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Sobre a obra:
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Rosa Montero
Fernando Pessoa
William Shakespeare
Meus admiradores acreditam que estou curada, mas não; apenas virei
poeta.
Anne Sexton
Capa
Folha de Rosto
Chupando cobre
Sou multidão
Os entomólogos não choram
Estupor e fraude
O abutre impaciente
Elogio dos imaturos
Uma família lamentável e magnífica
Um mar de caos
Tempestade perfeita número 1
A musa malvada
Contra o medo
Como crianças no cemitério
Tempo de presentes
Pesadelos geométricos
Viciados em intensidade
Verdadeiras verdades mentirosas
Tempestade perfeita número 2
Isso é o que vejo
Como nasceu o menino
Debaixo da cama e berrando
A grande dança
Tudo
Essas noites magníficas
Autora
Créditos
Chupando cobre
Meu pai, que era bem valente, me disse algumas vezes: “O que
mais me dá medo é a loucura”. Nunca conversamos a respeito. Não
lhe contei sobre meus pânicos e ele não acrescentou nada àquelas
palavras, e agora lamento por isso. Se tinha tanto medo, é de supor
que alguma crise também o rondava. Embora talvez não, porque na
verdade o que chamamos de loucura é algo que cria um pavor
geral. Causa tanto medo, e um medo tão irracional, que as pessoas
que sofrem de alguma doença são estigmatizadas e isoladas
socialmente, o que piora de modo drástico sua condição. Porque
estar louco, já falei isso antes, é sobretudo estar só. É uma ruptura
da narrativa comum, um afastamento da convenção social. Se eu
dissesse agora que acabo de encontrar Lúcifer na escadaria, que ele
fedia a enxofre, que tinha pequenos chifres incandescentes como
brasas e que zombou de mim mostrando sua língua afiada, verde e
bipartida, você ficaria horrorizado pensando que surtei. Mas, se
estivéssemos no século XII, você levaria a sério: “E o que é que
você fez? Mostrou a cruz para ele? Como fugiu?”, perguntaria.
Você certamente conhece a história do matemático John Nash,
inventor da teoria dos jogos. Sua vida foi retratada no filme Uma
mente brilhante, protagonizado por Russell Crowe. Aos trinta anos,
quando era uma estrela da ciência em ascensão, Nash se perdeu
nos desvarios de uma esquizofrenia paranoide. Foi internado à
força em diversos hospitais psiquiátricos e submetido a
tratamentos violentos, como os choques insulínicos. Passou três
décadas assim, delirante, hospitalizado e dependente de cuidados,
o típico exemplo do louco furioso. Mas depois, pouco a pouco, foi
se libertando das suas alucinações, ou então aprendeu a conviver
com elas e a não se deixar enganar pela ilusão. Conseguiu levar
uma vida mais ou menos normal e até mesmo manter um cargo de
professor na Universidade Princeton, e, pouco depois, em 1994,
deram a ele o Nobel de economia. Nash ganhou o prêmio por
trabalhos da juventude desenvolvidos antes do colapso psíquico.
Mas é preciso dizer que ele continuou fazendo importantes
descobertas matemáticas de tempos em tempos, mesmo durante
os anos terríveis daquela morte em vida, que é a loucura extrema.
Sua recuperação é pouco comum. Os fármacos de nova geração
certamente contribuíram para isso, mas conseguir superar a
terrível deterioração de trinta anos de internamentos e
tratamentos é algo assustador. Fica claro que sua mente poderosa o
ajudou, ainda que a fiação estivesse muito malfeita. Ele mesmo
explica isso na autobiografia que escreveu depois de ganhar o
Nobel. Nela, reconhece ter passado muitos anos ofuscado pelos
delírios paranoides, até que foi aprendendo a afugentar, com uma
enorme força de vontade, aquelas apavorantes fantasmagorias. “De
modo que, agora, parece que estou pensando de novo
racionalmente, como fazem os cientistas”, diz Nash. E acrescenta:
“Porém, isso não é algo que me enche totalmente de alegria, como
aconteceria no caso de estar doente fisicamente e recuperar a
saúde. Porque a racionalidade do pensamento impõe um limite ao
conceito cósmico de uma pessoa”. Aqui ele cita, com melancólica e
evidente inveja, o caso de Zaratustra, um indivíduo que, visto da
racionalidade científica, pode ser catalogado como maluco. Mas
acontece que seus delírios tiveram uma infinidade de seguidores e,
justamente por isso, porque foi compreendido e valorizado,
tornou-se Zaratustra, isto é, um visionário que entrou para a
história e que imaginou uma nova forma de abordar o mistério do
mundo. Assim como no meu exemplo do demônio, poder
compartilhar ou não o delírio com seus contemporâneos é o que
faz a diferença entre uma existência viável e uma vida fracassada. O
ostracismo condena o doente psiquiátrico a viver num inferno.
“Para o cérebro, a rejeição social é tão importante que literalmente
dói: ativa a mesma matriz neural da dor”, diz o neurocientista
David Eagleman.
Grande parte do medo em relação a pessoas com problemas
mentais se deve à crença de que elas podem sair te perseguindo
com um machado, algo que talvez ocorra (vide Althusser), mas
que, além de não ser nada provável, tampouco é uma coisa
intrinsecamente relacionada à doença mental: com efeito, pessoas
rotuladas de normais cometem mais atos de violência que os
lunáticos. E, depois, acho que no medo da loucura também está a
insegurança na própria sanidade. A realidade do mundo é uma
convenção, uma miragem tremeluzente, é algo tão incerto que
estou convencida de que mesmo as pessoas menos imaginativas
intuem que além das paredes das suas casas se esconde um
abismo. É uma droga, mas simplesmente o que vemos, o que você
está vendo agora (levante os olhos destas linhas e olhe em volta),
enfim, este mundo, que você acha tão sólido e estável, não passa
de uma construção imaginária. Quer uma prova? No centro do seu
olho, de cada um dos seus olhos, existe um ponto cego. Ali onde o
nervo óptico se insere na retina, o olho não vê. E não se trata de
um pontinho minúsculo, mas de uma zona cega que abrange de
dois a quatro graus do campo visual. A Lua ocupa meio grau, ou
seja, o buraco tem lá sua importância. Porém, não o notamos
porque nosso cérebro completa imaginariamente o que não vê. O
mesmo acontece com o glaucoma, uma doença insidiosa que vai te
fazendo perder a visão periférica até deixar seu olhar reduzido a
um tubo central. O pior é que os pacientes de glaucoma não
percebem o dano até que seja tarde demais. Às vezes descobrem
porque vão dobrar uma esquina e de repente, para seu
desconcerto, dão de cara com uma parede. É que a esquina não
existia e tinha sido imaginada pela sua mente, empenhada em
reconstruir com laboriosa dificuldade a paisagem que o olho não
percebia. O mundo em que vivemos é em boa medida uma
alucinação, não à toa tememos que o contágio dos doentes mentais
abale de vez nossa estrutura.
Não acredito que possa haver uma dor tão insuportável como a
dor psíquica: como não ter medo desse tormento? O que
costumamos chamar de loucura — isto é, alterações mentais
realmente graves, aquelas que ainda nos privam de uma existência
plena (um dia encontrarão um remédio) — gera um sofrimento
atroz. Os autores mais afligidos repetem nos seus textos, uma e
outra vez: a loucura é um inimigo à espreita ao longo da vida
inteira, um abutre rondando para te devorar. Pior: um abutre
impaciente que começa a roer suas entranhas quando você ainda
não morreu. “Meu cérebro está totalmente transtornado e já não
serve para viver, de modo que eu deveria ir para um hospício”,
disse Van Gogh. E Hölderlin escreveu em 1801: “Agora temo
acabar como o velho Tântalo, que recebeu dos deuses mais do que
podia digerir”. Seus transtornos foram piorando até que, cinco
anos mais tarde, o abutre o capturou definitivamente. Foi
internado numa clínica psiquiátrica e morreu em 1846 sem nunca
mais recuperar o controle.
Nestes últimos anos, me debrucei sobre uma porção de textos
escritos em pleno delírio por gente muito perturbada. Tem sido
uma viagem e tanto. Um desses livros foi Inferno, de Strindberg. O
sueco August Strindberg (1849-1912) foi uma figura peculiar. É um
dos autores mais importantes do seu país, sobretudo como
dramaturgo. Era também um esquizoide paranoico que passou por
terríveis momentos alucinatórios. Sentia-se perseguido por todo
mundo, em especial pelas mulheres, e acabou construindo teorias
conspiratórias de uma misoginia feroz. É curioso, porque na sua
obra há ao mesmo tempo textos feministas e textos de um
machismo insano, literalmente. Senhorita Júlia, sua obra mais
famosa, mostra ambos os aspectos. Sua crise psicótica mais grave
foi em 1894 e está retratada no livro Inferno, que é pura e
simplesmente o relato de um surto. Delirante e repetitivo, seu
único valor reside na paisagem mental remota que ele expõe. Uma
agonia, um inferno descrito enquanto as chamas ardem.
Strindberg começa o livro tentando capturar almas num cemitério
com um vidrinho de acetato de chumbo líquido. “Embora seja
inegável que eu saiba despertar os mortos, não o faço mais, pois os
mortos têm mau hálito.” Não para de viajar durante a crise; vai de
hotel em hotel, e em todos os estabelecimentos lhe acontecem
coisas horríveis. Acredita que tentam matá-lo “com um gás
deletério” e também com correntes elétricas que atravessam o
quarto: “A ideia de que sou perseguido por inimigos eletricistas
me assombra novamente”. O que ele diz causa graça, mas seu
sofrimento é colossal. Vê sinais de conspirações por toda parte,
que de algum modo o aliviam, pois parecem “uma realidade
palpável que me liberta de todas as minhas horríveis suspeitas
relacionadas à doença mental”. É que também os loucos (imagino
que eles mais que ninguém) estão mortos de medo da loucura.
Uma noite, esmurra a porta da sogra, com quem mora a filha
pequena de Strindberg.
Conheci Jericó,
eu também tive minha Palestina,
os muros do manicômio
eram os muros de Jericó […]
Pelo visto sou imatura, e devo dizer que fico até feliz por isso. Há
um livro interessantíssimo da neurobióloga espanhola Mara
Dierssen, El cerebro del artista, que me ensinou uma porção de
coisas. Nossa cabeça, já se sabe, é uma conquista magnífica da
evolução, e dotada de uma complexidade monumental. Temos 86
bilhões de neurônios no cérebro, e para que todos os circuitos
elétricos necessários caibam dentro da pequena e dura caixa do
nosso crânio, o córtex cerebral foi se enrugando e dobrando
intrincadamente sobre si mesmo para aumentar a superfície. Se
você tirasse o córtex cerebral da cabeça e o passasse a ferro, ele
poderia chegar a medir meio metro quadrado. Agora, imagine
organizar um sistema perfeito de recepção e envio de dados com
tudo isso. Não me surpreende que às vezes a fiação dê algum
probleminha.
O neurônio é uma célula especializada na comunicação. De um
lado, saem dele uns fiozinhos, os dendritos, encarregados de
coletar a informação; do outro, uma cauda muito comprida
chamada axônio, o mensageiro, que entrega o pacote. Os nervos
são milhões de axônios juntos (eles também formam a massa
branca do cérebro, enquanto o corpo dos neurônios é a massa
cinzenta). No final da cauda existem pequeníssimas
protuberâncias, os botões sinápticos. Ali, em saquinhos, estão os
neurotransmissores, compostos químicos que intervêm de
maneira fundamental na comunicação com a célula seguinte. Há
mais de cem neurotransmissores no corpo humano: acetilcolina,
dopamina, serotonina, noradrenalina, Gaba… Alguns são
inibitórios: impedem a passagem dos sinais. Outros, os
excitatórios, as estimulam. E essa dança elétrica acontece de modo
constante entre bilhões de neurônios. Se pensarmos um pouco,
parece até milagre uma coisa tão básica como o fato de ser capaz de
enfiar o dedo no nariz.
O cérebro demora a amadurecer. Há estudos que defendem que
ele só termina de se formar depois dos trinta anos. Sabemos que na
adolescência começa uma profunda poda neural: na infância, nossa
cabeça é um turbilhão, loucamente cabeado e interconectado em
todas as direções. Mas, ao chegarmos à puberdade, os
neurotransmissores inibitórios do córtex pré-frontal começam a
funcionar como possuídos e desligam todas aquelas conexões que
não são claramente úteis para gerenciarmos nossa vida. Assim, o
cérebro se concentra em caçar mamutes, colher sem se envenenar,
encontrar uma caverna segura, arranjar uma parceira ou parceiro
fértil, manter a prole com vida, sem perder tempo nem energia em
ideias paralelas desnecessárias. Agora, traduza a metáfora
troglodita para nossa sociedade atual.
Pois bem, aparentemente há um certo número de pessoas nas
quais não ocorre esse amadurecimento cerebral. Entre elas, estão
os doentes mentais. E também, é o que defende Dierssen, os
artistas. O fato é que os neurotransmissores falham de algum modo
e a mente não é podada como se deve: “Uma pessoa normal
controla a atenção através da inibição de respostas a estímulos
irrelevantes”, diz Dierssen. Mas nas pessoas mais criativas essa
inibição não ocorre, pelo menos não nos momentos de
criatividade, de modo que elas têm (nós temos) a cabeça muito
mais cheia de bobagens.
Sem contar que, quando lemos no jornal ou alguém nos conta uma
notícia truculenta, simplesmente a vemos, quer dizer, estamos ali.
Eu senti o cheiro da carne chamuscada daquelas vítimas do Isis
queimadas com lança-chamas dentro de uma jaula. Eu ouvi se
quebrarem os ossos das crianças maltratadas pelos pais até a morte.
E, de novo, não sou a única com quem isso acontece. Emmanuel
Carrère conta em Ioga uma história atroz que, diz ele, leu há vinte
anos no jornal Libération. Um menino de quatro anos passa por
uma cirurgia sem importância que, no entanto, dá errado. O
menino volta do centro cirúrgico surdo, cego, mudo e paralisado.
Para Carrère, não há horror maior: aquela criatura presa para
sempre no silêncio e na escuridão, sem poder entender nada,
incapaz de se mexer, sem sequer perceber as carícias dos seus pais.
É um pesadelo horripilante, que atormentou Carrère por duas
décadas e, se teve um efeito tão duradouro, é porque tenho certeza
de que o escritor se sentiu dentro daquele menino. Eu também me
sinto agora um pouco ali. Talvez não dentro do garoto, mas do seu
lado: o quarto do hospital na penumbra, a cama articulada, o
pequeno vulto daquela criatura tão quieta debaixo do lençol
impecável, o zumbido pneumático do respirador. E a dor, a dor
monumental perfurando o coração da mãe como um verme. Essas
cenas cruéis que nossa imaginação nos faz vivenciar têm algo de
enlouquecedor e de persecutório. Por isso às vezes pulamos as
páginas dos jornais sem ler, ou não nos atrevemos a assistir ao
noticiário da TV, ou levantamos a mão correndo para deter a
verborragia mórbida de alguém disposto a nos contar um episódio
horrível no mais mínimo detalhe (todas essas reações são
consideradas sintomas de PAS). O problema é que as imagens
parecem demasiado reais. Talvez Proust se referisse a isso quando
falava da parte lamentável da família.
Há outros truques impostos pela nossa mente sem poda que são
mais leves e ao mesmo tempo mais ridículos. No caminho por
onde passeio quase todas as manhãs com minha cachorra, em
Cascais, há uma espécie de academia ao ar livre com aparelhos
parafusados no chão pela prefeitura para que as pessoas se
exercitem. Costuma estar cheia de garotos e garotas jovens,
morenos, musculosos e tatuados, com uma clara vocação para
mostrar a epiderme. Um dia, porém, vi um senhor mais velho,
talvez de uns sessenta e poucos anos. Como os outros, usava
apenas shorts e tênis. O cabelo, abundante e branco, reluzia ao sol,
e seu corpo era impressionante: provavelmente havia sido atleta
profissional, porque ainda mantinha uma forma física incrível. Não
pude deixar de notá-lo.
Duas ou três manhãs depois, me atrasei para sair de casa.
Quando cheguei à altura da região da academia, fazia muito calor e
quase não havia ninguém. De repente, percebi que alguém falava
comigo em português. Me virei e era ele, o Senhor Suculento, que
sorria e repetia algo para mim. Atordoada, tirei os fones com que
estava ouvindo música, mas continuei sem entender. O Suculento
tinha se agachado para fazer cafuné nas minhas cachorras, que na
época eram duas, Petra e Carlota. Imaginei que ele dizia algo sobre
elas e, atrapalhada e tímida como às vezes sou, não soube como
reagir. Apenas lhe disse obrigada (pelo quê?) e segui andando.
Durante o resto do passeio, fui me remoendo de raiva: mas como
você é idiota, por que não parou, por que não falou com ele, por
que não manteve uma conversa casual… Fiquei tão incomodada
que, em vez de completar o circuito que costumo fazer, voltei com
bastante antecedência para ver se o encontrava antes que fosse
embora. E, de fato, lá estava ele ainda, só que agora não mais na
beira do caminho, e sim longe, se exercitando num dos aparelhos.
