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Elementos para uma análise da articulação entre comunicação, cultura e

subjetividade

Prof. Dr. Márcio Souza Gonçalves


Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Faculdade de Comunicação Social da UERJ

RESUMO
O autor aborda a articulação entre comunicação, cultura e
subjetividade se situando criticamente em relação à toda a
temática das novas subjetividades. Discute-se a relação
entre subjetividade e cultura nas sociedades modernas e
pré-modernas e a necessidade de uma teoria da
subjetividade que embase as análises no campo da
comunicação. O artigo termina esboçando uma
metodologia complexa para abordagem da articulação da
relação entre cultura, comunicação e subjetividade.

***
O tema das novas subjetividades está bastante em voga no campo da
comunicação, especialmente nos textos que tratam das novas tecnologias de informação
e comunicação. Discutiremos a seguir a maneira como se pensa atualmente o estatuto
desse novo sujeito, para em seguida procedermos a uma crítica dessa reflexão,
procurando destacar caminhos de análise e compreensão que liguem sujeito e contexto
cultural de um modo que o enfoque em um dos termos não implique numa apreensão
grosseira e excessivamente generalizante do outro. Finalizaremos propondo uma
metodologia geral para o estudo da articulação entre subjetividade, meio de
comunicação e cultura.
***
Destacamos alhures a existência de uma espécie de discurso Standard acerca das
novas subjetividades engendradas sobretudo (mas não somente) pela ação da
comunicação através de computadores ligados em rede1.

1
Cf. nosso trabalho apresentado na Compós 2003, GT Comunicação e Cultura, intitulado Comunicação,
Cultura e Subjetividade.
2

Esse discurso afirma que atualmente, em nossa pós-moderna era da informação,


estamos assistindo o nascimento de uma nova subjetividade, subjetividade múltipla,
fractal, descentrada, fluída etc (o número de termos que designa essa nova subjetividade
é bastante amplo). Em oposição ao sujeito moderno, centrado, unificado, racional,
unívoco, cartesiano temos os novos sujeitos pós-modernos.
Pode-se mesmo falar em declínio da identidade correlata do sujeito forte
moderno em favor de processos constantes de identificação (pós-modernos). Ao estado
identitário se substitui o devir da identificação2.
A experiência da invenção de identidades nas salas de bate-papo é ao mesmo
tempo grande exemplo dessas novas subjetividades em ação e mecanismo de produção
dessas mesmas subjetividades: no chat temos um caso concreto dos novos sujeitos; no
chat, no mesmo sentido, aprendemos a nos liberar de nossa subjetividade supostamente
real, numa pedagogia da fluidez subjetiva.
Para citar um exemplo desses discursos das novas subjetividades: Jerôme Bindé3
vê no eu (moi) em rede propiciado pela Internet um novo tipo de eu, um “eu múltiplo,
imediato, presente em todos os lugares mas estando em lugar nenhum”4. Esse autor
manifesta uma certa apreensão para com essa nova forma de experiência do eu, pois
poderia levar a uma forma de eu sem subjetividade e representaria problemas do ponto
de vista da sociabilidade e da possibilidade do estabelecimento de vínculos sociais.
Não faltam evidentemente os que vêem nessas novas formas de subjetividade um
elemento altamente positivo que estaria nos liberando das limitações impostas pelas
territorialidades físicas e espaciais, dos grilhões da razão e da univocidade modernos.
Essas novas subjetividades e identidades seriam correlatas de nosso tempo:
“quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e
imagens, pela viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de

