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subjetividade
RESUMO
O autor aborda a articulação entre comunicação, cultura e
subjetividade se situando criticamente em relação à toda a
temática das novas subjetividades. Discute-se a relação
entre subjetividade e cultura nas sociedades modernas e
pré-modernas e a necessidade de uma teoria da
subjetividade que embase as análises no campo da
comunicação. O artigo termina esboçando uma
metodologia complexa para abordagem da articulação da
relação entre cultura, comunicação e subjetividade.
***
O tema das novas subjetividades está bastante em voga no campo da
comunicação, especialmente nos textos que tratam das novas tecnologias de informação
e comunicação. Discutiremos a seguir a maneira como se pensa atualmente o estatuto
desse novo sujeito, para em seguida procedermos a uma crítica dessa reflexão,
procurando destacar caminhos de análise e compreensão que liguem sujeito e contexto
cultural de um modo que o enfoque em um dos termos não implique numa apreensão
grosseira e excessivamente generalizante do outro. Finalizaremos propondo uma
metodologia geral para o estudo da articulação entre subjetividade, meio de
comunicação e cultura.
***
Destacamos alhures a existência de uma espécie de discurso Standard acerca das
novas subjetividades engendradas sobretudo (mas não somente) pela ação da
comunicação através de computadores ligados em rede1.
1
Cf. nosso trabalho apresentado na Compós 2003, GT Comunicação e Cultura, intitulado Comunicação,
Cultura e Subjetividade.
2
2
Cf. SODRÉ, Muniz Reinventando a Cultura: a comunicação e seus produtos, Petrópolis, Vozes, 1996, p. 179.
3
Sub-Diretor geral adjunto para ciências sociais e humanas e Diretor da divisão de prospectiva,de
filosofia e de ciências humanas na UNESCO.
4
Em sua comunicação no congresso Agenda do Milênio, IX Conferência Internacional, organizado pela
Universidade Cândido Mendes em maio de 2003, texto mimeografado, p. 3.
3
5
VILLAÇA, Nízia. Personas na passarela: moda e subjetivação. In LOGOS – Comunicação e
Universidade – Faculdade de Comunicação Social da UERJ, Ano 9, nº 17, 2º semestre de 2002, p. 44.
6
In RÜDIGER, Francisco. Elementos para a crítica da cibercultura – sujeito, objeto e interação na era
das novas tecnologias de comunicação. São Paulo: Hacker Editores, 2002, pp. 99-139. Não estamos nos
propondo a resumir a integridade dos argumentos desenvolvidos pelo autor. Analisaremos aqui apenas
alguns pontos importantes para nossos próprios desenvolvimentos. Consideramos a leitura direta do texto
de Rüdiger indispensável para os que se interessam em refletir do modo consistente sobre os efeitos das
novas tecnologias de comunicação.
7
Idem, ibidem, p. 100.
8
Idem, ibidem, p. 103.
4
9
Idem, ibidem, p.107.
10
RÜDIGER, Francisco. Op. Cit., p. 114.
5
11
Idem, ibidem, p. 111.
6
coletivo sobre o individual, o que uma análise, por exemplo, das histórias de vida dos
personagens da pequena aldeia de Montaillou descrita por Ladurie12 parece desmentir.
Dessa descrição retiramos que a margem de manobra dos seres humanos concretos na
passagem do século XIII para o seguinte era bem maior do que podemos supor.
A existência como espera ou contemplação descreve mal a vida cotidiana pré-
moderna, marcada antes por uma ação constante (seja ela de trabalho, de socialização,
de erotismo, de vadiagem etc).
Quanto à ausência de fracionamento da alma e de sentimento de vazio interior
devido ao preenchimento da alma pelos conteúdos da cultura como unidade, é em
relação à suposta unidade da cultura que nos parece estar o cerne do problema. Os
estudos de história contemporâneos mostram que por mais homogênea que seja uma
cultura, sempre há diversidade. E ainda que unidade houvesse, a apreensão dessa
unidade pelos humanos concretos sempre é parcial, tendenciosa13, de modo que a
unidade termina, psicologicamente, por ser apreendida de modo múltiplo e diferenciado.
Retornaremos adiante ao problema do fracionamento da alma.
Finalmente temos a identificação da consciência de si aos papéis coletivamente
colocados e restrição da ação dessa consciência ao que é ditado pelos papéis. Mais uma
vez, uma análise da vida concreta pré-moderna nos aponta que mesmo lá devemos
distinguir os papéis e a consciência de si, indicando igualmente que o campo de ação
dos humanos é maior do que simplesmente a maximização dos papéis coletivamente
definidos. As ações individuais em muitos momentos envolvem jogar astuciosamente
com os papéis socialmente definidos de modo a atingir objetivos não muito ligados aos
interesses comunitários. Veja-se o caso, por exemplo, do cura Pierre Clergue em
Montaillou14.
Em suma, apontamos para a necessidade de uma complexificação da leitura do
que seja a subjetividade pré-moderna, e conseqüentemente a subjetividade tout court.
Mesmo desenvolvendo uma reflexão original e crítica sobre o que seja a subjetividade
afetada pelos meios informáticos de comunicação, um autor como Rüdiger parece
12
LE ROY LADURIE, Emmanuel. Montaillou, povoado occitânico, 1294-1324. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
13
Cf. LE ROY LADURIE, Emmanuel. Op. Cit,.
14
Cf. LE ROY LADURIE, Emmanuel. Op. Cit., Capítulo 3.