De modo que não pude fazer grande coisa, exceto me deixar um
pouco em evidência. Porque esperei até que ele olhasse para mim,
então o cumprimentei com um sorrisão e sacudi com veemência a
mão no ar. Ele também respondeu de um jeito amável. E foi isso.
Da região da academia até minha casa são uns quinze minutos a
pé. Vou te contar como foi esse quarto de hora. Primeiro, comecei
a imaginar que flertava com ele. No dia seguinte, ensaiaria umas
palavras espirituosas para dizer (pensei nelas), conversaríamos um
pouco, eu o convidaria para tomar um café nas mesinhas ao ar livre
de um bar lindo ali perto. Durante sete ou oito minutos, a corte
toda se desenrolou na minha cabeça: as conversas que
mantínhamos, o modo como nos olhávamos, o que ele me contava
da sua vida (era viúvo, era divorciado, não havia se casado, era
médico mas tinha sido campeão nacional de salto com vara, era
treinador de polo aquático e antes havia sido jogador profissional,
era trapezista num circo), o toque aparentemente casual dos seus
dedos nos meus, o primeiro beijo, ah, sim, aquela maneira de
mergulhar no outro, e o cheiro da sua pele morna. Nham. E
visualizei nós dois passeando juntos pelos meus lugares preferidos
de Cascais, brincando com as cachorras, tomando um vinho
branco na minha varanda. Tudo fantástico, magnífico. Mas
imediatamente começaram os problemas. Eu o imaginei, ou
melhor, eu o vi com toda a clareza, me dizendo que queria ir à
praia. Odeio praia, odeio tomar sol e tenho medo do mar. Mas o
Senhor Suculento estava muito moreno, com certeza adorava se
bronzear e era daqueles que ficam horas lagarteando na areia. Um
suplício. Além do mais, como teríamos todas aquelas conversas
espirituosas se eu não entendo bem o português? Na certa
passaríamos os dias sem saber o que dizer um ao outro, sorrindo
estupidamente. Que chatice. E se além de tudo fosse um asno? E
se tivesse amigos horrorosos, que insistia em me apresentar? E
para piorar: eu morando a maior parte do tempo em Madri e ele
aqui, já pensou quantos mal-entendidos poderiam acontecer? Com
certeza não tínhamos nada em comum. E se a história se
transformasse numa daquelas relações perturbadoras e incômodas,
um erro que poderia manchar as boas experiências que sempre tive
em Portugal? Vi tudo com clareza, vi nossas discussões e a
dolorosa distância sideral que nos separava, e senti a tristeza de ter
entrado num desses relacionamentos que você sabe desde o início
que não podem dar certo, que de fato não dão certo e que, no
entanto, você prolonga mais alguns meses por pura idealização,
pela ilusão de achar que está apaixonada. O esforço inútil conduz à
melancolia, como dizia Ortega y Gasset. Mais ou menos nesse
momento cheguei em casa e, ao ter de interromper o transe
peripatético (a imaginação parece se avivar nos passeios) com
afazeres concretos, como dar de comer à Petra, a realidade se
impôs sobre a fantasia. E assim, a sensatez caiu sobre mim como
um repentino balde de água fria: meu Deus, que louca, como
posso imaginar num piscar de olhos, sem interrupção, uma tórrida
história de amor e um amargo desencanto? E tudo isso por nada,
tudo isso por causa de alguns sorrisos banais.
A partir desse dia, e pelo resto daquela viagem a Cascais, mudei
meu trajeto matinal para não passar de novo pela região da
academia e não cruzar com ele, porque tinha vergonha que o
Senhor Suculento pensasse que eu queria flertar com ele. O que
sem dúvida era verdade, era exatamente aquilo que eu desejava.
Mas o que me encabulava mesmo, o que não me sentia capaz de
É
assumir, era o turbilhão das minhas fantasias. É aquela história,
“enfia o macaco no rabo”, como na famosa e clássica piada: um
viajante de negócios dirige um carro alugado no meio de uma noite
de tempestade numa região remota do país e tem o azar de que o
pneu fure. Ele sai do veículo para trocá-lo e descobre, para seu
horror, que está sem o macaco mecânico, aquele pequeno elevador
que botamos embaixo do carro para erguê-lo. Desesperado, olha ao
redor: escuridão total, campos vazios, uma chuva torrencial
alagando tudo. Só se vê uma luz fraca lá no alto da colina, a uns
seiscentos ou setecentos metros. Uma chácara, com certeza. O
viajante não consegue pensar numa ideia melhor, então decide se
aproximar para pedir a ferramenta emprestada (a piada é daqueles
tempos arcaicos em que ainda não existia celular). Ele começa a
caminhar pelo mato sob o dilúvio, com o barro mole e frio
entrando nos seus sapatos de cidade. Que sorte ter uma chácara
por perto, ele vai pensando. Numa chácara sempre há carros,
tratores, de tudo. Vão me emprestar o macaco, eu troco o pneu e
vou direto ao hotel para tomar um banho. Espero que o chacareiro
esteja acordado. A luz está acesa, pelo menos. Se bem que parece
uma daquelas luzes externas, dessas que deixamos acesas a noite
toda. E se ele estiver dormindo? Essa gente do campo dorme com
as galinhas. Ah, com certeza está dormindo. E roncando. Com
certeza vou ter de esmurrar a porta meia hora. Porque não vai ter
campainha, quer ver só? E ele não vai me ouvir. Isso, bata na porta
até finalmente tirá-lo da cama. Não vai ser nada divertido acordá-
lo. Com certeza virá atender zangado. Com o mau humor daqueles
matutos. Porque madrugam muito e tal. E a desconfiança que eles
têm de nós da cidade? Porque são uns ignorantes. Então eu
esmurro a porta sem parar e o cara se irrita e não abre para mim.
Odeiam desconhecidos. E eu do lado de fora dizendo aos gritos
que sou um viajante, que estou morto de cansaço, que o pneu
furou e aqueles filhos da puta me alugaram um carro sem macaco,
será que ele pode me emprestar um, por favor… Então ele abre um
pouco a porta, com a corrente presa na trava e um olho de bêbado
espiando pela fresta. E com certeza naquele cabeça-dura
desconfiado e infeliz surge a suspeita de que quero roubá-lo, de
que andei um quilômetro cortando o campo debaixo da chuva
gelada no meio da noite para roubar dele uma maldita ferramenta
velha. E então, me dirá: não tenho macaco. E dará com a porta na
minha cara, me deixará plantado debaixo do dilúvio e tiritando. A
essa altura do seu solilóquio, o motorista chega à chácara. Fica
parado pingando sob a fraca luz da entrada e bate com impaciência
na porta que, com efeito, não tem campainha, mas o chacareiro
logo vem abrir. E nosso viajante de negócios grita para ele: Quer
saber? Enfia o macaco no rabo!
Agora que penso nisso, tenho certeza absoluta de que o
protagonista da piada não era um viajante de negócios, mas um
escritor. Vou contá-la de novo: uma romancista em viagem de
lançamento do seu livro dirige um carro alugado…
Mas o presente das fadas tem outro lado. Quer dizer, falta
contarmos o verdadeiro presente. Um dia, no meio daquela
confusão de ideias malucas que não servem para nada nem vão a
lugar nenhum, te ocorre algo que, de repente, sem nem saber o
porquê, te deixa fascinada. Te deslumbra, te desconcerta, te seduz,
te cativa. A emoção que você sente é tão grande que não cabe no
peito, transborda a mente, então você pensa: eu tenho de contar
isso, tenho de compartilhar isso. E é aí que nasce o conto, o
romance. Esse brilho inicial, tão mobilizador e tão pungente, eu
chamo de ovinho. Se olhar bem, é uma coisa linda, porque desde o
instante mesmo da concepção da obra, o leitor está lá. Esse outro
para quem você vai contar a história e com quem deseja
compartilhá-la. A arte, penso que toda arte, é em primeiro lugar
comunicação.
Vou te dar um exemplo de ovinho. Certo dia, eu ia de trem de
Madri a Málaga para participar de um clube de leitura. Estava
escrevendo algo no laptop quando o trem parou entre as estações.
Ergui a cabeça e vi pela janela uma paisagem calamitosa: um
subúrbio industrial empobrecido e decadente, vários conjuntos de
trilhos e, ao lado dessas vias, uma sacadinha imunda com um
cilindro de gás enferrujado, as venezianas quebradas e a esquadria
de alumínio empenada. Preso com arame nas grades sujas, um
cartaz escrito à mão na tampa de uma caixa de sapatos dizia:
VENDE-SE, e incluía um número de telefone. Era o apartamento
mais horroroso do planeta no povoado mais tenebroso do universo.
Primeiro, senti pena: se estavam vendendo, deviam precisar de
dinheiro, mas ninguém jamais compraria um apartamento tão ruim
e tão colado às vias férreas. Então, minha mente sem poda
começou a viajar. E se? E se alguém, como eu, estivesse num trem
e erguesse a cabeça e visse esse cartaz e descesse na próxima
estação, voltasse, comprasse aquele apartamento infernal, se
trancasse lá dentro e nunca chegasse ao seu destino,
desaparecesse? Um tsunami de sentimentos me inundou, uma
supernova explodiu no meu crânio. Como fiquei empolgada com
aquela ideia! Eu ignorava tudo sobre a história, não tinha a menor
ideia de por que a pessoa descia ou por que comprava um
apartamento num lugar assim, nem mesmo sabia se o passageiro
do meu trem era homem ou mulher, mas eu já estava fisgada,
hipnotizada, porque os ovinhos são uma espécie de infecção, um
vírus que entra em você e começa a crescer. E, como curiosidade
mata, como você precisa de modo decisivo saber mais, começa a
observar a cena com mais atenção. A primeira coisa que fiz foi
pensar que meu passageiro era uma mulher. Visualizei-a no vagão,
imaginei seus gestos, seus movimentos, e não me senti
confortável, a história me causava um ruído: um comportamento
tão ensimesmado, tão mudo, tão focado na ação sem uma única
palavra não me parecia algo muito feminino. Formulei de novo o
ovinho com um homem, e então a cena fluiu naturalmente. Foi
assim que descobri que meu protagonista era do sexo masculino. E
então a história vai crescendo, enfim, de um jeito muito orgânico,
como uma arvorezinha que aos poucos ganha altura e galhos até se
transformar numa frondosa castanheira. Quando cheguei ao clube
de leitura, estava entusiasmada. Contei sobre minha visão e disse:
“Tenho certeza de que este será o início de um romance”. Isso foi
no dia 29 de abril de 2017. Em 25 de agosto de 2020, publiquei A
boa sorte, que começa justamente com aquele momento do trem. E
durante todo esse tempo estive vivendo em parte na minha
realidade cotidiana e em parte naquela outra dimensão imaginária,
em outras vidas, todas tão diferentes da minha e, portanto, tão
tentadoras. Escrever é brincar com um brinquedo enorme.
Para você ver como a família dos nervosos pode ser magnífica.
Um mar de caos
In Winter in my Room
I came upon a Worm —
Pink, lank and warm — […]
[…]
Até a mente cair em torpor —
Mas ela não caiu. Continuou lutando até o fim, palavra após
palavra febrilmente anotadas num pedaço de envelope, disparos de
luz contra as trevas. Ela mesma disse isso da maneira mais bonita
possível (da maneira Dickinson) numa carta a um amigo:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
E eu soube que, apesar das rosas e dos beijos e dos jantares que
o homem despejava sobre a mulher antes do casamento, o que
ele secretamente desejava depois da cerimônia nupcial é que ela
se estendesse sob seus pés como o tapetinho de cozinha da sra.