2
Cf. SODRÉ, Muniz Reinventando a Cultura: a comunicação e seus produtos, Petrópolis, Vozes, 1996, p. 179.
3
Sub-Diretor geral adjunto para ciências sociais e humanas e Diretor da divisão de prospectiva,de
filosofia e de ciências humanas na UNESCO.
4
Em sua comunicação no congresso Agenda do Milênio, IX Conferência Internacional, organizado pela
Universidade Cândido Mendes em maio de 2003, texto mimeografado, p. 3.
3

comunicação, mais as identidades parecem flutuar livremente numa espécie de


supermercado cultural”5
Seja vendo as novas subjetividade como positivas, seja como negativas, não se
questiona a existência de um corte que marcaria nosso tempo e as formas subjetivas que
este engendra.
É esse corte que desejamos por agora problematizar.
***
Vamos seguir alguns dos argumentos propostos por Francisco Rüdiger em seu
interessante e original texto Sociabilidade virtual, subjetivismo moderno e informática
de comunicação6.
Nosso autor inicia por mapear a temática das novas subjetividades: “a sociedade
cibernetizada permite a refração da personalidade em múltiplos eus e radicaliza as
possibilidades de emprego da ficção no comércio cotidiano. As pessoas estariam
passando a ter chances de, virtualmente, trocarem de sexo, modificarem a idade e
assumirem novos papéis e identidades”7.
Feito esse mapeamento, Rüdiger adota uma posição crítica em relação à temática
dos novos sujeitos, se propondo a “colocar em questão as teses que preparam e de certo
modo nutrem esse último extremismo histórico e ontológico, cujas origens, defendemos
em estudo anterior, podem ser buscadas em parte no pensamento nietzscheano”8.
Seguindo Simmel e baseando-se numa série de etnografias virtuais, Rüdiger
sustenta que a experiência da multiplicação dos eus e da pluralização da subjetividade
no ciberespaço longe de levarem à produção de novas formas de identidade e
subjetividade, antes aprofundam a vivência da subjetividade como transcendental e
como condição extrínseca para a vivência dos diversos papéis desempenhados na rede:

5
VILLAÇA, Nízia. Personas na passarela: moda e subjetivação. In LOGOS – Comunicação e
Universidade – Faculdade de Comunicação Social da UERJ, Ano 9, nº 17, 2º semestre de 2002, p. 44.
6
In RÜDIGER, Francisco. Elementos para a crítica da cibercultura – sujeito, objeto e interação na era
das novas tecnologias de comunicação. São Paulo: Hacker Editores, 2002, pp. 99-139. Não estamos nos
propondo a resumir a integridade dos argumentos desenvolvidos pelo autor. Analisaremos aqui apenas
alguns pontos importantes para nossos próprios desenvolvimentos. Consideramos a leitura direta do texto
de Rüdiger indispensável para os que se interessam em refletir do modo consistente sobre os efeitos das
novas tecnologias de comunicação.
7
Idem, ibidem, p. 100.
8
Idem, ibidem, p. 103.
4

“sustentaremos que apesar de todos os esforços no sentido oposto que surgem em


conexão com seu progresso, a tecnificação da cultura não suprime, antes reforça, o
sentimento reificado do eu como algo que pode ser localizado dentro dos indivíduos”9.
Ou ainda: “Na verdade, caberia pensar além e perguntar se, ainda que esse seja o caso, o
crescente parcelamento da alma promovido pelas novas tecnologias virtualmente não
conduz os indivíduos a uma maior conscientização desse eu: se a manipulação de papéis
por elas estimulada, ao invés de criar um novo conceito de pessoa, não aprofunda o
processo de abstração social do sujeito que está na base no niilismo contemporâneo; se,
enfim, o ciberespaço, ao invés de um espaço de construção do sujeito relacional, não é,
enquanto nova frente de lazer industrial, um elemento de potencialização da sociedade
de comediantes da qual falava com tanta ambigüidade Nietzsche n’A Gaia Ciência”10.
Deixando para outro momento a discussão do que Rüdiger indica sobre a
articulação do que se passa no campo da subjetividade com o capitalismo, vamos nos
dedicar à interessante idéia sobre o que se passaria hoje com o sujeito.
Traduzindo em nossos termos, o autor sustenta que a experiência da
multiplicidade subjetiva propiciada pelos chats em vez de dissolver o sujeito uno e forte
termina por fortalecê-lo: criando identidades fictícias na Internet me dou conta de que
não me confundo com as identidades ou papéis que desempenho, de que sou algo
separado e que experimenta essas mudanças, de que sou na realidade o substrato que
permite que essas mudanças sejam experienciadas. O sujeito se vê como permanência
profunda experienciando as alterações superficiais de sua identidade.
Não viveríamos portanto, nessa perspectiva, uma era das subjetividades novas,
plurais, múltiplas e assim por diante, mas um prolongamento potencializador das
subjetividade forte tal como agenciada na Modernidade. Ver o aspecto de superfície e
proclamar apenas o nascimento das novas subjetividades é não penetrar no cerne dos
processos que atualmente se desenrolam.
Qual seria a relação dessa subjetividade moderna, exacerbada na atualidade, com
as formas de subjetividade que a precederam? O que dizer do pré-moderno?