7
tombar numa excessiva simplificação quando se refere ao pré-moderno. Não por sua
culpa, evidentemente. Os motivos dessa confusão devem ser buscados alhures.
***
O autor exemplar para tratar do problema das sociedades holísticas e
individualistas é Louis Dumont. Suas teses são bastante conhecidas. Em síntese, as
sociedades ocidentais vêm lentamente passando do pólo holista para o pólo
individualista15, sendo a Modernidade o momento de exacerbação e aceleração desse
lento processo. Tal apreensão parece dar conta perfeitamente bem do movimento geral
de transformação das sociedades em termos de seu jogo todo/parte.
Esse paradigma de apreensão do social que vemos em Dumont, paradigma que
opera a partir do jogo coletividade/indivíduo, nos parece ser o paradigma implícito que
embasa o modo de reflexão acerca da subjetividade pré-moderna que destacamos no
texto de Rüdiger.
De uma sociedade de tipo holista infere-se um tipo de subjetividade
“coletivista”, que poderíamos curiosamente qualificar de inexistente enquanto
subjetividade precisamente por se reduzir, de diversos modos, como vimos acima, ao
que é fornecido pelo coletivo. De uma sociedade individualista destaca-se uma
subjetividade de tipo transcendental, que não se confunde com os papéis que
desempenha, novamente como vimos acima.
Grosseiramente: sendo o pré-moderno holista, temos a subjetividade pré-
moderna como indiferenciada dos sentimentos experiências e impressões da
coletividade; temos existência como espera ou contemplação; temos a ausência de
fracionamento da alma e de sentimento de vazio interior devido ao preenchimento da
alma por uma cultura holista unívoca; e, finalmente, a identificação da consciência de si
aos papéis coletivamente colocados e a restrição do campo de ação dessa consciência ao
que é ditado por esses papéis.
Estamos diante de uma situação curiosa: uma descrição perfeitamente legitima
do espaço social e de sua ideologia em termos de holismo e individualismo, parece não
15
“Designa-se como holista uma ideologia que valoriza a totalidade social e negligencia ou subordina o
indivíduo humano (...)”. “Designa-se como individualista, em oposição ao holismo, uma ideologia que
valoriza o indivíduo (...) e negligencia ou subordina a totalidade social (...)”. In DUMONT, L. Essais sur
l’individualisme – Une perspective anthropologique sur l’idéologie moderne, Paris, Seuil, 1985, p. 304.
8
16
GUATTARI,Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990, p. 17-8. O grifo da última frase é
nosso.
17
MAALOUF, A. Les identités meurtirères, Paris, Grasset, 1998, p. 36.
10
oferecido pela cultura e portanto não se confundindo com esse contraditório (papéis,
funções sociais, pólos de identificação etc).
O segundo ponto que desejamos destacar se refere à distinção entre o que sejam
as visões de subjetividade oferecidas pela cultura e as reais práticas de subjetivação que
nessa cultura operam. Essa distinção talvez ajude a separar de um lado o tipo de
organização social holista ou individualista e de outro o modo como a subjetivação se
dá.
Distinção simples: uma coisa é a visão de sujeito que nos dá uma filosofia ou um
movimento cultural. Assim, por exemplo, temos a visão de subjetividade proposta por
Descartes com seu cogito ou a do sujeito telúrico romântico. Essas visões da
subjetividade freqüentemente refletem mais os anseios epistemológicos ou existenciais
dos seus proponentes do que se preocupam com uma efetiva abordagem do modo de
produção de subjetividade de seu contexto cultural. Seguindo com Descartes, podemos
notar que sua visão de cogito serve especificamente para fundamentar a possibilidade de
um conhecimento verdadeiro e não como teoria para a compreensão do funcionamento
subjetivo humano. Após suas dubitações radicais, Descartes propõe o cogito como
fundamento para seu edifício metafísico, “resolvendo” assim o árduo problema
epistemológico que se colocara: o sujeito é antes de tudo base para a verdade, e nesse
contexto deve ser compreendido. “E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo,
era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não
seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro
princípio da Filosofia que procurava”18. As visões de sujeito e subjetividade propostas
ao longo da história da filosofia e da cultura ocidentais, em suma, parecem ter servido
mais para resolver problemas epistemológicos ou outros do que para tentar funcionar
como descrição efetiva dos processos de subjetivação. O cogito cartesiano é
singularmente ineficaz como descrição do que sejam os processos de subjetivação, de
construção de um eu ou identidade no século XVII.
Uma outra coisa distinta das noções de sujeito são as práticas de subjetivação
que todos os humanos operam em sua existência cotidiana, e que consistem em
18
DESCARTES, René. Discurso do Método. In Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 46.
11
19
Cf. nosso trabalho apresentado na Compós 2003, GT Comunicação e Cultura, intitulado Comunicação,
Cultura e Subjetividade.
20
Cf. o que dissemos sobre a Teoria Geral da Subjetividade.
12
21
Por exemplo, PFEIFFER, Karl Ludwig & GUMBRECHT, Hans Ulrich (Eds.). Materialities of
communication. Califórnia: Stanford University Press, 1994.
22
Cf. por exemplo SCONCE, Jeffrey. Haunted Media – eletronic presence from telegraphy to television.
Durham: Duke University Press, 2000. Agradecemos ao nosso colega Erick Felinto a indicação desta
obra.
23
Idem, toda a parte acerca do Telégrafo Espiritual.
24
Cf. por exemplo GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes – o cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
25
Pesquisa que estamos desenvolvendo no PPGC da UERJ e que conta com a participação de alunos de
Iniciação Científica e Mestrandos.
14
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS