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DADOS DE ODINRIGHT

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Rosa Montero

O perigo de estar lúcida


tradução
Mariana Sanchez
Para minhas editoras espanholas e amigas queridas, Elena Ramírez, da
Seix Barral, e Pilar Reyes, da Alfaguara, extraordinárias profissionais e
mulheres lindas, generosas e sábias. Tê-las por perto é um privilégio.
Para a grande Anne Marie Métailié, criadora, à base de magia e
talento, de uma das editoras mais notáveis da França, e para Manuel
Valente, meu formidável editor português, além de excelente poeta. Para
meus outros editores espanhóis e estrangeiros, e para todas as pessoas
que trabalharam nos meus livros, tanto na Espanha quanto no exterior,
sejam coordenadores, assessores de imprensa, da área comercial, do
administrativo ou office boys. Para toda a equipe da agência literária
Carmen Balcells, Lluís Miquel Palomares, Carina Pons, Maribel
Luque, Glòria Gutiérrez, Javier Martín, Ivette Antoni, Nuria
Coloma, Ramón Conesa, Carles Masdeu, Núria Rodríguez e todos os
demais, meus irmãos no caminho da literatura: amo vocês. Para meus
esforçados tradutores, especialmente os amigos Lilit Thwaites (inglês),
Myriam Sumbulovich, Iaia Caputo e Bruno Arpaia (italiano), e
Myriam Chirousse (francês) — os três últimos, aliás, estupendos
romancistas. Para todos os livreiros que eu amo, mas também para os
que ainda não conheço, anjos generosos que cuidam dos meus livros.
Para os bibliotecários, peça essencial do tecido cultural de um país. E,
acima de tudo, para você que está me lendo. Obrigada, muito obrigada.
Sem vocês, eu não existiria. Vocês são minha família de tinta e de
palavras.
Tendo visto com que lucidez e coerência lógica certos delirantes
sistematizados justificam, a si próprios e aos outros, as suas
ideias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez
da minha lucidez.

Fernando Pessoa

É uma pena que os loucos não tenham o direito de falar sensatamente


sobre as loucuras das pessoas sensatas.

William Shakespeare

Meus admiradores acreditam que estou curada, mas não; apenas virei
poeta.

Anne Sexton
Capa
Folha de Rosto

Chupando cobre
Sou multidão
Os entomólogos não choram
Estupor e fraude
O abutre impaciente
Elogio dos imaturos
Uma família lamentável e magnífica
Um mar de caos
Tempestade perfeita número 1
A musa malvada
Contra o medo
Como crianças no cemitério
Tempo de presentes
Pesadelos geométricos
Viciados em intensidade
Verdadeiras verdades mentirosas
Tempestade perfeita número 2
Isso é o que vejo
Como nasceu o menino
Debaixo da cama e berrando
A grande dança
Tudo
Essas noites magníficas

Agradecimentos, fontes e uma notícia


Apêndice
Nota da tradutora

Autora

Créditos
Chupando cobre

Sempre soube que alguma coisa dentro da minha cabeça não


funcionava direito. Aos seis ou sete anos, todos os dias, antes de
dormir, eu pedia à minha mãe que escondesse um pequeno enfeite
que havia em casa, um horroroso caldeirãozinho de cobre, o típico
objeto de loja de suvenires baratos ou talvez até mesmo um brinde
de restaurante. E eu lhe pedia isso não porque me incomodasse
com a feiura daquele troço, o que teria sido um tanto estranho,
porém, de certo modo, distinto, e sim porque havia lido em algum
lugar que o cobre era venenoso, e tinha medo de me levantar
sonâmbula no meio da noite e começar a lamber o caldeirão. Não
sei bem como pude ter essa ideia (com o agravante de que jamais
fui sonâmbula), mas eu mesma achava aquilo esquisito na época. O
que não impediu que eu me visualizasse claramente chupando o
metal e que, aterrorizada, durante um certo tempo pedisse à minha
mãe que porfavorporfavor guardasse o objeto em algum
esconderijo, de preferência um lugar diferente a cada vez, para que
me fosse impossível encontrá-lo. Minha imaginação, como se vê,
sempre galopou por conta própria. E minha maravilhosa mãe
assentia muito séria e prometia guardá-lo bem guardado. Entendia
as crianças de um jeito mágico, e agora penso que é provável que
ela tivesse ideias semelhantes quando pequena. Porque também
tinha a cabeça nas nuvens.
Para piorar, quando me tornei adulta, descobri que o cobre não
é venenoso. Quer dizer, não tão venenoso. Pode intoxicar, é claro,
mas em grandes e prolongadas doses, e os primeiros sintomas são
apenas enjoo e uma diarreia. Eu poderia ter chupado o maldito
caldeirão por um bom tempo sem que nada ocorresse. Isso é algo
que acontece com frequência: você vai crescendo e um belo dia
descobre que aquilo em que acreditava firmemente na infância era
uma falácia ou uma bobagem. A vida é uma constante reescrita do
passado. Uma desconstrução da infância.
Uma das coisas boas que fui percebendo com os anos é que ser
estranho não é nada estranho, ao contrário do que o termo pode
sugerir. Na verdade, o que é realmente estranho é ser normal. Uma
pesquisa do Departamento de Psicologia da Universidade Yale, nos
Estados Unidos, publicada em 2018, afirma algo que basta
pensarmos um pouco para tornar-se óbvio: a normalidade não
existe. Porque o conceito de normal é uma construção estatística
derivada do mais frequente. Em primeiro lugar, que uma
característica seja menos frequente não implica uma anormalidade
patológica: por exemplo, ser canhoto (há apenas entre 10% e 17%
de canhotos no mundo). Além disso, como o modelo ideal de
indivíduo normal é elaborado pela média estatística de uma
pluralidade de registros, não deve haver uma única pessoa no
planeta que gabarite o conjunto de valores. Todos guardamos no
fundo do nosso coração alguma divergência. Somos todos
esquisitinhos, embora, é verdade, uns mais do que outros.
Inclusive, eu diria que ser um pouco mais estranho que o
habitual também não é incomum. Na verdade, isso acontece com
frequência entre os criadores — diga-se em minúsculas: entre os
artistas de qualquer categoria, sejam bons ou ruins. Este livro é
exatamente sobre isso. Sobre a relação entre a criatividade e uma
certa extravagância. Sobre se a criação tem algo a ver com a
alucinação. Ou se ser artista te torna mais propenso ao
desequilíbrio mental, como se tem suspeitado desde o início dos
tempos: “Não há gênio sem uma dose de loucura”, dizia Sêneca.
Ou Diderot: “Como o gênio e a loucura são parecidos!”. E por
gênio, insisto, entenda-se todo indivíduo criativo, da qualidade que
for, pois estou convencida de que o pior artista e o mais sublime
partilham da mesma estrutura mental básica. Já apontou a
formidável (e deprimida) Clarice Lispector: “Vocação é diferente
de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser
chamado e não saber como ir”.
Voltando à abundância de manias entre os criadores, e para citar
apenas algumas a título de aperitivo, direi que Kafka, além de
mastigar cada porção 32 vezes, fazia ginástica pelado com a janela
aberta e um frio de rachar; Sócrates usava sempre a mesma roupa,
andava descalço e dançava sozinho; Proust se enfiou na cama um
dia e nunca mais saiu (assim como muitos outros, entre eles Valle-
Inclán e o uruguaio Juan Carlos Onetti); Agatha Christie escrevia
na banheira; Rousseau era masoquista e exibicionista; Freud tinha
medo de trens; Hitchcock, de ovos; Napoleão, de gatos; e a jovem
escritora colombiana Amalia Andrade, de quem obtive os três
últimos exemplos de fobias, tinha medo na infância de que lhe
crescessem árvores dentro do corpo por ter engolido uma semente
(o que eu acho bem parecido com lamber cobre). Rudyard Kipling
só conseguia escrever com tinta bem preta, a ponto de o preto
azulado já lhe parecer “uma aberração”. Schiller punha maçãs
estragadas na gaveta da sua mesa, pois para escrever precisava
sentir o cheiro da podridão. Na velhice, Isak Dinesen comia tão
somente ostras e uvas brancas com um pouco de aspargo; Stefan
Zweig era um obsessivo colecionador de autógrafos e enviava três
ou quatro cartas por dia a suas personalidades favoritas, pedindo
uma assinatura… Para não falar de Dalí, que sempre foi o rei das
extravagâncias.
Mas acho que há muitas outras pessoas que, apesar de não
terem se dedicado à arte de modo profissional, são igualmente
imaginativas e maníacas. Eu me lembro da amiga de uns amigos,
uma mulher que parecia extraordinariamente serena e sensata.
Certo dia, ela me contou que sempre juntava suas unhas cortadas e
as guardava em caixinhas de fósforo, e que, quando se divorciou,
mandou uma dessas caixinhas ao ex-marido. A história me pareceu
tão chocante que a incluí num artigo que publiquei no jornal El
País sobre comportamentos peculiares. Para minha surpresa, vários
leitores me escreveram contando que faziam a mesma coisa. As
estranhezas abundam.
Por isso, tenho certeza de que muita gente deve ter se
identificado com a primeira frase deste livro. Pessoas que se
perceberam diferentes e até mesmo inadequadas desde crianças. É
que não estamos apenas falando de manias mais ou menos
inofensivas, como, por exemplo, arrancar e comer as pelezinhas
dos dedos (chama-se dermatilomania e eu tenho isso), mas
também desse vasto, impreciso, temido e tenebroso território
íntimo que costumamos chamar de loucura. Um nome pouco
acertado e retumbante.
Mais de 300 milhões de pessoas sofrem de depressão no
planeta, e o pior é que a incidência parece estar aumentando (o
número total subiu 18% entre 2005 e 2015). Cerca de 800 mil
pessoas se suicidam a cada ano (na Espanha, quase 4 mil). Um por
cento dos seres humanos desenvolverá alguma forma de
esquizofrenia ao longo da vida, e 12,5% dos problemas de saúde
mundiais se devem a doenças psiquiátricas, um número maior que
o do câncer ou de enfermidades cardiovasculares. Segundo a
Organização Mundial da Saúde, uma a cada quatro pessoas na
Terra sofrerá de transtorno mental em algum momento da sua
existência. São números impactantes, mas são ainda piores os que
se referem ao estado psíquico dos artistas, e em especial de nós,
escritores, que aparentemente colhemos os louros em matéria de
maluquice. Sim, eu sei que quando falamos de criadores insanos
todos pensamos na mesma hora na orelha sanguinolenta de Van
Gogh, mas diversos especialistas concordam que os artistas
plásticos sofrem menos desequilíbrios, e os músicos, muito
poucos, enquanto aqueles que se dedicam a juntar palavras têm
maior tendência ao descalabro mental. Segundo um célebre estudo
da psiquiatra Nancy Andreasen, da Universidade de Iowa, nos
Estados Unidos, os escritores têm quatro vezes mais chances de
sofrer de transtorno bipolar e até três vezes mais de padecer de
depressão do que pessoas não criativas. No entanto, o estudo
também atribui aos autores altas doses de intensidade, entusiasmo
e energia, por mais paradoxal que pareça (atenção a esse dado: é
importante e voltaremos a ele). Outros pesquisadores, como
Jamison e Schildkraut, defendem que entre 40% e 50% dos
escritores e artistas criativos sofrem de algum transtorno de
ânimo. É como jogar roleta com uma bola de chumbo: são muitas
as chances de que ela caia em você.
Em mim já caiu. Faço parte da estatística geral, daqueles 25%
que sofrerão algum problema mental ao longo da vida, e também,
por consequência, da estatística particular dos escritores pirados.
Sofri ataques de pânico dos dezessete aos trinta anos, não o tempo
inteiro, felizmente, pois teriam sido bastante incapacitantes, mas
articulados em torno de três períodos, cada um de um ano ou um
ano e meio de duração: o primeiro, como disse, aos dezessete;
outro, aos 21; e o último, aos 29. Enfim, meu caso não é de
depressão, mas de angústia. Porém, quando você diz que sofreu
crises de angústia, quem nunca navegou por esse mar sombrio não
entende do que você está falando. As pessoas acham que você se
refere a estar estressada, a se preocupar demais com algo, a se
atormentar mentalmente. Eu vejo como me olham e pensam: ah,
isso também já aconteceu comigo. Mas não, não aconteceu com
elas. Um ataque de pânico é outra coisa. É uma dimensão
desconhecida, uma viagem a outro planeta. O transtorno psíquico
é um súbito e inesperado raio que te fulmina. Sua chegada
devastadora tem certa semelhança com os acidentes domésticos
graves. Imaginemos, por exemplo, um deslize e uma queda no
banheiro que fratura suas costas: um segundo antes, sua vida era
normal e vertical, indolor e sequencial, vinha do passado e se
projetava em direção ao seu pequeno e próximo futuro (tomar
banho, se vestir e ir trabalhar, ou então escovar os dentes e ir para
a cama), e, um segundo depois, sem prever nem pensar, você se
encontra horizontal e quebrada, atônita, indefesa, dilacerada por
uma dor indizível, eliminada da sua vida e da sua realidade por
muito tempo, talvez para sempre, se a lesão for importante. Pois
bem, é assim que a crise mental se abate sobre você. Parece vir de
fora e te sequestra.
Na primeira vez, eu me encontrava sozinha na copa de casa.
Deviam ser onze horas da noite e eu estava assistindo à televisão
sem muito interesse, talvez porque não tivesse vontade de
terminar de tirar a mesa, como era minha obrigação. Meu pai devia
estar indo dormir; minha mãe, na cozinha; meu irmão mais velho,
sabe-se lá onde. Então, aconteceu: a sala começou a se distanciar
de mim, o mundo inteiro encolheu e passou para o outro lado de
um túnel escuro, como se eu estivesse olhando a realidade através
de um telescópio. E junto com a anomalia visual veio o terror, uma
onda de pânico indizível, um medo puro e duro de uma
intensidade que eu jamais experimentara antes e que, além de
tudo, não tinha nenhuma causa aparente. “O pior era a sensação de
terror constante sem fazer a menor ideia do que eu tinha medo”,
diz o psicólogo Andrew Solomon sobre uma depressão que sofreu.
Eu também não sabia por que estava assustada, mas me sentia
prestes a morrer de susto. Meu corpo tremia com violência e meus
dentes batiam e, para piorar as coisas, segundos depois surgiu
outro medo, este sim já com motivo: a convicção de estar louca.
Afinal, de que outra forma seria possível entender o que estava me
acontecendo?
Virginia Woolf sofreu sua primeira crise mental aos treze anos.
Ela estava caminhando por uma trilha quando topou com uma
pequena poça. “Por algum motivo que não consegui descobrir,
tudo de repente era irreal e fiquei em suspenso, não podia pular a
poça […]. O mundo inteiro se tornou irreal.” Naquele mesmo dia, à
noite, enquanto tomava banho com sua irmã Vanessa, aconteceu
de novo: “O horror voltou, não falei nada, não podia explicar, nem
mesmo à Nessa, que se esfregava com a esponja do outro lado da
banheira”. Virginia habitava o penoso território da psicose. Nas
suas crises, ouvia os pássaros cantarem em grego clássico e
acreditava ver agachado entre os arbustos do jardim o rei Eduardo
dizendo indecências. Foi hospitalizada repetidas vezes e tentou se
suicidar em diversas ocasiões, a primeira pulando de uma janela
que se revelou baixa demais, depois tomando Veronal, e a última e
definitiva, aos 59 anos, enchendo os bolsos de pedras e se
afogando no rio Ouse. Quero dizer que, para minha sorte, meus
transtornos mentais são infinitamente menos graves que os dela.
E, ainda assim, a descrição daquele momento fundador, do
instante em que o mundo mudou para nunca mais ser o mesmo, da
irrupção das trevas, é extraordinariamente parecida com a que vivi.
A sensação de que algo te assalta externamente, como se um
gigante tivesse dado um chute que te arremessasse para fora da
vida; a incompreensão do que está acontecendo; a incapacidade de
pôr em palavras o indizível; a perda de contato com a realidade
(atenção para esse ponto: é essencial e voltaremos a ele). Sei muito
bem do que Virginia fala. Eu também estive ali.
A princípio, você acha que nunca mais vai voltar à normalidade,
que ficará presa para sempre nessa atormentada dimensão de
pesadelo, mas na realidade as crises de pânico duram poucos
minutos e depois vão se dissolvendo. Não por completo,
evidentemente. Sempre fica o medo do medo (o terror absoluto de
voltar a cair no buraco) e uma vaga sensação de apatia e irrealidade
que gruda em você como um sudário. Nos piores momentos, você
não se atreve a frequentar reuniões sociais, a sair para a rua ou
dirigir, com medo de que se repita. Não suporta assistir à televisão
ou ir ao cinema, porque a falta de confiabilidade do mundo parece
aumentar. Claro, você volta a ter outros ataques, no meu caso cada
vez mais espaçados, e ao cabo de um ano ou um ano e meio, mais
ou menos, você recupera sua vida. Até o próximo período de
trevas. Na Espanha daquela época, e na minha modesta classe
social, nem meus pais nem eu pensamos em ir a um psiquiatra.
Superei os três períodos de crise de pânico com a cara e a coragem,
sem tomar um só ansiolítico, algo que lamento (viva a química!).
Mas, depois dos meus primeiros terrores, decidi cursar psicologia
na universidade para tentar entender o que estava acontecendo
comigo. Com o tempo, cheguei à conclusão de que é isto que a
maioria dos psicólogos e boa parte dos psiquiatras faz: entrar para a
profissão por achar que estão malucos. O que não tem por que ser
algo negativo, pois gera uma empatia única pelos pacientes.
É que, se você não esteve ali, não pode sequer imaginar do que
estou falando. Minha mãe, com sua percepção extrassensorial, me
aconselhou a não tomar café, coisa que, na falta de ansiolíticos,
continua me parecendo uma medida razoável. Exalto sua
percepção porque ela intuiu o que me acontecia sem que eu
dissesse nada, já que, como Virginia Woolf deixou claro, quando se
sofre um transtorno mental, a primeira coisa arrancada de você é a
palavra. E com isso chegamos ao núcleo incandescente do que
chamamos de loucura. Estar louco é, sobretudo, estar só. Mas falo
de uma solidão descomunal, de algo que não se parece em nada
com o que entendemos quando dizemos a palavra solidão. Ainda
não foram inventadas as letras capazes de conter e descrever uma
solidão assim. Tente imaginá-la: já falei que a realidade passa para o
outro lado de um túnel, que é o mesmo que dizer que você se
afasta da realidade e perde todo contato com ela. De repente já não
pertence à raça humana, você é um alienígena, o único alienígena
que conhece, desgarrado subitamente da pele do mundo. Como
vai explicar o que está acontecendo com você, para quem, com que
palavras, em que língua marciana que você ainda nem aprendeu?
Somos animais sociais. A ruptura radical de todo vínculo com os
outros é simplesmente insuportável. Tentei descrever essa solidão
que não cabe na palavra solidão num congresso de psicólogos e
psiquiatras, e alguns, muito toscos (nota-se que não eram daqueles
que entraram para a profissão pelas suas loucuras), balançavam a
cabeça muito sabichões dizendo que sim, que é claro, que era
como a solidão existencial diante da morte. Mas não. Não é isso.
Obviamente ainda não atravessei essa última porta, mas já
acompanhei umas quantas viagens. Morrer faz parte da vida.
Morrer é um fato profundamente humano. Você morre sozinho,
sim, talvez com sua dor e com seu medo, mas morre sabendo que
todos iremos pelo mesmo caminho. É cumprir mais uma vez com
o destino comum. Todos os indivíduos experimentaram essa
realidade desde o princípio do mundo. Enquanto a loucura, por
outro lado, te faz acreditar equivocadamente que aquilo que está
vivendo só é experimentado por você. Que não há ninguém com
quem possa se irmanar. Sentir-se louco é sentir que de algum
modo você já não pertence à espécie humana.
Na Universidade Complutense de Madri, fiquei sabendo que
sofria de crises de pânico, e que era um transtorno neurótico
bastante comum, uma espécie de gripe dos desequilíbrios mentais.
Também descobri que, embora não sejamos conscientes disso, o
medo, em última instância, é medo da morte, mas ele está tão
sepultado pelo terror cego que não chegamos a distinguir o que
nos aterroriza. E o sofrimento é tanto que em certos momentos até
preferiríamos estar mortos, um exemplo perfeito de raciocínio em
curto-circuito: a morte nos assusta e, para não sofrer com esse
susto, escolheríamos morrer. No meu caso, falo apenas de uma
vaga sensação de alívio diante da simples ideia da não existência,
porque nunca tive pensamentos suicidas reais. Mas acredito que
quem acaba atentando contra a própria vida possa ter nós mentais
parecidos. A propósito: de acordo com um estudo sueco, os
escritores têm 50% mais chances de se suicidar do que a população
em geral.
Os problemas psíquicos são muito variados e de distinta
gravidade. Há angústias, paranoias, transtornos obsessivo-
compulsivos, transtornos bipolares, psicoses… Nessa loteria de
cérebros estranhos (“desde que me tornei adulto, vejo a mim
mesmo como alguém um pouco mais neurótico que a média”, diz
Emmanuel Carrère), ganhei um doce, um prêmio, um tesouro.
Uma condição mental leve e não incapacitante à qual na verdade
sou muito grata, pois me permitiu conhecer uma parte da
existência de uma amplitude e uma intensidade avassaladoras.
Repito: se você não esteve ali, no território da loucura, não pode
nem imaginar o que é. Meus ataques de pânico foram como uma
excursão relativamente segura e sem real perigo ao outro lado do
turbulento rio da psicose. Take a walk on the wild side, como dizia
Lou Reed, que recebeu eletrochoques na adolescência e que,
quando o entrevistei para o El País, me contou com toda a
naturalidade como uma voz vinda do banco traseiro do seu carro
vazio um belo dia o aconselhou a abandonar as drogas. Sim, vá dar
uma volta pelo lado selvagem. Eu fui, vi e voltei. Conheci e
compreendi, me tornei mais empática e mais sábia. Por isso posso
entender o que Virginia Woolf está falando.
Aconteceu o mesmo com a neozelandesa Janet Frame, uma
escritora que adoro, não só pelos seus textos, mas pela coragem
luminosa com que viveu sua duríssima vida e pela boa pessoa que
devia ser — basta ler sua autobiografia, An Angel at my Table [Um
anjo em minha mesa]. Diagnosticada equivocadamente como
esquizofrênica, Janet foi internada num hospital psiquiátrico dos
22 aos trinta anos, primeiro de modo voluntário, depois forçado.
Aplicaram nela inúmeros eletrochoques e inclusive estiveram
prestes a lhe fazer uma lobotomia (mais tarde contarei o modo
fascinante como escapou de ter parte do seu cérebro fatiado). Mas
ela conseguiu se livrar do rótulo de psicótica e deu um jeito de
viver de modo autônomo e produtivo até a respeitável idade de 79
anos. Pois bem, Janet recordou aqueles tempos tenebrosos com
estas palavras: “Eu habitava um território de solidão parecido com
o lugar onde permanecem os moribundos até a morte chegar e de
onde, se alguém voltar vivo ao mundo, traz consigo
inevitavelmente um ponto de vista único que é um pesadelo, um
tesouro e um bem para a vida toda”. Sim, mesmo ela, tão castigada,
considerava que ter visto o inferno, e ter saído dele, é, além de um
horror, um privilégio.
Após a morte da minha mãe em plena pandemia — não de
Covid, mas de velhice —, encontrei, vasculhando seus papéis, um
envelope pardo com uma folha de papel dentro, escrita à máquina.
Era um laudo médico de quando eu tinha dois anos e três meses,
feito pelo dr. Alonso Muñoyerro, à época diretor do Instituto
Provincial de Puericultura de Madri e, aparentemente, uma
verdadeira eminência (meus pais o admiravam muitíssimo). Numa
tipografia irregular e borrada, o laudo dizia:

Espasmofilia (tetania latente). Antecedentes de falso crupe. Eu


diria espasmo de glote. Dieta alimentar: a menina não deve
tomar muito leite, no máximo pela manhã no café, porque em
crianças espasmofílicas o leite acentua a espasmofilia. Não deve
tomar café, nenhum tipo de alimento forte. Paricalcitol no
almoço e jantar, uma colher de chá pequena.
Isso de não tomar café quando eu tinha dois anos me deixou besta,
mas abandonei o assunto para me lançar imediatamente à pesquisa
dos termos médicos no Google. E agora vem o melhor.
A tetania é um distúrbio que causa espasmos e contrações e é
decorrente de uma hipocalcemia, isto é, de um nível baixo de
cálcio no sangue. Até aqui, tedioso e normal. Mas espere um
pouco, porque a coisa começa a ficar mais interessante: a tetania
pode levar a depressões, alucinações e ansiedade. E agora se
segure, porque a espasmofilia, que ao que parece é um termo um
pouco antiquado, é definida por diversos sites médicos da seguinte
maneira:

“A vulnerabilidade ao estresse e a instabilidade fisiológica e


psicológica são as principais características da espasmofilia.”
“A espasmofilia é uma hiper-reação ao estresse.”
“O principal sintoma da espasmofilia é um ataque de pânico
associado a uma hiperventilação. Também é habitual que haja
dores de cabeça e enxaquecas.”

E o que me pergunto agora é: como diabos aquele médico — o


qual, mais que uma eminência, devia ser vidente — pôde ver que
aquele botãozinho de carne que é uma menina de dois anos iria
sofrer ataques de pânico, gerenciar o estresse de modo catastrófico
e até mesmo ter enxaquecas? (Padeci de terríveis cefaleias
hemicranianas dos doze aos 55 anos.) E de que me serviram os três
tratamentos psicanalíticos que fiz em diversas etapas da vida, o
tempo e dinheiro investidos, se esse senhor já tinha visto tudo
com uma só espiada quando eu era bebê? Agora entendo sua
recomendação de não tomar café como uma precaução para minha
vida toda (suponho que previa uma condição duradoura), e de fato
ela curiosamente reverbera no conselho que minha mãe me daria
anos depois.
Na minha época de universidade, nos últimos anos do
franquismo, a velha disputa sobre o que mais influenciava o ser
humano, se o meio ou a hereditariedade, era resolvida de goleada a
favor do meio: eram tempos em que a intelectualidade estava
profundamente marcada pelo marxismo. Agora, passamos em
massa para o extremo oposto, e tudo é biologia e genética. Não
tenho a menor dúvida de que, com efeito, a influência fisiológica é
imensa, como prova a história da maldita espasmofilia: sem dúvida
certos desequilíbrios hormonais, químicos, sinápticos, produzem
uma série de sintomas claramente diagnosticáveis num bebê que
podem estar associados a outras patologias vindouras. Até o século
XIX, os distúrbios mentais eram considerados apenas mais uma
doença do corpo. No mundo clássico, eram causados por um
excesso de bile negra. A ideia de que o transtorno psíquico é algo
misterioso e etéreo sem relação com o resto do organismo
imperou durante poucos séculos, mas causou muito estrago. “Até
1990, era comum classificar as doenças psiquiátricas entre
orgânicas e funcionais, como se corpo e mente fossem coisas
distintas”, diz o prêmio Nobel de medicina Eric R. Kandel. E não,
é claro que não são.
Kandel também diz isto: “Ao que parece, todas as alterações
psiquiátricas surgem quando certas partes da rede neural — alguns
neurônios e os circuitos em que se encontram — são hiperativas,
estão inativas ou são incapazes de se comunicar de modo eficaz”.
Seria, portanto, uma espécie de falha na fiação neurológica,
embora ainda não se saiba se isso pode ser por um defeito
genético, por fraturas microscópicas ou alterações nas sinapses (a
conexão entre os neurônios). Assim, não restam dúvidas de que,
naquilo que chamamos de loucura, sempre há uma base biológica,
química e elétrica. O que complica a coisa é que existem
influências externas que alteram nossa biologia. As circunstâncias
sociais, por exemplo, podem nos fazer produzir cortisol em
demasia, que é o principal hormônio do estresse. Se estamos
angustiados durante muito tempo, o cortisol pode alcançar
concentrações excessivas e destruir as conexões entre os
neurônios do hipocampo, uma parte do cérebro importantíssima
para a memória, e do córtex pré-frontal, que regula a vontade de
viver e influencia na tomada de decisões. “As carências sociais ou
sensoriais durante os primeiros anos de vida danificam a estrutura
do cérebro”, continua Kandel. “De modo similar, precisamos de
interação social para continuarmos sendo inteligentes na velhice.”
E o neurocientista David Eagleman conta, no livro Incógnito, que
os especialistas estão há décadas procurando o gene relacionado à
esquizofrenia e, com efeito, já descobriram uma porção deles. Mas
vários estudos mostram que nenhum desses genes te predispõe a
sofrer de determinada doença tanto quanto a cor do seu
passaporte. “A tensão social de ser emigrante num país novo é um
dos fatores fundamentais para padecer de esquizofrenia.” De modo
que, sim, genética é essencial, mas o meio também.
Esses temas sempre me interessaram, mas desde que decidi
escrever um livro sobre criação e loucura, comecei a ler
compulsivamente sobre o assunto. Estou há cerca de três anos
sepultada sob dezenas de volumes não só de psicólogos,
psiquiatras e neurologistas, como também de escritores mais ou
menos oficialmente birutas, ou de suicidas, ou de autores que
escrevem sobre o ofício de escrever, ou de especialistas estranhos
que falam da relação dos artistas com as drogas e coisas assim. Para
não transformar a leitura deste livro num contínuo tropeço
insuportável, não estou incluindo no texto quase nenhuma das
fontes do que conto; todas elas estão compiladas ao final do
volume, e espero que fiquem claras minha gratidão e minha dívida.
É uma lista bastante longa, mas recomendo encarecidamente que
você a leia até o fim: a perseverança tem sua recompensa.
Essa imersão no tema, esse mergulho nas contribuições dos
outros e na autoanálise da minha própria cabeça esburacada têm
sido uma experiência emocionante. Aprendi muitíssimo e até
acredito ter descoberto coisas importantes para mim. Mas tenho
uma torrente tão grande de dados e de ideias no cérebro que
começar a escrita do livro no computador foi mais difícil para mim
que o habitual. Devo confessar que passava semanas
procrastinando (ou, trasmañanando, para usar outra palavra
maravilhosa e muito espanhola). Na verdade, tenho várias pilhas de
livros sobre o assunto ainda por ler, e eu poderia muito bem ter
continuado estudando e tomando notas pelo resto da vida sem
nunca passar à ação. Textos não me faltariam, com certeza. E
tentações eu tive.
Sempre dá um pouco de medo finalmente sentar-se em frente
ao computador e começar a etapa da escrita formal, por assim
dizer. Escrever é sem dúvida reescrever; você faz e refaz cem vezes
o mesmo parágrafo, e às vezes joga um capítulo inteiro no lixo e
volta a escrevê-lo com mudanças importantes. Mas a verdade é
que, uma vez escrita uma ideia ou uma cena, essa imagem já fica de
certo modo aprisionada pela realidade, manchada pela forma que
você lhe deu. Você nunca mais será tão livre na busca por uma
expressão exata como quando a história ainda não havia saído ao
mundo e se limitava a girar na sua imaginação, virgem ainda de
palavras concretas. Eu me lembro de que, numa aula de catecismo
da minha infância, diziam que a alma era como uma ripa de
madeira fina e bem envernizada, e que os pecados eram pregos que
introduzíamos nela. Após a confissão e a absolvição, os pregos
eram arrancados, mas a ripa ia sendo destruída com tanto furo.
Não acredito em alma, mas sim na volatilidade das musas. Quero
dizer que às vezes você está mais inspirada e, às vezes, menos. Em
alguns momentos, acontece um tipo de magia e você se descobre
escrevendo melhor do que sabe escrever. Mas em outros é como se
tivessem vendado seus olhos e você ficasse cega, e então você
martela o computador e dá às suas ideias uma forma tosca, pregos
feios que, embora arrancados depois, deixarão feridas permanentes
na ripa.
Jean Cocteau conta que experimentou uma espécie de
iluminação com sua melhor obra, Les Enfants terribles [As crianças
terríveis]: “As últimas páginas foram escritas subitamente uma
noite, em minha cabeça […]. Eu me sentia dividido entre o medo
de perdê-las (se não as anotasse) e o de ter que fazer um livro que
fosse digno delas”. Às vezes, a cabeça escreve por si só
maravilhosamente. Às vezes, a escuridão do seu crânio se ilumina
como na explosão de uma supernova. Ali está toda aquela energia e
aquele pó de estrelas girando, dançando e emitindo a música das
esferas, o som poderoso da criação do mundo. E você tem a
intuição de que a obra total está próxima, muito próxima, quase ao
alcance dos seus dedos, aquele texto essencial que revelaria o
sentido da vida e ao qual infelizmente você jamais chegará. Quanto
mais você gosta da ideia daquilo que vai escrever, mais medo tem
de não estar à altura da sua musa. A obra está sempre à espreita,
assim como a loucura. A questão é saber quem acaba ganhando.
Sou multidão

Passei a vida inteira tentando entender por que escrevem aqueles


que escrevem e, ao longo dos anos, fui adquirindo uma pequena
coleção de hipóteses que não são contraditórias, mas que, antes,
podem se complementar. Um dos motivos, que funciona com os
romancistas e dramaturgos e sem dúvida também, dentro de outro
ramo criativo, com atrizes e atores, é a possibilidade de que
sejamos pessoas mais dissociadas que a média, ou pelo menos mais
conscientes da nossa dissociação. “Acho que a maioria dos
romancistas às vezes tem a consciência de conter multidões […].
Não aderem ao senso comum sobre o que é o eu”, disse a
maravilhosa Ursula K. Le Guin. E acrescentava: “Em quase todas
as pessoas, os desdobramentos desse tipo podem indicar certa
loucura […], mas os escritores de que falo eram pessoas muito
eficientes em suas duas encarnações, a de carne e a de papel”. O
colombiano Héctor Abad diz algo parecido: “Minha fantasia é de
que vivo duas vidas: essa que estou vivendo, a quente, e outra que
vou imaginando, que não é passado nem futuro, mas um presente
distinto. A vida que escrevo”.
Quando Robert Louis Stevenson publicou em 1886 seu
romance O médico e o monstro, ele trouxe à luz algo que nós
humanos sabíamos muitos séculos antes, mas que havíamos
esquecido. Algo que não podíamos reconhecer porque não
tínhamos palavras para nomear: que dentro de nós éramos muitos.
Stevenson nos emprestou aquelas palavras e, com ele, começou a
desmoronar a fiabilidade do eu e da realidade, essa construção
imaginária, essa pétrea ilusão de certeza que imperava no século
XIX. Eis o que nos disse o dr. Jekyll: “Aventuro-me a supor que, no
final das contas, o homem será considerado uma mera sociedade
de múltiplos habitantes incongruentes e independentes entre si”.
Hoje, quase 150 anos depois dessa premonição, a ideia de que
vários eus nos habitam é algo bastante aceito, a ponto de existirem
até mesmo comerciais de TV brincando com esse conceito, como o
de uma marca de óculos que recomendava usar várias armações
por dia, dependendo se você era o eu profissional da empresa, o eu
esportista, o eu pai jovem, o eu amante fogoso. Ainda assim,
acredito que a intuição desse alvoroço interno seja bastante
superficial na maioria das pessoas, e que nós romancistas (e outros
espécimes) vivemos a dissociação de modo muito mais radical,
assumindo, como dizia Jekyll, toda a nossa incongruência interior.
Há uma frase de Henri Michaux que adoro: “O eu é um
movimento na multidão”. Muito acertada. Na multidão que nos
habita, o eu é um rabisco fugaz, um rastro de fumaça que vai
mudando constantemente de forma. O fato de nós romancistas
experimentarmos essa pluralidade e essa falta de firmeza no ser de
modo mais agudo do que a média parece algo inquestionável, tanto
pelas muitas manifestações dos autores a esse respeito quanto pelo
amor que nós escritores costumamos demonstrar pelos
heterônimos, pseudônimos, impostores, falsificadores e jogos
especulares em torno da dualidade. Meu conto preferido da
história da literatura é “Wakefield”, de Nathaniel Hawthorne
(1804-64). Nele, um respeitável burguês londrino sai de casa uma
tarde para uma viagem de trabalho de dois dias e, ao invés de
voltar, aluga um apartamento quase em frente ao seu domicílio e
fica ali, escondido, contemplando o vazio deixado pela sua
ausência: as lágrimas da mulher, a consternação geral, a reação dos
amigos… Ele passa vinte anos fora de si, literalmente, até que um
dia volta ao lar como se nada tivesse acontecido e retoma a feliz
convivência com sua esposa até a morte. Quem nunca desejou
fugir do confinamento da própria vida? E não porque não
gostemos dessa vida, mas porque uma existência única, por maior
e melhor que seja, sempre será uma espécie de prisão, uma
mutilação das outras realidades possíveis, dos outros indivíduos
que poderíamos ser. Quem nunca desejou ser outro? Conter-se
dentro de uma só identidade é empobrecedor. Quando o eu é algo
que se agita dentro de você, a construção do ser é uma tarefa
complicada. Com Hawthorne provavelmente aconteceu algo
assim. Órfão de pai aos quatro anos, quando era muito jovem
sofreu um acidente do qual demorou a se recuperar, e então, após
uma fase infeliz na universidade, voltou à casa da família e se
internou ali durante quase doze anos, sem jamais sair, cuidado pela
mãe. “Eu me transformei em prisioneiro de mim mesmo, me
encerrei numa masmorra e agora não encontro a chave para me
libertar, e se a porta estivesse aberta, quase teria medo de sair.
Durante os últimos dez anos não vivi, apenas sonhei que vivia”,
escreveu a um amigo. Habitava fora da própria existência, como
seu personagem Wakefield. Devia ser uma daquelas pessoas para
quem o simples fato de viver não era nada fácil. A loucura também
o espreitava.
É por isso, porque os outros são uma tentação, que não gosto de
escrever romances autobiográficos. O mais maravilhoso é sentir-se
dentro de indivíduos diferentes de você. A ficção é uma viagem ao
outro, e esse é o trajeto mais fascinante que uma pessoa pode fazer.
Emmanuel Carrère tem a mesma opinião: “Isso talvez seja o que
de mais interessante existe na vida, tentar saber isto: o que é ser
outra pessoa que não você. Esse é um dos motivos pelos quais se
escrevem livros; o outro é descobrir o que é ser você mesmo”. E às
vezes essas personalidades imaginadas são tão poderosas! Já muito
doente e perto da morte, Balzac disse que a única pessoa que
poderia salvá-lo era Bianchon, o médico do seu romance O pai
Goriot. E numa das crises nervosas de Joseph Conrad, o cara
passou semanas falando em polonês com os personagens do
romance Sob os olhos do Ocidente, o livro que ele estava escrevendo
quando teve o piripaque.
Um dos melhores livros de Emmanuel Carrère é O adversário,
que conta a assombrosa história do francês Jean-Claude Romand,
um miserável que mentiu para todo mundo se fazendo passar por
um alto funcionário da Organização Mundial da Saúde e que, em
1993, quando estava prestes a ser descoberto, assassinou a esposa,
os dois filhos e os pais, e então tentou sem sucesso (típico) tirar a
própria vida. Ele foi condenado à prisão perpétua, mas deve ter
sido uma perpetuidade muito breve, pois saiu em junho de 2019.
Aparentemente, durante seus anos de prisão, enveredou pelo
misticismo, de modo que, depois de recuperar a liberdade, se
isolou num mosteiro beneditino ortodoxo regido pela liturgia
anterior ao Concílio Vaticano II. E imagino que continue lá. Depois
tem o livro de Javier Cercas, apropriadamente intitulado de O
impostor. Nele, conta a vida do espanhol Enric Marco Battle, que se
fez passar por sobrevivente dos campos de concentração nazistas e
chegou a ser presidente da instituição Amical de Mauthausen, na
Espanha. Tudo mentira. Ignacio Martínez de Pisón escreveu Filek,
um livro sobre um sujeito que não é exatamente um impostor, pois
usava seu nome verdadeiro, Albert von Filek, mas era um golpista
que se fazia passar por quem não era, a saber, pelo inventor de um
fabuloso combustível sintético, obviamente inexistente, que
conseguiu vender a Franco. Até mesmo Bram Stoker, o autor de
Drácula, publicou um livro, Famous impostors [Impostores
famosos], reeditado há pouco tempo na Espanha, que trata de
diversos fingidores ao longo da história. Se você procurar no
Google “romances de impostores”, vai chover uma porção de
títulos mais ou menos recentes: do colombiano Santiago Gamboa,
do best-seller Robin Cook, da espanhola Pilar Romera… Não é de
estranhar que nós, escritores, com nossa identidade líquida e
variável, sejamos fascinados por pessoas que se fazem passar por
outras. Aliás, Mario Vargas Llosa escreveu um dos seus artigos no
El País sobre Enric Marco Batlle, o falso prisioneiro dos campos de
extermínio, e o fascínio que a história provocava nele era tão
evidente que o autor recebeu uma montanha de cartas bastante
críticas acusando-o de não levar em conta o sofrimento causado
por Batlle às verdadeiras vítimas. Certo, tem razão, mas na verdade
eu entendo Vargas Llosa.
Um dos casos de farsa literária mais polêmicos das últimas
décadas é o de JT LeRoy, um jovem garoto de programa, viciado
em drogas e filho de uma prostituta que em 1999 escreveu Sarah,
romance autobiográfico que o tornou instantaneamente célebre
entre a intelectualidade estadunidense. Todos os famosos e
aspirantes à fama queriam tirar fotos com ele. Até que em 2005,
depois de publicar mais dois romances e sair em muitíssimos
outros retratos em festas glamorosas da madrugada, a New York
Magazine revelou que os livros na verdade tinham sido escritos por
uma tal de Laura Albert (Nova York, 1965), e que o personagem
que circulava pelos inferninhos noturnos se passando pelo suposto
garoto de programa era Savannah Knoop, a cunhada de Laura, que
ela disfarçava de rapaz. Laura, no entanto, sempre o acompanhava
nas suas aventuras, na qualidade de melhor amiga. Aliás, embora a
biografia do inexistente LeRoy fosse inventada, a real de Laura
Albert era ainda mais truculenta: sofreu abusos sexuais desde os
três anos de idade, sua mãe a internou numa clínica psiquiátrica
aos catorze, trabalhou como operadora de telessexo e viveu entre
os drogados. Apesar de tudo isso, as pessoas levaram muito mal o
fato de terem sido enganadas. Seu editor a abandonou e, em 2007,
Laura foi condenada a pagar mais de 100 mil dólares por fraude à
produtora que ia fazer um filme sobre seu livro. Durante o
julgamento, disse: “JT LeRoy era meu tanque de oxigênio, se
tirarem ele de mim, eu morro”. Acho isso comovente. Laura Albert
chegou a pesar 145 quilos, mas agora pode ser vista nas redes bem
mais magra e com implantes imensos nas maçãs do rosto (o gosto
pelo fictício nunca acaba). Atualmente, tem um site onde vende
ossos de pênis de guaxinim autografados por ela, pelo excelente
preço de 20,95 dólares. Basta escrever Penis Bones — Laura Albert
na internet para encontrar essa pechincha.
Mas meu impostor preferido, pelo absurdo e pelo grotesco da
coisa, é aquele magnífico tradutor da língua de sinais que todos
pudemos ver no funeral de Estado de Nelson Mandela, o mítico
líder sul-africano, em 10 de dezembro de 2013. A cerimônia foi
celebrada em Soweto com a presença de Obama, Sarkozy, Kofi
Annan, Bill e Hillary Clinton, David Cameron… Isto é, a nata dos
presidentes e ex-presidentes mundiais e da ONU. Durante horas,
um senhor negro muito sério e perfeitamente trajado chamado
Thamsanqa Dyantyi traduziu para a língua de sinais as palavras dos
figurões, e sua imagem foi vista em todo o planeta: Obama falando
e atrás dele Thamsanqa fazendo passes de mágica com as mãos;
Sarkozy discursando e atrás dele Thamsanqa com um elegante
rodopio de dedos, tudo com a conveniente pompa e circunstância
de um funeral daquele porte. A cerimônia correu bem, exceto pelo
pequeno detalhe de que o sr. Dyantyi não entendia patavina da
língua de sinais e estava gesticulando qualquer floreio sem sentido.
A Federação de Surdos da África do Sul alertou imediatamente as
autoridades sobre o disparate, mas os responsáveis pelo funeral
não tiveram jogo de cintura o suficiente, acharam que era uma
versão local da linguagem ou que o homem não entendia bem o
inglês e não mandaram que ele saísse daquele primeiro plano de
glória e infâmia mundiais. Depois da gafe, Dyantyi disse que tudo
fora fruto de uma alucinação. Ele estava sendo investigado por
homicídio e já tinha sido denunciado anteriormente por outras
federações de surdos (nota-se que a linguagem de sinais era uma
obsessão dele). Relembro agora as imagens do sóbrio e solene ato e
as lágrimas ainda me vêm aos olhos. Acho que Mandela teria se
divertido.
Muito menos engraçada, e inclusive amedrontadora, foi a
história que aconteceu comigo em novembro de 1979. Publiquei
uma versão romanceada do ocorrido no livro A filha do canibal, mas
agora vou contá-la do jeito que aconteceu. Eu tinha 28 anos, havia
lançado em maio meu primeiro livro, Crónica del desamor [Crônica
do desafeto], e o sucesso fulminante do jornal El País, no qual eu
colaborava, fizera com que meu nome se tornasse muito conhecido
em pouquíssimo tempo. Eu morava sozinha em Madri, num
apartamento alugado perto do rio Manzanares. Tinha uma
secretária eletrônica, um aparelho que (sei que vai soar
contemporâneo à pintura rupestre) era conectado ao telefone fixo,
já que não existiam celulares, e, como o nome indica, fazia a
função de secretária e respondia quando você não estava em casa,
permitindo que te gravassem uma mensagem. Fazia meses que eu
recebia ligações inquietantes. Ao tirar o fone do gancho, ouvia
apenas uma leve respiração e aquele silêncio úmido e pegajoso de
quem está mastigando as palavras. A secretária eletrônica também
começou a ficar cheia de mensagens vazias: alguém deixava o
tempo passar sem dizer nada. De repente, já em novembro, a coisa
piorou. Depois de alguns segundos da fita em branco, uma voz de
mulher disse claramente: “Puta”. Houve duas ou três novas
gravações, todas ofensivas. “Piranha, como você é ruim, você não
vale nada.” Eram os anos da Transição e na época tínhamos muito
medo. Treze meses antes, uma bomba enviada ao jornal El País
pela extrema direita havia matado Andrés Fraguas, um office boy
de dezenove anos, e ferido gravemente outros dois funcionários.
Eu recebia, como tantas outras pessoas, recados anônimos
ameaçadores. Foi um tempo de luz e de muitas sombras, portanto
não se pode dizer que achei graça daquelas mensagens. Por outro
lado, a voz da mulher parecia tão jovem, e os insultos tão pouco
elaborados, que acho que não cheguei a me sentir realmente em
perigo.
Certo dia, eu voltava para casa depois de jantar, devia ser perto
da meia-noite, e ao abrir a porta ouvi que alguém estava gravando
uma mensagem. Era minha insultante, que estava cada vez mais
eloquente: “Hipócrita, você é uma hipócrita… se faz de santinha e
depois rouba homens… que vergonha…”. Suas palavras me
deixaram tão atônita que corri ao telefone e atendi:
— Alô! Alô! Quem está aí?
De novo silêncio do outro lado da linha, mas dessa vez dava
para ouvir atritos, barulhinhos, a confusão causada pelo
desconcerto. Então, finalmente:
— Sou eu…
Aquela voz tão jovem, desafiadora e trêmula ao mesmo tempo.
— E quem é você?
— Eu sou… eu sou a mulher do Constantino — disse,
enchendo a boca com o nome.
Que Constantino?, pensei. Sempre tive uma memória péssima,
ainda mais para nomes próprios.
— Que Constantino?
Escutei-a quase rugir do outro lado da linha:
— Mas… que covarde! Que hipócrita, você não vale nada, agora
tenta fingir que não o conhece. Você vive atrás dele, dorme com
ele, deixa ele louco, e agora vem dizer que não o conhece, haha!
Então, tive um momento de estupor (anote também a palavra
estupor: mais tarde falarei sobre ela), que é como o estágio anterior
à irrealidade. Pensei comigo: eu o conheço? É possível que tenha
dormido com algum Constantino? E que não soubesse que ele
tinha uma mulher meio doida? Eu havia entrado correndo na sala
para atender à chamada e nem tinha parado para acender o abajur,
de modo que agora estava na penumbra, sem nenhuma luz exceto
a que vinha do hall. Por um segundo, pensei que não reconhecia
minha própria casa. As sombras deformavam as silhuetas dos
móveis e de repente eu não tinha certeza da disposição da sala,
assim como não tinha certeza se havia dormido ou não com o
maldito Constantino. Pelo amor de deus, eram os anos 70 e todo
mundo conhece o ditado: se você se lembra dos anos 70, é porque
não estava lá. Bem, posso dizer que estava lá, sim. Eu me agarrei
com desespero àquele nome: por sorte, Constantino não era muito
comum. Se ela tivesse dito Pedro, Pablo ou Juan teria sido bem
pior.
— Estou te dizendo que não conheço nenhum Constantino —
insisti, tentando soar mais convencida do que me sentia. — Tem
certeza de que não discou errado? Com quem você quer falar?
Com quem você acha que está falando?
Notei que minhas perguntas foram como um torpedo
submarino. Quando ela respondeu, na sua voz vibrava certa
dúvida:
— Com Rosa Montero… a escritora… a jornalista do El País…
Eu não tinha mais remédio senão admitir:
— Bem, sou eu.
— Claro que é você! — berrou a garota, recuperando o impulso
da sua fúria. — Como se atreve a dizer que não o conhece?! Eu vi
vocês dois falando pelo telefone um monte de vezes! Li suas cartas!
Ele me mostrou o anel que você deu a ele de presente!
Ah, não. Isso não. Eu não havia escrito cartas a ninguém, e uma
coisa que eu tinha certeza era de não ter dado um anel de presente
para nenhum homem. Porque eu tinha pavor de homens com
anéis. A realidade foi plenamente estabelecida e os móveis da
minha sala voltaram a ser meus móveis. Que alívio! Mas a alegria
durou apenas alguns segundos, porque fiquei imediatamente
horrorizada de existir alguém por aí inventando uma Rosa
Montero.
— Te garanto que não sou eu! Olhe, fico muito preocupada com
o que você está dizendo, e fico preocupada com você, porque te
juro que não conheço esse tal de Constantino e nunca liguei para
ele, por acaso já ouviu minha voz do outro lado da linha? E as
cartas são facílimas de falsificar, e a história do anel também, nunca
dei a ninguém um anel de presente! Acredite em mim, eu te
imploro.
Devo ter soado desesperada, porque realmente me sentia
desesperada por mostrar a ela a verdade no seu mais puro
esplendor.
— Bem, houve sim um dia em que arranquei o telefone das
mãos dele e você já tinha desligado… Mas não pode ser, não pode
ser que tudo seja mentira! — disse ela, consternada. — Além do
mais, ele conhece sua casa! Por acaso tem uma mesa redonda com
um pano indiano em cima e uma cadeira de balanço de palha e um
sofá vermelho?
De novo o pesadelo dos móveis. Era verdade que havia uma
mesa com um pano indiano e uma cadeira de balanço de palha que
eu tinha resgatado do lixo. Olhei o vulto dessas peças entre as
sombras e elas vibraram um pouco. Mas eu não tinha um sofá
vermelho. Na verdade, não tinha sofá, apenas um cantinho cheio
de almofadas (eu era hippie). Aquele equívoco me deixou
animadíssima.
— Olhe, a parte da mesa e da cadeira de balanço é real, mas não
tenho nenhum sofá e é possível que ele tenha visto os móveis
numa foto; quando lancei meu romance, dei muitas entrevistas.
Isso é grave, é grave e me preocupa, por mim e principalmente por
você. Vamos encontrá-lo agora mesmo. Para fazer uma acareação e
esclarecer as coisas. Onde ele está agora?
Ainda tive que insistir, mas a verdade devia estar raiando na
cabeça da minha interlocutora, sem dúvida uma série de pequenos
indícios foram se encaixando até que sua visão das coisas mudou
completamente, pois ela parecia cada vez mais convencida.
Contou que Constantino trabalhava no serviço de documentação
de um jornal e saía perto da uma da manhã. Ela podia ir buscá-lo
no jornal e convencê-lo a tomar algo num bar ali perto. E era então
que eu apareceria.
Desliguei embriagada de adrenalina. Era meia-noite e quarenta
e eu não tinha um minuto a perder. Então, me dei conta de um
pequeno detalhe: aquele era o dia 20 de novembro, quer dizer,
tinha sido. O quarto aniversário da morte de Franco. Nos
primeiros anos depois do falecimento do ditador, os dias 20 de
novembro eram datas difíceis, com a extrema direita se
manifestando e agitando bandeiras, gritando e fazendo algazarra
pelas ruas. Aqueles dias davam medo. Então, pensei: E se for tudo
mentira? E se estiverem me atraindo para uma armadilha? Mas eu
já não podia parar, era incapaz de me conter, o impulso de acabar
com aquela Rosa Montero fantasmal era forte demais, era quase
uma necessidade de vida ou morte. Penso nisso agora e me dou
conta de que é preciso estar muito maluca para agir desse modo.
Suponho que àquela altura eu já estivesse sofrendo um enorme
tumulto interno para sustentar aquela outra identidade
descontrolada.
Então, o que fiz foi telefonar para minha boa e tão paciente
amiga Olga Couso, que morava no apartamento debaixo do meu.
Ela estava deitada, mas a tirei da cama e lhe pedi, após uma breve
explicação, que por favor me acompanhasse, e a pobre Olga o fez
(nunca poderei lhe agradecer o suficiente por essa e por outras
loucuras). Também liguei para o El País e, depois de resumir o
assunto à secretária, pedi que, se não voltasse a telefonar antes das
duas da manhã, chamasse a polícia. Feito isso, Olga e eu entramos
no meu velho carrinho Citröen e fomos até a rua Pez, no centro
antigo de Madri, que era onde ficava o bar em que havíamos
combinado.
Quando consegui estacionar e chegamos ao pequeno local, já
era uma e meia da manhã e estavam fechando. Um sujeito mal-
encarado e antipático se recusou a nos deixar entrar, de modo que
Olga e eu ficamos perplexas e sem saber o que fazer no meio da
calçada. Tudo parecia fechado, o mundo estava apagado e a rua,
vazia. Era uma região lúgubre da cidade e, na época, bastante
pobre, suja e malcuidada. Então eu a vi surgir por uma esquina e
vir apressada até nós. Muito jovem, 22 ou 23 anos, de uma beleza
deslumbrante. Não muito alta, porém atlética, pele morena, com
uma cabeleira cacheada de leoa; os olhos como janelas no seu
rosto, profundos, luminosos (na escuridão, me pareceram
cinzentos), e os traços carnudos e perfeitos de uma deusa grega.
— Rápido! Ele suspeitou de alguma coisa e saiu correndo. Está
indo para casa. Se corrermos, podemos pegá-lo — soltou de um
fôlego só.
E, dando meia-volta, saiu em disparada pela rua escura. E eu
atrás dela. E Olga atrás de mim.
Lembro-me disso como uma cena de pesadelo, nossos passos
retumbando no silêncio da noite, a silhueta da garota na minha
frente, usando calça jeans e uma jaqueta com tachinhas feia e
barata; as sombras atravessadas de quando em quando pela pálida
luz dos postes; as voltas que demos, as esquinas que dobramos
sem topar com ninguém; o atalho que pegamos por uma velha
travessa comercial que durante o dia devia ser deprimente e
horrível mas que, àquela hora e com todas as decadentes lojas
fechadas, parecia simplesmente estarrecedora. Foi ali que pensei
comigo: “Vão nos matar. Vão nos matar”. Mas continuei correndo.

