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OS AUTISTAS ESCUTAM MUITAS COISAS,

J-C ~ ~ ~ A L E K(A ~L N B )(iean-claude.nzaleuaI@tihh,fr)

Interrogado repentinamente sobre o autisnio em uma discussão que sucedeu a Conferência


de Genehra que abordou o sintoma, hcan parece buscar sua especificidade ein uma disfunçáo
da pulsão invocativa. Ele considera que o próprio termo "autismo", em sua conotação tle
ensimesmaniento, implica que eles "escutam a si mesmos". E acrescenta: "Eles ouvem muita5
coisas. "Isto leva, normalmente, a alucinação, e a alucinação sempre tem um caráter mais ou
menos uocal. Nem todos os autistas ouvem vozes, mas eles articulam iiiuilas coisa^'. Estas indi-
cações são surpreendentes, pois nenhuma das onze cnanps apresentadas por kanner ein seu
artigo fundaclor apresenrava alucinaçoes2.Em uma pesquisa posterior, efetuada com Eisenberg,
sohre 42 crianças autistas entre oito e vinte e quatro anos, os autores anotam que eni nerihum
momento essas crianças deram sinal evidente de delírio ou de alucinaçãd. Os trabalhos de
A~pergerconfirmani essa constataçáo. Eles se apóiam em uma amostra mais importante: ele
acompanhou mais tle duzentas crianças por um período que ult~-apassaos tlez anos. Ele iiuiica
evocou a presença cle alucinações. Ele introduz ;I noção de psicopatia para designar seu tipo
clínico precisamente porque busca diferenciá-lo da esquizofrenia. Ele afimia não ter observado
uma vez sequer a evolução dos casos para a psicose: "em todos os outros casos, aci-escenta,eni
que alguns forani acompanhados por 20 anos, nunca aconteceu uma altera@o tle psicopatia em
verdadeira psicose.'" O termo alucinação em relaçào ao autismo não aparece sob sua pluiiia. O
mesmo se dará para muitos especialistas em autismo que se seguem. Em 1964: em uma obra
que faz referència ao campo anglo-smão, Rimland afirma que a ausência de alucina~õesconsti-
tui um dos elementos que permitem diferenciar o autisnio da esquizofrenia. A esse respeito, ele
comenta: 'X Falta de alucinações relatatlas estimulou autores iniaginativos a propor uma explica-
ção engenhosa, nias desprowida de fundamento, a alucinação negativa, na qual as criançiis
-

pretendem que nada existe."' Essa alusão critica visa essencialmente M. Malher Buscando cletei--
minar o autismo como um narcisisnio primário absoluto, induzindo "um:i ausência de consciên-
cia do agente materno", ela postula a existência de uma "dis[~osiçãoalucinatória negativa", ma-
nifesta por uma "orelha surda a mãe e ao universo inteiro.'Wão há dúvida de que isso hoje não
é nada. Seria mais exato descrever o comportamento das crianças autistas dizendo que a niaior
parte cleles não quer deixar que notem seu interesse pelo meio. Sellin escreve eni seu computa-
do~-:"vê tudo ouve tudo'", o que vários outros testemunhos confirmam.

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As alucinaçóes visuais
Acontece, no entanto, que alguns autistas agem como se tivesseni feiiônienos alucinatórios.
Sellin relata:

ur11 dia, eu estava por mo petrificada de te17-orporque


eu tomava gotas d'rjgua que caiawi por seres vivos
olha~zdode mais perto apenas foi que eu reconheci
as gotas d'agtra
hoje ainda me acontece às vezes de ter essa alucinaçóes senso~iais
mas isso não me apavora tanto como anie?

Apesar do termo empregado por Sellin, trata-se aí, não de uma alucinaçáo, mas de um
problema da percepçáo que é classicamente organizada, desde Esquirol. no registro das
ilusões, quer dize. de um erro dos sentidos que não coloca eiii questáo a presença real do
suporte da percepção. Por outro lado, alguns fenômenos alucinatórios niais autênticos parecem
ter sido relatados. Um dos clínicos mais atentos a estes foi sem dúvida Bettelheim. Ele age
assim em relação a duas crianças que apresentavam um fechamento autistico autêntico: Laurie
e Márcia. Ao final cle sua estadia na Escola orhogênica cle Chicado, Laurie não ultrapassou a
véspera da fala: tambéni suas alucinações são inferidas pelos clínicos. "Laurie começou ;I
alucinar. afirnia Bettellieim. Decluzimos isso de seu olhar perdido, voltado preferencialniente
para o forro, tão preocupada que estava pelo que se passava eni seu psiquismo e esquecendo
completamente o que se passava a sua volta. Após esses períodos alucinatórios que foram
inicialmente breves, depois aumentaram em duraçáo e intensidade, ela voltava a sua ocupação
do momento." A obbsn7ação de Márcia é mais coniprobatória: ela não deixa dúvida quanto à
existkncia de fenômenos alucinatórios, por é capaz de testemunhá-los por si mesma: "Parecia,
escreve Betellieim, que ela tinha alucinações particularmente apavorantes quando olhava para
o forro. Às vezes, ela tampava o rosto ou o naiiz coiii a niáo, Blvez fosse para se assegurar dos
limites de seu corpo, pois, alucinando, ela tinha, sem dúvida, a impressão de que se estendia
até as imagens que projetava no forro. Ou, talvez, era para forniar uma tela entre ela e o
mundo que percebia obscuramente (ou que alucinava como estando lá for.) ,I . IMuito mais
tarde, quando alucinava desse modo, ela dizia: "vejo mamãe:' [seem o n ~ ]e ,suplicava desespe-
rada: "tragani mamãe" [take m o m awa.~j'~. Márcia testemunha, conseqüentemente: alucina-
ções apavorantes, mas não alucinações verbais, além disso ela se protege delas colocando
suas niãos nos olhos e não nas orelhas. A partir da observação de Marcia e de alguns outros,
Bettelheim tenta um;! teorização da alucinação da criança autista. Ele apreende isso clinica-
mente pela atitude de olhar Ftiarnente para o teto, e fomiula a hipótese de que essas crianças
alucinani a fonte e vida: "a pessoa responsável pela nutrição, a pessoa que eles nunca esperam
afetivamente, a pessoa que eles buscam e, ao mesmo tempo, da qual querem se Iivrac"" Essa
hipótese não parece pocler ser generalizada; por outro lado, parece claro que alucinações
visuais sejam inerentes aos estados de autosensualidade destacados por Tustin.

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Quando Wiiiiams tenta relembrar sua infância, ela se lembra primeiro de "a visão encantada
que tinha do nada", ela discemia nele manchas nas quais buscava se deixar absonzer totalmenteT2.
Um pouco mais tarda, ela testemunha ter tido dois amigos, "filamentos mágicos', e "um par de
olhos que se escondiam sob sua cama". Os primeiros "eram quase ti;tnsparentes, mas bastava
não olhá-los diretamente e manter o olhar além para que eles se toinassem muito presentes
[...I as partículas que eu perceliia erigiani um prinieiro plano hipnótico que fazia o resto do
mundo perder toda a sua realidade e seu brilh~."'~ Durante muito tempo ela cultivou esses
estados dormindo de olhos abertos ou ainda apertando os olhos até ver cores. Constata-se
novamente que a atenção se Williams se atrai por alucinações visuais. Nenhuma dúvida, entre-
tanto, que a música possa também ter um lugar em seus estados de gozo auto-erótico. Uma
autista d e alto Funcionamento com 13 anos relata que até os cinco anos antes de começar a se
abrir para os outros, seu mundo era magnífico "ele era pleno de cores e de sons"." Os testemu-
nhos são coincidentes quanto à freqüência da atração exercida por sonoridades melodiosas,
particularmente música e canções; por outro lado Iiuscam-se em vão sujeitos para os quais o
diagnóstico de autismo não seja duvidoso e que ajam como se percebessem vozes alucinadas.
A longa experiência de terapias de crianças autistas acumulada por Frances Tustin também
não a conduziu a destacar a presença de alucinações nesses sujeitos. Quando ela evoca sua
manifestação, muito raramente, e sem precisão, parece confirmar a eventual presença de
alucinações visuais. "Por ocasião das primeiras entrevistas, escreve em 1981, as cri;tnças
confusionais podem apresentar alucinações. Não é o caso de crianças com carapaça, mas em
curso de psicoterapia, estas podem apresentar alucinações que mostram sua capacidade mental
de reter imagens."1i
Donna Williams descreve ter experimentado em sua infância alucinações visuais bastante
consistentes em ligação com estados de sonambulismo. "Uma vez foi um belo gatinho de
olhos azuis que Iiavia me niorditlo e depois se nietemorfoseou bruscamente em rato quando
eu ia acariciá-lo.Durante o pesadelo, eu havia descido na sala e lá havia encenado toda a cena
antes de acordar acendendo a luz. Eu me pus a gritar ao ver o sangue escorrer da mão, mas o
sangue desapareceu como por magia e tudo voltou a ordem no cômodo."
"Outra noite, foi no roupeiro do corredor que acordei, paralisada de terror ao ver uma
boneca assim que retornou de seu estado normal. Alguns segundos antes eu a havia visto de
mãos estendidas, os lábios articulando palavras estranhas que eu não podia ouvir, como em
uma cena de fantasmas em filme ma~abro."'~ Convém constatar nesse episódio que a comuni-
cação verbal, as "palavras sinistras", se faz sob uma forma visual: ela não é ouvida, ma5 perce-
bida pela :trticulação dos lábios. Tomemos o que sublinha aqui \T4lliams: ela não podia ouvi-
10s. Em outra circunstância angustiante, ela percebe uma voz que efetua uma espécie de
comentário de seus atos, o que não é sem evocar um fenõnieno de automatismo mental, no
entanto, ela precisa: "eu ouvia mentalmente minha própria voz comentar o passar das
coisas"", no que ela destaca que o fenõmeno não é, para ela, xenopático, sua alucinação não
lhe escapa, ela sabe que se trata de sua "própria voz". Da mesnia forma, pode lhe acontecer de
ouvir: "as emoções são ilegais", mas aí, ainda, ela afirma que é "uma voz interiorxT8que lhe
lança essa sentença.

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poder nos orientar para apreendermos o que diferencia esuuturalmente o autismo das psicoses.
Era o caminho que seguiam os Leforr quando consideravam que no autismo "o duplo n ri O teiii
nenhuma possibilidade de a l u c i n a ç ã ~Eles
~ ~entendeni
~ coni isso que a relação com o Outro
do significante é sempre niediada por um duplo real e onipresente, que impõe um obstáculo
a alienação significante". Os Irfort destacavam a ausência ou a pobreza do balbucio em crianças
autistas para insistir sobre a não função do recobrimento do real pelo sinibólico por meio do
significante-mestre. Na verdade, uma das maiores clue~uasdesses sujeitos, quando denions-
trani sofrer de não conseguir reunir o pensamento e a enioção, parece 1)ocler ser relacionada
a uma deficiência do significante-mestre. Sua entrada na linguagem se faz, na maioria dos
casos, por inanifestações ecolálicas isoladas de seus sentimentos. Alguns
. dizer ter levado muito
tempo para conipreeiider que as produções sonoras de seus pr.0xiniosserviam para se comu-
nicar. Com a idade cle 14 anos, uni autista de alto funcionamento como Bamon, nào era capaz
de exprimir o que sentia por meio de palavras. 'Xidéia nunca me veio de perguntar à minha
mãe por que eu era tão esquisito, de lhe dizer que precisava de ajuda. Eu não sabia que as
palavras podiam servir para isso. Para mim, a linguagem era apenas uma extensão de minhas
ol~sessões,um instrumento a sewiço de meu gosto pela repetiçã~."~~ Iloniia \Vllliams fala de
Lima relação senielhante coiii a liiiguagem em sua infância: :4o mesmo tempo em que eu
podia memorizar e iniitar conversas inteiras com todas as entonações, eu não reagia quando
falavam coniigo. Eu nem pestanejava quando meus pais apronravam uma algazama ao lado de
minha orelha. Eles pensarani que eu era surda. Eu não era. Céticos apesar de meu rico voca-
bulário, eles me fizeram passai-poraudiometrias desde o.s nove anos de idade. Eles ignoravam
o princípio da "surdez ao sentido". Na vida, isto equivale a uma quase surdez. Wcês não sáo
privados do som, inas de seu sentidon2'Então: é-lhes necessário um temlm mais ou menos
longo para descobrir que as pala\.ras semem para comunicar: após o que alguns se mostrani
calIms de uma aprendizagem intelectual da língua. Como poderiam eles ouvir verbalizações
alucinatórias expressivas durante o peilodo eni que a fala do Outro Ihes chega sob a forma de
uma barulheira insensata? Tudo leva a crer que aquele que é privado clo "sentido do som" é
incapaz de perceber vozes alucinatórias.
A carência da função do significante-mestre ancora na estrutura autística um obstáculo a
própria cons~ruçáode uma alucinação verbal. É preciso destacar que essa última não é uma
barulheira qualquer, nias a manifestação de uma "voz": que demonstra uma presença
enunciativa forte, lilimana ou divina. Ela frequentemente contém imperativos constrangedores
contra os quais o sujeito deve dispensar muita energia para resistir a cumpri-los; ela o conduz,
por vezes, a realizações extrenias: suicídio, assassinato, incêndio etc. A alucinação verbal re-
pousa dois pressupostos: a inscrição do significante unário sobre a substância gozante e a
capacidade do sujeito de portar o SI na função de significante-mestre. É preciso que esta
última tenha operado para que o Si se faça ouvir sob a forma de comandos do supereu feroz.
Sua propensão as injúrias e as obscenidades iiianifesca o desencadeamento no real de urn
gozo desenfreado, ao qual os S2não fazem barragem, ainda que já toinados na linguageni. A
partir disso, não há "voz" seni a assunc;ão da Bejahung piimordial; aquela que Lacan notava
estar ausente em Dick, criança analisada por Melanie Klein, a respeito da qual ele fomece

