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A MENTIRA

José Outeiral

Uma versão posterior deste “copião”, revisada e ampliada, originou o livro “Breve
ensaio sobre a mentira” (Ed. Revinter). O presente texto contem observações e
sugestões da Dra. Maria Vitória Maia que muito contribuíram para a redação
definitiva.

Ama com fé e orgulho a terra em que


nasceste.
Criança! Jamais verás país nenhum como
este.
Olha que céu, que mar, que floresta!
A natureza aqui perpetuamente em festa
É um seio de mãe a transbordar carinhos.
...
Imita na grandeza a terra em que nasceste.
Olavo Bilac

A mentira é uma verdade que se esqueceu de


acontecer.
Mário Quintana

Gosto da verdade. Acredito que a


humanidade precisa dela; mas precisa ainda
mais da mentira que a lisonjeia, a consola,
lhe dá esperanças infinitas. Sem a mentira, a
humanidade pereceria de desespero e de
tédio”.
Anatole France

Este trabalho é dedicado a Oscar


Niemayer, um homem verdadeiro,
nos seus 99 anos.
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Sumário

1. O manuscrito
2. Tergiversando sobre a verdade e a mentira
3. Enunciado e roteiro
4. Mentiras escolares
5. A mentira e a filosofia
6. Mentiras amorosas
7. Síndrome de Pinóquio.
8. A mentira, a medicina, a psiquiatria e a
psicanálise
9. Mentiras exemplares (ou nada exemplares)
10. Imposturas intelectuais
11. A mentira, a modernidade e a pós-modernidade
12. Um olhar neobarroco sobre a mentira: uma
leitura, eventualmente, dispensável
13. Epílogo
14. Bibliografia

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Once upon a time...

Da inverdade, apanhada na hora, diz-se que é uma mentira deslavada. Um ano depois talvez
seja considerada apenas uma outra faceta da verdade. Se persistir, dentro de dez anos será um
rapto de imaginação da pessoa que a pronunciou. Um século depois já ninguém mais se
lembrará de quem disse a mentira e ela será parte fundamental da sabedoria popular, se
transformará em fantasia, em canto, em ode, em épico, em conceito geral de eternidade
filosófica... É inútil chamar alguém de mentiroso, todo mundo é!

Millôr Fernandes

Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e


espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a
noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar
a essa existência a nossa, que se não pode conformar a ela. A
mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim
como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma
maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos
e sutis movi- mentos da emoção e do pensamento, que as palavras
forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da
mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que
com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer.
Fernando Pessoa

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1. O manuscrito

O manuscrito

A maneira pela qual o manuscrito, do qual resultou este livro, me chegou às mãos, é,
certamente, surpreendente e curiosa. Aconteceu da seguinte forma. Como o leitor talvez
saiba, e se não souber fique sabendo, sou médico e psicanalista, e um dia minha
secretária eletrônica gravou um pedido de consulta. A pessoa que me deixou o recado
não se identificou e apenas me pedia um horário para conversar, uma consulta. Deixou
um telefone. Respondi e atendeu um homem, com a voz um pouco estranha, rouca,
parecendo já ser “maduro”, falando de uma maneira algo desconexa e dizendo que
ninguém o havia encaminhado e que chegara até meu nome pela lista telefônica, o que
não é usual. Em geral as pessoas recebem uma indicação de alguém que já me conhece:
um colega, um aluno ou um paciente, ou alguém que, de uma forma ou de outra, ouviu
falar de mim e de meu trabalho. Acertamos um dia e uma hora.

No dia combinado, no horário aprazado, abri a porta e não havia ninguém. Olhei no
corredor e nada, como se dizia: “não havia vivalma”. Sobre uma mesinha, que tenho na
sala de espera, entretanto, vejo um envelope pardo, fechado, com o meu nome escrito
com uma caneta tinteiro e com uma letra daquelas que, antigamente, tinham os
funcionários. Uma caligrafia clara e bonita, da época em que não havia ainda esta
máquina estranha que chamamos de “computador”, mas talvez do tempo daquelas
“máquinas de escrever” de “carroção”, tão leais, que se chamavam, se me lembro,
“Royal”. O homem não telefonou e não compareceu ao nosso encontro. Logo, associei o
envelope ao faltoso. E estava certo: ele não veio, mas enviou (ou deixou pessoalmente,
um pouco antes de nosso horário, furtivamente) o envelope, somente com o nome do
destinatário: o meu! Não havia nenhum referência ao remetente. Fiquei sabendo que era
dele porque, ao abrir o envelope – pardo –, havia um bilhete, em uma folha amarelecida
de caderno escolar, que transcrevo na íntegra, com a mesma letra estilosa, clara, bonita,
mas antiga, caneta tinteiro...

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Porto Alegre, 29 de fevereiro de 1948

Doutor José,

Desculpe não tê-lo aguardado. Na verdade não queria vê-lo, pois sou um homem
recluso em mim mesmo, um hermitão ou algo que o valha... talvez o doutor
diagnostique: “Sim, um fóbico ou esquizóide ou paranóide !”. Fica a seu critério o
diagnóstico (já ouvi tantos...) e os demais passos deste nosso estranho encontro, sem
presença. Mas deixo-lhe algo: algumas notas que escrevi.
São anotações que fiz, ao longo de muitos anos, nos intervalos de meu trabalho, sem
“glamour” e sem importância, de escriturário em um Banco. Anotações de idéias,
pesquisas que fiz e frases que recolhi, neste tempo todo, décadas de minha insípida e
solitária existência. Sabe por quê? Sou, e sempre fui, desde minha concepção, um
mitômamo, sou uma “mentira”, mas, creia-me, estou agora falando sério, se o doutor
se dispõe a crer em quem existe como mentira, engano, embuste, disfarce e falsidade.
Estes escritos são o resultado de uma tentativa, ainda que frustrada, de ser
verdadeiro. Não o consegui até agora. Por isto peço a sua ajuda. Tome meus
apontamentos, reflita sobre eles e escreva um livro. Eu irei ler o livro e, oxalá! , talvez
possa ser ajudado. Eu existo, creia-me. Quando o livro estiver pronto, o doutor me
encontrará na fila de autógrafos do lançamento ou em uma conferência sobre o
tema, e, ao me olhar, perceberá em meus olhos, tenho a absoluta certeza, que sou eu,
aquele que mente para existir e que existe como mentira. A mentira me permitiu viver
e conviver com o tédio, o vazio e a náusea.
Peço-lhe, tome minhas mal fadadas linhas, fui apenas um guarda-livros que queria
ser pastor de rebanhos, e escreva.
Agradeço de antemão, pois sei que o fará, sabedor que sou de que os médicos, em
geral e os psicanalistas, em particular, não resistem a procurar ajudar o outro, pois
esta é – desculpe minha cultura de “Almanaque do Tico Tico”- a maneira que
encontraram de ajudar a si mesmos. E talvez eu me conheça melhor – eu, o
“mentiroso”, qualquer um – com a leitura do que o doutor escrever. Faremos um
livro a quatro mãos, sabe-se lá a quantas mãos se o livro cair nos olhos e nas mãos de
outros. E quem sabe o doutor também poderá aproveitar, certo? Desculpe a galhofa!
Ocasionalmente, por vias indiretas, farei chegar, às suas mãos, mais material. Tenho
a casa cheia de livros e recortes de jornais e apontamentos sobre a “mentira”; talvez
lhe interessem.
De seu (in)paciente, ausente de corpo, mas presente na letra e no espírito,
Alberto Caeiro

PS: O nome, como é evidente, pois imagino que lhe interessa a literatura, não é
verdadeiro. Não demore em escrever o livro, pois tenho pressa! Mando-lhe um
pequeno poema, que encontrei alhures... reconhece o autor, doutor?

Dizem que finjo ou minto


Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

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Fiquei surpreso com o bilhete e com as numerosas folhas de papel almaço, escritas de
um lado e de outro, à tinta, letrinha clara e tímida, mediocremente bonita.

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O sonho

No final de semana chuvoso, sem poder estar com meus cavalos, inverno, frio, lareira
acesa, e sem ânimo de ler textos literários ou de medicina e psicanálise, chuva e frio
como soe acontecer neste riogrande ( escrito junto, como fazia o Érico Veríssimo ), o
verde do campo se estendendo até o longe, distante um capão de eucaliptos se mexendo
e assobiando ao vento minuano, um movimento quase impressionista, uma pintura de
Van Gogh,o cheiro de terra úmida, li sem parar o que o personagem mentiroso
escrevera e me encantei com o desafio. Um vinho do porto, mais fogo na lareira, um
palheiro entre os dentes, a bulldog “Blanca”, a preferida, deitada no chão, aos meus pés,
a língua saindo daquela canina boca prognata, um calor vindo do pullover de lã pura de
ovelha tecido à mão, algum payador tocando na vitrola, a mulher tricotando ( ela pede,
ao ler o rascunho do livro, que eu a coloque “cozinhando”, fazendo uma ambrosia,
talvez ), o chimarrão com uma herva “meia-folha” de Venâncio, os filhos nos seus fados
e destinos, eu pensando na égua “Carmita”, da minha tropa, que morreu durante o jogo
de Pólo, tão logo saltei da sela, sangrando pelas orelhas, pela boca e pelas ventas,
coração “estourado” pelo esforço. Meus amigos são testemunhas da lealdade deste
animal e também a viram exangue até o fim, com a fidalguia que falta aos humanos na
hora da morte, e, então, adormeço... Acordo com o livro na cabeça, e aí está ele, leitor.
Deixa-me olhar teus olhos enquanto fazes a leitura, pois busco o homem que causou
todo este movimento. Vou também procurar no espelho. Não será difícil encontrá-lo, é
certo. Quem sabe em um jogo de truco, onde a mentira faz parte, possamos nos
encontrar?

O livro

Desde logo quero esclarecer ao leitor que não tenho a intenção de mentir neste breve
ensaio; mas, sabedor da impossibilidade de cumprir à risca tal promessa, como Jorge
Luis Borges ( por quem tenho angústia de influência, na definição de Harold Bloom e
Humberto Eco ) me adverte, quero avisá-lo, já no início, de tal dificuldade. E o leitor já
sabe como tudo começou: com um acaso estranho. Reproduzo as citações de alguns
autores exatamente como me foram entregues nas folhas de almaço; trato de reproduzi-
las, inclusive, porque, na verdade, ficam mais claras nas letras originais e temo trair os
autores tentando interpretá-las; e são causos divertidos.

A mentira faz parte, de tal forma, de nosso cotidiano, em suas diferentes formas, que
minto ao oferecer ao leitor um livro de bolso, um “Breve Ensaio”, sobre um tema tão
vasto: a mentira. A mentira faz parte do desenvolvimento normal de crianças e
adolescentes e da patologia, como na mitomania; está no cotidiano social e cultural,
permeia as questões educacionais e os livros didáticos, sustenta a ficção em suas
diferentes formas; está na gênese das religiões; é central na política e é integrante da
paixão e do amor; enfim, faz parte do humano.

Algum leitor, curioso e apressado, certamente também tendo mentido em sua vida
inúmeras vezes e por isto um pouco ansioso (o que levou a pegar este livro?), pergunta,
de chofre, como se não soubesse, fazendo-se de tolo: mas o que é a mentira? Fostes tu
quem me enviou o “envelope pardo”, paysano? . Olhe em meus olhos. Agora. Hum....

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Vamos à empreitada, como faria um changueiro...

É difícil falar da mentira sem falar também da verdade. Mentira e verdade constituem
um par antitético. Um conceito se afirma e se define por oposição ao outro. Será? A
mentira também passa pela discussão acerca do engano, do falso, da paródia, da
paráfrase, da quimera e da impostura, do embuste, das fraudes e das falsificações, da
vida cotidiana, e dos etecéteras. A ética e a moral também necessitam ser convocadas,
assim como a psicanálise, a literatura, a religião, o humor, entre tantos outros campos
da cultura humana, para esta conversa básica: para que possamos desconstruir, como
sugere Jacques Derrida, o conceito de mentira , ou fazer como Jack, o “estripador”,
transformando o corpo do conceito de mentira em pedaços, e, assim, talvez,
compreendê-lo um pouco melhor. É como uma collage ou uma colcha de retalhos, onde
os pedaços ou citações isoladas não significam muito, mas quando juntados nos
revelam um todo coerente e harmônico.

Aliás, nesta tarefa poderá nos ajudar Affonso Romano de Sant´Anna com sua poesia A
implosão da mentira, que estava nos almaços. Acompanhe, prezado leitor, a
desconstrução que faz o poeta do conceito e da palavra Mentira. Este Romano de Sant
´Anna, se tivesse tido a sorte de nascer aqui no riogrande, seria um payador, destes das
barrancas do Uruguay...

Mentiram-me. Mentiram-me ontem


E hoje mentem novamente. Mentem
De corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
Que acho que mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, impune / mente.
Não mentem tristes. Alegremente
Mentem. Mentem tão nacional / mente
Que acham que mentindo história afora
Vão enganar a morte eterna / mente.

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases


Falam. E desfilam de tal modo nuas
Que mesmo um cego pode ver
A verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil


E para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
Pela mentira, nem à democracia
Pela ditadura.

Evidente / mente a crer


Nos que me mentem
Uma flor nasceu em Hiroshima
E em Auschwitz havia um circo permanente.

Mentem. Mentem caricatural-

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mente:

mentem como a careca


mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara / mente
como o espelho transparente.

Mentem deslavada / mente,


Como nenhuma lavadeira mente
Ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
Com a cara limpa e nas mãos
O sangue quente. Mentem
Ardente / mente como um doente
Nos seus instantes de febre. Mentem
fabulosa / mente como o caçador que quer passar
gato por lebre. E nessa trilha de mentira
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.

E assim cada qual


mente industrial? mente,
mente partidária? mente,
mente incivil? mente,
mente tropical? mente,
mente incontinente? mente,
mente hereditária? Mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava / mente
constroem um país
de mentira
diária / mente

O leitor certamente percebeu o quanto esta poesia de Affonso Romano de Sant´Anna


contrasta com a poesia ufanista de Olavo Bilac, que utilizei como epígrafe. Um mente
( na melhor das intenções, como muitas mentiras ) e o outro desmente

Jorge Luis Borges, outro palavrista, escreveu sobre a mentira o que se segue:

Para escrever (meus contos) eu escolho que aconteça em uma época um pouco longe e
em um lugar um pouco longe. Isto me dá a liberdade de fantasiar e inclusive falsificar.
Posso mentir sem que ninguém se dê conta e, sobretudo, sem que eu mesmo me dê
conta.

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Estamos, pois, para charlar sobre mentira, em excelente companhia: poetas, literatos,
psicanalistas, etc., como outros virão, posto que a mentira é matéria da natureza e da
condição humana e estamos falando de homens. Assim, tímido escriturário que um dia
me trouxe as folhas de almaço - palavra árabe, mourisca - queda-te tranqüilo. Todos
nós, é um “óbvio ululante” , como diria o cronista do cotidiano humano Nelson
Rodrigues (que escreveu, aliás, um excelente romance com o título A mentira, o
primeiro que assinou com seu próprio nome e não mais, mentirosamente, com o
pseudônimo de Suzana Flag ), mentimos e seguiremos a mentir, não só aos outros como
a nós mesmos, como registrou o cego e vidente, tão citado, Jorge Luis Borges. Fique
tranqüilo, estimado leitor, que como já disse, não estaremos sós... e embora a mentira
esteja ligada à culpa, deixe este sentimento de lado, com os curas, e siga adiante.

Quem escreve este ensaio, como já sabes, é um médico, psicanalista e, como tal,
somente poderá abordar o tema dentro de um vértice limitado, ainda que nos almaços
viesse cosa mui rica, paysano. Minha pretensão, na verdade, e não é mentira, é rabiscar
algumas idéias e estimular o leitor a fazer seus próprios traços. Assim, teremos um novo
livro, resultante da leitura que cada um possa fazer de meu escrito: depois, o leitor
poderá jogar fora este livro, ou passá-lo para alguém, amigo ou inimigo, caso tenha
gostado ou odiado, estas mal-traçadas linhas... Não se apoquente com minhas galhofas,
pois tento criar um clima ameno para um assunto sério. Um pouco de homo ludens no
homo fabris... Aliás, lúdico, vem de ilusão, do latim ludere , brincar, conceito também
útil na desconstrução da mentira. Mas ainda quero encontrar o escriturário...

Considero também este texto uns “meros ensaios”, à moda de Paulo Prado, que em
1934, definiu “... meros ensaios, na expressão inglesa da palavra, isto é, a simples
proposta de uma opinião que não quer se impor e antes deseja ser discutida, sem
nenhum dogmatismo”. A pretensão não é grande e quero avisá-lo disso leitor. São
apenas letras de um esculápio com colaboração, ambos acolherados, de um vivente,
escriturário e mentiroso. O editor é que é generoso (mentira ou verdade ?) e me
estimulou, acreditando que eu poderia escrever algo, uns “meros ensaios”, sobre a
mentira, em resposta ao pedido do desditoso e misterioso homem.

Desconstruindo para construir : pule esta parte se ela lhe parecer enfadonha.

Não escrevo um paper universitário e não me situo como um schollar, escrevo para o
homem comum, um flaneur, um sujeito “flanando”, um passante fugidio da Rua da
Praia, em Porto Alegre ( ou de um boulevard parisiense ), como o personagem descrito
por Charles Baudelaire, e que passou os olhos pela estante da livraria, leu o título, ficou
curioso, levou o livro e quando tiver tempo, talvez, vá lê-lo. O leitor acredita no que
acabei de escrever ? Pois saiba que fui, durante muitos anos, professor na Faculdade de
Medicina e que a “humildade” descrita neste parágrafo é uma rotunda mentira. Na
frase em que falo do flaneur que passa os olhos pela livraria, remeto o leitor a Miguel de
Cervantes e a Charles Baudelaire, cruzo autores, épocas e narrativas, e revelo um
aspecto pedante. Vamos desconstruir, à moda de Jacques Derrida, a “humilde
afirmativa” e descobriremos a mentira e a verdade, se isto for possível! O que não será.
Ou será!

El ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha passeia pelas ruas de Barcelona, em


1615, conforme o capítulo LXII, da segunda parte do clássico de Miguel de Cervantes,
e acontece o que se segue: “... Ele e Sancho saíram para passear. Aconteceu então que

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indo por uma rua, Don Quixote levantou os olhos e viu escrito sobre uma porta, com
letras muito grandes: ´Aqui se imprimem livros´. O que muito o satisfez porque até
então não vira nenhuma tipografia e desejava saber como era.”. Fica construído,
então, mais do que um cenário, e a narrativa imaginária une o que Jorge Luis Borges
escreveu em 1952, em Magias parciales del Quixote, “o objetivo e o subjetivo, o
mundo do leitor e o mundo do livro” (Chartier, 2002). Gostaria que o leitor fosse Don
Quixote e eu Sancho Pança ou vice versa...