A garota era muito rápida e ganhou distância. Quando saímos


da galeria, eu a vi a várias dezenas de metros, conversando com um
homem. Ele estava recostado na parede, como se não conseguisse
se manter em pé sem apoio, e tinha a cabeça caída; ela se inclinava
sobre ele e parecia lhe dizer algo de modo amigável, porém com
insistência. Paramos de correr e nos aproximamos caminhando.
Quando chegamos ao lado dele, o sujeito ergueu o rosto e olhou
para mim. Devia ter uns trinta anos; era franzino, baixinho, sem
queixo e muito feio. Seu cabelo era ralo, pressagiando calvície;
quatro pelos mal distribuídos se espalhavam a modo de barba pelas
suas bochechas de roedor. Mas o mais impressionante eram seus
olhos; usava uns óculos de armação preta pesada e lentes de
astigmatismo que ampliavam seus olhos como se estivessem
dentro de um aquário. Nunca vi um olhar mais desconsolado, mais
abatido, mais vencido. Minha ira se dissolveu como fumaça no
vento.
— Tá bom… tá bom, pronto, não foi nada. Só que você precisa
ver isso, hein? — balbuciei, desarmada. — Tem que buscar ajuda,
porque isso que você fez é muito preocupante… Não se pode fazer
uma coisa dessas…
A garota dizia sim, sim, sim. Com doçura. Como quem acalma
uma criança assustada. Ele não abriu a boca. Só me olhava com
seus enormes olhos-peixes, tão perdidos dentro das lentes. Apesar
do comportamento repugnante do sujeito (era evidente que não
acreditava merecer o amor daquela beldade, por isso a torturava
com ciúmes), não pude evitar sentir pena dele. Desejei sorte aos
dois e nos apressamos para ir embora, com a perturbadora
sensação de quem viu um estranho numa situação tão íntima que
teria preferido não ter testemunhado. A caminho do carro, me dei
conta de que eram duas horas da manhã. Procuramos afoitas uma
cabine telefônica e às duas e dez finalmente consegui telefonar
para o El País. A secretária (se bem me lembro era a Encarnita)
estava tendo um ataque de nervos e prestes a chamar a polícia.
Enfim, voltamos para casa, tão esgotadas como se tivéssemos
corrido meia maratona, mas tranquilas, pensando que tudo havia
acabado.
Não podia nem imaginar que, pelo contrário, aquilo era só o
começo.
Muitos anos depois, descobri o nome daquela deusa. Chamava-
se Bárbara.
Os entomólogos não choram

Em 1997, entrevistei Doris Lessing para o jornal El País na sua


casinha em Londres. Foi um encontro bastante atípico em muitos
sentidos, e há algo que nunca contei sobre aquela entrevista que
vou relatar neste livro, mas farei isso mais adiante. Por ora, quero
apenas citar algo que ela me disse:

[Tive] uma infância muito tensa, e acho que a maioria dos


escritores teve uma infância assim, embora isso não signifique
necessariamente que tenha de ser muito infeliz, mas me refiro a
esse tipo de infância que te torna muito consciente, desde cedo,
daquilo que você está vivendo, que foi o que aconteceu comigo.
Acho que as pessoas frequentemente bloqueiam a lembrança de
sua infância porque lhes parece uma lembrança insuportável.

Pois bem, justamente uma das hipóteses que venho desenvolvendo


há décadas para tentar explicar a mim mesma por que escrevemos
está relacionada aos traumas sofridos na infância. Foi algo que
descobri graças à minha paixão por ler biografias, autobiografias e
diários, sobretudo de personagens relacionados à criatividade.
Há duas afirmações opostas que, no entanto, são igualmente
válidas, porque a vida é contraditória e paradoxal. Essas afirmações
são:
Verdade número 1: Todos somos iguais.
Verdade número 2: Todos somos diferentes.
Sou fascinada por explorar ambos os extremos: a semelhança
que todos compartilhamos e a peculiaridade que cada um alimenta.
Por isso gosto de biografias, pois, em primeiro lugar, são cartas de
navegação da existência nas quais você pode aprender como outras
pessoas lidaram com os mesmos desafios que você deve enfrentar:
aqui, os baixios do envelhecimento; ali, os arrecifes da morte e do
luto; ao longe, o maravilhoso mar aberto e ensolarado. E inclusive
porque, através delas, também é possível ficar sabendo de
peripécias únicas (todos somos diferentes): encontros com sereias,
tesouros submersos, avistamentos do pavoroso Kraken.
Depois de ler muitos textos biográficos e de conversar inúmeras
horas com colegas escritores, notei já faz alguns anos a existência
de um padrão que se repete continuamente: a grande maioria dos
narradores teve uma experiência muito precoce de decadência e
perda (eu também, mas guardo-a para mim). Digamos que, sendo
ainda pequenos, antes da puberdade ou por volta dela, perderam
violentamente o mundo da infância. Essa violência pode ser
evidente, tangível, mensurável, um daqueles fatos catastróficos de
que as biografias dão conta. Como aconteceu, por exemplo, com
Joseph Conrad, filho único de nacionalistas poloneses que, como
castigo, foram deportados pelo Império russo ao gélido Norte em
condições de extrema adversidade. Ali morreu a mãe de
tuberculose, quando Joseph tinha sete anos; e cinco anos depois, já
de volta à Cracóvia, faleceu o pai da mesma doença, deixando o
menino sozinho. Algo semelhante aconteceu com Simone de
Beauvoir, num registro muito distinto mas igualmente devastador:
Simone nasceu numa próspera família de banqueiros, mas o avô foi
à falência quando ela tinha cerca de dez anos, afundando a família
na desgraça e na pobreza. Deixaram de morar numa residência
pomposa e imponente para se espremer num apartamentinho de
quinto andar sem elevador e com banheiro compartilhado, coisa
que acabou deteriorando a relação entre seus pais. Enfim, em casos
como esses não há a menor dúvida: essas infâncias foram partidas.
Depois há outros tipos de decadência muito mais sub-reptícias,
mais sutis, que se escondem sob um cotidiano no qual não
constam falecimentos nem guerras nem despejos, mas que, no
entanto, contêm intimamente a mesma violência fundadora e
implicam o mesmo sentimento de perda da infância. Uma infância
que, aliás, parece que posteriormente é ampliada na lembrança, em
forma de paraíso irrecuperável. Não é de estranhar que, depois de
termos tido um desencanto tão cedo com a vida, e tendo
aprendido desde pequenos o que o tempo pode nos fazer e
desfazer, a imensa maioria de nós, narradores, sejamos também
pessoas mais obcecadas que a média pela passagem do tempo e
pela morte. Pelo fim inexorável de todas as doçuras. Da dor de
perder nasce a obra, diz o psiquiatra Philippe Brenot. Bem, ele não
diz exatamente isso. A frase, que há décadas atribuo a Brenot, na
verdade é minha. Descobri isso agora, ao reler seu excelente ensaio
Le Génie et la folie [O gênio e a loucura]. O autor explica que, com
efeito, a gestação da obra tem sua origem num sentimento de
perda, mas essa concreta síntese verbal, da-dor-de-perder-nasce-a-
obra, fui eu que fiz: encontrei as palavras escritas por mim na
margem do livro. É extraordinário como a cabeça funciona, como
os conhecimentos circulam, se mesclam e se conectam. Às vezes
você atribui a terceiros frases que são suas. Por outro lado, estou
convencida de que já me apropriei de frases alheias acreditando
serem próprias sem perceber que as roubava. A cultura é um
palimpsesto e com frequência é um pântano, e mais de uma vez
me peguei muito empolgada inventando a roda.
Mas acabei me enrolando. Voltemos às infâncias malogradas,
pois creio que elas têm uma relevância fundamental no ato criativo.
O mesmo opina a psicóloga Lola López Mondéjar, em cujo livro
Literatura y psicoanálisis encontrei esta frase que poderia ter sido
dita por mim: “A saída criativa tem sua origem num encontro
precoce com o traumático”. Bingo! A partir daqui, López Mondéjar
desenvolve o tema de maneira muito interessante. Ela explica que
a dissociação é, como todos sabem, uma das principais defesas
contra o trauma, de modo que na criança que sofre há uma divisão
da subjetividade entre uma parte destruída ou dilacerada e outra
parte que cuida da ferida. E cita a respeito duas ideias magníficas
do médico húngaro Sándor Ferenczi, um dos pais da psicanálise: a
primeira é que, diante da dor, a criança cria um eu cuidador “que
sabe tudo, mas não sente nada”; e a segunda, que essa criança
traumatizada, “para se defender do perigo representado pelos
adultos sem controle, precisa se identificar com eles”. Ou, o que é
a mesma coisa, e essas são palavras minhas: deixa de ser criança. É
“esse tipo de infância que te torna muito consciente, desde cedo,
daquilo que você está vivendo”, como dizia Lessing. Na ótima
Trilogia de Copenhagen, da escritora dinamarquesa Tove Ditlevsen
(1917-76), que reúne seus três livros autobiográficos, há um
parágrafo comovente sobre isso:

A infância é longa e estreita feito um caixão e não dá para


escapar dela por conta própria. […] Não dá para escapar da
infância e ela nos acompanha como um cheiro. Dá para
percebê‑la em outras crianças, e cada infância tem seu próprio
cheiro. Não conhecemos a nossa e às vezes temos medo de que
ela seja pior que a dos outros. A gente vai e fala com outra
garota cuja infância tem cheiro de cinza e carvão, e de repente
ela dá um passo atrás, pois sentiu o fedor pavoroso da nossa
própria infância. Disfarçadamente, você observa os adultos. […]
Olhando para eles, não percebemos que eles tiveram uma
infância — e não temos coragem de perguntar como fizeram
para atravessá‑la sem que o rosto deles guarde cicatrizes e
marcas profundas deixadas por ela. Você tem a impressão de
que eles utilizaram um atalho secreto para chegar a sua figura
adulta muitos anos antes do tempo. Fizeram isso num dia em
que estavam sozinhos em casa com a infância oprimindo seu
coração.
Amadurecer prematuramente para poder sobreviver. Aliás, Tove se
suicidou aos 58 anos.
Os fantasmas de um escritor são aqueles temas ou detalhes que
se repetem constantemente em seus livros sem que, de modo
geral, ele ou ela tenha consciência disso. Já reparou que nos seus
livros sempre tem algum barco?, você pode perguntar a um
romancista. Ah, sabe que não?, talvez ele te responda, mesmo que
seu último livro seja intitulado O veleiro azul. Os romances são
sonhos que se sonham de olhos abertos, eles nascem do mesmo
lugar do inconsciente onde nascem os sonhos, de modo que esses
detalhes repetidos são como elementos oníricos recorrentes. Notei
que um dos meus fantasmas eram os anões depois de publicar em
1993 o romance Bella y oscura [Linda e obscura], em que uma
perfeita liliputiana tem um papel muito relevante. Já contei tudo
isso há vinte anos em outro livro, mas repito porque vem muito ao
encontro do que dizem Mondéjar e Ferenczi. Com Bella y oscura,
portanto, percebi que meus romances estavam cheios de anões, e
que além de tudo eram personagens positivos, um tanto mágicos,
que sabiam coisas que os outros ignoravam. Essa abundância de
seres pequenos na minha obra era sem dúvida surpreendente,
porque eu nunca havia me relacionado com nenhum deles. Nem
na família, nem no colégio, nem na vizinhança: jamais tivera um
anão próximo. Após a descoberta, supus que não haveria mais
liliputianos nos meus livros, porque esses são jogos que o
inconsciente joga quando ninguém está olhando. Então, sem mais
delongas, me pus a imaginar, desenvolver e escrever meu novo
romance, A filha do canibal, durante os três anos seguintes.
Publiquei o livro, comecei a participar dos lançamentos e, quando
já estava havia meses repetindo mais ou menos a mesma ladainha
aos jornalistas, de repente percebi que tinha feito aquilo
novamente. A protagonista de A filha do canibal, Lucía, é uma
mentirosa compulsiva. No terceiro capítulo, ela mesma o admite.
Diz mais ou menos assim:
Devo confessar que minto muito; por exemplo, antes falei que
tenho olhos claros e não é verdade, eles são de um castanho
ordinário; falei que sou bonita, e a verdade é que sou bem
comum; e falei que sou alta, mas na realidade sou baixa, ou
melhor, muito baixa, baixíssima, tão pequena que compro
minha roupa na seção infantil das lojas de departamentos.

Caramba! Eu havia posto uma anã como protagonista do romance


e nem tinha reparado. Para ver como era poderoso aquele
fantasma.
Durante algum tempo, me perguntei qual seria o significado
dos liliputianos para mim. Por que os sentia tão próximos, por que
se multiplicavam para mim daquele jeito? E cheguei à conclusão de
que o anão é um ser crepuscular que parece uma criança, mas é um
adulto: a fronteira da idade está borrada. Que era justamente o que
acontecia comigo quando pequena: fui uma menina que não era
totalmente uma menina. Uma menina demasiado adulta (talvez por
isso depois tenha sido uma adulta demasiado infantil). As palavras
de Mondéjar-Ferenczi repercutem estrondosamente na minha
cabeça e criam todo tipo de ecos. E se as reconheço como tão
verdadeiras, é porque uma boa quantidade de escritores também as
reconhece (lembre-se da verdade número 1: todos somos iguais). E
mais: não será essa dissociação defensiva diante do trauma a
origem dessa maior tendência à dissociação que antes dissemos
que os romancistas têm?
“Há em mim uma mulher atormentada e outra que observa”,
diz Siri Hustvedt em seu livro A mulher trêmula. Muito exato. E a
pessoa que observa é a que escreve. Lola López Mondéjar
acrescenta um requisito para que a criação floresça: ela diz que,
para que a obra nasça, não basta o trauma infantil e essa
dissociação entre a criança ferida e a que cuida; também é
necessário que, antes do abandono da figura daquele adulto que
demonstra ser pouco fiável, isto é, antes do trauma, a criança tenha
se sentido amada. Que bela precisão, e como isso ressoa dentro de
mim. Sim, eu me senti muito amada.
É claro que, falando de dualidade e de dissociação, eu também
gostaria de acrescentar algo. Não uma melhoria, como faz López
Mondéjar com sua receita de amor suficiente, mas um fator
negativo que eu acho que empurra alguns criadores para o
precipício. Fiquei surpresa ao constatar uma curiosa coincidência:
um bom punhado dos artistas mais atormentados por problemas
mentais vieram ao mundo arrastando o fantasma de um parente
morto, frequentemente um irmão. Por exemplo, as duas irmãs
mais velhas de Scott Fitzgerald, de um e três anos, faleceram
meses antes de ele nascer: “Acho que foi então que comecei a ser
escritor”. Minha querida Janet Frame, de quem já falei, tinha um
gêmeo que viveu poucas semanas, a mesma coisa que aconteceu
com Philip K. Dick, autor de Androides sonham com ovelhas
elétricas?, o romance curto que deu origem ao mítico filme Blade
Runner. Dick, que padecia de uma paranoia terrível e sofreu várias
crises graves, teve uma irmã gêmea, Jane, que morreu de fome um
mês e meio após o nascimento porque a mãe não tinha leite para os
dois bebês (imagine a sensação de culpa). Van Gogh não apenas
teve um irmão que nasceu morto um ano antes de ele vir ao
mundo, como também recebeu o nome do finado, e isso é
exatamente o mesmo que aconteceu com Dalí. Assim como
Camille Claudel, extraordinária escultora esmagada sob a fama do
seu amante, Auguste Rodin, que acabou abandonada pela família e
internada num hospital psiquiátrico pelos últimos trinta anos de
vida: ela também nasceu para substituir um irmão falecido. O
fantasma que o filósofo Louis Althusser carregava era
especialmente complexo: tinha o nome de um tio paterno que fora
namorado da sua mãe. O tio morreu em combate na Primeira
Guerra Mundial, e o irmão se ofereceu para se casar com a
namorada-viúva. Louis Althusser era, portanto, o nome de um
herói, e ele teve de encarnar aquela memória como um altar vivo
do defunto. E depois tem a história genial de Mark Twain, que um
dia contou numa entrevista que havia tido um irmão gêmeo, Bill,
cuja semelhança com ele era tão grande que ninguém podia
distingui-los, por isso amarravam cordões coloridos nos seus
punhos para saber quem era quem. Mas um dia deixaram os dois
sozinhos na banheira e o irmão se afogou. E como os cordões
haviam se soltado, “nunca se soube qual dos dois tinha morrido, se
Bill ou eu”, explicou Twain placidamente ao repórter. A história foi
publicada e reproduzida diversas vezes, mas obviamente era
inventada: aquele gêmeo nunca existiu — embora seja uma
maravilhosa metáfora da dissociação do escritor, e acho que dizia
muito sobre o próprio Mark Twain, autor cujo nome, aliás, é um
pseudônimo (o que já evidencia certa predisposição à dualidade).
Enfim, deliciosa anedota de Twain à parte, eu diria que o peso dos
mortos familiares tende a ser demasiado nocivo.

Retomando a formidável frase de Ferenczi, reconheço que, com


efeito, há uma parte de mim que sabe tudo e que não sente nada.
Bem, dizer que não sente nada não é de todo exato: claro que sente
certa simpatia e compreensão pela outra parte que sofre, mas de
um lugar impávido e olímpico, como o entomólogo que analisa um
coleóptero com olhar desapaixonado, embora compassivo. Afinal,
que entomólogo não ama sua espécie favorita de besouro? Ele
passou a vida inteira examinando a forma precisa de seus élitros.
Mas é uma criatura tão pequena! Sua dor, a dor do coleóptero, não
tem dimensão suficiente para afetar o cientista. Pois bem: nós
romancistas somos ao mesmo tempo insetos esperneando e
estudiosos que observam o esperneio. Por exemplo: você faz papel
de ridículo numa história de amor e se sente péssimo, então a
observadora imediatamente analisa as bobagens que você fez, que
são as mesmas bobagens que muitos outros fazem, e até morre de
rir ao constatar como nós humanos somos pequenos e ridículos. O
simples fato de tentar entender como todos nos comportamos já é
um dom que consola e protege; mas, se ainda por cima você
conseguir escrever algo com isso, se puder transformar a dor em
algo criativo, então experimenta a sensação de ser invulnerável.
Em Hemingway vs. Fitzgerald, de Scott Donaldson, o autor fala
da catastrófica vida do pobre Fitzgerald. Da sua perseverante tarefa
de autodestruição. Sua mulher, Zelda, se perdeu na esquizofrenia,
e ele bebeu até se matar: “Cinquenta por cento dos amigos e
familiares diriam que meu gosto pela bebida levou Zelda à loucura.
Os outros 50% diriam que foi sua loucura que me levou à bebida.
Ninguém estaria totalmente certo”, escreveu numa carta a um
médico. Acabou afundando sua carreira literária, perdendo
editores e leitores, sem dinheiro, degradando-se da maneira mais
atroz: tomava sopa com garfo, cortava a gravata, metia o carro na
piscina. Donaldson diz em dado momento que Scott utilizava as
próprias humilhações como material para suas histórias. E
comenta: “Deve ter sido difícil para ele escrever aquelas
confissões. É penoso até mesmo lê-las”. Do meu ponto de vista,
isso é não entender absolutamente nada de como funciona a mente
do escritor. Acho que era um alívio para Fitzgerald fazê-lo; ele
escrevia justamente para poder suportar tudo aquilo. Era o
entomólogo que olha e analisa. Uma tentativa de transformar o
horror em algo valioso. “Talvez um dia eu chegue em casa me
arrastando, abatida, derrotada, mas não enquanto meu coração
puder criar histórias, e minha dor, beleza”, escreveu Sylvia Plath, o
que (e essa é a má notícia) não a impediu de se suicidar aos trinta
anos. Em todo caso, como diz o psicanalista Didier Anzieu, “criar
é não chorar mais pelo perdido que se sabe irrecuperável”. Esses
entomólogos não choram. Pelo contrário, eu diria que eles riem
bastante.
Estupor e fraude

Desde que soube, lendo o prêmio Nobel Eric Kandel, que em


todos os distúrbios psiquiátricos há um problema na fiação,
fazendo com que as sinapses não se comuniquem de modo
adequado, entendo muito melhor o funcionamento do meu
cérebro. Assim, agora, quando sou tomada de um estupor, quase
parece que estou vendo uma daquelas simulações das séries CSI ou
House, em que a tela da TV se enche de circuitos neurais e inputs
luminosos que de repente se chocam ou se perdem. Todo aquele
alvoroço elétrico que temos ali em cima, sabe?
Comecei este livro explicando que sempre soube que algo
dentro da minha cabeça não funcionava direito e, verdade seja dita,
não era preciso ser muito esperto para perceber. Em primeiro
lugar, pela minha imensa distração. Suponho, embora ninguém
tenha diagnosticado (felizmente), que tenho um problema de falta
de atenção, o que, ao contrário do que muitos acreditam, não quer
dizer que você não consiga se concentrar, mas que se concentra
tanto em alguns pensamentos que se esquece de todo o resto.
Míope que sou, passei metade da minha vida procurando os
óculos, e na maioria das vezes os encontrei dentro da geladeira
(eles estão na minha mão, eu abro a geladeira em busca de água,
deixo os óculos para pegar a garrafa e saio sem ter registrado
conscientemente o que fiz). Se tenho muita confiança em alguém,
o suficiente para estar relaxada de verdade, às vezes estou
contando alguma coisa e de repente me calo no meio do caminho,
mentalmente absorta em alguma ideia paralela acionada pelas
minhas palavras (com Pablo, meu marido, eu fazia isso direto e o
pobre coitado ficava furioso). E também não consigo deixar mais
tempo na torradeira, sem queimar, uma torrada que saiu branca
demais. Sempre penso comigo: dessa vez vou prestar atenção e
tirar a tempo. Mas, por mais ridículo que pareça, não consigo ficar
concentrada durante um minuto em algo tão absurdamente
tedioso como uma torradeira sem que minha cabeça pense em
outra coisa e o pão fique esturricado.
Tudo isso, embora irritante, é até engraçado e divertido. Muito
menos graça têm os momentos de estupor, que, agora percebo
claramente (obrigada, Kandel), são pequenos instantes de
desconexão parcial. Um circuito mal conectado que oscila. Por
exemplo: escrevi inúmeras vezes sobre Sócrates em livros e
artigos, sobre a cicuta, sobre suas últimas horas, sobre sua feiura.
Diria que escrevi exaustivamente sobre ele. Mas de repente, dia
desses, quis citá-lo de novo e pensei: Era Sócrates… ou Sêneca?
Ou algum outro filósofo com a letra S? Quem era o maldito cara da
cicuta? Uma mancha branca, uma névoa, uma nuvem parecia ter
borrado aquele fragmento concreto do meu conhecimento e da
minha memória. Aquela parte do mundo. Ou então: saio de uma
loja numa região de Madri que conheço perfeitamente e, de súbito,
não sei a que altura da rua estou, se tenho de virar à esquerda ou à
direita. Esses momentos de estupor (que parecem um
formigamento na nuca) duram apenas alguns segundos, no
máximo minutos se eu ficar nervosa, mas sempre existe o medo de
que aconteçam e de dizer qualquer bobagem em público, de
parecer uma analfabeta colossal (por isso levo tudo anotado nas
minhas apresentações). Já aconteceu comigo: troquei as bolas e
disse uma completa barbaridade. E como é impossível explicar ao
seu interlocutor o que está acontecendo com você, o erro garrafal
fica gravado na sua memória por anos, por décadas, talvez pelo
resto da vida, uma tortura obsessiva que ainda por cima tem a
virtude destrutiva extra de te convencer, mais uma vez, de que
você é uma impostora.
Porque antes eu disse que nós escritores, principalmente os
romancistas, adoramos os impostores. É que eu também acho que
temos uma notável tendência de nos sentirmos uma fraude. Uma
“traidora, pecadora, impostora”, escreveu num dos seus diários
uma desesperada Sylvia Plath. “Nos dias menos bons, me sinto um
impostor”, diz Emmanuel Carrère em Ioga. “Nem mesmo sou um
artista de verdade, mas uma espécie de impostor que escreve a
partir do asco mais absoluto”, disse Charles Bukowski. Eu poderia
continuar infinitamente, porque há muitos exemplos. Trata-se da
chamada síndrome do impostor. Ela foi descrita pela primeira vez em
1978 pelas psicólogas Pauline Clance e Suzanne Imes no artigo
“The Impostor Phenomenon” [O fenômeno impostor], publicado
na Psychotherapy: Theory, Research, and Practice. Clance e Imes
haviam descoberto nas suas sessões clínicas que muitas
profissionais bem-sucedidas se sentiam, paradoxalmente,
impostoras no seu trabalho; que acreditavam não dominar a
profissão em que se destacavam e estavam aflitas por medo de que
suas falhas fossem descobertas. Agora se sabe que isso também
acontece com os homens, embora nós sejamos um pouco mais
afetadas (para cada dez mulheres, oito homens), uma desigualdade
lógica se considerarmos que o mundo profissional continua sendo
construído majoritariamente para eles. É um fenômeno
psicológico que, em todo caso, está relacionado com o
perfeccionismo, mas ainda acho que é recorrente entre os
escritores porque se conecta com esse eu carente de osso que nós,
escritores, temos. Com a multiplicidade e a falta de confiança
própria. E, se além disso você tem estupores e mistura tudo, a
sensação de fraude é poderosa.
Um caso terrível de síndrome do impostor é o do filósofo
francês Louis Althusser. Ele era um homem que sofria de
gravíssimos problemas mentais. Aos 29 anos, foi diagnosticado
com uma psicose maníaco-depressiva e internado vinte vezes em
diferentes hospitais psiquiátricos. Em 1980, começou a fazer uma
massagem na esposa, a socióloga Hélène Rytmann, com quem
vivia fazia 35 anos, e acabou a estrangulando até a morte. Foi
declarado inapto para ser julgado por ter sofrido um ataque de
loucura, e voltaram a interná-lo por três anos. Em 1992, dois anos
depois da sua morte, foi publicada sua autobiografia, O futuro dura
muito tempo, em que conta de modo doloroso que se considerava
um covarde e um impostor. Que nutria desejos homossexuais
nunca concretizados; que se passava por filósofo eminente, quando
na verdade tinha imensas lacunas de conhecimento: não sabia nada
de Aristóteles, nem dos sofistas, nem dos estoicos, nem de Kant
(posso imaginá-lo num estupor, dizendo para si: “Aristóteles? Ou
seria Aristarco? Talvez Anaxarco?”). E que foi considerado um
herói na Segunda Guerra porque esteve num campo de
prisioneiros alemão durante cinco anos, mas na realidade sofrera
um “terror total” de combater, inventava doenças para fugir das
missões e, quando os alemães o capturaram, sentiu-se aliviado.
Pobre Althusser, que viveu, como dissemos antes, oprimido pelo
imperativo heroico daquele tio e primeiro namorado da mãe, de
quem carregava o nome, morto em combate na Primeira Guerra.
Aliás, foi ao voltar do campo de prisioneiros que a psicose de
Althusser se manifestou oficialmente: teve o grande azar de viver
outra guerra mundial na qual enfrentar seu fantasma. Perdeu, é
claro.
Devo acrescentar que tenho a suspeita de que, na mente dos
escritores, há outros ingredientes que contribuem para nos
sentirmos uma fraude. Penso que é um problema com a
entomóloga, com o cuidador que tudo sabe e nada sente. Se você
realmente acha que não sente nada, isso significaria que não ama
ninguém. E, se não ama, será que você não é o maior impostor do
universo? Num texto autobiográfico escrito já na maturidade,
Virginia Woolf descreve o momento em que sua mãe morreu. Ela
tinha treze anos e a obrigaram a entrar no quarto para se despedir.
“Não sinto absolutamente nada”, Virginia lembra que pensou.
“Então, me inclinei e dei um beijo no rosto de minha mãe. Ainda
estava quente. Ela havia morrido minutos antes.” Aqui está a
entomóloga trabalhando pesado. E, no entanto, Virginia amava a
falecida: aliás, sua primeira crise mental, a impossibilidade de pular
a poça que contamos antes, aconteceu aos treze anos, depois
daquela perda materna diante da qual ela acreditava não ter sentido
“absolutamente nada”. Esse é um dos citados traumas fundadores
que devastam a infância. Embora a de Virginia já tivesse sido
destruída muito antes: desde os sete anos, sofreu abusos sexuais de
dois meios-irmãos que tinham por volta dos vinte anos de idade.
De modo que o cuidador, às vezes, pode ir longe demais. E
suponho que aqui, como em tudo, a chave está no equilíbrio entre
a porcentagem de desapego e de sentimento, em alcançar uma
certa harmonia entre o eu que sofre e o eu que controla. Intuo que
as pessoas mais destrambelhadas, aquelas mais gravemente
mordidas pela doença mental, têm maior dificuldade de se
reconhecer nas suas emoções. Por exemplo, fiquei chocada ao ver,
nos fascinantes diários de Sylvia Plath, como ela parece usar todo
mundo que conhece como mera documentação para sua obra
(exceto os homens pelos quais ela acredita estar apaixonada: a
paixão é sua ruína): “Amo as pessoas. Todas elas. Amo-as, creio,
como um colecionador de selos ama sua coleção. Cada história,
cada incidente, cada fragmento de conversa é matéria-prima para
mim”. Essa tendência a desumanizar o outro e transformá-lo em
objeto de estudo vai piorando com os anos. Daria para dizer que
ela é incapaz de ter um amigo, uma amiga. Na parte final dos
diários, as entradas começam a ter algo assustador: parece que ela
transforma absolutamente tudo o que é vivo em anotações de
trabalho para poder escrever depois a respeito. Por exemplo, os
vizinhos da frente de sua casa são um casal de idosos. O homem
adoece gravemente, fica incapacitado e sofre, aos cuidados de uma
mulher, uma terrível agonia de meses. Ted, o marido de Sylvia,
ajuda-os de vez em quando; Sylvia também os visita às vezes, mas
eu diria que apenas para fazer anotações. De fato, um dia ela fica
sabendo que o vizinho acaba de ter um derrame e está prestes a
morrer, é uma questão de horas. Então, encoraja-se a visitá-lo com
estas palavras: “Você precisa ver isso, nunca viu alguém sofrer um
derrame ou morrer”.
Sim, imagino que haja escritores vampíricos que tenham
perdido completamente o contato com seu eu sofredor — ou com
seu coração, o que é a mesma coisa. Talvez esses romancistas que
não têm vergonha de utilizar, quase sem disfarce, pessoas reais nos
seus livros, sejam todos um pouco filhos de Drácula. Mas não
quero condenar ninguém, nem tenho o porquê. É muito possível
que ajam dessa forma porque, se se permitissem um contato maior
com suas emoções, desmoronariam. De qualquer forma, nisso eu
não me reconheço. Verdade número 2: todos somos diferentes.
Mas, já que falamos de fraudes, deixe eu te contar uma pequena
história. Talvez um ano depois da agitada noite de Constantino, fui
a uma festa na casa de uns amigos. Devia ter cerca de trinta
pessoas e, em dado momento, a dona da casa se aproximou e me
apresentou para Pedro Zarco, um eminente cardiologista que eu
não conhecia, mas admirava (ele faleceu em 2003 de infarto, que
ironia). Apertei sua mão com entusiasmo e comecei a lhe dizer que
me interessava pelos seus trabalhos, mas minha eloquência foi
murchando diante do total desconcerto do médico. Acabei me
calando, quando Zarco aproveitou para dizer:
— Você é Rosa Montero?
— Sim.
— A Rosa Montero que trabalha no El País, que faz entrevistas?
— Sim, isso mesmo.
Já contei antes que eu havia me tornado mais ou menos famosa
naquela época, mas tanto meu aspecto físico quanto minha voz
ainda eram pouco conhecidos. O dr. Zarco me olhou consternado.
— Não pode ser. Como posso ter certeza? — murmurou.
— Como é que é?
— Há três semanas jantei com Rosa Montero e não era você.
Meia hora mais tarde, e depois de verificar minha autenticidade
com seus amigos, o cardiologista me pôs a par da história. Foi
durante o lançamento do livro de um conhecido no Hotel Palace.
Houve um coquetel depois e eles se encontraram por acaso no
balcão, servindo-se de canapés. A relação foi tão fácil e a sintonia
tão imediata que os dois se retiraram a uma das mesinhas altas com
seus pratos de plástico e passaram um longo tempo conversando.
— Eu disse a ela que gostava muito das suas entrevistas e de
seus artigos, quer dizer, tuas entrevistas e teus artigos, e ela me
disse que se interessava pelo meu trabalho… Era uma garota muito
inteligente, muito simpática, sei lá, tudo parecia tão normal, ela
ficou comentando coisas das entrevistas…
— Coisas? Que coisas?
— Ah, sei lá, banalidades … Que, quando você falou com o
aiatolá Khomeini na França, o sujeito não te olhou nos olhos
nenhuma vez…
Não foi exatamente assim. Quem não pôde olhar para ele foi eu,
me obrigaram a cobrir o cabelo, a testa e as sobrancelhas com um
lenço, nem um único pelo pecaminoso de fora, e também me
disseram que devia manter o tempo todo a cabeça mais baixa que a
do aiatolá, algo francamente difícil, pois o homem era velho e
pequeno e estava sentado sobre uma almofada no chão, então eu
tive de entrevistá-lo praticamente deitada no tapete. De modo que
não foi como aquela garota dizia, mas também não era uma
observação mentirosa ou dissonante. Claro que tudo aquilo podia
ser deduzido do texto da minha entrevista, mas isso indicava que a
mulher me lia, me seguia, que conhecia bem meu trabalho. Eu
estava espantada. Talvez outras pessoas pudessem achar a situação
engraçada, uma história banal e divertida para animar os encontros
entre amigos, mas aquilo me inquietava e angustiava. Zarco
também não parecia achar a menor graça.
— E o pior não é isso… — disse ele, e senti um frio na
barriga. — O pior é que ela me falou: Vou te mandar meu
romance. E eu, imbecil, dei meu endereço. Meu endereço! Mas
como eu poderia saber? E ela me mandou o livro.
Uma semana depois, recebi em casa aquele livro, reenviado pelo
cardiologista. Era Crónica del desamor, um exemplar da nona edição
da editora Debate. A dedicatória dizia: “Para o dr. Zarco, com
minha admiração, este meu primeiro livro ainda titubeante. Um
beijo, Rosa Montero”. A letra não tinha nada a ver com a minha,
era pequena, apertada e inclinada, mas o texto bem poderia ter
sido escrito por mim. Espreitar aquela página fez com que a
realidade se tornasse um pouco escorregadia.
— E fisicamente, como ela era? — perguntei ao cardiologista.
— Normal. Da tua idade, mas muito bonita. Isto é, quero dizer
que não era uma beleza normal… Ai, estou me enrolando. Mas é
isso, ela era belíssima.
Um ato falho, como diria o dr. Freud. Aquele “mas” deixou o
médico ruborizado e a mim, risonha, mas também um tanto
amargurada, devo admitir. Então quer dizer que ela era belíssima.
Suponho que essa beleza tenha contribuído para sua credibilidade
e simpatia, e não estou dizendo que Zarco tivesse qualquer
intenção de transar ou mesmo de flertar com ela, mas que pessoas
mais bonitas parecem de imediato mais inteligentes, mais legais,
mais amáveis, uma irritante ilusão que afeta tanto homens quanto
mulheres e que já foi amplamente estudada. Se, por um lado, fiquei
ofendida por ela ser mais atraente que eu, pois na época ainda
sofria um daqueles absurdos complexos físicos tão comuns entre as
mulheres, por outro, fiquei lisonjeada: pelo menos aquela falsa
Rosa Montero era bonita e ia causando uma boa impressão com
meu nome. Essas considerações ridículas ofuscaram minha mente
e impediram que eu percebesse a real importância do que estava
acontecendo. Porque aquela foi a primeira vez que a Outra surgiu
oficialmente na minha vida.
Nunca mais encontrei o dr. Zarco depois daquele dia. Ainda
tenho em casa este exemplar do meu livro.
O abutre impaciente

Meu pai, que era bem valente, me disse algumas vezes: “O que
mais me dá medo é a loucura”. Nunca conversamos a respeito. Não
lhe contei sobre meus pânicos e ele não acrescentou nada àquelas
palavras, e agora lamento por isso. Se tinha tanto medo, é de supor
que alguma crise também o rondava. Embora talvez não, porque na
verdade o que chamamos de loucura é algo que cria um pavor
geral. Causa tanto medo, e um medo tão irracional, que as pessoas
que sofrem de alguma doença são estigmatizadas e isoladas
socialmente, o que piora de modo drástico sua condição. Porque
estar louco, já falei isso antes, é sobretudo estar só. É uma ruptura
da narrativa comum, um afastamento da convenção social. Se eu
dissesse agora que acabo de encontrar Lúcifer na escadaria, que ele
fedia a enxofre, que tinha pequenos chifres incandescentes como
brasas e que zombou de mim mostrando sua língua afiada, verde e
bipartida, você ficaria horrorizado pensando que surtei. Mas, se
estivéssemos no século XII, você levaria a sério: “E o que é que
você fez? Mostrou a cruz para ele? Como fugiu?”, perguntaria.
Você certamente conhece a história do matemático John Nash,
inventor da teoria dos jogos. Sua vida foi retratada no filme Uma
mente brilhante, protagonizado por Russell Crowe. Aos trinta anos,
quando era uma estrela da ciência em ascensão, Nash se perdeu
nos desvarios de uma esquizofrenia paranoide. Foi internado à
força em diversos hospitais psiquiátricos e submetido a
tratamentos violentos, como os choques insulínicos. Passou três
décadas assim, delirante, hospitalizado e dependente de cuidados,
o típico exemplo do louco furioso. Mas depois, pouco a pouco, foi
se libertando das suas alucinações, ou então aprendeu a conviver
com elas e a não se deixar enganar pela ilusão. Conseguiu levar
uma vida mais ou menos normal e até mesmo manter um cargo de
professor na Universidade Princeton, e, pouco depois, em 1994,
deram a ele o Nobel de economia. Nash ganhou o prêmio por
trabalhos da juventude desenvolvidos antes do colapso psíquico.
Mas é preciso dizer que ele continuou fazendo importantes
descobertas matemáticas de tempos em tempos, mesmo durante
os anos terríveis daquela morte em vida, que é a loucura extrema.
Sua recuperação é pouco comum. Os fármacos de nova geração
certamente contribuíram para isso, mas conseguir superar a
terrível deterioração de trinta anos de internamentos e
tratamentos é algo assustador. Fica claro que sua mente poderosa o
ajudou, ainda que a fiação estivesse muito malfeita. Ele mesmo
explica isso na autobiografia que escreveu depois de ganhar o
Nobel. Nela, reconhece ter passado muitos anos ofuscado pelos
delírios paranoides, até que foi aprendendo a afugentar, com uma
enorme força de vontade, aquelas apavorantes fantasmagorias. “De
modo que, agora, parece que estou pensando de novo
racionalmente, como fazem os cientistas”, diz Nash. E acrescenta:
“Porém, isso não é algo que me enche totalmente de alegria, como
aconteceria no caso de estar doente fisicamente e recuperar a
saúde. Porque a racionalidade do pensamento impõe um limite ao
conceito cósmico de uma pessoa”. Aqui ele cita, com melancólica e
evidente inveja, o caso de Zaratustra, um indivíduo que, visto da
racionalidade científica, pode ser catalogado como maluco. Mas
acontece que seus delírios tiveram uma infinidade de seguidores e,
justamente por isso, porque foi compreendido e valorizado,
tornou-se Zaratustra, isto é, um visionário que entrou para a
história e que imaginou uma nova forma de abordar o mistério do
mundo. Assim como no meu exemplo do demônio, poder
compartilhar ou não o delírio com seus contemporâneos é o que
faz a diferença entre uma existência viável e uma vida fracassada. O
ostracismo condena o doente psiquiátrico a viver num inferno.
“Para o cérebro, a rejeição social é tão importante que literalmente
dói: ativa a mesma matriz neural da dor”, diz o neurocientista
David Eagleman.
Grande parte do medo em relação a pessoas com problemas
mentais se deve à crença de que elas podem sair te perseguindo
com um machado, algo que talvez ocorra (vide Althusser), mas
que, além de não ser nada provável, tampouco é uma coisa
intrinsecamente relacionada à doença mental: com efeito, pessoas
rotuladas de normais cometem mais atos de violência que os
lunáticos. E, depois, acho que no medo da loucura também está a
insegurança na própria sanidade. A realidade do mundo é uma
convenção, uma miragem tremeluzente, é algo tão incerto que
estou convencida de que mesmo as pessoas menos imaginativas
intuem que além das paredes das suas casas se esconde um
abismo. É uma droga, mas simplesmente o que vemos, o que você
está vendo agora (levante os olhos destas linhas e olhe em volta),
enfim, este mundo, que você acha tão sólido e estável, não passa
de uma construção imaginária. Quer uma prova? No centro do seu
olho, de cada um dos seus olhos, existe um ponto cego. Ali onde o
nervo óptico se insere na retina, o olho não vê. E não se trata de
um pontinho minúsculo, mas de uma zona cega que abrange de
dois a quatro graus do campo visual. A Lua ocupa meio grau, ou
seja, o buraco tem lá sua importância. Porém, não o notamos
porque nosso cérebro completa imaginariamente o que não vê. O
mesmo acontece com o glaucoma, uma doença insidiosa que vai te
fazendo perder a visão periférica até deixar seu olhar reduzido a
um tubo central. O pior é que os pacientes de glaucoma não
percebem o dano até que seja tarde demais. Às vezes descobrem
porque vão dobrar uma esquina e de repente, para seu
desconcerto, dão de cara com uma parede. É que a esquina não
existia e tinha sido imaginada pela sua mente, empenhada em
reconstruir com laboriosa dificuldade a paisagem que o olho não
percebia. O mundo em que vivemos é em boa medida uma
alucinação, não à toa tememos que o contágio dos doentes mentais
abale de vez nossa estrutura.
Não acredito que possa haver uma dor tão insuportável como a
dor psíquica: como não ter medo desse tormento? O que
costumamos chamar de loucura — isto é, alterações mentais
realmente graves, aquelas que ainda nos privam de uma existência
plena (um dia encontrarão um remédio) — gera um sofrimento
atroz. Os autores mais afligidos repetem nos seus textos, uma e
outra vez: a loucura é um inimigo à espreita ao longo da vida
inteira, um abutre rondando para te devorar. Pior: um abutre
impaciente que começa a roer suas entranhas quando você ainda
não morreu. “Meu cérebro está totalmente transtornado e já não
serve para viver, de modo que eu deveria ir para um hospício”,
disse Van Gogh. E Hölderlin escreveu em 1801: “Agora temo
acabar como o velho Tântalo, que recebeu dos deuses mais do que
podia digerir”. Seus transtornos foram piorando até que, cinco
anos mais tarde, o abutre o capturou definitivamente. Foi
internado numa clínica psiquiátrica e morreu em 1846 sem nunca
mais recuperar o controle.
Nestes últimos anos, me debrucei sobre uma porção de textos
escritos em pleno delírio por gente muito perturbada. Tem sido
uma viagem e tanto. Um desses livros foi Inferno, de Strindberg. O
sueco August Strindberg (1849-1912) foi uma figura peculiar. É um
dos autores mais importantes do seu país, sobretudo como
dramaturgo. Era também um esquizoide paranoico que passou por
terríveis momentos alucinatórios. Sentia-se perseguido por todo
mundo, em especial pelas mulheres, e acabou construindo teorias
conspiratórias de uma misoginia feroz. É curioso, porque na sua
obra há ao mesmo tempo textos feministas e textos de um
machismo insano, literalmente. Senhorita Júlia, sua obra mais
famosa, mostra ambos os aspectos. Sua crise psicótica mais grave
foi em 1894 e está retratada no livro Inferno, que é pura e
simplesmente o relato de um surto. Delirante e repetitivo, seu
único valor reside na paisagem mental remota que ele expõe. Uma
agonia, um inferno descrito enquanto as chamas ardem.
Strindberg começa o livro tentando capturar almas num cemitério
com um vidrinho de acetato de chumbo líquido. “Embora seja
inegável que eu saiba despertar os mortos, não o faço mais, pois os
mortos têm mau hálito.” Não para de viajar durante a crise; vai de
hotel em hotel, e em todos os estabelecimentos lhe acontecem
coisas horríveis. Acredita que tentam matá-lo “com um gás
deletério” e também com correntes elétricas que atravessam o
quarto: “A ideia de que sou perseguido por inimigos eletricistas
me assombra novamente”. O que ele diz causa graça, mas seu
sofrimento é colossal. Vê sinais de conspirações por toda parte,
que de algum modo o aliviam, pois parecem “uma realidade
palpável que me liberta de todas as minhas horríveis suspeitas
relacionadas à doença mental”. É que também os loucos (imagino
que eles mais que ninguém) estão mortos de medo da loucura.
Uma noite, esmurra a porta da sogra, com quem mora a filha
pequena de Strindberg.

A expressão que adquire seu rosto (o rosto da sogra) ao me ver


me inspira um profundo horror de mim mesmo. — O que
deseja, meu filho? — Desejo morrer e depois ser queimado, ou
melhor, ser queimado vivo! Nem uma palavra! Ela me
compreendeu e luta contra seu horror. Mas a piedade e a
misericórdia religiosa são mais fortes, e ela mesma arruma o
sofá para mim, retirando-se, ato contínuo, ao seu quarto, onde
dorme com a menina.

E com a cômoda arrastada contra a porta, acrescentaria eu.


Todo o texto transita por esses tormentos atrozes, em meio a
um desespero tão indescritível que empalidece as palavras com as
quais queremos plasmá-lo. De novo nos hotéis; num deles, três
pianos soam ao mesmo tempo no meio da noite e três moças
escandinavas o perseguem. Em outro, martelam pregos e
começam a serrar madeira de madrugada “sem que ninguém
proteste”. Ele paga e vai embora. “Sozinho, na fria noite de janeiro,
arrasto minha mala cansado, desfalecido, sob um céu escuro.
Tenho a ideia de deitar na neve e deixar-me morrer.” Ele acaba
numa pensão barata e cai vestido na cama. Silêncio sepulcral.
Então, “uma pata invisível começa a arranhar por trás o papel de
parede do teto, bem em cima da minha cabeça! É uma pata
enorme, como de lebre, de cachorro! Até a manhã chegar, com as
roupas encharcadas de suor, espero sentir as garras na minha pele,
mas não acontece nada e a angústia é pior que a própria morte!”.
Seu terror é absoluto, sem solução, sem saída nem qualquer
possibilidade de ajuda. Depois de contar tudo isso, o coitado
acrescenta: “Como não enlouqueci depois de tanta tortura?”.
É o reino triunfal do delírio. O abutre empanturrado e satisfeito.
Inferno dói e ensina, mas também suscita alguma esperança.
Porque Strindberg, aquele homem destruído, aterrorizado e
alienígena, deu um jeito de viver uma vida inteira (63 anos) com
autonomia. Nunca foi internado num hospital psiquiátrico e
conseguiu concluir uma obra que o transformou num autor
universal. É um feito incrível, e estou convencida de que escrever
o ajudou a superar seus pesadelos alucinados. Talvez não tenha se
deitado na neve até a morte graças ao fato de que a srta. Júlia
termina o livro saindo de cena para se suicidar.
Há outros autores, outras batalhas. Em todos, a vida é uma luta
assombrosa. Por exemplo, a extraordinária e poderosa Alda Merini
(1931-2009), uma das poetas essenciais da literatura italiana, que
passou várias vezes pelo manicômio, numa delas durante uma
década inteira. Era mística e também muito erótica, teve vários
amantes e uma penca de filhos, era refém da sua bipolaridade e ao
mesmo tempo tinha a liberdade radical, dolorosa e avassaladora de
quem habita um mundo paralelo. Há uma sessão de fotos de Alda
madura, nua e com colares, que me parece fascinante: essa foi sua
maneira de lutar contra a loucura (ou talvez de habitá-la):

Conheci Jericó,
eu também tive minha Palestina,
os muros do manicômio
eram os muros de Jericó […]

e tinha também o Messias


confundido com a multidão:
um louco que gritava ao Céu todo seu amor a Deus. […]

Fomos lavados e sepultados,


e recendíamos a incenso.
E depois, quando amávamos
nos davam eletrochoques
porque, diziam, um louco
não pode amar ninguém.

E tem Nietzsche (1844-1900). Curiosamente, o primeiro e o


último livro do pensador alemão são duas autobiografias. A minha
vida foi escrito aos catorze anos: já é estranho, digamos, que a essa
idade alguém decida redigir suas memórias. No livro, ele conta a
morte do pai e do irmão: “Até então, a sorte e a felicidade sempre
haviam sorrido para nós, nossa vida fluía com a tranquilidade de
um luminoso dia de verão, mas de repente formaram-se nuvens
negras, os raios fenderam o espaço e o céu desferiu golpes
devastadores. Em setembro de 1848, meu amado pai adoeceu […]
repentinamente”. O pai morreu em 1849, quando Friedrich tinha
quatro anos, e meses depois faleceu o irmão. Eis aqui mais uma
infância destroçada, reforçando minha teoria. E o Nietzsche
adolescente continua:
Naquela época, minha natureza já começava a se revelar. No
decorrer da minha curta vida, eu já tinha visto muita dor e
aflição, por isso não era tão divertido e desenvolto como
costumam ser as crianças. Meus colegas do primário tinham o
hábito de zombar de mim por causa da minha seriedade. Mas
isso não aconteceu apenas naquele tempo: não, também
aconteceu depois, no ginásio, e inclusive mais tarde, no
científico.

Cáspita! Quer dizer que o coitado do Nietzsche foi alvo de


perseguição, assédio e bullying escolar durante toda a sua infância!
Pode ser que parte da sua megalomania tenha sido fermentada ali,
contra aqueles bárbaros. A segunda autobiografia, Ecce Homo, é seu
último texto legível, escrito pouco antes de, em 1889, abraçar
chorando o pescoço de um cavalo maltratado e depois desmaiar.
Em Ecce Homo, já brilha cegamente o delírio messiânico. “A
desproporção entre a grandeza de minha tarefa (dar testemunho da
sua própria vida) e a pequenez de meus contemporâneos fica
evidente no fato de que não me ouviram nem me viram”, diz com
arrogância. E um pouco mais adiante: “Com Zaratustra, dei à
humanidade o maior presente que ela jamais recebeu”. O capítulo
seguinte a essa afirmação é intitulado “Por que sou tão sábio”.
Passou os últimos onze anos da sua vida prisioneiro do delírio e
morreu com apenas 55 anos.
É possível, aliás, que a demência de Nietzsche tenha sido
causada pela sífilis. Fiquei assustada ao constatar quantos loucos
célebres perderam a cabeça e a vida justamente por essa terrível
doença, adquirida por eles ou congênita. Fala-se que foi a origem
da insânia atroz de Guy de Maupassant, e com certeza causou o
desequilíbrio mental e a morte de Theo, o irmão de Vincent van
Gogh, e supostamente também enlouqueceu Théodore Géricault,
pintor da maravilhosa A balsa da Medusa, e deixou Baudelaire
hemiplégico e afásico, e bagunçou a cabeça do compositor
Gaetano Donizetti de tal modo que ele passou anos isolado e
trancado antes de falecer aos cinquenta anos de idade. Quanto a
Robert Schumann, supõe-se que sofria de um transtorno talvez
bipolar ou do espectro da esquizofrenia. Aos 22 anos, projetou um
dispositivo por meio do qual amarrava os dedos da mão direita e
deixava livre apenas o anelar para tentar, assim, exercitá-lo mais. A
invenção causou uma invalidez permanente daquela mão e acabou
com sua carreira de pianista (talvez essa ideia doentia tenha nos
legado um grande compositor); portanto, parece que suas
maluquices vinham desde cedo. De qualquer forma, quando
morreu, aos 46 anos, no asilo para doentes mentais de Bonn, ele
também tinha sífilis.
Neste capítulo, me aproximei com passos cautelosos do coração
sombrio da loucura. Do núcleo da dor. E afirmei de novo (repeti
isso muitas vezes ao longo da vida) que não devemos ter medo dos
doentes mentais. É algo em que realmente acredito, mas, ao
mesmo tempo, devo reconhecer que eu também já tive medo. Que
também fiquei assustada.
O primeiro indício de que alguma coisa ia muito mal aconteceu
na Feira do Livro de Madri. Acho que era o ano de 1983 e eu estava
autografando no estande da livraria Rafael Alberti. Diante de mim
havia uma pequena fila de leitores, todos eles sorridentes e
amáveis, exceto por um senhor de cerca de cinquenta anos que me
olhava, de cenho franzido e muito sério, a três ou quatro pessoas
de distância. Sua expressão funesta me inquietou, não sei muito
bem o porquê. Na verdade, quando chegou sua vez e ele ficou
plantado na minha frente com as pernas um pouco separadas, acho
que me senti até mesmo um pouco amedrontada. “Sou David
Bulder. Do ‘Zaragoza en letra viva'”, disse num tom tão carregado e
tempestuoso que quase pensei avistar relâmpagos. “Ah”, acho que
respondi, tolamente. “Muito prazer. Quer a dedicatória para
você?” O homem reagiu como se eu tivesse lhe dado uma
bofetada. Arregalou os olhos e seus dedos agarraram
convulsivamente a borda do estande: “Eu quero… eu quero…
desculpas! Um pedido de desculpas! É o mínimo que a senhora
deveria fazer, e digo ‘senhora' para não a chamar daquilo que
merece”. Sua voz tremia, e poucas vezes vi tanto ódio em alguém.
Acho que todo o meu sangue desceu de repente para os pés. “Mas
do que o senhor está falando? Não entendo nada”, balbuciei. À
minha volta, a livreira Lola Larumbe e seus colegas se agitavam
inquietos: seria um encrenqueiro? Seria um demente? Os outros
leitores da fila faziam um silêncio sepulcral, ansiosos por absorver
até a última palavra. “Quatrocentas pessoas. Uma sala cheia com
quatrocentas pessoas e transmissão ao vivo pela rádio SER, e a
senhora nos deixou plantados…”, cuspia o homem. Aos poucos,
com muita dificuldade, porque o sujeito estava realmente alterado
(tiveram de ir buscar um conhaque para ele), a história foi
emergindo. “Zaragoza en letra viva” era um festival literário que
havia sido realizado aquele ano pela primeira vez na cidade de
Zaragoza. Em janeiro, depois de apresentar o festival na imprensa,
receberam uma carta minha (minha?), sim, um lindo papel lilás
com meu nome impresso em tinta roxa (meu nome?). A carta era
escrita não por mim, mas por María, minha secretária (minha
secretária?), e dizia que eu, Rosa Montero, tinha gostado muito da
ideia do festival. Que, por motivos pessoais, estaria em Zaragoza
durante a data e que, se estivessem de acordo, eu me oferecia para
participar de algum dos encontros pelo cachê que eles julgassem
adequado. Como era um festival iniciante, pelo visto acharam a
proposta excelente. Ficaram entusiasmados, me ofereceram 30 mil
pesetas, organizaram um encontro conjunto com a universidade e
conseguiram que a rádio local topasse retransmitir parte do evento
ao vivo. Lotaram um auditório com quatrocentas pessoas e eu
nunca cheguei.
— Mas como não suspeitaram de nada? — perguntei.
— Ela fez tudo direitinho. Falamos várias vezes por telefone.
Me contou que, como você estava em Zaragoza, iria por conta
própria ao auditório. Inclusive, ligou meia hora antes do início para
dizer que estava a caminho e que puséssemos na mesa um café
com gelo, porque você sempre tomava café nos atos públicos.
Quando vimos que você não chegava, telefonamos diversas vezes,
mas não pudemos localizá-la de novo. Foi muito humilhante.
— E o dinheiro?
— Não, isso não. Íamos te pagar depois do evento, então pelo
menos ela não recebeu o dinheiro. Por isso não fomos à polícia.
Para o bondoso David Bulder (apesar da minha péssima
memória, ainda me lembro do seu nome, pois aquilo foi um
trauma para mim), não ter perdido as 30 mil pesetas foi um alívio,
mas eu fiquei ainda mais nervosa: se não havia um motivo
financeiro, toda aquela piada absurda devia ter sido armada contra
mim.
— Talvez não — argumentou Lola, a livreira, que sempre foi
otimista. — Talvez se tratasse de uma daquelas rixas tão comuns
nos círculos culturais locais. Talvez alguém de Zaragoza tivesse
interesse que o festival fosse um fracasso e te botaram no meio por
acaso.
Quis acreditar nela, mas semanas depois aconteceu algo
parecido com a livraria Cervantes de Oviedo, e depois com a atriz
Ana Belén, com o bioquímico Faustino Cordón e com o diretor de
cinema Pedro Olea, com quem eu supostamente faria entrevistas
para o jornal El País (como eu não sabia de nada, nunca apareci nos
horários marcados).
— Quando sua secretária agendou a entrevista comigo, em vez
de você mesma telefonar, pensei que você tinha virado uma
babaca — me disse Ana Belén, de quem eu era bastante próxima,
depois que lhe contei o ocorrido.
Uma colega da editoria de Nacional do El País me levou até um
contato na polícia, que falou que aquilo eram brincadeiras de fãs e
que eu não desse muita importância. Mas eu me sentia doente,
literalmente doente, e não apenas assustada com a existência de
uma mente perversa obcecada por mim, mas também exposta e
devassada por todas aquelas Rosas Montero inapresentáveis, por
me deixarem em maus lençóis. Então, tive a brilhante ideia de
contar a história num dos meus artigos, pedindo por favor que a
espalhassem por aí (naquele tempo não havia redes sociais), e as
águas pareceram se acalmar como num passe de mágica. Durante
um ano, não tive mais notícias de nenhuma farsa.
Elogio dos imaturos

Pelo visto sou imatura, e devo dizer que fico até feliz por isso. Há
um livro interessantíssimo da neurobióloga espanhola Mara
Dierssen, El cerebro del artista, que me ensinou uma porção de
coisas. Nossa cabeça, já se sabe, é uma conquista magnífica da
evolução, e dotada de uma complexidade monumental. Temos 86
bilhões de neurônios no cérebro, e para que todos os circuitos
elétricos necessários caibam dentro da pequena e dura caixa do
nosso crânio, o córtex cerebral foi se enrugando e dobrando
intrincadamente sobre si mesmo para aumentar a superfície. Se
você tirasse o córtex cerebral da cabeça e o passasse a ferro, ele
poderia chegar a medir meio metro quadrado. Agora, imagine
organizar um sistema perfeito de recepção e envio de dados com
tudo isso. Não me surpreende que às vezes a fiação dê algum
probleminha.
O neurônio é uma célula especializada na comunicação. De um
lado, saem dele uns fiozinhos, os dendritos, encarregados de
coletar a informação; do outro, uma cauda muito comprida
chamada axônio, o mensageiro, que entrega o pacote. Os nervos
são milhões de axônios juntos (eles também formam a massa
branca do cérebro, enquanto o corpo dos neurônios é a massa
cinzenta). No final da cauda existem pequeníssimas
protuberâncias, os botões sinápticos. Ali, em saquinhos, estão os
neurotransmissores, compostos químicos que intervêm de
maneira fundamental na comunicação com a célula seguinte. Há
mais de cem neurotransmissores no corpo humano: acetilcolina,
dopamina, serotonina, noradrenalina, Gaba… Alguns são
inibitórios: impedem a passagem dos sinais. Outros, os
excitatórios, as estimulam. E essa dança elétrica acontece de modo
constante entre bilhões de neurônios. Se pensarmos um pouco,
parece até milagre uma coisa tão básica como o fato de ser capaz de
enfiar o dedo no nariz.
O cérebro demora a amadurecer. Há estudos que defendem que
ele só termina de se formar depois dos trinta anos. Sabemos que na
adolescência começa uma profunda poda neural: na infância, nossa
cabeça é um turbilhão, loucamente cabeado e interconectado em
todas as direções. Mas, ao chegarmos à puberdade, os
neurotransmissores inibitórios do córtex pré-frontal começam a
funcionar como possuídos e desligam todas aquelas conexões que
não são claramente úteis para gerenciarmos nossa vida. Assim, o
cérebro se concentra em caçar mamutes, colher sem se envenenar,
encontrar uma caverna segura, arranjar uma parceira ou parceiro
fértil, manter a prole com vida, sem perder tempo nem energia em
ideias paralelas desnecessárias. Agora, traduza a metáfora
troglodita para nossa sociedade atual.
Pois bem, aparentemente há um certo número de pessoas nas
quais não ocorre esse amadurecimento cerebral. Entre elas, estão
os doentes mentais. E também, é o que defende Dierssen, os
artistas. O fato é que os neurotransmissores falham de algum modo
e a mente não é podada como se deve: “Uma pessoa normal
controla a atenção através da inibição de respostas a estímulos
irrelevantes”, diz Dierssen. Mas nas pessoas mais criativas essa
inibição não ocorre, pelo menos não nos momentos de
criatividade, de modo que elas têm (nós temos) a cabeça muito
mais cheia de bobagens.