9
Idem, ibidem, p.107.
10
RÜDIGER, Francisco. Op. Cit., p. 114.
5

Nas sociedades pré-modernas, a subjetividade está, por


assim dizer, fundida com os sentimentos, experiências e
impressões externas da coletividade. A existência é
geralmente vivida como espera ou motivo de
contemplação. O fracionamento da alma e o sentimento de
vazio interior são praticamente nulos, porque ela é
preenchida com os conteúdos da cultura como uma
unidade. A consciência de si não se separa dos papéis que
lhe confere a coletividade, e as expressões individuais se
restringem à maximização das possibilidades contidas
nesses papéis.
A desintegração das estruturas holísticas significa, ao
contrário, a possibilidade de o eu aparecer à consciência
como ponto fixo e abstrato em relação ao qual se sucedem
os acontecimentos; constitui uma condição histórica para o
desenvolvimento da consciência transcendental porque (...)
[segue-se aqui uma citação de Simmel]11

Temos portanto no pré-moderno: não diferenciação da subjetividade em relação


aos sentimentos experiências e impressões da coletividade; existência como espera ou
contemplação; ausência de fracionamento da alma e de sentimento de vazio interior
devido ao preenchimento da alma pelos conteúdos da cultura como unidade;
identificação da consciência de si aos papéis coletivamente colocados e restrição da
ação dessa consciência ao que é ditado pelos papéis.
Em síntese e traçando um panorama geral, saímos dessa situação de
subjetividade pré-moderna imediatamente acima descrita para a existência moderna da
consciência transcendental sendo essa consciência moderna aguçada, na perspectiva de
Rüdiger, pelas novas tecnologias informáticas de comunicação.
Pré-moderno, moderno e... aguçamento do moderno. Esse idéia de aguçamento
é, do ponto de vista dos discursos sobre a subjetividade, um dos pontos centrais do texto
de Rüdiger.
Ora, voltemos nossa atenção para a apreensão da subjetividade pré-moderna.
Os traços destacados acima nos parecem descrever bastante precariamente a
experiência subjetiva dos “pré-modernos”. A fusão da subjetividade com os
sentimentos, experiências e impressões coletivos levaria a um domínio radical do

11
Idem, ibidem, p. 111.
6

coletivo sobre o individual, o que uma análise, por exemplo, das histórias de vida dos
personagens da pequena aldeia de Montaillou descrita por Ladurie12 parece desmentir.
Dessa descrição retiramos que a margem de manobra dos seres humanos concretos na
passagem do século XIII para o seguinte era bem maior do que podemos supor.
A existência como espera ou contemplação descreve mal a vida cotidiana pré-
moderna, marcada antes por uma ação constante (seja ela de trabalho, de socialização,
de erotismo, de vadiagem etc).
Quanto à ausência de fracionamento da alma e de sentimento de vazio interior
devido ao preenchimento da alma pelos conteúdos da cultura como unidade, é em
relação à suposta unidade da cultura que nos parece estar o cerne do problema. Os
estudos de história contemporâneos mostram que por mais homogênea que seja uma
cultura, sempre há diversidade. E ainda que unidade houvesse, a apreensão dessa
unidade pelos humanos concretos sempre é parcial, tendenciosa13, de modo que a
unidade termina, psicologicamente, por ser apreendida de modo múltiplo e diferenciado.
Retornaremos adiante ao problema do fracionamento da alma.
Finalmente temos a identificação da consciência de si aos papéis coletivamente
colocados e restrição da ação dessa consciência ao que é ditado pelos papéis. Mais uma
vez, uma análise da vida concreta pré-moderna nos aponta que mesmo lá devemos
distinguir os papéis e a consciência de si, indicando igualmente que o campo de ação
dos humanos é maior do que simplesmente a maximização dos papéis coletivamente
definidos. As ações individuais em muitos momentos envolvem jogar astuciosamente
com os papéis socialmente definidos de modo a atingir objetivos não muito ligados aos
interesses comunitários. Veja-se o caso, por exemplo, do cura Pierre Clergue em
Montaillou14.
Em suma, apontamos para a necessidade de uma complexificação da leitura do
que seja a subjetividade pré-moderna, e conseqüentemente a subjetividade tout court.
Mesmo desenvolvendo uma reflexão original e crítica sobre o que seja a subjetividade
afetada pelos meios informáticos de comunicação, um autor como Rüdiger parece
12
LE ROY LADURIE, Emmanuel. Montaillou, povoado occitânico, 1294-1324. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
13
Cf. LE ROY LADURIE, Emmanuel. Op. Cit,.
14
Cf. LE ROY LADURIE, Emmanuel. Op. Cit., Capítulo 3.
7

tombar numa excessiva simplificação quando se refere ao pré-moderno. Não por sua
culpa, evidentemente. Os motivos dessa confusão devem ser buscados alhures.
***
O autor exemplar para tratar do problema das sociedades holísticas e
individualistas é Louis Dumont. Suas teses são bastante conhecidas. Em síntese, as
sociedades ocidentais vêm lentamente passando do pólo holista para o pólo
individualista15, sendo a Modernidade o momento de exacerbação e aceleração desse
lento processo. Tal apreensão parece dar conta perfeitamente bem do movimento geral
de transformação das sociedades em termos de seu jogo todo/parte.
Esse paradigma de apreensão do social que vemos em Dumont, paradigma que
opera a partir do jogo coletividade/indivíduo, nos parece ser o paradigma implícito que
embasa o modo de reflexão acerca da subjetividade pré-moderna que destacamos no
texto de Rüdiger.
De uma sociedade de tipo holista infere-se um tipo de subjetividade
“coletivista”, que poderíamos curiosamente qualificar de inexistente enquanto
subjetividade precisamente por se reduzir, de diversos modos, como vimos acima, ao
que é fornecido pelo coletivo. De uma sociedade individualista destaca-se uma
subjetividade de tipo transcendental, que não se confunde com os papéis que
desempenha, novamente como vimos acima.
Grosseiramente: sendo o pré-moderno holista, temos a subjetividade pré-
moderna como indiferenciada dos sentimentos experiências e impressões da
coletividade; temos existência como espera ou contemplação; temos a ausência de
fracionamento da alma e de sentimento de vazio interior devido ao preenchimento da
alma por uma cultura holista unívoca; e, finalmente, a identificação da consciência de si
aos papéis coletivamente colocados e a restrição do campo de ação dessa consciência ao
que é ditado por esses papéis.
Estamos diante de uma situação curiosa: uma descrição perfeitamente legitima
do espaço social e de sua ideologia em termos de holismo e individualismo, parece não
15
“Designa-se como holista uma ideologia que valoriza a totalidade social e negligencia ou subordina o
indivíduo humano (...)”. “Designa-se como individualista, em oposição ao holismo, uma ideologia que
valoriza o indivíduo (...) e negligencia ou subordina a totalidade social (...)”. In DUMONT, L. Essais sur
l’individualisme – Une perspective anthropologique sur l’idéologie moderne, Paris, Seuil, 1985, p. 304.
8