Jean Paul Sartre, por seu lado, em seu ensaio sobre Charles Baudelaire, escreve que
“todos os esforços de Baudelaire concentram-se na recuperação da consciência, na
posse dela como um objeto que se tem na palma da mão... O mundo, esvaziado, mas
repleto de sinais e símbolos, não era para ele outra coisa que não ele mesmo...”. O
poeta Baudelaire falava sobre o spleen parisiense, o tédio, como eu me sentia na tarde
chuvosa, que já descrevi, quando li os almaços e sonhei este livro, próximo ao que,
algumas décadas depois, o filósofo Sartre descreveria como a náusea...

Várias “pistas” são deixadas ao leitor... Cuide-se, então, com os demasiado “humildes”,
pois poderá ser a propalada “humildade” uma rotunda mentira! Veja, curioso leitor,
como a complexidade das coisas nos impede de falar, com certeza, de verdade ou
mentira, nos levando a refletir sobre paradoxos e non senses, sobre a reta e sobre a
curva, sobre o gótico e o barroco, sobre sentidos manifestos e sentidos ocultos .
Quando escrevo, deixo “pistas” ao leitor, para que ele, como Sherlock Holmes ou o
inspetor Poirot, vá descobrindo a história e seu sentido.

A mentira, hoje, queiramos ou não, concorde ou não o leitor comigo, adquire um lugar
importante na cultura contemporânea , ou na sociedade pós-moderna, expressão ao
gosto de alguns autores franceses “sofisticados”. A mentira escapa de certa maneira ao
julgamento moral , como lembrou este filósofo que conhecia nosso idioma, o Baruch
(Benedito ou Bendito) Spinoza, dos anos seiscentos, que talvez tivesse freqüentado
algum coffee shop em Hamsterdan ou Ham, quando, quem sabe, tenham lhe ocorrido
alguma de suas mais imaginativas e geométricas idéias. Aliás Baruch Spinoza inicia seu
livro Ética demonstrada à maneira dos geômetras, publicado em 1677, com a
seguinte citação.

Nada estimo mais, entre todas as coisas que não em meu poder, do que contrair uma
aliança de amizade com homens que amem sinceramente a verdade.

O leitor deve saber também que não sou nenhum idiota pensando que tenho
pensamentos originais; não lhe ofereço esta mentira. São os pensamentos que
perseguem os pensadores; eles é que nos buscam e possuem. Escrever é, também, ser
possuído e fazer um gesto/gestar feminino. Junto textos do almaço, textos que eu
próprio encontrei em vários autores, aqui e ali, e desenvolvo algumas poucas idéias;
talvez fosse mais adequado chamar este livro de “inventários sobre a mentira” ou “a
gaveta de guardados sobre mentiras”, como talvez gostaria o Mestre Iberê Cmargo...

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2. Tergiversando sobre a verdade e a mentira


A verdade é um cachorro que tem de ficar preso no canil. E deve ser posto para fora a
chicotadas...
W. Shakespeare (1564-1616)

Quase sempre é fácil encontrar a verdade; difícil é, uma vez encontrada, não fugir dela.
Getúlio Vargas (1883-1954)

Mas o que é a mentira?

O Dicionário Etimológico de Língua Portuguesa, esclarece:

Mentir: “faltar com a verdade, iludir”, Do latim Mentire ( cláss. Mentiri ). “mentir”,
“imaginar”, “inventar”, de mens-tis.

Continuando e indo adiante, aceito as idéias de Laurent Mayet, quando ele escreve que
toda a verdade é ilusória e, acrescento eu, relativa. Estabelecer, entretanto, o conceito de
verdade exigirá mais, de nós, de mim e de ti, caro leitor, e certamente não
conseguiremos chegar a grandes e canônicas conclusões. Vejamos como o autor citado
antes estabelece o conceito de verdade:

Caráter do que é verdadeiro; aquilo a que o espírito pode dar seu assentimento, em
decorrência de uma relação de conformidade com o objeto de pensamento; proposição
que comporta o assentimento geral ou está de acordo com o sentimento de realidade;
conhecimento ou expressão de um conhecimento conforme aos fatos tais como se
desenrolaram; boa fé, sinceridade.

Um pouco de teologia

Só a verdade vos salvará.


Bíblia

Todos lembramos a história da sabedoria do Rei Salomão quando este restabeleceu a


verdade na conhecida disputa de duas mulheres por um bebê. Ele criou um inteligente
artifício através do qual a verdade foi evidenciada e a mentira revelada. São inúmeras as
citações, provérbios e parábolas que nos oferece a Bíblia sobre a mentira e seus
significados. O leitor curioso poderá encontrar todas estas referências no livro Chave
Bíblica.

A teologia cristã nos lança a questão, ao contrastar verdade e mentira, quando no


Evangelho de João, Jesus chama Satanás de o pai da mentira. Assim, sob este ponto
de vista, a mentira pode ser entendida como a negação de Deus pelo homem; e João
escreve, definindo, quem é o mentiroso senão aquele que nega que Jesus é o Cristo?.

Celso Lafer lembra que Não dirás falso testemunho contra teu próximo é um dos
valores relacionado aos dez mandamentos. O Velho Testamento é pródigo em

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condenar a mentira. Nos “provérbio” encontramos o seguinte: Iahweh abomina a


mentira e os lábios mentirosos e ama os que praticam a verdade. A mentira, na teologia
ocidental, é tida como algo vergonhoso na atitude do homem e que a infâmia do
mentiroso acompanha-o sem cessar. O Novo Testamento não deixa por menos e Jesus,
como está em Marcos , reverbera contra o falso testemunho.

A teologia judaica, no Talmude, considera a mentira o pior dos roubos: Existem sete
classes de ladrões e a primeira é daqueles que roubam a mente de seus semelhantes
através de palavras mentirosas e, ainda, Deus odeia a pessoa que fala uma coisa com a
boca e outra com o coração.

Os muçulmanos em seu livro sagrado Alcorão refutam inúmeras vezes a mentira. Um


exemplo conhecido é a história de José ( que está tanto no Alcorão como na Bíblia )
contada na décima segunda surata, que fala da mentira que os irmãos de José contam ao
pai, quando tentam matá-lo, jogando-o em um poço. Eles mentem ao patriarca dizendo
que José havia sido morto por um lobo.

12 surata, vers. 17: Disseram: Ó pai, estávamos apostando corrida e deixamos José
junto à nossa bagagem, quando um lobo o devorou. Porém, tu não irás crer, ainda que
estejamos falando a verdade!

O Alcorão liga também á hipocrisia à mentira.

63 surata, vers. 1: Quando os hipócritas se apresentam a ti dizem: Reconhecemos que


tu és o Mensageiro de Deus. Porém Deus bem sabe que tu és o Seu Mensageiro e atesta
que os hipócritas são mentirosos.

Aurélio Agostinho, depois Santo Agostinho, por seu lado, com a importância que tem
para o pensamento ocidental, nega qualquer justificação para a mentira e considera que
Deus a proíbe terminantemente e que as almas dos mentirosos estarão em perigo.

Um pouco de filosofia, literatura e pensamentos variados

Quanto à ética e à moral, como veremos com detalhes a seguir, ao tratar dos filósofos e
a mentira, temos dois pólos.

Friedrich Nietzsche considerava a mentira parte da essência humana e elemento para a


sobrevivência. Em a Vontade de poder ele escreveu que existe apenas um mundo, e
esse mundo é falso, cruel, contraditório, enganador, insensível... precisamos da
mentira para viver... Tal mentira é uma necessidade da vida e é, em si, uma parte do
caráter apavorante e problemático da existência. Em oposição, partindo de uma outra
visão ética, Nicolai Hartmann postula que, se a mentira distorce as condições e
informações necessárias para pautar os atos de alguém. Em seu livro, Ética, o autor
registra que a mentira injuria a pessoa enganada em sua vida; ela o desencaminha.
(Mills & Lipian, 1999). Aguarde ou vá direto ao capítulo “dos filósofos e a mentira”.

O leitor que escreveu o calhamaço encontrado em meu consultório não deve ter dúvida
que prefiro a visão de Friedrich Nietzsche, mais humana, ainda que demasiada
humana...

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Tomemos, agora, o Sermão da Quinta Dominga de Quaresma, do padre Antônio


Vieira, no ano de 1654, em seu ensaio sobre a Mentira, para precisarmos melhor as
idéias.

A verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça dá a cada um o que é seu. E isto
é o que faz e o que diz a verdade, ao contrário da mentira. A mentira, ou vos tira o que
tendes, ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba ou vos condena.

Oscar Wilde , o coveiro da era vitoriana, considerava, em uma de suas famosas tiradas,
que se alguém diz a verdade, pode estar certo de ser descoberto mais cedo ou mais
tarde, e Jorge Luis Borges, sabiamente, e de novo cito este amigo, nos acrescentou,
escrevendo em Elogio da Sombra: “... não exageres o culto da verdade; não há
homem que ao fim de um dia não tenha mentido, com razão, muitas vezes”.

Jean Paul Sartre escreveu, em 1948, um ensaio, Verdade e existência, no qual


estabelece um percurso entre a questão da Verdade e a problemática do Ser, da
identidade de uma maneira generalizada. O filósofo francês discute o paradoxo
envolvido neste imbróglio: o Ser e a Verdade.

O que faz crer que a verdade se identifica ao Ser é que, de fato, tudo o que é para a
realidade humana é sob a forma de verdade (estas árvores, estas mesas, estas janelas,
estes livros que me circundam são verdades) porque tudo o que é para o homem já
surgido é sob a forma de “há”. O mundo é verdadeiro. Eu vivo no verdadeiro e no
falso. Os seres que se manifestam a mim se dão como verdadeiros; em seguida, às
vezes, se revelam como falsos. O Para-si vive na verdade como o peixe na água. O erro,
diz-se, é a aparência. É falso. Ao contrário, a aparência é sempre verdadeira se nos
atemos a ela. A aparência é o ser. Esta árvore que eu tomo por um homem não é o
homem em aparência, árvore em realidade. Em aparência (isto é, como aparição
imediata), ela é este algo de mais escuro surgido na noite. E isso é verdade: é o
surgimento de um ser. E é a minha antecipação verificável que é falsa, já que visa à
realidade mais profunda. Em outras palavras, na dupla aparência-realidade (falsa
dupla, inventada pelas necessidades da causa), a aparência é sempre verdadeira, o
erro se situa no nível da realidade. A aparência é sempre revelação de ser, a realidade
pode ou não ser a revelação de ser.

Peço ajuda ao leitor, para pensarmos, juntos, sobre o quis dizer o filósofo do
existencialismo. Sente, tome um mate e acenda o palheiro, que é assunto para mais de
metro...

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3. Enunciado e roteiro
A realidade se coloca para o homem, não raras vezes e até com muita freqüência, com
crueldade. Sigmund Freud escreveu sobre as graves feridas narcísicas que
representaram para a homem (a) a descoberta de que a terra não era o centro do
universo, (b) a teoria evolucionista de Darwin, de que descendemos de um “macaco” e
que os estudos do “genoma humano” confirmam, e (c) a psicanálise, revelando de que
não somos donos de “nosso destino consciente”, de “nossa razão”, mas que somos
profundamente determinados por pulsões, sejam elas agressivas ( Tanatos ) ou
amorosas ( Eros ) inconscientes.

É doloroso descobrir, como nos mostra a psicanálise ( e estou pensando em Sigmund


Freud e Donald Winnicott, em especial ) que as pessoas, e inicialmente a mãe e o pai,
existem por “direito próprio”, “objetos objetivamente percebidos”, fora de nossos
“feixes projetivos” e não fazem parte do “nosso mundo”, “objetos subjetivamente
concebidos” em um mundo narcísico. A ética, inclusive, aprendemos com Jacques
Lacan é “não se constituir como desejo do outro”, ao que Humberto Eco complementa
que “a ética se inaugura quando o outro entra em cena”.

Mas é a consciência da morte, acredito, seguindo a inúmeros autores, que é


insuportável. Reconhecer que, como nos diz a Bíblia, “retornaremos ao pó”, verdade
primeira e simples, nos leva a criar ilusões e mentiras. O inexorável, a única verdade e a
única certeza, ineludível, desde que nascemos é a morte. Este é, digamos, o nascedouro
da mentira, em suas inúmeras formas. A mentira, primeira, como negação da morte.

A estrutura deste livro une realidade, ficção e ensaio, em uma irônica intertextualidade,
uma discutível metanarrativa e vários níveis de leitura, como sugere Humberto Eco
( Eco, 2003 ). A criação de um Duplo, realidade e ficção, facilita, a maneira de um
diálogo interno-externo, o desenvolver do ensaio. Não é uma novidade. Neobarroco ou
pós-moderno?

Roteiro

Tomada 1.
Plano geral. O mentiroso vive em um quarto-sala no centro da cidade. É um edifício
imenso, com inúmeros pequenos apartamentos, onde moram velhos aposentados,
estudantes do interior, funcionários e algumas mulheres que ganham, discretamente, sua
vida no comércio amoroso. É uma construção antiga, com mais de cinqüenta anos. No
térreo, à direita, há um bar, onde o mentiroso toma, todos os dias, sua taça de café-com-
leite com pão-e-manteiga, à esquerda, um mini-mercado, com uma bancada de frutas e
verduras que avança na calçada, e é lá que o mentiroso faz suas compras. É um local
como inúmeros outros deste tipo, sem nada de especial. As cores devem ser fortes como
de Frida Kahlo ou Pedro Almodóvar. A câmara ( digital, depois passamos para 16 mmm
) faz um travelling, vindo pela calçada oposta, para frente ao prédio e filma de baixo
para cima até o céu. Ninguém na rua. Apenas uma velha Kombi estacionada. Som da
rua, sem muito ruído, barulho de pombos e Amália Rodrigues cantando, em back.
Corte.

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Tomada 2
É feita uma tomada aérea, rápida, da parte de cima do prédio, sujo e coberto de antenas
de televisão. Estranhamente há um pombal que alguém cuida, como nos filmes
americanos antigos onde no terraço de prédios, em New York ou Chicago, sempre há
um pombal. A tomada termina com um zoom no pombal. Somente som de pombos.
Corte.

Tomada 3
A câmara entra direto, em movimentos de mão ( pode tremer ). Perscutando a pequena
sala. Há uma poltrona velha, uma televisão antiga, uma mesa de fórmica, com muitos
papéis, lápis e canetas, vários cadernos escolares velhos, com duas cadeiras, e um
pequeno sofá de dois lugares. Na parede um retrato, ovalado, antigo, dos pais do
mentiroso, vestidos de noivos. Um crucifixo com Jesus na outra parede. A cor das
paredes é de um azul muito vivo e as portas amarelas, mas há penumbra. Apenas um
lusco-fusco que entra pelas cortinas de palhinha. Parece não ter limpeza há muito
tempo. Em um canto uma prateleira cheia de livros e jornais. Em outro canto, no chão,
mais livros e jornais. Num pequeno criado-mudo um telefone antigo, preto, de baquelite
e disco de números. A câmara faz uma tomada de 360 graus. Não há nenhum som,
exceto um ronco de alguém que dorme. Barulho dos pombos muito ao longe. Corte.

Tomada 4. A câmara entra no quarto e logo fica imóvel. Plano geral. Está mais escuro.
Uma cama, um homem deitado nela, só aparece os pés, um braço e a cabeça, escondida
pelo travesseiro. Tudo muito amassado e bagunçado. Embaixo se entrevê um pinico.
Um velho pôster de Ângela Maria sobre a cama. Um quarda-roupa de duas portas,
abertas, mostrando as roupas. Um tapete no chão. Uma cadeira, recoberta de roupas.
Um chambre velho e pantufas no chão. As cores das paredes são como das salas. Há
penumbra. Algo enfumaçado, deixando entrar luz, revelando que já é dia. O silêncio, só
o som dos pombos muito ao longe, é quebrado pelo toque estridente de um despertador.
Fade-out. Corte.

Tomada 5.
Plano geral. Do outro lado da rua, a câmara focaliza o prédio. Ninguém na rua. Som
distante dos pombos e de Amália Rodrigues cantando. Corte.

Tomada 6
Plano geral. Na porta do prédio, aparece um homem de mais de sessenta anos, magro,
alto, pálido, um bigodinho fino, nariz adunco, vestindo um terno surrado, parecendo
curto e pequeno para ele, com uma gravata borboleta estampada, chapéu, óculos de
arame de armações redondas, bengala no braço; um cigarro em uma das mãos e vários
cadernos escolares, velhos, de espiral na outra. Ninguém na rua. Som distante de
pombos e Amália Rodrigues cantando. Corte.

Tomada 7
Plano americano. O homem olha, ansioso, para dois lados da rua. Não há ninguém.
Som distante de Pombos e Amália Rodrigues cantando. Corte.

Tomada 8

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Plano geral. A câmara focaliza o homem entrando no bar e desaparecendo no escuro do


interior. O som de pombos e a cantoria da Amália Rodrigues ficam mais distantes e
quase desaparecem. Corte.

4. Mentiras escolares
É natural que as crianças mintam, uma vez que, fazendo isto, imitam as mentiras dos
adultos.
Sigmund Freud, 1913

O céu mente-nos durante a nossa infância,


Sombras da casa-prisão começam a fechar-se
Sobre o rapaz a crescer...
Wordsworth, citado por Donald Winnicott em Talkink to parents

As “mentiras escolares” se referem a “mentiras” que são apresentadas às crianças e


adolescentes nas escolas. Não são as mentiras que crianças e adolescentes contam, mas
mentiras que lhes são ditas pelos adultos. Estas mentiras têm várias fontes, mas vou
considerar duas delas: a primeira é o fato de que elas são “embutidas” nos livros
escolares e a segunda é o despreparo dos professores para a realização de um trabalho
crítico, como o processo educacional exige. Todos sabemos, por exemplo, que existe
uma “história oficial” e uma “história real”. A “história oficial” é, não raramente,
composta de grandes mentiras, mas , de tanto serem repetidas, acabam obtendo foro de
“verdade”. É como disse o filósofo grego de outrora: “ minta, minta, sempre fica
alguma coisa... “.

Escolhi para epígrafe deste “breve ensaio” uma poesia de Olavo Bilac, um dos nossos
poetas mais importantes e que deve ser compreendido dentro do contexto de sua época.
Sua poesia, entretanto, lida hoje, com seu estilo fantasioso e ufanista, é, sob certo
ângulo, uma “mentira”; ou não, como talvez diria Caetano Veloso, admirador do poeta.

Humberto Eco e Mariza Bonazzi escreveram um ensaio crítico sobre livros didáticos
italianos, intitulado Mentiras que parecem verdades, que poderia se referir também à
muitos de nossos livros escolares... Humberto Eco relata:

... enfim, os livros didáticos contam mentiras, educam os jovens para uma falsa
realidade, enchem suas cabeças com lugares comuns, com coisas chãs, com atitudes
não-críticas... O modelo proposto é, ainda, um universo paleocapitalista, no qual o rico
é o patrão ruim do “Conto de uma noite de Natal” e o pobre é Oliver Twist.

Caso o leitor tenha mais curiosidade sugiro uma leitura de Osman Lins. Esse autor, em
seu livro Problemas inculturais brasileiros, reúne suas reflexões sobre a questão

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educacional no Brasil e, principalmente, uma análise implacável de livros didáticos e do


ensino universitário em nosso país.