Em outras palavras, as pessoas menos criativas fixam demais


sua atenção, o que possivelmente reduz sua capacidade de
estabelecer associações e pensamentos mais originais. O ato
criativo poderia derivar da capacidade de ativar um grande
número de representações mentais simultaneamente, o que
permitiria descobrir novas associações, novas analogias.

Tudo isso, é claro, enquanto você queima sua torrada.


Essa “desinibição cognitiva” pode ser observada com as novas
técnicas de neurodiagnóstico por imagem, que revolucionaram o
conhecimento do cérebro nas últimas décadas. Por exemplo:
quando é proposto a pessoas que têm uma profissão criativa
realizar uma tarefa associativa, seu córtex pré-frontal (que tem
como uma das suas funções inibir as conexões desnecessárias) se
ilumina de maneira diferente das pessoas não criativas. E Dierssen
conclui: “A inspiração criativa é um estado mental cortical […]
caracterizado por baixos níveis de atividade pré-frontal e por uma
maior atividade do hemisfério direito em relação ao esquerdo”.
Há décadas venho dizendo e escrevendo que, na infância, todos
temos uma imaginação selvagem capaz de intuir uma infinidade de
possíveis formas da realidade. Por isso víamos um cachorro passar
e inventávamos que era um dragão. Mas, ao chegarmos à
puberdade, acrescentava eu, começávamos a dizer que aquelas
fantasias eram coisas de criança pequena e que precisávamos
crescer e superá-las. E era o que fazia a maioria das pessoas,
obedecer e aplacar a imaginação — exceto alguns de nós, que
continuávamos vendo dragões. Pois bem, descobrir agora que
existe um motivo biológico que explica tudo isso à perfeição me
deixou entusiasmada: foi como acender um foguete dentro da
minha cabeça. Quanta faísca e quanta emoção! Filha do meu
tempo, dei mais importância ao processo de socialização, mas por
enquanto parece que a biologia venceu: hereditariedade 1 × 0 meio.
Embora seja uma batalha não decidida até o fim. Lembre-se de que
o meio acaba por alterar a química. Mas resumindo: tenho uma
cabeça como de quinze anos. Acho que é muito. Por vezes, diria
que tenho no máximo dez.
Além desse “maior tráfego de informações” que as pessoas
criativas têm, segundo Dierssen também ocorrem outras
características neurológicas. Por exemplo, uma maior relação com
o sistema límbico (isto é, com as emoções: elas tendem a se
emocionar mais), e também uma hiper-resposta fisiológica. O que
me fez lembrar as PAS, Pessoas Altamente Sensíveis, um traço de
comportamento definido nos anos 1990 pela psicóloga norte-
americana Elaine Aron. Não se trata de transtorno nem de doença,
mas também não são pessoas superdotadas. É apenas um modo de
ser que afeta entre 15% e 20% da população mundial e acomete
igualmente homens e mulheres. E o que acontece com as PAS? Ao
que tudo indica, elas são capazes de perceber e processar mais
informação sensorial simultânea. O que é algo não muito diferente
do que conta Dierssen. Enfim, são muito reflexivas, quase diria
que obsessivas, com uma emotividade e empatia muito altas; com
tendência a serem superestimuladas e até mesmo saturadas pelo
excesso de informação recebida; com capacidade de captar
sutilezas.
De fato, a teoria da dra. Aron ainda é questionada por alguns
cientistas, que sustentam falta de rigor e de pesquisas que a
comprovem. O que não é totalmente verdade, pois em 2014 a
própria Elaine Aron e outros colegas provaram por meio das novas
ressonâncias magnéticas funcionais que os cérebros considerados
de PAS são ativados de modo diferente. Além do mais, para mim o
rótulo apenas põe palavras em algo que sempre se soube: que
existem pessoas mais nervosas, mais impressionáveis, mais
instáveis, mais suscetíveis de serem afetadas pelo entorno. O
hipersensível de sempre, carinhosamente conhecido como “aquela
histérica”, “aquele reclamão”, “aquela doida” ou “aquele maníaco
obsessivo”.
Mas não. Somos PAS, o que soa muito mais digno. Na internet é
possível encontrar alguns testes que supostamente permitem saber
se você tem alta sensibilidade e em que grau. Além de coisas
óbvias, como não tolerar imagens violentas (ou tolerá-las muito
mal), também existe a hipersensibilidade às luzes, aos sons, aos
estímulos físicos. Por exemplo, tem dias em que eu saio com uma
camiseta que já usei várias vezes antes sem problemas, mas cuja
etiqueta inesperadamente me parece insuportável. Falo daquelas
tirinhas de tecido costuradas na parte de trás da gola da roupa com
o nome da marca. De repente, não a suporto: começa a machucar a
pele, me arranha, me pinica, me enlouquece de tal forma que não
aguento seu contato nem mais um segundo e, como essa aguda
crise de ojeriza acontece com frequência na rua, começo a puxar a
etiqueta feito maluca, com tanta fúria que acabo arrancando tudo e
rasgando a roupa. Tenho um monte de peças com a parte de trás da
gola furada. Com isso, o que quero destacar é que essa alta
sensibilidade não é sempre alta assim. Ela flutua, como também
flutua a criatividade nas pessoas criativas (às vezes sua cabeça viaja,
às vezes é como uma meleca grudada no azulejo). E pressinto que
tudo isso faz parte da mesma fiação defeituosa, de
neurotransmissores que às vezes funcionam como devem e em
outras piscam, ameaçando pifar.
“Alguns autores consideram […] que uma propriedade
fundamental do cérebro criativo poderia ser a desregulação de
diferentes neurotransmissores, em especial a dopamina”, diz
Dierssen. Pois bem, parece que os neurotransmissores também
estão alterados nos casos de transtorno mental. Portanto, talvez a
diferença entre a criatividade e o que chamamos de loucura seja
apenas quantitativa. Por exemplo: que nos saquinhos químicos da
extremidade dos axônios falte um pouco de substância, ou que
estejam quase vazios. Não me lembro se a autora dá alguma
estimativa sobre que porcentagem da população tem esse cérebro
imaturo e sem poda, mas vou me atrever a supor que somos em
torno de 15%, simplesmente por uma comparação com as PAS e
também me baseando em outras pesquisas, como a que a
universidade húngara de Semmelweis fez em 2009. Foi um estudo
muito curioso: pegaram algumas centenas de indivíduos que não
haviam tido nenhum transtorno psíquico prévio e as submeteram a
uma série de testes de criatividade básicos. Feito isso, verificaram
se os indivíduos tinham uma mutação de um gene do cérebro
chamado neuregulina-1. Calcula-se que 50% dos europeus têm
uma cópia dessa mutação; 15%, duas; e 35%, nenhuma. Pois bem,
aqueles que tinham duas cópias eram os mais criativos, enquanto
aqueles que não tinham nenhuma eram os menos (os
pesquisadores húngaros, empolgados, sugeriram que haviam
encontrado o gene da criatividade: menos, por favor!). Porém o
mais engraçado desse estudo é que também descobriram que
aqueles 15% mais criativos tinham uma memória péssima,
apresentavam maior tendência a sofrer distúrbios mentais e
também padeciam de hipersensibilidade às críticas. Não parece o
retrato falado do artista?
Por sinal, eu gabarito: cumpro os três requisitos perfeitamente.
Me assusta sobretudo a falta de memória, como minha vida
pregressa parece ir afundando numa névoa espessa que tudo
devora. Não recordo momentos ou vivências que, quando alguém
as conta, sei que devem ter sido cruciais e muito importantes para
mim. E, no entanto, não guardo o menor eco daquilo na minha
cabeça. Certamente esse despenhadeiro mental também tem
muito a ver com a química do cérebro.

A depressão e o estresse parecem produzir as mesmas


alterações bioquímicas no corpo: ativam o eixo hipotálamo-
pituitária-adrenal (HPA) do sistema neuroendócrino, fazendo
com que a glândula suprarrenal libere o cortisol, principal
hormônio do estresse […]. As concentrações excessivas de
cortisol destroem as conexões sinápticas entre os neurônios do
hipocampo, a região do cérebro mais importante para a
memória,
explica o neurocientista Eric Kandel. Aleluia! Agora entendo tudo,
pois meu nível médio de estresse costuma oscilar entre “alto” e
“excessivo”. Meu único consolo é que parece ser um buraco
mental compartilhado por muitos escritores: “Meu modo de
pensar é ir esquecendo tudo”, lamenta-se Héctor Abad. E Ursula
K. Le Guin garante que é muito melhor em inventar coisas do que
em lembrá-las.

Voltando ao ato criativo, Dierssen se pergunta se nós humanos


temos a necessidade física de ver e produzir arte. Ou, o que dá no
mesmo: para que nos serve? Ela não dá uma resposta definitiva,
mas aponta coisas curiosas; por exemplo, que a música (que pode
ter sido uma pré-adaptação da linguagem) ativa as mesmas
respostas cerebrais do sexo ou de comer com fome, e que o prazer
artístico “poderia ser entendido como um mecanismo evolutivo
para sobreviver”. Justamente, há pesquisadores que sustentam que
a existência das PAS é uma vantagem evolutiva para a espécie,
devido à sua capacidade de processar mais informação em paralelo.
Imaginemos — é apenas uma hipótese — que essas Pessoas
Altamente Sensíveis sejam também aquelas que possuem os
cérebros não inibidos de Dierssen, isto é, gente que pensa mil
coisas ao mesmo tempo. Na adolescência, li um romance de ficção
científica de cujo título nunca mais me lembrei, mas que tratava de
uma imensa nave-mundo cujos habitantes eram todos eminentes
especialistas em diversas áreas do conhecimento. Todos, menos
um: o Relações-Públicas, que sabia um pouco de tudo, mas muito
de nada, e que era uma espécie de pária do lugar, um sujeito
menosprezado pelo resto dos colegas. Até que a nave-mundo
enfrenta uma crise complexa e colossal que põe a sobrevivência do
sistema em risco. E quem os salva, então? O Relações-Públicas, é
claro, como era de prever, pois ele é o único capaz de conectar
paralelamente os pequenos e isolados fragmentos de uma realidade
sempre caótica. Enfim, quem sabe essas nossas cabeças tão
perdidas em mil divagações encontrem um dia uma saída para a
espécie.
Mas me deixe incluir um dado perturbador: recentemente, saiu
um livro intitulado Mi jefe es un psicópata, do psicólogo Iñaki
Piñuel, que defende que 2% da população mundial é composta de
psicopatas, gente muito má, incapaz de sentir empatia pelo
próximo (por favor, não vamos confundir a psicopatia, que não é
considerada uma doença mental, com o terrível transtorno da
psicose). A essa porcentagem, seria preciso acrescentar entre 10%
e 13% de egocêntricos e narcisistas, pessoas também terrivelmente
tóxicas que apenas usam o outro para seu proveito. Ao todo, então,
15% de sujeitinhos sem escrúpulos. Não é curioso que em ambos
os lados da balança haja a mesma quantidade de pessoas? Quer
dizer, nos extremos do arco social estariam, como dois
contrapesos, os indivíduos excessivamente empáticos e os
incapazes de sentir. Corações de pedra contra corações de
alcachofra. As pessoas más também seriam um recurso genético?
Dá uma certa vertigem pensar em coisas assim. Como se o Mal
pudesse ter um lugar no mundo.
Uma família lamentável e magnífica

“A lamentável e magnífica família dos nervosos é o sal da terra.


Tudo o que conhecemos de grandioso provém dos nervosos”, dizia
Marcel Proust. Por sinal, o calamitoso Proust era nervosíssimo, ou,
como diríamos hoje, totalmente neurótico. As primeiras páginas da
sua maravilhosa obra Em busca do tempo perdido narram,
justamente, uma crise de ansiedade do Marcel criança. Poderíamos
dizer que a partir dali as coisas foram piorando, porque ele passou
os últimos quinze anos de vida recluso em casa, num quarto com
as paredes forradas de cortiça para evitar barulhos, dormindo de
dia e escrevendo de noite, e vivendo quase exclusivamente de
xícaras de café. Nossa, que farra!
Vou te contar como é a vida cotidiana dentro dessa curiosa
família. Sei que muitos vão se sentir identificados (segundo minhas
suposições, 15%), enquanto para outros pode parecer um
comportamento entre o delírio e a estupidez. A questão é que
minha cabeça, assim como a das crianças, fica inventando histórias
o tempo todo. Não faço isso de propósito, não é uma decisão
voluntária: a imaginação simplesmente é acionada sozinha. Por
exemplo: estou esperando o elevador e, pouco antes de as portas se
abrirem, me ocorre que lá dentro haverá um cadáver enrodilhado
numa poça de sangue. Não sei por que penso nisso hoje, e não
ontem à noite, digamos, quando estava na mesma situação. De
repente, acontece. Em outras ocasiões, não se trata apenas de ver
uma cena (aquele corpo no chão), mas de inventar toda uma
aventura. Há alguns anos eu estava escrevendo um livro em
Cascais, a 25 quilômetros de Lisboa, quando uns amigos espanhóis
que tinham acabado de chegar me telefonaram. Combinei de
tomar algo com eles no centro da cidade e saí do meu condomínio,
nos arredores de Cascais, em cima da hora. Da casa até o lugar
marcado eram uns dois quilômetros, de modo que comecei a andar
depressa. E de repente, enquanto trotava rua abaixo, minha cabeça
foi acionada e pensei comigo: E se…? (todos os devaneios
começam com um “e se?”) E se de repente houvesse um
terremoto? Não era uma suposição tão descabida. De fato, há
décadas é esperado um grande tremor na região de Lisboa.
Recordemos que a cidade foi destruída em 1755 por um terremoto
que ficou famoso na história pois Voltaire o usou como exemplo de
que os deuses não são confiáveis. Naquela época, acreditava-se que
as desgraças naturais eram castigos divinos aos ímpios, o que não
condizia com a sociedade portuguesa, que era muito religiosa, nem
com o fato de que em Lisboa foram derrubadas as igrejas, mas não
os prostíbulos.
Mas, voltando àquela tarde, a questão é que a ideia do
terremoto surgiu sozinha na minha cabeça, saída sabe-se lá de
onde, e a partir daquele momento comecei a viver em duas
dimensões paralelas. De um lado estava meu corpo real, que
continuava andando depressa, ligado no piloto automático, rumo
ao encontro com meus amigos. Do outro, minha vida imaginária,
na qual eu experienciava um forte tremor: as árvores balançavam, o
asfalto ondulante fazia os carros dançarem como brinquedos, os
típicos paralelepípedos portugueses das calçadas se esmigalhavam.
E aquele ruído incrível, o retumbar do mundo! Finalmente, a
violência da terra parou e eu, espantada, resolvi não ir ao encontro
com meus amigos, mas dar meia-volta e regressar para casa (estou
falando da vida inventada: meu corpo mortal continuava a passos
ligeiros em direção ao centro de Cascais). Quando entrei no
condomínio, confirmei aliviada que o estrago ali não fora grave (o
edifício, e isso é verdade, foi construído sobre pedra). Algumas
janelas quebradas, carros com o alarme disparado, pessoas
reunidas em grupinhos nervosos. Cheguei ao saguão e subi a pé os
quatro lances de escada o mais rápido que pude, pois havia deixado
as cachorras sozinhas em casa. Do terceiro andar, ouvi-as
choramingar e arranhar a porta, coitadinhas. Quando cheguei ao
último lance, armaram um escândalo. Corri para pegar a chave,
enfiei-a na fechadura e… o horror! O batente da porta tinha se
deslocado e não dava para abrir! E agora, o que eu faço?, me
perguntei, desesperada, enquanto as cachorras ficavam roucas de
tanto berrar. Porque chamar os bombeiros seria absurdo, os
coitados deviam estar exaustos com o baita terremoto que
havíamos sofrido, com certeza não davam conta. Naquele
momento, apareceu meu vizinho: E se você tentar entrar pela
varanda?, disse. Me pareceu uma ideia magnífica, porque,
felizmente, havia deixado a sacada aberta. Então, entrei no
apartamento do vizinho, e estava nisso quando meu corpo real
chegou ao café onde havia combinado com meus amigos, e o
terremoto acabou para mim.
Enfim, minha cabeça vai tramando histórias como essa o dia
todo. E a imensa maioria dessas fantasias não serve para nada,
quero dizer que elas não irão desembocar num conto ou romance,
simplesmente atravessam a escuridão do crânio feito cometas
errantes e desaparecem para todo o sempre. Eu nunca teria escrito
nada sobre esse terremoto imaginário se não fosse pelo fato de que
me parece um exemplo bastante revelador de como funciona a
criatividade. Quando cheguei mentalmente ao patamar da escada,
não é que eu tenha pensado: Beleza, e agora, o que posso imaginar
para dar mais suspense e drama à história? E se eu deslocar um
pouquinho o batente? Não, nada disso. Não é assim. Eu
simplesmente cheguei ali, naquela outra vida paralela e irreal, e
enfiei a chave na fechadura. E foi então, só então, no momento em
que tentei fazer funcionar o mecanismo, que percebi que o tremor
havia emperrado a porta. São peripécias que você quase pensa ter
vivido de verdade e que, de alguma forma, pelo menos em grande
parte, contam-se sozinhas. São narradas pelo seu inconsciente.
Essa imaginação frondosa e sem poda é o típico presente das
fadas. Refiro-me às malditas fadas madrinhas das histórias infantis
clássicas, que chegam aos batizados das protagonistas e sempre
dão a elas algum presentinho envenenado. Você será muito bonita,
mas adormecerá por cem anos. Será muito esperta, mas se
transformará numa rã. Enfim, tudo o que é bom tem um preço. E,
quanto melhor, mais caro.
Porque nossa mente incontrolável também nos faz passar alguns
apertos. Por exemplo: vou caminhando pelo bosque com minha
cachorra, que é pequena e rasteira, uma bassê de patas minúsculas
que vai dando pulinhos a torto e a direito, e de repente imagino
que um dos galhos secos dos arbustos espeta acidentalmente o
olho dela. É uma visão tão nítida, tão real e tão brusca que até me
escapa um gritinho ou um gemido de horror, que procuro
espremer entre os dentes para que não me ouçam. Ou, então,
compro seis taças grandes de cristal numa loja de produtos
chineses e saio com elas embrulhadas de qualquer jeito em papel-
jornal e dentro de uma sacola plástica cujas alças não consigo
abarcar com a mão, então tenho de levar o pacote apoiado no peito.
É quase meia hora de caminhada até chegar em casa, e de repente
me imagino tropeçando e caindo: as taças se quebram, os cristais
afiados atravessam meu tórax. Então, a prudência neurótica faz
com que eu troque a bolsa, que antes estava do lado esquerdo, para
o lado direito do corpo, porque assim pelo menos os vidros não
ficarão cravados no meu coração (só no meu pulmão: posso ver o ar
escapando em pequenas borbulhas que o sangue tinge de um
delicado cor-de-rosa). E esse é o motivo pelo qual passo todo o
trajeto com o pacote apoiado do lado direito, até ficar com o braço
dormente (é que a imagem foi tão real!).
Acabo de perceber que só estou contando cenas obscuras,
possíveis ameaças de um mundo que dá medo. Para dizer a
verdade, nem todas são assim: às vezes o que inventamos são
simples aventuras, vidas paralelas. Mas, de fato, o sombrio abunda.
Acho que essa tendência a pressentir desgraças é algo bastante
comum na família dos nervosos. Sylvia Plath diz isso nos seus
diários: “(Sou) o tipo de mulher que, ao começar a chover e
enquanto chove, só pensa em janelas abertas — janelas do carro,
janelas do segundo andar, todas elas — janelas abertas, e a chuva
entrando de viés, destruindo o assoalho, molhando o papel das
paredes, os livros & os móveis, irremediavelmente”.
O mesmo acontece com minha amiga e tradutora francesa, a
extraordinária romancista Myriam Chirousse. Há um ano, Myriam
estava vendendo sua casa na área rural da França e procurando algo
na Espanha para se mudar para cá junto com seu companheiro,
Frédéric. Uma noite, falei com ela por e-mail sobre o que estava
escrevendo neste livro e ela me respondeu com uma mensagem
genial:

Olha, vou te contar o que me aconteceu ontem, porque poderia


integrar seu texto. Eu estava olhando anúncios de casas na
internet e encontrei uma na serra de Madri, onde começa
Gredos. Uma casa pequena mas bonita, com vista, no pé da
serra, no final de um condomínio, bem no final, onde começam
o bosque e as trilhas de caminhada, e no Google Maps vejo que
há quilômetros e mais quilômetros de mata, de pinheiros,
castanheiras, com riachos, córregos e pequenos açudes… Me
parece um lugar maravilhoso para uma vida maravilhosa (e a
uma hora de Madri e de você!), e de repente eu penso: Mas,
com esses pinheiros e essas árvores tão próximas, e se houver
um incêndio? Merda, essa casa é a primeira do condomínio, a
mais perto do bosque, do fogo! Então, os pinheiros da foto meio
que começam a queimar, e minha casa (minha casa!) se enche
de fumaça, é o Apocalipse, o fim do mundo! Frédéric! O que
vamos fazer? Temos que fugir! Meu Deus! O que eu levo?
Minha casa vai pegar fogo, vou perder tudo, esse pequeno
paraíso que eu tanto almejava, as chamas já se aproximam, ouço
o estalar das árvores que desabam engolidas pelo fogo, é preciso
fugir! E os gatos? Onde estão os gatos? Não consigo vê-los, será
que se esconderam? Irão se salvar? Serão salvos pelo instinto,
me diz Frédéric. Como assim, serão salvos pelo instinto?
Quando aconteceu isso? Nunca! Serão salvos pela sorte, se
tiverem sorte! Não podemos fazer nada, nada! Temos que fugir,
com lágrimas de cinzas nos olhos, e perder tudo… E lá estava
eu, no meu escritório, hipnotizada por um anúncio do site
Fotocasa, olhando um chalé que muitos outros olhariam
calculando taxas de juros, prazos de hipoteca, e eu, em vez
disso, morrendo num dos meus milhares de fins do mundo. Seu
livro fala sobre mim.

Sem contar que, quando lemos no jornal ou alguém nos conta uma
notícia truculenta, simplesmente a vemos, quer dizer, estamos ali.
Eu senti o cheiro da carne chamuscada daquelas vítimas do Isis
queimadas com lança-chamas dentro de uma jaula. Eu ouvi se
quebrarem os ossos das crianças maltratadas pelos pais até a morte.
E, de novo, não sou a única com quem isso acontece. Emmanuel
Carrère conta em Ioga uma história atroz que, diz ele, leu há vinte
anos no jornal Libération. Um menino de quatro anos passa por
uma cirurgia sem importância que, no entanto, dá errado. O
menino volta do centro cirúrgico surdo, cego, mudo e paralisado.
Para Carrère, não há horror maior: aquela criatura presa para
sempre no silêncio e na escuridão, sem poder entender nada,
incapaz de se mexer, sem sequer perceber as carícias dos seus pais.
É um pesadelo horripilante, que atormentou Carrère por duas
décadas e, se teve um efeito tão duradouro, é porque tenho certeza
de que o escritor se sentiu dentro daquele menino. Eu também me
sinto agora um pouco ali. Talvez não dentro do garoto, mas do seu
lado: o quarto do hospital na penumbra, a cama articulada, o
pequeno vulto daquela criatura tão quieta debaixo do lençol
impecável, o zumbido pneumático do respirador. E a dor, a dor
monumental perfurando o coração da mãe como um verme. Essas
cenas cruéis que nossa imaginação nos faz vivenciar têm algo de
enlouquecedor e de persecutório. Por isso às vezes pulamos as
páginas dos jornais sem ler, ou não nos atrevemos a assistir ao
noticiário da TV, ou levantamos a mão correndo para deter a
verborragia mórbida de alguém disposto a nos contar um episódio
horrível no mais mínimo detalhe (todas essas reações são
consideradas sintomas de PAS). O problema é que as imagens
parecem demasiado reais. Talvez Proust se referisse a isso quando
falava da parte lamentável da família.
Há outros truques impostos pela nossa mente sem poda que são
mais leves e ao mesmo tempo mais ridículos. No caminho por
onde passeio quase todas as manhãs com minha cachorra, em
Cascais, há uma espécie de academia ao ar livre com aparelhos
parafusados no chão pela prefeitura para que as pessoas se
exercitem. Costuma estar cheia de garotos e garotas jovens,
morenos, musculosos e tatuados, com uma clara vocação para
mostrar a epiderme. Um dia, porém, vi um senhor mais velho,
talvez de uns sessenta e poucos anos. Como os outros, usava
apenas shorts e tênis. O cabelo, abundante e branco, reluzia ao sol,
e seu corpo era impressionante: provavelmente havia sido atleta
profissional, porque ainda mantinha uma forma física incrível. Não
pude deixar de notá-lo.
Duas ou três manhãs depois, me atrasei para sair de casa.
Quando cheguei à altura da região da academia, fazia muito calor e
quase não havia ninguém. De repente, percebi que alguém falava
comigo em português. Me virei e era ele, o Senhor Suculento, que
sorria e repetia algo para mim. Atordoada, tirei os fones com que
estava ouvindo música, mas continuei sem entender. O Suculento
tinha se agachado para fazer cafuné nas minhas cachorras, que na
época eram duas, Petra e Carlota. Imaginei que ele dizia algo sobre
elas e, atrapalhada e tímida como às vezes sou, não soube como
reagir. Apenas lhe disse obrigada (pelo quê?) e segui andando.
Durante o resto do passeio, fui me remoendo de raiva: mas como
você é idiota, por que não parou, por que não falou com ele, por
que não manteve uma conversa casual… Fiquei tão incomodada
que, em vez de completar o circuito que costumo fazer, voltei com
bastante antecedência para ver se o encontrava antes que fosse
embora. E, de fato, lá estava ele ainda, só que agora não mais na
beira do caminho, e sim longe, se exercitando num dos aparelhos.
De modo que não pude fazer grande coisa, exceto me deixar um
pouco em evidência. Porque esperei até que ele olhasse para mim,
então o cumprimentei com um sorrisão e sacudi com veemência a
mão no ar. Ele também respondeu de um jeito amável. E foi isso.
Da região da academia até minha casa são uns quinze minutos a
pé. Vou te contar como foi esse quarto de hora. Primeiro, comecei
a imaginar que flertava com ele. No dia seguinte, ensaiaria umas
palavras espirituosas para dizer (pensei nelas), conversaríamos um
pouco, eu o convidaria para tomar um café nas mesinhas ao ar livre
de um bar lindo ali perto. Durante sete ou oito minutos, a corte
toda se desenrolou na minha cabeça: as conversas que
mantínhamos, o modo como nos olhávamos, o que ele me contava
da sua vida (era viúvo, era divorciado, não havia se casado, era
médico mas tinha sido campeão nacional de salto com vara, era
treinador de polo aquático e antes havia sido jogador profissional,
era trapezista num circo), o toque aparentemente casual dos seus
dedos nos meus, o primeiro beijo, ah, sim, aquela maneira de
mergulhar no outro, e o cheiro da sua pele morna. Nham. E
visualizei nós dois passeando juntos pelos meus lugares preferidos
de Cascais, brincando com as cachorras, tomando um vinho
branco na minha varanda. Tudo fantástico, magnífico. Mas
imediatamente começaram os problemas. Eu o imaginei, ou
melhor, eu o vi com toda a clareza, me dizendo que queria ir à
praia. Odeio praia, odeio tomar sol e tenho medo do mar. Mas o
Senhor Suculento estava muito moreno, com certeza adorava se
bronzear e era daqueles que ficam horas lagarteando na areia. Um
suplício. Além do mais, como teríamos todas aquelas conversas
espirituosas se eu não entendo bem o português? Na certa
passaríamos os dias sem saber o que dizer um ao outro, sorrindo
estupidamente. Que chatice. E se além de tudo fosse um asno? E
se tivesse amigos horrorosos, que insistia em me apresentar? E
para piorar: eu morando a maior parte do tempo em Madri e ele
aqui, já pensou quantos mal-entendidos poderiam acontecer? Com
certeza não tínhamos nada em comum. E se a história se
transformasse numa daquelas relações perturbadoras e incômodas,
um erro que poderia manchar as boas experiências que sempre tive
em Portugal? Vi tudo com clareza, vi nossas discussões e a
dolorosa distância sideral que nos separava, e senti a tristeza de ter
entrado num desses relacionamentos que você sabe desde o início
que não podem dar certo, que de fato não dão certo e que, no
entanto, você prolonga mais alguns meses por pura idealização,
pela ilusão de achar que está apaixonada. O esforço inútil conduz à
melancolia, como dizia Ortega y Gasset. Mais ou menos nesse
momento cheguei em casa e, ao ter de interromper o transe
peripatético (a imaginação parece se avivar nos passeios) com
afazeres concretos, como dar de comer à Petra, a realidade se
impôs sobre a fantasia. E assim, a sensatez caiu sobre mim como
um repentino balde de água fria: meu Deus, que louca, como
posso imaginar num piscar de olhos, sem interrupção, uma tórrida
história de amor e um amargo desencanto? E tudo isso por nada,
tudo isso por causa de alguns sorrisos banais.
A partir desse dia, e pelo resto daquela viagem a Cascais, mudei
meu trajeto matinal para não passar de novo pela região da
academia e não cruzar com ele, porque tinha vergonha que o
Senhor Suculento pensasse que eu queria flertar com ele. O que
sem dúvida era verdade, era exatamente aquilo que eu desejava.
Mas o que me encabulava mesmo, o que não me sentia capaz de
É
assumir, era o turbilhão das minhas fantasias. É aquela história,
“enfia o macaco no rabo”, como na famosa e clássica piada: um
viajante de negócios dirige um carro alugado no meio de uma noite
de tempestade numa região remota do país e tem o azar de que o
pneu fure. Ele sai do veículo para trocá-lo e descobre, para seu
horror, que está sem o macaco mecânico, aquele pequeno elevador
que botamos embaixo do carro para erguê-lo. Desesperado, olha ao
redor: escuridão total, campos vazios, uma chuva torrencial
alagando tudo. Só se vê uma luz fraca lá no alto da colina, a uns
seiscentos ou setecentos metros. Uma chácara, com certeza. O
viajante não consegue pensar numa ideia melhor, então decide se
aproximar para pedir a ferramenta emprestada (a piada é daqueles
tempos arcaicos em que ainda não existia celular). Ele começa a
caminhar pelo mato sob o dilúvio, com o barro mole e frio
entrando nos seus sapatos de cidade. Que sorte ter uma chácara
por perto, ele vai pensando. Numa chácara sempre há carros,
tratores, de tudo. Vão me emprestar o macaco, eu troco o pneu e
vou direto ao hotel para tomar um banho. Espero que o chacareiro
esteja acordado. A luz está acesa, pelo menos. Se bem que parece
uma daquelas luzes externas, dessas que deixamos acesas a noite
toda. E se ele estiver dormindo? Essa gente do campo dorme com
as galinhas. Ah, com certeza está dormindo. E roncando. Com
certeza vou ter de esmurrar a porta meia hora. Porque não vai ter
campainha, quer ver só? E ele não vai me ouvir. Isso, bata na porta
até finalmente tirá-lo da cama. Não vai ser nada divertido acordá-
lo. Com certeza virá atender zangado. Com o mau humor daqueles
matutos. Porque madrugam muito e tal. E a desconfiança que eles
têm de nós da cidade? Porque são uns ignorantes. Então eu
esmurro a porta sem parar e o cara se irrita e não abre para mim.
Odeiam desconhecidos. E eu do lado de fora dizendo aos gritos
que sou um viajante, que estou morto de cansaço, que o pneu
furou e aqueles filhos da puta me alugaram um carro sem macaco,
será que ele pode me emprestar um, por favor… Então ele abre um
pouco a porta, com a corrente presa na trava e um olho de bêbado
espiando pela fresta. E com certeza naquele cabeça-dura
desconfiado e infeliz surge a suspeita de que quero roubá-lo, de
que andei um quilômetro cortando o campo debaixo da chuva
gelada no meio da noite para roubar dele uma maldita ferramenta
velha. E então, me dirá: não tenho macaco. E dará com a porta na
minha cara, me deixará plantado debaixo do dilúvio e tiritando. A
essa altura do seu solilóquio, o motorista chega à chácara. Fica
parado pingando sob a fraca luz da entrada e bate com impaciência
na porta que, com efeito, não tem campainha, mas o chacareiro
logo vem abrir. E nosso viajante de negócios grita para ele: Quer
saber? Enfia o macaco no rabo!
Agora que penso nisso, tenho certeza absoluta de que o
protagonista da piada não era um viajante de negócios, mas um
escritor. Vou contá-la de novo: uma romancista em viagem de
lançamento do seu livro dirige um carro alugado…
Mas o presente das fadas tem outro lado. Quer dizer, falta
contarmos o verdadeiro presente. Um dia, no meio daquela
confusão de ideias malucas que não servem para nada nem vão a
lugar nenhum, te ocorre algo que, de repente, sem nem saber o
porquê, te deixa fascinada. Te deslumbra, te desconcerta, te seduz,
te cativa. A emoção que você sente é tão grande que não cabe no
peito, transborda a mente, então você pensa: eu tenho de contar
isso, tenho de compartilhar isso. E é aí que nasce o conto, o
romance. Esse brilho inicial, tão mobilizador e tão pungente, eu
chamo de ovinho. Se olhar bem, é uma coisa linda, porque desde o
instante mesmo da concepção da obra, o leitor está lá. Esse outro
para quem você vai contar a história e com quem deseja
compartilhá-la. A arte, penso que toda arte, é em primeiro lugar
comunicação.
Vou te dar um exemplo de ovinho. Certo dia, eu ia de trem de
Madri a Málaga para participar de um clube de leitura. Estava
escrevendo algo no laptop quando o trem parou entre as estações.
Ergui a cabeça e vi pela janela uma paisagem calamitosa: um
subúrbio industrial empobrecido e decadente, vários conjuntos de
trilhos e, ao lado dessas vias, uma sacadinha imunda com um
cilindro de gás enferrujado, as venezianas quebradas e a esquadria
de alumínio empenada. Preso com arame nas grades sujas, um
cartaz escrito à mão na tampa de uma caixa de sapatos dizia:
VENDE-SE, e incluía um número de telefone. Era o apartamento
mais horroroso do planeta no povoado mais tenebroso do universo.
Primeiro, senti pena: se estavam vendendo, deviam precisar de
dinheiro, mas ninguém jamais compraria um apartamento tão ruim
e tão colado às vias férreas. Então, minha mente sem poda
começou a viajar. E se? E se alguém, como eu, estivesse num trem
e erguesse a cabeça e visse esse cartaz e descesse na próxima
estação, voltasse, comprasse aquele apartamento infernal, se
trancasse lá dentro e nunca chegasse ao seu destino,
desaparecesse? Um tsunami de sentimentos me inundou, uma
supernova explodiu no meu crânio. Como fiquei empolgada com
aquela ideia! Eu ignorava tudo sobre a história, não tinha a menor
ideia de por que a pessoa descia ou por que comprava um
apartamento num lugar assim, nem mesmo sabia se o passageiro
do meu trem era homem ou mulher, mas eu já estava fisgada,
hipnotizada, porque os ovinhos são uma espécie de infecção, um
vírus que entra em você e começa a crescer. E, como curiosidade
mata, como você precisa de modo decisivo saber mais, começa a
observar a cena com mais atenção. A primeira coisa que fiz foi
pensar que meu passageiro era uma mulher. Visualizei-a no vagão,
imaginei seus gestos, seus movimentos, e não me senti
confortável, a história me causava um ruído: um comportamento
tão ensimesmado, tão mudo, tão focado na ação sem uma única
palavra não me parecia algo muito feminino. Formulei de novo o
ovinho com um homem, e então a cena fluiu naturalmente. Foi
assim que descobri que meu protagonista era do sexo masculino. E
então a história vai crescendo, enfim, de um jeito muito orgânico,
como uma arvorezinha que aos poucos ganha altura e galhos até se
transformar numa frondosa castanheira. Quando cheguei ao clube
de leitura, estava entusiasmada. Contei sobre minha visão e disse:
“Tenho certeza de que este será o início de um romance”. Isso foi
no dia 29 de abril de 2017. Em 25 de agosto de 2020, publiquei A
boa sorte, que começa justamente com aquele momento do trem. E
durante todo esse tempo estive vivendo em parte na minha
realidade cotidiana e em parte naquela outra dimensão imaginária,
em outras vidas, todas tão diferentes da minha e, portanto, tão
tentadoras. Escrever é brincar com um brinquedo enorme.

Para você ver como a família dos nervosos pode ser magnífica.
Um mar de caos

Eu sei que você descobriu, desde o início, que a falsa Rosa


Montero que falou com o dr. Zarco e a desconhecida que solicitou
as inexistentes entrevistas para o El País não apenas eram a mesma
pessoa, como também se tratava daquela moça tão linda que o
namorado submetia à tortura do ciúme para não perceber que ele
era um fiasco. Pois bem, de fato é isso mesmo, sempre foi ela.
Acontece que para os leitores é muito fácil fazer essas conexões
brilhantes graças ao fato de que nós, escritores, extraímos
previamente esses dados do tumulto disforme do mundo e os
potencializamos até conseguir que baste ao leitor dar uma espiada
para juntar as peças e acreditar, portanto, que a vida pode ser
compreendida, quando isso não é verdade. A existência é uma
confusão, e um dos serviços prestados pelos romancistas (um dos
principais motivos pelos quais você me lê, pelos quais eu leio) é
dar uma aparência de causalidade e de sentido a uma realidade que
é apenas som e fúria. Mesmo o romance mais experimental e
desconexo tem um começo e um fim, e domestica de algum modo
essa algazarra absurda em que vivemos. Romances são uma
pequena ilha de significado no mar do caos.
De modo que você adivinhou aquilo, mas eu, enquanto vivia a
situação, fui incapaz de vê-lo durante muito tempo. Na verdade, se
pensarmos um pouco, não é tão estranho: os acontecimentos
anômalos não ocorreram de modo contínuo, mas sempre
separados por um ou dois anos de absoluta calmaria. Não vou
negar que passou pela minha cabeça que a mulher que solicitou as
entrevistas poderia ser a mesma que estivera conversando tão
desenvoltamente com o dr. Zarco no verão anterior. Mas eu não
tinha certeza, porque o mundo está cheio de gente peculiar
fazendo coisas muito estranhas com pessoas mais ou menos
famosas. Naquela época eu recebia, como tantos outros colegas,
inúmeras cartas excêntricas no El País, então podia muito bem se
tratar de duas impostoras diferentes. E é claro que só muito mais
tarde fui perceber que podia ser aquela mesma moça do namorado
com óculos-aquário.
Mas por fim aconteceu algo que me fez reconhecer a insistente
presença da Outra. Foi uma das coisas mais esquisitas que já me
aconteceram na vida. Tentarei ser breve, pois a história é longa: a
estupenda e saudosa hispanista Elena Gascón Vera, que à época
dirigia o Departamento de Espanhol da Wellesley College nos
Estados Unidos, me chamou para ser professora convidada da
universidade por um semestre. Parecia um projeto excelente, por
isso aceitei. Minhas aulas começavam no início de janeiro de 1985
e cheguei alguns dias antes. A professora Joy Renjilian foi me
buscar no aeroporto, pois Elena estava em ano sabático, e depois
de marcar com ela no campus para preencher a papelada na manhã
seguinte, me deixou no meu apartamento alugado. No horário
combinado, cheguei muito contente à faculdade, me encontrei
com Joy (seu nome significa “alegria” em inglês: bastante
apropriado) e fomos as duas felizes da vida até o escritório de
admissões, onde a professora me apresentou à coordenadora do
local. Ainda parece que estou vendo seu rosto, os olhos
arregalados, a boca entreaberta, a expressão congelada. Durou
apenas um segundo, mas foi um segundo pétreo, que caiu aos
nossos pés como uma bala de canhão. Impossível não ficar
sobressaltada.
— Não pode ser Rosa Montero, ela veio agora há pouco e não
era essa — disse por fim em inglês, de uma só vez e num tom
agudo demais, enquanto apontava um dedo convulso para mim.
Então foi nossa vez, minha e de Joy, de mudar de expressão.
Depois de muita conversa incoerente e um tanto histérica entre
as três, conseguimos reconstruir o ocorrido de modo aceitável.
Algumas horas antes, logo que o escritório abriu, havia aparecido
uma moça espanhola que quase não falava inglês. Disse que era
Rosa Montero, e a coordenadora (Marion, acho que era seu nome,
uma loira madura de aparência consternada), que já estava
esperando minha chegada, entregou os formulários para que ela os
preenchesse e pediu seu passaporte. A mulher respondeu com um
monte de palavras em espanhol que Marion não entendeu, mas
acreditou ter compreendido que ela esquecera o documento em
casa e iria buscá-lo. De qualquer forma, com exceção da fotocópia
do passaporte, todo o resto foi feito. Preencheram de cima a baixo
a ficha de registro, o formulário oficial para solicitar o número do
Seguro Social, o contrato de apartamento e os demais trâmites
necessários, que eram muitos. E foi a própria Marion quem teve de
dizer à mulher meu número de passaporte, pois eu havia passado a
eles meses antes para que emitissem a passagem aérea. Enfim,
tirando a maldita fotocópia do documento, fizeram tudo,
absolutamente tudo. Quero dizer que a coordenadora de
admissões chegou inclusive a lhe entregar a carteirinha da
universidade: sua identificação dentro da Wellesley College.
Depois disso a mulher foi embora, supostamente para ir buscar o
passaporte em casa e trazê-lo. Quando nós chegamos, Marion
estava começando a estranhar a demora.
Olhamos os documentos: Rosa Montero, Departamento de
Espanhol, professora convidada, jornalista e romancista… Sem
dúvida se fazia passar por mim, embora o endereço em Madri fosse
inventado (fomos averiguar: não existia) e a letra não tivesse nada a
ver com a minha, mas sim com a de quem dedicou meu romance
ao dr. Zarco (pude comprová-lo). Eu já estava bastante assustada,
mas quase desmaiei quando a desconsolada Marion, que parecia
prestes a se autodestruir em trinta segundos, pôs diante de nós um
pedacinho de cartolina que ela segurava pusilânime, como se fosse
radioativo, na pinça do indicador e do polegar. Era uma fotografia
3×4 que Marion havia tirado da mulher na cabine de fotos do
corredor. Tratava-se de um retrato muito ruim, como todos. Ela
usava um rabo de cavalo e todo o cabelo preso para trás, como se
estivesse alisado (nada daquela enorme montanha de cachos), e
haviam se passado cinco anos, mas mesmo assim pensei
reconhecê-la. Porque não apenas era muito bonita, como,
sobretudo, tinha um jeito diferente de ser bonita. Uma combinação
rara de traços únicos. Era aquela garota, a do namorado mentiroso
e da noite estranha.
Foi aí que eu fiquei aterrorizada.
Tivemos de refazer todos os formulários, anular a carteirinha da
impostora, criar um novo documento de identificação para mim,
dessa vez com minha foto. Em seguida, fui denunciar o caso à
segurança do campus e depois, à polícia de Wellesley. As
burocracias consumiram nosso dia inteiro, e quando Joy me levou
de volta para casa, eu me sentia tão doente de medo, desânimo e
tontura que entrei na cama tiritando e só saí dois dias depois para
ir direto à minha primeira aula, que acabou sendo catastrófica.
Colegas do jornal me puseram novamente em contato com um
delegado espanhol, com quem falei por telefone. Ele me disse que
era estranho, mas que não parecia perigoso. Interrogada por ele,
lembrei que havia contado tudo sobre o curso da Wellesley
College, inclusive o dia em que voaria para os Estados Unidos,
numa longa, amistosa e divertida entrevista que fizeram comigo
um mês antes na rádio SER, num programa matinal de grande
audiência. “É isso”, disse ele, “com certeza ela te ouviu e preparou
a surpresa com antecedência… o que indica que ela tem
passaporte, visto e dinheiro suficiente para viajar. Deixe-me ver se
conseguimos encontrar algo.” Me aferrei às suas palavras, me
concentrei no curso e acabei, bem ou mal, aproveitando
razoavelmente a viagem, embora sempre andasse olhando em volta
e pedisse para me acompanharem à noite até em casa. Durante
toda a minha estadia em Boston, não tive mais nenhum problema,
exceto que, ao voltar para a Espanha, fui parada no controle de
passaportes do aeroporto (meu nome constava na denúncia que fiz
contra a impostora). Tive de telefonar para Joy — que, por sua vez,
recorreu à embaixada. Estive por um triz de perder o voo.
Depois daquilo, eclipse total. Durante muito tempo não soube
de mais nada.
Mas agora deixe-me contar algo fascinante que acaba de
acontecer. Estou escrevendo tudo isso sobre uma impostora de
quase quarenta anos atrás, quando telefona minha amiga Myriam
Chirousse (sim, aquela do incêndio em casa) e me diz, muito
surpresa: “Mas o que você está fazendo na Andaluzia? Não sabia
que ia viajar”. Não estou na Andaluzia e não entendo do que ela
está falando. Então, Myriam me manda uma foto da tela do seu
computador. É de uma conta de Instagram, supostamente do meu
Instagram, e alguém que se faz passar por mim acaba de postar o
seguinte: “Saudações da andaluzia (sic), pois estou aqui de férias
para relaxar um pouco e me inspirar para continuar escrevendo…
estou me descobrindo como nunca”. Que horror, eu jamais teria
escrito algo assim! Confiro as publicações anteriores: às vezes ela
copia parágrafos meus, às vezes posta coisas absurdas. Em todo
caso, sempre fala como se fosse eu. É perturbador. Espantada,
corro ao meu Instagram para denunciá-la e comprovo, com
absoluta consternação, que não posso incluir nenhum texto na
minha conta. Que ela está bloqueada e só consigo postar fotos. Já
em pleno frenesi, começo a escrever mensagens à mão numa folha
de papel, que fotografo e publico, e assim consigo explicar o que
está havendo. Arma-se um pequeno alvoroço, os seguidores
denunciam a outra ao Instagram, eu instalo de novo o aplicativo e
finalmente recupero minha conta. Quanto à da usurpadora,
continua aberta enquanto escrevo isto, mas ela removeu seu
conteúdo.
Isso é inacreditável: aqui é a Rosa Montero, o Instagram não me deixa postar nenhum
texto, devo ter sido hackeada por [suprimido], alguém sabe o que posso fazer para
recuperar minha conta? Estou desesperada.

Coincidências coincidem, como dizia o pobre Paul Kammerer,


um biólogo austríaco que lá pelos idos de 1920 foi um dos
cientistas mais famosos do mundo. Ele era evolucionista e
seguidor das teorias de Lamarck, o qual defendia que a função
criava o órgão, isto é, que os seres vivos podiam mudar algumas
das suas características para se adaptar ao meio e depois transmitir
essas adaptações aos seus descendentes, enquanto Darwin dizia
que as mutações eram fortuitas e não tinham nenhum sentido, o
que acontecia era que aqueles que, por puro acaso, haviam
recebido as mutações mais vantajosas tinham mais possibilidades
de sobreviver e de que sua prole prevalecesse. E nisso consiste a
seleção natural, no triunfo do mais apto. Na disputa entre Lamarck
e Darwin, este último venceu, deixando Lamarck transformado
num traste pouco menos que obsoleto, embora hoje a epigenética,
quer dizer, a descoberta de que podemos passar fatores adquiridos
às seguintes gerações mesmo que não estejam inscritos no DNA,
está reivindicando-o de algum modo. O fato é que, naquela época,
quando Darwin ainda não havia ganhado de goleada, Kammerer
fez uma série de experimentos assustadores com um sapo, o sapo-
parteiro, provando que ele desenvolvia ventosas adaptadas e depois
as transmitia geneticamente aos seus filhos sapinhos, o que parecia
a prova inegável de que era Lamarck quem tinha razão. No
entanto, logo se descobriu que os experimentos eram uma fraude e
que as ventosas foram simuladas com nanquim, então Kammerer
se matou com um tiro em 1926, depois de deixar um bilhete
dizendo que era inocente. E lá se foram, pelo ralo da desonra e do
suicídio, todo o sucesso e a fama que o cientista austríaco
conquistara. Por isso hoje ninguém se lembra dele, embora nos
últimos anos tenha havido algumas tentativas de resgate da sua
figura por cientistas que o consideram precursor da citada
epigenética, e que argumentam que a tinta injetada foi uma
sabotagem de terceiros.
Além dos trabalhos com sapinhos, e antes que a desgraça se
abatesse sobre ele, Kammerer — que era um sujeito curioso e que,
como todas as pessoas criativas, devia estar meio maluco —
também desenvolvera uma teoria sobre as coincidências. O
austríaco era apaixonado por coincidências e tinha começado a
colecioná-las aos vinte anos. Quer dizer, anotava todas elas. Duas
décadas mais tarde, publicou um livro intitulado Das Gesetz der
Serie [A lei da serialidade], em que reproduzia uma centena dessas
coincidências, a maioria chatíssimas, do tipo: recebo a carta de um
amigo com quem não falo há dez anos e nessa mesma tarde cruzo
na rua com seu filho, que não via fazia sete anos. O mais
interessante é a teoria em si: ela defende que existe uma lei física
geral que faz com que o universo tenda à unidade, uma força de
atração que poderia ser comparada à da gravidade, mas que, em
vez de atrair massas, atrai fatos, formas, pessoas, objetos ou
situações semelhantes. Assim, além de tender à entropia, isto é, ao
caos, como aponta a segunda lei da termodinâmica, o universo
também tenderia, segundo Kammerer, à ordem e à harmonia. À
perfeita simetria dos cristais e dos fractais. E as coincidências
seriam tão somente uma consequência dessa força invisível.
Quando saiu, o livro foi um sucesso, o que não me surpreende,
pois é uma ideia muito reconfortante. O próprio Einstein declarou
que a teoria não era nada absurda. Porém, seis anos depois vieram
os sapos pintados, o escândalo e o tiro final, e o livro naufragou nos
abismos da desmemória junto com seu criador. Era uma proposta
sofisticada e original, porém o mais provável é que fosse uma
quimera.
E, no entanto… No entanto, na vida há coincidências
inexplicáveis. Na verdade, elas são tão abundantes que é algo que a
sabedoria popular endossa com ditados como: “a desgraça nunca
vem sozinha” ou “desgraça pouca é bobagem”, ou com a aceitação
geral de que existem marés de sorte e de azar. Por exemplo, no
jogo. Mas se há um lugar onde as coincidências são sem dúvida um
clamor, é na escrita de um romance. Em algum dos meus livros
anteriores, falei sobre minha teoria do funil, que consiste em que,
a certa altura da redação de um romance, sempre quando a
navegação já está bem avançada, começam a ocorrer vários eventos
fortuitos, porém adjacentes ao livro, intimamente ligados à
história, como se de repente o escritor vivesse numa espécie de
funil onde tudo ou quase tudo que acontece com ele na vida real
acaba tendo ressonâncias na obra que ele está criando. Patricia
Highsmith diz algo parecido: “Rostos, nomes, histórias,
impressões de todo tipo oriundas do mundo externo podem ser
utilizados durante a escrita de um livro se você está em sintonia
com ele e com suas necessidades. Será que o escritor atrai as coisas
mais oportunas, ou existe algum processo que afasta aquelas que
não o são?”. O estilo seco de Highsmith não permite ter uma ideia
do assombroso magnetismo que a obra começa a irradiar, fazendo
com que o mundo externo coincida cada vez mais com o mundo
imaginário. É como viver dentro da vibração de um diapasão e o
universo inteiro ir se ajustando gradualmente a essa nota. Vou dar
um exemplo impressionante: enquanto escrevia História do rei
transparente, um romance ambientado no século XII, empaquei por
não saber o nome de uma espécie de capuz de malha de ferro que
os guerreiros usavam debaixo do elmo (ainda não era possível dar
um Google em nada disso). A palavra era importante na cena, e sua
falta me expulsou do meu livro e da alegria com que eu digitava.
Desesperada, levantei da minha mesa de trabalho e comecei a dar
voltas pela casa feito um tubarão, tentando arquitetar um jeito de
encontrar aquele maldito nome. Porque, além de tudo, as
armaduras foram mudando com o tempo, e as do século XII, por
exemplo, não tinham nada a ver com as do século XIV, e com isso
quero dizer que eu buscava um termo muito específico e muito
difícil de encontrar no desconectado mundo anterior à busca
algorítmica. No meu vaivém nervoso pela casa, entrei no quarto e,
preocupada, me joguei na cama. Para pensar em outra coisa,
peguei de cima da mesa de cabeceira o último número da revista
La Aventura de la Historia, uma publicação mensal que eu assinava
e tinha acabado de chegar. Abri-a sem vontade, a esmo, pois
continuava obcecada pela palavra. E bem ali, na página da
esquerda, havia uma ilustração que detalhava as diferentes partes
que serviam para proteger a cabeça no século XII. Repito: o
desenho não só tratava da blindagem dos guerreiros medievais, e
não só focava nas peças que cobriam o pescoço e a cabeça, como
também se referia às armaduras do maldito século XII. Exatamente
o que eu precisava. Almafre. Chamava-se almafre. É ou não é uma
coincidência maravilhosa?
E acrescento algo mais: todos esses anos eu me lembrei, com
efeito, de que peguei a revista e a abri ao acaso, em qualquer lugar,
e ali surgira, como num incrível passe de mágica, o desenho
salvador. Mas como não me fio totalmente na minha própria
memória, que é um caldeirão de invenções, pensei que se tratava
de uma lembrança falsa, de um adorno da minha imaginação, um
floreio. Quer dizer, supus que teria estado folheando a publicação e
que em dado momento topei com aquilo, o que continuava sendo
extraordinário. Quando me mudei de casa da última vez, há doze
anos, me desfiz, entre outras tantas coisas, daquelas revistas. Mas
agora, ao escrever novamente sobre tudo isso, minha curiosidade
foi atiçada, então procurei esse exemplar pela internet (o número
63, correspondente a janeiro de 2004) e o comprei. Acaba de
chegar, e adivinhe? A revista se abre sozinha pela ilustração,
porque justamente a página ao lado é um pôster destacável.
A coincidência atual com a usurpadora das minhas redes não chega
a atingir esse nível de perfeição do impossível, como na história do
almafre, mas também é chocante. Escrevo e penso, recordo e
recrio uma história sobre impostura, e de repente aparece do nada
uma impostora real. Que, além do mais, enquanto finge ser outra
pessoa, diz: “Estou me descobrindo como nunca”. Me comove e
me dá pena, por isso ocultei o nome da farsante na minha
mensagem manuscrita. Não sei quem é e espero nunca mais saber
dela. A única certeza que tenho, isso sim, é que dessa vez não pode
se tratar de Bárbara. Minha Bárbara.
Tempestade perfeita número 1

Tenho a impressão de estar fazendo uma espécie de autópsia


invertida da criatividade. Quer dizer, em vez de partir de um todo
e analisá-lo, sinto-me como a menina que desmontou por
completo o relógio da avó e agora, sentada no chão e cercada de
peças, vai pegando uma por uma, examinando-as e tentando
entendê-las. Sim, eu sinto que consegui estripar a criatividade em
todas as suas partes, e que a compreendo muito melhor do que
antes de começar a preparar este livro. Nas páginas até aqui, já fui
revelando algumas dessas pitadas, fragmentos que depois,
devidamente unidos, pulsarão em uníssono com silvo de máquina
lubrificada. Mas ainda me faltam alguns ingredientes. Pouco a
pouco irão aparecendo.
Muita gente tem imaginação e é criativa, embora depois não
faça nada específico com isso. Mas o que está claro para mim é
que, para que haja uma criatividade produtiva, isto é, para que se
construa essa forma exata de ser alguém que conduz à obra, seja
ela boa ou ruim, é necessária a combinação de um bom número de
fatores. Há uma tempestade perfeita por trás de cada livro, de cada
escultura, de cada quadro e cada música.
Já vimos uma porção desses elementos essenciais: a maior
dissociação e a consciência clara da multiplicidade; a obsessão pela
passagem do tempo e pela morte; o contato prematuro com a
decadência e com a perda; a dualidade defensiva diante do trauma,
com um eu que sofre e outro eu que tudo sabe e nada sente; a
necessidade, no entanto, de ter sido amado o suficiente um dia; a
maturidade precoce da criança entomóloga e, consequentemente,
uma infância adulta demais; em contrapartida, a imaturidade do
adulto (uma imaturidade fisiológica, química, cerebral); as
possíveis desconexões momentâneas; a sensação de impostura,
também nos afetos, porque o entomólogo, como já foi dito, não
sente; a imaginação fértil e paralela, por vezes estafante e dolorosa;
a tendência a uma hipersensibilidade emocional e sensorial; e, sem
dúvida, uma maior predisposição aos transtornos psíquicos.
Há um livro precioso sobre tudo isso, que li há muito tempo e
reli agora: Le Génie et la folie, do psiquiatra francês Philippe Brenot.
Foi publicado em 1997, muito antes dos notáveis avanços da
neurologia dos últimos anos, mas está cheio de intuições
brilhantes. Por exemplo, diz isto: “Em muitos casos, os criadores
sentem uma inclinação maior do que o resto dos adultos pelo jogo
de associações de ideias, de uma forma natural, assim como as
crianças, e, também, como acontece em certos estados patológicos
da psicose, na efervescência de ideias da mania ou mesmo sob o
efeito de drogas alucinógenas”. É exatamente tudo o que a ciência
demonstrou depois, como revela o livro de Mara Dierssen que já
comentamos.
Relido hoje, o texto de Philippe Brenot me pareceu uma
assustadora série de polaroides sobre mim mesma. Ou um teste
que eu poderia ir preenchendo afirmativamente em cada um dos
campos. O psiquiatra se refere o tempo todo aos gênios, mas,
como já disse, tenho absoluta certeza de que é algo que acontece
com todos os artistas, bons, ruins e péssimos (verdade número 1:
todos somos iguais). O autor diz, por exemplo, que “a tenacidade
parece ser a principal qualidade do gênio”, e eu assino embaixo. Na
juventude, conheci tanto talento brilhante que não chegou a nada!
Sem a perseverança da estalactite, o talento não é mais que fogo-
fátuo. Já dizia Picasso em seu célebre comentário: a obra é 1% de
inspiração e 99% de transpiração. E Brenot cita uma grande frase
do cientista Georges Buffon: “A genialidade nada mais é que uma
grande aptidão para a paciência”.
Continuemos com o teste philippino: “O distanciamento do
mundo se impõe como uma necessidade da criação”. Ticado:
sempre que posso, fujo de Madri e passo semanas isolada e
completamente sozinha, escrevendo. Como agora. “O criador tem
horários noturnos.” Check, ticado também. E eu acrescentaria: por
trás disso, acho que reside um certo medo de morrer, quer dizer,
da pequena morte do sono; e de encerrar mais um dia no trajeto
rumo ao nada; e talvez também dos terrores noturnos da insônia.
Brenot cita notívagos famosos, como Victor Hugo, Baudelaire,
Goya, Maupassant, Flaubert, Rimbaud e, é claro, Proust, de quem
já falamos. Ou Michelangelo, que pintava a noite inteira à luz de
uma vela colocada em cima de uma base de papelão. Eu incluiria
umas quantas mulheres (aqui sim se nota que o livro do psiquiatra
tem alguns anos: na nossa gritante ausência), como Agatha
Christie, que conseguiu criar seus 79 romances e suas dezenove
peças de teatro graças a uma ordenadíssima desordem: escrevia
todas as noites até quase o amanhecer e se levantava ao meio-dia.
Sylvia Plath também redigiu seus melhores poemas, os últimos,
em alucinados arroubos noturnos. E as maravilhosas Brontë, Anne,
Emily e Charlotte, se reuniam na salinha da casa paroquial onde
moravam depois que seu pai e seu irmão dormiam; então,
apagavam as velas e, ali, iluminadas apenas pelo fulgor cambiante
da lareira, começavam a andar muito depressa em volta da sala,
recitando poemas umas às outras e inventando cenas para seus
romances. Toda uma fantasmagoria de fogo e de sombras. Quão
incrivelmente belas eram aquelas três irmãs de físico pouco
gracioso; que potência a delas, como ardiam! Conseguiram deixar
uma obra memorável, embora tenham morrido aos 29 (Anne),
trinta (Emily) e 38 anos (Charlotte). Agonizando de tuberculose,
Emily, que era a mais dotada, escreveu num de seus últimos
poemas: “Sim, meus dias correm velozes para seu fim;/ isto é tudo
o que peço:/ em vida e morte uma alma livre/ e coragem para
suportar”. Assino embaixo.
Mas voltemos às polaroides. Philippe Brenot fala da tendência
às extravagâncias, às manias, a certas peculiaridades no
comportamento, como por exemplo Rousseau, que era masoquista
e exibicionista. Já mencionamos antes suas esquisitices. E diz o
psiquiatra: “Parece razoável pensar que essa criatividade é a
expressão de uma estrutura excêntrica de personalidade da qual
provêm, além da obra, as dificuldades da vida”. Check também,
que diabos! Sou um pouco parecida, sem dúvida nenhuma. Há
alguns anos, justamente, enquanto estava escrevendo meu último
romance, A boa sorte, fui tomada por uma espécie de revelação,
uma epifania sobre meus livros: percebi que todos os meus
personagens são extravagantes, pouco comuns, na verdade
bastante bizarros. Inclusive desenvolvi uma prosaica teoria literária
sobre a divisão dos romancistas entre escritores da “normalidade”,
cujos textos retratam os cidadãos da sociedade em geral, e
escritores da “estranheza”, cujos personagens são gente esquisita.
E quem é o mestre da estranheza? Vladimir Nabokov, oras. Agora
entendo por que gosto tanto dele.
Continuemos. Diz Brenot: “Com frequência se tem evocado a
precocidade do gênio e sua infância traumática […] o psiquiatra
George Pollock acredita que o ato criativo é uma tentativa sempre
em vão de reparar tal perda”. Já falamos disso. Check, check,
check. Mais ingredientes para a tempestade: “Obsessão,
perfeccionismo e um nível elevado de energia”. A questão da
energia é muito importante. Todos os autores a enfatizam,
psicólogos, psiquiatras e neurologistas. De fato, Brenot conclui: “A
obra parece nascer de uma sábia mistura entre a dificuldade do ser
e um fator energético constitutivo”. De modo que seríamos como
o coelhinho da Duracell (um coelho de pelúcia que, num famoso
comercial de televisão das pilhas Duracell, continuava tocando um
tambor sem parar enquanto os outros bonecos ficavam sem
bateria), como motores acelerados demais, como os meharis,
aqueles dromedários de lendária resistência capazes de se manter
em pé sem comida nem água. E sim, claro que sim, é óbvio que
também assino embaixo. Existe alguma coisa que queima por
dentro, e eu conheço essa força em outros colegas. É aquela
vitalidade feroz das Brontë zanzando à noite em volta da sala. Ou a
fortaleza sobre-humana de Marie Curie durante toda a sua vida. E
o que dizer da potência brutal de Picasso? Assinou 13 500 quadros,
outros tantos desenhos, 2500 gravuras, cem cerâmicas e trezentas
esculturas. Num livro de conselhos para quem quer se tornar
escritor, Ray Bradbury defende que o ingrediente mais importante
é o entusiasmo, “pois o primeiro dever de um escritor é sua
efusão: ser uma criatura de febres e arrebatamentos”. Desse
incêndio interior há mais coisas a se dizer, peças essenciais do
relógio que irão surgindo mais adiante. Por ora, basta ressaltar que
essa intensidade nos é tão necessária que, se algum dia se apagar
momentaneamente, a vida se tornará inabitável. Ou pelo menos
essa é minha teoria. O criador, diz Brenot, “emprega uma energia
considerável para lutar contra uma parte de si mesmo que gostaria
de se render diante da adversidade”. Se a adversidade conseguir
ganhar, entrará a Morte, com seus pés de feltro e seu olhar
amarelo. Falo do suicídio, tão comum principalmente entre os
escritores. Já chegaremos a isso. Tudo chega.
A musa malvada

Acredite, os artistas geralmente são uns viciados. Podem até se


controlar (eu tento), mas o temperamento aditivo está ali (por
exemplo, fumei três maços de cigarro por dia durante vinte anos).
Os artistas se drogam para manter o fogo interior, a energia que
devora a si mesma. E para desinibir ainda mais aquele córtex pré-
frontal por si só já desinibido, como dizia Dierssen. Para facilitar a
associação de ideias; para estimular as emoções. Para silenciar o eu
consciente, o maior obstáculo que existe contra a criatividade, um
maldito inimigo íntimo que sussurra palavras venenosas no seu
ouvido: você não pode, não sabe, não vale nada, não vai conseguir,
todos os outros são melhores, você é uma impostora, vai fazer um
papel ridículo, renda-se de uma vez à adversidade. Na verdade,
criar é como fazer amor, ou como dançar a dois; eu, que sou da
geração hippie, nunca aprendi a dançar agarrado e sou péssima
nisso. Mas às vezes estou tentando com alguém e acontece um
prodígio: de repente, percebo que estou há um bom tempo sem
pisar no pé dele, movendo-me em uníssono com meu parceiro na
leveza ondulante das algas embaladas pela maré. Porém, no
momento em que tomo consciência disso, perco o ritmo, tropeço,
acaba-se a dança milagrosa. O mesmo ocorre com o sexo: para que
seja bom, é o corpo que deve mandar (agora que penso nisso,
pode-se extrair um grande conselho desses dois exemplos:
desligue a cabeça quando abraçar alguém). O fato é que, no
processo criativo, acontece a mesma coisa. Para dançar, para fazer
amor e para escrever bem é preciso anestesiar o eu controlador. E
as drogas ajudam.
Sim, ajudam no início, mas depois destroem e matam. A
história da arte em geral e da literatura em particular está cheia de
alcoólatras, opiômanos, cocainômanos e viciados em todo tipo de
porcaria. E o processo é sempre semelhante: a musa química
primeiro acaba com a obra e, então, com o autor. “Naquele tempo,
estive bêbado por muitos anos e depois morri”, Scott Fitzgerald
deixou escrito num caderno.
Curiosamente, uma droga que teve seu momento entre os
criadores foi o café: Voltaire tomava cinquenta xícaras por dia;
Balzac, quarenta; e Flaubert intercalava dezenas delas com copos
de água gelada. Nietzsche era viciado em cloral, um sedativo à base
de clorofórmio; Freud e Robert Louis Stevenson, em cocaína;
Valle-Inclán pegou pesado no haxixe, como fizera antes, na década
de 1840, Baudelaire, que o usava no Club des Hashischins junto
com Balzac, o pintor Delacroix, Théophile Gautier e Gérard de
Nerval. O ópio, em especial, sempre teve grandes seguidores: “De
todas as drogas, o ópio é a droga”, dizia Jean Cocteau. E também:
“O ópio permite a quem o usa dar forma ao disforme”. E não é isso
que todos nós, artistas, perseguimos? Entre os que usavam ópio
estavam Shelley, Wordsworth, Byron, Keats, Flaubert, Rimbaud. E
De Quincey dizia, empolgado, que o ópio descortinava os véus
“entre nossa consciência presente e as inscrições secretas do
espírito”. Aliás, o viciadão do De Quincey acabou muito mal, com
uma grave dissociação e pesadelos horríveis. Para não falar do
opiômano talvez mais famoso da literatura, Samuel Coleridge, que
viu seu célebre poema “Kubla Khan” num sonho induzido pela
droga (levantou e anotou os versos correndo, mas só lembrou uma
parte). Mesmo alguém como Octavio Paz, que era um grande
escritor mas que parecia um senhor muito formal e muito sério,
disse o seguinte: “As drogas suscitam as faculdades da analogia,
põem os objetos em movimento, fazem do mundo um imenso
poema de versos rimados e de ritmos”.
Quanto à cocaína, ela começou a ser extraída das plantas de
coca em 1860 e imediatamente foi considerada uma substância
extraordinária: o mercado foi inundado de pastilhas, xaropes e
elixires de coca. Na opinião de Julio Verne, era “um tônico
maravilhoso”. O jovem e empreendedor Mark Twain pensou em
montar um negócio que consistia em ir ao Amazonas para colher
coca “e comercializá-la no mundo todo”. Passou meses matutando
sobre o projeto, e até pegou a estrada rumo ao Peru com uma nota
de cinquenta dólares que achou na rua, mas só chegou a New
Orleans. Essa história genial é contada por Sadie Plant no
fascinante livro Writing on Drugs [Escrevendo sobre drogas].> Ela
também diz que, segundo alguns escritores, as visões de santa
Teresa d'Ávila e de outros místicos poderiam ter sido facilitadas
por substâncias psicoativas, como a cravagem ou esporão-do-
centeio. A cravagem é um fungo que ataca os cereais. Comer a
farinha contaminada provoca uma doença chamada Fogo de Santo
Antônio, bastante comum na Idade Média e que causa sintomas
terríveis: convulsões, demência e infecções gangrenosas mortais.
Porém, se consumida em pouca quantidade, o que ela causa são
alucinações. A cravagem tem um alcaloide, a ergotina, a partir da
qual foi sintetizado o LSD em 1938. Antes já havia sido extraída dela
a ergotamina, um remédio para enxaqueca que tomei em altas
doses durante toda a minha vida (isso não tem nada a ver com a
história, é só que fiquei pasma). Eu já tinha lido em outros autores
sobre a provável influência do esporão-do-centeio em pintores
como Bosch (aquele delírio caótico), mas desconhecia a história
dos místicos. E Sadie Plant conta algo ainda mais impactante:
parece que existe um autor, John Man, que menciona a
coincidência de alguns eventos históricos com momentos
climáticos favoráveis para a proliferação do esporão, o que talvez
tenha causado uma espécie de alucinação coletiva. E cita a
perseguição às bruxas em Massachusetts na década de 1690 (as
famosas bruxas de Salem) e o período do Terror da Revolução
Francesa.
Ainda falta mencionarmos as outras drogas, os barbitúricos de
Truman Capote, as balinhas de Philip K. Dick… Embora, mais que
dos artistas, as anfetaminas tenham sido a droga favorita dos
políticos: Kennedy, Churchill, o primeiro-ministro britânico
Anthony Eden… E Hitler, que se injetava metanfetamina oito
vezes por dia. Outros escritores provaram mescalina, como Jean-
Paul Sartre, que passou anos vendo crustáceos que o perseguiam;
ou peiote e, principalmente, LSD, a droga de Timothy Leary e seus
pirados, mas que também fascinou Aldous Huxley, o qual defendia
que precisava se injetar “para poder ter acesso à vida inconsciente”
(justamente o que dizíamos), e que fez algo que sempre me
horrorizou: ele estava agonizando de um câncer de laringe e pediu
à esposa — por escrito, pois já não podia falar — que lhe injetasse
LSD nos momentos finais. E foi o que ela fez. Ou seja, Huxley
morreu no meio de uma viagem de ácido. Negou-se a usar morfina,
pois dizia que queria falecer com a maior clareza mental possível.
Embora, filha como sou da era lisérgica, não sei se dá para chamar
isso exatamente de clareza mental.
Mas a rainha dos artistas, e muito especialmente dos escritores,
é o álcool. “A bebida realça a sensibilidade. Quando bebo, minhas
emoções se intensificam e as coloco em um conto. Os contos que
escrevo quando estou sóbrio são idiotas. Tudo aparece muito
racionalizado, sem nenhum sentido”, disse Scott Fitzgerald a uma
amiga no início da sua descida aos infernos. Aliás, acho
maravilhoso o oximoro da última frase de Scott: quando mais se
usa a razão na arte, menos sentido tem tudo. É o que dizíamos
antes sobre anestesiar o eu.
O álcool é a desgraça maior dos escritores, sobretudo durante o
século XX. Dos nove prêmios Nobel de literatura norte-americanos
nascidos nos Estados Unidos, cinco foram alcoólatras
desesperados: Sinclair Lewis, Eugene O'Neill, William Faulkner,
Ernest Hemingway e John Steinbeck. Aos quais é preciso
acrescentar dezenas de outros autores, entre eles Jack London,
Dashiell Hammett, Dorothy Parker, Djuna Barnes, Tennessee
Williams, Carson McCullers, John Cheever, Raymond Carver,
Robert Lowell, Edgar Allan Poe, Charles Bukowski, Jack Kerouac,
Patricia Highsmith, Stephen King, Malcolm Lowry… Os
estadunidenses têm um talento incrível para beber até morrer, mas
não são os únicos, é claro. Aí também estão Dylan Thomas, Jean
Rhys, Marguerite Duras, Oscar Wilde, Ian Fleming, Françoise
Sagan… E não estamos falando de encher a cara de vez em quando,
mas de verdadeiras hecatombes pessoais, delirium tremens,
destruições em massa da vida. O norueguês Knut Hamsun, que
ganhou o Nobel em 1920, chegou à cerimônia de entrega tão
escandalosamente bêbado que deu batidinhas no corselete da
autora sueca Selma Lagerlöf (também prêmio Nobel) e, depois de
arrotar, gritou: “Eu sabia, eu sabia que soava como um sino!”. O
brilhante poeta britânico Dylan Thomas, que morreu aos 39 anos
por causa da bebida, disse à esposa, já bem perto do fim: “Tomei
dezoito uísques seguidos. Acho que é um bom recorde”. Aos 37
anos, Faulkner tomava no café da manhã duas aspirinas e meio
copo de gim para firmar o pulso e poder tomar banho e fazer a
barba. Tinha bebedeiras que duravam uma semana, ao longo das
quais vagava nu pelos corredores dos hotéis e sumia. Numa dessas
ausências alcoólicas, desmaiou de cueca em cima da torneira de
água quente e ficou ali até que o concierge derrubou a porta. Na
época, ficou com uma queimadura de terceiro grau nas costas. O
alcoolismo de Faulkner fez com que o hospitalizassem várias vezes
e o submetessem a uma série de eletrochoques. Em Hemingway,
que chegou a tomar dezesseis daiquiris de uma tacada só, também
aplicaram cerca de uma dúzia de choques elétricos.
Alguns autores conseguiram largar a bebida antes de se matar,
como o Nobel O'Neill, que se aposentou do álcool aos 38 anos, ou
como Stephen King, depois de ter provado de tudo na década de
1980. “Eu tomava 24 ou 25 latas de cerveja por dia, e tudo o mais
que se possa imaginar: cocaína, Valium, Xanax, alvejante, xarope
para tosse…” E Bukowski repete diversas vezes com horror no seu
livro autobiográfico, Escrever para não enlouquecer, que, depois de
passar sete ou oito anos “apenas bebendo”, foi internado na ala
para indigentes do hospital geral, com o estômago perfurado e
vomitando sangue. Esteve à beira da morte, mas o que mais o
assustava era o fato de ter acabado na ala de indigentes: sem dúvida
considerava essa a maior decadência da sua vida. Depois daquilo,
bebeu apenas cervejas, recurso típico dos alcoólatras, com as quais
também tinha seus pileques, porém menos graves. No seu livro de
contos autobiográficos, Manual da faxineira, a norte-americana
Lucia Berlin retrata de um jeito maravilhoso e chocante, como
nunca vi em nenhum outro lugar, o que é ser uma alcoólatra.
Curiosamente, no mundo anglo-saxão esses problemas com a
bebida sempre foram reconhecidos mais abertamente. Talvez
porque durante muito tempo foram inclusive mistificados, como
se as bebedeiras fizessem de você um escritor melhor. Algo assim
também aconteceu na Espanha na geração anterior à minha, dos
escritores que tinham 45 ou cinquenta anos quando eu tinha vinte:
vi-os beber com grande entusiasmo e alardear sobre a irmandade
do álcool e o talento criativo. Mas na nossa cultura essas coisas se
escondem debaixo do tapete, como se não devessem ser
nomeadas. Há um ensaio intitulado Alcohol y literatura, publicado
em 2017, no qual o autor, Javier Barreiro, se atreve a dar nomes
espanhóis e latino-americanos. Casos que, por outro lado, todos
que nos dedicamos a isso já conhecemos: Juan Benet, Caballero
Bonald, Dámaso Alonso, Alfonso Grosso, Fernando Quiñones, Gil
de Biedma, Carlos Barral ou a grande Ana María Matute, que teve
uns anos ruins mas depois se recuperou. E entre os do outro lado
do oceano, Juan Carlos Onetti, Alfredo Bryce Echenique, Juan
Rulfo, José Donoso, Pablo Neruda ou Guillermo Cabrera Infante.
Eu me lembro de uma entrevista que fiz com o poeta espanhol
Leopoldo María Panero enquanto estava internado num hospital
psiquiátrico, acho que em Ciempozuelos. Deixaram que ele saísse
do lugar e passamos algumas horas conversando num bar do
vilarejo enquanto ele bebia sem parar, com uma avidez chocante,
um monte de cervejas sem álcool uma atrás da outra, sorvendo
desesperadamente aquele 0,5% alcoólico que tinham todas as
cervejas zero da época.
Em The Thirsty Muse: Alcohol and the American Writer [A musa
sedenta: Álcool e o escritor americano], de Tom Dardis, o autor
escreve: “Ao longo dos anos, muitos de nossos melhores artistas
aceitaram a relação [entre arte e álcool]. De fato, vários declararam
que não tinham escolha a não ser beber, e beber muito, se
quisessem trabalhar sua arte ao máximo”. Isto é o mais chocante:
que, mesmo tendo absoluta consciência dos estragos que a bebida
causava na sua vida, muitos deles não tenham percebido que, à
medida que avançavam no vício, suas obras iam ficando cada vez
piores, chegando por vezes a emudecer completamente. Entendo
o que os levava ao álcool, já dissemos no início: ele aumenta a
emotividade, potencializa a desinibição, amordaça o eu
controlador. Nem Hemingway nem Fitzgerald podiam escrever
sem estar bêbados, por exemplo. Mas a bebida é uma musa
maligna e traiçoeira, uma assassina que, antes de te matar, te
embrutece, te humilha e te arranca a palavra. Como dizia o
veterano escaldado Charles Bukowski, “beber ajuda a criar, embora
eu não recomende”.
Contra o medo

Se você for uma pessoa observadora, é provável que tenha se


perguntado o que houve com meus ataques de pânico. Por que
sumiram de repente aos trinta anos. Pois bem, não disponho de
uma resposta definitiva, mas tenho uma hipótese que, quanto mais
penso nela, mais evidente me parece. Parei de ter crises de terror e
de despersonalização logo depois de lançar meu primeiro livro, ou
seja, quando comecei a publicar ficção regularmente, e estou
convencida de que ambas as coisas estão relacionadas. Eu já
publicava havia dez anos como jornalista, mas se você tem
problemas para se inserir na realidade, esse tipo de texto não serve.
Por outro lado, eu escrevia ficção desde os cinco anos, mas se você
não publica, também não tem o mesmo efeito estrutural. A
combinação salvadora (isso também faz parte da tempestade
perfeita) é escrever ficção e publicá-la, isto é, que te leiam. Que os
outros a compreendam e a aceitem.
Ser romancista, na verdade, é uma atividade bastante estranha,
quase diria que extravagante. Consiste em passar uma quantidade
enorme de tempo, dois anos, ou três, ou o que for, trancada
sozinha num canto da sua casa, inventando mentiras. Quer dizer,
inventando um russo de cabelo ruivo que não existe, com sapatos
de verniz que não existem, que abre uma porta de madeira de
imbuia reforçada com barras de ferro que não existe. E, ao
imaginar essa bobagem, você investe o melhor da sua existência.
Suas horas mais íntimas. Em boa medida, você deixa de ler, de ir
ao teatro ou a um show, de assistir a uma série, de passear com
seus cachorros pelo campo, de sair com os amigos, de mimar as
pessoas amadas. Você rouba tempo de todas essas atividades
prazerosas para enterrá-lo no maldito russo de cabelo ruivo. E no
final dessa travessia alucinada, põe o livro no mundo e espera,
prendendo a respiração, que alguém o leia. Que alguém diga: olha,
achei isso interessante, te entendi, vibrei com as mesmas emoções
que você, vi o mesmo mundo que você viu. Porque, se não te
lerem, se aquilo que você escreveu não agradar, em que se
transformariam aqueles dois ou três anos de obsessão pelos sapatos
de verniz e pelas portas de imbuia reforçadas com ferro? Bem, pura
e simplesmente, no delírio de um louco. Por isso nós, escritores,
somos seres tão carentes do olhar alheio; por isso parecemos
vaidosos, sempre em busca de admiração e de elogio; por isso
somos tão terrivelmente frágeis diante das críticas (como apontou
o experimento da neuregulina-1). Porque arriscamos nossa
aceitação no mundo, a possibilidade de sermos normais, nossa
sobrevivência e sanidade. Era o que dizia John Nash quando falava
de Zaratustra. Se você conta com seguidores, se tem gente que
pensa como você, tudo funciona.
Acho que quase todos nós, romancistas, temos a intuição, a
suspeita ou mesmo a certeza de que, se não escrevêssemos,
ficaríamos loucos, ou nos desmantelaríamos, desmoronaríamos, a
multidão que nos habita iria se tornar ingovernável. Sem dúvida
seria uma existência muito pior. Talvez nem mesmo chegasse a ser
uma existência. O autor espanhol Ray Loriga passou recentemente
por uma dura prova de saúde: um tumor benigno afetou parte do
seu cérebro. Foi operado e está bem, embora tenha tido de
aprender novamente a andar e a falar, e perdeu a visão de um olho.
Digo tudo isso para que entenda a gravidade do caso. Pois bem,
depois de uma baita cirurgia que durou horas, quando Ray chegou
à UTI e recuperou minimamente o sentido, a primeira coisa que
pensou não foi se poderia voltar a andar ou não, mas se seria capaz
de criar uma história. Então, começou a imaginar um senhor que
saía da sua casa e fazia isso e aquilo, e quando viu que, com efeito,
ainda podia continuar inventando, só então relaxou: “Porque, se
deixar de escrever, eu morro”, me disse esses dias num bar, com
um olho coberto por um tapa-olho de pirata e o outro cintilando de
vida, do jogo da vida, do imenso jogo salvador da escrita.
Portanto, acredito que publicar meus romances, meus
pequenos delírios controlados (o psiquiatra Brenot diz que a obra é
“uma intuição delirante autocriada”), e conseguir leitores que os
aceitem, entendam e valorizem é algo que me aterrissa, me
conecta com os outros e, consequentemente, com a realidade,
impede as crises de despersonalização. E isso parece acontecer
com todos nós (você sabe: verdade número 1). Bukowski escreveu a
um amigo:

Vão publicar outro poema meu na edição de setembro. Não está


nada mau, e assim terei vontade de viver por mais três ou
quatro semanas. Conto isso a você porque me deixa feliz ao
meu modo e estou tomando cerveja. A fama não me interessa
tanto quanto a sensação de que não estou louco e de que as
coisas que digo são compreendidas.

E também: “Não paro de escrever poemas e mais poemas. Se não


fosse essa válvula de escape, eu seria um suicida ou estaria
enchendo o cu de remédio no manicômio mais próximo”.
Há um personagem imenso e trágico na literatura
contemporânea espanhola, Carmen Laforet, que, em 1945, aos 23
anos, publicou um romance de estreia fabuloso, Nada. Carmen
tinha um talento descomunal, mas o machismo da sociedade
franquista na qual vivia, um mau casamento, a repressão às suas
tendências homossexuais e seus problemas psíquicos e
neurológicos (talvez fosse bipolar, e não se sabe se teve um
Alzheimer precoce ou outra doença degenerativa) fizeram da sua
vida uma contínua e dolorosa ruína. Deixou muito cedo de
escrever e, depois, deixou de poder escrever: não era nem capaz de
assinar um cheque. Aos 65 anos, começou a fazer garranchos junto
com sua neta para aprender novamente a desenhar as letras, mas já
era tarde demais. Pouco depois, foi devorada pelo silêncio. Quando
faleceu em 2004, aos 82 anos, estava havia três sem dizer uma
palavra. Embora isso não seja totalmente verdade: em 2002,
quando já fazia um ano que não falava e quase quarenta que não
escrevia, contaram a ela que tinha sido indicada ao prêmio
Príncipe das Astúrias. Então, Laforet ressuscitou, emergiu por um
instante do abismo ausente da sua decadência e disse, com
expressão vivaz: “Eu?”. Não acrescentou mais nada, mas durante
algumas horas pareceu feliz. Essa história terrível pode ser
interpretada como um exemplo da suprema vaidade dos artistas e
de um narcisismo tão poderoso que seria capaz de sobreviver
numa mente em ruínas. Mas eu acho que é justamente o contrário,
e que essa necessidade de reconhecimento nasce de uma
insegurança gigantesca. O que literalmente deu vida a Laforet (um
segundo de vida, pelo menos) foi a notícia de que alguém a lia e a
entendia. Saber que era vista e aprovada foi um beijo de príncipe,
que despertou por um instante a Bela Adormecida.
E isso é algo que acontece com todos os artistas. Recentemente
li num site de notícias, nickiswift.com, uma longa matéria assinada
por Phil Archbold sobre Angelina Jolie que me deixou atônita.
“Isso vai soar insano, mas houve um tempo em que pensei em
contratar alguém para me matar”, disse a atriz numa entrevista.
“Porque, com o suicídio, sempre há toda aquela culpa das pessoas
à sua volta, que pensam que poderiam ter feito algo. No entanto,
quando alguém é assassinado, ninguém se sente culpado
pessoalmente.” Por sorte, depois de um mês, “aconteceram outras
coisas que mudaram na minha vida e novamente sobrevivi”. Pois
bem, pelo visto o que a salvou foi seu primeiro grande sucesso, o
filme para televisão Gia (1998), com o qual ganhou um Globo de
Ouro. “De repente parecia que as pessoas me entendiam. De
algum modo a vida mudou.”
“Se houvesse ao menos uma das minhas histórias que agradasse
todo mundo!”, exclama o protagonista do conto “Der Kulterer”, de
Thomas Bernhard, uma metáfora maravilhosa da escrita. Kulterer é
um pacífico presidiário que está há anos encarcerado e que
ganhou, com seu jeito humilde, certo apreço dos outros reclusos e
dos funcionários. Faz muito tempo que ele escreve ficção, mas seu
método é peculiar, porque a inspiração vem à noite e o desperta.
Porém, o homem não quer acender a luz para não incomodar seus
companheiros, então, anota as ideias às cegas, na escuridão, e as lê
na manhã seguinte aos colegas. Kulterer considera suas histórias
tristes e insignificantes, e seu grande sonho consiste, como disse
antes, em um dia agradar a todos. Não obstante, o método
funciona de modo aceitável até que lhe avisam que ele será posto
em liberdade. Bom, como você vai embora logo, dizem seus
companheiros, não se preocupe em nos incomodar e de agora em
diante pode acender a luz, não precisa continuar escrevendo às
cegas. Mas Kulterer responde que, com o passar do tempo, foi se
acostumando a escrever assim: “Além do mais, só consigo pensar
nas minhas histórias quando está escuro”. É que, para ele, o
verdadeiro problema não é a falta de luz, mas o fato de sair da
prisão, uma perspectiva que o aterroriza:

Temia, em liberdade, despojado da roupa do estabelecimento


penitenciário, não poder escrever mais, não poder pensar mais.
Temia, ao ser exposto selvagemente à existência livre, não
poder existir mais. Temia seguramente que o fantástico
daqueles milagres que inventara em sua impotência fosse
destruído de uma hora para outra, de repente, ao dar o primeiro
passo fora do estabelecimento penitenciário.

Escrever é um milagre poderoso que, paradoxalmente, nasce da


impotência, e que permite a quem está preso em si mesmo (na sua
cabeça perdida, na sua neurose, num mundo irreal) construir uma
existência suficientemente válida. As histórias são tristes e
insignificantes (eis o impostor, o inimigo interno aporrinhando),
mas mesmo assim elas funcionam, porque seus colegas as escutam
(e, quem sabe um dia, possam agradar a todos). Além disso, a
criação sempre acontece às cegas, tateando, seguindo os ditames
do inconsciente, sem saber de onde vem, para onde vai.
Escrevemos na mais completa escuridão.
Sem falar no medo que Kulterer tem de perder essa ferramenta
prodigiosa que salva sua vida. “Escrever é um dom e uma doença.
Fico feliz de ter me contagiado”, diz Bukowski. Todos nós, de fato,
temos medo de ser curados. “Me preocupa que a felicidade me
torne preguiçosa [para a escrita]”, diz Sylvia Plath: pelo menos isso
não aconteceu com ela. Um receio comum que muitos psicólogos
e psiquiatras relatam é o medo que as pessoas criativas
demonstram ter de que o tratamento roube sua inspiração. Eu
definitivamente tive isso: fiz psicanálise três vezes na vida e, na
primeira, eu ia tremendo. Ficava aflita que minha escrita secasse ao
desatar os nós internos. Não aconteceu: nota-se que, por sorte, não
me curaram o suficiente. Muitos anos mais tarde, na verdade
pouco tempo atrás, quando comecei a entender a importância da
química cerebral em tudo isso, passei também a ver com
desconfiança alguns comprimidos para dormir que incluem em sua
fórmula o neurotransmissor Gaba. São remédios leves que podem
ser comprados sem receita nas farmácias, mas me dão certa aflição:
e se eles corrigirem meu desequilíbrio sináptico? E se acabarem
com os milagres fantásticos de que falava Kulterer?
Tudo isso pode soar um pouco obsessivo, e suponho que seja,
mas não se trata de um medo banal. Se tomados em grandes doses,
os psicofármacos mais fortes podem triturar sua cabeça. É o que
Kate Millett conta de modo avassalador em seu livro The Loony-Bin
Trip [Viagem ao manicômio]. Kate, uma famosa escritora, artista,
ativista e feminista radical estadunidense, foi diagnosticada como
bipolar e tratada com lítio durante seis anos. Mas o problema é que
o lítio, explica ela, “retarda o pensamento, ofusca a sinapse,
restringe-a, dissipa-a, reprime a atividade cerebral para impedir a
superexcitação maníaca e a hiperestimulação”. Então, certo verão
ela decidiu parar de tomar o remédio por conta própria: “Este foi o
efeito de abandonar o lítio: inibiu a vergonha e a docilidade […] e
eu me recompus, um ser assassinado e enterrado que regressa”. O
problema é que ela regressou em grande estilo, com um surto
maníaco. Porque as drogas terapêuticas têm efeitos colaterais, mas
te salvam do delírio. Millett teve uma recaída, pôs sua vida em
perigo e submergiu por um tempo no inferno justamente porque
parou com a medicação. É um terrível, cruel dilema.
A primeira parte do livro está escrita de dentro da crise, é mais
um daqueles testemunhos do epicentro da psicose, como Inferno,
de Strindberg. E como a pobre coitada da Kate Millett se sai mal
nessas páginas, com seu narcisismo, sua megalomania, sua
paranoia, sua agressividade crescente e intratável. “Eu nunca
estive louca!”, escreve enfaticamente em pleno delírio. Acaba
sendo presa e internada à força, e a partir desse tormento, dessa
brutalidade da hospitalização psiquiátrica, escreve as páginas mais
comoventes: “Como é possível cagar sem porta? Pois é. E se passa
alguém, você faz cara de boazinha ou de louca desesperada. Ver-se
reduzida a isso requer grandeza”. Pede folhas de papel para
escrever no hospital, mas lhe negam. Então, começa a encher o
papel higiênico de anotações, em segredo e com letra miúda.
Entopem-na de remédios: “Nada custa mais do que se manter
lúcida contra a investida dos fármacos”. Teme, com razão, que lhe
deem eletrochoques, e também teme perder seus direitos para
sempre: “Ficarei sob a tutela de alguém […] vejo minha vida sendo
paralisada por uma prisão e a depressão que seguirá, a vergonha, a
possibilidade real de nunca mais ser livre”. Como sempre, como
todos os artistas, agarra-se à criação para sobreviver: “Você tem de
escrever para sair dessa. Só o trabalho te permitirá conseguir isso
[…]. Trabalhar vai te salvar, não essas pílulas nojentas e pensar que
você está louca”. E diz, mais adiante, como me disse Ray Loriga:
“Preferiria morrer a deixar de ser artista, a deixar de criar,
escrever, pintar”. Sim, receio que uma cura drástica silencie o
criador. De fato, a neurocientista Mara Dierssen encerra seu livro
com uma pergunta inquietante: “O que teria acontecido se muitos
daqueles gênios tivessem se tratado com nossos métodos
terapêuticos atuais? Nunca saberemos se todas as obras fruto do
seu estado mental teriam sido realizadas”. Embora também valha
se perguntar se, em casos extremos, pode-se chegar a preferir a
saúde à obra. Será que Van Gogh teria escolhido ser menos genial
e não sofrer tanto?
De qualquer forma, a observação de Dierssen é muito
interessante. Por exemplo: Dostoiévski teria sido o grande escritor
que foi sem sofrer da terrível epilepsia que tinha? Seu primeiro
grande surto foi em 1846, aos 25 anos. Aos 28, foi preso e
condenado à morte por subversão, embora tenha cumprido apenas
cinco anos de trabalhos forçados na Sibéria, enquanto seus ataques
pioravam. Para começar, a gravidade dos ataques o livrou de ser
condenado a servir no exército do tsar pelo resto da vida, o que
sem dúvida o teria impedido de escrever. Parece que a epilepsia de
Dostoiévski era do tipo estática, sem perda de consciência durante
as convulsões, nas quais experimentava um sentimento de
suprema harmonia, de clarividência e espiritualidade (é a epilepsia
dos místicos, muito provavelmente a de santa Teresa d'Ávila). Esse
senso afiado de existência proporcionava a ele uma visão criativa
extraordinária, embora mais tarde o famoso presente das fadas
cobrasse seu preço com juros (era seguido de confusão mental,
perda de memória a curto prazo, desconexão da realidade,
depressão). Por outro lado, Dostoiévski passou a vida se
autoanalisando e estudando sua doença (muitos de seus
personagens são epilépticos), o que lhe deu esse conhecimento tão
profundo dos meandros e das sombras do ser humano. Sim, com
certeza. Sem sua patologia, Dostoiévski não teria sido tão
Dostoiévski.

Portanto, de um lado estão nossas doenças, nossas deficiências


mais ou menos graves, e de outro está a arte que nos permite
suportá-las. “Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de
alguém. Provavelmente minha própria vida”, dizia Clarice
Lispector. Ou Ray Bradbury: “Escrever é uma forma de
sobrevivência […]. Não escrever, para muitos de nós, é morrer”. As
citações com esse teor são tão abundantes que daria para
preencher um livro inteiro com elas. Deixe-me terminar com uma
frase que eu acho tão bonita que vou botá-la numa linha separada
para dar destaque. É de Rilke:
“Fiz algo contra o medo. Fiquei sentado a noite toda e escrevi.”
É exatamente o que fez Emmanuel Carrère quando o
diagnosticaram como bipolar aos sessenta anos de idade. Entre
outras coisas, lhe deram catorze eletrochoques. As pessoas não
familiarizadas com os usos psiquiátricos tendem a acreditar que o
eletrochoque é uma terapia bárbara e obsoleta que já não se utiliza
em lugar nenhum. Nada mais equivocado: Carrère passou por
esses tratamentos em 2019 e na França. O eletrochoque continua
sendo usado de modo habitual (embora agora o chamem,
eufemisticamente, de terapia eletroconvulsiva), e os psiquiatras que
o aplicam garantem que é eficaz contra a depressão. Certo, pode
até ser, mas também soa bastante forte: “Isso que estou contando
parece horrível, mas na verdade foi muito mais horrível, de um
horror inenarrável, indescritível, inominável, e a palavra não
existe, não importa, eu a invento: imemorável”, diz Carrère sobre
suas sessões. E isso porque atualmente a voltagem é menor e o
paciente recebe relaxantes musculares e anestesia. Antes, nos anos
selvagens da psiquiatria, o eletrochoque era aplicado direto e com
maior potência. Sem relaxantes muscula­res, as convulsões eram
tão fortes que houve casos de fratura de vértebras. Sylvia Plath foi
submetida a esse tormento em 1953, aos 21 anos. Ela conta a
experiência no seu romance autobiográfico A redoma de vidro,
narrado pela protagonista, Esther, seu alter ego:

O dr. Gordon colocou duas placas de metal nas minhas


têmporas, prendeu-as com uma tira que apertava a minha testa,
e me deu um fio para morder. Fechei os olhos. Houve um breve
silêncio, como uma respiração suspensa. Então alguma coisa
dobrou-se sobre mim e me dominou e me sacudiu como se o
mundo estivesse acabando. Ouvi um guincho, iiii-ii-ii-ii-ii, o ar
tomado por uma cintilação azulada, e a cada clarão algo me
agitava e moía e eu achava que meus ossos se quebrariam e a
seiva jorraria de mim como uma planta partida ao meio. Fiquei
me perguntando o que é que eu tinha feito de tão terrível.

No romance, a narradora recebe apenas um eletrochoque sem


anestesia e vários outros já sedada. Na realidade, Sylvia passou por
quatro sem nada e, um pouco depois e com outro médico, mais
cinco com sedação. O nome verdadeiro daquele brutal verdugo
não era Gordon, mas Tillotson. O dr. Tillotson do Newton-
Wellesley Hospital. E não parece que o suplício elétrico tenha
ajudado muito contra a depressão: logo que saiu das mãos do
torturador, Plath tentou se suicidar. O eletrochoque começou a ser
usado nos anos 1930. Assusta pensar no sofrimento atroz e
desnecessário de tantos pacientes naquelas primeiras décadas.
Homens e mulheres, embora alguns defendam que as mulheres
sofreram mais e por vezes os receberam por não se encaixarem no
papel social que lhes era exigido. Até mesmo Jacqueline Kennedy
foi internada pelo marido e submetida a eletrochoques quando um
dia saiu correndo pelada depois de uma briga daquelas com o
presidente, por causa das suas infidelidades.
Portanto, Carrère experimentou esse tratamento em condições
muito melhores e, ainda assim, foi um “horror imemorável”. Toda
vez que recobrava a consciência, a primeira coisa que ele via era o
desenho de uma praia no pôster de uma exposição de Dufy, e essa
imagem se transformou em algo bastante traumático. Procurei o
pôster na internet e acredito que o encontrei.
A data coincide, e é uma praia. Olho fixo para ele e tento
entender emocionalmente de que inferno de dor esse desenho
pode ser uma agonia. Pois bem, assim como Rilke, Carrère fez algo
com seu medo: “Na impossibilidade de me curar desse mal de que
padeço, posso descrevê-lo. É o meu trabalho. É isso que sempre
me salvou, apesar de tudo”. Então, começou a redigir um livro,
Ioga. E, entre a aplicação dos eletrochoques, “remendava este
relato na tentativa de segurar com rédea curta meu espírito
errático e em ruínas”.
Há uma história maravilhosa, o mais belo exemplo de como a
criação te protege e pode te libertar de algo pior que a morte. Ela
aconteceu com a neozelandesa Janet Frame (1924-2004), e prometi
contá-la no início deste livro. Frame teve uma infância
horripilante: provinha de uma família sem recursos, tinha um pai
abusador e desde pequena manifestou certos desequilíbrios. Aos
22 anos, deu entrada num hospital psiquiátrico. Entrou
voluntariamente, mas a mantiveram ali à força. Foi diagnosticada
de modo equivocado como esquizofrênica e lhe aplicaram
eletrochoques. Isso era no final dos anos 1940, portanto, receio
que também a fritaram sem relaxantes nem anestesia. E assim foi
passando o tempo, entre o tormento das eletrocussões e o
atordoamento dos fármacos, até que a deixaram sair em 1954.
Havia passado oito anos lá dentro. Pouco antes de deixar a clínica,
aconteceu o milagre que quero contar. Os médicos haviam
decidido submetê-la a uma lobotomia, um tratamento selvagem
em voga na época, que consistia em cortar parte do cérebro (isso
felizmente já não se faz). Frame estava na lista e sua entrada no
centro cirúrgico era iminente quando, uma tarde, o dr. Blake
Palmer, superintendente do hospital, fez uma insólita visita à ala
onde Janet estava internada. Além disso, “para assombro de todos”,
foi direto até ela: “Decidi que a senhora continue como está. Não
quero que mude. Já viu a última edição do Star de hoje à tarde?”,
perguntou, abrindo o jornal que trazia debaixo do braço. É claro
que Frame não tinha visto: naquele setor do hospital a leitura não
era permitida. “A senhora ganhou o prêmio Hubert Church de
melhor trabalho em prosa. Pelo seu livro The Lagoon and Other
Stories [A lagoa e outros contos].” Era um volume de contos, o
primeiro que a escritora havia publicado. Janet ficou maravilhada:
“É sério?”. “Sim”, respondeu Palmer: “Vamos tirar a senhora desta
ala. E nada de lobotomia.” Não sei se houve na história da literatura
outro prêmio tão oportuno. Ele não apenas impediu que
destruíssem seu cérebro, como também provavelmente
providenciou sua saída do hospital psiquiátrico. Impressionante,
não?
Todos nós temos a certeza de que escrever nos salva. Ou, pelo
menos, todos aqueles de nós que nos vemos forçados a juntar
palavras para poder suportar o medo das noites e o vazio das
manhãs. “Parece que os escritores perderam o norte, escrevem
para se tornarem conhecidos e não porque estejam à beira do
desespero”, diz numa frase memorável Charles Bukowski. É
curioso, porque sempre achei Bukowski péssimo e nunca gostei
dos seus livros, mas depois de ler as cartas e notas biográficas
recompiladas sob o título Escrever para não enlouquecer, descobri
um sujeito catastrófico porém autêntico, brilhante e carismático.
Sim, com certeza existem escritores profissionais que fazem
romances como quem fabrica sapatos, mas acho que são poucos.
Diria que, para a maioria de nós, bons ou ruins, a escrita é um
esqueleto exógeno que nos mantém de pé.

Você se lembra de Nathaniel Hawthorne, o autor de “Wakefield”,


aquele conto maravilhoso do homem que um dia vai embora de
casa e se esconde num apartamento do outro lado da rua?
Hawthorne, como contei, passou doze anos trancado na casa da
mãe sem sair, a ponto de escrever a um amigo uma frase que vou
repetir, pois muitos de nós temos uma péssima memória
(especialmente se viemos com aquela mutação da neuregulina-1
duplicada, algo bastante possível entre quem me lê). Estas são suas
palavras desesperadas: “Eu me transformei em prisioneiro de mim
mesmo, me encerrei numa masmorra e agora não encontro a chave
para me libertar, e se a porta estivesse aberta, quase teria medo de
sair”. Se você é uma pessoa curiosa, talvez tenha se perguntado o
que aconteceu com ele, se finalmente conseguiu sair daquela casa,
como e quando. Pois bem, Hawthorne terminou sua reclusão em
1837, coincidindo justamente com a publicação do seu primeiro
livro, um volume de contos intitulado Twice-Told Tales [Contos
contados duas vezes], que inclui “Wakefield”. Ele encontrou sua
maneira de deixar de estar preso, como o Kulterer de Bernhard (e
como eu).
Como crianças no cemitério

Falando de medo, me lembrei de Emily Dickinson, personagem


mítico da literatura universal. Mais uma artista ermitã, como
Hawthorne durante aqueles doze anos de íntimo confinamento, ou
como Proust, navegando por sua obra em noites febris de escrita.
Mas o mito e o enigma que rodeiam Dickinson são ainda mais
profundos, mais complexos. Vamos lembrar que a delicada Emily
(1830-86) publicou apenas dez poemas em vida, quase todos
contra sua vontade. Mas, uma semana depois de morrer (não
temos nem certeza do quê: provavelmente de insuficiência renal),
sua irmã Lavinia encontrou, numa caixa trancada à chave,
setecentos poemas cuidadosamente copiados; pouco depois, achou
outros 1028. Só 24 poemas tinham título, e nenhum estava datado.
E com essa torrente de palavras secretas, tornou-se, post mortem,
uma das maiores poetas dos Estados Unidos. Só temos uma
imagem comprovada de Emily, uma fotografia em daguerreótipo
que tiraram dela aos dezesseis anos, embora seu semblante seja tão
severo e triste que, na verdade, parece uma viúva.
Olhe bem para esses olhos: parece que você vai cair lá dentro.
Quanta coisa devem ter visto e aprendido. Quanta coisa sofreram.
Todos os indícios apontam que Emily (e talvez Lavinia também)
sofreu incesto na infância e já adulta por parte do pai, Edward, e do
irmão Austin. Ela escreveu sobre isso e há uma excelente antologia
publicada na Espanha (Ese día sobrecogedor. Poemas del incesto), da
qual retirei estes versos:
You left me — Sire — two Legacies —
A Legacy of Love
A Heavenly Father would suffice
Had He the offer of —

You left me Boundaries of Pain —


Capacious as the Sea —
Between Eternity and Time —
Your Consciousness — and me —[1]

E este outro, bastante terrível:

In Winter in my Room
I came upon a Worm —
Pink, lank and warm — […]

I shrank — “How fair you are”!