funcionar se a transportamos diretamente para uma reflexão acerca da forma da


subjetividade. É possível termos sociedades holistas sem que isso implique em uma
subjetividade fortemente atrelada ao coletivo no sentido acima visto. Talvez a reflexão
sobre a subjetividade seja obrigada a levar em consideração sempre o caso singular,
concreto, no que tem de irredutível ao que lhe oferece o social, sob pena de cometer
reducionismos que podem impedir um avanço da compreensão.
***
Dada essa necessidade de aprofundamento da questão, desejamos destacar três
elementos importantes. O primeiro se refere ao que seja a subjetividade, o segundo à
distinção entre o que são as visões de subjetividade que uma determinada época produz
e os reais processos e práticas de subjetivação que nessa época têm lugar, o terceiro à
metodologia para o estudo do jogo entre comunicação, cultura (em geral, não apenas a
nossa) e subjetividade.
Comecemos com a questão do estatuto da subjetividade.
A compreensão das diferentes modalizações históricas da subjetividade humana
deve ter como pressuposto uma teoria geral da subjetividade. Essa teoria deve funcionar
como a base que descreve os processos comuns a todas as formas de subjetivação
independentemente das especificidades históricas em que essa subjetivação se dê. Deve
se situar, portanto no cruzamento da psicologia (em geral, incluindo aí a psicanálise) e
de uma antropologia filosófica. Sendo o homem sempre humano, o que se encontra em
questão é a teorização dos mecanismos propriamente humanos básicos de construção de
subjetividades.
A questão em jogo nessa teoria básica da subjetivação seria: o que é a
subjetividade e como opera com os conteúdos oferecidos pela cultura? Uma vez
respondida essa pergunta, com uma resposta necessariamente genérica, posto que deve
servir para diferentes culturas e momentos históricos, o investigador pode partir para
uma análise dos diferentes espaços culturais onde operam processos de subjetivação e
buscar suas especificidades. Sendo humanos, temos, nós ocidentais, algo em comum
com os bosquímanos, os chineses, os núbios etc.: essa teoria deve buscar esse traço
comum.
9

Nossas pesquisas nos levam a produzir uma resposta provisória: os processos de


subjetivação operam sempre recolhendo elementos heterogêneos oferecidos pela cultura
e constituindo, a partir do heterogêneo uma síntese, sempre precária e nunca definitiva.
Síntese portanto do diverso, síntese do heterogêneo. Com isso escapamos à
possibilidade de redução do subjetivo ao social: há algo de criativo no processo de
síntese. A subjetividade seria portanto uma síntese singular do que é ofertado pelo social
e mesmo pelo meio ambiente.
Essa teoria geral, longe de dever ainda ser feita, já se encontra dispersamente
articulada em diversos autores, dos quais aqui mencionamos Guattari: “ao invés de
sujeito, talvez fosse melhor falar em componentes de subjetivação trabalhando, cada
um, mais ou menos por conta própria. (...) Assim, a interioridade se instaura no
cruzamento de múltiplos componentes relativamente autônomos uns em relação aos
outros e, se for o caso, francamente discordantes”16.
Nem uma nem múltipla, mas operando uma síntese do múltiplo que de nenhum
modo implica numa reificação ou estagnação dos devires, a subjetividade sempre
operaria produzindo uma curiosa forma de consistência do contraditório oferecido pela
cultura. Amin Maalouf assim se refere ao tema da identidade, numa vertente bastante
próxima da que indicamos aqui: “Eu insisti constantemente até aqui sobre o fato de que
a identidade é feita de múltiplas pertenças; mas é indispensável insistir do mesmo modo
sobre o fato de que ela é uma, e que nós a vivemos como um todo”17.
Essa teoria geral da subjetividade seria portanto uma teoria geral da
subjetividade humana independente de tal ou qual contexto histórico. A partir dela se
abre a perspectiva de análises específicas de diferentes contextos culturais para tentar
dar conta de especificidades históricas contingentes dos processos de subjetivação
(Foucault é um mestre nesse tipo de trabalho) sem que essas análises impliquem no
esquecimento do fundo comum próprio da espécie humana.
A partir dessa teoria podemos supor que a subjetividade seria sempre
transcendental em relação aos dados culturais, operando uma síntese do contraditório

16
GUATTARI,Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990, p. 17-8. O grifo da última frase é
nosso.
17
MAALOUF, A. Les identités meurtirères, Paris, Grasset, 1998, p. 36.
10

oferecido pela cultura e portanto não se confundindo com esse contraditório (papéis,
funções sociais, pólos de identificação etc).
O segundo ponto que desejamos destacar se refere à distinção entre o que sejam
as visões de subjetividade oferecidas pela cultura e as reais práticas de subjetivação que
nessa cultura operam. Essa distinção talvez ajude a separar de um lado o tipo de
organização social holista ou individualista e de outro o modo como a subjetivação se
dá.
Distinção simples: uma coisa é a visão de sujeito que nos dá uma filosofia ou um
movimento cultural. Assim, por exemplo, temos a visão de subjetividade proposta por
Descartes com seu cogito ou a do sujeito telúrico romântico. Essas visões da
subjetividade freqüentemente refletem mais os anseios epistemológicos ou existenciais
dos seus proponentes do que se preocupam com uma efetiva abordagem do modo de
produção de subjetividade de seu contexto cultural. Seguindo com Descartes, podemos
notar que sua visão de cogito serve especificamente para fundamentar a possibilidade de
um conhecimento verdadeiro e não como teoria para a compreensão do funcionamento
subjetivo humano. Após suas dubitações radicais, Descartes propõe o cogito como
fundamento para seu edifício metafísico, “resolvendo” assim o árduo problema
epistemológico que se colocara: o sujeito é antes de tudo base para a verdade, e nesse
contexto deve ser compreendido. “E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo,
era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não
seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro
princípio da Filosofia que procurava”18. As visões de sujeito e subjetividade propostas
ao longo da história da filosofia e da cultura ocidentais, em suma, parecem ter servido
mais para resolver problemas epistemológicos ou outros do que para tentar funcionar
como descrição efetiva dos processos de subjetivação. O cogito cartesiano é
singularmente ineficaz como descrição do que sejam os processos de subjetivação, de
construção de um eu ou identidade no século XVII.
Uma outra coisa distinta das noções de sujeito são as práticas de subjetivação
que todos os humanos operam em sua existência cotidiana, e que consistem em

18
DESCARTES, René. Discurso do Método. In Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 46.
11

construir para si uma identidade e um eu a partir do material disponível na cultura (em