Willard […]. E me ocorreu que talvez fosse verdade aquela
história de que casar e ter filhos era como passar por uma
lavagem cerebral, e que depois você ficava inerte feito um
escravo num pequeno estado totalitário.
Morrer
É uma arte, como tudo.
É algo que conheço a fundo.
Faço parecer o fim do mundo.
Faço parecer real.
Dizem que tenho o dom.
Tenho certeza de que, mais uma vez, estou ficando louca. Acho
que não posso superar outra daquelas terríveis temporadas. Não
vou me curar desta vez. Comecei a ouvir vozes e não consigo
me concentrar. Por isso, estou fazendo o que acho melhor. Você
me deu a maior felicidade possível. Você foi em todos os
aspectos tudo o que se pode ser. Não acho que duas pessoas
poderiam ter sido mais felizes até surgir essa terrível doença
[…]. Note que nem sequer consigo escrever isso
adequadamente. Não consigo ler […]. Se alguém pudesse ter
me salvado, teria sido você. Não me resta nada, salvo a certeza
de sua bondade.
Dom Quixote foi outro suicida, e acho que Cervantes sabia muito
bem do que estava falando. Como também sabia Shakespeare, que
faz Hamlet dizer seu famoso monólogo sobre a conveniência ou
não de se matar:
Gostaria de acariciar mais uma vez os seios de Alicia para não estar
só.
Seria possível dizer, então, que a vida revela uma tendência radical
a se unir e se fundir em organismos maiores. E deixe-me
acrescentar mais uma notícia: no outono de 2021, foi publicada na
revista eNeuro uma pesquisa da Universidade de Tecnologia de
Toyohashi (Japão), dirigida por Mohammad Shehata, a qual
demonstra que o trabalho em equipe tem uma correlação cerebral,
isto é, que a consciência não seria apenas individual, mas também
grupal, pois quando várias pessoas dividem uma tarefa que requer
uma alta carga emocional, cria-se um estado hipercognitivo que
gera uma maior integração da informação entre os cérebros dos
indivíduos e uma intensa sincronia neuronal. Quer dizer: os
cérebros implicados começam a funcionar da mesma maneira. E,
assim, desligam simultaneamente o registro dos estímulos
externos, exceto a informação proveniente dos demais indivíduos
da equipe, e potencializam a atividade das ondas cerebrais beta e
gama (que gerenciam a vigília e a lucidez) no córtex temporal. E o
mais extraordinário é que todas essas mudanças são sincronizadas,
todos os cérebros compartilham as mesmas oscilações neuronais.
Esse trabalho não é o primeiro a respeito da sincronia entre os
humanos. Sabe-se há muito tempo que as pessoas se adaptam
facilmente, por exemplo, mudando juntas a postura corporal
quando estão conversando entre amigos, ou equilibrando os
batimentos cardíacos ao ver um filme juntos e ao dormir a dois, ou
unificando os ciclos menstruais em grupos de mulheres que
convivem, como num internato. Além disso, a sincronia parece ser
um assunto em voga, e pelo visto há um número significativo e
crescente de estudos de neurociência que tratam dele. Mas o
importante da pesquisa de Mohammad Shehata é que essa é a
primeira vez que o fenômeno pôde ser medido. Essa hiperconexão
recebe o nome de fluxo de equipe, e os autores do estudo se
perguntam se isso significa que nossa consciência se forma com a
contribuição de outros cérebros, além do próprio (embora
acrescentem que falta muito para podermos responder a essa
questão).
O que eu quero dizer, enfim, é que desconfio que há algo além
desse pequeno e irritante eu que nos aprisiona. E não estou
falando nem de religião nem de deuses: sou uma incrédula
absoluta e convicta. Não. Me refiro à vida que flui e se derrama, à
energia mutável que jamais se destrói, às vibráteis amebas de Le
Guin, que, aliás, também são eucariontes, como você e eu. E como
as baleias. Deixe-me contar uma das experiências mais
extraordinárias que já tive. Foi com uma baleia, há cerca de trinta
anos, na costa oeste do Canadá. Já relatei esse encontro no meu
livro A louca da casa; usei-o como uma metáfora da criação, mas na
verdade foi muito mais que isso. Saímos um dia para avistar
cetáceos no Pacífico com um pequeno Zodiac, sabe? Um daqueles
botes infláveis. Devíamos ser umas seis ou sete pessoas, incluindo
nosso guia. Eu estava ao lado do Pablo, meu marido. A borda era
muito baixa, a água ficava muito perto, todos usávamos boias salva-
vidas. O garoto nos levou mar adentro até chegar a uma área de
pequenas ilhotas. Ali o motor parou. As sete ilhotas serviam de
refúgio natural e o mar estava calmo. Ficamos em silêncio, sem
saber exatamente o que esperávamos, balançando como bebês no
suave vaivém da água mansa, curtindo a bela e plácida paisagem.
Mas, de repente, o mundo pareceu explodir. Houve um estrondo,
um barulho desconhecido e formidável mas sem dúvida orgânico,
uma respiração que parecia vir das entranhas do planeta, e um jato
d'água disparou nas alturas e nos encharcou. Então, enquanto
ainda caíam gotas sobre nós, começou a emergir algo inconcebível,
algo que eu sabia que tinha de ser uma baleia, mas que nem meus
olhos nem meu entendimento podiam processar, de tão magnífico
que era (e tão incompleto: só pudemos ver fragmentos do colosso).