Propitiation's claw —
“Afraid,” he hissed
“Of me”?
“No cordiality” —
He fathomed me —
Then to a Rhythm Slim
Secreted in his Form
As Patterns swim
Projected him […][2]

Ou este terceiro, demolidor:

A Wife — at daybreak — I shall be — […]


At Midnight — I am but a Maid — […]

Midnight — Good Night! — I hear them call —


The Angels bustle in the Hall —
Softly — my Future climbs the Stair —
I fumble at my Childhood's prayer —
So soon to be a Child — no more —
Eternity, I'm coming — Sir —
Master — I've seen the face — before —[3]

Esse Mestre final não se refere ao amor: é, antes, um sinônimo de


dono, porque no original em inglês a palavra é Master — que,
colocada aqui, soa arrepiante. São versos poliédricos e enigmáticos
cujo real significado foi rastreado pelas antologistas e tradutoras
Ana Mañeru Méndez e María-Milagros Rivera Garretas.
O escabroso e subterrâneo tema dos abusos incestuosos aparece
aqui e ali, como um rio Aqueronte que vai assomando sua líquida
cabeça, nas biografias de algumas mulheres escritoras com graves
problemas psíquicos. Como já disse, Virginia Woolf também foi
estuprada desde os sete anos pelos seus dois meios-irmãos de vinte
anos de idade (ela mesma contou isso repetidas vezes), e sobre
Alice James, a irmã “inválida” de Henry James, como ele gostava
de apresentá-la, já foi sugerido que talvez tivesse um
relacionamento com o irmão mais velho, o famoso filósofo e
psicólogo William James. Em certo sentido, a biografia de Alice é
parecida com a de Emily Dickinson: ela também viveu uma vida
enfermiça e confinada, também foi publicada postumamente, e
ambas amaram mulheres. A diferença é que The Diary of Alice
James [O diário de Alice James], seu único legado, é um texto
curioso e divertido em alguns momentos, mas muito apequenado
pela vida ínfima que Alice levava. Sem dúvida tinha talento para a
escrita, e talvez num mundo normal tivesse conseguido se
desenvolver como escritora. De qualquer forma, sua obra é muito
inferior à explosão de fúria, seda e fogo dos poemas de Emily.
Acabo de escrever “num mundo normal” e acho que você
entende bem a que estou me referindo: ao sexismo, a essa
discriminação feroz que manteve as mulheres por tanto tempo (e
continua mantendo, veja o Afeganistão) numa situação de absoluta
desigualdade e impotência. Num mundo normal, as artistas teriam
podido crescer e amadurecer naturalmente, e não se transformar
nessa espécie de aberração humana que foi, por exemplo, Alice
James. Sempre me vem à memória Clara Schumann (1819-96),
compositora e pianista. Aliás, algumas das peças estreadas pelo
magnífico músico Robert Schumann, marido de Clara (um homem
que, como já contamos, teve graves distúrbios mentais e faleceu
num manicômio), são na realidade dela. Clara, que tinha um
talento musical gigantesco, estava presa no seu papel secundário
de esposa e mãe. Teve oito filhos e vários morreram; no meio disso
e da terrível doença de Robert, sua vida deve ter sido bastante
miserável. Mas o pior foi que o machismo lhe impediu o consolo
da criação. Clara compôs pouco, e explica o motivo disso no seu
diário: “Um dia acreditei que tinha talento criativo, mas abdiquei
dessa ideia; uma mulher não deve almejar compor. Nenhuma foi
capaz de fazê-lo, logo, por que haveria eu de esperar isso?”. Que
terrível e desconsolada frase de derrota. E, além disso, que
equivocada! Ao longo da história, houve inúmeras mulheres
compositoras de grande valor, como a alemã Hildegarda de Bingen
no século XII, precursora da ópera com o ordo, um tipo de oratório
criado por ela. Ou, já que falamos de ópera, como Francesca
Caccini no século XVII, que foi, junto com Monteverdi, responsável
pela difusão e pelo êxito desse gênero musical no mundo. Na
verdade, na mesma época em que Clara escrevia seu diário, havia
muitas outras compositoras importantes na Europa: a também
alemã Fanny Mendelssohn, ou as francesas Augusta Holmès e
Cécile Chaminade, a espanhola Isabella Colbran e, especialmente,
a polonesa Maria Szymanowska, famosíssima em vida e
antecessora de Chopin, embora todas tenham sido injustamente
esquecidas depois, como sempre aconteceu com a memória das
mulheres. Por isso a pobre Clara achava que não houve nenhuma.
Também me parece exemplar a história da escritora Charlotte
Perkins Gilman (1860-1935), que sofreu de depressão pós-parto e
teve a infelicidade de ser tratada pelo dr. Weir Mitchell, um
fervoroso partidário da chamada “cura pelo repouso”. É que,
naquela época, as mulheres que apresentassem algum transtorno
de ânimo ficavam comumente proibidas de ler, pensar e, claro,
escrever. Receitava-se a elas retomar os afazeres domésticos, que
supostamente lhes devolveriam sua placidez feminina. Você se
lembra das frases que citei dos escritores dizendo que, se não
escrevessem, ficariam loucos? Então agora pense nessas infelizes
autoras que, toda vez que “enlouqueciam”, tinham suas canetas-
tinteiro arrancadas. Charlotte Perkins Gilman escreveu uma
história maravilhosa, O papel de parede amarelo, um conto gótico e
feroz sobre o que acontece quando uma pessoa passa por isso.
Nele, um médico chamado John, bem-intencionado, porém
machista e estúpido, receita à sua mulher, que está atravessando
uma fase um tanto “histérica”, a famosa cura pelo repouso. Para
isso, John aluga uma casa de veraneio e se instala, junto com a
esposa, num quarto do segundo andar com grades nas janelas
(supõe-se que teria sido um quarto infantil) e as paredes cobertas
de um papel amarelo. John continua indo diariamente para o
trabalho, mas ela, que fora proibida de escrever e de ler, não tem
nada para fazer e começa a afundar numa assustadora crise
psicótica, até acabar acreditando que há uma mulher presa debaixo
do papel amarelo, um vulto que se arrasta pelas paredes e que a
esposa tenta libertar, com desespero frenético, rasgando a
decoração com as unhas. Gilman mandou esse potente relato ao
seu médico e, tempos depois, o dr. Mitchell escreveu a ela dizendo
que a leitura do conto lhe convencera de que deveria mudar o
tratamento. “Se foi assim, talvez minha vida não tenha sido em
vão”, anotou Gilman no seu diário.
Emily Dickinson passou os últimos quinze ou vinte anos, dos
55 da sua existência, sem sair da casa da família em Massachusetts
e vivendo cada vez mais reclusa. Permanecia entrincheirada num
quarto no andar de cima e falava com os visitantes através da porta
ou por uma fresta. Os biógrafos enfatizam que ela não abandonou
seu quarto nem para assistir ao funeral do pai, realizado no salão da
casa — embora, sabendo o que acreditamos saber, na verdade não
me parece nada estranho que ela fizesse isso. Vivia para escrever:
por um lado, inúmeras cartas aos amigos; por outro, seus preciosos
poemas, que ela retocava várias vezes a lápis durante meses, em
pedacinhos de papel ou no verso de envelopes usados, até copiar a
versão definitiva a tinta numa folha decente. À medida que lutava
contra a doença, com a gradativa perda de visão e com o
desequilíbrio mental, sua letra ia mudando: clara e reta no início,
tensa e torta no final. As letras caem e se esmagam, talvez como as
esperanças. “Senti a Mente rachando —/ No meu Cérebro, uma
Fenda —/ Tentei casar — Fio com Fio —/ Mas Não achei mais a
emenda —” Eis a descrição de uma crise dissociativa. Ela redigia
os textos salpicando-os de maiúsculas e com uma pontuação muito
peculiar; seus versos são tão estranhos quanto poderosos.
Descobriu a poesia na infância, lendo Elizabeth Barrett Browning,
a autora britânica vitoriana cuja obra, ao contrário do que
aconteceu com Clara Schumann, mostrou a Emily que era possível
ser mulher e escrever maravilhosamente. Diz Dickinson sobre esse
encontro salvador:

Acho que fui encantada


Quando era uma Menina sombria —
Li aquela Dama Estrangeira —
A Escuridão — que bonita — […]
Foi uma Divina Loucura —
Se o perigo de estar lúcida
Eu tornasse a experimentar —
Seria Antídoto voltar —
Aos Tomos de Sólida Bruxaria —

Me comovem esses versos emocionados e essa “sólida bruxaria”


literária capaz de transformar a escuridão em beleza.
Claro que Emily também era sensível a outros tipos de beleza.
Sem dúvida esteve apaixonada pela sua cunhada, Susan
Huntington Dickinson, professora de matemática, que era casada
com seu irmão Austin e morava numa fazenda justamente ao lado
da casa da família. Na juventude, antes de se enclausurar
completamente, encontravam-se muito. Emily escreveu a ela
cartas como estas: “Susie, virás realmente aqui em casa no
próximo sábado e serás minha de novo e me beijarás como
costumavas fazer?” e “Quem te ama mais, quem te ama sempre,
quem pensa em ti enquanto os outros dormem?”. Ou “Sinto tanto
tua falta e tenho tanto anseio por ti que sinto que não posso
esperar, que preciso te ter agora: a expectativa de ver teu rosto
mais uma vez me sufoca e me faz sentir febril, e meu coração bate
depressa”. Há toda uma corrente de novas biógrafas que sustentam
que Dickinson e sua cunhada mantiveram um relacionamento
amoroso durante quarenta anos, mas na enigmática vida da poeta
nada parece estar claro. É indiscutível que a paixão existiu (Emily
chamava Susan de “Avalanche de Sol”), mas terá durado tanto? Aos
trinta anos, a poeta escreveu três tórridas cartas de amor, as
chamadas “cartas ao mestre”, que talvez tenham sido destinadas a
um homem. Numa delas, diz: “E se a campânula afrouxasse seu
cinto/ para a Abelha amante/ a abelha a amaria/ como antes?”. Para
mim, isso na verdade evoca um homem. Talvez ela fosse bissexual.
No livro The Poet and the Murderer [A poeta e a assassina], Simon
Worrall diz que é possível que Dickinson estivesse apaixonada por
Samuel Bowles, um colega de estudos do seu irmão Austin que ela
conhecia desde a adolescência. Escreveram-se por duas décadas e
ele a visitava uma vez por ano. Em 1877, Emily, que na época tinha
46 anos, se recusou a sair do quarto. Da sala, Samuel gritou:
“Desça, patife maldita! Vim te ver, deixe de bobagem!”. Para
perplexidade de todos, Emily desceu e, segundo Lavinia, se
comportou magnificamente. Dias depois, mandou a Bowles uma
carta e este poema: “Não tenho outra vida além desta/ Que me foi
dada/ Nem outra Morte senão a/ Que me degrada —/ Nem
Demando Mundo por vir/ Nem um novo Saber/ Senão o de nesta
extensão/ Amar você —”. E escreveu embaixo: “É estranho que o
mais intangível seja o mais permanente”, assinando depois: “Sua
patife”. Soa amoroso. Esquisito e desolador, mas amoroso.
Enfim, o mistério que ronda Dickinson é tão impenetrável que
há teorias de todo tipo. Inclusive a de que uma das viagens que fez
a Boston nos anos 1860 foi para abortar. De um amante? Do
incesto? São apenas especulações. O que temos certeza é do seu
sofrimento, do tormento causado por aquilo que ela chamava de
seus demônios mentais:

Senti um Funeral no Cérebro,


Aqui e ali Gente de Luto
Ia e voltava — até perder
O sentido do absoluto —

[…]
Até a mente cair em torpor —

Mas ela não caiu. Continuou lutando até o fim, palavra após
palavra febrilmente anotadas num pedaço de envelope, disparos de
luz contra as trevas. Ela mesma disse isso da maneira mais bonita
possível (da maneira Dickinson) numa carta a um amigo:

Senti um terror — desde Setembro — que não podia contar a


ninguém — por isso eu canto, como faz a criança no
cemitério — porque estou com medo.
Tempo de presentes

Olho hoje para trás, da vertiginosa surpresa de ter me levantado da


cama esta manhã, tão mais velha, e a minha vida anterior parece
um conjunto de fotos que não tenho totalmente certeza se são
minhas. Meu passado é como o passado de alguém muito próximo,
uma irmã, talvez. Uma gêmea. Um duplo. Na vida real, tenho
apenas um irmão, meu querido Pascual, cinco anos mais velho.
Porém, na minha vida imaginária (naquela outra realidade de papel
que fui construindo dentro da cabeça) abundam as figuras fraternas
femininas. Há uma gêmea minha em A louca da casa que é
essencial para a trama, a quem, aliás, dedico o livro; e em O coração
do Tártaro e La carne há outras duas irmãs que são importantes e
funcionam como reflexos invertidos das protagonistas. O curioso é
que, com o passar do tempo, também se dá um desdobramento
semelhante na vida real, porque há certa impossibilidade de se
reconhecer plenamente no eu que você foi. Sinto que aquelas
Rosas do passado são de algum modo diferentes de mim, da
mesma forma que a velha que hoje me sequestrou também não sou
de todo eu. “O pior de envelhecer é que não se envelhece”, dizia
Oscar Wilde numa de suas tantas frases célebres, e ele tinha razão.
Não consigo me enxergar na minha idade real. Não entendo como
cheguei a isso. Não sou capaz de descobrir em que momento da
juventude me perdi, como caí no buraco de minhoca espaço-
temporal que me trouxe até aqui. A idade é uma traição do corpo;
por dentro, como defendia Wilde, nunca se envelhece. Além
disso, esse corpo conspirador e desleal conta com a colaboração da
sociedade no golpe de Estado que está perpetrando contra você.
Nada é tão triste quanto a aposentadoria, mas não a sua, e sim a de
todos os outros. De repente chega o dia em que começam a sumir
seu dentista, seu médico, seu mecânico na oficina, sua gerente de
banco, sua farmacêutica, o dono do restaurante que você frequenta
há trinta anos, sua livreira. Eles não morreram: se aposentaram.
Uma imensa vassoura cronológica os varreu. Isto é, os apagou.
Você não conhece mais ninguém à sua volta. A neblina vai
baixando e tudo fica borrado enquanto seu eu mais íntimo, aquele
eu emocional com o qual você se identifica, que é e será
eternamente jovem, se retira aos poucos para um canto cada vez
mais remoto do seu cérebro.
A passagem e o peso do tempo também se abateram sobre a
Outra. Depois daquele inquietante incidente na Wellesley College,
não soube mais nada dela durante muitos anos. Foram tantos, na
verdade, que cheguei a pensar que aquilo havia acabado. Mas um
dia, mais ou menos uma década mais tarde, recebi em casa um
pequeno pacote contendo uma caixinha de papelão embrulhada
com primor. Era uma salamandra de pedra muito especial,
barriguda, de olhos saltados e vigilantes. Na caixa não vinha
nenhum cartão, nenhum esclarecimento; no pacote não constava
remetente. Era um presente bonito, embora me inquietasse não
saber quem o enviara e, sobretudo, recebê-lo no meu endereço
particular. Eram tempos horríveis da luta contra o ETA; os
terroristas tinham começado a assassinar jornalistas,
principalmente no País Basco, e eu, que sou meio medrosa e que
de vez em quando escrevia artigos contra os etarras, não pude
deixar de sentir certo medo. E assim, mesmo sabendo que meu
risco era vinte vezes menor que o de colegas que estavam de fato
na linha de frente, passei meses olhando debaixo do meu carro
antes de dar a partida, e quando entregaram na minha casa uma
pesada caixa de papelão sem cartãozinho nem remetente, telefonei
na hora para a polícia, que levou muito a sério minha ligação e
recolheu o pacote. Depois de passá-lo pelo escâner, me ligaram:
eram quatro garrafas de vinho que a diretora de comunicação de
uma editora havia me mandado sem avisar. Disse aos policiais que
brindassem à minha saúde e lhes agradeci.

A história das garrafas havia acontecido pouco antes do envio da


salamandra, então supus que pudesse se tratar de algo parecido, de
um presente profissional ou mesmo de uma campanha publicitária,
e que em poucos dias descobriria sua origem. Fiquei com aquele
bicho, coloquei-o ao lado do computador e ele continua ali,
embora tantas coisas e tantos anos tenham se passado desde
então.
Em seguida, começaram a chegar flores. Especificamente, uma
dúzia de tulipas no primeiro dia de cada mês. Tulipas amarelas, cor
de fúcsia, alaranjadas. Na época eu já tinha quarenta anos e morava
com Pablo Lizcano, que foi meu namorado e por fim meu marido
durante 21 anos, até que um câncer o dizimou. Não era ciumento,
mas no segundo mês ele começou a ficar irritado: todas aquelas
flores, sem cartão nem dono. Eu também me inquietei e liguei para
a floricultura que as enviava. “Algum problema, sra. Montero?”, me
disseram. “Acho que mandamos o buquê que a senhora queria,
não?” O buquê que eu queria? Aquelas palavras desceram pela
minha espinha vertebral como um dedo de gelo. Adivinhei, mesmo
antes de me explicarem, o que havia acontecido: a Outra voltara.
O método era sempre o mesmo. Ia pessoalmente à loja, pagava
em dinheiro, passava meu endereço como se fosse o dela (não
chegava a dizer isso, mas dava a entender) e pedia que lhe
mandassem as flores dois dias depois. A cada entrega, usava uma
loja diferente. Em algumas delas me disseram que, quando a
mulher dava o nome, comentavam: Como a escritora? E ela sorria
de um jeito ambíguo sem acrescentar nada. O que mais me
preocupava era que soubesse meu endereço pessoal. De novo falei
com a polícia; de novo me disseram que não podiam fazer nada.
Tulipas são minha flor preferida e adoro salamandras (tenho mais
de duzentas estatuetas de lagartos em casa), e a intuição com que a
Outra escolhia seus presentes também não tinha a menor graça.
Não podia ser uma coincidência. O mais provável é que eu tivesse
falado a respeito em alguma entrevista ou evento, mas, ainda
assim, aquilo indicava uma obsessão em captar cada detalhe da
minha vida, o que me amedrontava.
Recebi tulipas todo dia primeiro do mês durante meio ano.
Depois do sexto buquê, entrei numa espécie de frenesi. Peguei as
páginas amarelas da lista telefônica e comecei a ligar para todas as
floriculturas de Madri para alertá-las e pedir que me avisassem se
chegasse alguém para comprar um buquê no meu nome. Lá pelo
número 384, desisti. Havia milhares. Nunca ninguém telefonou
para mim, mas, curiosamente, o envio de flores parou.
Dali em diante, e durante quase duas décadas, a Outra foi uma
presença à distância, um pontilhado irregular no tempo. Às vezes
sumia por meses, ou mesmo anos inteiros; e então, de repente, eu
recebia um presente ou dois no decorrer de poucas semanas. Ela
me mandava coisas muito diversas: um macaco de pelúcia, por
exemplo; uma caixinha de laca pintada com motivos russos; uma
pintura de um cachorro uivando para a lua; um peso de papel com
um esvoaçante e delicado dente-de-leão dentro. Objetos sem
sentido, mas de que eu gostava. Todos eram mais ou menos
modestos, porém bonitos, ou divertidos como o macaco. Achei
especialmente linda uma pedra pintada à mão com um coração em
chamas. É de uma artista espanhola chamada María Herraz.

Telefonei para as lojas de onde vinham aqueles cacarecos e em


todas me contaram a mesma coisa: ela ia pessoalmente, pagava em
dinheiro e pedia que entregassem o pacote em casa, alegando que
estava saindo de viagem naquele instante. Poucos dias depois da
morte de Pablo, recebi um lenço de cetim preto com as pontas
amarradas: ao abri-lo, revelou no seu enlutado regaço meia dúzia
de pequenas lágrimas de cristal. Aquele presente eu joguei fora.
Era belo e horrível. Depois de ficar viúva, me mudei para outro
apartamento e se acabaram os presentes. Ela provavelmente não
conseguiu localizar o novo endereço.
Sem contar o lenço de cetim, recebi catorze objetos. Tenho
todos. Talvez você ache estranho eu guardá-los. A princípio, fiz
isso por segurança, para o caso de servirem como prova de algo: da
existência da Outra, do seu assédio. Mas também, já disse, eram
peças bonitas que me agradavam. Com o tempo, fui perdendo o
medo da desconhecida e às vezes até achava que ela e eu estávamos
desenvolvendo uma espécie de estranha relação. Sem dúvida
patológica, mas íntima. E aconteceu outra coisa: um dia, percebi
que os balconistas das lojas tinham parado de descrevê-la como
uma mulher muito bonita. A Outra também envelhecia.
Pesadelos geométricos

Dentre os diversos medos que vou arrastando ao longo da vida,


houve um que me importunou durante certo tempo. Quando
pequena, tive pesadelos geométricos que me causavam verdadeiro
terror. Não ocorriam com muita frequência, e quando os conto
agora não parecem ter nada de terrível: eram apenas uma sucessão
de formas sem argumento, um baile tridimensional de esferas,
pirâmides e prismas de diversas cores que davam lentas voltas
dentro do meu crânio, algo muito parecido com os descansos de
telas que meio século depois viraram moda nos computadores. Sei
que o que estou descrevendo não assusta nada, poderia ser até
mesmo bonito, mas aquelas visões eram insuportáveis e
asfixiantes. A lenta rotação da pesada geometria ameaçava me
esmagar. Eu era uma mosca aprisionada na pegajosa teia de uma
aranha poliédrica. Me sentia em perigo.
As visões acabaram quando cresci um pouco, mas durante
décadas fiquei com certa sequela, o desconforto de acrescentar
mais uma estranheza (o medo incompreensível daqueles pesadelos
excêntricos) ao meu longo catálogo de maluquices. Quer dizer, a
dança das pirâmides parecia uma prova a mais da minha loucura.
Até que um belo dia, eu devia ter uns quarenta anos, li que os
cientistas haviam descoberto que febres muito altas, em especial as
elevadas febres infantis, causavam curiosas visões geométricas.
Portanto, aquilo que eu acreditava ser algo desgraçadamente único
e anômalo não passava de uma característica que trazemos de
fábrica, um subproduto do aquecimento extremo dos neurônios.
Como não se sentir asfixiada e em risco? Uma febre assim pode te
matar e seu corpo está te avisando. Extasiada, publiquei essa
descoberta num artigo no El País e meia dúzia de leitores me
escreveu dizendo ter vivido a mesma coisa. O que não apenas é
reconfortante e tranquilizador, como também é extraordinário:
quando nossa sopa química entra em ebulição, o cérebro cria
figuras geométricas perfeitas. Como se essa simetria de planos e
esse equilíbrio de linhas estivessem no coração do universo, na
região mais além daquilo que é nomeado. Como se o pobre Paul
Kammerer, da lei da serialidade, tivesse intuído algo verdadeiro.
Mas a coisa mais importante que a história dos pesadelos
geométricos me ensinou foi que todos somos iguais (verdade
número 1). Não importa o quão maluco você pareça: sempre há um
punhado de gente no mundo que sente, pensa e age como você.
Por exemplo: como disse no primeiro capítulo, também tenho uma
coisa chamada dermatilomania, que descobri por acaso
recentemente enquanto zanzava pela internet. É considerada um
transtorno obsessivo-compulsivo e consiste em beliscar ou
arranhar alguma parte do corpo até causar lesões. Pois bem, quase
2% da população compartilha dessa mania. E isso é muita gente.
Em algumas pessoas, chega a níveis graves e de deformações. No
meu caso é leve, não me preocupo nem um pouco e não pretendo
largar de jeito nenhum, porque é uma delícia. Eu arranco e
mordisco as pelezinhas das unhas das mãos, e garanto que achar
uma ponta de pele para puxar é bom demais. Nem sempre pratico
esse pelecídio com o mesmo furor. Há meses em que a mania
parece adormecida, enquanto em outras situações ela dispara, e
ainda não consegui elucidar se a fase alta corresponde a momentos
de ansiedade, estresse ou, pelo contrário, de tédio. Quando me
descontrolo, posso tirar sangue e causar pequenas feridas que me
incomodam por algumas horas (ardem bastante com o álcool em
gel da pandemia). Mas esse desconforto não chega a atrapalhar
meu vício. Minha mãe mordiscou os dedos a vida inteira, tenho
outros parentes e amigos que fazem isso, e estamos todos
radiantes.
“Foi descoberta uma relação entre a dermatilomania e o
aumento nos níveis de dopamina, envolvida no controle motor, no
sistema cerebral de recompensa e no desenvolvimento de vícios”,
dizem no site Psicología y Mente. Ou seja, aqui também nos
deparamos com as alterações da química sináptica. Entenda: essa é
uma busca detetivesca. Estou tentando seguir todas as pistas que
possam me levar ao entendimento de como funciona meu cérebro,
ou melhor, nosso cérebro, o daqueles 15% de gente mais criativa.
Sou como um Sherlock Holmes existencial à caça dos ingredientes
da tempestade perfeita que culmina na obra. E nota-se que os
neurotransmissores intervêm bastante; neurotransmissores um
tanto surrados, que faltam ou que sobram e que às vezes soçobram.
Tudo bem, nossas cabeças não são as mais serenas da Terra, mas
também não são tão ruins. Quero dizer que todos os especialistas
cujos livros consultei (neurologistas, psiquiatras e psicólogos)
sustentam que a criatividade não nasce da loucura, mas que as duas
condições revelam pontos de contato, coincidências. Vejo isso
como se fôssemos uma espécie de primos, assim como nós
humanos e os grandes símios somos parentes que descendemos de
um ancestral comum.
Voltando ao tema das semelhanças, devo dizer que, enquanto
preparava durante anos este livro, fui colecionando uma série de
coincidências muito literárias, peculiaridades que aparentemente
muitos de nós compartilhamos. Por exemplo, daria para dizer que
entre os romancistas abunda uma tendência à obsessão, o que é
compreensível: afinal, de que outra forma você vai perseverar por
anos a fio, com paciência de estalactite, na lenta ruminação de uma
história imaginária? Para não falar do perfeccionismo muitas vezes
patológico em que caímos, como explica minha mestre Ursula K.
Le Guin nestes deliciosos versos dignos de um conto de fadas:
Há algo
do tamanho de uma ervilha seca
que não escrevi.
Que não escrevi bem.
Não consigo dormir.

Mais importante ainda é nossa enorme insegurança. A


incapacidade de analisar serenamente o que fazemos. Ou, como
dizia uma desesperada Sylvia Plath, “a absoluta falta de critério
para julgar o que escrevo: não sei se é uma porcaria ou se é genial”.
Ela tem toda razão, me reconheço nesse ridículo vaivém entre
extremos. Quando terminei o rascunho de Lágrimas na chuva,
mandei-o a Elena Ramírez, minha brilhante editora da Seix Barral.
Sempre tenho dúvidas, mas naquela ocasião eu tinha muito mais.
Lágrimas na chuva não apenas era meu primeiro livro da
personagem Bruna Husky, ou seja, de ficção científica nua e crua,
como também, ao longo dos três anos da sua escrita, meu
companheiro descobriu que tinha um câncer terminal, lutou
estoicamente contra o tumor durante dez meses e, por fim,
faleceu. Comecei o romance na minha vida anterior, nos tempos
felizes de inocência, quando ainda não sabíamos que cairia sobre
nós o raio da destruição. Pelejei contra ele durante a terrível
travessia da doença e o terminei um ano depois da morte dele.
Todo esse conflito comprometeu minha relação com o texto e,
além disso, pela primeira vez em muito tempo, faltava o olhar
lúcido de Pablo, o melhor crítico do meu trabalho que já tive.
Então, eu me sentia muito perdida. Temia haver fracassado
completamente. “Aí vai o rascunho”, escrevi à minha editora.
“Acho que está uma merda. Falo sério, estou pensando em jogar no
lixo.” Três dias depois, Elena Ramírez me disse por telefone: “É
um romance maravilhoso, adorei!”. E imediatamente me enchi de
orgulho e pensei: “Que livro genial que eu escrevi!”. De uma hora
para outra, pela simples magia de uma única opinião, passei dentro
da minha cabeça do abismo mais sombrio à consagração. O deleite
dessa segurança hiperatrofiada durou apenas alguns dias, é claro:
logo voltou a rastejar dentro de mim a comichão da dúvida. Como
dizia Plath, é difícil ter, e principalmente manter, um critério claro
sobre o que você está fazendo.
A história da literatura nos mostra que ter muitos leitores ou
nenhum, ter ótimas críticas ou péssimas, não influi absolutamente
nada no que a posteridade possa pensar de você. E o fato de
sobreviver na memória pública e de alcançar essa posteridade nem
sequer é uma prova definitiva. Quero dizer que, emocionalmente
infantis como todos somos, tendemos a achar que o valor artístico
acaba sendo reconhecido cedo ou tarde, talvez de modo póstumo,
mas de maneira infalível, porque precisamos nos apegar a certezas
de ordem. Só que a vida é pura desordem, o caos mais insensato. E
estou convencida de que existem por aí outros Cervantes e outros
Shakespeares esquecidos (e umas quantas mulheres entre eles) que
jamais serão resgatados da desmemória. Resumindo: nada nem
ninguém pode nos garantir, de forma objetiva e mensurável, se
nossa obra é boa, mediana ou péssima.
Na sua autobiografia De minha vida: Poesia e verdade, Goethe
conta que, na infância, frequentava encontros dominicais com
outros garotos nos quais todos os participantes tinham de compor
seus próprios versos. E explica:

Nesses encontros me aconteceu algo singular […]. Não importa


como fossem, o fato é que eu sempre me via obrigado a
considerar meus próprios poemas os melhores, só que logo
percebi que meus concorrentes, que concebiam porcarias
muito insossas, estavam na mesma situação e não se julgavam
piores que eu. E o que me pareceu ainda mais suspeito: um bom
rapaz que, por sinal, gostava de mim, mesmo sendo totalmente
incapaz de realizar tais trabalhos e tendo suas rimas compostas
pelo instrutor, não apenas considerava seus versos os melhores
de todos, como estava absolutamente convencido de que ele
mesmo os escrevera […]. Dado que eu podia ver claramente
aquele equívoco e desatino, um dia comecei a me preocupar se
eu também não me encontraria na mesma situação; se aqueles
poemas não seriam realmente melhores que os meus e se não
podia ser que aqueles garotos me achassem, com razão, tão
alienado como eu os achava. Essa questão me inquietou em
grande medida e durante muito tempo, pois era totalmente
impossível para mim encontrar uma manifestação externa da
verdade.

Deixe-me corrigir o grande Goethe: inquietou-o, eu diria, durante


toda a sua vida. A dúvida corrosiva faz parte das pedras da nossa
bagagem.
E o ruim é que a insegurança extrema conduz ao silêncio: “O
pior inimigo da criatividade é a insegurança, a dúvida interna”,
dizia Plath, que às vezes sofria terríveis ataques de
autodepreciação. “O dia todo, ou dois dias, você fica largado
debaixo da mesa e ouve lágrimas, telefones tocam, servem chá com
o bule de estanho. Por que não ficar ali caído até apodrecer ou ser
jogado fora com o lixo, livro?”, anota agoniada em seu diário. E em
seu breve ensaio biográfico sobre Leonardo da Vinci, Freud explica
que o genial pintor tremia visivelmente quando começava a pintar;
que sua exigência e seu perfeccionismo eram tão grandes que o
levavam a uma insegurança quase aniquiladora, e que entre seus
contemporâneos já era famosa “a incapacidade de Leonardo de
terminar um quadro”. Por isso ele tem tão poucas obras. Quanta
fragilidade: vivemos na garupa do vento.
Isso de xingar a si mesmo em diferentes escalas de fúria, como
fazia Plath, é aparentemente mais uma daquelas geometrias
neuronais que muitos de nós, escritores, compartilhamos. A autora
Claire Legendre (Nice, 1979), que se confessa hipocondríaca, tem
um interessante livro sobre transtorno mental, Le Nénuphar et
l'araignée [O nenúfar e a aranha], no qual cita a palavra tcheca lítost,
que Milan Kundera define como a vergonha diante do espetáculo
da própria miséria. E acrescenta Claire: “Uma vergonha sem
gravidade mas que pode voltar à nossa mente de forma
intempestiva, por exemplo, quando estamos sentados
tranquilamente no sofá em frente à TV, e nos causar um tique
nervoso. Podemos até nos dar um tapa ao pensar na resposta que
não deveríamos ter dado, no gesto que não devíamos ter feito”.
Nunca cheguei a me estapear, mas a me amaldiçoar, com certeza.
Tenho sempre uma porção de palavrões na ponta da língua, que
funciona como um chicote automático quando algum mau
pensamento passa pela minha cabeça. E chamo de maus
pensamentos a lembrança de um momento em que me senti
atrapalhada, impostora e ridícula na frente de alguém. Porque a
lítost kunderiana é uma questão social; para experimentá-la, a
patacoada deve ter sido cometida em público. Me vem à cabeça a
imagem de uma situação assim (puras bobagens que eu vivo como
humilhações horrendas), e minha língua dá uma chicotada e me
castiga. Dependendo de como estou nervosa, do meu nível de
tensão e doideira, esse chicote verbal pode ser em voz alta,
inclusive com um grito, ou seja, sou uma senhora que às vezes vai
gritando palavrões pela rua, como uma verdadeira louca oficial. Um
dia topei com um sujeito mal-encarado de uns trinta anos,
corpulento, atarracado, de roupa preta e com uma única
sobrancelha cruzando a testa, e eu, absorta nos meus pequenos
tormentos, disse em voz baixa: que imbecil! O homem esteve
prestes a me bater, achando que eu me dirigia a ele. Desculpe, falei
desesperada, não era para você. Por que seria? Eu estava xingando
a mim mesma, às vezes acontece quando me lembro de alguma
coisa que fiz de errado. E o mais interessante é que, quando
consegui me explicar (tive de falar bem rápido, porque ele já tinha
me agarrado pelos braços e estava me sacudindo), o sujeito parou
como se tivesse sido desligado, o que me fez intuir que ele
também trazia sua lítost. Enfim, sou muito grata à invenção do
telefone celular, pois me permite passar mais inadvertida quando
saio falando sozinha pela rua.
Viciados em intensidade

Ontem voltei do México e hoje me sentei à mesa de trabalho e abri


este arquivo com um suspiro de alívio. Passo metade da vida
dentro de uma aeronave e geralmente não sinto medo de voar, mas
toda vez que tenho de fazer uma viagem enquanto estou
escrevendo um livro, não posso evitar certa aflição de que o avião
caia e a obra permaneça inacabada. Comentei isso num voo
transatlântico com um colega escritor, que arregalou os olhos
espantado e respondeu, baixando um pouco a voz, que com ele
acontecia a mesma coisa, mas que nunca se atrevera a confessar
porque achava aquilo vaidoso demais. Então foi minha vez de ficar
surpresa, pois minha preocupação não é por ter medo de que o
mundo vá perder um texto magistral, mas porque costumo
acreditar que o romance que estou escrevendo é o mais bem-
sucedido de todos os meus, e a gente sempre aspira ser amada e
oferecer a melhor versão possível de si mesma. Aliás, me parece
que a maioria de nós, autores, acha que nossa obra é o melhor que
somos, e que às vezes é ainda preferível àquilo que somos. Por isso
as críticas negativas doem, destroem e derrotam tanto: se não
gostam dos meus livros, como diabos vão gostar de mim?
É que toda a nossa existência gira em torno do punhado de
palavras que vamos pregando na tela do computador. Suponho que
o mesmo aconteça com os músicos, escultores ou pintores nos
seus respectivos trabalhos. Já falamos de como a criatividade salva
da angústia, da dissociação, da amargura. Mas o papel da obra vai
muito além. Defendo que a escrita nos permite viver, quer dizer,
ela é o veículo por meio do qual nos relacionamos com o mundo e
com as coisas. Fernando Pessoa diz isso de um jeito formidável:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.

É possível que, ao nos dissociarmos tão profundamente na infância


para nos defender do trauma, tenhamos ficado com certa
dificuldade para experienciar a realidade de forma direta e
completa. E também pode ser que os neurotransmissores
revoltosos acrescentem confusão, vibrações resvaladiças e uma
incômoda distância em relação às coisas. Seja como for, acho que
todos nós escritores temos certa propensão a viver a vida
vicariamente (uns mais que outros, claro), através das histórias que
inventamos. Como se, para poder sentir deveras a dor, para torná-
la nossa, como diz Pessoa, tivéssemos de contá-la a nós mesmos
atribuída a um personagem, ou alojada (e alijada) num verso. E
onde eu digo dor, digo qualquer outra emoção: saudade, desejo,
amor, desespero, inocência, beleza. A dinamarquesa Tove
Ditlevsen diz isso muito bem: “Me atormenta ver que com o
tempo me tornei incapaz de nutrir sentimentos sinceros e sempre
tenho de fingi-los, imitando as reações dos outros. É como se tudo
tivesse de fazer um desvio antes de me afetar”.
Imagino constantemente histórias na minha cabeça, histórias
que nem precisam necessariamente acabar num livro, e assim
consigo tornar meus os sentimentos que descrevo. Acho que, sem
a ajuda ortopédica da obra, a imensa maioria dos escritores não
conseguiria viver plenamente. “Não posso viver só pela vida, mas
sim pelas palavras que detêm a torrente”, dizia Sylvia Plath. E o
grande Emmanuel Carrère explica isso em detalhes:
Um momento tranquilo como esse, um momento que poderia
ser de contemplação, um momento que eu poderia
simplesmente viver, não consigo nunca vivê-lo realmente,
nunca estar presente nele, apenas presente, porque
imediatamente se manifesta a necessidade de traduzi-lo em
palavras. Não tenho acesso direto à experiência, sempre preciso
cobri-la com palavras.

Sim, senhor, é exatamente assim. Comigo acontece a mesma coisa.


Talvez não chegue a botar essas palavras no papel, mas pelo menos
tenho de redigi-las na cabeça para que minha vida funcione.
Digamos que a vida escrita nos parece a vida mais autêntica: “No
papel, tudo adquire uma dimensão mais real”, diz Héctor Abad. E
Henri Michaux: “Nunca estamos tão certos da realidade como
quando é ilusão”. E para acabar com essa orgia de citações,
incluirei uma frase certeira do francês Christian Bobin, que explica
essa viagem de ida e volta que nos vemos obrigados a fazer com as
emoções para conseguir obtê-las (o fingidor que finge sua
verdadeira dor, você sabe a que me refiro): “Meu modo de me unir
ao mundo é me separar dele para escrevê-lo”.
Portanto, já podemos acrescentar outro ingrediente à
tempestade perfeita: uma incapacidade maior ou menor de apenas
viver, direta e simplesmente, como o cachorro que se deita sob um
raio de sol e deixa que o calor se espalhe com lentidão por cada um
dos seus pelos, da ponta à raiz, e dali até a pele, e ainda mais
fundo, à camada de gordura e à carne, até inundar seu coração com
um cálido regozijo. O.k., imagino que a plenitude do cachorro seja
uma coisa difícil de alcançar para todos os humanos, mas é
provável que se mostre um pouco mais difícil para nós.
E existe algo ainda pior associado a tudo isso. Ou talvez melhor,
depende de como encaramos a coisa. Um dia, numa das
temporadas em que estive fazendo análise, falei para o terapeuta
sobre os momentos oceânicos. Não sei se você sabe a que estou me
referindo. O termo foi inventado pelo escritor francês Romain
Rolland (1866-1944), hoje bastante esquecido, embora tenha
ganhado o Nobel de literatura em 1915. Rolland, pacifista, idealista,
amante das filosofias orientais e homem entregue a uma intensa
busca espiritual, batizou de “momento oceânico” aqueles instantes
de aguda e transcendente intensidade, quando seu eu se apaga e a
pele, fronteira do seu ser, se dissipa, de modo que você parece
sentir as células do seu corpo se expandirem e se fundirem com as
outras partículas do universo. Então, nada separa sua consciência
do restante do Todo. Você é o sol que arde no horizonte e o élitro
queratinoso de um simples grilo. Você é, como dizia Rolland, a
gota d'água que se une ao oceano. Esses instantes místicos, que
podem ser mais ou menos agudos, que frequentemente estão
relacionados à observação da natureza mas que às vezes também
surgem de uma imagem, de uma música ou de um impulso de
avassaladora empatia por algum ser vivo, são uma noz
incandescente de júbilo e beleza. Não sei quanto podem durar,
sem dúvida bem pouco, embora seja algo difícil de definir porque a
percepção temporal também é alterada. Em todo caso, durante
alguns segundos você se sente à beira da revelação, prestes a
entender o segredo do mundo. E a morte bate em retirada, porque,
enquanto está fora de si, você é eterno. Os japoneses chamam de
satori esse instante de não mente e de presença total. O satori, que
significa “compreensão”, é a iluminação no zen-budismo. Com
certeza você sabe do que estou falando. Com certeza já sentiu isso
alguma vez.
Agora, quantas vezes viveu isso? Com que frequência você
voa?
Naquela sessão com o terapeuta, contei a ele de passagem, com
perfeita inocência, quer dizer, com plena ignorância, que isso me
acontece com bastante frequência. Eu achava que era uma
experiência comum entre os humanos; que todos nós passávamos
por essa explosão de sentido e de eternidade de vez em quando.
Como é natural, tenho fases melhores e piores, como tudo na vida.
Nas melhores (que costumam coincidir com as temporadas em que
estou escrevendo com gosto algum livro), posso me sentir um
peixinho do cardume da humanidade duas ou três vezes por
semana, até mais. Nas piores, talvez passe alguns meses de apatia.
Nunca muitos, me parece. Foi isso que eu disse com toda a
naturalidade ao terapeuta, mas, pelo olhar estranho e meio torto
daquele homem, imediatamente compreendi que algo não batia.
Não, respondeu ele. A maioria das pessoas não experiencia esses
arroubos de maneira habitual. Pois bem, eis uma afirmação que, se
pensarmos um pouco, não é totalmente confiável. Porque, como
diabos aquele psiquiatra sabia que a maior parte dos humanos não
vive com regularidade esses satoris? Deduzo que com ele não
acontecia, mas não acho que essa extrapolação geral estivesse
muito bem fundamentada.
Contudo, e apesar da imprecisão dos dados, suponho que seja
provável que esse impulso místico repetitivo, essa fome feroz de
intensidade seja muito mais comum na nossa cabeça mal cabeada
do que no restante dos indivíduos. A maioria dos especialistas
cujos livros li insiste não apenas na energia excepcional das
pessoas que produzem uma obra, como também no seu
arrebatamento, na sua necessidade veemente de experimentar
emoções pungentes. Não nos conformamos com o que é morno:
“Não quero ir/ nada mais/ que até o fundo”, dizia Alejandra
Pizarnik (outra suicida). E a psicóloga Lola López Mondéjar
também fala desse impulso total, citando o filósofo Tzvetan
Todorov, que se considerava um “aventureiro do absoluto”.
Preste muita atenção no que digo, porque tudo isso constitui
um elemento essencial, um ingrediente básico, talvez o olho do
furação da tempestade perfeita. Estamos chegando ao coração do
todo. Minha teoria é de que somos viciados em intensidade. Já
falamos antes que temos dificuldade de viver a vida por si só; que a
realidade se solta dos nossos olhos e mãos como um cenário teatral
barato e mal colado nos bastidores de madeira do palco. Diante
dessa rotina tão carente de brilho e de autenticidade, nos vemos
obrigados a recorrer a uma dose de transcendência: “Agora mesmo
eu dizia a Alicia que me sentia mal porque faz muito tempo que
não me conecto com a eternidade”, anotou no seu diário o
uruguaio Mario Levrero (1940-2004). O belga-suíço Henri Roorda
(1870-1925), que assinava com o pseudônimo Balthasar, autor de
um livrinho excepcional intitulado Mon Suicide [Meu suicídio],
escrito pouco antes de se matar, tinha isto muito claro:

Preciso viver inebriado: é necessário que na minha vida haja


frequentes momentos deslumbrantes. A poesia e a música
podem proporcioná-los para mim. Também me exalto quando
penso no trabalho que vou empreender. Encararíamos a tarefa
se não nos sentíssemos, antes de tudo, emocionados pela beleza
que vamos criar? […] Preciso sentir, no futuro imediato,
momentos de exaltação e alegria.

E mais adiante ele chega a esta assustadora conclusão, que me


parece de grande lucidez: “Eu tinha uma ideia completamente
falsa da vida. Dava muita importância a tudo aquilo que é
excepcional: o entusiasmo, a exaltação, o êxtase […]. O homem
normal é aquele que sabe vegetar”. Quer dizer: o homem que sabe
vegetar, que é capaz de olhar para o cenário com uma tranquilidade
cega sem ver que está pintado, não se suicida. Mais para a frente
voltaremos a falar do incrível Henri Roorda.
Precisamos fomentar em nós certo nível de euforia, porque a
vida não nos é suficiente: “A literatura é a prova de que a vida não
basta”, dizia Pessoa. Também por isso temos esse temperamento
tão propenso ao vício, recorremos mais facilmente ao álcool e a
outras drogas. Walker Percy, romancista e também médico, se
perguntava, depois de apontar a dificuldade de viver sem
exaltação: “O que fez Faulkner depois de escrever a última frase de
O som e a fúria? Embebedar-se durante uma semana”. Por outro
lado, a obra e os momentos oceânicos se entrelaçam e se
alimentam entre si, nascidos da mesma necessidade de se
convencer de que a vida vale a pena ser vivida. Ou seja, originam-
se no mesmo vazio. “Eu me dedico a escrever”, disse Patricia
Highsmith, “devido ao tédio causado em mim pela realidade e pela
monotonia da rotina e dos objetos que me cercam.” E Bukowski:
“Quando deixamos de escrever, o que nos resta? A rotina. Gestos
mecânicos. Pensamentos ocos. Não suporto a monotonia”.
E assim seguimos pelo mundo, à caça dessas pequenas
borbulhas de vida extraordinária. Deixe-me incluir aqui a
celebração de dois satoris. O primeiro é um fragmento de
Autoportrait au radiateur [Autorretrato com radiador], um texto
autobiográfico de Christian Bobin:

Ontem à tarde eu me apaixonei por uma árvore. Seus dias


transcorrem às margens de uma estrada secundária, a uns dez
quilômetros daqui. Sua folhagem domina uma parte da estrada.
Ao cruzar a sombra que ela dá, ergui a cabeça, olhei seus galhos
como os olhos se dirigem instintivamente à abóbada ao entrar
numa igreja. Sua sombra era mais aconchegante que a das
igrejas. […] A aparição dessa árvore fez surgir em mim um
silêncio de absoluta beleza. Por alguns instantes eu não tinha
mais nada a pensar, a dizer, a escrever e inclusive, por que não,
mais nada a viver. Eu me elevara alguns metros do chão,
carregado como uma criança em braços verde-escuros,
iluminados pelas sardas do sol. Isso durou segundos e esses
segundos foram longos, tão longos que ainda duram um dia
depois. […] O que aconteceu ontem me preencheu.

E agora este belo poema de Rafael Guillén, intitulado “Ser um


instante”:
A certeza chega como um deslumbramento.
Existe por instantes de luz. Ou de trevas.
O resto são as horas, os panos de fundo,
o cinza para contrastar. O resto é o nada.

É um momento. O corpo desabita-se e deixa


de ser a transparência com que vê a si mesmo.
Incorpora-se às coisas; faz-se matéria estranha
e podemos senti-lo de um lugar remoto.

Eu me lembro de um instante em que Paris caía


sobre mim com o peso de uma estrela apagada.
Me lembro daquela chuva total. Paris é triste.
Tudo que é belo é triste enquanto existir o tempo.

Viver é parar com o pé levantado,


é perder um degrau, é ganhar um segundo.
Quando se olha um rio passar, não se vê a água.
Viver é ver a água; deter seu relevo.

Minha errância apoiava-se no parapeito de ferro


da Pont des Arts. De repente, a vida cintilou.
Chovia sobre o Sena, e a água, cravejada,
fez-se pedra, cinza de endurecida lava.

Nada altera sua ordem. É só uma pulsação


do ser que, inesperadamente, se torna perceptível.
E dá para sentir por dentro a solidez do ferro,
e somos o próprio olhar que nos atravessa.

A lucidez escolhe momentos imprevistos.


Como quando, na sala de projeção, uma falha
interrompe a ação, deixa uma foto fixa.
Logo o ritmo segue. E segue o afundamento.

A pesada silhueta do Louvre não cabia


no espaço. Estava instalada em alguma
parte de mim, era uma fração daquela consciência total
que fendia com seu raio a certeza absoluta.

Ser um instante. Ver-se imerso entre outras coisas


que são. Depois não há nada. Depois o universo
prossegue no vazio sua morte giratória.
Mas se detém por um momento, vivendo.

Eu me lembro que chovia sobre Paris. As árvores


nas margens também eram eternas. Num segundo,
as águas retomaram seu curso e eu, de novo,
olhava-as sem vê-las, desaparecerem sob a ponte.

Você deve ter notado que estamos falando dos momentos


oceânicos da mesma forma como falamos de uma paixão
sentimental, com adoração e plena entrega (não à toa Bobin conta
que se apaixonou pela árvore). Eu diria que, sendo como somos
viciados em intensidade, a maioria de nós escritores também tem
um coração facilmente inflamável. Bem, somos propensos à
paixão, a cair transidos e flechados por uns e outras. Mais que isso:
muitos de nós equiparamos de algum modo o amor e a obra: “Só
conheço duas formas de dar sentido à minha vida ou de acreditar
que ela tem um: amar alguém e escrever livros”, diz Claire
Legendre. Sylvia Plath foi terrivelmente apaixonada ao longo de
toda a sua curta vida. Aliás, diz a lenda que ela cometeu suicídio
por amor, depois que seu marido, o poeta Ted Hughes, a
abandonara (não acho que seja totalmente verdade: falaremos disso
mais adiante). O colombiano Héctor Abad também parece ter um
coração piromaníaco: “Acho que me apaixono assim, tão súbita e
desesperadamente, apenas como uma forma de ter combustível
interno para poder escrever”. E Emmanuel Carrère diz a mesma
coisa, embora reduzindo-a com prudência defensiva à esfera
carnal: “Se estou escrevendo um livro […] esses devem ser ao lado
do sexo os pontos mais altos da minha vida, quando penso que vale
a pena existir sobre a terra”.
Concordo plenamente. Meu livro A louca da casa, publicado em
2003, começa exatamente com estas palavras: “Estou acostumada
a organizar as lembranças da minha vida em torno de um rol de
namorados e de livros. Os diversos relacionamentos que tive e as
obras que publiquei são as referências que marcam minha
memória, transformando o ruído informe do tempo numa coisa
ordenada”. Ou, o que dá no mesmo, transmutando o cinza chapado
da existência numa desordenada fileira de pérolas de luz. Sempre
encontrei um paralelismo perfeito, uma semelhança essencial
entre a escrita e os amores tórridos. De saída, ambas as
experiências exigem uma entrega absoluta ao imaginário. Não é
nenhuma novidade dizer que, ao nos apaixonarmos loucamente
por alguém, não estamos vendo a realidade desse alguém, apenas o
usamos como cabide para depositar sobre ele ou ela o ectoplasma
do amante ideal. Santo Agostinho chamava isso de amar o amor.
Porque nós os apaixonados não amamos as pessoas, mas a
excitação, a maravilhosa euforia provocada pelo fato de
acreditarmos que estamos apaixonados. É por isso que o típico
apaixonado repete várias vezes o mesmo esquema: joga seu
modelo ideal de adoração em cima do primeiro que aparece e o
sustenta pedalando com a imaginação a toda a velocidade por
alguns meses, até que a realidade vai desgastando e deteriorando a
ilusão. Nesse momento, desligamos o refletor com o qual
projetávamos no outro ou na outra o slide do amado perfeito e
tiramos o time de campo, quer dizer, vamos embora com a sede de
intensidade intacta e a síndrome de abstinência uivando na barriga,
em busca de outro manequim de carne e osso sobre o qual inventar
o homem ou a mulher dos nossos sonhos.
Se você olhar bem, é muito parecido com a maneira como
inventamos os personagens dos nossos livros.
Escrever um romance, acho que já disse isso antes, é uma longa
viagem. No meu caso, posso passar dois ou três anos pensando,
desenvolvendo e redigindo o texto. Durante todo esse tempo, você
vive num desdobramento: de um lado está sua vida cotidiana, a
cronologia compartilhada com as outras pessoas; do outro está a
história do romance, que pode transcorrer em outra época, no
século XII ou no XXII, ou talvez se estenda ao longo de trinta ou
quarenta anos do protagonista. No início da redação de um texto, a
parte de cá, a vida tangível, tem um peso maior; mas, à medida que
a história avança, a vida imaginária vai adquirindo cada vez mais
relevância, a ponto de, por vezes, você chegar a sentir que a
existência é mais real do outro lado, e só voltar a este mundo por
motivos puramente práticos, como comer e dormir. Além disso,
cada romance tem sua temperatura emocional. Você pode estar
escrevendo uma história triste ou luminosa, esperançosa ou
assustadora. Durante esses dois ou três anos, sua vida terrena
passa por diversos altos e baixos: você tem dor de dente, ganha um
prêmio, é despedido do trabalho. Mas, sempre que entra no
romance, você entra também nos sentimentos predominantes da
história que está escrevendo. E essa vida ficcional é tão poderosa
que te permite continuar navegando, bem ou mal, por quase todas
as circunstâncias da sua vida. Já contei que levei adiante o primeiro
romance de Bruna Husky apesar do golpe duro da doença e morte
do meu companheiro. Pois bem: o que nunca consegui fazer é
continuar escrevendo quando estou apaixonada.
Já me aconteceu algumas vezes. Estar trabalhando num
romance e de repente, zás, cair rendida aos pés de alguém. Um
daqueles amores fulminantes, de cérebro em chamas e coração
derretido (antes era mais assim: estou tentando me livrar, mas é
difícil). E essa paixão me arrancava violentamente do meu livro.
Não apenas me impedia de escrever: eu nem sequer podia pensar
na história. Acho que toda a minha capacidade criativa se
concentrava no turbilhão sentimental. Minha imaginação ficava
sequestrada pela necessidade de inventar o amado. Felizmente, os
amores eternos duram de dois a três meses. Passado esse tempo,
eu podia voltar ao romance como quem volta de uma longa
viagem.
E há mais uma coisa: o amor ardente não apenas está associado
profundamente com a criação, como também com a loucura. A
paixão é uma espécie de alienação, é sair de si mesma e assomar-se
ao espaço sideral da sanidade, onde há cometas fulgurantes, mas
também uma escuridão aterradora. A possibilidade de enlouquecer
de amor é um lugar-comum na sabedoria popular, e certamente
uma experiência pessoal bastante corriqueira. Eu mesma senti por
vezes que uma paixão abrasadora me punha à beira de um ventoso
penhasco, e não por medo de que o amado não me quisesse, mas
pelo terror de descobrir que na verdade eu é que não queria o
amado e tudo era, de novo, pura artimanha. “Evito me apaixonar
porque isso pode me desequilibrar muito”, diz Eva Meijer (1980)
no livro De grenzen van mijn taal [Os limites da minha linguagem].
E a canadense Nelly Arcan (1973-2009), no seu romance
autobiográfico Folle [Louca], outro daqueles textos escritos à beira
da insanidade, compara o amor fracassado com a demência. Nelly
ficou famosa com seu primeiro livro, Puta, baseado na sua
experiência como prostituta. Quando fez quinze anos, prometeu a
si mesma se suicidar quando chegasse aos trinta. Para isso, cravou
numa parede de casa “um prego enorme” para se enforcar — o
que, paradoxalmente, talvez a tenha ajudado a superar a data
fatídica (“a ideia do suicídio é um consolo poderoso: com ela
podemos suportar mais de uma noite ruim”, disse Nietzsche). De
qualquer forma, sua perseguidora acabou capturando-a: Nelly se
enforcou em 2009, aos 36 anos. Eis aqui, portanto, uma tríade
alucinatória que costuma andar de mãos dadas: criatividade,
tendência ao desequilíbrio mental, amores torrefatos.
Há muitos anos, quase em outra vida, estive de férias nas ilhas
do Rosario, no Caribe. Um amigo da amiga com quem eu estava
viajando nos levou para um passeio no seu barco. Saímos mar
adentro, em águas infestadas de tubarões, e ele ancorou no meio
do nada. Não se avistava terra de nenhum lado, mas estávamos em
cima de um arrecife de coral, de modo que dava para ver o fundo
com transparência cristalina a poucos metros de profundidade. O
anfitrião insistiu que olhássemos o arrecife com snorkel: era
totalmente seguro, explicou; com tão pouca profundidade, os
tubarões não entravam. Eu nunca havia mergulhado, não nado
muito bem e o oceano me dá medo, mas o lugar parecia tão lindo e
a oportunidade tão única que não quis desperdiçá-la. Pulei na água
com o cilindro e durante cinco ou dez minutos aquilo foi o paraíso:
danças deslumbrantes de peixes multicoloridos, sedosas melenas
de anêmonas-do-mar, reflexos de sol no mar como diamantes
partidos. Eu estava feliz da vida contemplando aquele esplendor
quando dei uma braçada e virei à direita, e de repente me
encontrei sobre um abismo de uma escuridão absoluta, sobre um
buraco no arrecife que se abria à vertiginosa profundidade do
fundo do mar. Primeiro, senti que estava caindo, que o poço me
engolia, que não havia água capaz de me amparar; e então imaginei
os tubarões saindo com as bocarras abertas daquele inferno gelado
e abissal. Comecei a chutar e dar braçadas e engolir água; consegui
chegar ao barco a duras penas, toda esbodegada, com as mãos e as
pernas destruídas pelas lâminas do coral, pingando sangue.
Nunca mais mergulhei e meu medo do mar piorou, mas o que
ficou de mais importante daquela experiência foi uma poderosa
imagem simbólica do buraco negro da vida. A realidade tem para
mim essa mesma e duvidosa consistência. Às vezes parece ser um
arrecife adorável e belo, mas, por baixo, brotam trevas sem forma
nem sentido e habitadas por monstros.
Ou também, para não sermos tão sinistros: por acaso você já viu
durante o dia uma boate em que se divertiu muito na noite
anterior? Na escuridão, com as luzes estroboscópicas e os neons e
os metais brilhando sob os focos, com a música retumbando, as
poltronas de veludo macio e os copos cheios de bebidas furta-cor,
o lugar parece formidável. Mas, bem, digamos que você esqueceu
os óculos e precisa voltar na manhã seguinte para buscá-los. Uma
lâmpada mortiça ilumina um espaço caído, sujo e miserável. As
tábuas do assoalho estão lascadas e cheias de manchas, as paredes
suam umidades e o estofado dos sofás revela tantas camadas de
gosma pretérita que você fica até admirada de ter se sentado
naquilo e não sair dali grávida. Pois bem, esse é o cenário a que eu
me referia. E essa é a desanimadora realidade intuída por trás dele.
A existência é uma boate barata vista à luz do dia. E assim, da
mesma forma que o delírio do psicótico é uma defesa da sua
mente, que se esforça para dar sentido a um mundo
incompreensível, os romances são delírios controlados para tentar
sustentar uma realidade precária demais.
Repito: algo falha na cabeça dessa porcentagem de pessoas mais
criativas; algo nos impede de acreditar piamente na ilusão da
“normalidade”. Já dizia Calderón de la Barca: a vida é uma quimera,
um frenesi. Uma fina camada decorativa que se desfaz com
facilidade diante dos nossos olhos, nos deixando ver com
demasiada frequência o veludo manchado do sofá, o horror do
abismo marinho. “Às vezes o sentimento de total inutilidade da
minha vida ressoa como um trovão dentro de mim”, dizia Virginia
Woolf de maneira arrebatadora. E Eva Meijer: “Trazemos a
escuridão em nós. A morte já está no corpo enquanto vivemos.
Somos seres transitórios”. Penso que a maioria dos humanos não
está o tempo todo dando voltas em torno do mesmo buraco; não se
questiona obsessivamente sobre o sentido da vida, nem sobre a
inevitável mortalidade, nem sobre o absurdo que é tudo isso. Não
habita os confins da escorregadia ilusão calderoniana. Mas nós,
sim. Nós não acreditamos totalmente na fiabilidade e na
continuidade das coisas. Ora, eu mesma saí da realidade! Nas
minhas crises de pânico, estive do outro lado. No abismo cheio de
tubarões. No nada sombrio. “O coração, se pudesse pensar,
pararia”, disse Pessoa. De fato, se o coração chegasse a
experimentar aquele mesmo trovão de vacuidade que às vezes
ressoava na cabeça de Virginia, não poderia continuar bombeando
sangue.
Por isso somos incansáveis caçadores do sublime. Por isso
escrevemos e pintamos, esculpimos e compomos, para roubar do
sol um tiquinho do seu fogo. Perseguimos satoris e amores
desenfreados para que o brilho do extraordinário cegue nossos
olhos e nos permita ignorar a escuridão. Por isso também se dá um
fenômeno desconcertante para muitos especialistas: muitas vezes,
os loucos diagnosticados não querem deixar de estar loucos. Ou,
no mínimo, sentem que ao serem curados perdem alguma coisa.
“Uma quantidade surpreendente de pessoas que padecem do que
acreditamos ser um transtorno preferiria não suprimir esse aspecto
da sua personalidade. A consciência de si mesmos chega a ser tão
intensa que é difícil para eles renunciar inclusive àquelas
circunstâncias que os fazem sofrer”, anota o neurocientista Eric
Kandel. E cita, como exemplo, as palavras de Erin McKinney, uma
mulher autista. “Não há dúvida de que o autismo complica minha
vida, mas também a torna mais bonita. Quando tudo é mais
intenso, o cotidiano, o prosaico, o típico, o normal… tudo isso
adquire relevância.” Já contei neste livro que John Nash, o
matemático que superou um transtorno esquizofrênico e ganhou
um Nobel, sentia falta da intensidade dos seus delírios. O mesmo
acontecia com Alda Merini, a grande poeta italiana que vivia
entrando e saindo de manicômios. “Sempre escrevi como num
estado de sonambulismo. A saúde mental é uma lavagem cerebral
que apaga as coisas que lhe são mais caras.” Mas é Kate Millett, a
combativa e reivindicadora Kate Millett, aquela que parou de
tomar lítio e teve um surto maníaco e foi internada à força, quem
reivindica mais respeito pela demência: “E se houvesse algo do
outro lado da loucura? Se, ao cruzar essa linha, houvesse certa
compreensão, uma sabedoria especial? Não se lembra das vezes
que você disse para si, que jurou que nunca esqueceria o que tinha
visto e aprendido, que era valioso o bastante para justificar seu
sofrimento?”. Eu diria que ela tem sua parte de razão. Não à toa, na
Antiguidade, os loucos eram considerados videntes, indivíduos
capazes de observar a nudez do mundo por baixo da farsa das
coisas: os egípcios acreditavam que tinham uma relação
privilegiada com os deuses, e em grego clássico o profeta era
chamado de mantis, uma palavra supostamente associada à mania
(loucura, êxtase) e Mainás (as mênades, ninfas que criaram
Dionísio e depois foram possuídas pelo deus, que introduziu na
cabeça delas uma loucura mística).
Como dizia Rafael Guillén no poema que citei antes, “existe
por instantes de luz. Ou de trevas”. O fulgor e o terror andam de
mãos dadas, e às vezes é a sanidade que inspira mais medo.
“Tornei-me insano, com longos intervalos de uma horrível
sanidade”, escreveu Edgar Allan Poe. E Christian Bobin:
“Definitivamente não gosto da sanidade. Ela imita demais a morte.
Prefiro a loucura. Não aquela que se sofre, mas aquela com que se
dança”.
Era isso o que acontecia com dom Quixote — que é, entre
outras coisas, uma alegoria da criação artística. Dom Quixote não
suporta a palidez e o vazio da existência, por isso a inventa. Faz
mais que escrever um romance: constrói um livro de cavalarias
com sua própria vida. Arde de transcendência, de amor ao
sublime, ao absoluto; e também ama a imaginária Dulcineia, é
claro: já dissemos que a paixão constitui, ao lado da criatividade e
da loucura, uma tríade fantasmagórica. Por isso, quando se apaga a
luz que iluminava os olhos de dom Quixote e lhe impedia de notar
o descolorido da realidade, ele não quer, ou não pode, continuar
vivendo. Ou exaltação ou morte: eis um dilema ao qual alguns
sucumbem (falaremos disso depois). Somos viciados em
intensidade para tentar não ver as órbitas vazias da caveira.
Verdadeiras verdades mentirosas

