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Atualidade do corpo histérico*

Serge Cottet

Durante muito tempo, se tratando da histeria, falávamos menos do corpo do que


do discurso histérico. Hoje a anatomia não tem uma boa reputação quando se trata de
diferenciar homem e mulher pelo real do corpo. A distinção desaparece em favor do
gênero. É o triunfo do simbólico e é também o resgate do sucesso da psicanálise. Na pior
das hipóteses, homem e mulher seriam apenas significantes cujo significado seria
arbitrário ou convencional. É o momento de reanimar o corpo da histérica. A atualidade
do Rio nos convida.
Em sua versão clássica, o sintoma histérico se caracteriza pela inscrição de um
significante no corpo, pela conversão de um pensamento em uma linguagem metafórica
traduzida pelo corpo: a carne e as funções corporais se tornam elementos significantes,
sem levar em consideração o real da anatomia. De acordo com os conselhos que Lacan
dá no Seminário, livro XVI, retorno às vinhetas clínicas clássicas da psiquiatria e dos
anais médico-legais, aqueles que, no século XIX, ilustravam os paradoxos constituídos
por dores, espasmos, crises, contraturas e até estigmas.
Para constar, extraio um exemplo de Pierre Janet: “Na idade de quinze anos, ela
experimenta uma grande emoção por uma causa fútil. Um dia ao entrar em um celeiro
onde ela acreditava que não encontraria ninguém, ela pisa em um homem que dormia.
Esse homem, que era seu pai em estado de embriaguez, como de costume, se levanta, a
chama e quer se juntar a ela. A criança aflita, não reconhecendo seu pai, foge a toda
velocidade. Um mês após essa emoção, ela começa a ter crises de histeria que nunca
desapareceram, mas que se desenvolveram de diversas maneiras, acompanhadas de
sonambulismo, tiques, dores de cabeça, anorexia, etc. Em todos esses ataques e
sonambulismos ela vê um indivíduo ‘com uma cabeça desgrenhada e olhos terríveis’ que
a persegue. Ela se esforça para se salvar virando a cabeça para trás para ver aquele que a
persegue. Aos vinte e dois anos, as crises eram quase cotidianas. Mas na sequência das
crises se desenvolve, no início de modo passageiro e depois de modo permanente, uma
atitude que a figura 36 mostra claramente [ver na nota 27]. O tronco é fortemente
inclinado para a esquerda, a barriga é dobrada para a esquerda [...], enfim a cabeça
está virada para a esquerda e apoiada sobre o ombro esquerdo pela contratura dos
músculos cervicais e do trapézio”[1]. Evidentemente, o autor não dá nenhum sentido a
esse sintoma, senão um bloqueio devido à emoção, e não, como diz Freud, a
comemoração de um evento traumático, ou seja, um congelamento da imagem, que
fixa um gozo impossível de alcançar e que, no entanto, está muito próximo, tal como
Aquiles perseguindo a tartaruga: aqui, a frustração do gozo do pai persegue a filha.
Outros exemplos encantadores são fornecidos pelos grandes alienistas do final do
século XIX que colocam em cena todo um teatro da crueldade, com automutilações e
lesões corporais atribuídas a ataques. A mitomania e a difamação correm livre no

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imaginário para simular uma agressão ou um estupro. É a época onde se considera que a
mentira e a extravagância são as características principais da histeria, quase sempre
feminina. Henri Legrand du Sauller, em sua obra escrita em 1891, “As histéricas”, faz
uma antologia de todas as excentricidades histéricas: provocação, contestação,
ninfomania, escândalo em via pública [2]. O pior da mentira histérica é a difamação; é o
avesso da fórmula lacaniana: la femme, on la diffâme! [3]
O paradigma da histérica conforme Legrand du Saulle seria fornecido hoje pelas
Femen [grupo de ativismo feminista]; é pelo menos esse o sintagma que se impõe “no
popular” nesse tipo de ocasião. A colocação em cena substitui a conversão. Essa extensão
da histeria à provocação dissolve o tipo clínico em um comportamento e faz esquecer o
corpo. Seguindo Babinski, o caráter histérico, totalmente de simulação, prevalece sobre
a patologia charcotiana do corpo.
Freud, ao continuar fazendo da paralisia histérica o paradigma da conversão
histérica, se afasta, como sabemos, da causalidade traumática em favor do fantasma. O
Outro em questão é o suporte de uma identificação a um traço, o traço unário, que faz um
corte significante. Ele não deixa de descrever o retorno da libido na descarga motora com
o ataque histérico: esse concerne a todo o corpo e não mais somente ao corpo recortado
pelas zonas histerogênicas. Em 1909, em “Considerações sobre o ataque histérico”, Freud
inverte a fórmula antiga que dizia “o coito é uma pequena epilepsia” para “o ataque
convulsivo histérico é um equivalente do coito”[4]. No fantasma, é o corpo do Outro que
é convocado sobre a vertente sensível da relação sexual impossível.
Durante os anos de 1920 a 1930, esse deslocamento continua, e o sintoma de
conversão do corpo fragmentado se faz esquecer em favor da repetição, a repetição da
decepção. A doutrina da pulsão de morte e do masoquismo coloca em cena personagens
com destinos funestos onde o infortúnio e a insatisfação imperam. A repetição dos maus
golpes, que não é sempre metafórica, concerne tanto ao corpo doente de mil e uma
maneiras, quanto ao corpo que apanha, onde domina a fantasia “bate-se numa criança”
em certos casos de masoquismo feminino. Em “Análise terminável e interminável”[5],
Freud dá o exemplo de uma análise interminável de uma mulher que abandona seu corpo
à cirurgia; tratada anteriormente pela psicanálise por dores violentas nas pernas, ela
encontra, depois de doze anos, uma série de catástrofes familiares seguidas de graves
afecções orgânicas, tais como “um mioma que justificava a remoção total do útero” antes
de se apaixonar pelo próprio cirurgião.
Foi Helène Deutsch que generalizou o conceito de masoquismo feminino em
relação a uma clínica da histeria onde predomina um destino mortal. Falaremos então de
uma complacência do sujeito à pulsão de morte ao invés de uma complacência somática.
Essa última expressão é contestada por Lacan, notadamente no Seminário onde ele
formula o contrário: “é antes, da recusa do corpo que se trata. Seguindo o efeito do
significante-mestre”[6]. A contestação do mestre, do falo, da dominação masculina e
finalmente, da relação sexual.
Essa retificação gerou um novo par na clínica: a histérica e seu mestre.

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A histeria e a ciência: é um capítulo que abre novamente a questão do corpo, seja
do binário imagem fálica e real do corpo. A promoção do discurso histérico não anula
então essa referência, a marca sobre o corpo resta como um dos fundamentos da histeria
em Lacan: “o sintoma histérico sob sua forma mais simples, não tem que ser considerada
como um mistério, mas como o princípio mesmo de toda possibilidade significante (...).
O corpo é feito para inscrever alguma coisa que se chama a marca (...). O corpo é feito
para ser marcado” [7].
É nesse ponto que se coloca o problema do corte: é ele simbólico ou real? O
imaginário do corte evoca inevitavelmente a castração. Durante toda uma parte de seu
ensino, Lacan se baseou na oposição do ser e do ter como alternativa para a mulher frente
ao falo; é a ocasião de esclarecer a especificidade do corpo histérico em relação à
identificação imaginário ao falo.
Sobre esse ponto, podemos ser sensíveis às variantes modernas que sucedem ao
corpo elástico da histeria e à sua retórica; um corpo deformado como por anaformose,
onde domina a imagem fálica. Enquanto o corpo lesado, até mesmo mutilado, que
engendra a cirurgia contemporânea produz um corpo menos eloquente.
Várias observações de Lacan sobre a anatomia do corpo feminino são preciosas
para alimentar nosso debate. Apoiando-se sobre a equação de Otto Fenichel “garota=falo”
[mädchen], Lacan deduz a imagem narcísica da falta do pênis que ela vem compensar:
aquilo que ela não tem como órgão, ela é como símbolo do desejo. Toda uma estética
pode ser deduzida daí, tendo seu ponto de partida nas propriedades anatômicas,
especialmente no que Lacan chama de “a forma grácil da feminilidade”[8], aquela que é
representada entre púbere e impúbere. Lacan privilegia então a pintura maneirista no
barroco italiano. Podemos completar as referências de Lacan com as de Daniel Arasse
sobre a retórica do corpo; um sintagma que nos é muito bem-vindo no momento [9].
Podemos encontrar formas gráceis mais apropriadas na demonstração de Lacan que se
baseia no quadro de Jacopo Zucchi, comentado no Seminário VIII [10]. A imagem fálica
substitui o pênis que falta na imagem de Eros. Psique, com a espada nas mãos, está um
pouco rechonchuda. Seria necessário falar do maneirismo italiano em relação ao
maneirismo alemão gótico. Pensemos nas “Três Graças” de Lucas Cranach que realiza
essa ambiguidade entre púbere e impúbere, corpo fetichizado, erotizado por véus:
barrigas redondas, quadris estreitos, tez de porcelana, corpos longilíneos. D. Arasse nos
mostra que as representações barrocas do corpo feminino são contemporâneas da
dissecção e dos tratados de anatomia. No entanto, a concepção das proporções não é
matemática, mas amplamente imaginária. Ela transgride a observação biológica como
transgride também a alegoria religiosa da Idade Média. Deformam-se se os corpos
alongando-lhes, o que chamamos de forma serpentina do corpo feminino, o alongamento
do pescoço, os dedos afilados.
É como se o discurso da ciência sobre a anatomia fosse contradito pela estilização
dos corpos, incluindo os órgãos internos. Eles não são somente embelezados, mas
exibidos pelo próprio sujeito, que está presente na composição; o sujeito esfolado mantém
um sorriso, parece que o desenho anatômico, tão preciso quanto ele seja, não apaga o

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sujeito que está presente como se ele se recusasse a sair de seu corpo; é como se o próprio
sujeito apresentasse seu corpo e seus órgãos ao público.
Esta é a ocasião para distinguirmos a mascarada feminina e a fetichização do
corpo. Eu os remeto ao comentário que Lacan fez de Lolita, a famosa ninfeta de Vladimir
Nabokov. Lacan denuncia uma confusão em 1960, sobre uma conferência de Simone de
Beauvoir que confundiu os sex-symbols do cinema da época: Marylin Monroe, Marlène
Dietrich, Audrey Hepburn. Lacan considera que essas imagens não têm nada a ver: “a
distância que existe entre o desabrochar completo do charme feminino e o que é
propriamente o mecanismo da atividade erótica de Lolita, parece-me constituir uma
hiância total, a coisa mais fácil de se distinguir no mundo”[11]. Sobre essa fetichização
do corpo da impúbere, podemos nos referir ao fenômeno da hipersexualização das
meninas, as pequenas misses dos EUA que são produzidas em cena com maquiagem,
meia arrastão e salto alto para os concursos de beleza: uma verdadeira mise-en-scène da
pedofilia norte americana. O corpo fetiche da ninfeta e as identificações que ela inspira,
relançadas pela cirurgia, não devem ser confundidos com a mascarada e o semblante
feminino: uma distinção hoje apagada pela insurreição do feminismo contra essa bagunça
que designa o sintagma “mulher-objeto”.
Conhecemos os excessos contemporâneos aos quais se presta esse corpo
falicizado quando ele cessa de ser uma garantia de vida, o corpo da anoréxica goza com
a morte, tal como o falo alongado do quadro de Hans Holbein, a anamorfose de um crânio.
Hoje, as novas bonecas Barbie em circulação no mercado não são nem mais nem menos
do que esqueletos vestidos.
Até então, nós temos tratado do corpo da histérica a partir da imagem fálica, mas
não dizemos tudo sobre isso se temos como único princípio que “é o falo que dá corpo ao
gozo”, fórmula relativizada por Jacques-Alain Miller no seu curso “Coisas de fineza em
psicanálise”[12]. Com efeito, com o Seminário “Mais, ainda”, a dialética do ser e do ter
não esgota o sujeito e relança a questão do gozo e da linguagem, e também o corpo
histérico em sua relação à castração.
O paradigma do corpo barroco nos conduz assim ao corpo recortado ou mutilado
dos torturados; ora, há casos que um tratamento do corpo pode atravessar a cortina de
papel do fantasma para produzir lesões e cicatrizes bem reais.
O discurso histérico, podemos dizer, apresenta uma proximidade com o discurso
da ciência. Um e outro estão associados em sua contestação comum das leis assim-ditas
naturais do sexo e da procriação. Encontramos um sujeito complacente ao discurso da
ciência em sua tentativa de se “refazer um corpo” em nome da liberdade do sujeito em
reivindicar a propriedade inalienável de seu corpo. A indústria do bodybuilding, que faz
o sucesso da cirurgia estética, atesta a fantasia histérica de reparar a falta simbólica por
uma nova glorificação do corpo que não é menos do que o avesso de uma recusa do corpo
em se inscrever na relação sexual. Assim, a histeria contemporânea implica diretamente
o corpo no gozo tirânico desses novos imperativos [13]. A aceitação do significante-
mestre médico mascara uma recusa de toda simbolização da castração: a histérica se