A história, por exemplo, e é desnecessário lembrar, é feita de fatos que, muitas vezes,
são mentiras. George Santayana considerou que a história é sempre escrita de forma
errada, de forma que sempre precisa ser reescrita e Samuel Butler completou
escrevendo que embora Deus não possa alterar o passado, os historiadores podem.
(Shenkman, 2002 ).

Shenkman, em seu livro As mais famosas lendas, mitos e mentiras da história do


mundo, comenta, significativamente:

E o que dizer de Heródoto, o Pai da História?


O método de Heródoto consistia em pôr em seus livros:1) todas as histórias que ouvia,
fossem verdadeiras ou não ( como a história sobre formigas do tamanho de raposas ),
2) discursos persas inventados, 3) textos plagiados e 4) mentiras absolutas. E as
pessoas decidiram chamá-lo de Pai da História. Faz sentido, não é?

Acho necessário referir dois livros que tratam da questão da formação dos valores nos
anos escolares e que considero muito pertinentes. Lembro de J.-J. Rousseau com
Emílio ou Da Educação e de Eduardo Galeano com De pernas pro ar. A escola do
mundo ao avesso. Mais de duzentos anos entre um e outro autor e uma atualidade
imensa entre ambos.

J.-J. Rosseau em Emílio ou Da Educação descreve como se deve educar um infans e


um puber, uma criança e um adolescente, nos conceitos do Iluminismo e da
modernidade. Compreendo que alguns criticarão esta referência, pois o autor abandonou
“galhardamente”, como ele próprio admite em suas Confissões e como comentei antes,
os cinco filhos que teve com Thérèse Levasseur, mas, por fim, J.-J. Rosseau terminou
por se afastar da mentira contar a verdade. Vejamos no que ele pode contribuir com o
nosso tema.

Como bom Iluminista, um homem de saber enciclopédico e buscando o primado da


razão, um autor do século XVIII, representante da modernidade e do ideário da
Revolução Francesa, ele escreve:

Eis a fórmula a que podem reduzir-se aproximadamente todas as lições de moral que
se dão ou se podem dar às crianças.

O mestre: Não se deve fazer isso.


A criança: E por que não se deve fazer isso?
O mestre: Porque é ruim.
A criança: Ruim? O que é ruim?
O mestre: O que lhe proíbem.
A criança: Que mal existe em fazer o que me proíbem?
O mestre: Punem você por ter desobedecido.
A criança: Eu faço as coisas de um jeito que ninguém fica sabendo.
O mestre: Vão espiona-lo.
A criança: Eu me esconderei.
O mestre: Vão fazer-lhe perguntas.

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A criança: Eu mentirei
O mestre: Não se deve mentir
A criança: Por que não se deve mentir?
O Mestre: Porque é ruim, etc.

Eis o inevitável círculo...

J.-J. Rosseau descreve dois tipos de mentira na infância e comenta algumas idéias sobre
a educação, no intuito de evitar a mentira .

Existem dois tipos de mentira: a de fato, que diz respeito ao passado, a de direito, que
diz respeito ao futuro. A primeira acontece quando negamos ter feito o que fizemos, ou
quando afirmamos ter feito o que não fizemos, e em geral quando falamos
conscientemente contra a verdade das coisas. A outra ocorre quando prometemos o que
não planejamos cumprir, e em geral quando mostramos uma intenção contrária à que
temos. Estas duas mentiras podem, às vezes, reunir-se numa só ( como, quando acusado
de uma má ação, o culpado defende-se dizendo ser um homem de bem. Ele mente,
então, de fato e de direito); mas considerando-se aqui no que têm de diferente.

J.-J. Rosseau acreditava, como pensavam outros contemporâneos seus, como Voltaire
em seu Candido ou o otimismo e com a idéia do “bom selvagem”, que a criança era
uma folha em branco na qual a cultura ( educação) ia escrevendo. Ele continua.

É claro, portanto, que a mentira de fato não é natural às crianças, mas a lei de
obediência é que produz a necessidade de mentir... Na educação natural e livre, por
que então vosso filho vos mentiria?

O “espírito livre” dos enciclopedistas, como J.-J. Rosseau, se revela de todo, não leva
em consideração a hereditariedade ( Mendel e a genética serão posteriores ) e as pulsões
( explicitadas por Freud somente na segunda década do século XX ), creditando aos
professores, e aos pais, àqueles que educam a criança, a responsabilidade pela mentira.

Segue-se daí que as mentiras são todas obras dos professores, e que querer ensina-las a
dizer a verdade não passa de querer ensina-las a mentir. No afã que se tem de regrá-
las, de governá-las , de instruí-las, nunca se encontram instrumentos suficientes para
ir até o fim. Querem-se abrir novas perspectivas em seu espírito através de máximas
sem fundamento, de preceitos sem razão, e prefere-se que saibam suas lições e mintam
a que permaneçam ignorantes e verdadeiras.

Eduardo Galeano, nosso contemporâneo, no livro De pernas pro ar. A escola do


mundo do avesso, numa escrita, talvez, pós-moderna, nos dá algumas idéias
interessantes sobre o mentir na escola. Ele comenta, prosaicamente.

Pontos de vista/6
Se Eva tivesse escrito o Gênesis, como seria a primeira noite de amor do gênero
humano?
Eva teria começado por esclarecer que não nasceu de nenhuma costela, não conheceu
qualquer serpente, não ofereceu maçã a ninguém e tampouco Deus chegou a lhe dizer “
parirás com dor e teu marido te dominará”. E que, enfim, todas essas histórias são
mentiras descaradas que Adão contou aos jornalistas.

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O leitor estará a especular: por que diabos estes autores e não os clássicos e conhecidos
autores da educação? Exatamente pelo fato de que estes autores nos propiciam um
deslocamento no tempo, no espaço e no olhar, diferente daquele do cotidiano... e é isto
que este Ensaio busca.

4. A mentira e a filosofia
Vou repassar ao leitor algumas citações de filósofos sobre a mentira que o escriba dos
almaços recolheu sei lá aonde.

Quem melhor conhece a verdade é mais capaz de mentir.


Sócrates

O homem é um ser essencialmente mentiroso, sempre e em tudo.


Aristófanes

É aos magistrados exclusivamente que compete mentir para enganar o inimigo ou o


cidadão, para o bem da República. A mentira não deve, jamais, ser permitida aos
outros.
Platão

A mentira é uma condição de vida.


F. Nietzsche

A principal mentira é aquela que contamos a nós mesmos.


F. Nietzsche

A mentira é entendida como a ocultação da verdade. Também, como induzir o outro, ou


a si mesmo a considerar como exato aquilo que não é... ao longo da história, a mentira
e a verdade tem sido vistas como vício e virtude respectivamente. Enquanto prática, o
uso de diferentes modos de mentira fizeram com que esta fosse assimilada à natureza
humana, envolvendo diferentes motivações e formas de sobrevivência. Longe de ser
considerada uma conduta anti-social, a mentira é uma forma de adaptação, de relação
social aprendida desde a infância.
Ensaio sobre a mentira, Camilo Braz

Aproveitando as “epígrafes” que ele, o “mentiroso”,. nos oferece sigamos adiante. Mas
parece claro que o missivista, o sujeito que enviou a carta, pela sua “coleção” de
citações era um crítico da “verdade absoluta”.

A questão da mentira sempre foi importante para a filosofia. Sócrates, que como
sabemos não era dado a escrever, dedicou à mentira muitos dos seus inumeráveis

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questionamentos. . Antes dele os “pré-socráticos” também dedicaram seu intelecto e


seu tempo a pensar “o que é mentira”. Será a verdade uma ilusão? Existe a mentira
moralmente cabível? É impossível levá-lo, leitor, a visitar cada um destes filósofo, pois
teríamos de ir a muitos livros; seria interessante, sobre nosso tema, por exemplo, lermos
o Híppias menor de Platão ou o De mendacio de Agostinho ( Puente, 2002 ).

Uma parada com Platão. Este filósofo, pragmaticamente, em A república, considera


que a mentira poderá ser útil, quase como um remédio. Como? Dirá o apressado leitor.
A mentira na política tem um defensor tão ilustre? Neste livro Platão desenvolve um
diálogo entre Sócrates e alguns de seus discípulos .
Vejamos...

Sócrates - Mas, realmente, também devemos ter a verdade em grande consideração. Se


há pouco dissemos acertadamente que a mentira é inútil aos deuses, porém útil aos
homens sob a forma de remédio, é evidente que seu emprego deve ser exclusivo dos
médicos e de mais ninguém.

Adimanto – Evidentemente.

Sócrates – Por conseguinte, se compete a alguém mentir, é aos líderes da cidade, no


interesse da própria cidade, em virtude dos inimigos ou dos cidadãos; a todas as
demais pessoas não é lícito este recurso. Contudo, se um cidadão mentir aos seus
chefes, afirmaremos que ele cometeu um erro da mesma natureza, porém maior ainda
do que se um doente não contasse a verdade ao médico, ou se um aluno ocultasse ao
seu professor de ginástica seus sofrimentos físicos, ou se um marinheiro não revelasse
ao piloto a verdade sobre o estado do navio e da tripulação, omitindo-lhe informações
quanto à sua situação e à de seus companheiros.

Adimanto – Concordo plenamente.

Sócrates – Por conseguinte, se o chefe surpreender alguém mentindo na cidade, da


classe dos artesãos, ou adivinho, ou médico que cura males, ou fabricante de lanças,
irá castigá-lo, por esse alguém estar introduzindo hábitos capazes de derrubar e
arruinar uma cidade, como se se tratasse de um navio.

Assim aos governantes é dado o direito de mentir, em determinadas circunstâncias, no


benefício da pólis. Platão reconhece que a mentira pode “afundar” uma cidade, mas ao
estabelecer que alguns poucos podem mentir, especialmente os políticos, cria uma
tradição com seguidores até os dias atuais. Jorge Luis Borges, em declarações a M.
Montechia publicadas com o titulo de Reportaje a Borges, faz uma critica profunda a
Platão e a seu livro A republica. Concordo com o escritor cego-vidente.

Esperando que lhe pareça bem, leitor, optei por escolher, por “simpatia” pessoal, alguns
destes filósofos. É certo que muitíssimos ficarão de fora, e o leitor poderá fazer depois
suas pesquisas: não quero privá-lo desta busca.
.
Sigamos...

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Jean-Jacques Rosseau ao escrever, entre 1776 e 1778, seu Devaneios do passante


solitário comenta:

... é raro e difícil que uma mentira seja completamente inocente. Mentir para a
vantagem de outrem é fraude, mentir para prejudicar é calúnia; é a pior espécie de
mentira. Mentir sem proveito nem prejuízo para si nem para outrem não é mentir: isso
não é mentira é ficção...

Jean-Jacques Rosseau conhecia bem os caminhos e os descaminhos da mentira, desde o


episódio do objeto que ele furtara ( um adorno ) e acusara a cozinheira da casa, onde
também era um empregado, de ter-lhe dado o objeto de presente, como está em suas
Confissões, até as mentiras sobre sua mulher e o ocultamento da existência de seus
filhos. Mas interessa, agora, a despeito destas humanas manifestações da condição
humana que todos nós apresentamos, dentre ela a mentira, o que o grande Rosseau nos
oferece na citação: a descrição da “mentira literária”, a ficção. Encontramos, inclusive, a
ficção histórica, onde fatos fictícios e históricos se entremeiam.

Existiu, vale lembrar, uma querela famosa a respeito de um presumível “direito de


mentir” entre Benjamin Constant, que escreveu Das reações políticas ( Dos princípios
), e Immanuel Kant, que respondeu ao filósofo francês com um ensaio intitulado Sobre
um pretenso direito de mentir por amor aos homens .

O texto de Benjamin Constant e a resposta de Immanuel Kant constituem uma


interessante discussão sobre este “presumível direito de mentir”, nos levando à natureza
desta questão... Arthur Schopenhauer foi outro que lançou, também, lenha nesta
fogueira; o “mentir” e a condição humana. Um assunto que interessa a todos nós,
mentirosos, mas não vou sobrecarregar o leitor com citações. Leia os textos dos
próprios autores, são curtos e as referências estão na bibliografia ( Puente,2000 ).

Friedrich Nietzsche, um filósofo de minha simpatia como já sabes, publicou um breve e


interessante ensaio, em 1873, chamado Sobre verdade e mentira no sentido extra-
moral.

Neste livro ele escreve, sintetizando suas idéias.

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metomínias,


antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas
poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um
povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu
que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que
perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como
moedas.

F. Nietzsche descola a verdade e a mentira da moralidade e fala da transitoriedade do


homem no universo. Os animais inteligentes que inventaram o conhecimento habitarão
este universo somente um minuto. Houve eternidades em que ele não estava; quando de
novo ele tiver passado, nada terá acontecido. O filósofo coloca o homem em seu lugar:
é difícil viver somente a verdade e a mentira é necessidade.

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Oscar Wilde que, embora não reconhecidamente um filosofo, filosofava muito e


seriamente, escreveu um texto importante sobre nosso assunto: A decadência da
mentira. É um diálogo travado entre Cyrillo e Viviano ( Oscar Wilde chamou de
Cyrillo e Viviano, na vida real, a seus dois filhos ), na biblioteca de uma cottage, em um
ambiente rural. Em determinado momento do diálogo, Cyrillo pede a Viviano que lhe
leia o final de um artigo que está escrevendo, e este começa, então, a leitura.

O que devemos cumprir, o que está em todo caso constitui o nosso dever, é renovar esta
velha arte da mentira. Os amadores, no aconchego das famílias, nos lanches literários
e nos chás das cinco horas, podem fazer muito pela educação. Mas, aí trata-se apenas
da parte leve e graciosa da mentira, tal como a compreendiam nos jantares de Creta.
Há muitas outras formas. Mentir para uma imediata vantagem pessoal – mentir “com
um intuito moral”, como se diz – era uma coisa muito popular no mundo antigo. Atenas
dá gargalhadas quando Odisseu pronuncia suas “palavras de fino embuste”, segundo
expressão de Mr. William Morris. A glória mentirosa ilumina o herói sem mácula da
tragédia de Eurípedes e coloca entre as nobres mulheres do passado a jovem esposa de
uma das mais saborosas odes de Horácio. Mais tarde, o que a princípio não passava de
um instinto natural tornou-se uma ciência do raciocínio. Foram formuladas leis
concisas para guiar a humanidade e desenvolveu-se uma importante escola literária em
torno desse assunto. Na verdade, quando nos lembramos do excelente tratado filosófico
de Sánchez sobre toda esta questão, devemos lastimar que ninguém haja até hoje
pensado em publicar uma edição resumida e barata das obras desse grande casuísta.
Um pequeno breviário intitulado – Como e quando mentir, redigido de maneira
atraente, pouco custoso, teria uma enorme venda e prestaria notáveis serviços a muitas
pessoas sérias.
Mentir pelo aperfeiçoamento da mocidade é a base de uma educação na família
inglesa; e as vantagens disso acham-se tão admiravelmente expostas no primeiro livro
d´A república de Platão, que julgamos inútil insistir. Há o jeito de mentir para o qual
todas as boas mães sentem particulares disposições, mas que ainda pode ser
incrementado e mais cultivado na escola. Mentir por um salário mensal é fato muito
notório em Fleet Street ( tradicional endereço dos jornais londrinos ), e a posição de
leader político em um jornal tem as suas vantagens; trata-se, porém, de uma ocupação
um pouco estúpida e que nada mais promete além de uma faustosa obscuridade. Mentir
visando o próprio interesse, é a única forma que está acima de toda censura; e o mais
elevado grau desta forma é, como já mostramos, a mentira na arte
...
Enquanto, porém, este dia não chega, cumpre-nos cultivar a arte perdida da mentira!”

Oscar Wilde faz, nestes diálogos, como que uma síntese breve de nosso ponto de
interesse, reafirmando o estatuto, o lugar, de proeminência da mentira na experiência
humana, utilizando, é claro a fina ironia e o cinisno que lhe era peculiar e que resultava
na denúncia da hipocrisia da era vitoriana e da aristocracia britânica.

Súbito. Recebo um telefonema e ao atender ninguém responde. É como se alguém


estivesse em silêncio do outro lado, aguardando que eu diga algo. Depois desta situação
ter se repetido algumas vezes, atendo cansado e irritado e uma voz masculina, ansiosa,
pede que eu confirme meu endereço para uma correspondência. Dou os detalhes, mas
quando pergunto do que se trata, a pessoa desliga. Penso imediatamente no “mentiroso”.

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Retornando. Para concluir esta breve passagem pela “a mentira e a filosofia”, vale
lembrar que as descrições da morte de Sócrates, por exemplo, certamente são
mentirosas. Ele não morreu calma e dignamente, como Platão descreveu. Quem tomava
cicuta morria com dores atrozes e lancinantes. Aliás Platão, alegando uma doença, não
fez parte dos catorze outros discípulos que assistiram a morte do mestre. Ele alegou que
estava doente, o que certamente o livrou de problemas e incômodos com os poderosos
da ocasião...

5.Mentiras amorosas
O amor cega? Roland Barthes considera que não. Ele escreve, em Fragmentos de um
discurso amoroso, que o provérbio que diz que o amor é cego, é falso.O amor arregala
os olhos, ele faz ficar clarividente. Será? Ele continua:

Verdade: Todo o episódio de linguagem ligado à “sensação de verdade” que o sujeito


apaixonado experimenta quando pensa em seu amor, seja porque ele acredita ser o
único a ver o objeto amado “na sua verdade”, seja porque ele define a especialidade de
sua própria exigência como uma verdade sobre a qual não pode fazer concessão.

Se o amor não é cego e sim “clarividente, como sugere Roland Barthes, as mentiras
amorosas são relativas. As mentiras amorosas são, muitas vezes, auto-enganos, formas
pelas quais o sujeito que ama constrói a realidade, não como é exatamente, mas como
gostaria que ela fosse.

Convido o leitor à leitura de um soneto de Florbela Espanca (1894-1930), Mentiras, no


qual a autora, mulher de amores difíceis e frustrados, comenta sobre a mentira e o amor.
Esta alentejana, talvez a mais importante representante da poesia feminina de Portugal,
fala dos “doces enganos” ou dos “necessários enganos” da mentira amorosa... Sofrendo
várias desilusões amorosas e de uma depressão severa, no dia 10 de dezembro de 1930,
Florbela resolve interromper seu sofrimento e é encontrada morta. No chão um copo de
leite pela metade e na cama dois frascos vazios de Veronal, um barbitúrico. Portugal,
teus mares são lágrimas (salgadas), como todas as lágrimas das portuguesas e dos
portugueses, pois, pois...

Mentiras
Aí quem me dera uma feliz mentira
Que fosse uma verdade para mim!
J. Dantas

Tu julgas que eu não sei que tu mentes


Quando o teu doce olhar pousa no meu?
Pois julgas que eu não sei o que tu sentes?
Qual a imagem que alberga o peito meu?

Ai, se o sei, meu amor! Em bem distingo

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O bom sonho da feroz realidade...


Não palpita d´amor, um coração
Que anda vogando em ondas de saudade!

Embora mintas bem, não te acredito;


Perpassa nos teus olhos desleais
O gelo de teu peito de granito...

Mas finjo-me enganada, meu encanto,


Que um engano feliz vale bem mais
Que um desengano que nos custa tanto!

Poucos meses antes de sua morte ela escreve uma carta ao Dr. Guido Battelli,
retomando o tema da mentira, que a perseguia constantemente.

Sou uma céptica que crê em tudo, uma desiludida cheia de ilusões, uma revoltada que
aceita, sorridente, todo o mal da vida, uma indiferente a transbordar de ternura. Grave
e metódica até à mania, atenta a todas as subtilezas dum raciocínio claro e lúcido, não
deixo, no entanto, de ser uma espécie de Don Quixote fêmea a combater moinhos de
vento, quimérica e fantástica, sempre enganada e sempre a pedir novas mentiras à vida,
num don de mim própria que não acaba, que não desfalece, que não cansa !

O psicanalista Wilfred Bion foi sábio quando escreveu que amor sem verdade não passa
de paixão e que a verdade sem amor não passa de crueldade.

A paixão, que tem sua origem etimológica em pathos, e que nos dá também a palavra
“patologia”, é um sentimento narcísico para o qual o “outro verdadeiro” importa menos
que o “outro que eu desejo”. Costuma ser um sentimento “cego”, fugaz, transitório. Não
interessa como o outro é, ele é como eu quero e necessito que ele seja! O outro não
interessa; importa o que eu sinto! O amor verdadeiro, ao contrário da paixão, reconhece
o outro como um ser independente, não idealizado, com vida própria e daí ser mais
duradouro.

Não contando que houvesse a mentira, Florbela Espanca a considerava “abolida” pois,
assim, se livrava da repetida, dolorosa e sofrida rejeição por parte do amante. Esta é
uma das possibilidades das mentiras do amor. O amor idealizado é um amor capaz de se
imaginar amando incondicionalmente e sendo amado por um ser também de forma
incondicional. E aí eu pergunto ao leitor, como entender as canções de amor : seriam
verdades ou mentiras, haveria amor nelas , aquele amor que fez Florbela precisar
construir um mundo poético para viver o que não conseguia em seu mundo real?

Já te respondendo, eu penso que não, que não havia amor real, e sim uma grande
mentira, ou um auto-engano,.... mas a mentira no espaço literário é algo de outra
monta... já que no espaço literário, assim como no espaço do sonho, há verdades que são
mentiras e vice-versa.. na realidade o que há são oxímoros ou paradoxos ou metáforas...
O que havia aqui, no espaço do amor de Florbela, amor cortês, era um amor de fantasia,
para louvar os dotes próprios do poeta, era ele quem deveria aparecer como aquele que
melhor sabia falar de amor e sobre o amar.... era um amor narcísico, algo feito sem
haver a necessidade do outro existir, se lembram?

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Passeando de uma poetiza a outra, de uma mulher a outra, de um tempo a outro, vamos
ler os versos de Martha Medeiros, que nada ficam a dever aos versos de importantes
poetas.

e minto, confesso
me faço de boba, verdade
escondo a idade, me calo
me sinto tão mal, um inferno
represento um papel principal
sou mesmo uma atriz infeliz
quem diz que eu não quero, eu consigo
viver por um triz, enlouqueço
te esqueço e te mato, te amo
atrás de um muro, qualquer
outro dia amanheço, de novo
e falo bobagens, pudera
não sou tão sensata, avisei
sem nada de mais, me despeço
chegou a minha casa cheio de olhares
e poucas palavras
trouxe champanhe, sentou na cadeira
tentou me abraçar

me desculpei:
- hoje não que eu não ensaiei

Fico curioso, como também penso que fica o leitor, sobre a vida do escriturário que
motivou este livro: quais terão sido suas paixões, porque disto ninguém escapa, ainda
que da paixão narcísica, paixão por si mesmo.

Veja leitor, caso estejas só, assopra alguma brasa antiga e dá renovado calor à vida,
criando um novo amor e, assim, vivendo os sonhos... e voe leitor... é possível!

6. Síndrome de Pinóquio

Recebo, pelo correio, um pacote., trazido por um poeta carteiro, que vem de bicicleta. Como eu
sei que o carteiro era poeta e viera de bicicleta, se encontrei o pacote na caixa do correio?
Adivinhe o leitor, se for capaz. Todas as minhas correspondências chegam assim, são “cartas

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roubadas”... e, mais, sempre há um corvo por perto. Descubra. Logo identifico a letra ,
conhecida...Abro e contém um livro, Pinóquio, de C. Colodi, com uma breve dedicatória. Ele
era mesmo o homem do telefonema, como constato.

Dr. José

Espero que o senhor aceite este livro. Certamente a história é sua conhecida. Pois esta é a
minha história. Nenhum relato descreveria melhor os primeiros anos de minha vida.

De seu paciente, ausente, mas que sente verdadeiramente, e para quem a tristeza é sossego.

Alberto Caeiro

Pós-scriptum: tomo a liberdade de lhe enviar um poema “inconjunto”, para sua apreciação,
pois trata de uma tentativa minha de pensar sobre nosso tema. Leia-o, se quiser e tiver tempo.

Verdade, mentira, certeza, incerteza...


Aquele cego ali na estrada também conhece estas palavras.
Estou sentado num degrau alto e tenho as mãos apertadas
Sobre o mais alto dos joelhos cruzados.
Bem: verdade, mentira, certeza, incerteza o que são?
O cego pára na estrada.
Desliguei as mãos de cima do joelho.
Verdade, mentira, certeza, incerteza são as mesmas?
Qualquer coisa mudou numa parte da realidade – os meus joelhos e as minhas mãos.
Qual é a ciência que tem conhecimento para isto?
O cego continua seu caminho e eu não faço mais gestos.
Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual.
Ser real é isto.
Uma gargalhada de raparigas soa do ar da estrada.
Riu do que disse quem não vejo.
Lembro-me que já ouvi.
Mas se me falares agora de uma gargalhada de rapariga na estrada.
Direi: não, os montes, as terras ao sol, o Sol, a casa aqui,
E eu que só oiço o ruído calado do sangue que há na minha vida dos dois lados da cabeça.

Estranho este homem, mas instigante. Alberto Caeiro. Como lidar com ele? Certamente não é
um guardador de rebanhos, mas é como se os guardasse, pois a alma dele parece a de um
pastor...ele nos conduz ao longo do assunto. Espero que o livro que estou escrevendo, com o
pedido e a ajuda dele, lhe seja útil.

Alguém, seguro, já deve ter usado o termo “Síndrome de Pinóquio” para caracterizar o hábito da
mentira. A história deste marionete-menino, que nosso escriba misterioso diz ser como ele, é
muito conhecida por todos nós, certamente, porque, de alguma forma, nos diz respeito; somos
Pinóquio, um pouco mais ou um pouco menos, mas não escapamos da sina deste personagem.

As desventuras e aventuras de Pinóquio, metáforas da vida, tratam da saga de cada um


para se constituir em humano, através do processo de maturação e desenvolvimento.
Nosso personagem tem de fazer um esforço imenso para se tornar “um menino”, deixar
de ser um toco ou um cavaco. Seu pai não lhe acolhe como necessário e lhe falta uma
mãe. Ele se envolve em várias circunstâncias perigosas, condutas anti-sociais e
mentiras. É um esforço, perigoso e insano, para buscar preencher a falta que carrega
dentro de si, de afeto e carinho. Mantém, entretanto, a esperança. A mentira faz parte de
um esforço para se constituir em um menino “comum”.

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Não pense, leitor, que sua história é única, e ela o é em vários aspectos, mas, na
essência, repete a história de todos os outros leitores. É o narcisismo que nos faz
acreditar que nossa dor é a maior de todas, ou nossa história – de Pinóquio – a mais
triste, o nosso destino o mais cruel e o nosso fado o mais pesado .

A Síndrome de Pinóquio, se existe, é esta. Ao aforisma de Descartes “Penso, logo


existo”, esta síndrome sugere “Minto, logo existo”. Mentir para existir?

Sinto uma coceira estranha no nariz, o leitor sente o mesmo?

7. A mentira na medicina, na psiquiatria e na


psicanálise
10 de maio, pela manhã... acalmei-a com uma pequena mentira...
Caso Frau Emmy Von N., Sigmund Freud, 1895

A verdade não pode ser tolerante, não deve admitir nem concessões nem restrições.
Novas conferências sobre psicanálise, Sigmund Freud, 1933

Peço desculpas ao leitor se este capítulo ficar demasiado longo, tirando seu tempo de
atividades mais prazeirosas, como assistir ao futebol, uma novela ou a um reality show,
mas acontece, como já lhe informei, que agora estou no meu piquete; e, como é sabido,
touro é touro no seu próprio piquete, em outro piquete pode virar boi... nos outros
capítulos passo de relancina... neste, me demoro, pois sou médico, psiquiatra e
psicanalista, como já sabes.

Os médicos enfrentaram, desde a antiguidade, a oposição entre verdade e falso, entre o


subjetivamente concebido e o objetivamente percebido. No campo das doenças mentais,
esta artificial dicotomia – verdade ou mentira – é muito importante. A doença mental é
muito subjetiva em suas manifestações e difícil de avaliar objetivamente. As primeiras
preocupações dos médicos, dizem diversos autores, se encaminharam, neste campo,
para o simulador.

Mark Mills e Mark Lipian escrevendo sobre este tema, consideram que uma das
primeiras descrições da loucura fictícia aparece na Bíblia. Referem a história da fuga de
David, que se afastando de Saul, foi até Aquis, rei de Gate. Temeroso, David fez-se de
doido... e esgravatava nas portas do portal, e deixava correr a saliva pela barba.
Então disse Aquis a seus criados: ´Eis que bem vedes que este homem está louco; por
que o trouxestes a mim? .

A simulação, para obter vantagens ou fugir de determinados compromissos através de


doenças “físicas” ou “mentais”, é muito antiga. Na Grécia clássica a simulação de
doenças para evitar o serviço militar era punida com a morte e, mais tarde, esta punição
foi abrandada pela execração pública do simulador, em trajes femininos espalhafatosos.
Os autores citados antes descrevem como Ulysses simulou insanidade para evitar
servir na Guerra de Tróia, empregando táticas como jungir no arado um touro e um
cavalo, arar a praia, e semear sal ao invés de sementes. Em uma das primeiras

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tentativas de detectar a mentira, o filho menor do rei de Ítaca foi colocado no sulco,
diretamente na linha do arado de Ulisses; se o homem estivesse louco, era o raciocínio
deles, então ele não perceberia o obstáculo. Ulisses desviou o arado para não ferir seu
filho, e tal ação foi considerada prova de que sua loucura era uma artimanha... Estes
autores contam, também, que no século II, Galeno escreveu o Tratado sobre doenças
fictícias e sua detecção, no qual relatava as mutilações a que se submetiam os soldados
de Roma para escapar das guerras. Eu mesmo, confesso, que quando menino e tinha
uma prova difícil, sentia uma dor na perna, forte e tentava não ir para a escola. Nunca
tentei, porém, passar uma cebola no suvaco para simular uma “febre”, como o
Almanaque do Tico-Tico me permitira saber.

Assim, leitor, desde há muito estas questões preocupam os médicos... Como você,
também notou que preocupavam os filósofos, os literatos, os contadores de estórias.....

Tudo começa em casa: a história de um bebê

O bebê vive em um estado de narcisismo e sob o princípio do prazer, em que ele não
reconhece o mundo como uma realidade externa, independente dele: o mundo todo, a
mãe, faz parte da realidade interna do infans (“o que não fala”). Um trovão e uma cólica
são a mesma coisa para ele. Com o desenvolvimento e o processo maturacional , o bebê
vai, progressivamente, tomando contato com o princípio de realidade . Este princípio
de realidade é, de certa maneira, vivido como algo “cruel” pela criança: ela não é mais
o “centro” do mundo, existem outras pessoas com desejo e vontade próprias, o
“universo” não depende dele, coisas acontecem à sua revelia, ele descobre que depende
da mãe e depois de outros, como o pai, e o mundo real vai se impondo
progressivamente.... Embora a mãe, de certa forma, proteja o bebê deste “mundo real”,
ela, ao mesmo tempo, vai contribuindo para que esta realidade se apresente ao seu filho,
na medida da capacidade dele de ir suportando esta realidade. Evidentemente ela não
deve ser uma “mãe má”, mas da mesma forma não deve ser uma “mãe demasiadamente
boa”; deve ser “apenas suficientemente boa”, como escreveu Donald Winnicott, aquele
mesmo pediatra e psicanalista inglês que já nos ajudou antes a entender algumas coisas
sobre a mentira, se lembra, leitor?. Assim, ela irá “falhar” e apresentar o mundo para o
filho na medida certa, aos poucos, progressivamente, conforme sua intuição a conduz
neste processo. Donald Winnicott fala do paradoxo que a mãe de uma criança pequena
vivencia – proteger do mundo e ao mesmo tempo apresentar o mundo – referindo que
nestas circunstâncias a mãe “adoece sadiamente”. Ele chamou a estes processos de
ilusão e desilusão, e o estado psíquico da mãe de preocupação materna primária.

O bebê começa a ensaiar seus primeiros passos, adquire uma maior autonomia e inicia,
progressivamente, a tomar contato com a realidade. A dependência em relação à mãe é
menor e seu universo se amplia A capacidade de criar a fantasia é um artifício que a
criança utiliza para compensar as agruras, tanto de seu mundo interno como da realidade
externa. Ao usar a fantasia, o bebê “brinca”, um brincar criativo com estes dois espaços
– interno/psíquico e externo/real –, desenvolvendo a criatividade e a espontaneidade.
Paulatinamente, a possibilidade de discriminar entre fantasia e realidade vai se
estabelecendo. O uso da fantasia está, indissoluvelmente, nesta concepção, ligado ao
desenvolvimento. Trata-se da fantasia de uma criança, de um adolescente, de um adulto
ou de um idoso? A capacidade de criar a fantasia é uma aquisição para todo o
transcorrer da vida. Evidentemente, como tudo na vida, e como estava escrito no

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Templo de Apolo, em Delfos, na antiga Grécia, nada em excesso!. O marquês de Sade,


entretanto, com seu humor exagerado, escreveu o contrário: Tudo é bom quando é
excessivo. Afinal, quem terá razão, em sua opinião leitor: o sábio grego de outrora ou o
aristocrata do prazer desmedido?

A mentira na infância. Duas mentiras contadas por crianças e relatadas por Freud

A avó de Juliana, uma menina de dois anos, me relatou, orgulhosa, que a neta lhe
contara uma história. Era a história do “Chapéuzinho Vermelho”, em que, lá pelas
tantas, a menina dizia que Chapéuzinho Vermelho tinha ido passear com seus pais e
suas duas irmãs. Ora, na história, o Chapéuzinho não passeia com os pais e tampouco
tem duas irmãs. Mas quem tem pais e duas irmãs é a própria Juliana. Não havia,
entretanto, nenhuma mentira. Acontece que, nesta idade ( o leitor já sabe disso... ),
fantasia e realidade com freqüência se misturam. Mas também pode, nesta etapa
evolutiva, começar a aparecer as mentiras propriamente ditas, coisas normais... A
primeira experiência de privacidade., me disse Marilia Ayres, poderá ser quando a
criança mente para a mãe, pela primeira vez, e esta acredita. A criança tem algo só seu,
uma mentira, algo que só ela sabe, o que lhe dá gozo e alegria .

As mentiras costumam preocupar os pais e é necessário tentar saber da idade da criança


e do “tipo” de mentira contada, para que possamos saber o que fazer; o que poderá ser
simplesmente aguardar e ficar observando.

Nas crianças pequenas as “mentiras” poderão representar “vivacidade de sua


imaginação” , como sugere Susan Isaacs, significando tanto sua dificuldade em
distinguir entre fantasia e realidade como um prazeirozo jogo de simulação. Neste caso
o próprio desenvolvimento resolverá a situação, mas os pais poderão, com senso de
humor, fazer perguntas como – “É verdade?” ou “Não me digas!” – deixando claro que
percebem a “mentira” como uma brincadeira.

As crianças maiores usam a mentira, por exemplo, para defender-se de algo errado que
julgam ter feito ou para exibir-se. Quando a mentira está ligada ao medo, os adultos
devem refletir se não estão sendo demasiado severos. O reasseguramento da confiança e
o carinho que os pais possam demonstrar na ocasião, poderão evitar que, em outros
momentos, a criança se torne mais hábil na mentira, criando um “círculo vicioso”. Um
ato “errado” – a mentira – o medo – a punição – outro ato errado – uma mentira maior, e
assim por diante, numa espiral crescente de inverdades. Quando a mentira está ligada ao
querer parecer importante ou gabolice, talvez estejamos frente à baixa auto-estima e a
inibições. A criança trata de parecer, mentindo para tanto, o que não é ou o que julga
que não é. Talvez falte estímulos positivos ou elogios por parte dos pais e professores e
a criança ouça demasiadamente críticas e repreensões.

Susan Isaacs considera que em qualquer criança, mentir, habitual ou freqüentemente, é


uma indicação segura de que seu ambiente e as relações com seus pais necessitam ser
considerados.

Sigmund Freud dedicou-se, em muitos momentos de sua monumental obra, ao problema


da mentira. Encontramos, por exemplo, nos seus estudos sobre os “atos falhos”,
referências variadas ao tema e como, por vezes, as “mentiras” são “denunciadas” por
estes “atos falhos”.

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É, entretanto, em seu trabalho Duas mentiras contadas por crianças (1913), que
Sigmund Freud nos auxilia na compreensão psicanalítica desta manifestação da psique
na infância, suas motivações inconscientes e suas repercussões na vida adulta.

Vejamos a primeira situação.

Freud escreve que uma menina de sete anos, no segundo ano de escola, pediu dinheiro
ao pai, pois queria comprar tintas para pintar ovos de páscoa. O pai disse que não tinha
o dinheiro. Quando a princesa reinante morreu, algum tempo depois, a menina pediu ao
pai dinheiro para, junto com os colegas, comprarem uma coroa para o funeral. O pai
deu-lhe algum dinheiro e ela usou parte dele para a compra da coroa de flores. Ela
deixou o troco na escrivaninha do pai, mas guardou algum dinheiro, escondido, para
comprar as tais tintas para pintar os ovos de páscoa. O pai percebeu a falta de parte do
dinheiro e no jantar, ligando os fatos, perguntou à menina se o dinheiro que faltava ela
não havia gasto com as tintas para pintar os ovos... O irmão, dois anos mais velho, a
denunciou e as tintas foram encontradas escondidas em um armário. O pai, raivoso,
entregou a “criminosa” para a mãe, para que esta a castigasse. O castigo foi muito
severo. A mãe, entretanto, algum tempo depois, ficou com pena da filha, pois viu o
desespero da criança. A acariciou, pediu desculpas e a levou para passear. Já adulta, esta
criança, comentou que o episódio foi “o ponto decisivo em sua vida”. Ela passara de
uma criança alegre e segura para tornar-se tímida e acanhada. Anos depois, quando
começou os preparativos para seu casamento, a mãe tomou a si o encargo de fazer as
compras do enxoval. Este fato a deixava com muita raiva; reclamava que era o dinheiro
“dela” e que ninguém devia gasta-lo. Logo após o casamento não queria pedir dinheiro
ao esposo, não apenas para suas despesas pessoais como para as da casa e fez uma
distinção entre o “dinheiro dela” e o “dinheiro dele”. Quando iniciou o tratamento
psicanalítico, acontecia que o marido, que estava trabalhando em outra cidade, atrasasse
as remessas de dinheiro. Quando ela relatou isto para Freud, ele se ofereceu para lhe
emprestar o dinheiro – uma pequena quantia - caso ocorresse novamente o atraso.
Quando a situação se repetiu ela empenhou suas jóias e recusou o dinheiro que Freud
lhe oferecera. Disse que não queria receber dinheiro de ninguém, nem dele.

Ter surrupiado a pequena quantia na infância e o que se sucedeu a seguir, fora muito
além do que os pais poderiam ter imaginado. Novos fatos vieram à tona.
Antes de começar a ir à escola houvera outro fato envolvendo dinheiro. Um vizinho a
mandara com seu filho, ainda amais moço do que ela, para fazer uma determinada
compra em uma loja. Como mais velha coubera a ela trazer o troco. Encontrando um
empregado do vizinho no retorno e jogou o dinheiro na calçada. Ao analisar este
estranho comportamento associou com a história de Judas, que jogara os trinta dinheiros
de prata, que recebera por trair Jesus. Estava segura de que nesta idade já conhecia os
fatos da história da Paixão; mas por que se identificar com um personagem como Judas?
Recorda que, em torno de três anos e meio, sua babá, por quem tinha muito afeto, a
levava para visitar a clínica de um médico, com quem a babá tinha um affaire amoroso.
A paciente crê que assistiu, na ocasião, a vários atos sexuais. Ela não tinha certeza de
que o médico desse dinheiro em troca dos favores sexuais para a babá, mas esta dava
algumas moedas para “comprar” o silêncio da criança. Com estas moedas ela comprava
algumas guloseimas.. É possível que o próprio médico desse dinheiro para a menina. A
criança, entretanto, talvez por ciúmes, “traiu” a babá e contou tudo à mãe. Brincou de

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maneira tão manifesta com as moedas que a mãe insistiu em saber onde ela as havia
conseguido e a menina revelou a história toda. A babá foi despedida.
Receber dinheiro de alguém veio significar para ela “uma relação física, uma relação
erótica”, registrou Freud. Roubar do pai representava uma manifestação amorosa. “A
fantasia de que o pai era seu amante era tão sedutora que, com seu auxílio, seu desejo
pueril de tintas para os ovos de Páscoa, facilmente pôs-se em ação, apesar da
proibição. Ela não podia admitir, contudo, que se havia apropriado do dinheiro; foi
obrigado a nega-lo, porque seu motivo para o feito, inconsciente para ela própria, não
podia ser admitido”, considerou Freud. A reprimenda praticada pelo pai foi sentida
como uma rejeição da ternura que ela lha dedicava e vivida como uma humilhação.
Freud no transcorrer do tratamento desta criança, agora uma mulher adulta sofrendo de
uma grave depressão diz que em certa ocasião fui obrigado a reproduzir a humilhação
ao pedir-lhe para não me trazer mais flores...

Freud conclui esta descrição explicando que temos nesta hitsória clínica um daqueles
casos extremamente comuns em que o erotismo anal primitivo persiste na vida erótica
posterior. Mesmo o desejo de pintar ovos com tinta derivava da mesma fonte.

Ao relatar este caso de mentira, Sigmund Freud nos revela os intrincados meandros da
atividade inconsciente e dos conflitos psíquicos. A repercussão na vida adulta das
experiências infantis também é reafirmada, especialmente as vivências edípicas. Não se
assuste, leitor, com a afirmativa, feita ao final, em que o autor relaciona as questões de
dinheiro com elementos da fase anal, especialmente as fezes; tenha paciência, pois tal
afirmativa tem sentido... no meu livro Conhece-te a ti mesmo, , que lhe recomendo
sem constrangimento, porque tenho muito gosto por este livro, abordo com detalhes
estes elementos. Um autor gosta mais de alguns livros que escreveu do que de outros e
costuma ter um preferido; é como a mãe ou o pai, que tem mais identidade com algum
filho, mas mente que gosta de todos igualmente.

A situação seguinte, a “segunda mentira”, também é elucidativa . Novamente Freud


articula as vivências infantis traumáticas com os eventos posteriores da vida adulta, com
as situações conflitivas e suas expressões sintomatológicas.

Ele descreve uma mulher que fora uma moça capaz, amante da verdade, séria e
virtuosa e que tornou-se uma esposa afetuosa. Ela adoecera gravemente em função de
uma frustração. Vejamos sua história na infância. Ela havia sido uma criança irritadiça e
cheia de vontades, mas com o tempo se tornara uma menina boa e conscienciosa.
Acontecia, por vezes, que adoecia e não podia ir à escola. Era, então, tomada por graves
auto-acusações. Ela lembrou, durante o tratamento psicanalítico, que na infância
acontecera de se gabar com mentiras. Ela lembra de algumas destas mentiras.
Um dia, a caminho da escola, quando criança, encontrou um colega que, se exibindo,
disse para a paciente: “Ontem tivemos gelo no jantar!”, referindo-se a “glacê” como era
comum na época em Viena, e ela prontamente replicou. “Ora, nós temos gelo todos os
dias!”. Ela não sabia o que significava “gelo no jantar”, só conhecia gelo em blocos
para transporte, mas não aceitou “ser menos” que o colega e presumindo algo
grandioso, inventou uma mentira. Mais tarde, ao descobrir sua gafe, sua tolice,
desenvolveu auto-acusações, estas reminicências passaram a lhe vir obsessivamente à
cabeça e desenvolveu um medo patológico de estilhaços ou fragmentos de vidro..
A paciente lembrou, também, alguns anos mais tarde, aos dez anos, de uma outra
mentira. Os alunos receberam a incumbência de desenhar um círculo à mão livre. Ela,

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porém, utilizou um compasso para fazer o círculo. O círculo, é claro, ficou “perfeito” e
ela se exibiu para os colegas. A professora percebeu o truque e a interrogou. Ela negou a
fraude, ficou calada e emburrada. A professora conversou com o pai da menina e
resolveram não levar a situação adiante, pois ela costumava ser sempre “uma boa
menina”. O pai era desenhista e mostrava suas habilidades aos filhos. Uma exagerada
identificação com o pai a levou a querer fazer o melhor círculo da aula! Mesmo que
tivesse de fazer alguma burla ou usar métodos fraudulentos. Era muito grande sua
vontade de ser igual e agradar ao pai.
Freud considerou que estas duas mentiras tinham a mesma origem. Como era a mais
velha de cinco irmãos, ela desenvolveu desde cedo uma intensa ligação com o pai, o
que a levou, na vida adulta, a apresentar sérias dificuldades. Ela cedo, entretanto,
descobriu que o idealizado pai não era o personagem grandioso e perfeito que ela
construíra na infância. O pai tinha dificuldades financeiras e não era tão poderoso e
íntegro como ela fantasiara.. Era, infelizmente, muito difícil romper com a idealização.
Freud escreveu, refletindo uma visão própria da época: “Mas ela não podia suportar
este afastamento de seu ideal. Visto que, como fazem as mulheres, ela baseara toda a
sua ambição no homem que amava, tornou-se intensamente dominada pelo motivo de
apoiar seu pai contra o mundo”.

Sigmund Freud considerava a situação edípica como a “pedra angular” das neuroses. O
leitor poderá suspeitar que o criador da psicanálise ficava demasiadamente preso às
questões sexuais e, particularmente, ao complexo de Édipo. A experiência clínica e a
observação de crianças nos leva, entretanto, a perceber estes aspectos no
desenvolvimento normal. e nas vicissitudes eventuais. Espero que estas duas mentiras
de crianças, relatadas por Sigmund Freud, contribuam para o nosso esforço em entender
um pouco mais sobre a “mentira”. Se non é vero, é bene trovato.

O criador da psicanálise fez algumas considerações sobre estas mentiras: “Seria sério
equívoco interpretar más ações infantis como estas como prognóstico de
desenvolvimento de um mau caráter. Não obstante, elas se acham intimamente
vinculadas às forças motivadoras mais poderosas nas mentes das crianças e anunciam
disposições que levarão a contingências posteriores em suas vidas ou futuras
neuroses”,

A Mentira, em excesso, sob certo aspecto, pode ser considerada como uma perturbação
da capacidade de criar e utilizar a fantasia. Podemos nos referir a dois grandes tipos de
Mentira. A Mentira contada aos outros, se caracteriza por inter-subjetividade e
intencionalidade, um “mentiroso” e um “crédulo”, e a Mentira para si mesmo,
habitualmente inconsciente e chamada, por vezes de auto-engano.

Cristopher Bollas escreve, em seu livro A sombra do objeto , um capítulo sobre O


mentiroso. Ele relata uma história clínica que quero compartilhar com quem me lê.

A história, em linhas gerais, é a seguinte. Peço ao leitor que me acompanhe.


Ch. Bollas dá, sei lá porque causas d´água, o nome de Jonathan ao mentiroso. Como
fazem os psicanalistas ela trata de mudar os dados, tanto quanto o possível, para
preservar a identidade do paciente. O paciente era costumeiro em contar mentiras como
a que segue. Um dia ele se atrasa para o trabalho devido a ter ficado discutindo com a

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mulher. Quando o patrão lhe pergunta por que chegara tarde, Jonathan diz que ele
dificilmente acreditará no que lhe acontecera. Ao sair de casa pela manhã, bem cedo
para não chegar tarde ao escritório, um carro de polícia o fez para no acostamento. Logo
várias outras viaturas policiais chegaram e ele foi cercado. Os policiais, em grande
número, o prenderam, sem justificar tamanho aparato e violência. Ela ficara indignado e
surpreso. Foi preso, algemado, colocado em uma viatura e, sem dizer nada, os policiais
o levaram para uma delegacia e o deixaram incomunicável em uma cela solitária.
Jonathan sentiu que estava lá há muito tempo, mas talvez, na realidade, em torno de
uma hora, quando chegou um detetive, educado e elegantemente vestido. Este lhe pede
desculpas pelo ocorrido, diz ter acontecido um engano. E que ele estava livre. Jonathan
conta para seu analista que mal podia crer que seu chefe tivesse acreditado em tal
história! “Essa história é como um filme de ladrões e policiais vulgares, ou uma versão
de Kafka sobre as pessoas desfavorecidas. Não sei porque disse isso. Poderia,
facilmente, ter dito que meu pneu havia furado. Mas, em vez disso, preferi contar essa
história incrível. E o pobre coitado acreditou em mim. Veja você, sempre que eu quiser
fazer isso e escapar impunemente não terei qualquer problema. O que é a realidade se
posso agir assim? Não preciso me preocupar com o que não gosto”.

Ch. Bollas se interroga, o que é uma questão presente, na psiquiatria forense, sobre a
mentira.

É essa a função da mentira de um mentiroso psicopata, negar a realidade? Se o


psicopata, que mente tão freqüentemente quanto fala a verdade, se não for mais, e usa
de uma sanidade evidente em sua relação com a mentira, qual é a loucura de seu
procedimento? Onde se encontra a loucura? No conteúdo da loucura? Na relação do
mentiroso com a sua mentira como um objeto? Na relação do mentiroso com o outro,
para o qual ele conta sua mentira?
Em Jonathan, nós, psicanalistas, nos defrontamos, como fazemos com aquele mentiroso
psicopata, com algo parecido com um dilema irônico. Como a mentira do mentiroso é
uma expressão de sua realidade psíquica, torna-se, então, uma articulação daquela
verdade que valorizamos tanto. Jonathan certamente mentiu sobre o que aconteceu com
ele na realidade, mas será que mentiu sobre sua realidade psíquica? Sabendo que
estava atrasado para o trabalho porque sua mulher o ameaçara de abandoná-lo, sua
mentira expressa parte do medo que sentiu com o que ela disse. A ameaça poderia fazer
surgir nele um impulso para matá-la, mantendo, dessa forma, a posse das crianças, um
pensamento que lhe tinha ocorrido em inúmeras ocasiões. Ele poderia ser preso e
julgado por assassinato. Mas, na mentira, ele se liberta. Sua inocência é estabelecida.
Nada aconteceu. É bem provável que o detetive, elegantemente vestido, , que o libertou
de sua possível prisão possa ser uma personificação de uma percepção transferencial,
uma vez que, freqüentemente me considerou como alguém que, firmemente situado na
realidade, possa ser capaz de liberta-lo de sua loucura”.

Existem indivíduos que, por circunstâncias variadas, têm dificuldades de simbolizar e


poder expressar suas dificuldades internas através da palavra (ou da criatividade). Esta
incapacidade de lidar com seus conflitos dentro de seu espaço psíquico (realidade
interna) faz com que eles os exteriorizem, através do mecanismo de defesa que
chamamos “projeção”, para a realidade externa, para o mundo “real”. São pessoas que
atuam na vida real os impulsos, fantasias e conflitos com os quais não conseguem
sonhar. Transformam suas vidas nos seus sonhos não sonhados, fazendo dos outros
protagonistas e testemunhas de seus problemas. Platão escreveu, significativamente, que

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os bons sonham o que os maus praticam... Shakespeare, em A tempestade, colocou na


boca de Horácio que somos feitos da mesma matéria dos sonhos. Muitas mentiras são
assim construídas: desejos frustrados são “realizados” através da mentira; paixões
contrariadas têm um “desenlace” feliz através da mentira; necessidades de afeto e
atenção são “preenchidas” por mentiras; desejos de consumo são “efetivados” por
mentiras. A mentira, dessa maneira, pode ser entendida, sob um ângulo determinado,
como algo parecido a um sonho vivenciado na realidade como uma “realidade”. Como
os sonhos, as mentiras poderão ser tentativas de realização de desejos, mais ou menos
conscientes. E não podemos esquecer que temos um consciente e um inconsciente e
que este último, muitas vezes, determina nossas condutas.

Mentira e deprivação

Acredito que podemos começar a pensar sobre a mentira das crianças que mentem e
transtornam com suas mentiras o meio no qual vivem ou estão, ou de qualquer pessoa, a
partir de um fragmento literário de Clarice Lispector, escrito em A descoberta do
mundo.Em sua reflexão, essa escritora relaciona a mentira com o pensar. Vejamos:

“O pior de mentir é que cria falsa verdade. (Não, não é tão óbvio como
parece, não é truísmo; sei que estou dizendo uma coisa e que apenas não sei
dizê-la do modo certo, aliás, o que me irrita é que tudo tem de ser "do
modo certo”, imposição muito limitadora.) O que é mesmo que eu estava
tentando pensar? Talvez isso: se a mentira fosse apenas a negação da
verdade, então este seria um dos modos (negativos) de dizer a verdade. Mas
a mentira pior é a mentira "criadora".

Recordo-me de uma adolescente que havia perdido a mãe quando era uma criança muito
pequena e cuja história de vida poderá nos ajudar a compreender melhor a Mentira,
desde o ponto de vista do mundo psíquico . Após a morte materna ela “passou” por
várias casas de parentes, pois o pai trabalhava em um local distante e não podia ficar
com a filha. Ela, que vivia de uma para outra casa de parentes, um tempo com cada
família, não tinha, assim, a possibilidade de construir vínculos emocionais, confiáveis,
estáveis e duradouros; ao contrário, quando recém os vínculos começavam a se
estabelecer eram rompidos e ela passava a conviver com outra família . Sua vida
transcorria sem problemas outros, senão os que resultavam de suas mentiras, cada vez
mais astuciosas mas que, invariavelmente, acabavam sendo descobertas e ocasionando
grandes transtornos. Ela sentia muita “vergonha” quando era “descoberta” e sofria
muito com isso: mas não conseguia deixar de mentir compulsivamente. Mentir, dizia
ela, era “parte de sua vida” e quando mentia não lhe parecia estar inventando algo ou
fantasiando situações, mas sim falando de fatos e situações reais. Ela não tirava nenhum
proveito “material” de seu “festival” de mentiras e suas ficções eram, principalmente,
de encontros com pessoas importantes e interessantes, descrições de férias ou passeios
por lugares turísticos e da moda onde encontrava gente famosa e interessante, contava
de presentes especiais que recebera de alguém, uma conversa que tivera com algum
artista de televisão ou teatro, um convite que recebera para alguma ocasião especial,
relato de histórias familiares “fictícias, enfim situações onde, predominantemente,
procurava mostrar “familiaridade” com pessoas e situações que considerava “especiais”.
As mentiras eram contrapontos à sua vida solitária, monótona e desinteressante.

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O que acontecia com esta jovem? Por que mentia? Vejamos, na prática, o que acima já
expliquei a você, entendido leitor nessas artimanhas da mentira...

A Mentira estava associada à deprivação. Na privação a criança nunca gozou de


nenhum cuidado parental, ou se teve foi muito pouco. Nestes casos temos patologias
severas, como alguns tipos de psicose. Na deprivação houve um certo cuidado, do qual
a pessoa tem um registro inconsciente. O cuidado, neste caso, foi perdido (morte ou
depressão da mãe, abandono por parte do pai, enfim situações que criam uma solução de
continuidade, uma interrupção, na atenção que a criança necessita) e a mentira, ou num
sentido mais amplo a tendência anti-social, se faz presente: é como uma reinvidicação,
feita ainda com esperança, de resgatar o cuidado que foi interrompido.

Nossa identidade existe a partir de um tripé, constituído por referências temporais,


espaciais e emocionais. Ao longo de nosso desenvolvimento, especialmente nos anos da
infância e na adolescência, esta identidade, quem nós somos e como nos percebemos, se
constrói estabelecendo uma continuidade, como uma “linha”, ligando nossas
experiências emocionais. Quando alguém sofre demasiadas e intensas experiência
traumáticas esta “ linha” de continuidade da identidade sofre “fraturas” e interrupções”.
Para seguir adiante e manter o “sentimento de continuidade” de sua identidade o
indivíduo necessita “obturar” ou “preencher” estas interrupções com sintomas, desde
fantasias e mentiras até alucinações e delírios. Com os velhos esta situação poderá ser
melhor entendida: eles preenchem as lacunas de memória, devidas ao processo
degenerativo do tecido cerebral causadas pela idade, com fantasias e confabulações. A
moça do exemplo “reconstituía” sua história sofrida, incluindo fatos que davam uma
outra conotação às suas experiência: substituía a dor e o sofrimento vividos por mentiras
glamourosas e interessantes. Ela, como o poeta “fingidor” do Fernando Pessoa, mentia
para si mesma de tal forma que conferia um novo status à mentira: ela passava, mais ou
menos conscientemente, a “viver as mentiras”, como parte integrante e necessária da
vida. Obtinha, assim, atenção e reconhecimento com suas “estórias”... até tudo ser
“descoberto”, novas experiências traumáticas e novas mentiras tornavam-se, então,
necessárias e criava-se um círculo vicioso.