Acabo de escrever um longo capítulo tentando explicar que nós, a


lamentável e magnífica família dos nervosos, temos mais
dificuldade de confiar na estabilidade do mundo, porém depois
comecei a refletir sobre isso e cheguei à conclusão de que todos os
seres humanos, incluindo aqueles que jamais pensam na sua
própria mortalidade ou em trevas semelhantes, sentem um medo
inconsciente de que o cenário da vida desmorone. Isso fica
evidente em como quase todo mundo é suscetível na hora de
exigir que as coisas sejam verdadeiras, dando à palavra verdade um
sentido oficial. A maioria das pessoas precisa que a realidade seja,
por assim dizer, totalmente real, cem por cento, sem sombra de
equívoco nem de dúvida. A incerteza, enfim, gera em muitos
indivíduos uma resposta agressiva. Por isso os impostores são
recebidos com sonoras e violentas vaias quando suas legítimas
identidades são expostas, como aconteceu com JT LeRoy, aquele
suposto garoto de programa, drogado e filho de prostituta que se
revelou ser Laura Albert, uma jovem tão acabada quanto o
personagem que ela inventara, o que não impediu que o público a
massacrasse.
A fome de uma realidade sólida e tangível é algo tão difundido
que muitas pessoas, mesmo sabendo que estão lendo uma ficção,
tendem a achar que aquilo que acontece num romance aconteceu
com o escritor. Já disse que meu livro A filha do canibal é
protagonizado por uma mulher, Lucía, que é muito baixa de
estatura, a ponto de ter que se vestir na seção infantil das lojas de
departamentos. Pois bem, mais de uma vez fui a um evento para
falar sobre esse romance e alguns dos presentes exclamaram com
decepcionada surpresa: “Mas você não é tão baixinha!”. Essa
identificação dos avatares narrativos com a biografia do autor
costuma ser maior, me parece, quando a obra é escrita por uma
mulher, mas também acontece com os homens. Há um memorável
prólogo que Vladimir Nabokov fez para uma nova edição do seu
romance Lolita dois ou três anos após a primeira publicação. O
escritor explicava que, durante aquele tempo, recebera inúmeras
cartas ofensivas o recriminando por ter abusado sexualmente de
uma menina. Nabokov contava tudo isso bastante indignado,
porém o mais hilário é que o que realmente o tirava do sério não
era ser confundido com um pedófilo, e sim que alguém pudesse
ter acreditado que aquela sofisticadíssima e magistral construção
literária fosse simplesmente o diário de um tarado. Aliás, aproveito
a oportunidade para dizer que não, Lolita não é uma obra a favor da
pedofilia. Pelo contrário: nas páginas finais, o autor te espezinha e
acaba com você por não ter sido mais crítico com o personagem.
Na verdade, estudos biográficos recentes sustentam que Nabokov
sofrera abusos na infância, e que vem dali seu interesse pelo tema.
Seja como for, é um romance maravilhoso.
Como não confio nem um pouco na realidade e considero o
mundo uma farsa, nos meus romances gosto de brincar com a
ambiguidade, com os limites escorregadios entre o verdadeiro e o
imaginário, com os estratos de sombra que nos rodeiam. E devo
dizer que, para alguns leitores, essa imprecisão é perturbadora ou
até mesmo irritante. Em A louca da casa, por exemplo, conto três
vezes a mesma história de um jeito diferente, e recebi inúmeras
cartas nas quais ou me comunicam que há uma errata no livro, ou
me perguntam imperiosamente qual é a versão autêntica
(nenhuma). Algo mais radical aconteceu com La carne, em que
compilo várias histórias de escritores malditos, todas reais, salvo
uma autora que invento. Pois bem, um leitor me acusou a respeito
nas redes, dizendo que se sentia logrado. Que tinha engolido
aquilo ingenuamente e foi procurar no Google e o personagem não
existia. Mas, cara, é um romance, respondi eu, me sentindo no
fundo lisonjeada pela sua credulidade. É uma mentira, replicou ele,
indignado. Não consegui apaziguar sua fúria, e lamento: suponho
que toquei em algum ponto sensível. Peço desculpas se ficou
magoado. Por outro lado, o incidente me fez refletir não apenas
sobre a famosa verdade das mentiras literárias (o essencial só pode
ser contado por meio de metáforas, lendas, mitos e ficções), como
também sobre as muitas mentiras que compõem aquilo que
chamamos de verdade. Nós humanos somos pura narração, somos
palavras em busca de sentido. Epiteto dizia, com razão, que o que
afeta o ser humano não é o que lhe acontece, mas o que se conta
do que lhe acontece. De modo que, se você muda o relato, muda a
vida, como demonstram as inúmeras terapias que, como a
psicanálise clássica, se baseiam na construção de uma nova
narrativa pessoal. Isso para não falar da memória, que é pura
fantasia, uma história que evolui com os anos. Somos todos
romancistas, escritores de um único livro, o da nossa existência. E
ainda bem que podemos lançar mão das mentiras para dar certa
aparência de ordem e destino a esse caos, ou então a vida seria uma
verdade inabitável.
E agora deixe-me confessar algo: neste livro que você está lendo
agora também há ficção. Não nas citações, não nos dados, não
naqueles detalhes biográficos em que sustento minhas teorias.
Mas, sim, há certos ingredientes que são imaginários. Embora o
mais interessante seja que justamente as partes que não são
verdade são as mais verdadeiras. Elas representam de modo mais
profundo essa vibração na fronteira do tangível, essa realidade
nebulosa e escorregadia que para mim é a essência do mundo. “Sei
que às vezes é preciso mentir para que a verdade venha à tona”,
dizia Tove Ditlevsen.
Tempestade perfeita número 2

Em 24 de agosto de 1953, Sylvia Plath engoliu todos os


comprimidos para dormir da sua mãe e se escondeu para morrer
debaixo da varanda da casa da família em Wellesley, Boston, tendo
para isso de se enfiar rastejando num vão estreito e lúgubre entre o
assoalho e a terra. Ela tinha vinte anos.
Seu sumiço gerou imediatamente um enorme interesse em
todo o país: era jovem, era loira, era bonita, era aluna da Smith
College, uma das mais elitistas universidades femininas. Durante
sua ausência, apareceram 253 artigos sobre ela em jornais e
revistas de costa a costa dos Estados Unidos. Todos falavam da
“beautiful Smith girl missing at Wellesley”, a linda garota de Smith
desaparecida em Wellesley. Quando a encontraram, três dias
depois, graças à sua mãe ter ouvido um gemido, não parecia tão
bonita. Não apenas estava desidratada e intoxicada, como tinha um
talho na testa que, aparentemente, com a temperatura elevada e a
umidade daquela região em agosto, se enchera de vermes. Sylvia
faz referência a esse detalhe horripilante no seu tremendo poema
“Lady Lazarus”, escrito quatro meses antes de se matar: “Tiveram
que me chamar e chamar/ E arrancar de mim os vermes, como
pérolas grudentas”. Esteve prestes a perder o olho, mas no fim se
recuperou. Não se sabe se a ferida foi causada ao recobrar
vagamente a consciência no seu buraco e tentar se levantar, ou,
pelo contrário, quando voltou a si e viu que não havia morrido,
bateu a cabeça de propósito para acabar de uma vez.
Dias antes, ela fora submetida à horrorosa tortura dos
eletrochoques sem sedação, e o pavor de que pudessem ser
aplicados novamente sem dúvida influenciou na tenacidade com
que se dedicou àquele suicídio. No seu romance autobiográfico A
redoma de vidro, a protagonista, Esther, descreve como tentou se
suicidar algumas vezes sem sucesso (no mar, deixando-se afogar, e
se asfixiando com o cordão de um robe) e como se questiona sobre
desistir do plano: “Mas então eu me lembrei do dr. Gordon e de
sua máquina de choques. Eles poderiam usar aquilo em mim
quantas vezes quisessem depois que eu fosse trancafiada”. Sem
dúvida, outros ingredientes contribuíram para aquele naufrágio
psicológico. Sylvia, órfã precoce (seu pai morreu quando ela estava
com oito anos), foi uma criança-prodígio com um quociente
intelectual de superdotada (QI 160). Publicou seu primeiro poema
aos oito anos e, dali em diante, lançou muitos outros em diversos
jornais e revistas da região, até que aos dezessete anos seus versos
apareceram no prestigioso veículo nacional The Christian Science
Monitor, uma verdadeira proeza para sua idade. Quero dizer que
ela estava seguindo uma carreira meteórica. Mas, quando chegou à
vida adulta, as coisas começaram a se desvirtuar. Não parece ter se
dado muito bem na universidade: era estranha demais e não se
encaixava. “Desejo desesperadamente ser querida. Atravessei um
longo período de impopularidade, sentindo-me deslocada, vexada”,
escreve num dos seus diários. E anota esta experiência
humilhante:

Lembro-me de quando Nancy Colson me acompanhava no


caminho de volta para casa, de Scouts a Winthrop, com outra
menina. Elas sempre se afastavam rindo juntas quando eu
começava a contar uma história. Não entendia. Atônita, sem
fôlego, saía correndo atrás delas. Depois soube que
combinavam de sair correndo para não ter de ouvir meus longos
casos maçantes.
Tampouco se dava bem com os homens, com aqueles amores que
ela buscava com ansioso desespero. Não se entendia com os
rapazes que conhecia e tinha medo de não ser bonita o suficiente.
Além disso, ficava horrorizada com o machismo reinante, com
aquilo que seu entorno esperava dela por ser mulher. Em A redoma
de vidro, seu alter ego Esther diz:

E eu soube que, apesar das rosas e dos beijos e dos jantares que
o homem despejava sobre a mulher antes do casamento, o que
ele secretamente desejava depois da cerimônia nupcial é que ela
se estendesse sob seus pés como o tapetinho de cozinha da sra.
Willard […]. E me ocorreu que talvez fosse verdade aquela
história de que casar e ter filhos era como passar por uma
lavagem cerebral, e que depois você ficava inerte feito um
escravo num pequeno estado totalitário.

Depois do seu terceiro ano na universidade, ganhou uma bolsa de


um mês em Nova York para trabalhar na revista Mademoiselle, mas
no geral a experiência foi decepcionante e catastrófica (está
contada no seu romance). Pior: dias depois, sua candidatura para o
curso de escrita criativa em Harvard foi recusada. Patologicamente
perfeccionista como era, pensou que estava falhando em tudo, que
sua vida estava indo por água abaixo. Sentia “um pânico medonho
grudado nas costas”, “um medo de não ser bem-sucedida
intelectual e academicamente”.
Na época, também anotou no seu diário: “Você esqueceu o
segredo que um dia soube, ah, um dia, o segredo da felicidade, do
riso, do abrir as portas”. Atenção, porque isso é importante: Plath
conheceu o segredo da felicidade. Os amigos falam de uma “Sylvia
sorridente”, um gesto que aparentemente era habitual nela. Há
várias fotos suas com expressão exultante, e a própria Plath
descreve momentos de “euforia radiante e bem-aventurada, este
êxtase inegável”. Costumamos acreditar que pessoas com
transtornos depressivos são seres sombrios, cabisbaixos e tristes
chorando pelos cantos, mas não. “Chegou a tal ponto que vivo
cada momento com terrível intensidade”, diz ela. O problema,
como apontava Roorda, não é não amar a vida, mas amá-la demais.
É andar o tempo todo em busca daquela aguda exaltação que eles
sabem ser capazes de alcançar. O ruim é que, de repente, essa
existência é apagada. Como se alguém tivesse tirado os fusíveis do
mundo: “Tenho muita vida pela frente, mas inexplicavelmente
sinto-me triste e fraca […]. A imensa tristeza que me invade, uma
tristeza com tantas facetas quanto os olhos de uma mosca”. Leio
tudo isso e é impossível não pensar na súbita desconexão de um
punhado de neurotransmissores. Mas, cuidado, porque as
desconexões não vêm do nada: acredito que chegamos a elas por
um acúmulo de circunstâncias. Naquele verão nefasto, Sylvia
começou a cortar as coxas com uma gilete e anotou no seu diário
que queria se matar (e matar sua mãe, com quem sempre teve uma
relação muito difícil de amor, ódio e dependência). Pouco depois
vieram os eletrochoques e os vermes.
Depois de seis meses num hospital psiquiátrico, recuperou-se o
suficiente para retomar sua vida e se formar com louvor. Também
conseguiu uma bolsa Fulbright para estudar na Inglaterra. E lá, em
fevereiro de 1956, aos 23 anos, conheceu Ted Hughes, um
promissor poeta inglês de 25 anos que ela já havia lido com grande
admiração. Encontraram-se numa festa e, de repente, “aquele
rapaz enorme, moreno, robusto”, cujo nome ignorava, se
aproximou e olhou firme nos olhos dela. Era Hughes, e Sylvia
começou a lhe dizer aos berros como gostava dos seus poemas. “E
depois ele me beijou na boca puxa vida e arrancou meu lenço do
cabelo […] e meu brinco de prata favorito: ah, vou ficar com isso,
rugiu. E quando beijou meu pescoço eu o mordi com força no
rosto, demoradamente, e quando saímos da sala escorria sangue
pela face dele.” Um começo muito adequado para dois viciados em
intensidade. Sylvia escreve no seu diário: “Estou tão faminta por
um amor intenso, imenso, criativo, explosivo”. Ambos estavam
mais ou menos num relacionamento na época, mas terminaram
com seus parceiros nas semanas seguintes. No caso de Plath, foi
seu amante, Richard Sassoon, quem a deixou em Paris. A verdade
é que ela já estava muito deslumbrada por Hughes, com quem
tivera um primeiro encontro amoroso bastante feroz: “Cheguei a
Paris no sábado à tarde, exausta após o holocausto da noite passada
em claro com Ted em Londres […] lavei o rosto cansado, marcado
por uma mancha roxa feita por Ted, pescoço arranhado e
machucado também”. Plath gostava de sexo selvagem. Ao que tudo
indica, também era assim com Sassoon. Com Ted, se tornou algo
habitual (“depois de um bom sexo violento, de manhã ternura e
milagre”), o problema é que a agressividade acabou ultrapassando
os limites da cama.
No dia 16 de junho, apenas quatro meses depois daquela
premonitória mordida na bochecha, casaram-se e partiram para a
Espanha para uma longa lua de mel. Pouco antes, Sylvia havia
escrito no seu diário: “Você nunca encontrará um imenso
guindaste como Ted, com poemas & profundidade (ele faz com
que se sinta pequena): não é carinhoso e não tem amor para lhe
dar. Só um corpo”. Era uma observação bastante lúcida, mas Plath
imediatamente decidiu se concentrar em inventar uma paixão
sublime com seu poeta. Estiveram juntos por seis anos; viveram e
trabalharam um tempo nos Estados Unidos e então voltaram à
Inglaterra, onde nasceram seus dois filhos. E tudo isso foi anotado
e comentado nos diários que a escritora mantinha (depois da morte
de Sylvia, Ted destruiu os cadernos dos últimos meses).
A julgar pelos textos, só há duas coisas que interessam Plath. A
primeira é a obra, sua própria obra, pela qual ela arde de maneira
absoluta — quase diria que patológica, não fosse o fato de que, a
meu ver, todos nos relacionamos com a criatividade através de
uma certa patologia, como acho que já deixei claro neste livro.
“Quero expressar meu ser tão completamente quanto possível,
pois de algum canto tirei a ideia de que posso justificar meu estar
viva desse modo”, anota Sylvia, e ela tem razão. A obra parece nos
justificar, melhorar, proporcionar o perdão necessário a nossas
falhas e nossos erros. O que acontece é que a insegurança de Sylvia
é ainda maior que a insegurança do autor médio, e o mesmo
podemos dizer da fúria e do desprezo com que trata a si própria. A
lítost de Plath é descomunal, é uma lítost que parece ditada pelo
marquês de Sade para infligir a dor mais refinada. A existência de
Sylvia é uma luta constante com a obra e carece quase
completamente do imenso prazer de escrever que de vez em
quando alivia e ilumina nossa vida. O tempo todo está mandando
seus poemas aqui e ali e acumulando cartas de recusa: “Dia
Miserável. A New Yorker recusou todos os poemas […] — uma
mágoa profunda pela injustiça, soluços, sofrimento”. Por vezes,
recebe até três negativas ao mesmo tempo. Toda manhã ela
aguarda a chegada do correio com a mesma ansiedade com que a
amante esperaria o amado: “Meu coração dispara quando vejo um
carteiro na rua”.
Enquanto isso, Ted se sai bastante melhor. É premiado,
valorizado, publicado, recebe boas críticas. Isso aumenta, por
comparação, o sentimento de fracasso da nossa escritora, embora
não pareça suscitar sua inveja. E isso acontece porque a segunda
única coisa que importa a Plath é seu amor por Hughes. Um amor
que ela sonha e necessita mais-que-perfeito, e que às vezes glosa
nos seus diários de modo hiperbólico: “Ted é sensacional. Como
registrar isso? Íntegro. Perfumado feito um bebê, um campo de
feno, morangos sob as folhas, e suavemente branco, bronzeando-se
até pegar uma cor, com os cabelos agitados como uma imensa juba
de leão”. E mais: “Meu ser inteiro […] tornou-se tão dependente e
misturado a Ted que, se algo acontecer a ele, nem sei como
conseguiria viver. Acabaria louca ou me matando. Não consigo
conceber a vida sem sua presença”. E mais ainda: “Estou casada
com um autêntico poeta que redimiu minha vida: amá-lo, servi-lo e
criar para ele”. Conclusão: “Juntos, somos o casal mais fiel, mais
criativo, mais cheio de saúde que se possa imaginar”.

Depois da publicação em 2020 de Red Comet [Cometa vermelho],


a magnífica biografia de Plath escrita por Heather Clark, sabemos
que Sylvia não anotou nos seus diários as piores coisas que
aconteceram a ela com Hughes, embora as tenha contado a outras
pessoas, como sua psiquiatra Ruth Beuscher. Eu diria que a
escritora tentava esquecer a parte ruim para poder acreditar na
Maravilhosa História De Amor Entre Os Sublimes Poetas que ela
havia se empenhado em construir, um produto imaginário no qual
talvez tenha investido tanta energia quanto nos seus próprios
textos, e que estava destinado não apenas a ela mesma, como
também à posteridade. É que tenho a sensação de que uma das
coisas que contribuíram para a desgraça de Plath foi sua ambição
desmedida e sem limites. Parece-me que, mais do que escrever, ela
queria ter sucesso, por isso tinha tanta dificuldade em curtir a vida.
Ela mesma intui isso em algum momento: “Seria porque eu não
sou páreo para os outros, tímida, lenta de raciocínio, e então
deliro, sonho com romances e poemas grandiosos, capazes de
causar espanto?”. A verdade é que nem tudo foram recusas, longe
disso: pouco a pouco, foi conseguindo ser publicada, inclusive na
New Yorker. E lançou seu primeiro livro de poemas, O colosso, em
1960, aos 28 anos. Pelo amor de deus, ainda era superjovem e
estava construindo uma carreira, mas para ela nada bastava. Queria
a consagração absoluta e imediata, atormentada, talvez, por este
medo: “O que mais me horroriza é a noção de inutilidade:
instruída, brilhante, promissora, e decaindo em direção à meia-
idade indiferente”. Ser uma criança-prodígio torna muito difícil
crescer.
Agora, apesar do seu esforço em sublimar Ted, no diário
aparece um bom punhado de anotações destoantes. De saída,
vemos Sylvia perdendo a cabeça para servir seu homem; leva suco
para ele na cama; trabalha mais horas que ele para manter a família;
lava, esfrega, varre, faz compras e cozinha, prepara jantares para os
colegas professores; passa a limpo os textos de Ted na máquina de
escrever; envia-os às revistas, faz papel de agente literária do
marido; e, apesar de toda essa entrega, transparece aqui e ali que
ela recebe críticas pelo seu desempenho: “Discuti com Ted sobre
pregar botões nos paletós (coisa que eu preciso fazer)”. Ou:
“Temos principalmente batatas, ovos, tomates e cebolas, com os
quais consigo, no verão, variar o suficiente para evitar que Ted
reclame demais”. A história dos botões é recorrente, porque dois
anos depois ela anota: “[Ted] contou a Marcia e Mike que escondo
as camisas, rasgo meias furadas, nunca prego botões. Seu motivo:
eu pensei que isso a forçaria a pregar os botões! Portanto, ele
deduziu que poderia me manipular, envergonhando-me”. Além
disso, o Amado Poeta Sublime não parece ajudar muito sua
Sublime Poeta Amada no campo literário: “Não direi nada ao Ted,
que aproveitou o recado em que PJHH recusava meu artigo sobre
ratões-do-banhado, que ele não leu, para despejar em mim seu
discursinho: ‘Bom, isso acontece com todos os seus textos: o
problema é que eles são genéricos demais'”. No seu desespero,
Plath usa maiúsculas: “Preciso tentar escrever poemas. NÃO
MOSTRE NENHUM AO TED. Às vezes sinto que me paralisa: sua
opinião é tão importante para mim”. Embora minha anotação
preferida nessa seara pertença aos últimos diários: “Desde que
comecei a escrever meu romance (que Ted nunca leu), ele tem
menosprezado o romance como forma literária, dizendo coisas
como que ele nunca se daria ao trabalho de escrever um”.
Delicioso, né? Enfim, não é de estranhar que Sylvia também
escrevesse este parágrafo terrível: “Ter nascido mulher foi a minha
tragédia. Por que temos de ser relegadas à posição de zeladoras de
emoções, babás de crianças, alimentando sempre a alma, o corpo e
o orgulho do homem?”.
Há mais escuridão na vida do casal. Muito, muitíssimo mais
escuridão. De fato, algo que aparentemente Sylvia tampouco deixa
transparecer são seus próprios ataques de fúria e violência. Só
aparecem obliquamente nos diários.

Discussão absurda com Ted no domingo à noite, quando nos


arrumávamos para ir jantar no Wiggin's — ele me acusou de
jogar fora suas horrendas abotoaduras velhas, “como eu havia
feito com o casaco”, e, a bem da verdade, também com o livro
sobre Bruxas, já que nunca pude suportar as partes das torturas
[…]. Então eu saí de casa correndo, revoltada. Como não ia
conseguir dirigir a lugar nenhum, voltei. Ted havia saído.
Sentei-me no parque — tudo vasto, escuro, ominosamente
cheio de Teds silenciosos ou nenhum Ted.

Em seus arroubos, Plath jogava fora ou destruía coisas de Ted. A


afronta mais célebre e comentada consistiu em rasgar um dos
manuscritos do marido. Voltaremos a isso mais tarde, em detalhes,
pois se trata de uma briga relevante.
Sem dúvida havia violência física entre eles. Há um debatido
parágrafo nos diários de Plath que, na bela tradução da edição
espanhola, feita por Elisenda Julibert para a editora Alba, diz assim:
“Me torcí el pulgar, Ted llevó las marcas de mis garras durante una
semana y recuerdo haberle lanzado un vaso con todas mis fuerzas desde
la otra punta de la habitación a oscuras; en vez de romperse rebotó y
quedó intacto. Me llevé unos cuantos golpes, vi las estrellas (por primera
vez), unas estrellas rojas y blancas deslumbrantes, que surgían en mitad
del oscuro vacío de los gruñidos y los mordiscos”.[4] É isso mesmo que
outros editores dos diários deduziram: que Sylvia viu estrelas
porque Ted bateu nela. No entanto, o texto original é este, e na
verdade dá a entender que os machucados foram pelo copo que
quicou: “I remember hurling a glass with all my force across a dark
room; instead of shattering the glass rebounded and remained intact: I
got hit and saw stars”. Seja como for, a parte da escuridão de
grunhidos e mordidas diz muito sobre a briga. Foi em junho de
1958, nos primeiros dois anos de convivência, quando as coisas
ainda não haviam azedado demais.
Sylvia arranhava e mordia, mas Hughes era maior e mais forte, e
hoje sabemos que batia nela. O próprio Ted admitiu isso em 1974.
Heather Clark conta na sua biografia:

Hughes disse a Frances McCullough, editora dos diários de


Plath, que Plath “tinha rasgado todos os seus textos em
pedaços, seus textos e suas anotações”. Ted disse que aquela foi
uma das vezes que tinha visto a fúria de Sylvia, seu “lado
demoníaco, destrutivo, como uma eletricidade sombria”.
Imediatamente depois de contar essa história, admitiu,
conforme McCullough transcreveu nas suas anotações, que “ele
costumava esbofeteá-la para tentar arrancá-la de sua fúria, mas
não adiantava. E que uma vez ela se virou na direção do tapa e
ficou com um olho roxo, então foi ao médico e contou que Ted
batia nela constantemente”.

Ah, essas mulheres estabanadas que se viram inesperadamente e


botam o olho onde não devem… Mas há algo ainda mais
assustador. Escute só: o casal voltou à Inglaterra em dezembro de
1959; em abril de 1960 nasceu sua primogênita, Frieda. E, em
fevereiro de 1961, Plath teve um aborto natural. Três semanas
depois de se separar de Hughes, Sylvia escreveu uma carta ao seu
psiquiatra na qual lhe contava:

Ted me agrediu fisicamente dias antes do meu aborto […].


Aquilo me pareceu uma aberração e senti que havia lhe dado
algum motivo, eu tinha rasgado ao meio alguns dos seus papéis,
de modo que podiam ser colados de novo com fita adesiva, não
estavam perdidos, foi um ataque de fúria porque ele me fizera
chegar horas atrasada ao trabalho, a um dos tantos trabalhos que
eu tinha para que pudéssemos sobreviver. Ele devia ficar com
Frieda.

O fato de Sylvia considerar aquilo uma aberração parece indicar


que esse tipo de surra não era habitual; por outro lado, pensar que
de algum modo “merecia” é uma estrutura psicológica típica das
mulheres maltratadas.
Vou te confessar uma coisa: nas minhas primeiras anotações
sobre este livro, havia pensado em contar a história de Sylvia e Ted
de várias maneiras. Escrever três versões diferentes. Quando Plath
se suicidou aos trinta anos em fevereiro de 1963, Hughes foi
acusado pela maior parte da opinião pública de ser o causador da
sua morte, por ter ido embora com outra mulher — o que sempre
achei extremamente reducionista (e ainda acho). Com o passar do
tempo, o Poeta Premiado e blá-blá-blá Ted Hughes foi vendo como
a estrela da sua ex-mulher ascendia cada vez mais alto nos céus da
glória, e como ele era classificado como vilão da história por uma
parcela cada vez maior da comunidade literária mundial. Deve ter
sido perturbador. Ele nunca disse nada sobre o assunto até
publicar em 1998, poucos meses antes de morrer, seu livro de
poemas Cartas de aniversário, do qual falarei depois. Mas a irmã de
Ted, Olwyn, lutou a vida inteira com um furioso amor fraterno
para tentar limpar o nome de Hughes e, consequentemente,
macular o de Sylvia Plath — que é facilmente maculável, sem
dúvida, ou será que não somos todos, se olhados de perto o
suficiente? Bom, alguns mais que outros, é claro. E Plath está cheia
de defeitos. Suas fúrias colossais, seus curtos-circuitos de
eletricidade sombria com certeza existiram. Sua necessidade
exagerada de fazer sucesso. Seu perfeccionismo obsessivo.
A incapacidade de se pôr no lugar do outro: o fato de que todas as
pessoas (exceto Ted) fossem consideradas apenas material para
seus livros. Enfim, não devia ser nada fácil conviver com ela. Por
isso, eu havia pensado em escrever uma primeira versão com
Hughes sendo um monstro que destrói a frágil Sylvia (como
defendem os mais fanáticos seguidores da escritora); uma segunda
versão com Sylvia Plath transformada num verdadeiro demônio e
Hughes como vítima (segundo contou a fiel irmã Olwyn); e uma
terceira versão nem lá nem cá, com as conquistas e as culpas
distribuídas, porque, segundo minha experiência, em geral a vida
se manifesta assim, num meio-termo entre erros e acertos. Essa
era minha ideia, mas no fim não me animei a pô-la em prática.
Porque, depois de ler os textos dos dois e mais um monte de
livros, Ted Hughes me causa tanta antipatia que não tenho vontade
de transformá-lo em vítima nem mesmo dentro de um jogo
literário.
Já vamos chegando ao final. À grande tristeza, à terrível
tragédia. Em agosto de 1961, seis meses depois do aborto, Plath
termina seu primeiro romance, A redoma de vidro, e em janeiro de
1962 nasce Nicholas, o segundo filho do casal. Na época, a relação
com Ted estava péssima. Plath passava o dia lavando fraldas, e
Hughes começou a lhe dizer que não queria aquela vida, que
aquele não tinha sido seu plano, que Sylvia o transformara num
burguês. Diz a biógrafa Heather Clark que possivelmente o que
acabou com o amor do casal foi “a fama e suas lendárias tentações”,
porque Ted era um autor cujo sucesso começava a disparar e o
mundo parecia repentinamente cheio de mulheres que caíam
rendidas aos seus pés de poeta. Nesse terreno tão fértil, despontou
Assia Wevill, esposa do escritor David Wevill, uma mulher
fascinante de rara beleza, de origem letã, judia, tradutora, casada
três vezes, poeta iniciante e provavelmente meio maluca: havia
tentado apunhalar com uma adaga birmanesa na entrada do metrô
seu segundo marido, o economista canadense Richard Lipsey. Ted
e Assia sentiram a flechada logo que se viram, mas na primeira vez
em que fizeram amor ele foi tão violento que Assia saiu correndo e
disse ao marido que Ted a estuprara, motivo pelo qual David quis
matar Hughes durante algum tempo. Enfim, uma baita confusão
de emoções vulcânicas.
E, enquanto isso, Plath lavando fraldas.
É bastante provável que tivesse uma depressão pós-parto. Em
junho de 1962, sofreu um acidente com o carro que dirigia e caiu
num rio. Não houve consequências, porém mais tarde ela
reconheceu que fora uma tentativa de suicídio. Em julho, seus
temores se confirmaram: descobriu que Ted e Assia tinham um
caso. Em setembro, Hughes e Plath se separaram. “Ele está
querendo matar tudo o que vivi nos últimos seis anos dizendo que
estava entediado e cansado de mim, uma bruxa em um mundo de
mulheres lindas à sua espera.” Mas aconteceu algo positivo: no
meio de todo esse sofrimento, Plath começou a escrever
furiosamente os versos que seriam publicados de maneira póstuma
em Ariel, o livro que a tornou mais famosa. Não gosto de todos os
poemas do volume de modo igual, mas alguns são brutais, sem
dúvida a melhor coisa que ela havia escrito até então. Foi uma pena
ter morrido tão jovem: do meu ponto de vista, Plath era mais uma
promessa que uma realidade, e acho que não ocuparia o lugar que
ocupa hoje na literatura se sua morte não tivesse sido tão trágica.
Mas quanto talento e quanta potência ela parecia anunciar… Até
onde teria chegado, com sua perseverança e vontade, se tivesse
sobrevivido?
O inverno de 1962-3 foi o mais frio em décadas. A tubulação
congelava, os filhos de Sylvia, uma de dois anos e outro de nove
meses quando se separaram, adoeciam com frequência e, na casa
onde moravam, não havia telefone. No entanto, Plath escreve
numa carta: “Sinto uma incrível mudança de humor, estou
exultante, mais feliz do que estive em anos”. O que aconteceu para
que dissesse isso? Heather Clark sustenta de modo bastante
convincente que no início daquele outono Sylvia começara um
relacionamento amoroso com o escritor Al Alvarez, ensaísta, poeta
e crítico de grande prestígio, um personagem importante dentro
da cena cultural britânica. Alvarez é um grande apreciador da obra
de Plath e escreveu resenhas muito positivas. De modo que Sylvia
encontrou outro homem literariamente poderoso, que ela pode
admirar e que — oh, que maravilha! — também a admira. Some-se
a isso o fato de que está em pleno auge criativo, escrevendo
poemas que ela sabe serem os melhores que já concebeu (e que
Alvarez elogia). Além disso, conseguiu vender seu romance a uma
editora britânica e ele será publicado em janeiro; como lhe parece
autobiográfico demais e ela tem medo de que sua mãe leia e outros
citados protestem, sairá com o pseudônimo de Victoria Lucas. Não
me diga que assinar com o nome de “Vitória” não é algo revelador.
Ela estava confiante de que o romance seria um sucesso
estrondoso. Então, as coisas no geral pareciam andar bastante bem.

No dia 1º de novembro, Sylvia dedica um poema de amor a


Alvarez e o envia a ele num envelope junto com uma pétala de
rosa. Mas acontece que, justo naquele dia — triste
coincidência —, o crítico conhece a mulher que se tornará sua
futura esposa. Não há motivos para censurar Alvarez: em primeiro
lugar, o amor e o desejo são dificilmente controláveis. Mas, além
de tudo, ele também vinha de uma tentativa de suicídio ocorrida
anos antes. Talvez a intensidade de Plath lhe parecesse
ameaçadora. O fato é que essa possível história de amor, que
provavelmente já começara a crescer e correr solta na imaginação
de Plath, acabou antes de começar. E receio que possa haver
terminado da pior forma, isto é, na incerteza, na atonia. Porque
talvez só tenham dormido juntos uma ou duas vezes, ele não era
obrigado a lhe dar explicações, não tinha por que dizer “vamos
terminar”, e na ausência de uma declaração firme de fim, o
apaixonado continua sonhando com o futuro. Então, suponho que
Sylvia o paquerava, cercava-o, tentava fazer com que o
relacionamento vingasse, ficava desconcertada com suas evasivas,
procurava interpretar seu comportamento para deduzir a resposta
à pergunta de 1 milhão de dólares, ou seja, se Alvarez a amava ou
não. Quem nunca viveu um desses desoladores equívocos
amorosos entre um amante que quer amar e outro que foge, em
que, no final, aquele que almeja o amor acaba se sentindo ridículo?
Imagino Sylvia penetrando no inverno gelado, semana após
semana, enquanto Alvarez lhe escapa por entre os dedos.
Pior: várias revistas passam a recusar seus novos poemas,
aqueles trabalhos que ela sabe que são os melhores. Além disso,
está procurando um editor nos Estados Unidos para seu romance,
e a coisa não está fácil. Em dezembro, Knopf lhe comunica que não
está interessado em A redoma de vidro. Na época, Sylvia já está
bastante mal. Destruiu o manuscrito do seu segundo romance, no
qual aparentemente punha nas alturas o personagem que
representava Ted Hughes. Em algum momento escreve um
terceiro romance, no qual, pelo contrário, pinta Ted como um
porco. Não se sabe o que houve com esse rascunho: talvez Hughes
o tenha destruído, talvez a mãe de Sylvia tenha ficado com ele.
Pode ser, inclusive, que um dia apareça.
Plath vai afundando pouco a pouco. Quando todo o resto falha,
a ferida da ruptura com Hughes volta a sangrar. “Dei meu coração
ao Ted. Se ele não o quer, simplesmente não posso mais recuperá-
lo, eu o perdi”. Também escreve que Ted lhe falou que seria muito
conveniente que ela morresse; que perguntou “Por que não se
mata?”. O que, na verdade, soa a uma resposta compreensível
diante das ameaças de suicídio dela. Hughes quer ver a filha e diz
amar Frieda, mas não dá a menor atenção ao coitado do Nicholas, e
esse é um dos motivos pelos quais o abomino (Frieda é hoje
escritora e artista; Nicholas, biólogo marinho, se suicidou em
2009, aos 47 anos). “Sinto como se estivesse de luto por um
homem morto, a pessoa mais maravilhosa que conheci”, lamenta-
se Plath, que começou a fumar, não come, não dorme e perdeu
nove quilos. Em janeiro, sai A redoma de vidro no Reino Unido e,
embora receba críticas favoráveis, não acontece nada com o livro.
Quer dizer, não é um sucesso. Além disso, mais um editor norte-
americano, Harper and Row, recusa a publicação do romance. Em
meados de janeiro, Sylvia escreve uma carta a Alvarez sugerindo
que fossem ao zoológico com seus respectivos filhos (ele tinha um
menino) para poder ver o “azinhavre do condor” (o crítico havia
discutido com ela sobre a cor azinhavre que Plath atribuíra ao
pássaro num poema), mas essa desesperada desculpa para se
encontrar com ele não funciona: o homem nem responde. Que
vergonha. A lítost deve ter pegado fogo na cabeça de Plath.
Desde o início de janeiro, Sylvia vai ao dr. Horder, um bom
homem e um médico comprometido e dedicado aos seus
pacientes, mas que não parece acertar muito a medicação. Plath
está tomando Nardil e Parnate, fortes antidepressivos que quase
não são mais utilizados; além disso, como está resfriada, toma por
conta própria codeína (um opiáceo), e também Dexamyl, um
remédio para dormir que combinava anfetamina e barbitúrico e
que mais tarde foi retirado do mercado por ser potencialmente
nocivo. Um coquetel perigoso. Ela começa a não tomar banho. Os
amigos que a visitam em casa notam o cheiro acre. No dia 17 de
janeiro, é transmitida pela BBC uma peça de teatro que Ted Hughes
fez para a rádio e que narra uma ruptura. A obra é claramente
autobiográfica; Sylvia é retratada de um jeito humilhante e horrível
perante o mundo. Em 27 de janeiro, às oito da noite, Plath bate na
porta de Trevor Thomas, seu vizinho. Ela tem os olhos vermelhos
e inchados e chora desconsoladamente: “Vou morrer… E quem vai
cuidar dos meus filhos?”, geme, entre soluços. Thomas a faz
sentar-se na sala, lhe dá uma taça de xerez. “Éramos tão felizes.
Não quero morrer. Há tantas coisas que quero fazer”, continua
dizendo, entre lágrimas. Pelas suas palavras, o vizinho deduz,
compreensivelmente, que acabam de detectar nela um câncer
terminal ou algo do gênero. “Não, não. É demais para mim. Não
posso continuar”, responde ela. E conta a Thomas que Assia e Ted
estão de férias na Espanha. Eis aqui mais uma daquelas crueldades
desnecessárias que tornam Hughes tão detestável: foi na Espanha
que ele e Sylvia passaram a lua de mel.
Antes eu disse que havia apenas duas coisas que interessavam
Plath: sua obra e o amor por Ted (ou melhor, o Amor com letra
maiúscula e nada mais; acho que ela poderia tê-lo reinventado com
Alvarez, por exemplo). Mas na verdade havia uma terceira coisa,
que talvez fosse a mais importante: sua luta contra a loucura. “O
medo de enlouquecer, que às vezes consigo dominar a duras
penas, foi desencadeado e se apoderou do meu estômago”,
escreveu aos vinte anos, antes da primeira crise. Seus diários
registram o comovente e esforçado empenho de Plath por
construir uma vida sã e feliz. Foi uma batalha sem trégua. Agora,
nesses terríveis, gelados e sombrios dias do início de 1963, o pavor
a aprisiona novamente: “O que me horroriza é a volta da minha
loucura, da minha paralisia, do meu medo e visão do pior — uma
fuga covarde, um manicômio, lobotomias […]. Sinto que preciso
de um ritual para sobreviver de um dia para o outro até começar a
superar essa morte… Mas continuo descendo nesse poço de
pânico e congelamento”.
No dia 9 de fevereiro, a BBC tornou a transmitir a desagradável
peça teatral de Ted Hughes. Em 11 de fevereiro, uma segunda-feira,
perto das sete da manhã, Sylvia abriu de par em par a janela do
quarto dos filhos, cobriu suas caminhas com mantas extras e
deixou pão, manteiga e duas garrafas pequenas de leite para eles.
Depois, fechou o quarto e vedou o vão da porta com fita adesiva.
Em seguida, desceu ao andar de baixo, se trancou na cozinha,
tapou com mais fita e com toalhas todas as frestas, abriu o forno, se
sentou no chão, ligou o gás e enfiou a cabeça até o fundo. Foi
descoberta três horas mais tarde. Às nove, viria uma enfermeira
para ficar com as crianças, porque Plath havia combinado com o dr.
Horder que naquele dia se internaria numa clínica psiquiátrica.
Não tinha contado nada para ninguém.
Naquela noite, Ted dormira com outra amante, Sue. Quando foi
informado do suicídio, ficou, como é natural, em estado de
choque. Várias pessoas o ouviram repetir: “Era ela ou eu, era ela ou
eu”. A história com Assia seguiu adiante, ainda que com muitas
brigas e desavenças. O meio literário londrino culpou Assia pela
morte de Plath e ela foi deixada num limbo espectral: quando
chegava a uma festa ou reunião, as pessoas lhe davam as costas
(mas não a Hughes, claro: que absurdo!). Ted e Assia tiveram uma
menina, Shura; há uma foto do casal em que ele está carregando a
filha no colo. Em março de 1969, seis anos após a morte de Plath,
Ted terminou com Assia. Dois dias depois, a bela mulher estendeu
uma manta no chão da cozinha, deu soníferos à filha, deitou com
ela ao lado do forno e abriu o gás. Assia tinha 41 anos; a inocente e
desafortunada Shura, quatro. Outra coisa que não entendo é que
Ted quase não volta a mencioná-las em toda a sua vida.
Principalmente sua pobre filha assassinada (há apenas seis poemas
sobre Assia e uma dedicatória explícita para as duas num livro). Em
1998, poucos meses antes de morrer de câncer, Hughes publica
uma seleção de poemas sobre seu relacionamento com Plath
intitulado Cartas de aniversário. O livro obteve um sucesso
colossal, embora na minha opinião contenha coisas bastante
lamentáveis: acaba se tornando uma justificativa, um ajuste de
contas, uma nova tentativa de deixar Hughes e sua versão por cima
dela, de olho na posteridade e atormentado como estava pela sua
morte próxima. E assim, escreve vingativos e péssimos versos do
tipo: “Como um taco/ você usou aquele dia a banqueta/
enlouquecida porque cheguei vinte minutos atrasado para cuidar
do bebê”. Ou pomposos disparates contra os críticos literários que
exaltaram a figura dela e criticaram a dele: “Deixe que abanem
seus rabos cortados/ que se ericem e vomitem/ em seus
simpósios”. Enfim. Inclusive, diz em um poema que Sylvia odiou a
Espanha na lua de mel, o que pode ser verdade; acontece que, em
todas as anotações que Plath fez no seu diário durante as semanas
daquela viagem, ela se mostra, pelo contrário, entusiasmada com o
país. Acho na verdade que o manipulador do Ted pôs isso no livro
de poemas para que sua viagem posterior com Assia não parecesse
tão abjeta. E agora chega de falar de Hughes.

Morrer
É uma arte, como tudo.
É algo que conheço a fundo.
Faço parecer o fim do mundo.
Faço parecer real.
Dizem que tenho o dom.

Esses versos poderosos de Plath fazem parte do magnífico poema


“Lady Lazarus”, pertencente a Ariel e escrito entre os dias 25 e 28
de outubro de 1962: portanto, num bom momento, com a ilusão de
um novo amor e a promessa de sucesso. Por isso há humor no
horror. Há outro poema intitulado “Limite” que foi escrito no dia 5
de fevereiro, apenas seis dias antes do seu suicídio, no qual diz
coisas tão terríveis quando esta:

As crianças mortas enroladas, serpentes brancas,


Uma em cada

Vasilha de leite, agora vazia.


Ela recolhe em seu

Corpo as crianças como se fossem pétalas


De uma rosa fechada […]

É evidente que passou pela cabeça de Sylvia a ideia de assassinar


seus filhos (crime, aliás, que costuma estar relacionado às
depressões pós-parto). Heather Clark sustenta que, entre outras
coisas, Sylvia talvez tenha se matado por medo de lhes fazer mal —
o que parece bastante razoável. Plath deixou um bilhete no qual
pedia para chamarem o médico e incluía o nome e telefone do dr.
Horder. Além disso, na noite anterior ao seu suicídio, foi falar com
Thomas, o vizinho, e perguntou que horas ele saía para trabalhar.
Às oito e meia da manhã, respondeu ele. Alguns quiseram ver
nisso um desejo de encenar um suicídio e ser salva. Mas, tanto o
médico quanto a polícia, ao verem o absoluto cuidado com que
Plath vedara a cozinha e o quão profundo havia enfiado a cabeça lá
dentro, ficaram completamente convencidos de que ela queria se
matar. A pergunta ao vizinho era apenas uma garantia a mais para
seus filhos; a enfermeira devia chegar por volta das nove horas,
mas também, e por via das dúvidas, o vizinho sairia às oito e meia,
sentiria o cheiro do gás e daria o alarme, ou foi o que pensou
Sylvia, que achava que o fluido venenoso subiria para o andar de
cima. Na verdade, passou para o de baixo, e Thomas ficou
inconsciente por doze horas e só não morreu por um milagre.
Enfim, parece claro que ela esperou até as sete da manhã para tirar
a própria vida e, assim, as crianças não ficarem muito tempo
sozinhas e em perigo.
Agora, escute só: preparando este livro, descobri que para se
suicidar também é preciso uma tempestade perfeita. Que o
caminho que leva alguém à morte é pavimentado por um milhão
de coincidências. Por que Sylvia Plath se matou? Por um acúmulo
de circunstâncias do meio e da biografia que ela carregava: por
exemplo, a orfandade precoce, a infância de menina-prodígio, a
impopularidade entre os colegas, a hiperexigência, o
perfeccionismo, uma lítost exacerbada, o anseio pelo absoluto, o
machismo reinante, a ambição desenfreada, o ideal impossível de
um amor perfeito, uma evidente fragilidade psíquica. Agora,
somemos a isso os fatores desencadeantes: seu marido a abandona,
ela se apaixona por outro e não é correspondida, sente-se ridícula,
seu ex a humilha na frente de todo mundo, ela acha que está
fracassando como escritora, teme que Ted lhe tire seus filhos
devido à sua instabilidade mental, está tomando uma miscelânea
de fármacos e, acima de tudo, tem pânico de perder
completamente a sanidade, o que implica dois tormentos: de um
lado, a assustadora possibilidade de fazer mal aos filhos; do outro,
o castigo de uma vida atroz. Em A redoma de vidro, Esther fala do
sofrimento que a espera caso esteja louca, e de como é preferível a
morte a isso: “Inicialmente iriam querer que eu tivesse o melhor
tratamento, e gastariam todo o dinheiro em uma clínica particular
como a do dr. Gordon (o torturador do eletrochoque), mas quando
esse dinheiro acabasse eu seria transferida para um hospital
público, com centenas de pessoas como eu, numa grande jaula no
porão. Quanto pior você ficava, mais longe eles te escondiam”.
Plath se matou, entre outras coisas, porque naquela segunda-feira
iriam interná-la num hospital psiquiátrico e, traumatizada como
estava pela terrível experiência da juventude, não podia suportá-lo.
Mas isso foi apenas mais um componente da tempestade perfeita.
Assim como o foi, sem dúvida, a falha momentânea dos seus
neurotransmissores, motivada pelo estresse, pelo medo, pelos
remédios, pela falta de sono e de comida. “Não quero morrer. Há
tantas coisas que quero fazer”, disse ela ao vizinho, soluçando. A
imensa maioria dos suicidas não quer morrer. Mas eles são
acometidos por um turbilhão de coincidências nefastas
cristalizadas, me parece, num apagão. Isto é, são capturados pelo
olho do furacão da tempestade perfeita e incapazes de manter sua
vida. Se apenas um dos ingredientes da maldita tempestade
desaparecesse, eles seriam salvos. De modo que, se você vir um
tornado devastador chegar, respire fundo e aguente firme. Espere
pelo menos um dia, porque os temporais sempre acabam por se
dissipar.
A obra está sempre à espreita, assim como a loucura. A questão
é saber quem acaba ganhando.
Isso é o que vejo

Há uns nove ou dez anos, comecei a postar na minha página de


Facebook fotos do que vejo da janela dos hotéis onde fico a
trabalho. Parêntese pandêmico à parte, a última década da minha
vida foi um verdadeiro frenesi itinerante. Dezenas de viagens,
centenas ao longo dos anos, para os quatro pontos cardeais do
planeta e todas as vezes por poucos dias. Não sei como me ocorreu
a ideia de fazer esses instantâneos e postá-los; provavelmente
tenha influenciado o fato de que, nessas andanças, sempre viajo
sozinha. Suponho que seja como fazer um comentário a um amigo:
olha só onde estou, veja o quarto que me deram, essa é a cara desta
cidade.
São fotos ruins, feitas com o celular e às pressas, sem um
cuidado estético especial. O que vale é o testemunho. A graça da
imagem, se é que tem alguma, consiste em sempre retratar o que
realmente vejo da janela, sem enfeitar nem falsear. Não posto a
foto para que as pessoas contemplem uma vista bonita, mas como
um documento informativo de uma esquina da vida e do mundo
(ou da minha vida no mundo). Consegui assim uma coleção de
vistas das mais diversas, algumas verdadeiramente hilárias de tão
horríveis. Há um grupo de amigos de Facebook que se afeiçoou a
esse hábito e comenta as fotografias com certa paixão. Eu,
obviamente, acho que elas são divertidas. Até já pensei em
organizar um dia um livrinho com as fotos, ou pelo menos uma
seleção, e incluir breves textos na sequência das imagens, pois são
como gotas de tempo encapsulado. Deixo aqui vários exemplos da
vista das minhas janelas, algumas formidáveis, como este
panorama vertiginoso de Hong Kong de 2018:

Ou esta maravilha em Antofagasta, no Chile, em 2015:


Ou esta impressionante imagem de 2019 de Buenos Aires
iluminada por um relâmpago noturno:
E esta serena beleza invernal em Grenoble, França, em 2017:
Mas também há janelas deprimentes em vários níveis, como estes
cubículos um tanto lúgubres de Paris em 2015:
Ou também um patiozinho de Málaga em 2019 (que fofura esses
vasos órfãos que se juntam no centro para se proteger):

Este canto horroroso em Bremen, Alemanha, em 2016:


Ou esta vista não menos horrorosa de Bilbao em 2018:
A última foto, aliás, gerou uma verdadeira onda de indignação
entre bilbaínos orgulhosos da sua bela cidade, que falavam até em
processar o hotel por oferecer uma vista dessas. Sua fúria me
comoveu e me divertiu, e tentei explicar que na realidade a
situação não é tão ruim como parece. Sim, adoro panoramas
bonitos, desfruto deles e melhoram meu ânimo, mas em muitos
desses lugares fico apenas uma noite ou duas, passo o dia todo fora
trabalhando e às vezes até agradeço por um quarto de fundos com
menos barulho para poder dormir. E, por outro lado, não é
exatamente disso que estamos falando? Do aparente brilho da vida
e dos bastidores miseráveis? Esses pátios pertencem a hotéis
aceitáveis, inclusive bons hotéis, com saguões bem pintados, luzes
que funcionam, áreas comuns em perfeito estado de conservação;
mas, basta você erguer um pouquinho a ponta do tapete da
realidade para descobrir o mofo, o caos escondido e aquela
pequena morte que reside no coração de todas as coisas. A vida
também é um pátio sórdido coberto com uma lona suja e rasgada.
Eu já estava havia alguns anos publicando as fotos das janelas
viajantes quando me chegou uma encomenda do El País com o
correio dos últimos meses (como mando minhas colaborações por
e-mail e não piso na redação, de tempos em tempos me reenviam
as cartas que recebo lá) e, ao abrir um dos envelopes, saiu uma foto
tamanho A5. Era uma imagem estranha: uma casa modesta, uma
janela com o trompe l'oeil do desenho de uma idosa. Procurei no
envelope para ver se vinha algo mais, mas a imagem, impressa em
papel fotográfico, era a única coisa que havia. Virei a cartolina e
atrás, à caneta, em nítidas e bem desenhadas letras maiúsculas,
dizia: ISSO É O QUE VEJO DA MINHA JANELA. É justamente a frase com
que costumo postar no Facebook meus instantâneos dos hotéis.
Então, olhei a imagem de novo com mais atenção: era como se a
frase tivesse sido escrita pela velha debruçada no parapeito. Uma
mulher pintada, isto é, de mentira, assomada a uma janela de
verdade. Uma idosa, ainda por cima, com os olhos tachados. Senti
um calafrio: a foto me parecia cada vez mais sinistra. E o que dizer
da janelinha adjacente, das grades enferrujadas, das garrafas vazias,
da mancha de umidade na base da parede. Soube com absoluta
certeza: era um envio da Outra. Uma mensagem que eu não
conseguia decifrar.
Nos anos seguintes fui recebendo, pelo El País, uma dezena de
outras fotos. Sempre anônimas, em envelopes sem remetente e
com a frase ISSO É O QUE VEJO (suprimiu a referência à janela)
escrita à mão no verso. São imagens desoladoras: construções em
ruínas, escadas lascadas, vilarejos abandonados, corredores
lúgubres. Deixo aqui algumas amostras:
Mas, há seis meses, recebi uma foto diferente. Em primeiro lugar,
porque ela voltou a escrever atrás a frase inteira: ISSO É O QUE VEJO
DA MINHA JANELA. E porque era de fato a vista de uma janela, a
única até agora. Além disso, também não parecia uma ruína ou um
lugar meio abandonado, como as outras. Tinha até mesmo algo
bonito… algo espiritual. Podia ser a janela de um antigo convento.
Com a linha imóvel do mar, aquela eternidade, lá longe. Embora,
entre a imensidão das águas e a pessoa que contempla, estejam as
grades. A imagem, ainda não sei bem por quê, me deixou agoniada.
Foi a última foto que recebi da Outra. Meses depois, entendi
tudo.
Como nasceu o menino

Já que toquei no tempestuoso tema do suicídio, vou tentar


aprofundar um pouco. Eu disse antes que a cada ano cerca de 800
mil pessoas se matam no mundo; e que, segundo um estudo sueco,
os escritores têm 50% mais possibilidades de se suicidar do que a
população em geral. É uma porcentagem altíssima.
De fato, a lista é impressionante: Cesare Pavese, Romain Gary,
Gérard de Nerval, Jack London, Maiakóvski, Malcolm Lowry,
Anne Sexton, Mishima, Walter Benjamin, Arthur Koestler, Paul
Celan, Alejandra Pizarnik, Hemingway, Stefan Zweig, John
Kennedy Toole, Sándor Márai, David Foster Wallace, Mariano José
de Larra, Salgari, Horacio Quiroga, Alfonsina Storni, Gabriel
Ferrater, Gilles Deleuze, Kawabata, Heinrich von Kleist ou
Leopoldo Lugones, para citar apenas alguns dos mais conhecidos.
É interessante saber o método que utilizaram na hora de
abandonar esta vida, pois a forma de morrer é uma mensagem.
Muitos escolheram a relativa doçura dos remédios, como Pizarnik
ou Pavese; mas o problema das drogas é que frequentemente não
funcionam, como aconteceu com Sylvia Plath na primeira
tentativa. As armas de fogo são convenientes (foram usadas, entre
outros, por Hemingway e Sándor Márai), mas é preciso tê-las à
mão, e também são algo terrível para quem se impressiona com
sangue e destroços físicos. Virginia Woolf, que já experimentara
sem sucesso a overdose de calmantes, entrou no rio com os bolsos
do casaco cheios de pedras (um final congelante: morreu num
ventoso e frio mês de março). Há suicídios especialmente cruéis
que parecem cometidos contra alguém, como o do romântico
espanhol Mariano José de Larra, que assediou malignamente sua
ex-amante Dolores Armijo, primeiro contando ao país inteiro que
haviam tido relações adúlteras (os dois eram casados e isso foi em
pleno e repressor século XIX) e depois, quando Dolores tentou
terminar com ele, dando um tiro na própria cabeça quase na frente
dela, enquanto a jovem corria pelo corredor para fugir da casa e da
vida daquele homem.

Também há métodos de suicídio incompreensíveis, aterrorizantes.


