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Serge Cottet
Dialética da identificação
Para colocar à prova a tese de Freud sobre as falhas da identificação simbólica, Lacan
encontrava pouco antes, em 1947, um exemplo perfeito a partir do exército inglês
durante a guerra. Ele toma conhecimento das reformas implementadas no exército, na
Inglaterra, por uma equipe de psiquiatras, para tratar problemas de inserção e de
reagrupamento de sujeitos incapazes de satisfazer as exigências físicas e morais que
as circunstâncias impõem. Nessa ocasião, Lacan já utiliza a expressão “identificação
horizontal”, censurando Freud por tê-la negligenciado em proveito da “identificação, se
assim podemos dizer, vertical do chefe”[5]: o que fazer dessa quantidade de soldados
relutantes à instrução, desajustados, delinquentes, preguiçosos, depressivos e
traumatizados inúteis? Lacan se encanta com os serviços de reeducação capazes de
estabelecer um espírito de equipe entre esses marginais através de um tratamento de
grupo que os reinsere não pelo ideal, mas pela integração do sintoma de cada um, ou
mesmo do modo de gozo de cada um: como as aulas de dança que foram capazes de
restituir certo orgulho fálico aos homens afastados da honra do combate[6] – ideal, é
verdade, ainda de pé. É uma especialidade anglo-saxônica bem pragmática, essa de
saber canalizar para a boa causa o ardor de matadores confirmados assim como a
dos piores antissociais, a exemplo das grandes companhias da Idade Média.
De um modo mais soft, o modo de gozo privado é um potente fator de integração, pelo
menos em certas condições econômicas. Dos anos sessenta aos anos setenta, a
exigência de consumo fez semblante de laço social. Sociólogos aproximaram essa
função simbólica do consumo de massa à maneira de Marcel Mauss. As críticas da
sociedade de consumo dos anos sessenta veem no consumo um fator de identificação
tanto vertical quanto horizontal: a publicidade dita o significante-mestre; consome-se
como um nouveau-riche; horizontalmente, faz-se disso um sinal de distinção social,
como nos adolescentes, uma marca faz signo da tribo. A alienação das necessidades
pelo consumo é então interpretada como uma lógica de diferenciação social: o objeto
não é desejável em si, ele é signo de prestígio e de reconhecimento, de status e de
integração social. Como diz Gilles Lipovetsky, resumindo Baudrillard e Bourdieu, “os
atores buscam não tanto gozar de um valor de uso quanto exibir uma condição,
classificar-se e serem superiores em uma hierarquia de signos concorrentes”[7].
É preciso acreditar, no entanto, que a alienação pelo mercado não explica tudo; o
sociólogo, timidamente, faz um desvio por Freud, para quem “a novidade constitui
sempre a condição do gozo”[9]. De fato, os críticos à sociedade do bem-estar que
colocam em questão o “pseudogozo”, tal como Guy Debord, acreditam poder decidir
sobre o grau de alienação das necessidades pelo imaginário social. O que Lipovetsky
chama de hiperconsumo é muito mais o modo de gozo separado da injunção coletiva,
um fechamento em si mesmo, muito mais autista, como remédio para um sentimento
de fracasso social. “Passividade e hipnotismo não caracterizam necessariamente o
consumo moderno.”[10] É preciso deixar de interpretar o modo de gozar a partir da
função simbólica e da teatralização da vida social: o ideal social mudou, o consumo
demonstrativo dá lugar ao consumo hedonista, individualista e menos ostentatório. O
mais-de-gozar não decorre forçosamente da competição; ele compensa
ocasionalmente um deficit de identificação quando o excesso substitui o sentimento de
existência.
Isso equivale a dizer que uma identificação se faz pela separação do Outro por meio
do objeto, por uma recusa da alienação. A “inserção no gozo”[11] é o sintagma de
Lacan escolhido por Jacques-Alain Miller em Barcelona. Podemos utilizar a fórmula
como objeção à pretensão do discurso em impor sua fantasia do mais-de-gozar
capitalizado. Fourier sabia disso ao propor como remédio ao mercantilismo a utopia
delirante dos falanstérios e a realização da harmonia social pela pluralidade das
paixões.
Se a psicanálise não visa, por seu discurso, reintegrar os Sem-Teto, nem reagrupar os
campistas do bosque de Vincennes, ela deve pelo menos abalar as certezas
ostentatórias de reeducadores modernos que veem nessas escolhas somente deficits
a serem preenchidos pela ajuda samaritana e outros ideais filantrópicos que
mascaram um desprezo por essas escolhas sintomáticas.
Tal como essa jovem, atendida no CPCT: porque iríamos querer “construir” alguma
coisa com ela, exceto dormir, ela que não vale nada e não tem nada a comunicar; ela
não é interessante. O amor, aliás, a colocaria em competição com as mulheres, numa
rivalidade que a isolaria ainda mais. Diríamos que o corpo não existe e que o ser da
pessoa está inteiramente saturado pela comunicação. Incapaz de entrar no semblante
da sedução, ela só poderia ser apreciada pelo que ela tem, não pela mascarada
daquilo que ela não tem, ela que não tem nada a propor. Frequentemente
desempregada, particularmente desadaptada em todo laço de trabalho prolongado, ela
confessa que no escritório, secretária, ela está presa como num cemitério. Em ruptura
com sua família, cadaverizada no universo do trabalho social, ela é sustentada apenas
por uma erotomania minimalista estacionária em sua fase de esperança, único valor
refúgio de seu gozo.
Essa psicose, que pode passar por ordinária, inverte a ordem da causalidade que vai
do sexual ao social. Tudo começa com seu axioma: só há relação social; ora, a
relação sexual não satisfaz as normas da comunicação e da troca; portanto, não há
relação sexual.
Resta construir um tipo clínico contemporâneo que se aproximaria daquilo que Lacan
pode ilustrar do “formidável quadro da amnésia de identidade”, todas as outras
funções “cognitivas” estando preservadas[15]. Por metáfora, digamos: alguma coisa
como a estranheza do sujeito às nomeações que lhe propomos.
[2] Ibid.
[3] Jacques-Alain Miller, «Vers PIPOL IV», Lettre Mensuelle, n. 261, septembre-
octobre 2007.
[5] Jacques Lacan, “A psiquiatria inglesa e a guerra”, Outros escritos, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2003, p. 110.
[8] N.T. Festejo religioso praticado entre tribos indígenas da América do Norte,
geralmente envolvendo um banquete de carne de foca ou salmão, seguido por uma
renúncia a todos os bens materiais acumulados pelo homenageado – bens que devem
ser entregues a parentes e amigos. A própria palavra potlatch significa dar,
caracterizando o ritual como de oferta de bens e de redistribuição da riqueza.
[11] Jacques Lacan, O Seminário, livro XVII: O avesso da psicanálise, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1992, p.87.
[15] Jacques Lacan, “O engano do sujeito suposto saber”, Outros escritos, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 335.