Vejamos o que David E. Zimerman, em seu livro sobre o psicanalista inglês Wilfred.
Bion, escreve:

Mentira: é o oposto da verdade e não é a mesma coisa que falsidade. Ela implica em
uma certa intencionalidade, sendo que, em algum grau, todos somos mentirosos.

E, ainda, aprofunda o autor, ao escrever sobre a falsidade e a mentira...

...se processa no plano do inconsciente e, por isso, configura um processo de


falsificação da verdade, a qual é diferente da mentira, porquanto nesta última
predomina uma deliberação consciente, ou pré-consciente, de fazer uma distorção da
verdade

O autor lembra que Wilfred Bion, oficial inglês na guerra de 1914-1918, comandante
de tanques, condecorado com uma destas “rosas púrpuras”, depois médico, psiquiatra e
psicanalista, paysano de muito saber, tinha dúvidas se seria possível psicanalisar os
mentirosos.

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Será que por sermos todos, de certa maneira, mentirosos – mentimos para os outros e
para nós mesmos – que a psicanálise foi descrita por Sigmund Freud, seu criador como
uma “profissão impossível”? Não, a Mentira, sendo elemento da natureza e da condição
humana é objeto da psicanálise e não um impedimento. Nossa história “pessoal” é uma
sucessão de mentiras e não resulta de uma factual e verdadeira sucessão de fatos,
concorda leitor?

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Patologia da mentira

Existem duas condições psicopatológicas que eu gostaria de compartir com o leitor com
relação à mentira: a mitomania e a Síndrome de Münchausen.

A mitomania é uma condição extrema na qual a pessoa vive freqüentemente envolvida


na mentira. O Dicionário de psicologia e psicanálise, de Álvaro Cabral, estabelece a
seguinte definição:

Mitomania. Tendência mais acentuada nos estados psicopatológicos, para criar e


relatar extraordinários eventos imaginados como acontecimentos reais da vida
consciente.

A classificações psiquiátricas modernas definem como transtornos factícios as


condições que estamos considerando. Vejamos o que registra o Tratado de
psiquiatria, de John Talbott e colaboradores:

Os transtornos fictícios são caracterizados pelo fingimento consciente, deliberado e


sub-repitício de sintomas físicos ou psicológicos para simular doenças... O único
objetivo evidente em tal comportamento é a obtenção do papel de paciente: esta
motivação contrasta com a simulação, na qual o objetivo é claramente identificável, tal
como dinheiro, incapacidade ou alívio de responsabilidades profissionais ou militares.

Uma das formas de transtorno fictício é a Síndrome de Munchausen. A denominação


desta condição clínica é uma “homenagem” ao Barão de Munchausen, famoso por suas
“estórias” inverossímeis. Um livro com suas mentiras, A narrativa do Barão de
Munchausen de suas maravilhosas viagens e campanhas na Rússia, foi escrito por
Rudolf Raspe, em 1784. O Barão costumava viajar de uma para outra cidade contando
mentiras sobre suas experiências militares como oficial de cavalaria .

A expressão Síndrome de Munchausen foi introduzida na psiquiatria por Asher, em


1951. Os portadores desta patologia se caracterizam por mentiras patológicas, viajando
de uma cidade para outra, buscando hospitais e fingindo doenças. Freqüentemente são
submetidos a investigações diagnósticas invasivas e, mesmo, a cirurgias. Uma outra
forma desta doença é a Síndrome de Munchausen por Procuração, na qual os pais
mentem e descrevem sintomas que seus filhos apresentariam e os levam para o hospital,
em busca de “tratamento”. Estes indivíduos, evidentemente, apresentam patologias
psiquiátricas importantes, dentre as quais estruturas fronteiriças (borderline), situadas
entre a neurose e a psicose.

Bryan Forsyth nos relata um caso, atendido por ele, desta Síndrome de Munchausem
por Procuração. Ele descreve a seguinte situação.

A paciente era uma menina de 10 anos, internada pela quarta vez, num período de três
meses. Todas as internações eram decorrentes de um inchaço e uma inflamação
periorbital unilateral. A menina era tratada com antibióticos intravenosos porque sua
situação não melhorava. Seu problema, para surpresa dos médicos, melhorava e, de

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repente, piorava. A equipe estava confusa e era difícil entender o que se passava. A
menina já apresentava, inclusive, úlceras na córnea. A situação era difícil de ser
entendida clínica e laboratorialmente. Os médicos começaram a desconfiar da situação e
uma medida de “ph” do líquido conjuntival mostrou que um olho tinha um ph mais
alcalino do que o outro, o que não deve acontecer. Suspeitou-se de Síndrome de
Munchausem por Procuração.

Esta menina era irmã de um menino de três anos de idade, que havia sofrido de
meningite logo após o nascimento e desenvolvido crises de apnéia aos oito meses de
idade. Ele passou a ser monitorado em casa e aos onze meses começou a ter convulsões.
A menina também havia sofrido de apnéia com oito semanas de idade e também foi
monitorada em casa. A situação das duas crianças tinha algumas semelhanças. A
menina apresentou três crises de apnéia no hospital e nas três situações a mãe estava
sozinha com ela. Quando a equipe chegava ela estava, de fato, cianosada e com a
respiração alterada. Um registro armazenado na memória do monitor de apnéia mostrou
que antes das crises o monitor fora desligado por cerca de dois minutos e depois
religado. Não havia nenhum problema com o aparelho e a mãe era a única pessoa
presente; a charada estava resolvida. A mãe negou qualquer participação nos episódios e
ficou muito perturbada. O marido e familiares não acreditavam que a mãe estivesse
envolvida nos episódios, mas concordaram em receber ajuda especializada “ para o
caso de ser verdade”. Com o trabalho da equipe com a mãe e a família, esta terminou
por confessar sua atitude com os filhos.

O autor fez o seguinte comentário sobre este atendimento, relato das mentiras de uma
mãe, que quase levou a criança à morte.

Neste caso, a mãe apresentou muitas das características descritas em casos de


Síndrome de Munchausem por Procuração. Ela havia sido vítima de abuso quando
criança, seus pais divorciaram-se e ela teve pouco contato com o pai.

Os pais que negligenciam, maltratam ou abusam de seus filhos foram, quase que
invariavelmente, crianças que experienciaram, por parte de seus pais, os mesmos tipos
de sofrimento. Ao promoverem com seus filhos o que sofreram na infância, anulam,
magicamente, estes sofrimentos, passando a ser, agora, não crianças que sofrem, mas
adultos que fazem sofrer. Este é o mecanismo de defesa do aparelho psíquico que Anna
Freud chamou de Identificação com o Agressor.

Se o leitor tiver tempo busque meu livro Conhece-te a ti mesmo, , no qual detalho
mais extensamente sobre estes quadros clínicos.

Os fatores que levam alguém a esta condição são muito variados, mas a necessidade de
atenção e cuidados, condições que talvez faltaram a estes indivíduos na infância, estão
entre as motivações principais. Ir ao médico, receber atenção e cuidados, é (e na
medicina e no amor nunca devemos dizer jamais ou toujours) uma tentativa de
compensar uma infância onde as tarefas parentais foram insuficientes.

O mitômano ou o patomínico

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Um trabalho publicado pelo médico Georges Dieulafoy (1839-1911), em Paris, no ano


de 1911, sob o título Patomimie- Histoire d´un pathomime, ilustra a história de um
mitômano, que se tornou um caso clínico clássico da psiquiatria. Acompanhe, leitor,
esta incrível história e veja até onde pode chegar a mentira patológica. Este material não
fica muito a dever a um tema de mistério de Edgar Alan Poe ou a uma investigação de
nossos conhecidos Sherlock Holmes e inspetor Poirot...

O texto, em que pese a presença de muitos termos médicos, possui um style “literário”,
o que torna a leitura interessante e agradável. Sigmund Freud escrevia desta forma,
assim como muitos outros médicos da época. Ele ganhou, inclusive, em 1930, o prêmio
Goethe de literatura, pela cidade de Frankfurt. O criador da psicanálise sempre evitou o
medizenerdeutsch, isto é, “o jargão médico alemão”. Depois alguns médicos
começaram a escrever de tal forma que o cidadão comum não consegue lê-los e, muitas
vezes, nem os próprios colegas médicos
.

Vejamos o caso atendido pelo clínico Georges Dieulafoy.

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A situação ocorreu em abril de 1908, com um homem de aproximadamente 30 anos de


idade, no Hospital Geral de Paris. O paciente tinha há dois anos uma doença gangrenosa
desde há dois anos, resistente a todas as formas de tratamento. As escaras, chagas e
cicatrizes tomavam o punho, o ante-braço e o braço. As feridas tinham diversos
formatos e dimensões variadas. O autor dá um minucioso relato das lesões, que trato de
poupar o leitor, não médico, da leitura. É difícil atinar com a causa destas lesões. O
paciente informa mal. Ele conta que sofria de “crises nervosas” e “perda de
consciência”, sem causa determinada. Numa queda ferira-se e assim começaram as
lesões. Descrição pouco comum nestes casos. A ferida inicial, mesmo tratada
adequadamente não melhorou e, ao contrário, evoluiu dando lugar a novas lesões. O
paciente não relatava dor alguma. As lesões eram precedidas de uma “sensação de
queimadura”. Nenhum tratamento adiantava e, ao cabo de alguns meses, mais de
cinqüenta lesões haviam surgido no braço esquerdo.

O paciente, é claro, dizia estar preocupado e já consultara “uma quinzena de médicos”,


sabendo seus nomes e os diferentes diagnósticos que havia recebido. Falava deles com
uma memória excelente. Foi submetido aos mais diversos tratamentos, desde os mais
corretos aos mais bizarros. Ninguém o curava; estava quase desiludido. Então, em maio
de 1906, um cirurgião resolve intervir cirurgicamente fazendo o “estiramento dos
nervos do plexo braquial”. Após a cirurgia o paciente tem dores terríveis, começa a
fazer uso de morfina e os dedos parecem garras. A cirurgia fora um rotundo fracasso.
Mais um fracasso. O paciente volta ao mesmo cirurgião e este lhe sugere nada menos
que “amputar o braço”. Ele diz ter refletido e no dia 7 de agosto é feita a amputação do
terço superior do braço esquerdo. O paciente, após sua recuperação, volta a trabalhar na
Companhia de Seguros onde era escriturário, gozando do apreço de seus chefes. Em
fevereiro de 1907, entretanto, placas de gangrena começam a aparecer no braço direito!
O pobre homem recomeça a procurar médicos e charlatões em busca de uma cura. Nada
surte efeito. Ele procura o cirurgião que lhe amputara o braço e este lhe sugere o mesmo
tratamento, que não dera certo. Assim em 25 de abril de 1908 ele chega ao hospital onde
Gerges Dieulafoy era assistente. Em dois anos o homem teve cerca de 98 escaras nos
dois braços, um deles agora amputado. Na internação ocorre um estranho
acontecimento; as pernas que nunca haviam apresentado lesões, agora começaram a ser
tomadas por escaras. Os membros superiores e, agora, os inferiores! Um enigma digno
da esfinge tebana: decifra-me ou devoro-te. Este homem trabalhador, afável, dócil e
colaborador, não podiam nem mais caminhar. Era uma chaga humana, de provocar dó
nos mais emperdenidos médicos. As juntas médicas que se fizeram aventaram todas as
hipótese possíveis, mas nenhuma se justificava ou fazia sentido. Sífilis? Diabetes?
Distúrbios tróficos conseqüentes à neurite? Nenhum destes males. O homem era na
verdade um simulador! Acreditem. Um clínico observador constatou que as escaras
pareciam ser causadas por potassa cáustica, usada no hospital na composição da Pasta
Cauterizadora de Viena. As escaras tinham uma semelhança incrível. Mas este homem
concordara em amputar o braço e se fosse um simulador não contaria a verdade
facilmente. Um plano é traçado e uma encenação é combinada entre o clínico, o chefe
do serviço e o presidente da Companhia de Seguros onde o homem era funcionário. O
paciente foi levado a presença dos três e o homem foi confrontado com a hipótese. Não
mostrou surpresa nem emoção, apenas um sorriso nos lábios.
Vejamos a descrição que nos dá o autor do caso clínico.

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Restavam as confissões. Mas este homem, que na nossa opinião enganava a todos há
dois anos e meio, este homem cuja fraude fazia-no experimentar uma satisfação tão
grande ao ponto de não hesitar em permitir na amputação de seu braço, iria, agora,
sem nenhum interesse pessoal, enveredar no caminho das confissões? Era pouco
provável.
Entretanto eu planejei a seguinte encenação: foi combinado com o diretor da
Companhia de Seguros que, sob pretextos de negócios, ele convocaria o nosso homem
para comparecer em seu escritório numa manhã. Nós nos encontraríamos neste local,
com meu chefe de clínica, Dr. Crouzon. Faríamos comparecer, então, o dito doente, e o
diretor lhe dirigiria paternalmente a palavra, pedindo-lhe que confessasse sua fraude.
Sem nada suspeitar, o doente é introduzido no gabinete do diretor; ele nos encontra lá,
todos os três reunidos. Sua fisionomia não demonstrava nem surpresa nem emoção;
com um sorriso nos lábios, estando totalmente à vontade, ele nos dirige um”Bom dia,
senhores” e senta-se.
- “Nós o convocamos, disse-lhe o diretor, para o seu interesse e para o seu bem.
É hora de cessar um simulação, que há dois anos e meio atrapalha sua vida;
minha proteção está assegurada e nunca lhe faltará; mas seja leal, nós
queremos saber a causa de suas escaras.
- Mas senhor diretor, é-me impossível responder-lhe. Durante todo este tempo, eu
visitei uma quinzena de médicos e eles nada descobriram a respeito de minha
doença; o senhor quer que eu saiba mais do que eles?
- Você está com jeito de não haver compreendido nossa questão, disse-lhe o
diretor, e você sabe muito bem a que me refiro. Além disso é inútil simular por
mais tempo, porque nós sabemos, agora, do que se trata. Vamos, faça um belo
gesto e diga-nos a verdade. Como é que você produz suas escaras?
- Eu produzindo minha escaras? Mas senhor diretor, o que é que o senhor está
pensado? Há dois anos e meio eu levo uma vida tormentosa, a gangrena que
havia invadido meus braços aparece agora no meu pé; eu sofro, mal posso
caminhar; sofri duas cirurgias, foi amputado meu braço esquerdo e o senhor
supõe que eu seja um simulador? Mas isto é uma loucura, é insensato!
- Pela última vez, em reconhecimento à minha bondade e ao fato de que não
haverá problemas no futuro, pare de mentir e diga-nos a verdade.
Bem, senhores, escutem-me: sob minha palavra de honra, sobre tudo aquilo que é
sagrado no mundo, pela vida de meu filho que eu adoro, eu juro aos senhores que
estou sendo falsamente acusado, eu ignoro absolutamente qual é a causa de minhas
escaras. “Este homem pronunciou estas palavras com tal emoção e tal sinceridade
que nós mesmos nos emocionamos”.

O autor segue descrevendo a situação, como seu contemporâneo Sigmund Freud o


fazia. O criador da psicanálise, em seus trabalhos, estabelecia, muitas vezes, um
diálogo com um questionador imaginário, e ele fazia as perguntas em nome deste
“alter-ego” e as respondia. O próprio autor trata de responder as questões que
levantou.

Eu havia feito estes raciocínios e, apesar disto, nada poderia abalar minha
convicção; para nós, este homem era um simulador. Então, coloquei-me frente a
ele, sem tirar meus olhos dos seus, e disse-lhe em poucas palavras: “Até hoje você
não foi mais do que uma doente vítima de um estado mental particular; você
obedecia a um impulso irresistível, você estava sob o domínio de uma obsessão da
qual você não conseguia se libertar; em uma palavra, você não era responsável e

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nós viemos a seu socorro para acabar com seu sofrimento; mas a partir deste
instante, preste a atenção, se você persistir ainda na sua degeneração, você se
tornará um hipócrita e um impostor, você se tornará um homem desonesto e as
pessoas honestas se afastarão de você. Escolha”
Com minhas palavras este homem se transforma, sua fisionomia se contrai, seus
olhos molham-se em lágrimas, sente-se que nele se trava uma luta terrível; enfim,
ele desata em soluços e nos faz suas confissões: “Perdoem-me, diz ele, mas prefiro
dizer a verdade. Sim, eu menti; sim, sou eu quem, há dois anos e meio, produz todas
estas placas de gangrena nos braços e na perna.” Felicitamo-lo por sua franqueza,
apertamos-lhe a mão (a única que resta) e, com as poucas palavras que o diretor
lhe dirige, sua figura se ilumina e ele agradece com uma doce emoção. Então, ele
nos conta com detalhes tudo que queríamos saber e assina sua declaração. Como
havíamos pensado, ele fabricava suas escaras com a potassa cáustica. Para sua
família e perante seus amigos seus amigos ele era objeto de compaixão; mesmo sua
mulher, tão infeliz por vê-lo atormentado por tal doença, jamais suspeitara de nada.
Depois deste dia (já são passados dois anos), este homem nos visita seguidamente;
ele não cessa de nos agradecer pelo imenso serviço que prestamos. Ele está feliz,
não está mais sob a influência da obsessão que lhe atormentava dia e noite e,
utilizando sua própria expressão, “ele está exorcizado”.
“Eu estava, dizia ele, dominado por uma idéia fixa da qual não podia me libertar;
deixei que amputassem o meu braço e acredito que chegaria um dia em que, para
continuar a simulação, eu deixaria que amputassem minha perna.”
Esta história é realmente surpreendente. Eis aí um homem inteligente, sem taras
nervosas que, sem razão apreciável, começa a produzir em seu corpo escaras com
a potassa cáustica e, durante dois anos e meio, não consegue parar...
...
Ele mentiu durante dois anos e meio e por isto ele é um mitômano... Solicitei ao meu
amigo, Dr. Paul Bourget, o favor de procurar a palavra mais conveniente para este
estado mórbido. Ele me propôs a palavra “Patomimia”.
...
Eu divido os patomimas em duas categorias: existem patomímicos que simulam uma
doença com objetivos fraudulentos, porque eles possuem um interesse, visam a um
ganho; e os patomímicos que simulam somente para satisfação própria, diríamos
quase que por prazer. Nosso paciente faz parte desta segunda categoria... Os
patomínicos desta categoria não obtém, com seus atos, nenhum benefício, mas
experimentam uma alegria intensa ao tornarem-se dignos de interesse e compaixão;
eles experimentam uma grande satisfação ao ludibriar seu próximo, não possuem
confidentes, guardam seus segredos para si, com muito cuidado, como um avaro
guarda seu tesouro e, uma vez tendo enveredado por este caminho nefasto, nele se
satisfazem, dele não podem mais sair, não possuem mais vontade própria, perdem
seu livre arbítrio.
São fatos desta natureza que perturbam a consciência de um médico legista. Pela
impulsividade com que nosso paciente cometia tal ato, podemos admitir que ele era
responsável por este ato? Não, ele não era responsável. Ele mesmo nos disse,
depois da cura de seu estado mental, que durante dois anos e meio ele obedecer a
uma idéia fixa, “como uma máquina, sem saber por quê”. Entretanto, esta ausência
de responsabilidade, quando se trata de um ato cometido sobre si mesmo, pode
existir também quando este ato é cometido sobre outra pessoa, observando-se o
quanto é complexa esta questão. Em suma, do ponto de vista médico-legal, onde
começa o onde termina o livre arbítrio, onde começa e onde termina a

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responsabilidade? O que é certo é que, depois de ter sido, durante dois anos e meio,
vítima inconsciente de um impulso irresistível, o paciente foi sugestionado por nós e
instantaneamente curou-se.