O mais famoso, com certeza já lhe veio à mente, é o de Yukio
Mishima, aquele escritor japonês tão sombrio e assombroso que
aos 45 anos, depois de tentar um golpe de Estado e fracassar, se
matou ritualmente por meio do seppuku, o que nós chamamos de
haraquiri, isto é, rasgando o ventre com uma adaga num corte
horizontal abaixo do umbigo, o que causa evisceração e uma morte
horrorosa. Ao lado dele estava seu amante e braço direito, que
também arrancou as próprias tripas, e, como testemunhas, três
soldados da milícia que Mishima havia criado, a Tatenokai
(Sociedade do Escudo). Um desses homens foi o responsável por
decapitar os dois suicidas para abreviar sua agonia. Enfim, um
horror. Mas ainda mais horrível, mais trágico e, para cruel
infelicidade dele, mais ignorado, é o suicídio de Emilio Salgari, o
amado Salgari dos intrépidos romances de Sandokán, que
povoaram minha infância de aventuras lendárias e países exóticos.
O pobre Salgari que quis ser marinheiro, mas que apenas
embarcou algumas vezes num navio-escola e depois num mercante
onde passou três meses pelo litoral da sua Itália natal,
provavelmente como passageiro. Quero dizer que, ao contrário do
que o próprio autor sustentou, parece que não fez nenhuma outra
viagem: esse aventureiro de coração teve uma existência não
apenas sedentária, como também miserável. Seu pai se suicidou,
sua amada esposa enlouqueceu e teve de ser internada num
manicômio, seus editores o exploravam com contratos leoninos e,
apesar do seu trabalho incessante e da popularidade dos seus
livros, não conseguia ganhar dinheiro suficiente para alimentar
seus quatro filhos e pagar as despesas médicas da mulher. No dia
25 de abril de 1911, decidiu cometer haraquiri, mas, em vez de usar
uma espada ritual e afiadíssima, usou uma faca comum, em
absoluta solidão e sem ninguém que pudesse decapitá-lo para
reduzir seu sofrimento atroz. O que pode haver passado pela sua
cabeça desequilibrada para escolher tal método? Talvez assim
aspirasse a conquistar a grandeza épica que lhe fora tão evasiva.
Porque ele dedicou toda sua vida a escrever sobre heróis, mas na
verdade era um homem humilhado, oprimido, quase poderíamos
dizer que escravizado. Sim, provavelmente quis se redimir com
aquele suicídio brutal e corajoso. Mas hoje não nos lembramos da
sua morte e, se formos informados de como foi, não parece
grandiosa, mas patética (como o destino é debochado). Salgari
deixou três cartas: uma aos seus filhos; outra aos diretores dos
jornais; e a terceira aos seus editores. Nesta última, dizia: “Aos
senhores, que enriqueceram às minhas custas, mantendo a mim e
a minha família em uma contínua semipobreza ou ainda pior,
apenas lhes peço, como compensação pelos lucros que lhes
proporcionei, que se encarreguem dos gastos do meu funeral.
Cumprimento-os quebrando minha caneta-tinteiro. Emilio
Salgari”. Escrevo tudo isso como uma pequena homenagem a um
romancista que me fez viajar durante a infância.
“Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o
suicídio”, disse o grande escritor e filósofo francês Albert Camus
(1913-60) no ensaio “O mito de Sísifo”. Fico emocionada ao
revisitar o livro agora, décadas depois da minha primeira leitura,
pois hoje o entendo de outra maneira e até parece uma
confirmação da minha teoria de que o suicida é um viciado em
intensidade cuja luz de repente se apaga, uma pessoa que tem
dificuldade de se relacionar com a realidade porque muitas vezes a
percebe como um cenário (a rutilante boate noturna que, de dia, é
um lugar sórdido e decadente). E assim, Camus diz que vivemos
mergulhados na nossa rotina; que todo dia levantamos, nos
vestimos, tomamos o café da manhã, trabalhamos, voltamos para
casa, jantamos, dormimos, começamos de novo. Até que um dia
despertamos e deixamos de ver sentido naquilo que fazemos. Não se
esqueça da terrível frase já citada de Virginia Woolf: “Às vezes o
sentimento de total inutilidade da minha vida ressoa como um
trovão dentro de mim”. É essa mesma vertigem, esse mesmo vazio.
Se não houver uma crença religiosa a que se agarrar, a existência,
olhando bem, é um absurdo. E então você se pergunta: por que
continuar com tudo isso?
Tenho uma resposta para essa questão: porque a vida se regozija
em continuar vivendo. É uma conclusão modesta, parcial, mas
suficiente para mim. Me contento com essa tautologia existencial:
vivo porque sou um ser vivo. Quer dizer, porque sou feita para
isso. Camus diz algo parecido: “No apego de um homem à sua vida
há algo mais forte que todas as misérias do mundo. O juízo do
corpo vale tanto quanto o do espírito, e o corpo recua diante do
aniquilamento. Cultivamos o hábito de viver antes de adquirir o de
pensar”. Camus faz uma diferenciação clássica entre corpo e
espírito. Eu, por outro lado, acredito que aquilo que chamamos de
espírito também é corpo e é feito de faíscas elétricas e jatos
químicos, mas suponho que todos entendemos a que se refere.
Pois bem, minha teoria é de que, em certas ocasiões, um grande
número de circunstâncias (do meio, culturais e biológicas)
coincidem numa combinação fatal que faz com que esse “apego ao
corpo” de que fala Camus, esse dom da vida, seja varrido, apagado,
desligado. Tenho certeza de que são eclipses passageiros, porque a
fórmula exata dos ingredientes do suicídio é tão complexa que
basta esperar um pouco para que algum dos fatores
desencadeantes desapareça. Mas, nesses instantes de agitação,
pode acontecer de tudo. É como um transatlântico cujas máquinas
param de repente e sai vagando à deriva em direção às rochas: se
não conseguir religar logo as turbinas para mudar de rumo, acabará
se chocando.
Como você sabe, Camus morreu na hora aos 46 anos num
estúpido acidente de trânsito, quando estourou o pneu do carro
dirigido pelo seu amigo e editor Michel Gallimard. Foi uma pena,
pois tenho certeza de que meu estimado, apaixonado e empático
Camus ainda tinha muito o que viver. Acredito que ele também era
um desses amantes do absoluto que, justamente por essa
necessidade aguda de se sentirem sempre acesos, conhecem muito
bem as trevas. E assim, é possível que, não fosse por aquele
acidente, Camus tivesse acabado se suicidando. Fazia o tipo. “A
coisa mais importante a fazer todos os dias que você vive é decidir
não se matar”, escreveu. Mas também disse: “Em pleno inverno,
descobri que havia dentro de mim um verão invencível” (do seu
livro de ensaios O verão). Enfim, é possível que nós, os amantes da
intensidade (também sou uma, embora talvez não de modo tão
radical), tenhamos confundido felicidade com euforia, como disse
a artista espanhola Rigoberta Bandini.
Há suicídios que são filhos da razão, de uma reflexão serena e
ponderada das suas circunstâncias e da certeza de que a vida que
lhe resta viver não vale a pena, como, por exemplo, quando você
tem uma doença sofrida e incurável. Esse tipo de morte é uma
conquista, um direito e, sem dúvida, um alívio. Suponho que
poderíamos catalogar assim o duplo suicídio do escritor austríaco
Stefan Zweig e de Lotte, sua mulher, em 1942. Zweig levava uma
vida errante desde 1934, quando o nazismo desenfreado o obrigou
a deixar seu país e começar um périplo incerto por Paris, Londres,
Nova York e Buenos Aires. No exílio, terminou com sua primeira
esposa e se casou com Lotte, e os dois foram parar em Petrópolis,
no Brasil. Os livros de Zweig, que era judeu, estavam havia anos
proibidos tanto em língua alemã quanto em italiano e, naquele
momento da Segunda Guerra Mundial, o fogo bélico de Hitler
parecia indomável, ameaçando arrasar todo o planeta. Então, o
escritor e sua mulher começaram a planejar tudo. Zweig doou seus
livros à biblioteca, enviou seus manuscritos a vários arquivos
estrangeiros e queimou no quintal os papéis que não queria que
fossem conservados. Deitaram abraçados na cama, ele inteiro
vestido e de gravata, ela de camisola, e tomaram uma overdose de
barbitúricos. Há uma foto famosa dos dois na cama, já cadáveres, e
parecem muito serenos. Deixaram dinheiro para pagar o aluguel,
com um pouco a mais pelo inconveniente, e um bilhete em que
pediam desculpas à dona da casa. Deixaram também um
testamento recém-revisado; os últimos textos inéditos prontos
para publicação; instruções precisas para distribuir suas roupas e
posses entre os pobres; e amorosas disposições sobre o futuro do
seu cachorro, que haviam doado previamente à proprietária da
casa. Por último, deixaram ainda uma porção de cartas aos amigos,
cada uma num envelope e, o mais comovente, cada envelope
devidamente selado. Até nos selos pensaram essas amáveis
criaturas. Sua mensagem de despedida, escrita em alemão, dizia
assim:

Por vontade própria e em plena lucidez.


Aprendi todos os dias a amar este país (Brasil), e não teria
reconstruído minha vida em nenhum outro lugar depois que o
mundo de minha própria língua naufragasse e se perdesse para
mim, e que minha pátria espiritual, a Europa, se
autodestruísse.
Porém, começar tudo de novo quando você já fez sessenta
anos requer forças especiais, e minha própria força se exauriu
ao longo desses anos de andanças sem lar. Prefiro, então, pôr
fim à minha vida no momento apropriado, altivo, como um
homem cujo trabalho cultural sempre foi sua mais pura alegria e
liberdade pessoal, seu bem mais precioso nesta terra.
Saudações a todos os meus amigos. Espero que sobrevivam
para ver a aurora após esta longa noite. Eu, que sou muito
impaciente, vou-me embora antes deles.

Há apenas uma coisa que me incomoda nisso tudo: a total falta de


referências à sua mulher no belo texto final. Pô, Stefan! Não podia
ter mencionado a linda Lotte, muito mais nova que você (ela
morreu com apenas 33 anos, ele com sessenta), que embarcou
abnegada e muito prematuramente contigo naquela longa noite? E
isso porque estavam juntos fazia apenas cinco anos. Aliás, segundo
a autópsia, parece que ela morreu algumas horas depois. Será que
no fim teve dúvidas? Em todo caso, receio que a falta de respeito
pela esposa revela muito sobre o tipo de relação que mantinham.
Muito pouco recomendável, eu diria. Esses suicídios em dupla que
parecem ditados e dominados pela vontade do homem sempre me
causaram uma profunda inquietação. Como o do escritor húngaro-
britânico Arthur Koestler, que se matou em Londres em 1983
junto com sua terceira esposa, Cynthia. Ambos pertenciam à
Sociedade para a Eutanásia Voluntária, mas, caramba, Koestler
tinha 77 anos e um Parkinson galopante que lhe fazia sofrer,
enquanto Cynthia tinha apenas 56 e estava saudabilíssima. E a
questão é que, se trocarmos os gêneros, essa tendência ao suicídio
conjugal não parece abundar. Quando Zenobia Camprubí estava
morrendo de câncer com muitas dores, seu marido, Juan Ramón
Jiménez, lhe propôs diversas vezes que se suicidassem juntos, o
que obviamente acabou não fazendo. E não digo isso como uma
crítica, pelo contrário: é preciso aprender com essa autonomia vital
dos homens. Enfim, por que será que tudo isso me lembra a
horripilante liturgia do sati, por meio da qual as viúvas indianas
eram obrigadas a se jogar na pira funerária do marido?
Mas, voltando ao nosso assunto, acredito que sim, que a morte
de Zweig foi de fato filha do desejo e da lucidez. Ou seja: não lhe
agradava a vida que ele achava que tinha pela frente. Porém, me
parece que esses finais reflexivos ocorrem muito raramente. Eu
diria que quase todos os suicídios são desesperados, irracionais,
patológicos. Não é que não gostem da vida: é que não conseguem
gerenciá-la. Penso que a maioria dos suicidas não quer se matar;
simplesmente se sentem incapazes de continuar vivendo. Nelly
Arcan, a escritora que tinha um prego na parede de casa para se
enforcar, disse: “Nada no mundo pode parar a loucura que avança
de frente, diz-se que as pessoas que a veem chegar se afastam para
não serem levadas […]. Os malaios encontraram uma palavra para
denominar seu passo cego a toda a velocidade: amok”. É assim que
eu também vejo esse tipo de suicídio: como uma erupção
vulcânica, como um manto de lava que arrasa tudo.
Suponho que na realidade seja uma espécie de possessão, uma
ideia fixa que se apropria de você, um terror que te devora.
“Continuo deslizando nesse poço de pânico e congelamento”,
escreveu Plath. E o mesmo disse Virginia Woolf na desoladora
carta final que deixou a Leonard, seu marido:

Tenho certeza de que, mais uma vez, estou ficando louca. Acho
que não posso superar outra daquelas terríveis temporadas. Não
vou me curar desta vez. Comecei a ouvir vozes e não consigo
me concentrar. Por isso, estou fazendo o que acho melhor. Você
me deu a maior felicidade possível. Você foi em todos os
aspectos tudo o que se pode ser. Não acho que duas pessoas
poderiam ter sido mais felizes até surgir essa terrível doença
[…]. Note que nem sequer consigo escrever isso
adequadamente. Não consigo ler […]. Se alguém pudesse ter
me salvado, teria sido você. Não me resta nada, salvo a certeza
de sua bondade.

Esta última frase me deixa arrepiada. Mas repare no que diz


Virginia: ela foi feliz, repete isso várias vezes. Não é que duvide da
alegria que a existência pode conter, apenas não é capaz de habitá-
la. Digamos que perdeu o conhecimento de como se vive, da
mesma forma que o paciente de Alzheimer um dia perde o
conhecimento de como amarrar os sapatos. E acho que é uma
analogia mais acertada do que poderia parecer à primeira vista,
pois em ambos os casos há uma certa desconexão neurológica por
trás. O problema é que a perda de Virginia, ao contrário da perda
do Alzheimer, é momentânea; dali se pode voltar, por mais que a
loucura sussurre no seu ouvido que dessa vez não vai ser curada.
“Ninguém percebe que algumas pessoas gastam uma energia
tremenda simplesmente para serem normais”, disse Albert Camus.
Sim, concordo plenamente: alguns precisam pedalar de modo
incessante rumo à intensidade e à beleza para poder acreditar na
ilusão da realidade. Para sustentar a frágil estrutura convencional
da existência. Para ser capazes de levantar todos os dias, executar
as rotinas de que falava Camus, continuar achando que comer e
respirar têm algum sentido. Dom Quixote deixou de encontrar
uma razão para a vida quando abandonou, como impossíveis (pelas
pauladas que o acertavam por todos os lados), seus sonhos
grandiosos de cavalaria. Sancho, que o conhecia muito bem, tentou
arrancá-lo de sua depressão:

— Ai! — respondeu Sancho aos prantos. — Não morra vossa


mercê, senhor meu, e tome o meu conselho de viver muitos
anos, porque a maior loucura que pode um homem fazer nesta
vida é deixar-se morrer sem mais nem mais, sem que ninguém
o mate nem outras mãos o acabem senão as da melancolia.

Dom Quixote foi outro suicida, e acho que Cervantes sabia muito
bem do que estava falando. Como também sabia Shake­speare, que
faz Hamlet dizer seu famoso monólogo sobre a conveniência ou
não de se matar:

Ser ou não ser: eis a questão:


Saber se é mais nobre na mente suportar
As pedradas e flechas da fortuna atroz
Ou tomar armas contra as vagas de aflições
E, ao afrontá-las, dar-lhes fim. Morrer, dormir.
Só isso.
[…]
Morrer, dormir;
Dormir, talvez sonhar — sim, aí está o entrave:
Pois no sono da morte os sonhos que virão,
Depois de repudiado o vórtice mortal,
Nos forçam a refletir. E é bem esse reparo
Que dá à calamidade uma vida tão longa.
Pois quem suportaria o açoite e o esgar do mundo,
A afronta do opressor e o insulto do soberbo,
O baque do amor ferido, o lento da lei
A insolência do mando e este bruto achincalhe
Que o mérito paciente recebe do inepto,
Se pudesse ele próprio quitar sua quietude
Com um reles punhal. Quem suportaria fardos,
Gemendo e suando numa vida de fadigas,
Senão porque o terror ante algo após a morte?

Leio na internet (mágica Biblioteca de Alexandria) que Shake­-


speare tem nada mais, nada menos que treze personagens suicidas
na sua obra — o que, somado à curiosidade do seu raciocínio no
monólogo de Hamlet (me mataria se não fosse pelo medo do
Além), levanta suspeitas de que o bardo andou flertando com a
Parca. Por outro lado, que interessante que as crenças religiosas
possam ser sem dúvida reconfortantes, mas ao mesmo tempo
aterrorizantes. Ao perder os deuses, a humanidade se libertou
também do inferno.
Enfim, tenho certeza de que nos suicídios desesperados, que
são a maioria, há uma predisposição psicológica e neurológica, uma
tendência à irrealidade e aos curtos-circuitos neuronais que às
vezes é agravada de modo crítico por um acúmulo de
circunstâncias alienantes. Mas insisto que a tempestade perfeita
que conduz à morte requer tantas coincidências que qualquer
pequena alteração pode te salvar. Paul Morand conta, em L'Art de
mourir [A arte de morrer], que um jovem húngaro se jogou no
Danúbio e recusou toda tentativa de socorro, até que chegou um
policial, sacou seu revólver, apontou para ele e exclamou: “Saia ou
eu atiro”. E o jovem saiu.
Lembra-se do belga-suíço Henri Roorda, que assinava com o
pseudônimo de Balthasar, autor de um magnífico livrinho
intitulado Mon Suicide, depois do qual se matou? Eu disse que
voltaríamos a falar dele. Com extraordinária intuição, Roorda se
adianta um século às modernas descobertas neurológicas: “Sinto-
me inclinado a acreditar que em minha pequena maquinaria
interna existe, há tempos, uma correia de transmissão danificada”.
Exato, são as famosas falhas de fiação a que se refere Eric Kandel.
Você também deve se lembrar de que Roorda era um perfeito
viciado em intensidade, um caçador da exaltação e da ventura:
“Preciso viver inebriado”. O capítulo final do seu livro intitula-se
“Últimos pensamentos antes de morrer” e, entre outras coisas,
diz: “Tudo é fisiologia. Os motivos pelos quais estou decidido a
abandonar este mundo seriam insuficientes para alguém que não
fosse eu. Oras, meu modo de sentir não é o de todo mundo […].
Amo imensamente a vida. Mas, para desfrutar do espetáculo, é
preciso ocupar um bom assento”. Mais adiante, acrescenta estas
frases extraordinárias:

Vou me matar logo. Não mereço este castigo. Tenho certeza de


que tive menos pensamentos sórdidos que a maioria desses
bons cidadãos de sucesso que jamais pensarão em cometer
suicídio. Os versos bonitos que eu recitava para mim mesmo
tingiam meu espírito de pureza. Todos os dias eles me
proporcionaram um minuto de emoção. Ah, bem que eu
gostaria de continuar na Terra!
E também: “Ao longo do dia, meu humor varia com frequência. Há
momentos em que me esqueço de que vou morrer. Então, sorrio e
cantarolo as melodias que aprecio, pois ainda há em mim um
grande estoque de alegria. Destruir tudo isso é um desperdício.
Embora eu nunca tenha aprendido a economizar”. Essa dolorosa
ode à vida me lembra o que Sylvia Plath disse ao seu vizinho: “Não
quero morrer. Há tantas coisas que quero fazer”. Quanto
pedalaram Roorda e Plath ao longo dos anos, arranhando a beleza
de versos bonitos, buscando o minuto de sublime emoção que
pudesse protegê-los do abismo! Ouça: se alguma vez você sentir
que o amok está avançando, se a lava se aproximar com seu hálito
de fogo, pense que este que você é agora não é você. Que seus
pensamentos estão momentaneamente desligados; que seu juízo é
tão pouco ajuizado quanto o de quem tomou uma dose de ácido
lisérgico. Não é absurdo e doloroso que alguém, numa viagem de
LSD, acredite ser o Super-Homem e se jogue pela janela? Pois o
suicida desesperado julga sua situação da mesma maneira tóxica e
confusa. Aguente firme. Aguente até baixar o nível do alucinógeno.
Aguente até que a situação mude, porque ela inevitavelmente
mudará. Aguente nem que seja mais um dia. Seja seu próprio
policial, saque o revólver e ordene: saia daí. E você sairá.
Também gostaria de partilhar algumas reflexões com os
enlutados, com os familiares daqueles que se foram. Em primeiro
lugar, me parece que o suicídio mancha retrospectivamente a vida
inteira; tendemos a considerar que toda a existência do falecido foi
uma tragédia, como se esse mal final envenenasse tudo, quando
não é verdade. Como já repetimos à exaustão, a maioria dos
suicidas ama viver e gozou de muitos momentos maravilhosos. E,
em segundo lugar, o suicídio é dramático, evidentemente, pois
implica uma morte; mas ele é fruto de uma doença, de uma
desconexão elétrica do corpo, semelhante à que te acomete
quando você tem um infarto. O que quero dizer é que não acho
que devamos acrescentar um tormento de culpas fantasmagóricas à
pura e sagrada dor da ausência do ente querido.
Voltando ao nosso Henri Roorda, vou te contar que ele
escondeu um revólver carregado entre as molas do colchão e
dispensou educadamente os amigos que, preocupados, iam visitá-
lo. Quando terminou de redigir seu breve texto, se matou com um
tiro. Estas palavras estão quase no final do livro:

Gostaria de acariciar mais uma vez os seios de Alicia para não estar
só.

Para não sentir na minha última hora


Que meu coração se parte
Para não chorar, para que o homem morra
Como nasceu o menino.
Debaixo da cama e berrando

Agora, se você não se suicidar, e se tiver a sorte de não morrer


jovem, então terá pela frente o horizonte de uma longa decadência,
de um envelhecimento mais ou menos prolongado, mais ou menos
cruel, ridículo e penoso (gemendo e suando numa vida de fadigas,
como dizia Hamlet), e para coroar esse declínio, a inexorável cereja
do bolo da morte. A vida tem seus reveses.
Aos vinte anos, eu olhava espantada para os mais velhos, de
canto de olho. Todas as pessoas que superavam a barreira dos
sessenta me pareciam velhíssimas, e principalmente me admirava
que fossem capazes de entrar e sair e falar e comer e sorrir de um
jeito tranquilo e natural, estando como estavam tão perto do fim.
Não me entrava na cabeça que alguém já se encontrasse espiando a
própria morte, como um daqueles presos que estão na ala dos
condenados esperando a execução iminente, e que seguissem em
frente como se nada acontecesse. No seu lugar, eu dizia para mim,
passaria os dias enfiada debaixo da cama e berrando, tamanho era o
terror que aquele pensamento me causava. Quero te lembrar que
até os trinta anos sofri ataques de pânico.
Hoje, tenho setenta anos. Setenta. Repito e rumino isso porque
não consigo acreditar. Setenta. E, curiosamente, não estou
agachada debaixo de nenhum móvel e com certeza não grito, pelo
menos não de modo audível. Sempre pensei que escrevo, entre
outros motivos, para tentar perder o medo da morte. Uma das
coisas mais lindas que um leitor já me disse foi num bate-papo no
jornal El Mundo, após a publicação do meu romance História do rei
transparente, em 2005. “O que eu mais gostei deste livro é que eu
acho que depois de lê-lo tenho menos medo de morrer”, explicou
o homem, e me deixou maravilhada, pois comigo acontecera algo
parecido: escrever aquela obra havia limado alguma das arestas do
terror. Há um romance do genial Martin Amis, A informação, que
fala dessa voz que, segundo o autor, te acorda à noite depois que
você fez quarenta anos e te sussurra no silêncio da madrugada:
Você vai morreeeeer… você vai morreeeeer (essa é a “informação”
a que o título do livro se refere). A verdade é que escuto esse
cochicho do além-túmulo desde a infância e, ao contrário do
personagem de Amis, que está preso à crise de meia-idade, acho
que com o tempo fui domando um pouco meus temores. O que
não quer dizer que não continue sentindo às vezes o horror de
envelhecer e a angustiante raiva da minha finitude. Mas, veja só,
não estou escondida num ninho de poeira debaixo da cama (pelo
menos por enquanto). “Que miserável se é quando não se sabe
morrer”, dizia Sêneca. O infeliz foi obrigado por Nero a se suicidar
e parece que não se saiu muito bem: fez cortes nas pernas e nos
braços para sangrar até a morte, mas, como a coisa demorava,
pediu ao seu médico que lhe desse cicuta, um veneno que também
não fez o efeito que ele queria, e acabou entrando num banho
quente para acelerar a hemorragia. Tanta impaciência na travessia
me faz desconfiar de uma angústia excessiva. Espero que tenha
sabido morrer como queria. Ele tinha 69 anos, ou seja, sou um ano
mais velha (ultimamente as pessoas estão adquirindo o detestável
costume de ser mais novas que eu).
Já contei que em 1997 entrevistei Doris Lessing para o El País.
Foi antes de ela ganhar o Nobel. Tinha 78 anos e me pareceu uma
idosa. Eu tinha 46, mas a achei mais velha não só pela diferença de
idade, e sim porque na verdade Doris estava envelhecida: vejo hoje
seus retratos daquele dia e continuo a achando bastante castigada
pelo tempo. Bela e poderosa, porém murcha. Fui entrevistá-la com
meu amigo e grande fotógrafo Chema Conesa. Ela nos recebeu em
Londres, na sua pequena casa geminada de dois andares, com um
minúsculo jardim de frente e um quintal nos fundos, o típico lar
inglês por excelência. Mas vou contar aqui, como prometido, algo
que nunca disse em público: a casa de Doris Lessing estava
parcialmente tomada pelo lixo. Tudo o que se via do andar inferior
quando se abria a porta da rua, a cozinha inteira e a escada para o
andar de cima, estava quase impraticável, coberto de caixas,
caixotes, papéis, sacolas e objetos indistintos, todos amontoados
uns em cima dos outros até quase atingir alguns metros de altura.
Tivemos de atravessar aquela selva de cacarecos para poder sair ao
quintal e fazer as fotos, e posso garantir que naquela cozinha era
impossível cozinhar (ou se mover, ou se servir de um copo d'água).
No entanto, quando você subia desviando das coisas pelas escadas,
chegava a um andar superior bastante limpo, arrumado e zen, com
bonitos porém puídos tapetes orientais, móveis antigos muito
usados, mesas cobertas de pilhas de livros. Um lar austero mas
cheio de vida, um refúgio acolhedor que parecia ser o último
bastião de defesa contra o ataque do caos, contra aquele oceano de
escombros que já inundava o piso inferior e que ia subindo escada
acima com um furor irrefreável (aliás, a poeta italiana Alda Merini
também sofreu da síndrome de Diógenes).
Sempre pensei que a vida é uma luta constante contra o caos,
isto é, contra a maldição da entropia. E, de fato, um dia descobri
que na verdade é exatamente assim. Em 2006, fiz uma entrevista
com James Lovelock, um dos cientistas mais polêmicos e originais
da segunda metade do século XX. Nos anos 1960, ele trabalhou para
a Nasa e lhe pediram que desenvolvesse algum método de
detecção de vida em outros planetas. Lovelock propôs buscar uma
redução da entropia, ou seja, da desordem. É que o equilíbrio
químico da atmosfera possui um índice muito alto de desordem.
De modo que, quando se encontra uma atmosfera com entropia
baixa (com desordem baixa), em que há, por exemplo, muito
metano, ou muito oxigênio, ou qualquer outra disposição química
anômala, isso indica a presença de vida. Porque é a vida que altera
o caótico desequilíbrio químico e o ordena. Dito de outro modo: se
você estiver tomando uma sopa de macarrão em forma de
letrinhas, todas as pequenas partículas de sêmola estarão
bagunçadas; mas, se na colherada que você levar à boca
começarem a surgir palavras bem compostas, isso quer dizer que
houve alguém ali arrumando os signos.
Essa ideia de Lovelock da vida como geradora de ordem me
pareceu muito bonita. Foi como a confirmação de algo que eu
sempre soube, isto é, que o destino final do universo é a desordem,
e que o caos é uma besta colossal disposta a avançar contra você
para te devorar inteiro. Foi o que senti na casa de Lessing, uma
mulher idosa presa numa síndrome de Diógenes crescente. A
velhice, toda velhice — e, quanto mais extrema, pior —,
enfraquece nossas defesas contra o avanço do lixo. Antes de
apodrecermos, começa a apodrecer nosso entorno. Uma
perspectiva bastante perturbadora. Imaginei Doris Lessing muitos
anos antes, cheia de vigor e, sobretudo, de futuro. Imaginei seus
tapetes persas com a trama perfeita e sem desgastar, as cores
vibrantes. E, no andar de baixo, uma cozinha primorosa e recém-
pintada, na qual a escritora prepararia o chá no fim da tarde.
Pergunto-me para onde vai a vida boa quando ela se vai. Em que
momento se rompe a espinha dorsal das coisas. Doris Lessing
perdeu um filho, e essa é uma ferida difícil de curar. Nem sempre é
assim, mas com frequência envelhecer é ir se rendendo à
melancolia. Perguntei a ela se tinha medo de ficar louca:

Veja, isso é muito interessante. Não acho que temi a loucura,


porque, em primeiro lugar, botei meus medos para fora através
da literatura, isto é, escrevi meu medo da loucura. E, em
segundo, acho que tenho muitos pontos de contato com
pessoas que estão loucas, mas acho que posso… É algo por si só
interessante, acho que posso… não gosto da palavra sublimar,
mas, enfim, acho que posso simplesmente passar minha loucura
para… talvez para outras pessoas. Posso rebatê-la para fora de
mim.

Também falamos da época em que Doris sofreu uma depressão e


de como entrou nela: “Não importa o que aconteceu, com certeza
foram motivos dos mais irrelevantes. O importante é saber que
acontece assim, que um dia, de repente, inesperadamente, toda
aquela tristeza cai sobre você e te inunda, e então você deve se
perguntar o que andou escondendo, o que andou silenciando a si
mesma durante todos aqueles anos”. Foi uma conversa muito
triste, embora a cabeça de Lessing continuasse tão brilhante
quanto a de um cometa. Mas a lembrança daquelas torres de
entulhos e daquela mulher acossada pela idade, pela decadência e
pela escuridão sempre me perseguiu. Dez anos depois, deram a ela
o prêmio Nobel. Espero que isso a tenha animado um pouco
(embora eu tenha minhas dúvidas).
O deserto gelado da velhice. Ser velho é heroico. Embora haja
indivíduos que consigam escapar da temível decadência final,
como a maravilhosa Minna Keal. Filha de imigrantes judeus russos,
nasceu em Londres em 1909. A família inteira era melômana, e
Minna começou a estudar música na Royal Academy, mas seu pai
morreu quando ela tinha dezenove anos e Minna teve de
abandonar a carreira para começar a trabalhar. Tornou-se
comunista em 1939, mas deixou o partido em 1957, após a invasão
da Hungria pela União Soviética. Casou-se duas vezes, teve um
filho e, durante a Segunda Guerra Mundial, montou uma
organização que tirava crianças judias da Alemanha. Enfim, eu
diria que ela teve uma vida razoavelmente satisfatória e plena. A
parte menos empolgante era seu trabalho: foi secretária em
diversos e tediosos empregos administrativos, até se aposentar aos
sessenta anos. Dona do seu tempo, decidiu retomar a carreira
musical e estudar composição. Estreou sua primeira sinfonia em
1989 nos BBC Proms, concertos de grande prestígio realizados
todos os anos no Royal Albert Hall de Londres. Foi um sucesso
estrondoso. Minna Keal tinha oitenta anos. Dali em diante, e até
sua morte, uma década depois, Minna se dedicou com paixão à
música e se tornou uma das mais notáveis compositoras
contemporâneas da Europa. “Achei que estava chegando ao final da
vida, mas agora sinto como se estivesse começando. É como se
estivesse vivendo minha vida de trás para a frente”, declarou à
imprensa após a estreia de sua sinfonia nos Proms. Isso sim é que é
energia.
Mas há muitas outras pessoas que não conseguem. Fui
testemunha disso com minha admirada e amada Ursula K. Le
Guin, uma autora minimizada pela crítica convencional pelo fato
de ter sido catalogada dentro do gênero fantástico e de ficção
científica, mas que para mim é uma das melhores escritoras do
século XX. Os despossuídos é um livro extraordinário, um daqueles
poucos romances totais, à altura de A montanha mágica e de Guerra
e paz. Pois bem, graças à mediação de uma professora norte-
americana, Mary Harges, que lhe disse que eu adorava sua obra,
tive a incrível sorte, um desses presentes da vida, de estabelecer
contato com ela e virar sua amiga. Primeiro nos escrevemos
durante algum tempo, e por fim viajei a Portland no verão de 2011
para conhecê-la pessoalmente. Tinha 81 anos e era encantadora: foi
a melhor anfitriã e a mais sorridente (veja essa foto genial de nós
duas com Charles, seu marido).
Ursula tinha a mente clara como o cristal e um senso de humor
hilariante. Mas suas costas fraquejavam, sua vida lhe doía e fazia
anos que não podia escrever (só uma ou outra poesia de vez em
quando). E isso, a seca criativa, a enchia de uma tristeza lancinante
que ela tentava suportar com estoicismo. Agora, anos depois da sua
morte, li uma bela compilação de diversos textos seus que foi
publicada na Espanha, Contar es escuchar [Contar é escutar], e
fiquei surpresa ao encontrar ali, narrado de um jeito muito mais nu
e cru (nós, escritores, escrevemos bem melhor do que falamos),
tudo aquilo sobre o que conversamos tantas vezes, pessoalmente e
por carta. Porque eu repetia a ela que não perdesse a esperança,
que se sentasse à mesa e começasse qualquer texto, que
exercitasse os dedos e se permitisse brincar com as palavras, como
quando era menina. E ela me respondia repetidas vezes que com
ela não era assim; que algo se fora, se quebrara, se perdera. Que
algo parecia ter morrido para sempre.
Pois bem, em Contar es escuchar há um último capítulo com um
título feroz que me congela o sangue: “Corpo velho que não
escreve”. Nele, Ursula fala dos seus problemas de inspiração e diz:

Minha busca por uma história, quando fico impaciente, consiste


menos em buscar um tema […] que em esperar um encontro
com um desconhecido […]. Os momentos em que ninguém
percorre a paisagem são silenciosos e solitários. Podem se
prolongar por muito tempo, até eu chegar a pensar que não
haverá mais ninguém, exceto uma velha estúpida que antes
escrevia livros. Mas é inútil tentar povoar a paisagem a seu bel-
prazer. As pessoas só chegam quando estão dispostas, e não
respondem a nenhuma ligação. Só respondem com silêncio.

Que desolação, literalmente. Imagino minha querida Ursula


levantando de manhã, sabendo que terá de enfrentar a travessia
daquele dia, e de muitos outros, como quem atravessa o deserto do
Kalahari. Arrastando os pés e olhando para o chão. Você se lembra
do que dizia a jovem Claire Legendre, sobre conhecer apenas duas
formas de dar sentido à sua vida ou de acreditar que ela tem um,
amar alguém e escrever livros? Repito isso angustiada, pois sinto o
mesmo. Como sobreviver quando te faltam essas coisas? Me
pergunto por que essa pulsão criativa se perde, como secou a
colossal, poliédrica imaginação de Ursula K. Le Guin? Ela estava
mal de saúde, tinha dores. Talvez tudo seja simples assim, talvez a
arte não seja mais que uma função física, um produto do estado
dos nossos ossos, nossas vísceras, nossos músculos. Digamos que a
velhice vai roubando sua energia, aquela energia que, de acordo
com todos os especialistas, é tão essencial no processo criativo.
Digamos que a velhice te apaga.
Que medo.
Seu corpo é uma Troia sitiada que no fim, você sabe com plena
certeza, acabará caindo. A única coisa que te falta saber é qual será
o cavalo. Podem fraquejar seus joelhos, a coluna, o quadril, você
pode acabar numa cadeira de rodas; pode ter tonturas e não
conseguir ficar em pé; pode perder a capacidade respiratória e
precisar de oxigênio, a cardíaca e quase não poder se mexer, a
mental e se transformar numa espécie de monstruoso bebê
deteriorado. A carne é capaz de te trair de muitas formas.
Mesmo assim, eu continuo sem me esconder debaixo da cama.
Me vejo em Doris e em Ursula, enfim, me observo nos mais
velhos, e respiro fundo tentando me preparar para essa última
corrida (embora também exista Minna). Falei com Lessing sobre a
idade. Vou copiar um fragmento da nossa conversa:

— A senhora sempre fez e disse coisas pouco convencionais. É


a antítese do politicamente correto. E isso lhe rendeu muitas
críticas: os de direita a odeiam, a esquerda radical a considera
uma traidora…
— Pois é.
— Esse seu lugar, do rigor e da lucidez, não é muito
solitário?
— Bem, alguém disse que um dos grandes problemas de ser
velho é que você não pode dizer em voz alta quase nenhuma das
coisas que realmente pensa, porque sempre acaba sendo
ridículo, chocante ou incômodo.
— Soa bastante triste.
— Sempre se pode falar com os contemporâneos.
— E como a senhora vive tudo isso? Como vive seus 78
anos?
— O que você está perguntando é como lido com o fato de
ser velha, certo? Bem, o que se pode fazer? Não há outro
remédio senão viver a velhice. Não se pode fazer nada contra
ela.
— Já lhe disse antes que, para mim, a senhora é uma espécie
de exploradora. Por favor, me diga que a essa idade também há
momentos em que a vida é bela.
— Eu nunca achei que a vida fosse bela.
— Então pelo menos me diga que ainda se preserva a
curiosidade, e a excitação de descobrir coisas novas, e o prazer
de escrever…
— Sim, isso sim. Tudo isso ainda se mantém intacto.

Esse foi o final da entrevista. Dedos cruzados.


A grande dança

Pare de ranger os dentes, criatura, que não é para tanto! Me refiro


ao capítulo anterior. Já sei que te deu calafrios. Eu também às vezes
sinto meu sangue gelar ao pensar em todas essas coisas, confesso.
Mas isso me acontece quando olho o mundo a partir do meu
umbigo. Se estou encerrada na mesquinharia de mim mesma,
sempre fico à mercê da minha morte, porque a ladra de doçuras
nos espera enroscada dentro de nós. No entanto, se for capaz de
erguer a cabeça e sair de mim e voar um pouco, então eu diria que
posso até roubar algumas faíscas da eternidade. Conseguimos isso,
como vimos, nas explosões da paixão amorosa; e também quando
escrevemos, isto é, quando escrevemos bem, quando escrevemos
melhor do que sabemos escrever. Quando dançamos com as
palavras.
Na realidade, tudo é uma questão de música. Por exemplo, este
livro. Estou há décadas pensando nesses temas. Refletindo sobre a
criatividade e a loucura. Até que, cerca de três anos atrás, comecei
a tomar notas sistemáticas, já com a intenção de escrever um texto.
Depois de ler e reler dezenas de obras e de encher de anotações
vários cadernos, eu tinha uma nebulosa cósmica de dados tão
grande na cabeça que me sentia tonta e um tanto assustada.
Cheguei a pensar que nunca seria capaz de abrir passagem em
meio àquela caótica selva de ideias e referências. Que jamais
encontraria meu caminho. Mas aí respirei fundo, fechei os olhos e
comecei. Movi a ponta dos pés apenas alguns centímetros. Depois
os ombros. Os quadris. Há um zumbido que sai de dentro da obra
e ecoa nas profundezas da sua cabeça. O zumbido do mundo. Há
uma pulsação essencial, um ritmo inebriante. Você só precisa
aprender a se deixar levar. A não ter medo de perder o contato
com o chão. Escrever é dançar, e a música foi me levando como
quem trança passos no ar, até chegar a estas linhas que digito
agora.
Mas vou te dizer algo ainda mais importante: a própria vida
também é uma dança. Naquele livro que mencionei antes,
intitulado Contar es escuchar, Ursula K. Le Guin diz estas palavras
formidáveis (ela sempre teve o dom de saber abarcar a realidade do
mais ínfimo ao grandioso):

Todos os seres vivos são osciladores. Nós vibramos. Amebas ou


humanos, pulsamos, nos movemos ritmicamente, mudamos
ritmicamente, marcamos o tempo. O fenômeno é percebido ao
observar uma ameba pelo microscópio. Ela vibra em frequências
correspondentes aos níveis atômico, molecular, subcelular e
celular. Esse pulsar constante, delicado e complexo é o processo
da própria vida tornado visível.

Sim, é assim, sempre intuí que eu era parte de um todo. “Com os


anos, tenho a sensação crescente de que há uma continuidade na
mente humana; que, de fato, existe um inconsciente coletivo que
nos entrelaça, como se fôssemos cardumes de peixes espremidos,
dançando em uníssono sem sabê-lo”, escrevi no meu livro A
ridícula ideia de nunca mais te ver. Por isso gostamos tanto de
atividades coletivas, por isso nos comove (e até mesmo nos cura,
nos completa) fazer coisas sincronizadas com outras pessoas, ou
seja, participar de corais, de orquestras, de danças. Ser você e ser
outros. Ser você graças aos outros.
Há um biólogo e bioquímico britânico, Rupert Sheldrake
(1942), que defende que entre os membros de uma mesma espécie
se desenvolve um certo tipo de união que vai além do físico e
permite que comportamentos aprendidos por alguns indivíduos
possam passar ao conhecimento de todos os demais. Ele chama
isso de ressonância mórfica, e sua teoria foi violentamente atacada
pela comunidade científica, que a considera um disparate. Levando
em conta que Sheldrake é também parapsicólogo, que diz coisas
estranhas e que suas ideias não foram devidamente comprovadas,
não me admira que o malhem. Mas há algo reconfortante e belo na
sua proposta (e seu livro, Cães sabem quando seus donos estão
chegando, é bem engraçado).
Muito mais relevante que Sheldrake é a grande bióloga
estadunidense Lynn Margulis (1938-2011). Este não é o lugar nem
eu a pessoa mais indicada para desenvolver as inovadoras e geniais
descobertas de Margulis, que estão transformando o
evolucionismo, por isso direi apenas que ela introduziu as
bactérias no estudo da evolução, e que demonstrou que as células
eucariontes (as mais complexas, com núcleo, das quais viemos
todos os animais, fungos, plantas e protozoários e outros bichos)
tinham sua origem na simbiogênese das células procariontes (para
simplificar: na fusão das células mais antigas e simples), e não em
pequenos saltos adaptativos gerados por mutações casuais, isto é,
por erros na cópia do DNA, o que era defendido pelo evolucionismo
tradicional. Margulis levou metade da vida para ser ouvida, e o
trabalho em que apresentava suas ideias foi recusado quinze vezes
antes de conseguir que o publicassem. Hoje, dos três pontos em
que baseia sua teoria, falta comprovar apenas um, os outros dois já
foram aceitos pela comunidade científica. Pois bem, Margulis diz
coisas como esta:

A simbiogênese reúne indivíduos diferentes para criar


entidades maiores e mais complexas […]. Os “indivíduos” se
fundem permanentemente e regulam sua reprodução. Eles
geram novas populações, que se transformam em indivíduos
simbióticos multiunitários novos, os quais se transformam em
“novos indivíduos” em níveis mais amplos e inclusivos de
É
integração. A simbiose não é um fenômeno marginal ou raro. É
natural e comum. Vivemos num mundo simbiótico.

Seria possível dizer, então, que a vida revela uma tendência radical
a se unir e se fundir em organismos maiores. E deixe-me
acrescentar mais uma notícia: no outono de 2021, foi publicada na
revista eNeuro uma pesquisa da Universidade de Tecnologia de
Toyohashi (Japão), dirigida por Mohammad Shehata, a qual
demonstra que o trabalho em equipe tem uma correlação cerebral,
isto é, que a consciência não seria apenas individual, mas também
grupal, pois quando várias pessoas dividem uma tarefa que requer
uma alta carga emocional, cria-se um estado hipercognitivo que
gera uma maior integração da informação entre os cérebros dos
indivíduos e uma intensa sincronia neuronal. Quer dizer: os
cérebros implicados começam a funcionar da mesma maneira. E,
assim, desligam simultaneamente o registro dos estímulos
externos, exceto a informação proveniente dos demais indivíduos
da equipe, e potencializam a atividade das ondas cerebrais beta e
gama (que gerenciam a vigília e a lucidez) no córtex temporal. E o
mais extraordinário é que todas essas mudanças são sincronizadas,
todos os cérebros compartilham as mesmas oscilações neuronais.
Esse trabalho não é o primeiro a respeito da sincronia entre os
humanos. Sabe-se há muito tempo que as pessoas se adaptam
facilmente, por exemplo, mudando juntas a postura corporal
quando estão conversando entre amigos, ou equilibrando os
batimentos cardíacos ao ver um filme juntos e ao dormir a dois, ou
unificando os ciclos menstruais em grupos de mulheres que
convivem, como num internato. Além disso, a sincronia parece ser
um assunto em voga, e pelo visto há um número significativo e
crescente de estudos de neurociência que tratam dele. Mas o
importante da pesquisa de Mohammad Shehata é que essa é a
primeira vez que o fenômeno pôde ser medido. Essa hiperconexão
recebe o nome de fluxo de equipe, e os autores do estudo se
perguntam se isso significa que nossa consciência se forma com a
contribuição de outros cérebros, além do próprio (embora
acrescentem que falta muito para podermos responder a essa
questão).
O que eu quero dizer, enfim, é que desconfio que há algo além
desse pequeno e irritante eu que nos aprisiona. E não estou
falando nem de religião nem de deuses: sou uma incrédula
absoluta e convicta. Não. Me refiro à vida que flui e se derrama, à
energia mutável que jamais se destrói, às vibráteis amebas de Le
Guin, que, aliás, também são eucariontes, como você e eu. E como
as baleias. Deixe-me contar uma das experiências mais
extraordinárias que já tive. Foi com uma baleia, há cerca de trinta
anos, na costa oeste do Canadá. Já relatei esse encontro no meu
livro A louca da casa; usei-o como uma metáfora da criação, mas na
verdade foi muito mais que isso. Saímos um dia para avistar
cetáceos no Pacífico com um pequeno Zodiac, sabe? Um daqueles
botes infláveis. Devíamos ser umas seis ou sete pessoas, incluindo
nosso guia. Eu estava ao lado do Pablo, meu marido. A borda era
muito baixa, a água ficava muito perto, todos usávamos boias salva-
vidas. O garoto nos levou mar adentro até chegar a uma área de
pequenas ilhotas. Ali o motor parou. As sete ilhotas serviam de
refúgio natural e o mar estava calmo. Ficamos em silêncio, sem
saber exatamente o que esperávamos, balançando como bebês no
suave vaivém da água mansa, curtindo a bela e plácida paisagem.
Mas, de repente, o mundo pareceu explodir. Houve um estrondo,
um barulho desconhecido e formidável mas sem dúvida orgânico,
uma respiração que parecia vir das entranhas do planeta, e um jato
d'água disparou nas alturas e nos encharcou. Então, enquanto
ainda caíam gotas sobre nós, começou a emergir algo inconcebível,
algo que eu sabia que tinha de ser uma baleia, mas que nem meus
olhos nem meu entendimento podiam processar, de tão magnífico
que era (e tão incompleto: só pudemos ver fragmentos do colosso).
Bem ao meu lado, a um metro ou talvez dois, tão perto que parecia
que eu poderia tocá-lo se esticasse o braço, começou a passar um
arco imenso de carne, uma carne que na verdade parecia borracha,
uma parede viscosa cheia de aderências, de algas e crustáceos; e
pouco depois passou o olho, um olho gigantesco que surgiu da
água, percorreu todo o arco e afundou de novo no oceano, aquele
olho assustador que nos olhava. Especificamente: que me olhou e
me viu. Depois do olho ainda havia muita baleia para passar, muito
músculo pétreo ornamentado com anêmonas (era uma jubarte,
uma das maiores espécies de cetáceos), até que a criatura
finalmente ergueu sua cauda titânica e a mergulhou na vertical,
muito lentamente. E toda aquela enormidade, aquela inaudita
exibição de potência, foi executada com tamanha delicadeza que
não levantou nem uma espuma na água, não provocou nem uma
onda capaz de chacoalhar nosso bote. Tirando a imensa respiração
do início, a baleia foi muito silenciosa. Só um sussurro líquido
acompanhou o milagre do seu corpo. Porque foi um milagre.
Alguns amigos me perguntaram depois: você não ficou com medo?
Nada, nem um pouco. Para ter medo você precisa estar dentro do
seu eu, e naquele momento eu era a baleia, e a anêmona, e a alga, e
a gota d'água que brilhava ao sol. Algo semelhante deve ter
acontecido com o naturalista britânico David Attenborough:
durante uma entrevista, ele me contou que a experiência mais
comovente da sua vida profissional ocorreu quando estava
estudando os gorilas na África e, de repente, uma fêmea se
aproximou, segurou gentilmente a cabeça dele com suas
manzorras e começou a estudá-lo ao mesmo tempo. Esses olhos
alheios, em que você se vê, nos conectam com o pulsar coletivo e
são uma porta para a eternidade.
Nos meus melhores momentos, nos instantes oceânicos,
quando o satori explode como uma supernova na minha cabeça,
sou capaz de fugir da cega e dolorosa prisão da minha
individualidade e sentir esse hálito plural, a cadência primeira, a
música das esferas, o palpitar do mundo. Sou um peixinho de um
imenso cardume, sou uma carpa dourada e sei dançar a dança mais
grandiosa, que é ao mesmo tempo a mais diminuta. É preciso
insistir aí, nessa sabedoria dançarina. É preciso aprender a girar
cada vez mais rápido, como os dervixes, para poder se juntar ao
Todo que vibra e que respira. Ouça bem o que digo e tenha
esperança: pode ser que na verdade a travessia final seja simples
assim, fácil assim. Bastaria compassar a morte no ritmo coletivo.
Quero morrer dançando, assim como escrevo.
Tudo

Já posso avistar ao longe o fim deste livro, da mesma forma que


vislumbro (espero que muito mais distante) o fim da minha vida.
As portas abertas vão se fechando, e vale terminar este capítulo
com uma história que me acompanha há muito tempo. Um dia,
cerca de um ano atrás, me reenviaram da redação do El País uma
carta que havia chegado para mim semanas antes. Fiquei intrigada
com a procedência — vinha da Universidade da Virgínia, em
Charlottesville, nos Estados Unidos —, e também com a
coincidência de eu ter dado aulas ali algumas vezes. É um dos
campus mais bonitos do país, um conjunto de cúpulas e colunas
que parecem de chantilly, projetado por Thomas Jefferson. Achei
que poderia ser do hispanista David Gies ou de algum outro amigo
de Charlottesville (embora já fizesse tempo que não me mandavam
cartas de papel), mas o nome que aparecia no remetente era outro
e desconhecido para mim: Juan Pablo Jovellanos. Rasguei o
envelope com curiosidade e saiu uma única folha escrita à mão
numa letra legível, harmoniosa e miúda que dizia o seguinte:

Prezada Rosa Montero, meu nome é Juan Pablo Jovellanos e sou


professor de neurociência molecular e celular na Universidade
da Virgínia, onde acredito que você também deu aulas. Além
disso, e este é o motivo de estar lhe escrevendo, sou o único
irmão de Bárbara Jovellanos. Pode ser que a princípio não saiba
de quem estou falando, mas irá se lembrar se eu lhe disser que
foi uma pobre mulher doente que ficou obcecada por você
muitos anos atrás, e que foi aparecendo (talvez deva dizer que
foi se intrometendo) na sua vida de vez em quando, por
exemplo, lhe mandando presentes. Bárbara morreu de câncer
há três meses em La Paloma, uma pequena clínica psiquiátrica
nas Astúrias, onde estava internada havia anos. Longe e
sozinha, porque a pandemia me impediu de ir. Ela lhe deixou
uma carta, que naturalmente não abri. Bárbara era uma pessoa
maravilhosa, era única e especial, bonita por dentro e por fora, e
digo isso sabendo que pode ser difícil para você enxergá-la
assim. Tinha 64 anos. Se quiser que eu lhe envie a carta, pode
entrar em contato comigo neste endereço,
juan.pablo.jovellanos@xxx, embora eu entenda perfeitamente
se não o fizer. Espero que minha irmã não tenha sido
desagradável demais. Muito obrigado pelo seu tempo e atenção.
Um abraço afetuoso (sempre fui um admirador da sua obra).

A carta provocou em mim um impacto inesperado. Foi como se


uma velha sombra que fazia parte da minha vida, e que eu me
acostumara a ver quase como uma fantasia, saísse de mim e
encarnasse numa pessoa de verdade, num ser humano de quem eu
de repente sabia um monte de coisas, entre elas, que tinha acabado
de morrer. Senti alívio, senti tristeza, senti uma dor parecida com
o luto. E também uma curiosidade arrebatadora. Olhei a data da
carta: tinha sido enviada dois meses antes. Escrevi imediatamente
um e-mail a ele, sem parar para pensar, de pé e do celular, dizendo
que sim, que estava interessada. Ele respondeu em meia hora,
muito contente. Aparentemente, achava que já não iria receber
resposta, mas ainda guardava a carta da sua irmã, bem fechada. Por
coincidência, viria a Madri dentro de algumas semanas,
aproveitando o relaxamento das medidas sanitárias, para organizar
os documentos de Bárbara. Poderíamos talvez nos encontrar?
Claro, disse eu. E ali mesmo marcamos um encontro.
Adivinhei de longe quem era quando o vi no barzinho da rua
Sainz de Baranda onde havíamos combinado. Ele tinha a mesma
cabeleira frondosa e agitada da irmã, a dele quase branca. Já de
perto, quando me sentei, continuei anotando mentalmente os
lábios grossos, os olhos cinzentos, o perfil romano. Uma família
bonita. Não era alto, ainda bem, porque teria sido perfeito demais.
Miúdo e muito magro, sua cabeça potente parecia exigir um corpo
maior. Mãos bonitas e uma aparência juvenil, apesar dos muitos
fios grisalhos e dos 62 anos que depois me contou que tinha. O
típico professor que devia fazer sucesso entre as alunas. Me
incomodou um pouco que fosse atraente.
Estava muito nervoso. O envelope tremia quando o entregou
para mim. Foi a primeira coisa que ele fez, praticamente sem trocar
uma palavra.
— Poderia me fazer o favor de ler a carta agora? Agora mesmo,
quero dizer. Estou me sentindo um pouco inquieto. Não quero que
me conte o que diz, é claro, mas gostaria de ter certeza de que não
me enganei ao entregá-la a você. Tive muitas dúvidas.
Ele me pareceu tão ansioso que assenti. Além disso, eu também
desejava saber o que dizia. Eram duas folhas datilografadas com o
seguinte texto:

Querida Rosa, sonhei tantas vezes com este momento, em te


escrever, em falar com você, até mesmo em te encontrar
pessoalmente e explicar cara a cara o motivo das nossas vidas. E
agora, como pode ver, chegou enfim a oportunidade, porque é o
fim, porque estou morrendo. Quando você ler isto, já não
estarei aqui. Mas não se preocupe: você continuará estando.
Pensei tanto em você durante todos esses anos. Sempre coisas
bonitas. Sempre imaginei coisas maravilhosas para você.
Quando te conheci, eu estava estudando no conservatório.
Aquele rapaz que quis me trair com você dizia que eu era ótima
e queria ser meu agente. E eu era boa mesmo. Tocava
violoncelo, mas o que eu mais gostava era de compor. Minha
cabeça estava sempre cheia de uma música magnífica, e no
começo tudo era perfeito. Mas depois a música começou a ir
cada vez mais rápido e eu não tinha tempo de passá-la para a
partitura e aquilo me ensurdecia por dentro. Era muito triste.
Era triste porque ela retumbava, mas também porque se perdia,
era a música mais maravilhosa e se perdia para sempre. Então,
começaram a me dar remédios e aqueles sons divinos acabaram.
E essa tristeza foi pior. O silêncio do mundo. Desde então
minha vida tem sido assim. Às vezes, tomo remédios e o
silêncio me esmaga; às vezes, deixo de tomá-los e a música
maravilhosa volta a me atormentar. Mas agora estou bem, estou
bastante bem, fique feliz por mim. Pela primeira vez em muito
tempo a música da minha cabeça me embala, não galopa. Deve
ser porque estou morrendo. Mas, voltando ao que importa, um
dia eu me dei conta de que nosso encontro havia sido um sinal.
Porque a música tinha começado a tocar justamente depois
daquela noite em que nos vimos. E eu entendi que você era
uma outra vida, uma outra realidade que o destino me dava.
Porque você também tocava melodias com suas palavras. E
então percebi, então tive a clareza de que podia compor minha
melhor obra com você. Assim, comecei a viver através de você,
à distância. Ou talvez ao contrário: assim, você começou a viver
através de mim. Você não percebeu, imagino, mas seus
romances foram escritos por mim. Sonhados por mim.
Inspirados em mim. Eu compus cada um dos seus dias, com
amor e cuidado. Você é minha melhor sinfonia. Bem, na
verdade é a única, mas também a melhor que eu poderia
compor. Estou orgulhosa de você, mais do que de mim. Porque
nossas obras sempre são melhores que nós mesmos. Agora, não
tenho remédio senão te abandonar, e lamento por isso. Mas
preste bem atenção: vou deixar meu irmão para você. Juan
Pablo é um bom garoto, muito inteligente, interessado em
ciência como você, e está sozinho. Sei que vão se dar bem. Este
é o final que escrevi para você, o brilhante rondó da minha
sinfonia. Peço que siga minhas recomendações, não estrague
minha obra: na minha vida insignificante, você é minha melhor
parte. Tanta luz na música, mas agora me espera essa enorme e
paciente escuridão.

Não sei bem o que senti: compaixão, pena, vertigem. E vergonha


pela pretensão de formar um casal com o irmão dela. Perguntei-
me, assustada, se ele sabia algo a respeito. O fato de achá-lo
atraente fazia com que eu me sentisse ainda mais exposta e
ridícula. O homem deve ter visto que minhas emoções
atravessavam meu rosto como um rebanho de nuvens, porque se
inclinou para a frente e perguntou, aflito, se eu estava bem.
Respondi que sim, que era uma carta comovente, que eu estava
feliz por tê-la lido. Resumi-a por cima, sem mencionar a parte em
que ele entrava, e fiquei tranquila ao perceber que Juan Pablo não
parecia fazer a menor ideia do conteúdo do texto nem do plano
casamenteiro. Ficamos conversando cerca de uma hora e acho que
cheguei a ter uma ideia bastante clara da vida de Bárbara. Os pais
haviam morrido num acidente de carro quando ela tinha catorze
anos e Juan Pablo, doze. Foram criados por um avô viúvo,
amargurado, desesperado e precocemente senil. Bárbara fez papel
de mãe do seu irmão e de enfermeira do velho. Sempre tivera um
dom extraordinário para a música (a mãe era cantora; o pai, seu
agente. Morreram voltando de madrugada de uma apresentação),
mas também uma personalidade um tanto estranha, às vezes muito
rígida, obsessiva. Seu primeiro e único namorado foi aquele pobre
lunático que eu conheci, e a relação foi catastrófica para ambos: os
dois desabaram psicologicamente. Foi a primeira crise grave de
Bárbara, e deve ter acontecido dias após nosso estranho encontro.
Foi também seu primeiro internamento. Saiu meses depois,
bastante revigorada. Arranjou alguns trabalhos como violoncelista,
substituições em orquestras, chegou a formar um trio, ganhou
algum dinheiro. E teve outra recaída. Sua vida entrou naquela
terrível espiral descendente dos doentes mentais que não
encontram um entorno propício a que se agarrar e são internados
repetidas vezes. Juan Pablo a sustentou financeiramente durante
toda a sua vida e a levou aos Estados Unidos em diversas ocasiões,
mas Bárbara costumava abandonar os tratamentos e nunca teve
muita sorte com seus terapeutas. Ficou tão deteriorada que não
podia viver sem supervisão. Quando morreu, estava havia cinco
anos em La Paloma, “a melhor clínica que pude arranjar para ela”,
disse Juan Pablo, uma clínica pequena, adorável, perto do mar. Dali
vinha sua última foto. Aquele oceano imenso e aquelas grades. Por
isso Bárbara aparecia e desaparecia da minha vida. Era o ritmo
marcado pelos seus internamentos. Quando terminou de falar
sobre a irmã, Juan Pablo pagou a água e os cafés que havíamos
tomado, se despediu educadamente e foi embora. No dia seguinte,
voltou para Charlottesville.
A carta e a história de Bárbara me deixaram muito comovida.
No início, não me dei conta disso. Aliás, até comentei
animadamente sobre o tema com alguns amigos, como se fosse um
episódio curioso que mal me dizia respeito. Mas, pouco a pouco,
aquilo inflamou dentro de mim, como essas feridas pequenas às
quais não damos importância, mas que infeccionam e acabam nos
deixando doentes. Foi o que aconteceu com essa história. Ela me
descompensou. Me adoeceu. Comecei a me sentir angustiada,
triste, vulnerável. Com medo de pifar. Deparar-me com aquela
vida do outro lado do espelho, com aquele outro eu que seguiu
meus passos à distância, e descobrir que minha sombra havia se
instalado na loucura, começou a me arrastar, não sei bem por quê,
ao desequilíbrio. Senti rondar as velhas crises de pânico que eu
estava havia décadas sem sofrer. Não caí, mas estive perto.
Cheguei inclusive a ter pensamentos absurdos, como imaginar que
de algum modo formávamos uma espécie de vasos comunicantes,
e que o fato de ela ter passado tanto tempo sob tratamento
psiquiátrico pode ter me salvado desse destino.
Depois de uma semana de profunda inquietação, a vertigem
passou como passa uma febre, e o mundo recuperou sua solidez.
Mas fiquei pensando no que Bárbara dizia na sua carta: “minha
vida insignificante”. Sim, que triste e que insignificante parecia a
existência daquela pobre mulher. A orfandade precoce; a
adolescência difícil; a luta constante contra a insanidade. Morrer
de câncer sendo uma louca oficial, em plena pandemia e num
canto perdido da costa asturiana. Uma existência dolorosa que
parecia carente de qualquer sentido. Mas, na verdade, não são
sempre insignificantes e insensatas as vidas humanas? Meu pai e
minha mãe, que foram tão importantes para mim, por acaso são
mais que um grão de poeira no universo? Meu pai, Pascual, que
aos catorze anos invadiu a arena de touradas (e acabou preso); que
começou sua carreira como novilheiro antes da penicilina, quando
a cada temporada morriam vários toureiros; que viveu a terrível
Guerra Civil Espanhola; que no pós-guerra foi bandarilheiro, e
mais tarde montou uma olaria, e saía todas as manhãs de
motocicleta com um jornal enfiado debaixo do casaco, sobre o
peito, para se proteger do frio; que trabalhou feito um condenado;
que sempre respeitou que eu detestasse a erroneamente chamada
“festa” dos touros (assim como eu o respeitei); que sofreu uma
insuficiência respiratória e acabou pendurado num cilindro de
oxigênio, mas sem perder o gosto pela vida; que faleceu aos 84
anos sem demonstrar nenhum medo, com uma lucidez e uma
inteireza sobre-humanas, a melhor morte que já vi: “Não chore,
minha filha, que estou muito feliz, tudo está se saindo como eu
queria”. Minha mãe, Amalia, talvez melhor pintora que seus
irmãos, mas na sua época e classe social não era concebido que ela
se dedicasse à arte, de modo que foi apenas dona de casa; uma
pena, porque na verdade dançava maravilhosamente, e era uma
humorista extraordinária, e uma narradora formidável, e uma
sedutora sem igual; uma artista completa, confinada na prisão da
vida doméstica; aquela mãe com quem eu fugia todos os dias,
escondida do meu pai, quando criança, para ver os filmes em
sessão dupla nos cinemas do nosso bairro, histórias de celuloide
que permitiam a ela continuar sonhando e respirando; aquela mãe
longeva, divertida, independente, generosa e estoica que jamais se
queixou e que passou pelo mundo como um cometa brilhante.
Como pode ver, foram duas vidas longas cheias de emoções, de
sonhos, de desejos, de risos e de fúrias, de êxtases e medos; duas
vidas que me parecem essenciais, mas que se reduzem a esse
punhadinho de míseras linhas que acabo de escrever na areia e que
serão apagadas pelas ondas do tempo. Francisco Brines (1932-2021)
expressa isso muito bem no seu poema intitulado “Mi resumen”
[Minha síntese]:

“Como se nada tivesse acontecido.”


Esta é minha síntese
e nela está meu epitáfio.

Meu nada fala para o vivo


e ele se olha num espelho
que não reflete ninguém.

Pelo amor de deus! Dentro de 1 bilhão de anos nosso Sol terá


aquecido tanto que já não haverá nem vestígios de vida no planeta!
Portanto, ainda que tivéssemos conseguido não nos extinguir
antes, caminhamos para um fim inexorável. Tudo irá desaparecer:
o deprimido dom Quixote, a Alhambra de Granada, a música de
Beethoven. A menos que possamos fugir para outros mundos, mas
aí também haverá outras estrelas agonizantes, outros apocalipses.
Ninguém se lembra mais dos milhões e milhões de indivíduos que
nos precederam, essa imensa legião de existências minúsculas. Se
aguçar bem o ouvido, talvez consiga ouvir o rumor dos seus passos
sobre a Terra, o ritmo dos seus pés dançando a Grande Dança. A
vida é um sonho diminuto, uma miragem de luz numa eternidade
de escuridões. E isso não é nada, e é tudo.
Essas noites magníficas

Receio que os últimos capítulos foram deixando em maus lençóis a


tribo dos artistas em geral e dos escritores em particular, com a
triste história de Sylvia Plath e depois com esse assunto dos
suicídios. Digamos que tudo isso se refere à parte mais lamentável
da família. Mas, como dizia Proust, também somos magníficos.
Porque criar não apenas te permite viver — conforme explicamos
no início do livro —, como também essa vida é maravilhosa, de
uma intensidade, uma plenitude e um brilho sem igual. É como
enfiar o dedo na tomada e receber uma descarga elétrica que, além
de não te matar, ainda por cima ilumina o mundo com todas as
cores existentes e outras tantas que você nem sequer poderia
nomear. A criatividade é uma viagem a outra dimensão.
Acredito que todos nós, artistas, compartilhamos a sensação de
sermos meros portadores de uma mensagem que não sabemos
direito de onde vem (na verdade vem do inconsciente, claro). E
não apenas os artistas: segundo Brenot, Einstein descobriu a teoria
da relatividade num sonho. Nos escritores, isso acontece com
muita frequência. É famoso o caso de Mary Shelley, que sonhou
inteirinho seu comovente monstro do dr. Frankenstein (pobre
criatura, não tem nem nome próprio) numa noite de relâmpagos e
trovoadas. Certa manhã, Goethe encontrou em cima da mesa um
poema acabado que não recordava ter escrito, e o mesmo
aconteceu com Anthony Burgess, só que de um jeito muito mais
teatral e exagerado. Assim que se levantou, entrou na copa e
descobriu ali, rabiscados na parede com batom, estes versos: “Que
suas carbônicas gnoses se ergam orgulhosas/ E guiem a grei inteira
para a sua luz”. O original em inglês é rimado e soa um pouco
melhor, mas continua sendo lamentável: “Let his carbon gnoses be
up right/ And walk all follow­ers to his light”. A letra era de Burgess e
o batom, que deve ter ficado em petição de miséria, era da sua
esposa. Já mencionamos Coleridge e seu longo poema sonhado (e
esquecido pela metade) “Kubla Khan”. E ainda tem Stevenson,
que, numa noite de febre e mal-estar, sonhou seu romance O
médico e o monstro. Levantou-se da cama, escreveu a história sem
parar por três dias, queimou-a em seguida e, durante outros três
dias, redigiu novamente o manuscrito definitivo como um
possuído.
Porque, de fato, é a sensação eletrizante (daí aquilo de enfiar o
dedo na tomada) de estar possuído. Richard Cohen, o viúvo da
grande escritora George Eliot, contou sobre ela: “Em todos
aqueles escritos que na sua opinião eram os melhores havia uma
espécie de alteridade que a possuía, e ela sentia que sua
personalidade nada mais era que o instrumento por meio do qual
aquele espírito agia, por assim dizer”. Enfim, é o que todos dizem.
Como Faulkner: “O tempo fica suspenso e sou possuído por uma
espécie de transe”. Ou Thomas Mann: “As coisas têm vontade
própria, em virtude da qual se constroem sozinhas”. E Ursula K. Le
Guin: “Muitos artistas sentem que trabalham num estado de
transe […] a obra lhes diz o que deve ser feito e eles fazem”. É
assim mesmo. Senão, como eu poderia abrir caminho neste livro
em meio à selva impenetrável de tantos dados caóticos? Uma
música mágica me mostrou o caminho, me arrastou atrás dela,
assim como o flautista de Hamelin encantou e arrastou as crianças
da aldeia.

Segundo o neurocientista Eric Kandel, “a comunhão com o


inconsciente é compartilhada por todas as pessoas criativas”. Por
isso há músicos que dizem que se limitam apenas a transcrever a
melodia que escutam dentro da cabeça, ou escultores que tiram o
que sobra no bloco de pedra para libertar a forma que estava presa
ali dentro (como dizia Michelangelo). Já repeti várias vezes que é
preciso silenciar e cegar o eu consciente para que o inconsciente
possa nos enviar suas mensagens com uma frequência de onda
suficientemente audível. “Os surrealistas fizeram grandes esforços
para desaprender seus conhecimentos”, escreve Kandel. E Picasso
afirmava que costumava desenhar como Rafael, e que levou uma
vida inteira para aprender a desenhar como uma criança. Pois bem:
ter a possibilidade de se conectar às vezes a essa fonte maravilhosa
de energia, fugir do confinamento de si mesmo e subir à
estratosfera como um foguete, sentir a magia explodir dentro da
sua cabeça (na cartola onde não havia nada, agora há um coelho) é
uma sensação impagável, te garanto. É tocar a felicidade com todos
os dedos. É poder olhar de vez em quando no olho da baleia, que é
o mais próximo que conheço do olho de Deus. “E quando meu
esqueleto descansar no caixão, se é que terei um, não haverá nada
que roube de mim as magníficas noites que passei em frente à
máquina de escrever”, disse Bukowski.

Mas deixe-me te mostrar com um exemplo bem claro o quão doce


é a criação. Deixe-me falar mais uma vez da adorável Janet Frame, a
escritora neozelandesa que esteve prestes a fazer uma lobotomia e
que foi salva in extremis porque seu primeiro livro de contos havia
ganhado um prêmio. Já disse que Frame teve uma existência
francamente horrível, que vinha de uma família pobre,
desestruturada e violenta. Embora, é verdade, com uma veia
artística. O pai, ferroviário, pintava a óleo nas horas livres e tocava
gaita. Também bebia demais e batia na família exaustivamente. No
seu belo livro autobiográfico, An Angel at my Table, Frame conta
esta lembrança dos seus seis, no máximo sete anos: “Uma noite,
acordei chorando por causa de uma dor de dente. Papai veio até o
berço, que já era pequeno para mim, pois meus pés empurravam as
barras da extremidade. ‘Vou te amaciar o pandeiro', disse. Sua mão
bateu com força e sem parar nas minhas nádegas nuas, e chorei de
novo e, por fim, o sono me venceu”. Várias páginas e alguns anos
mais tarde, volta a dizer: “Ele me deu a surra de sempre”. Seu
único irmão homem, Bruddie (ela também tinha três irmãs), era
epiléptico, e o pai também bateu nele uma porção de vezes com
fins terapêuticos, pois estava convencido de que o menino podia
controlar os ataques se quisesse. Quanto à mãe, escrevia poemas e
os publicava num jornal local, mas entre a pobreza, o energúmeno
do marido e várias tragédias que teve de aguentar, sua vida deve ter
sido amarga, ou essa é a opinião de Frame, que parece sentir uma
pena infinita do destino materno.
Janet tinha tiques, sofria de convulsões e fazia caretas (lembra a
síndrome de Tourette). Além disso, era uma menina pouco
graciosa (ruiva, com uma áspera cabeleira) na qual ninguém
prestava muita atenção, sobretudo depois que Bruddie ficou
doente:

Se alguém me observasse naqueles dias, sem dúvida veria uma


menina ansiosa, refém de tremores e tiques, sozinha no pátio
do recreio, sempre vestindo minha única roupa, a mesma saia
xadrez, de segunda mão, quase dura pelo uso constante. Uma
menininha de rosto sardento e cabelo crespo, suja o bastante
para que a doutora a escolhesse, junto com outras crianças de
notória pobreza e sujeira, para ser examinada em particular na
salinha contígua à do professor. A maré de imundície havia
marcado linhas nas minhas pernas e na parte interna dos meus
braços. Quando me despi, aquela visão foi um duro golpe para
mim, pois tinha certeza de ter me lavado bem.

Duas irmãs de Janet morreram afogadas em diferentes


circunstâncias: Myrtle, dois anos mais velha que a escritora, aos
dezesseis; Isabel, um pouco mais nova que ela, aos 21. Na sua
autobiografia, Frame diz que ambas sofreram um ataque do coração
enquanto nadavam, mas é uma coincidência bastante improvável.
Myrtle era uma garota rebelde e com personalidade, e pelo visto o
pai se zangava especialmente com ela. Quando se afogou, Frame
anota no seu livro, “no início fiquei feliz, pensando que não
haveria mais brigas, gritos e surras, enquanto papai tentava
controlá-la furioso e nós ouvíamos com medo, compadecidos e
chorando como ela”. Quanto a Isabel, parece que era uma pessoa
bastante desequilibrada: “Minha primeira impressão sobre a morte
de Isabel, assim como na de Myrtle, foi de que talvez um problema
tivesse sido resolvido, embora a um preço alto”. É inevitável
suspeitar que as irmãs se suicidaram, ou pelo menos uma das duas.
Frame também tentou se matar aos 21 anos. Ela escrevia
poemas, queria ser escritora profissional, tinha feito magistério e
estudava psicologia na universidade (bingo! Mais uma que se
achava tantã e escolheu, como eu, essa carreira), mas o simples fato
de viver era para ela uma coisa muito difícil. Começou a trabalhar
como professora, e tinha tanto pânico do inspetor que inventara
uma história e, quando ouvia os passos do homem no corredor,
começava a contá-la para que as crianças prestassem atenção e o
inspetor visse que a ouviam. Além disso, sua boca estava destruída
e cheia de cáries: “Eu mostrava meu sorriso tímido, apertando os
lábios mais que de costume para esconder as cáries avançadas dos
meus dentes, porque o serviço médico da previdência social não
cobria despesas de odontologia após o ensino fundamental e minha
família não tinha dinheiro para o dentista”. Estava ficando cada vez
mais difícil para ela se integrar ao mundo. Um dia, o inspetor não
se limitou a caminhar pelo corredor, mas entrou na sala de aula
para supervisioná-la. Frame sorriu para ele de modo encantador
(com os lábios apertados, claro), disse “com licença, volto logo”, e
saiu da sala e depois do edifício para nunca mais voltar. “Eu me
sentia completamente isolada. Não tinha em quem confiar, a quem
pedir conselho, não tinha para onde ir.” De modo que, no sábado à
noite, arrumou seu quarto, engoliu um tubo de aspirinas e se
deitou na cama para morrer. Acordou doze horas depois com um
zumbido nos ouvidos e hemorragia nasal. Vomitou várias vezes até
voltar à vida.
O problema foi ter comentado na universidade sobre sua
tentativa de suicídio. Aconselharam interná-la e ela assentiu. E ali
teve início a catástrofe: foi diagnosticada equivocadamente como
esquizofrênica, arrancaram todos os seus dentes e, no dia seguinte
a essa bárbara mutilação, deu entrada no hospital psiquiátrico e
submetida ao primeiro eletrochoque. “De repente, minha vida
ficou desfocada. Eu não me lembrava de nada […]. A vergonha da
minha boca desdentada, minha intensa sensação de perda e de
tristeza, minha solidão […] tudo isso me fazia sentir que não havia
lugar para mim no mundo”. Frame tinha 22 anos e ficaria
internada, já de maneira compulsória, durante oito. Falamos antes
do inferno que esse período significou para ela.

Os anos que se seguiram até 1954, quando finalmente recebi


alta no hospital, foram cheios de medo e sofrimento, causados
principalmente pelo meu confinamento e pelo tratamento no
hospital psiquiátrico. No início da minha estadia houve dois ou
três períodos de várias semanas em que fui autorizada a deixar o
hospital, e todas as vezes precisei voltar porque não tinha outro
lugar onde viver. Sempre voltava aterrorizada, como um
condenado que volta para ser executado.

Que desolação não ter para onde ir; não ser acolhida pelos seus
pais nem pelos seus irmãos. Na época, Frame aprendeu que havia
uma divisão entre pessoas normais e pessoas secretas. Porque a
loucura era algo clandestino, escondido, confinado, inominável.
Quando saiu do hospital, aos trinta anos, sua vida estava
destroçada:
Me deram alta temporariamente, depois de receber mais de
duzentos eletrochoques, cada um equivalente, em termos de
medo, a uma execução — processo que deixou minha memória
em frangalhos e, em algumas áreas, debilitada e destruída
permanentemente. E depois de ser submetida à possibilidade
de me transformar, através de uma operação cirúrgica (a
lobotomia), numa pessoa mais aceitável, tratável e normal,
cheguei em casa com uma aparência sorridente e tranquila, mas
por dentro sem confiança em mim mesma, convencida de que,
por fim, oficialmente, eu já não era ninguém.

Ficaram para trás, perdidas para sempre, a carreira de magistério e


a universidade. Começou a trabalhar de faxineira em diversos
hotéis. Com o primeiro salário que recebeu, fez uma dentadura
para o maxilar superior (o que me deixa horrorizada: como se virou
para comer durante os oito anos anteriores? E para falar, socializar,
sorrir?). Mas ela contava com uma arma secreta poderosa: sua
paixão pela escrita. “Comecei a escrever contos e poemas e a
pensar num futuro sem ser dominada pelo medo de que me
prendessem e me tratassem e eu não pudesse fugir. Mesmo assim,
os pesadelos do tempo que passei no hospital continuam, e muitas
vezes ainda acordo assustada ao sonhar que as enfermeiras estão
vindo para me levar ao tratamento.”
Um escritor profissional, Frank Sargeson, ajuda Frame alugando
um lugar onde morar, um galpão no quintal da sua casa, e ela
continua escrevendo, feito formiguinha, aquele fio de palavras que
a costuram à vida. Um dia sua mãe morre de um infarto sem que
ela pudesse se despedir. Frame tem 33 anos e decide ir embora da
Nova Zelândia. Pede um auxílio ao Fundo Literário e lhe
concedem trezentas libras, com as quais ela embarca num navio e
chega a Londres. Volta a fazer trabalhos esporádicos de faxineira
em hotéis, depois de lanterninha num cinema. Vai publicando
livros: um romance, contos. Sofre depressões e é internada de
novo num hospital, onde felizmente um psiquiatra inglês diz que
ela não é esquizofrênica e que seu diagnóstico fora equivocado.
Nos dias livres, frequenta bailes públicos nos quais nunca a tiram
para dançar. Tem algumas relações sexuais, poucas e lamentáveis.
A menos pior, embora curta, com um americano numa viagem à
ilha de Ibiza: engravida e sofre um aborto espontâneo.
Depois de sete anos em Londres, comunicam a ela por carta
que seu pai morreu de uma hemorragia súbita. O irmão lhe escreve
dizendo que os dois herdaram a casa paterna e que Janet é a
inventariante do legado. Que ela tem de regressar à Nova Zelândia.
Frame tem medo de voltar e ser internada de novo; por outro lado,
precisa se reconectar com suas origens, e além disso seu irmão
está furioso porque, se ela não for, não o deixarão entrar na
propriedade da família. Então ela prepara a viagem. Compra a
passagem de navio graças à doação de um anônimo (ela desconfia
que seja o poeta Charles Brasch). Quando se aproxima o dia da
partida, fica bastante evidente sua solidão:

Eu havia passado sete anos longe da Nova Zelândia, com meus


últimos anos inteiramente dedicados a escrever, dividindo meu
tempo entre a escrita, passeios solitários, cochilos num cinema.
Eu não tinha amigos próximos que quisessem estar no cais de
Londres agitando as mãos num triste adeus. Incapaz de
suportar uma partida solitária, perguntei à bibliotecária que me
deixara usar a sala de leitura se não se importaria de ir se
despedir de mim. Aceitou. Minha agente literária, Patience
Ross, disse adeus na estação Victoria e, quando o trem chegou
ao cais do leste de Londres, lá estava Millicent, a bibliotecária,
que havia tirado uma folga um pouco mais longa no seu horário
de almoço para poder se despedir. Tomamos o chá no navio. Eu
disse obrigada. Ela voltou para o trabalho.

É
É um mundo desamparado e rígido, um assustador deserto
emocional. O fato é que Frame finalmente chega ao seu país e
então à sua cidade, Oamaru. O advogado diz a ela que a
propriedade é uma porcaria, que ninguém vai querer comprá-la, e
que seu irmão vai se casar e precisa de uma casa, de modo que o
melhor a se fazer é vender sua parte a ele. Mas Janet Frame, nossa
pobre, solitária, mentalmente instável, surrada, deprimida,
eletrocutada, estigmatizada, desdentada, abandonada e
maravilhosa Janet Frame sabe muito bem o que vai fazer. “Eu já
havia tomado a decisão de dar minha parte de presente ao meu
irmão”, diz, “porque eu sabia que ele tinha pouco dinheiro e
também sabia que ao longo da sua vida ele não tinha sido tão
sortudo como eu.” Mãe do céu, tão sortudo como ela, quando a
vida de Frame era um terror absoluto e a única coisa que tinha era
a escrita!
Pois bem, quer saber de uma coisa? Ela tinha razão.
Agradecimentos, fontes e uma notícia

Ao escrever este livro, recobrei um péssimo hábito de iniciante


que eu pensava ter superado há muito tempo: o de obrigar uns
quantos sacrificados amigos a ir lendo o texto, pedaço a pedaço, à
medida que ele ia saindo dos meus dedos — que é uma das piores
formas de ler, e sem dúvida a mais tediosa. Portanto, meu mais
caloroso agradecimento a estes leitores generosos: María Luisa
Calcerrada, Lorenzo Rodríguez, Marina Carretero Gómez, Ángela
Cacho, Marta Pérez Carbonell. Não tenho como retribuir esse
amoroso trabalho estafante, assim como as informações e
sugestões que vocês foram me dando pelo caminho.
Depois vêm meus geniais leitores de sempre: Alejandro
Gándara, Nuria Labari, Myriam Chirousse, Ángeles Martín, Rosa
López. Muito obrigada por estarem aí e me darem sua opinião.
Elena Ramírez, formidável editora e amiga, fez comentários
essenciais. Juan Max Lacruz empreendeu uma verdadeira autópsia
no texto com sua perícia de edição e sua generosidade habituais.
Uma equipe extraordinária de revisores e coordenadores composta
de Jesús Rocamora, Ariadna Ribera, Iraida Viñas e Javier Gómez
analisou este texto com lupa e solucionou até o menor erro, e num
trabalho com tantas informações, datas e referências, devo dizer
que essa é uma tarefa titânica. Por fim, os maravilhosos Guillermo
Lahera, psiquiatra, e Susana Gomara, neurologista, fizeram a
gentileza de ler o manuscrito final para ver se eu tinha pisado na
bola tecnicamente em alguma parte (e detectaram uma porção de
equívocos). Obrigada de coração a todos eles.
Estes são os principais livros que utilizei para redigir esta obra.
Foram fantásticos e essenciais El cerebro del artista, de Mara
Dierssen; Le Génie et la folie, de Philippe Brenot; Literatura y
psicoanálisis, de Lola López Mondéjar; The Disordered Mind e The
Age of Insight, de Eric Kandel; An Angel at my Table, de Janet
Frame; Ioga e Um romance russo, de Emmanuel Carrère; Mon
Suicide, de Henri Roorda; Locura y arte, de Adrián Sapetti; Escrever
para não enlouquecer, de Charles Bukowski; Escritos sobre génio e
loucura, de Fernando Pessoa; Plotting and Writing Suspense Fiction,
de Patricia Highsmith; The Poet and the Murderer, de Simon
Worrall; The Loony-Bin Trip, de Kate Millett; How to Write Like
Tolstoy: A Journey into the Minds of Our Greatest Writers, de
Richard Cohen; os preciosos minilivros de Jesús Marchamalo
sobre Virginia Woolf, Fernando Pessoa, Isak Dinesen e Stefan
Zweig; The Creating Brain: The Neuroscience of Genius, de Nancy
Andreasen; Lo que fue presente, de Héctor Abad; Palabra de Diosa,
de Ana Mañeru e Carmen Oliart; Contar es escuchar, de Ursula K.
Le Guin; The Thirsty Muse: Alcohol and the American Writer, de
Tom Dardis; Writ­ing on Drugs, de Sadie Plant; Preferiría ser amada
e Ese Día sobrecogedor. Poemas do incesto, de Emily Dickinson;
Hemingway vs. Fitzgerald, de Scott Donaldson; Crack-up, de Scott
Fitzgerald; Autoportrait e Suicide, de Édouard Levé; Cinco mujeres
locas, com edição e um prólogo extraordinário de Miquel Berga; Le
Nénuphar et l'araignée, de Claire Legendre; Diários completos, A
redoma de vidro e Ariel, de Sylvia Plath; Red Comet, de Heather
Clark; Momentos de vida, de Virginia Woolf; Trilogia de
Copenhagen, de Tove Ditlevsen; De grenzen van mijn taal, de Eva
Meijer; Inferno, de August Strindberg; O mito de Sísifo e O verão,
de Albert Camus; L'Art de mourir, de Paul Morand; Folle, de Nelly
Arcan; Autoportrait au radiateur, de Christian Bobin; Der Kulterer,
de Thomas Bernhard; Asylum Piece, de Anna Kavan; Planeta
simbiótico, de Lynn Margulis; Incógnito, de David Eagleman; La
pazza della porta accanto, de Alda Merini. Também foram
importantes The Case of the Midwife Toad, de Arthur Koestler; De
minha vida: Poesia e verdade, de Johann W. Goethe; Alcohol y
literatura, de Javier Barreiro; Strindberg und Van Gogh, de Karl
Jaspers; Centelhas de gênios, de Robert e Michèle Root-Bernstein;
Cosas que piensas cuando te muerdes las uñas, de Amalia Andrade; A
mulher trêmula, de Siri Hustvedt; Leonardo da Vinci e uma
lembrança de sua infância, de Sigmund Freud; Bieguni, de Olga
Tokarczuk; The Diary of Alice James; El discurso vacío, de Mario
Levrero; A mulher calada, de Janet Malcolm; Cartas de aniversário,
de Ted Hughes; Darkness Visible: A Memoir of Madness, de William
Styron; A minha vida e Ecce Homo, de Friedrich Nietzsche; Zen na
arte da escrita, de Ray Bradbury; Transformations, de Anne Sexton;
O cérebro que não sabia de nada, de Dean Burnett; Manual da
faxineira, de Lucia Berlin; Creativity, de Elkhonon Goldberg;
Bildnerei der Geisteskranken, de Hans Prinzhorn.
Tirei alguns dados sobre escritores que permanecem na cama
de um artigo de Virginia Mendoza na revista Yorokobu. Álvaro
Sarco tem um texto interessante sobre Nathaniel Hawthorne e seu
conto “Wakefield” em Monografias.com. Eduardo Bravo publicou
um bom artigo no El País sobre impostores, e Darío Prieto assinou
no El Mundo outro texto consistente sobre JT LeRoy. Soube que o
ponto cego da nossa retina mede entre dois e quatro graus, em
comparação com o grau médio da Lua, graças a um artigo do site
da Universidade Complutense de Madri sobre fenômenos ópticos
cotidianos. Aquilo sobre consciência coletiva e fluxo de equipe eu
li num trabalho excelente de divulgação científica de Eduardo
Martínez de la Fe na revista Tendencias, e a história de que
Dostoiévski não teria sido quem foi sem sua epilepsia eu li num
belo artigo de Gonzalo Toca Rey no La Vanguardia. O dado do
famoso estudo sueco, segundo o qual nós escritores temos 50%
mais chances de cometer suicídio, tirei do livro de Eva Meijer
citado anteriormente — é espetacular, mas não consegui achar
mais informações. E, graças a Andrés Trapiello, soube que Juan
Ramón Jiménez propunha a Zenobia se suicidar: está no seu texto
“Zenobia del alma”, incluído no livro Los vagamundos.

Quando eu der por encerradas estas palavras, começarei a fazer as


malas. Amanhã viajo para Nova York e, de lá, a Charlottesville.
Passarei duas semanas, a princípio na casa do meu amigo David
Gies, mas na verdade com a intenção de conhecer melhor Juan
Pablo. Nesses últimos meses, temos nos escrito muito. E-mails e
trocas de mensagens no WhatsApp. Nós dois temos fobia das
chamadas de voz, mais uma coisa em que somos parecidos. Por
escrito, no entanto, desenvolvemos uma grande intimidade. Ele
me explicou detalhada e apaixonadamente suas pesquisas
neurológicas, que me parecem fascinantes. E eu lhe contei
bastante sobre este livro, que, por motivos óbvios, o afeta e o
comove. Estamos flertando. Estamos arriscando nos apaixonar. E
resolvemos experimentar. Estou morrendo de medo: ele é oito
anos mais novo que eu, e eu o acho tão bonito que isso multiplica
minha insegurança. Mas respiro fundo e penso comigo: qual é,
todo mundo comenta que você parece bem mais jovem! E além
disso, olhando bem, ele é meio magricela e cabeçudo. Sim, vou me
arriscar porque ainda corre sangue nas minhas veias; porque meu
cérebro continua sem ter amadurecido completamente; porque
Bárbara o imaginou para mim! E porque gostaria de morrer
estando viva. E isso é tudo, e é nada.
Apêndice

Entrevista com Doris Lessing

El País, 1997

Ao sair do táxi, nós a vemos debruçada na janela da sua casinha de


tijolos tipicamente inglesa, com seu coque branco e seu colete
azul, uma senhora tão bonita e tão asseada como a fada madrinha
de uma história infantil. É preciso subir as escadas, cheias de
caixas de livros, até o primeiro andar, onde fica a sala de estar e a
escritora nos espera. Embora, na verdade, esperasse apenas uma
pessoa:
— Não sabia que ia vir um fotógrafo… — resmunga.
Porque a fada madrinha Doris Lessing tem um gênio dos
infernos, uma personalidade fortíssima que a fez ser quem é e
sobreviver a circunstâncias dolorosas. Dessas circunstâncias
Lessing fala longamente na sua fascinante autobiografia, cujo
primeiro volume, Under my Skin, será publicado na Espanha em
breve pela editora Destino.[5] Para divulgar o livro, justamente,
consentiu ser entrevistada, algo que ela detesta. De modo que
agora está aqui, na minha frente, nem um pouco antipática, porque
é admiravelmente cordial e sorri muito, mas bastante tensa, sem
dúvida desconfortável, ansiosa para acabar com esse tormento.
Quando o fotógrafo for retratá-la depois, durante meia hora, ela, a
vaidosíssima Lessing (“se tirar o colete vou parecer duas vezes
mais gorda”), suportará a sessão com muito mais calma e
paciência, mas a palavra, que é seu território, a deixa nervosa.
Talvez tema não se explicar bem, ou, para sermos exatos, talvez
tema a incompreensão do mundo, personificada em mim naquele
momento: durante a entrevista, ela se mostra várias vezes na
defensiva. Seja como for, nossa conversa é difícil, gaguejante, ora
íntima, ora remota; cheia de uma evidente e mútua vontade de nos
entendermos, mas emperrada por não sei que distância
intransponível, por esse pequeno abismo transparente que às vezes
isola as pessoas de modo irremediável.

— Na Espanha, a senhora é conhecida principalmente como a


autora de O carnê dourado, que foi um marco para muita gente da
minha geração. É seu romance mais famoso no mundo inteiro, mas
me pergunto se não estará um pouco cansada de todos lhe
perguntarem sobre esse livro, que foi publicado em 1962, e de ser
conhecida sobretudo como uma autora realista, quando a senhora
fez muitas outras coisas, por exemplo, uma estupenda série de
ficção científica composta de cinco romances…
— Bem, você sabe como são os lugares-comuns, as pessoas
precisam pôr rótulos nas coisas. É por isso que sempre falam de O
carnê dourado, porque é mais fácil dizer: Doris Lessing, a autora de
O carnê dourado, e pronto. Mas isso acontece com todo mundo.
— E não a perturba?
— Me irrita um pouco… Mas agora que estou ficando velha sou
mais tolerante.
— Foi por isso, para fugir desses estereótipos, que a senhora
publicou aqueles dois livros com o nome de Jane Somers? (Em
1984, Lessing escreveu dois romances sob pseudônimo; seus
editores habituais os rejeitaram e, quando conseguiu publicá-los,
as críticas foram medianas e os livros venderam bem pouco.)
— Não, fiz isso porque me pareceu um experimento
interessante. Aliás, descobri depois que outros autores também o
fizeram, só que não se tornou público. Apenas pensei: vou ver o
que acontece. Os críticos disseram que O diário de uma boa vizinha
era um romance de estreia promissor… O que soa curioso. E
também recebi cartas interessantíssimas, como uma que vinha de
uma escritora de livros românticos muito, mas muito conhecida,
que me contou que tinha publicados, sei lá, digamos que 73 livros,
e sempre era maravilhosa, fantástica e fenomenal para todo
mundo, e vendia milhões de exemplares de cada um. Então,
escreveu mais um romance, digamos que o de número 74, e
assinou com um pseudônimo e o mandou aos seus próprios
editores, e eles o devolveram dizendo que não poderia ser
publicado, que não gostaram muito do livro e lhe sugeriam que
estudasse as obras de Fulana, ou seja, dela mesma. Então ela
enviou novamente o manuscrito aos seus editores, dessa vez com
seu próprio nome, e lhe disseram: Ah, que maravilhoso!
Estupendo, querida! Como você consegue? Sempre escreve tão
bem…
— Como a senhora mesma com o experimento Somers: nada
tem tanto sucesso quanto o sucesso…
— De fato, é absolutamente assim.
— A senhora parece encarar isso de maneira muito filosófica,
mas para mim soa terrível. Daria para dizer que é impossível
alcançar uma apreciação minimamente objetiva das obras…
— Bem, essa apreciação leva certo tempo. Cada livro tem sua
própria vida. Em geral, todos os livros têm de lutar no início contra
a negatividade e a indiferença. A maioria dos meus livros teve
violentas reações contrárias, principalmente os de ficção científica,
mas os outros também.
“Agora estou escrevendo um romance de aventuras, é a
primeira vez na vida que faço algo assim, e estou me divertindo
muito. Bem, me interessa ver o que acontecerá quando esse livro
sair, porque é um campo completamente novo na minha literatura.
E com certeza os críticos dirão a mesma coisa de novo: mas por
que você está fazendo isso, Doris, por que está perdendo tempo?…
É uma atitude totalmente previsível.
— Me admira a segurança em si mesma que a senhora
demonstra: por exemplo, apesar das duras críticas às suas obras de
ficção científica, a senhora continuou escrevendo um romance
atrás do outro até terminar a pentalogia…
— Porque fazê-los me divertia. Também me diverte muito um
livro de aventuras que estou escrevendo agora, e se depois as
pessoas não gostarem dele, não ligo, porque terei curtido fazê-los
de qualquer forma.
— Nunca teve um bloqueio, nunca passou por um período de
seca criativa?
— Não, não. Já quis escrever um livro específico e não soube
como fazê-lo, como resolvê-lo, e levei dez anos até encontrar o
jeito. Mas enquanto isso eu fazia outros livros. Bem, estive alguns
períodos sem escrever, mas por decisão própria. Uma vez passei
um ano inteiro sem escrever, de propósito, para ver o que
acontecia. Tive muitos problemas. Acho que não combina comigo
não escrever: fico de muito mau humor. A escrita nos dá uma
espécie de equilíbrio.

Ela é orgulhosa como os heróis dos filmes antigos de faroeste,


solitária e sempre rebelde contra o mundo, contra os críticos
medíocres, contra as injustiças, contra a estupidez, contra os
abusos. Ao envelhecer, todos vamos nos solidificando na nossa
especificidade e nas nossas esquisitices, e essa digna senhora de
pequenos e intensos olhos verdes parece hoje mais indômita que
nunca. Nasceu na Pérsia em 1919, mas desde os cinco anos viveu
na antiga colônia britânica da Rodésia, hoje Zimbábue, numa
chácara modesta no meio das montanhas, onde cresceu obstinada
e um tanto selvagem. Aos catorze anos, foi embora de casa; aos
dezesseis, se casou. Depois se divorciou e abandonou os dois
primeiros filhos. Enfrentou o regime racista da colônia e entrou
para o Partido Comunista, mas anos depois deixou a militância e
denunciou lúcida e precocemente o comunismo, o que lhe rendeu
muitas críticas.
Enfim, preencheu sua vida com atos inconvenientes, e nem
mesmo o fato de estar há vinte anos sendo indicada ao prêmio
Nobel fez de Doris Lessing uma mulher convencional. A sala da
sua casa quase não tem móveis: há alguns tapetes persas bastante
puídos e várias almofadas velhas pelo chão, como no apartamento
de um hippie ou uma ocupação. Num canto, uma grande mesa de
madeira está completamente coberta de livros e papéis (um
exemplar em inglês de Fortunata y Jacinta, um dicionário de russo
aberto no meio, um álbum de pinturas). Como não há cadeiras à
vista, é de supor que Doris leia em pé. O sofá em que estamos tem
a base serrada, por isso é exageradamente baixo. Não parece o
assento mais apropriado para uma mulher que está fazendo agora
78 anos, mas as barreiras físicas da idade parecem indignar a
combatente Lessing, e ela insiste em se sentar no chão como se tal
ginástica não lhe custasse nada. Custa, sim, é claro, embora ela
ainda esteja bastante ágil. Apoia-se no joelho e geme: “Isso é a
velhice, percebe? A velhice é essa dificuldade de se levantar”.

— Pelo que sei, foi a senhora que escolheu Michael Holroyd para
ser seu biógrafo oficial…
— Li a biografia que ele fez de Bernard Shaw e era tão boa, tão
cheia de sensibilidade e compreensão da infância sofrida de Shaw,
que eu pensei que, se tivessem de fazer uma biografia minha,
preferia que fosse feita por ele.
— A posteridade lhe preocupa?
— Não. É que começaram a fazer biografias sobre mim por aí.
Num determinado momento da minha vida, incluí no meu
testamento que não gostaria que fizessem biografias de mim, mas
depois percebi que não adiantava nada, porque outros escritores
também incluíram isso nos seus testamentos e ninguém respeitou
sua vontade. E o fato é que, se vão fazer livros sobre mim de
qualquer maneira, preferiria que pelo menos um seja de Holroyd.
— A senhora cita a infância sofrida de Shaw… Numa entrevista,
disse: “Fui uma menina terrivelmente machucada, terrivelmente
neurótica, com uma sensibilidade e uma capacidade de sofrimento
exageradas”. No primeiro volume das suas memórias, escreve: “Eu
estava lutando pela minha vida contra minha mãe”. Certamente
não parece uma infância muito agradável.
— Foi uma infância muito tensa, e acho que a maioria dos
escritores teve uma infância assim, embora isso não signifique
necessariamente que tenha de ser muito infeliz, mas me refiro a
esse tipo de infância que te torna muito consciente, desde cedo,
daquilo que você está vivendo, que foi o que aconteceu comigo.
— Sua autobiografia está cheia de mulheres frustradas, e a
primeira delas é sua mãe. Era um ambiente muito opressor do qual
a senhora precisava fugir.
— Sim, minha primeira sensação era: tenho que escapar daqui.
No entanto, quanto mais velha eu fico, mais entendo minha mãe,
não a condeno de modo algum. Agora entendo exatamente como
ela era e por que fazia o que fazia. Entendo seu drama, e também
entendo que para ela foi uma tragédia ter uma filha como eu. Se
tivesse tido uma filha diferente, as coisas teriam sido muito
melhores para ela.
— Quando sua mãe morreu?
— Ah… no início dos anos 1960.
— E a senhora conseguiu lhe dizer que a entendia?
— Não. Gostaria de ter estado mais próxima dela. E isso é uma
coisa terrível. Éramos pessoas tão diferentes, temperamentalmente
falando. E isso foi uma tragédia. Simplesmente não podíamos nos
comunicar. E isso não foi culpa de ninguém. Sabe, eu tive três
filhos, e sei que os filhos são uma loteria.
— Na sua autobiografia, de qualquer forma, sua mãe é um
personagem maravilhoso. Frustrada, autoritária e por vezes
depressiva, mas ao mesmo tempo tão forte, tão corajosa, matando
cobras com espingarda e levando em frente uma existência muito
difícil.
— Sim, ela era um personagem extremamente forte e muito
capaz. Odiava sua vida, e no entanto a enfrentou e a conduziu
bastante bem, e com grande coragem.
— A senhora se recorda, quando criança, de repetir
mentalmente para si mesma: “Não serei como ela, não serei como
ela”. E, no entanto, acho que de alguma forma a senhora é muito
parecida com ela.
— Sim, com certeza. Há em mim uma dureza e um rigor que
com certeza vêm da minha mãe. E fico feliz, pois de fato era uma
mulher muito resistente.
— A senhora também é.
— Tive que ser.
— Já sei que nunca chora.
— Isso não é verdade.
— Nas suas memórias, a senhora mesma diz que, por
infelicidade, chora muito raramente.
— Bem, gostaria de chorar mais. Sim, é uma pena que não
chore mais. De fato, acredito que é isso que está por trás desse
gigantesco fenômeno desencadeado pela morte da princesa Diana.
Li num jornal que o mundo inteiro estava precisando de uma boa
choradeira, e que as pessoas aproveitaram a desculpa da morte de
Diana para se fartar de chorar. Sim, acho que essa é a mais absoluta
verdade, porque senão essa confusão absurda que se criou não teria
o menor sentido.
— Oscar Wilde disse que a desgraça dos homens era nunca se
parecerem com seus pais, enquanto a desgraça das mulheres era
sempre se parecerem com suas mães…
— Wilde disse muitas coisas afiadas, mas não necessariamente
verdadeiras. Outra é: todo homem mata aquilo que ama, e você
pensa: oh, sim, que brilhante! Mas depois começa a refletir e
pensa: mas isso não é verdade.
— A senhora tem razão, mas essa frase de Wilde sobre os pais
me parece acertada. Claro que ele está se referindo às mães
tradicionais que não podiam levar uma vida independente. Agora
as coisas mudaram, mas houve várias gerações de mulheres que
cresceram tentando fugir, frequentemente sem sucesso, do
destino das suas mães amarguradas.
— Sim. Eu sempre tive pena da minha mãe. Inclusive, desde
muito pequena pude perceber claramente como ela era infeliz. A
combinação entre achá-la intolerável e, ao mesmo tempo, sentir
uma desesperada compaixão por ela era o que tornava a situação
difícil de suportar. Agora, sem dúvida, as coisas melhoraram
muitíssimo, porque hoje as mulheres trabalham, e o principal
problema de muitas daquelas mulheres era que queriam trabalhar e
não podiam. Na verdade, já não vejo por aí mulheres como minha
mãe. Era terrível o que acontecia antes. Toda a minha geração tem
mães frustradas e amarguradas. E todas nós estávamos tentando
fugir do que elas eram.
— Suas memórias deixam a clara impressão de que a senhora se
sentia muito diferente de todos quando era pequena, e essa
diferença, levada ao extremo, é a loucura. Alguma vez já teve medo
de ficar louca?
— Veja, isso é muito interessante. Não acho que temi a loucura,
porque, em primeiro lugar, botei meus medos para fora através da
literatura, isto é, eu escrevi meu medo da loucura. E, em segundo,
acredito que tenho muitos pontos de contato com pessoas que
estão loucas, mas acho que posso… É algo por si só interessante,
acho que posso… não gosto da palavra sublimar, mas, enfim, acho
que posso simplesmente passar minha loucura para… talvez para
outras pessoas. Posso rebatê-la para fora de mim.
— Numa passagem do livro, a senhora conta que por muitos
anos chorou tão desconsolada pela morte dos gatos, que tinha
obrigatoriamente de pensar que estava um tanto maluca.
— É que há algo de louco numa pessoa que chora com absoluto
e total desespero durante dez dias pela morte de um gato, quando
não se comportou assim na morte da sua própria mãe. É algo
insano, irracional. Um deslocamento da dor.

Sempre boa anfitriã, Lessing nos pergunta meia dúzia de vezes se


queremos tomar alguma coisa. Não, não queremos nada, muito
obrigada. Ao final da entrevista, entre o alívio de ter acabado e o
receio de não ter sido carinhosa o suficiente, Lessing me
presenteia com dois dos seus livros e insiste que aceitemos um
pedacinho de doce de gengibre. Saímos ao quintal para fazer as
fotos: o térreo e a cozinha estão apinhados de livros e cacarecos.
Aparentemente, sempre foi muito desorganizada, e viver costuma
apenas multiplicar nossa tendência ao caos. Até pouco tempo
atrás, Lessing morava com Peter, seu terceiro filho, que deve estar
beirando os cinquenta anos: “Mas agora ele tem seu próprio
apartamento”.
De modo que Doris ficou na casinha de tijolos acompanhada de
El Magnífico, um gato lindo e enorme porém velhíssimo, um
animal de dezessete anos que acaba de ter uma pata amputada pois
estava com câncer no ombro. “Coitado”, suspira Doris. “O coitado
está muito velho e com apenas três patas. Mas, fazer o quê? Assim
é a vida.” A vida para Doris, me parece, é uma escuridão contra a
qual é preciso lutar empunhando palavras luminosas. Ou como seu
jardim, crescido feito uma selva. “Na primavera estava lindo, mas
agora, veja só.” Agora está tomado pelo mato. Enfim, a vida é como
um cerco, e lá fora se amontoam a idade, a morte, a decadência e a
melancolia. Mas ela resiste aos ataques e continua defendendo seu
posto dia após dia, a destemida Lessing, combativa, tão bonita com
seu coque esticado e suas roupas elegantes, tão poderosa ainda
com sua lucidez e sua prosa perfeita.
— Nas suas memórias, a senhora se refere de passagem a uma
época em que sofreu muito…
— Ah, sim, você está falando da fase da depressão… Foi uma
dor tão imensa, tão poderosa… Acho que eu entendo o que é a dor,
sabe? Suprimimos coisas da nossa consciência, reprimimos
sentimentos e os carregamos enterrados no fundo do coração. E de
repente acontece algo como… Sei lá, como o assunto da princesa
Diana, por exemplo, e as pessoas encontram um motivo para
chorar. Porque na verdade estão chorando por si próprias.
— E o que aconteceu com a senhora naquela ocasião, para
sofrer assim?
— Não importa o que aconteceu, com certeza foram motivos
dos mais irrelevantes. O importante é saber que acontece assim,
que um dia, de súbito, inesperadamente, toda aquela tristeza cai
sobre você e te inunda, e então você deve se perguntar o que
andou escondendo, o que andou silenciando a si mesma durante
todos aqueles anos.
— Se pergunto o motivo daquele baque, não é por mera
curiosidade. A senhora é uma pessoa que vive, reflete sobre o que
vive e depois escreve a respeito de tudo isso, e para mim, para
muitos dos seus leitores, a senhora é uma espécie de exploradora
da existência, uma pioneira que caminha à frente…
— Essa é uma imagem bonita.
— É o visionário que vai explicando aos outros o que nos espera
na vida.
— Gosto muito dessa ideia.
— E gostaria de saber o que é que há lá na frente que pode ser
tão doloroso.
— Teria de pensar sobre isso. Conheci pessoas deprimidas
clinicamente falando e, quando experimentei aqueles momentos
de intensa tristeza, me pareceu que só havia um degrau a menos
entre minha tristeza e a depressão clínica, que era muito fácil
descer de uma para a outra. E então você precisa se perguntar de
onde vem toda essa dor. Não sei, acho que as pessoas
frequentemente bloqueiam a lembrança da sua infância porque
lhes parece uma lembrança intolerável. Simplesmente não querem
pensar nisso. E muitas vezes é ótimo não nos lembrarmos, pois do
contrário seríamos incapazes de viver. De modo que eu passo
muito tempo da minha vida olhando os bebês e as crianças
pequenas e pensando: o que realmente estará acontecendo ali
embaixo?
— Aliás, a senhora, ao se separar do seu primeiro marido, teve
de abandonar seus dois filhos. Deve ter sido algo bastante
doloroso.
— Foi uma coisa terrível, mas tive de fazê-la. Não posso dizer
que tenha sido uma boa decisão, mas podia ter saído muito pior em
todos os sentidos. Meus filhos sempre foram extremamente
generosos, nem meu filho nem minha filha jamais me condenaram
e sempre me apoiaram. Meu filho John morreu, não sei se você
sabe. Morreu há alguns anos de um ataque cardíaco.
— Não sabia. Devia ser bem jovem.
— Muito. Cinquenta e poucos anos. Bebia demais, comia
demais, era uma dessas pessoas que tinham de viver no limite…
Mas, bem, o fato é que precisei deixar meus filhos, tive de fazer
isso, era uma questão de vida ou morte para mim. Eu não seria
capaz de continuar suportando aquela vida de brancos na África do
Sul. Enfim, que diferença faz? Tudo isso já são águas passadas há
muito, muito tempo…
— A senhora sempre fez e disse coisas pouco convencionais. É
a antítese do politicamente correto. E isso lhe rendeu muitas
críticas: os de direita a odeiam, a esquerda radical a considera uma
traidora…
— Pois é.
— Esse seu lugar, do rigor e da lucidez, não é muito solitário?
— Bem, alguém disse que um dos grandes problemas de ser
velho é que você não pode dizer em voz alta quase nenhuma das
coisas que realmente pensa, porque sempre acaba sendo ridículo,
chocante ou incômodo.
— Soa bastante triste.
— Sempre se pode falar com os contemporâneos.
— E como a senhora vive tudo isso? Como vive seus 78 anos?
— O que você está perguntando é como lido com o fato de ser
velha, certo? Bem, o que se pode fazer? Não há outro remédio
senão viver a velhice. Não se pode fazer nada contra ela.
— Já lhe disse antes que, para mim, a senhora é uma espécie de
exploradora. Por favor, me diga que a essa idade também há
momentos em que a vida é bela.
— Eu nunca achei que a vida fosse bela.
— Então pelo menos me diga que ainda se preserva a
curiosidade, e a excitação de descobrir coisas novas, e o prazer de
escrever…
— Sim, isso sim. Tudo isso ainda se mantém intacto.
Nota da tradutora

“Para não transformar a leitura deste livro num contínuo tropeço


insuportável”, como justificou a própria autora nestas páginas,
evitei ao máximo o uso de notas de rodapé. Mas, numa obra com
tantas citações, é preciso referenciar algumas fontes utilizadas
neste texto.
Para os versos de Emily Dickinson, recorri à edição bilíngue da
Poesia completa publicada em dois volumes pelas editoras da
UnB/Unicamp na tradução de Adalberto Müller — à exceção do
fragmento da página 136, contendo o verso “The danger of being
sane”, que traduzi espelhando o título O perigo de estar lúcida. Os
trechos do romance Ioga, de Emmanuel Carrère, foram extraídos
da edição brasileira traduzida por Mariana Delfini (Alfaguara,
2023). O monólogo de Hamlet, de William Shakespeare, está na
tradução de Lawrence Flores Pereira (Penguin Classics Companhia
das Letras, 2015), e a passagem do capítulo final do segundo livro
de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, foi traduzida por Sérgio
Molina (Editora 34, 2012). O trecho da Trilogia de Copenhagen, na
página 44, foi cedido gentilmente pela Companhia das Letras (trad.
de Heloisa Jahn e Kristin Lie Garrubo, 2023). Os fragmentos de A
redoma de vidro, de Sylvia Plath, têm tradução de Chico Mattoso
(Biblioteca Azul, 2014), enquanto os versos da poeta foram vertidos
ao nosso português por Marília Garcia para a Poesia reunida
(Companhia das Letras, 2023). Já os trechos dos seus diários foram
traduzidos por Celso Nogueira (Os diários de Sylvia Plath, 1950-
1962, Biblioteca Azul, 2017). Menciono ainda breves passagens da
edição brasileira de A louca da casa, de Rosa Montero (Nova
Fronteira, 2015), na tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, e de
A ridícula ideia de nunca mais te ver, também da autora — esta, na
minha própria tradução (Todavia, 2018). Agradeço aos tradutores,
editores e leitores amigos que me facilitaram esses trechos em
particular. Todos os demais são traduções livres das citações a
partir do espanhol.
Alejandro Ruesga

Um dos principais nomes da literatura espanhola contemporânea,


Rosa Montero nasceu em Madri, em 1951. Jornalista, ficcionista e
ensaísta, é autora de diversos livros aclamados mundialmente,
como A ridícula ideia de nunca mais te ver, Nós, mulheres e A boa
sorte, publicados pela Todavia.
El peligro de estar cuerda © Rosa Montero, 2022

Todos os direitos desta edição reservados à Todavia.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

capa
Luciana Facchini
obra de capa
Sem título (2022), de Vânia Mignone.
Reprodução de Filipe Berndt
composição
Jussara Fino
tratamento de imagens
Carlos Mesquita
preparação
Silvia Massimini Felix
revisão
Jane Pessoa
Ana Alvares
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Montero, Rosa (1951-)


O perigo de estar lúcida [recurso eletrônico] / Rosa Montero ; tradução Mariana
Sanchez. — 1. ed. — São Paulo : Todavia, 2023.
Dados eletrônicos (1 ePub).

Título original: El peligro de estar cuerda


ISBN 978-65-5692-551-6
Acesso eletrônico: 1 arquivo de ePub

1. Literatura espanhola. 2. Romance. 3. Não-ficção espanhola. I. Sanchez, Mariana. II.


Título.

CDD 860

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura espanhola 860

Bruna Heller — Bibliotecária — CRB-10/2348


todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
www.todavialivros.com.br
1. Na tradução de Adalberto Müller: “Dois legados — me
Deixaste,/ Senhor — Um de Amor/ Que a um Pai do Céu bastava/
Tivesse ele tido a oferta —/ Deixaste ainda o Limite da Dor —/
Amplo como o Mar —/ Entre a Eternidade e o Tempo —/ Tua
Consciência — e eu —”. [n. t.]
[««]

2. “No inverno no meu Quarto/ Eu dei com uma minhoca/ Rosa-


murcha e quente […] Eu encolhi — ‘Que bela tu és!'/ A Pinça
Propícia/ ‘Com medo ela sibilou/ De mim?'/ ‘Nenhuma
Cordialidade' —/ Ela me sondou/ Então num Ritmo Fino/ Oculta
em sua Forma/ Como Padrões flutuantes/ Projetando-a enfim
[…]” [n. t.]
[««]

3. “Esposa — ao Despertar — serei […] À Meia-Noite — ainda


Menina […]/ Meia-Noite — Boa-Noite — Ouço passos —/ Anjos
da Entrada — agora o que faço —/ Lento — o Futuro sobe a
Escada/ Reviro a Reza Ensinada —/ Daqui a pouco a Infância — já
era —/ Eternidade — estou chegando —/ Mestre — já vi essa
Face — em outra Era —” [n. t.]
[««]

4. Na edição brasileira, em tradução de Celso Nogueira: “Estou


com o polegar deslocado, Ted com cicatrizes das unhadas, faz uma
semana, e me lembro de ter jogado um copo com toda a força na
sala escura; em vez de quebrar, o copo bateu, ricocheteou e
permaneceu intacto: fui atingida, vi estrelas — pela primeira vez
— estrelas vermelhas & brancas ofuscantes explodindo no vácuo
negro dos gritos & das mordidas”. [n. t.]
[««]
5. No Brasil, Debaixo da minha pele, publicado pela Companhia das
Letras em 1997, com tradução de Beth Vieira. [n. t.]
[««]

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