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algumas indicações preciosas em relação a estrutura c10 autismo. Dick, afirma ele em 1954,
vive "eni uni mundo não humano", pois ele "não pode sequer chegar ao primeiro tipo de
identificação que seria, já: um esboço do simbolisnio [...I ele tem já unia certa apreensão dos
vocábulos, mas deles ele náo fez aRejabung- ele não os a~sunie."?~ As crianças autistasvivem
em um mundo interior no qual o significante não introduziu seus cones. Dick, destaca Lacan,
"está totalmente no indiferenciado", de niodo que eles podem encontrar muita satisfação
nisso quando não os iiicomodanios. Está no princípio do autismo que uma relação Fundamental
do ser com a fala seja recusada pelo sujeito. Essas intuições de lacan são confirmadas e desen-
volvidas pelos 1.efort nos anos 80 quando eles teorizam a auséncia do Outro do significante no
autismo. Sem dúvida, é preciso relativizar essa afirmação, ninguém pode contestar seriamente
que o sujeito autista esteja na linguagem, o que, além disso, a ~)roduçáode obietosu evidencia.
O que é característico da lalingua do autismo não é tanto de sei-pobre, mas a recusa do sujeito
de isolar nela os significantes-mestres. O sujeito autista não é imune a qualquer alienação,
nias ele recusa isso a que foi submetido, ele "não a assume", conforme destaca Lacan. Como
ele faz para conseguir isso?Ocupando-se de comr o significante do gozo vocal, consegue que
nenhum dentre eles possa portar a função do significante-mestre. O autista mobiliza seus
esforços para nunca tomar a posição d e enunciador; essa estratégia defensiva só transborda
nos monientos de extrema angústia. .4 permanência, raramente falha, da recusa a tomar uma
posição de enunciador é o que funda a ausência clínica de alucinação verbal, pois esta é uma
enunciação desviada, à qual o sujeito é imanente2j.Apesar das aparências, o sujeito psicótico
se mostra profundamente implicado em suas alucinações, o que mostra a força persuasiva de
alguns, que sabemos que podeni conduzir, por seguir suas injunções, a cometer atos
gravíssimos. A partir disso, já que nem a itlentificaç20 primordial! nem os significantes-iiies-
tres são assumidos, parece inerente a estrutura autística que não haja lugar para a produção
de vozes alucinatórias.
Aqueles para os quais a fala não pode servir como apelo, aqueles que se recusam a fazer-se
ouvir, não seiiam eles, entretanto, embaraçados por uni gozo vocal que os concluziria a escu-
tar muitas coisas interiormente? Nada indica que seja esse o caso. Certamente, são frequente-
mente crianças cuja vida interior é rica, eles falam muito sozinhos, alguns recitam para si
poemas e histórias, eles se lembram facilniente de canções de árias musicais e de programas
de m, outros manejam números, ou se colocam múltiplas questões etc. No entanto, tudo leva
Sellin a crer, quando interrogado a esse respeito, que não há nada nisso de tão excepcional.
Escreve em seu computador:

"(.) interiormente euJulo com abundância, como lodos ospequenos terrestres'-"

Quando alguém lhe pergunta se escuta uma frase falada uma ou várias vezes intenormen-
te, ele diz novamente que considera, a respeito disso, náo ser ciiferente dos outros:

'2 u m aberraçaopensar que repito inleriornzente


tudo o que é dito é essencialmente @iado

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e ar~nazenadono ?~tisrerioso
cérebro louco
u espera de ser ct~arnado"~!

Contudo, nos autistas verbais, observa-se muito frequentemente uma repetição niumura-
da da frase que veni de lhe ser dita, como se a saboreassem ou examinassem com atenção.
\Villiams indica que esse fenômeno se ancora em sua dificuldade de captar imediatamente a
significaçáo, um trabalho reflexivo suplementar Ihes é por vezes necessário para que ela
advenha: "Por volta da idade cle dez anos, conta ela, eu começava a ouvir fragmenros que
continham diretamente um sentido. Descobri uma estratégia: dizer interiormente as frases
do outro. Assim eu podia dar um sentido a toda uma frase. Com o passar dos anos, eu poli
essa arte a ponto de poder dialogar com um atraso praticamente imper~eptível."~~

Os gritos

Mais característico da sindrome autistica é uni fenômeno pouco estudado, o das crises de
berros, geralmente muito pregnances, e que consticuem o modo mais frequente de reagir às
contrariedades. É notável que os terrores de crianças autistas se traduzam por gritos não
verbais e nao por gritos como "o lobo", que atestariam um funcionamento do sujeito da
enunciaçáo. Eles sáo inteiramente confrontados com uni Outro real iiiuinano, que não fala, o
que anota Lemay quando constata que a criança autista não transfona suas angústias em
"medos designáveis ligados a potências animadas. Não há fantasmas, bruxas ou personagens
assassinos em seus relatos. Ele náo nos fala, como tantas crianças, seus medos da "cortina que
se mexe", do desconhecido que pode entrar em seu quarto pela janela ou de uma presença
misteriosa debaixo de sua cania. Estamos, eiirâo, sempre em representações nas cluais o
sensorial e o inanimado são conduzidos por configurações humanas.29Da mesma forma as
angústias da criança autista se exprimem aquém da hunianização produzida pela assunção da
linguagem. Sellin retorna várias e várias vezes em seus escritos ao sofrimento que lhe produ-
zem os berros incoerci\,eis:

"osgriios doidos são acessos sobre os qtrais e21 náo tenho conrrole
nuda nze é mais odioso que esses repug>ia?~res
berros de raiva qtre itjlam e ?nugema*

Ele se dá conta que esses gritos o isolam e obstaculizam seus esforços de socialização,
gostaria de livrar-se deles: mas eles se impõem. Ele lamenta sua ignorância quanto as razões
desses gritos infames?' Certamente, os berros não são próprios à clínica do autismo! sabemos
como Schreber mosmva isso, ma. concebemos imediatamente que não são de mesina natureza
quando destacanios que o Presidente conhecia suas razões. Seus berros estão articulados em
seu delírio, eles se produzem sempre na mesnia circunstância: quando Deus acredita poder
retornar nele, a partir do momento em que ele consente e não pensa em nada. Bis gritos são
denominados "milagres": eles são produzidos pelo Deus inferior (Ariman) quando ele aciona