sentido material e simbólico)19.
São essas práticas que devem ser apreendidas para que se construa uma
compreensão de como vivem os sujeitos (com toda a ambigüidade que essa proposição
comporta) num determinado contexto cultural.
Conceitualmente distintas, a noção de sujeito e a de práticas de subjetivação
podem se cruzar em momentos históricos específicos. Assim, por exemplo, podemos
supor que a visão Iluminista da subjetividade, ou melhor, o conceito Iluminista de
sujeito, certamente influenciou as práticas de subjetivação dos revolucionários. Mas
seria abusivo dizer que essas práticas se reduzem ao que se pode conceber como sujeito
Iluminista.
Essa distinção pode se mostrar um caminho fecundo para compreendermos
como mesmo em contextos históricos não individualistas, contextos de ideologia
holista, podemos ter práticas de subjetivação individualizantes. Falar numa disjunção
existente entre noções de sujeito e práticas de subjetivação aponta para um espaço de
singularidade presente em todas as práticas de subjetivação que faz com que essas
práticas não sejam redutíveis ao que se oferece pelo socius, apontando para um espaço
de liberdade (maior ou menor) de que todos fazemos uso em nossa relação com a
cultura. Ao holismo das abelhas contrapõe-se assim a singularização humana.
Quanto a isso, devemos ainda mencionar o fato de que sendo a subjetividade
uma síntese precária de diversos elementos disponibilizados pelo social, uma
combinação sempre singular do que vem do social20, seria impossível dar um salto de
uma determinada forma de estruturação social para determinada forma de subjetividade.
Deve-se preservar a distância, constitutiva do subjetivo, que o separa do social. Assim,
podemos ter um meio holista e nem por isso a subjetividade pode ser dita coletiva.
O terceiro ponto que destacamos se refere à metodologia para se compreender as
relações entre subjetividade, comunicação e cultura.

19
Cf. nosso trabalho apresentado na Compós 2003, GT Comunicação e Cultura, intitulado Comunicação,
Cultura e Subjetividade.
20
Cf. o que dissemos sobre a Teoria Geral da Subjetividade.
12

Nossa tentativa tem sido a de desenvolver uma metodologia adequada à


apreensão do modo como se agenciam num determinado momento histórico três fatores:
o contexto cultural amplo (material e simbólico), os meios de comunicação
especificamente presentes nesse contexto cultural e as subjetividades que aí se
produzem. Dizendo de outro modo, buscamos uma metodologia apta a determinar de
que modo o ambiente cultural e os meios de comunicação entram em jogo nas práticas
de subjetivação.
Vimos o risco de se analisar a subjetividade a partir de uma apreensão exclusiva
do contexto cultural (no caso do pré-moderno a derivação de uma subjetividade coletiva
a partir do holismo ambiente, o que tratamos acima) e para conjurar esse risco nos
parece ser necessária uma metodologia que leve em conta o aspecto social mas que dê
conta também, de algum modo, dos componentes micro ou individuais postos em jogo.
A partir disso propomos uma metodologia que deve operar em níveis distintos e cuja
eficácia só futuras análises poderão estabelecer. É necessário o tratamento de diversos
níveis evitando o rebatimento direto de um sobre outro.
Em primeiro lugar, é preciso que se considere global e genericamente o tipo ou
estilo de sociedade que está sendo analisado, e para isso as categorias do tipo das
propostas por Dumont podem ser bastante eficazes. Trata-se de aqui de pensar o nível
mais macro do social, tentando dar conta das grandes linhas que estruturam um espaço
cultural.
Além dessa apreensão geral, é preciso que se dê conta do contexto cultural
amplo em que os processos de subjetivação operam. Para isso, o pesquisador deverá
estar atento aos elementos centrais na configuração de um espaço social. Destacamos os
seguintes: formas de estruturação do espaço e do tempo; formações e práticas religiosas;
estruturas e formas de exercício de poder; aspectos econômicos; arte, literatura, ciência
e filosofia; formas de relacionamento e vinculação social. A análise de cada um destes
aspectos confere concretude à compreensão da sociedade sob análise.
Nessa metodologia que visa compreender as articulações entre subjetividade,
comunicação e cultura, o estudo dos meios de comunicação disponíveis ocupa
evidentemente um lugar central. Tal análise poderá se fazer a partir de uma dupla
13

dimensão: a da materialidade dos meios21 e a dos efeitos imaginários desses mesmos