Não pense o leitor que estou apresentando uma ficção. Esta situação verdadeiramente
existiu e pode ser lida no original, passado quase um século, Patomimie- Histoire d´un
pathomimie, no Manuel de Pathologie Interne (Seizième Edition, Tome Trisième,
Masson Editeurs, Paris, 1911). Veja na bibliografia, e poderá consultar o texto na
íntegra, publicado em português, pela Revista de Psiquiatria, se duvida o possui. A
psicanálise, que Sigmund Freud desenvolvia em Viena, talvez ajudasse o Dr. Georges
Dieulafoy a entender mais profundamente este seu interessante paciente.

8. Mentiras exemplares (ou nada exemplares)


Não pense, leitor (talvez não seja necessário lembrá-lo disto), que as mentiras são
privilégio deste ou daquele homem, do marceneiro ou do político, de tal ou qual
ideologia, de um ou de outro povo; elas, as mentiras, estão por aí, no ar, a procura de
um homem com necessidade de mentir, aqui, ali, lá, acolá, o que não é difícil de
encontrar, para se instalar e sair pela boca do vivente.

Pois veja. Estava eu na praia da Barra, uma pequena baía, em Santa Catarina, fazendo
meu veraneio, a beira-mar, na encosta do morro, mata atlântica, verdes diversos, vendo
aquele marzão de frente, até o infinito, pois como o leitor sabe o mar começa com um
verde claro, vai ficando d´um azul cada vez mais escuro e aí vem o céu infinito, este de
diferentes cores, dependendo da hora e do tempo, até golfinhos e baleias “franca” se vê
por lá, me acredite mas não lhe ensino o caminho para chegar lá... os pranchões de 9.2
ou 9.6, as “longboards”, lá embaixo, na areia, tipo daquelas de madeirite monoquilha,
agora de fibra e triquilha e com uma cordinha, um tal de léche, que se compra no
bolicho do Rico, em Ipanema, ou do Morongo, em Garopaba, o swell de primeiríssima,
perfeito, ondas de 3 a 5 pés, séries perfeitas, mar nada mexido, nada de crowd, marzão
quase vazio... Quando olho para o páteo, ao lado, um jornal sobre a grama... como ele
veio parar alí? Eu havia tomado todas as precauções para não ser invadido por notícias.
Vivendo um momento de insanidade ( a compulsividade em querer saber das coisas ),
pego o jornal e leio um editorial do historiador Décio de Freitas, homem renomado,
respeitado, que me fez retornar ao nosso livro. Um escrito publicado na Zero Hora, em 9
de março de 2003, na página 13, sobre Daniel Ellsberg, um schollar importante,
formado em Harvard e Cambridge, oficial da marinha-de-guerra americana, e em 1964,
durante a guerra do Vietnã assistente especial do Pentágono.

Uma mentira nada exemplar

Leia comigo algumas partes do artigo, pois veio bem a propósito do nosso assunto, a
mentira, e dos tambores de guerra que se ouve fortemente, e me desculpe se me alongo!
Terminou minha paz, com o retorno do tema , trazido de forma estranha pelo jornal, que
eu acreditava ser possível deixar em Porto Alegre... mas que apareceu ali, suspeitoso...

Daniel Ellsberg (...) depois de redigir em Harvard sua tese de doutorado, aceitou
emprego na Rand Corporation, onde se ocupava dos problemas da luta numa guerra

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nuclear. Sofreu sua primeira desilusão em 1961, quando Kennedy explorou com
proveito, para fins eleitorais, o dito “gap” nuclear, “desfavorável aos EUA “. Ao ler
os documentos secretos da inteligência, viu que aquilo era uma descarada mentira:
havia de fato o “gap”, mas favorável aos EUA, na proporção de 10 contra um. Foi o
primeiro grande choque de Ellsberg, a que se seguiu outro, onde constatou que a
estratégia americana era uma receita infalível para o fracasso.
Em 1964, convidaram-no para ser assistente especial no Pentágono, com o “status” de
general. Ocupou-se na análise dos detalhes da estratégia no Vietnã. No seu primeiro
dia no Pentágono, em 1964, o destróier Maddox enviou despachos urgentes dizendo
que estava sob “contínuo ataque de torpedos”. O presidente Johnson foi à televisão e
disse que o destróier estava em “patrulha de rotina em águas internacionais” e que os
EUA haviam sido vítimas de “deliberada e gratuita agressão”. Johnson ordenou que o
porta-aviões Ticonderoga lançasse ataques aéreos contra o Vietnã do Norte. Dias
depois, por votação esmagadora, a Câmara e o Senado votaram a Resolução do Golfo
fé Tonkin, colocando os EUA numa guerra em grande escala contra o Vietnã do Norte.
Ellsberg leu informes secretos, dando conta de que tudo quanto se dizia ao Congresso e
ao público era mentira.. O ataque vietnamês, se é que existira, fora seguramente
provocado. O Maddox efetuava missão secreta em águas territoriais vietnamesas. O
diretor da CIA disse ao presidente que os vietnameses haviam “reagido
defensivamente”. Johnson mentira pessoalmente ao senador William Fulbright, o
respeitado e pacifista presidente do Comitê de Relações Exteriores. Na campanha para
a reeleição, Johnson adotou o slogan “não queremos guerra”, embora fizesse
exatamente o contrário. Bem, pensou Ellsberg, o fim era derrotar o republicano Barry
Goldwater, que pregava o uso de armas nucleares contra o Vietnã e a China.
Ellsberg acreditava na Guerra Fria e tinha a mentalidade dum oficial da marinha.
Enviado de novo ao Vietnã para colher informações, viu que não havia guerra civil,
como se dizia, mas um conflito inteiramente equipado e armado pelos EUA. “Não
lutávamos do lado errado. Nós éramos o lado errado”. Pior, estavam perdendo a
guerra.. De volta aos EUA, comissionado para redigir uma história secreta da
intervenção americana, compulsou documentos secretos do Pentágono que provavam
estar o governo a mentir continuamente. Fazia crer que a guerra logo findaria. Na
verdade, iniciava-se uma fase em que os EUA jogariam sobre o Vietnã uma tonelagem
de bombas três vezes superior à da II Guerra Mundial. Nisso já eram três os
presidentes que com claros objetivos eleitoreiros mentiam continuamente ao Congresso
e ao povo sobre a guerra, sacrificando milhares e milhares de vidas.
Ellsberg decidiu revelar a verdade a seu país. Em fins de 1969, levando os documentos
para casa, passou noites a copiá-los numa primitiva máquina xerox. Depois, revelou
tudo ao New York Times. O escândalo produzido forçou os EUA a acabarem a guerra
do Vietnã. Preso e processado, Ellsberg só não foi condenado à prisão perpétua devido
à eclosão do Wattergate. Seu caso demonstra que pode ser infinito o poder de
consciência de um homem (... )

O episódio Wattergate, em que o presidente-pinóquio Richard Nixon foi retirado, por


um impechment, da presidência dos EUA por mentir reiteradamente, deve estar na
memória de todos nós. Os mais jovens aprenderão muito se, não conhecendo àqueles
fatos, buscarem nos livros ou na internet o que aconteceu. Nós também tivemos
problemas não muito diferentes, em tempos muito recentes. A mentira com
características sociopática na política. A história oficial, como sabemos, é apenas uma
versão dos fatos, muitas vezes constituída por inverdades, a história dos vencedores; e

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sabemos que quando não conhecemos a história, ela tende a se repetir nos seus piores
aspectos.

Convido o leitor a compartir algumas frases de políticos sobre a mentira, que constam
dos manuscritos das folhas de almaço.

Se os meus inimigos pararem de dizer mentiras a meu respeito, pararei de dizer


verdades a respeito deles.
Adlai Stevenson

Como os políticos jamais acreditam no que dizem, costumam ficar surpresos quando os
outros acreditam.
Charles de Gaulle

Há três espécies de mentiras: mentiras, mentiras malditas e as estatísticas.


Disraeli

Quanto maior a mentira, maior a chance de todos acreditarem nela.


Adolfo Hitler

Há momentos em que silenciar é mentir.


Miguel de Unamuno

Uma mentira exemplar

As mentiras anteriores estavam ligadas à justificativa da violência e /ou da perversidade


e eu quero contar, agora, para ti, leitor, uma mentira exemplar e hilária. Vamos
amenizar um pouco este clima pesado.

Uma enciclopédia não daria conta da enormidade de mentiras, embustes e fraudes que
mereceriam entrar para a história. Mas eu soube desta “mentira exemplar” que quero
dividir contigo para que possamos rir juntos. Envolve uma conhecida minha, Virginia
Woolf., sobre quem já escrevi em outros momentos.

Aconteceu em fevereiro de 1910, na baía de Weymouth, em Dorset. Inúmeros navios de


guerra da marinha inglesa estavam lá ancorados: navios da frota territorial e da frota do
Atlântico, O gigantesco navio capitânea Dreadnought, considerado o mais poderoso
vaso-de-guerra britânico, estava engalanado, bandeiras ao vento, aguardando a visita de
um grupo de príncipes abissínios, acompanhados por um diplomata do Ministério das
Relações Exteriores.

O protocolo foi seguido à risca. Os visitantes foram recebidos por fanfarras, bandeiras
especiais, apitos dos navios e oficiais e marinheiros em trajes de gala. Houve uma
dificuldade inicial: ao invés do hino da Abissínia, a banda tocou o hino de Zanzibar e a
bandeira deste país foi hasteada. Os príncipes abissínios, entretanto, cortesmente, não
reclamaram destes enganos, com o hino e com a bandeira, e, ao contrário, pareciam
extasiados com o poderio naval que presenciavam e com as gentilezas de que eram
alvo.; de quando em quando, em sinal de admiração, erguiam os braços e gritavam:

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“Bunga-Bunga”. Houve um breve impasse no cerimonial, até então impecável, porque


não se encontraram genuflexórios para as orações do final do dia, dos príncipes de
religião muçulmana. A situação foi contornada com a suspensão dos toques de clarim
anunciando o pôr do sol, prática naval corrente, que neste dia foi abolido.

A visita à frota terminou. e os príncipes, através de uma multidão curiosa, alertada da


visita pelos apitos dos navios e da música marcial que vinha do navio capitânea,
tomaram o trem na estação de Weymouth. Fato curioso, que talvez ninguém tenha
notado, foi que um dos príncipes, ao espirrar perdeu o bigode. Em verdade o que
acontecia era uma mentira e uma encenação que William Horace de Vere Cole criou
para ridicularizar o stabilishment inglês da época. Este “personagem” era
“especialista” em criar situações como essa na sociedade da época.

Os “príncipes abissínios” , que receberam tantas homenagens da Marinha de Guerra de


sua Majestade, eram, na verdade, os ingleses Anthony Buxton, conhecido jogador de
críquete, Duncan Grant, artista de vaudeville, Guy Ridley, jovem aristocrata e filho de
um magistrado, Virginia Woolf, artista, escritora e membro do conhecido grupo de
intelectuais Bloomsburry e seu irmão Adrian, que fazia o papel de intérprete alemão do
grupo. O embusteiro principal, criador de toda a mentira, William Horace de Vere Cole,
apresentou-se como Sir Horace Cholmondeley, representante do Ministério de Relações
Exteriores...

William Cole era dado e vezeiro em aplicar situações de ridículo à elite britânica. Seus
extravagantes e criativos embustes provocavam o riso em toda a Europa. Este homem
rico e membro da alta sociedade londrina era, por este motivo, reverenciado por muitos
e odiado por outros tantos. No planejamento desta farsa, ele mandou imprimir cartões
de apresentação em swahili e instruiu seus comparsas para que improvisassem uma
“língua” própria, improvisada e incompreensível, e dessa forma se comunicariam a
medida que estivesse transcorrendo a farsa. Contratou, também, Willy Clarkson, o
maquiador da atriz Sara Bernhardt, para transformar os pálidos ingleses em morenos,
mouros, abissínios. O maquiador os advertiu, entretanto, que evitassem alimentos e
bebidas pois poderiam “perder” parte da maquiagem, o que trouxe alguns problemas,
como veremos a seguir. Os figurinos foram feitos com o auxílio da equipe de estilistas
da atriz e alguém míope e tolo poderia acreditar que, realmente, eram “príncipes da
Abissínia”.

Na manhã da visita, William Cole, vestido a rigor, dirigiu-se ao responsável pela


estação de Paddington, apresentando suas – falsas – credenciais de representante do
Ministério de Relações Exteriores e pediu um vagão de luxo para transportar os
“príncipes” para Weymouth, assim como um comité especial para cumprimentá-los na
partida. Enfim, eram importantes dignatários estrangeiros e iam visitar a maior frota de
guerra da Marinha Real, fundeada na baía daquela cidade. O chefe da estação reclamou
do improviso do pedido, mas compreendeu as ponderações do Ministro e reuniu, às
pressas, alguns funcionários como guarda de honra e estendeu um tapete vermelho para
a passagem dos “príncipes”. Sua missão foi cumprida com a eficiência tradicional dos
funcionários ingleses. O farsante-chefe enviou, também, da estação, um telegrama
avisando o Almirante da frota, da chegada da realeza abissínia, dando a entender que
um aviso anterior do Ministério de Relações Exteriores já fora enviado. O telegrama
reiterava o anterior, que, na verdade, nunca fora enviado, e recomendava que se
prestassem todas as honras devidas a membros de uma família real.

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Contam que o Almirante ficou aborrecido porque o primeiro telegrama não havia
chegado e, desta maneira, algo falhara; felizmente o segundo telegrama “salvou” a
situação. As atividades de rotina foram logo interrompidas e procedimentos de gala
foram adotados: bandeiras especiais de saudação nos mastros, bandas polindo os
instrumentos, marinhagem a postos e engalanada, o Almirante e seu estado maior nos
seus mais dignos trajes; todos aguardando.

Um incidente aconteceu quando, à hora do chá, no Dreadnought, a nau capitânea, o


representante e o intérprete, que não estavam maquiados, saborearam com prazer o chá,
as torradas e os bolos, enquanto que os “príncipes”, avisados pelo maquiador,
recusavam todas as gentileza culinárias, com medo de “perder” o disfarce. Quando os
oficiais inquiriram William Cole sobre a “falta de apetite” dos “príncipes”, na verdade
uma indelicadeza sob o ponto de vista dos ingleses, este respondeu que eles só faziam
duas refeições ao dia, preceitos de sua seita muçulmana, e que já haviam se alimentado
neste dia. A situação ficou mais difícil quando um oficial do estado maior da Armada,
que nada sabia da história, entrou na sala dos oficiais e ao ouvir um sotaque que lhe
pareceu alemão, ficou desconfiado. Complicou mais a situação quando William Cole
percebeu que este oficial, numa espetacular casualidade, era aparentado tanto de
Virginia Woolf como dele próprio ! Este oficial chamou à parte o Almirante para
transmitir suas desconfianças, quando William Cole percebendo a situação, reuniu os
“príncipes abissínios” e deixou às pressas o navio, dizendo que já se passava a hora das
orações para Alá, que tinham de ser feitas em terra. Aconteceu um corre-corre e, para
sorte dos embusteiros, eles conseguiram chegar ao trem que partiu de volta a Londres
naquele exato momento, quase sempre presos pelos marinheiros que se colocavam em
seu alcanço....

No dia seguinte os jornais londrinos estamparam a foto, que consta deste livro, enviada
por William Cole, retratando os “príncipes abissínios” ( foto ) recebidos pela Armada de
Guerra Inglesa....

Uma mentira nada exemplar comentada por Millôr Fernandes

Millôr Fernandes, em seu clássico Millôr definitivo. A Bíblia do caos, faz variadas
referências no verbete mentira. Um de seus comentários nos remete a questão do poder
e da política, tomando como referência a morte de Tancredo Neves.

Durante uma semana, a família, que reclamava das “mentiras da imprensa”, mentia ao
país sobre o estado de saúde de Tancredo. Ninguém precisa ler Shakespeare ( ou ter
visto Dallas, pelo menos ) pra saber da gula patológica de famílias que se apossam de
qualquer espécie de poder. Acompanhando a família, o Presidente em exercício, os
ministros, os médicos e, profissionalmente, o porta-voz, mentiam descarada e
organizadamente. Bem, tinham de faze-lo: a ética do poder é a mentira (JB 1985 ).

Millôr Fernandes arremata da seguinte forma.

A mentira mostra que por baixo das mentiras de ministros, senadores, médicos, havia
outras mentiras. A imprensa já devia saber que se a verdade não está por cima, por
baixo é que ela não está. Apenas outra e outra camada de mentira. ( por ocasião da
morte de Tancredo Neves, 1985 ).

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9. Imposturas intelectuais
As imposturas ou mentiras intelectuais, travestidas de uma ou de outra forma, sempre
existiram. Uma das formas travestidas da impostura intelectual, penso eu, é feita através
de textos “criptográficos”, de um barroco “rococó” exagerado, redigidos de uma forma
obscura, cheia de curvas e volteios, elíptica, indireta, de difícil, senão impossível,
compreensão. O leitor desavisado, ou iniciante no tema, poderá ficar surpreso,
imaginando que a “profundidade” científica do autor e a sua “escrita” contrasta com a
“ignorância” do leitor, que não entende o que está escrito: este autor é tão “erudito” que
eu não o entendo !, poderá pensar alguém; e isto poderá ser verdade, mas poderá
acontecer que este leitor se encontre frente a uma “impostura” ou mentira intelectual., o
que não é raro desde sempre, mas especialmente na cultura pós-moderna, em que a
mentira adquire um “estatuto de validade”.

Veja o que disse o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, também ele um militar na
primeira grande guerra, livrado do front por uma queda d´uma égua durante o
treinamento, outro paysano sabido das coisas...

Quem sabe o que é profundo, busca a clareza, quem deseja parecer profundo para a
multidão, procura ser obscuro, pois a multidão toma por profundo aquilo que não vê:
ela é medrosa, hesita em entrar na água.

Como não somos medrosos, vamos lá.

Um livro que nos faz tomar contato com as questões das imposturas intelectuais é
Imposturas intelectuais. O abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos, de Alan
Sokal e Jean Bricmont. È um livro útil, caso o leitor tenha interesse em se apronfundar
no tema, mesmo se considerando que o livro recebeu críticas, como seria natural,
exacerbadas. Mas veja o que aconteceu. O livro originou-se a partir de uma farsa criada
por Alan Sokal.