Bem ao meu lado, a um metro ou talvez dois, tão perto que parecia
que eu poderia tocá-lo se esticasse o braço, começou a passar um
arco imenso de carne, uma carne que na verdade parecia borracha,
uma parede viscosa cheia de aderências, de algas e crustáceos; e
pouco depois passou o olho, um olho gigantesco que surgiu da
água, percorreu todo o arco e afundou de novo no oceano, aquele
olho assustador que nos olhava. Especificamente: que me olhou e
me viu. Depois do olho ainda havia muita baleia para passar, muito
músculo pétreo ornamentado com anêmonas (era uma jubarte,
uma das maiores espécies de cetáceos), até que a criatura
finalmente ergueu sua cauda titânica e a mergulhou na vertical,
muito lentamente. E toda aquela enormidade, aquela inaudita
exibição de potência, foi executada com tamanha delicadeza que
não levantou nem uma espuma na água, não provocou nem uma
onda capaz de chacoalhar nosso bote. Tirando a imensa respiração
do início, a baleia foi muito silenciosa. Só um sussurro líquido
acompanhou o milagre do seu corpo. Porque foi um milagre.
Alguns amigos me perguntaram depois: você não ficou com medo?
Nada, nem um pouco. Para ter medo você precisa estar dentro do
seu eu, e naquele momento eu era a baleia, e a anêmona, e a alga, e
a gota d'água que brilhava ao sol. Algo semelhante deve ter
acontecido com o naturalista britânico David Attenborough:
durante uma entrevista, ele me contou que a experiência mais
comovente da sua vida profissional ocorreu quando estava
estudando os gorilas na África e, de repente, uma fêmea se
aproximou, segurou gentilmente a cabeça dele com suas
manzorras e começou a estudá-lo ao mesmo tempo. Esses olhos
alheios, em que você se vê, nos conectam com o pulsar coletivo e
são uma porta para a eternidade.
Nos meus melhores momentos, nos instantes oceânicos,
quando o satori explode como uma supernova na minha cabeça,
sou capaz de fugir da cega e dolorosa prisão da minha
individualidade e sentir esse hálito plural, a cadência primeira, a
música das esferas, o palpitar do mundo. Sou um peixinho de um
imenso cardume, sou uma carpa dourada e sei dançar a dança mais
grandiosa, que é ao mesmo tempo a mais diminuta. É preciso
insistir aí, nessa sabedoria dançarina. É preciso aprender a girar
cada vez mais rápido, como os dervixes, para poder se juntar ao
Todo que vibra e que respira. Ouça bem o que digo e tenha
esperança: pode ser que na verdade a travessia final seja simples
assim, fácil assim. Bastaria compassar a morte no ritmo coletivo.
Quero morrer dançando, assim como escrevo.
Tudo
Que desolação não ter para onde ir; não ser acolhida pelos seus
pais nem pelos seus irmãos. Na época, Frame aprendeu que havia
uma divisão entre pessoas normais e pessoas secretas. Porque a
loucura era algo clandestino, escondido, confinado, inominável.
Quando saiu do hospital, aos trinta anos, sua vida estava
destroçada:
Me deram alta temporariamente, depois de receber mais de
duzentos eletrochoques, cada um equivalente, em termos de
medo, a uma execução — processo que deixou minha memória
em frangalhos e, em algumas áreas, debilitada e destruída
permanentemente. E depois de ser submetida à possibilidade
de me transformar, através de uma operação cirúrgica (a
lobotomia), numa pessoa mais aceitável, tratável e normal,
cheguei em casa com uma aparência sorridente e tranquila, mas
por dentro sem confiança em mim mesma, convencida de que,
por fim, oficialmente, eu já não era ninguém.
É
É um mundo desamparado e rígido, um assustador deserto
emocional. O fato é que Frame finalmente chega ao seu país e
então à sua cidade, Oamaru. O advogado diz a ela que a
propriedade é uma porcaria, que ninguém vai querer comprá-la, e
que seu irmão vai se casar e precisa de uma casa, de modo que o
melhor a se fazer é vender sua parte a ele. Mas Janet Frame, nossa
pobre, solitária, mentalmente instável, surrada, deprimida,
eletrocutada, estigmatizada, desdentada, abandonada e
maravilhosa Janet Frame sabe muito bem o que vai fazer. “Eu já
havia tomado a decisão de dar minha parte de presente ao meu
irmão”, diz, “porque eu sabia que ele tinha pouco dinheiro e
também sabia que ao longo da sua vida ele não tinha sido tão
sortudo como eu.” Mãe do céu, tão sortudo como ela, quando a
vida de Frame era um terror absoluto e a única coisa que tinha era
a escrita!
Pois bem, quer saber de uma coisa? Ela tinha razão.
Agradecimentos, fontes e uma notícia
El País, 1997
— Pelo que sei, foi a senhora que escolheu Michael Holroyd para
ser seu biógrafo oficial…
— Li a biografia que ele fez de Bernard Shaw e era tão boa, tão
cheia de sensibilidade e compreensão da infância sofrida de Shaw,
que eu pensei que, se tivessem de fazer uma biografia minha,
preferia que fosse feita por ele.
— A posteridade lhe preocupa?
— Não. É que começaram a fazer biografias sobre mim por aí.
Num determinado momento da minha vida, incluí no meu
testamento que não gostaria que fizessem biografias de mim, mas
depois percebi que não adiantava nada, porque outros escritores
também incluíram isso nos seus testamentos e ninguém respeitou
sua vontade. E o fato é que, se vão fazer livros sobre mim de
qualquer maneira, preferiria que pelo menos um seja de Holroyd.
— A senhora cita a infância sofrida de Shaw… Numa entrevista,
disse: “Fui uma menina terrivelmente machucada, terrivelmente
neurótica, com uma sensibilidade e uma capacidade de sofrimento
exageradas”. No primeiro volume das suas memórias, escreve: “Eu
estava lutando pela minha vida contra minha mãe”. Certamente
não parece uma infância muito agradável.
— Foi uma infância muito tensa, e acho que a maioria dos
escritores teve uma infância assim, embora isso não signifique
necessariamente que tenha de ser muito infeliz, mas me refiro a
esse tipo de infância que te torna muito consciente, desde cedo,
daquilo que você está vivendo, que foi o que aconteceu comigo.
— Sua autobiografia está cheia de mulheres frustradas, e a
primeira delas é sua mãe. Era um ambiente muito opressor do qual
a senhora precisava fugir.
— Sim, minha primeira sensação era: tenho que escapar daqui.
No entanto, quanto mais velha eu fico, mais entendo minha mãe,
não a condeno de modo algum. Agora entendo exatamente como
ela era e por que fazia o que fazia. Entendo seu drama, e também
entendo que para ela foi uma tragédia ter uma filha como eu. Se
tivesse tido uma filha diferente, as coisas teriam sido muito
melhores para ela.
— Quando sua mãe morreu?
— Ah… no início dos anos 1960.
— E a senhora conseguiu lhe dizer que a entendia?
— Não. Gostaria de ter estado mais próxima dela. E isso é uma
coisa terrível. Éramos pessoas tão diferentes, temperamentalmente
falando. E isso foi uma tragédia. Simplesmente não podíamos nos
comunicar. E isso não foi culpa de ninguém. Sabe, eu tive três
filhos, e sei que os filhos são uma loteria.
— Na sua autobiografia, de qualquer forma, sua mãe é um
personagem maravilhoso. Frustrada, autoritária e por vezes
depressiva, mas ao mesmo tempo tão forte, tão corajosa, matando
cobras com espingarda e levando em frente uma existência muito
difícil.
— Sim, ela era um personagem extremamente forte e muito
capaz. Odiava sua vida, e no entanto a enfrentou e a conduziu
bastante bem, e com grande coragem.
— A senhora se recorda, quando criança, de repetir
mentalmente para si mesma: “Não serei como ela, não serei como
ela”. E, no entanto, acho que de alguma forma a senhora é muito
parecida com ela.
— Sim, com certeza. Há em mim uma dureza e um rigor que
com certeza vêm da minha mãe. E fico feliz, pois de fato era uma
mulher muito resistente.
— A senhora também é.
— Tive que ser.
— Já sei que nunca chora.
— Isso não é verdade.
— Nas suas memórias, a senhora mesma diz que, por
infelicidade, chora muito raramente.
— Bem, gostaria de chorar mais. Sim, é uma pena que não
chore mais. De fato, acredito que é isso que está por trás desse
gigantesco fenômeno desencadeado pela morte da princesa Diana.
Li num jornal que o mundo inteiro estava precisando de uma boa
choradeira, e que as pessoas aproveitaram a desculpa da morte de
Diana para se fartar de chorar. Sim, acho que essa é a mais absoluta
verdade, porque senão essa confusão absurda que se criou não teria
o menor sentido.
— Oscar Wilde disse que a desgraça dos homens era nunca se
parecerem com seus pais, enquanto a desgraça das mulheres era
sempre se parecerem com suas mães…
— Wilde disse muitas coisas afiadas, mas não necessariamente
verdadeiras. Outra é: todo homem mata aquilo que ama, e você
pensa: oh, sim, que brilhante! Mas depois começa a refletir e
pensa: mas isso não é verdade.
— A senhora tem razão, mas essa frase de Wilde sobre os pais
me parece acertada. Claro que ele está se referindo às mães
tradicionais que não podiam levar uma vida independente. Agora
as coisas mudaram, mas houve várias gerações de mulheres que
cresceram tentando fugir, frequentemente sem sucesso, do
destino das suas mães amarguradas.
— Sim. Eu sempre tive pena da minha mãe. Inclusive, desde
muito pequena pude perceber claramente como ela era infeliz. A
combinação entre achá-la intolerável e, ao mesmo tempo, sentir
uma desesperada compaixão por ela era o que tornava a situação
difícil de suportar. Agora, sem dúvida, as coisas melhoraram
muitíssimo, porque hoje as mulheres trabalham, e o principal
problema de muitas daquelas mulheres era que queriam trabalhar e
não podiam. Na verdade, já não vejo por aí mulheres como minha
mãe. Era terrível o que acontecia antes. Toda a minha geração tem
mães frustradas e amarguradas. E todas nós estávamos tentando
fugir do que elas eram.
— Suas memórias deixam a clara impressão de que a senhora se
sentia muito diferente de todos quando era pequena, e essa
diferença, levada ao extremo, é a loucura. Alguma vez já teve medo
de ficar louca?
— Veja, isso é muito interessante. Não acho que temi a loucura,
porque, em primeiro lugar, botei meus medos para fora através da
literatura, isto é, eu escrevi meu medo da loucura. E, em segundo,
acredito que tenho muitos pontos de contato com pessoas que
estão loucas, mas acho que posso… É algo por si só interessante,
acho que posso… não gosto da palavra sublimar, mas, enfim, acho
que posso simplesmente passar minha loucura para… talvez para
outras pessoas. Posso rebatê-la para fora de mim.
— Numa passagem do livro, a senhora conta que por muitos
anos chorou tão desconsolada pela morte dos gatos, que tinha
obrigatoriamente de pensar que estava um tanto maluca.
— É que há algo de louco numa pessoa que chora com absoluto
e total desespero durante dez dias pela morte de um gato, quando
não se comportou assim na morte da sua própria mãe. É algo
insano, irracional. Um deslocamento da dor.
capa
Luciana Facchini
obra de capa
Sem título (2022), de Vânia Mignone.
Reprodução de Filipe Berndt
composição
Jussara Fino
tratamento de imagens
Carlos Mesquita
preparação
Silvia Massimini Felix
revisão
Jane Pessoa
Ana Alvares
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CDD 860