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os "músculos envolvidos no inecanisnio respiratório"". Nesses niomentos; que sobrevém
quando os raios falantes que ligani Schreher a Deus véni a se romper, o Presidente se apresen-
ta conio "um texto ~>icotado")~, entre os S2 que se suhtraem e o Si do berro.
Nisso, constara 1.acan: se iiianifesta "uma função vocal absolutaniente a-significante,e que
no entanto contéiii em si toclos os significantes possíveis, é algo, acrescenta, que nos dá afli-
ção diante dos uivos de um cão para a l~a''~'. Ao encontin dos berros de Selliii, que ele niesmo
qualifica coino "bestiais, repugnantes, imbecis, odiosos, nionos-huiiianos", que lhe são insu-
portáveis, e lhe parecem marcar sua exclusão da humanidade, pelo horror que produzeni nos
outros; os de Schreher são, pelo contrário, niuito humanos, eles exprimem a inefável dor da
linguagem que se furta, dilacei-amentoque acreditamos ouvir no uivo do cão que dá aflição,
quando lhe atribuimos uma expressão quase humana.
Os I~errosde Sellin são: seguiido sua própria expressão, "absurdos sons arquipriniiti\~o~'~~
Eles fazeni ouvir, no horror. tão somente a voz do sujeito, antes de qualquer alienação signifi-
cante. \Villiams confirma isto: "No vazio tlo Grande Abismo Negro, escreve, não havia iienlium
pensamento [...I. No vazio, não há nenhum laço. Neiii o berro Ilie pertence, pois você não
existe e não há VOZ."^^ Unia tal voz não é sequer reconliecida coiiio sua, por falta de enganche
com o significante-mestre. Os berros de Schreber não são da mesma ortleni: eles participam
de um niilagre clivino. O Presidente é atravessado pelo Outro, seu grito mostra uma anicula-
ção mínima do sonoro a linguagem, ainda que ele nos faça ouvir a voz huiiiana, o objeto da
pulsão invocante se presentifica nela; o autista, por sua vez, por sua vez, peinianece obstruido
por uni gozo sonoro que não é tomado pelo significante-mestre,que surge para ele no insen-
sato: bestial, não humano.
Todos os casos de berros apresentam a angústia niassiva de um ser às voltas coni seu
desamparo. Schreber sobre da retirada clo Outro, a qual ele se esforça por remediar; eiiquan-
to o autista é mais radical: ele trabalha na recusa da alienação. A partir disso, Sellin não tem
nenhuni poder sobre seus berros, enquanto Schreber é menos i niercè. Ele pode preveni-los,
mantendo a coeréncia da cadeia significaiite, "enquanto eu continuo a contai; escreve ele,
não há risco que se declare uma crise de berros"; ou se coloc;indo a falar eni voz alta e a
"pronunciar algumas palavras de preferência sobre Deus, a Eternidade etc., que não devem
falar ein conduzir Deus a reconhecer seu erro". Na época da redação de suas "Memórias", ele
chega a obter um certo coiitrole do fenonieno, os berros se reduzem, afirma, "ao que os
outros toniam por ruidos de tosse, pigarros ou bocejos mais ou menos deslocados: raianien-
te de natureza a chocar alguén~""Seu controle ligatlo ao significante não faz deles fenômenos
totalmente dessubjeti\;ados, ainda que denionstrem uma não-extração da voz.
A colocação em jogo desta conectada ao significante-mestre é tão dolorosa para os autistas
que muitos preferem ficar mudos. Outros recorrem ao compromisso da verborréia, à linguagem
tlos signos ou a diversos tipos tle enunciação artificial.
Alguns chegam a dar uma base frágil a sua enunciação pela mediação de uma captação
imaginária da voz operada graças ao desvio por um duplo. A aquisição da fala se faz para o
autista inicialmente pela ecolalia retardada, que imita o componamento verbal de um duplo,
depois por uma aprendizagem intelectual que memoriza palavras conectacias a imagens de

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coisas, e frases associadas a situações precisas. A enunciação mantém sempre uma cerra estra-
iilieza, que sugere algo de unia base aitificial. A apropriação da linguagem opera, não poi-
enganche do significante a voz, mas pela assimilação de signos i-eferidosa imagens. Entre as
consequênci;~~ que resultam disso, é preciso destacar a fragilidade da montagem siinbólica
que estrutura a percepç20. Os autistas de alto Funcionaniento demonstram Frequentemente
sua desorganização repentina eni niomentos de angústia. Para eles o sonoro, assim coiiio o
visual: por não serem habitados por um gozo regulado, não deixam de ser difíceis de tratar.
Sellin descreve muito bem que "a percepção acústica e \risual" lhe é "inacredita\.elniente
penosa", pois e "car>ti~a".'~ Uni esfcjrço de concentração da sua pane é necessário para colo-
car ordem nisso.
A esquize entre a orelha e a voz não opera para o autisra, e moclo que ele ouve de fato
"niuitas coisas", coisas demais, quando a fala se toma expressiva e singular. Willianis diz expe-
rimentar um pavor da estranheza de sua voz quando exprime 1,alavras que es~ollieu?~ Esse
momento em que ouve sua voz: ela associa ao niedo do "Grande Abismo Negro", termo que
utiliza para designar os momentos de angústia eutrema. Destacanios que ela não ouiresua voz
quando sua fala é verbosa; ela só se presentifica por unia enunciação singular, quando se
exprime verdadeiramente. Convocar o significante unário [para pareá-10 momentaneamente
com o sonoro e fazer operar a voz, constitui para o autista uina experiência extremamente
angustiante, sem dúvida no hndaniento de sua posição subjetiva.
.4ausència de esquize entre a orellia e a voz toma sua manifestação senipi-eameaçadora para
o sujeito autista; unia vez que está no princípio da estrutura autística que o sujeito recuse-se a
assumir a alienação significante, recusa que ultrapassa largamente a vontade consciente, recusa
que cliva a voz e o SI, e que parece niostra a ausência clínica dessas enunciaçóes desarrumadas
que coiistitueiii as :ilucinaçócs verbais.
Terio traduzido por Teresinha N. hleirelles do Prado

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Setembro 2008 O p ~ ã oLacaniana no 52


Semblantes e sinthomas

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