meios22. Em torno do problema da materialidade, destacamos especialmente que se deve
levar em conta a qualidade dos meios presentes e seus efeitos nos processos de
comunicação: no caso do telégrafo, por exemplo, temos a transmissão ponto a ponto, o
aumento na velocidade da comunicação, a necessidade de um domínio técnico do meio,
a possibilitação de comércio, circulação de notícias etc. São exemplos de efeitos
imaginários, por exemplo, a apreensão da metáfora do telégrafo pelo Espiritismo como
descrição apropriada da comunicação entre os vivos e os mortos23.
Finalmente, sendo as práticas de subjetivação práticas cujo locus fundamental é
pessoal ou individual, é necessário que precisamente essa dimensão pessoal seja
incorporada à análise. Nesse nível, o trabalho com analises biográficas (passadas ou
presentes24) se revela bastante eficaz. Essa análise micro é imprescindível para uma
apreensão coerente, ao nível da subjetividade, dos diversos elementos do contexto
sócio-cultural que destacamos acima: é somente nesse nível micro que poderemos
efetivamente visualizar como se articulam a dimensão social ampla, os diversos
elementos do contexto social e cultural (poder, economia, arte, relacionamentos sociais
etc) e os meios de comunicação no desenrolar dos processos que chamamos de práticas
de subjetivação. Além disso, essa análise dos casos particulares pode funcionar como
antídoto contra uma eventual redução do subjetivo ao social, na medida em que deve
permitir apreender a singularidade dos modos como todos elementos podem ser num
caso ou outro articulados.
Essas breves indicações metodológicas podem auxiliar numa reflexão e pesquisa
mais aprofundadas25 sobre as relações entre subjetividade, comunicação e cultura.

21
Por exemplo, PFEIFFER, Karl Ludwig & GUMBRECHT, Hans Ulrich (Eds.). Materialities of
communication. Califórnia: Stanford University Press, 1994.
22
Cf. por exemplo SCONCE, Jeffrey. Haunted Media – eletronic presence from telegraphy to television.
Durham: Duke University Press, 2000. Agradecemos ao nosso colega Erick Felinto a indicação desta
obra.
23
Idem, toda a parte acerca do Telégrafo Espiritual.
24
Cf. por exemplo GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes – o cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
25
Pesquisa que estamos desenvolvendo no PPGC da UERJ e que conta com a participação de alunos de
Iniciação Científica e Mestrandos.
14

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BINDÉ, Jerôme. Le moi en reseau: um moi sans subjectivité? Paper apresentado no


Congresso Agenda do Milênio, IX Conferência Internacional, organizado pela
Universidade Cândido Mendes em maio de 2003, texto mimeografado
DESCARTES, René. Discurso do Método. In Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural,
1987
DUMONT, Louis. Essais sur l’individualisme – Une perspective anthropologique sur
l’idéologie moderne. Paris: Seuil, 1985
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes – o cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987
GONÇALVES, Márcio Souza. Comunicação, Cultura e Subjetividade. Trabalho
apresentado na Compós 2003, GT Comunicação e Cultura
GUATTARI,Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990
LE ROY LADURIE, Emmanuel. Montaillou, povoado occitânico, 1294-1324. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997
MAALOUF, Amin. Les identités meurtirères. Paris: Grasset, 1998
PFEIFFER, Karl Ludwig & GUMBRECHT, Hans Ulrich (Eds.). Materialities of
communication. Califórnia: Stanford University Press, 1994
RÜDIGER, Francisco. Elementos para a crítica da cibercultura – sujeito, objeto e
interação na era das novas tecnologias de comunicação. São Paulo: Hacker
Editores, 2002
SCONCE, Jeffrey. Haunted Media – eletronic presence from telegraphy to television.
Durham: Duke University Press, 2000
SODRÉ, Muniz. Reinventando a Cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis:
Vozes, 1996
VILLAÇA, Nízia. Personas na passarela: moda e subjetivação. In LOGOS –
Comunicação e Universidade – Faculdade de Comunicação Social da UERJ,
Ano 9, nº 17, 2º semestre de 2002

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