Ele “escreveu” um artigo que foi publicado pela revista americana de estudos culturais
Social text, em 1996, intitulado Transgredindo as fronteiras: em direção a uma
hermenêutica transformativa da gravitação quântica. Este artigo, na verdade uma
farsa e uma paródia, continha citações verdadeiras de diferentes autores, mas
contraditórias, e colocadas no texto como uma collage, cujo resultado foi um artigo sem
“pé nem cabeça”, como pretendia o autor. Foi, na verdade e deliberadamente, um
trabalho falso cujo objetivo era “denunciar” os textos “eruditos e incompreensíveis”,
imposturas intelectuais, tão comuns na produção cultural contemporânea. Depois da
publicação o autor enviou à revista uma carta “denunciando” seu próprio artigo e,
conseqüentemente a incapacidade da publicação em avaliar os artigos que publicava. A
revista não publicou a retificação, o que originou o livro que contém a história toda,
incluindo o artigo e a carta de esclarecimento de Alan Sokal.

Estes relatos talvez possam ser melhor entendidos com a ajuda de nosso Mário
Quintana, quando ele escreve sobre Mentira. Veja, leitor, o que conta o poeta.

Mentiras

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Lili vive no mundo do Faz-de-conta... Faz de conta que isto é um avião. Zzzzzuuu...
Depois aterrisou em pique e virou trem. Tuc tuc tuc tuc... Entrou pelo túnel chispando.
Mas debaixo da mesa havia bandidos. Pum! Pum! Pum! O trem descarrilhou. E o
mocinho? Onde é que está o mocinho?! No auge da confusão, levaram Lili para a
cama, à força. E o trem ficou tristemente derrubado no chão, fazendo de conta que era
mesmo uma lata de sardinha.

Poeta sabido, esse Quintana...

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10. Mentira, modernidade e pós-modernidade


É difícil conceituar, exatamente, o que é pós-modernidade. Existem muitos intentos
neste sentido e é possível, inclusive, questionar se “pós-modernidade” realmente existe,
ou se é uma especulação de alguns intelectuais franceses “afetados”. Não podemos
negar, entretanto, que existe na cultura contemporânea uma série de paradigmas
próprios da modernidade que estão sendo contestados, modificados ou sendo
substituídos por outros. Em um capítulo de meu livro Adolescer, desenvolvo esta
questão em diversos de seus aspectos. Vou retomar aqui o que interessa neste “Breve
Ensaio”: a verdade como um paradigma da modernidade e a mentira como um
paradigma da pós-modernidade. A propósito deste tema, Terry Eagleton, em As ilusões
do pós-modernismo, escreve :

Pós-modernidade é uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de


verdade, razão, identidade e objetividade, a idéia de progresso ou emancipação
universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos da
explicação. Contrariando essas normas do iluminismo, vê o mundo como contingente,
gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações
desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da
verdade, da história, das normas, em relação às idiossincrasias e a coerência de
identidades.

A modernidade e o iluminismo, enfatizando a razão e o método, buscam a veracidade, a


verdade, em seu esquema de referências. A pós-modernidade, ao contrário, confere um
estatuto secundário à verdade, trata de, digamos, desconstruí-la e dar à mentira um
sentido diverso daquele que os “antigos”, ou melhor, os “modernos” , consignavam a
ela. É, hoje, um jogo lidar com a verdade e a mentira, o que é uma e o que é a outra: de
qual vértice observamos uma questão ou fenômeno para poder afirmar “é verdade !” ou
“é mentira!”. Ao longo deste livro, o leitor que tem nos acompanhado, pois chegou até a
este ponto da leitura (quero cumprimentá-lo por sua tenacidade), compreende que
Mentira é algo “verdadeiramente” complexo. A pós-modernidade cria um cenário no
qual o falso versus o verdadeiro é uma constante, onde se instala a cultura da cópia e
do simulacro.

O leitor há de me acompanhar no que passo a descrever.

A invenção da fotografia no século XIX possibilitou a reprodução bastante perfeita da


realidade, liberando o artista para se aventurar mais além, chegando ao impressionismo
e às outras formas modernas de representação. A utilização dos negativos fotográficos
propiciou uma série de reproduções e, hoje, com uma maquina Polaroid, uma máquina
xerox, ou uma câmara digital e um computador teremos um grande número de cópias,
bastante reais.

Um dos representantes mais significativos deste momento é Andy Warhol (1937-1987).


Este “personagem” tornou-se famoso por suas imagens em série de produtos para
consumo, pessoas transformadas em objetos (Marylin Monroe, Ma-Tse-Tung, Guevara,
Pelé), ou mesmo simples objetos, como latas de sopa ( gravura 1 ) Campbell.
Freqüentando os ambientes mais variados de New York, munido de uma máquina
fotográfica Polaroid (fotos instantâneas!), clicava as imagens e as reproduzia seriadas

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em silk-screen ou em tinta acrílica, trabalho mais de seus assistentes do que dele


mesmo, “produzindo” (seu studio se chamava The factory, a fábrica) quadros disputados
por museus e colecionadores. Este pós-moderno “personagem” algo gótico, com sua
peruca platinada, óculos escuros e uma pálida maquiagem, através de suas obras
transmitiam a idéia de perda de identidade na sociedade industrial (refiro-me à segunda
revolução industrial). Ele escreveu frases como:

...pinto isso porque queria ser uma máquina. Acho que seria sensacional se todo o
mundo fosse idêntico... Quero que o mundo pense da mesma maneira, como uma
máquina... Se querem conhecer Andy Warhol olhem para a superfície de meus quadros,
dos meus filmes, isso sou eu. Não há nada por trás disso.

Andy Warhol fez, também, mais de 60 filmes que suplantaram as fronteiras possíveis
da banalidade: um de seus filmes, mudo, intitulado Sleep, tem seis horas de duração,
registrando apenas um homem dormindo. Sobre este filme, ele comentou: “Gosto de
coisas chats”. Atingido por tiros desferidos (that´s true) por um dos figurantes de seus
filmes, na Unidade de Tratamento Intensivo de um hospital, buscava se informar das
notícias publicadas na mídia sobre seu estado clínico e tratava de fotografar seus
ferimentos. Sua arte, entretanto, não pode ser restrita a uma análise que a julgue falsa,
mentirosa, repetitiva, banalizada ou despersonalizada. Julio Schnabel, pintor
contemporâneo, talvez exagerando, registrou com alguma pertinência que Andy Warhol
mostrou o horror de nosso tempo tanto quanto Goya o fez em sua época. Ele é um
personagem exemplo da pós-modernidade, da cultura do falso, do simulacro e da cópia.

Donald Winnicott, com o qual você, leitor, já travou vários contatos ao longo deste
nosso livro e desta nossa conversa, desenvolveu o conceito de verdadeiro e falso self,
definindo o falso self como uma defesa altamente organizada, que frente a um ambiente
que não exerce adequadamente suas funções parentais (maternas e paternas), busca
proteger o verdadeiro self do aniquilamento. Júlio de Mello Filho (Mello, 1997)
escreveu a propósito deste falso self adaptativo um artigo intitulado, significativamente,
Vivendo num país de falsos selves e que, agora, toma a forma de um livro..

Em meu livro Adolescer, no capítulo Adolescência: modernidade e pós-modernidade,


escrevi:

Não se surpreenda o professor quando seu aluno lhe apresentar “uma pesquisa” em
que nada mais foi feito do que “imprimir” um texto na Internet.

Neste livro, com a realidade superando – como sempre – a ficção ou os exercícios de


especulação, tomamos conhecimento, em janeiro de 2003, que o Primeiro Ministro
britânico, Tony Blair, apresentou um dossiê, com toda a pompa e circunstância,
justificando um ataque ao Iraque, custando centenas de milhares de vidas e bilhões de
dólares, que poderiam ter melhor destinação que a guerra. Vale, amigo, ler a notícia
publicada no Jornal Zero Hora. (27-2-2003. Zero Hora, Mundo).

A propósito. O leitor sabe que em Porto Alegre, em outubro de 1847 foi lançado um
ferino jornal chamado O mentiroso ? Este jornal era destinada a combater um rival, O

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corisco, e que no mesmo ano foi lançado um outro jornal chamado O filho do
mentiroso ? ( Dillemburg, 2003 ).

Governo Blair é acusado de Plágio (Londres).


Um dos maiores críticos dos métodos de propaganda do regime iraquiano, o primeiro-
ministro britânico Tony Blair, está agora sendo acusado de ter recorrido às mesmas
práticas de Saddam Hussein.
A polêmica gira em torno de um dossiê publicado esta semana no site do governo da
Grã-Bretanha na Internet, que informa que o Iraque montou uma estratégia para
enganar e intimidar os inspetores de armas da Organização das Nações Unidas (ONU).
O problema é que trechos do material foram plagiados de um trabalho acadêmico.
Na quarta-feira, em seu discurso ao Conselho de Segurança da ONU, o secretário de
estado americano, Colin Powell, elogiou o relatório britânico. O governo britânico
dizia ter recolhido informações de “várias fontes, inclusive de material de
inteligência”. Ontem, porém, as autoridades admitiram, constrangidas, que pedaços
inteiros do texto foram copiados – inclusive com erros gramaticais – de uma tese de
doutorado de um estudante. O autor foi localizado e disse ter levantado informações há
12 anos, durante a Guerra do Golfo (1991). Especialista diz que o texto é “medíocre”.

Assim a mentira, o falso e a mediocridade, apresentados por um primeiro-ministro de


uma das maiores potências mundiais, e elogiado pelo secretário de estado da maior
potência do planeta, sem citar a fonte, utilizando um material medíocre e desatualizado,
justifica a guerra..

O menino que entregar, ao professor, uma pesquisa copiada da Internet está


“identificado” com homens de sucesso, “heróis pós-modernos”.

Um poema do Millôr Fernandes, para arrematar estes temas políticos...

Menti! Menti!
Alguma
verdade fica!

Tempo de paz,
Mentira como gás.
Tempo de guerra,
Mentira como terra.
Tempo de eleição,
Mentira de montão.

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11. Um olhar neobarroco sobre a mentira: uma leitura,


eventualmente, dispensável.
Alberto, quero avisá-lo que este capítulo pode ser dispensável. Tu não precisas lê-lo.
Eu é que senti necessidade de escrevê-lo, para clarear melhor minha forma de escrever,
minha écriture. Abandonei, há tempos, a estrutura de papers, estes textos universitários,
na minha visão, formais e engessados, cujo destino é ficar na poeira de alguma
biblioteca, não manuseados e tampouco lidos, por uma escrita mais livre, tipo “ensaio”,
como lembrei no início, à moda de Paulo Prado. Escrita barroca, diria, talvez, Affonso
Romano de Sant´Anna ou Humberto Eco, ou, ainda melhor, neobarroca.

O por quê falar de “um olhar neobarroco” na compreensão de um tema como a mentira?

Nos anos setenta e oitenta, na América Latina, especialmente na literatura, mas também
em outras áreas do conhecimento, houve uma reapropriação do barroco. Não mais
apenas como um estilo de época, mas como uma forma de representação e de
organização do pensamento e, mesmo, de apreciação e análise da realidade. É o que faz,
por exemplo, como lembra Affonso Romano de Sant´Anna, Sérgio Buarque de
Hollanda, no clássico Raízes do Brasil ao abordar a questão do espaço e das relações
entre o indivíduo e a natureza, no período do desenvolvimento urbano no Brasil. No
capítulo O semeador e o ladrilhador, o autor esmiúça o contraste entre o semeador, o
português agricultor ou o religioso em sua pregação, ligado à natureza, ao acaso e a
fantasia, à curva e à elipse, e o ladrlhador, o espanhol, preso à reta e ao ângulo reto, ao
quadrado e à razão. A metáfora que Sérgio Buarque de Hollanda utiliza é o sermão do
barroco Padre Vieira, Sermão da sexagésima.

Mas e o neobarroco?

Irlemar Chiampi, em seu livro Barroco y modernidad, enlaça o barroco à crise da


modernidade e relaciona o ressurgimento deste ao ocaso desta última. . Surge, então, o
neobarroco como instrumento de representação e compreensão da pós-modernidade.

Vejamos o que registra a autora.

Frente ao terrível sentido ideológico único transmitido por um estilo ( o moderno )


que pretendia ser universal, o barroco chega com um valor de refugio, plural, da
singularidade. Desde logo, em seu tempo, o barroco era a emanação das monarquias
centralizadas e da contrareforma. Era irracional e “reacionário” quando a Razão era
subversiva. Porém a Razão, institucionalizada e disfarçada de depotismo ilustrado, de
Positivismo, de tecnocracia, ou Ciência de Estado, torna-se, por sua vez, totalitária e
reacionária. Exige, então, a inversão de perspectiva; barroco é, então, o irracional, o
insensato, a dissidência, que tornam-se subversivos ( Pelegrin, 1983; apud Chiampi,
2002 ).

Há, assim, uma reapropriação do barroco com a crise, terminal para alguns, da
modernidade e a utilização do barroco como instrumento de interpretação da pós-
modernidade ou da sociedade contemporânea, isto é, da lógica cultural do capitalismo
avançado e pós-industrial. Não descarto a interpretação pelo materialismo histórico e

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pelo materialismo dialético, a psicanálise ou de outros sistemas de interpretação da


realidade e da cultura, mas o neobarroco é, sem dúvida, “um novo olhar”.

Busco, novamente, a ajuda de Affonso Romano de Sant´Anna para lançar um “olhar


barroco” sobre a mentira. A mentira como o leitor pode constatar pode ser vista de
vários ângulos; entretanto, como um cubo, que tem seis lados, se ficarmos em uma só
posição nunca veremos mais de três lados. Para visitar todas as faces do cubo é
necessário que nos desloquemos e, assim, veremos todas as seis faces. Na verdade,
temos um poliedro ad infinitum . É necessário movimento contínuo, deslocamentos,
novos olhares e a passagem da reta e do quadrado à elipse. A mentira, paradoxalmente,
é a elipse: ela esconde, desfigura e revela.

Para o autor, o barroco, mais do que um estilo de época, é uma forma de representação e
de organização do pensamento. Ele adota o estilo de fugas e contrapontos e aborda a
metamorfose do “quadrado renacentista” na “elipse barroca” e discute uma forma
“barroca de ver o mundo”.

O leitor conhece o barroco, certamente o barroco brasileiro dos séculos XVII e XVIII,
das igrejas coloniais , por exemplo. Sugiro que ao pensar sobre a mentira o faça dentro
desta forma de representação. Concorde ou não é uma questão interessante para a
discussão. O tema que estamos abordando é uma representação e uma forma de
pensamento que resulta da tensão entre o quadrado – a verdade – e a elipse – a mentira.
Olhe a mentira como uma igreja barroca, uma igreja de São João del´Rey, interior das
Minas Gerais... Assim como o gótico marca a representação da Idade Média o barroco
configura a chegada e o término da modernidade e do iluminismo.

Um exemplo da visão neobarroca, na literatura, pode nos ser dada, por exemplo , pelos
escritos de Umberto Eco, que se define, em Sobre a literatura, como um “escritor
neobarroco”. Vejamos porque ele se assume dentro de uma ótica “neobarroca”: (1) a
despeito de sua escrita clara e didática, que ele diz se opor à prosa “clássica” de Jorge
Luis Borges, mostra que “para se escrever sobre Lacan e sobre a pós-modernidade não
é preciso ser obscuro” ( Pen, 2003 ); (2) ele percorre um universo diverso, erudito,
clássico, moderno e pós-moderno, indo da Divina comédia de Dante até o universo de
Flash Gordon, passando pelo Manifesto Comunista de Marx e Engels; e (3), the last
but not the least, a forma, da qual falei no início deste texto, de fazer um ensaio crítico
como uma narração. Marcelo Pen, sintetisando este estilo, diz que Humberto Eco como
“ensaísta sempre foi um narrador, como narrador, nunca deixou de ser ensaísta”. Este
entrelaçamento de conteúdo e forma, a trança de uma presença de tempos e estilos
diversos e de um ir-e-vir entrelaçando a narrativa, ficção e ensaio, constrói algo que,
eventualmente, e se não for mentira poderá, talvez, ser verdade, levar o nome de
“escrito neobarroco”. Severo Sarduy ( Chiampi, 2000 ), define o neobarroco.

O barroco atual, o neobarroco, reflete estruturalmente a não harmonia, a ruptura da


homogeneidade, do logos enquanto absoluto, a carência que constitui nosso
fundamento epistêmico. Neobarroco do desequilíbrio, reflexo estrutural de um desejo
que não pode alcançar seu objeto, desejo para o qual o logos não organizou mais que
uma tela que esconde a carência (...) Neobarroco: reflexo necessariamente pulverizado
de um saber que já sabe que não está “comodamente” fechado em si mesmo. Arte do
destronamento e da discussão.

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Este é o método epistêmico, o olhar que proponho ao leitor para visualizar a mentira, o
neobarroco, para obtermos dele o que Affonso Ávila ( Chiampi, 2000 ) chama “ a
rebelião pelo brincar. Sem deixar de ser histórico , o barroco lúdico-sério, porém
jamais caquético”.

Alberto, acreditas mesmo que podemos entender a mentira com um olhar neobarroco?
Não será isto, mais uma mentira intelectual, uma impostura?

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12. Epílogo
Caso o leitor tenha chegado até o final deste “livro de bolso”, “breve ensaio”, texto
baseado nas folhas amareladas de almaço, escritas a tinta, letrinha ajeitada, bonita,
caneta de tinta, que um dia um homem, que se atormentava por ser humano,
demasiado humano, pois se acreditava ser um “mentiroso”, perseguido pela “verdade”,
oprimido por ela, me deixou na mesinha da sala de espera do consultório, e que num
final de semana invernoso resultou neste livro, que acabastes de ler, descobri: fostes tu
que deixou o envelope, paysano. Sim, não nega, comparsa, fostes tu, tchê debochado,
do mesmo estofo de que eu sou feito, que me passou as idéias e eu as completei, com as
minhas próprias idéias. Não minta, seja humano, demasiado humano, este é o homem:
tu e eu, nós.

Senhor Alberto Caeiro

Receba este livro em reposta às suas indagações. Ele não é uma resposta, pois como
Blanchot, acredito que o pior que pode acontecer à uma boa pergunta é uma resposta
“ilustrada”. A “boa resposta” mata a pergunta inteligente e a curiosidade do
perguntador. O que desejo é que o senhor pense e vá tirando suas próprias
conclusões, vá lidando com suas dúvidas, pois como disse o filósofo Nietzsche o que
enlouquece é a certeza e não a dúvida. Festeje suas dúvidas. Certamente nos
encontraremos por aí, em algum espelho, quem sabe? Quero agradecer o material
enviado, pois me fez pensar bastante. Espero que o livro lhe seja útil.Se nos
encontramos pessoalmente, por aí, se apresente.
Um abraço do autor
José Outeiral

Desta maneira, leitor, la nave va...

That´s all folks

12. Bibliografia
Barthes, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro. Francisco Alves.
1998

Baudelaire, C. O spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Imago. Rio de janeiro.


1995

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