta imediatamente do que fazia, meus analisandos e eu mes- mo a experiéncia tragica de desconstrugo material do espaco psi- canalitico. Eu tinha planejado inicialmente fazer a mudanga de meu consultério no dia seguinte ao de meu ultimo dia de traba- tho analitico. Na ultima semana, fiquei ento apreensivo porque temia que minha secretdria nao a realizasse de forma adequada. Ento, na tltima semana de trabalho fui progressivamente reti- rando todos os méveis e objetos de meu consultério. No final, Testava apenas a poltrona e o diva, estando todo o resto vazio e as paredes completamente nuas. Desta maneira, toda a dimen- sio teatral do espaco psicanalitico foi sendo desconstruida dia apés dia, de modo a assistirmos todos, de forma tragica, a des- mobilizacao material do espaco analitico. Do cendrio psicanali- tico, apenas permaneceu o essencial, isto é, a carne e 0 sso: a poltrona e o diva. Penso que isso que ocorreu foi fundamental para mim e Para os meus analisandos, pois a desconstrucdo da experiéncia analitica assumiu uma mat F erialidade elogiiente, tal como aquela la i i is more: Com efeito, somente acreditamos plenamente na morte ie a rf 6xi ‘SueM que nos seja proximo se olharmos efetivamente para 218 i Joel Birman 0 corpo morto ¢ para o cadaver diante de nés. Enfim, reconhe- cer a morte de alguém implica perceber visualmente a imobili- dade cadavérica do corpo morto, senao nao acreditamos plena- mente na morte. VII. A EVAPORACAO E O DESCONHECIDO Dito isso, é preciso agora relancar todos estes conceitos no registro de uma ética da psicanélise. Assim, se o analista deve continuar a sua experiéncia analitica singular através de seus ana- lisandos, ele deve também reconhecer que a psicandlise precisa igualmente se deter em algum momento. Na sua infinidade sim- bélica, a experiéncia analitica é também finita no registro do real. Para isso, a figura do analista deve se transformar, para o anali- sando, em algo de que possa efetivamente prescindir de maneira radical, para que a existéncia possa se tornar possivel, tanto do ponto de vista do desejo como do prazer. Para isso, contudo, é preciso que a figura do analista possa reconhecer que nao é imprescindivel para ninguém, para que a funcdo analitica possa deixar de existir no registro do real e se inscrever no registro simbélico. Esta operacao implica a castra- cio simb6lica da figura do analista pela figura do analisando, por meio da qual o primeiro tem que reconhecer a sua castragao ¢ sua morte no real para se transformar efetivamente em simbolo. Entretanto, a canibalizacao da figura do analisando pela do analista impede que esta operacao se realize efetivamente, pois, se este tiltimo se coloca de forma imprescindivel para a existéncia do analisando, a ruptura deste se transforma em algo da ordem do impossivel. O resultado disso é a culpabilizagio infinita do ana- lisando ao pretender dizer que pode prescindir do analista, quando este ndo pode reconhecer a sua finitude ¢ a sua castracao. Outras conseqiiéncias nefastas disso? As andlises se tornam intermindveis, no registro do real. Neste contexto, freqiientemente entra em cena um outro analista, pois é preciso 20 sujeito empre- ender uma outra experiéncia analitica para que uma figura ter- ceira possa interromper o ciclo diabélico da impossibilidade de Por uma Estilistica da Existéncia a castracao do analista ini ial. Para isso, € Preciso romper também o masoquismo que alimenta de forma mortifera a figura do ana- lisando, quando a do analista nao aceita a sua condicao de nao ser indispensavel para ninguém. £ simplesmente isso 0 que quero dizer para que se possam repensar alguns pontos da ética psicanalitica, a partir da situagio que descrevemos inicialmente, isto é, 0 mal-estar dos analistas em poderem interromper a sua fungao analitica temporariamente, pois isto implicaria reconhecer a sua finitude, a sua mortalidade e a sua castracdo. Para isso, é preciso reconhecer que nao sao impres- cindiveis para os seus analisandos. Contudo, isso implica reali- zar uma viagem para o desconhecido, para se encontrar com o estrangeiro que existe no horizonte de nossa existéncia. Este es- trangeiro, que nos é familiar ao mesmo tempo, Freud denominou de inconsciente e de sinistro. E esta inquietante familiaridade que pode nos indicar novos caminhos e percursos. Vale dizer, é preciso que os psicanalistas possam se esque- cer temporariamente de si mesmos, para que possam se evaporar esse desligar de seus referenciais narcisicos. Com isso, eles podem talvez aprender a voar, como nos ensina, de maneira concisa e delicada, 0 romancista norte-americano Auster, numa parabola instigante e plena de ternura. Rio de Janeiro, 7 de fevereiro de 1996 NOTAS 1 ; Auster, P. Mr. Vertigo, Paris, Babel, 1994, p. 399, os grifos sfo meus.

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