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engaja “em tentativas para se fazer um corpo reparado da falta simbólica e que seria o
signo de sua feminilidade enfim reconhecida”[14]. Ela é capaz de sacrificar sua carne, de
impor ao seu corpo uma privação real a fim de “realizar sua castração”[15]. No lugar de
uma aceitação da castração simbólica, o sujeito prefere um corpo ferido, abismado, como
se ele se recusasse a satisfazer, como objeto a, o fantasma do Outro. Em sua reivindicação
de um gozo absoluto, o sujeito histérico se reencontra estritamente “igual a esse objeto a
e a nada mais”[16]. Passamos pelo argumento matemático que Lacan desenvolve sobre
esse sujeito – a série de Fibonacci-, para concluir sobre “a hiância irredutível de uma
castração realizada”[17].
Na Revista “A Causa do Desejo” dedicada ao corpo [18] destaca-se uma mudança
operada por Lacan entre 1975 e 1977 sobre o sintoma histérico. O paradigma da escritura
subverte a palavra do sintoma; se um sintoma se limita à uma pura escritura sobre o corpo,
ele não fala. Uma nova definição da histeria se baseia no texto “Joyce o sintoma”[19]:
seu sintoma é letra de gozo e não comunicação.
Não vamos confundir, portanto, o corpo falante com todo o efeito de somatização,
na mesma época em que Lacan se ocupa do PPS – fenômenos psicossomático –
recorrendo ao modelo da escritura. Em sua conferência de Genebra, ele formula: “tudo se
passa como se alguma coisa estivesse escrita no corpo”[20]. É uma outra versão da
complacência somática. No entanto, é necessário distinguir a escritura do fenômeno
psicossomático da escritura histérica. No comentário que J.-A. Miller faz, ele distingue
corpo e organismo, para opor dois conceitos vizinhos [21]. Na histeria estamos lidando
com um órgão incorpóreo marcado pela falta de objeto, e temos o contrário no fenômeno
psicossomático: se trata de uma libido corporificada. O que Lacan chamava de hieróglifos
da histeria, nos Escritos, era também uma escritura, porém decifrável [22]. A escritura do
fenômeno psicossomático refere-se apenas ao número e não ao sentido inconsciente.
Quanto ao que chamamos sintoma contemporâneo da histeria, o que o caracteriza é a
marca sobre o corpo como traço unário de gozo.
É necessário reforçar a oposição entre feminilidade e histeria a esse respeito [23].
Assim, o corpo histérico hoje não atualiza necessariamente o sintoma de um outro corpo,
mas o corpo próprio, inteiro, a título de ser o corpo d’A mulher. Podemos dizer que o
outro corpo que preocupava a histérica era o corpo do homem, e especialmente o do pai,
cuja deficiência fálica ela evidenciava com seus sintomas, mas com o ativismo da
indústria do fantasma, cujo objetivo é a transformação de seu próprio corpo, o fantasma
de um outro corpo é reconduzido ao corpo próprio.
Não se trata mais da mascarada enganando o Outro ou de uma dialética do ser e
do ter; não é mais questão de se alojar na falta do Outro, de tomar a falta do Outro por
objeto, tal como o parceiro castrado do sintoma freudiano, mas de ser si mesmo esse corpo
a mutilar.
Isso resulta às vezes na dificuldade em distinguir entre histeria e psicose, entre
transformação do corpo ou despersonalização. Lembremos que Tausk havia isolado o
delírio de influência na esquizofrenia, onde um corpo sofre um deslocamento no espaço

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e se modifica; olhamos para ele como se estivesse sob a influência de uma máquina: é o
retorno do real da foraclusão do falo. Freud opunha a isso um sujeito histérico que ignora,
no fato de revirar os olhos compulsivamente, uma metáfora de amor. Da mesma forma,
as automutilações se prestam a equívocos diagnósticos. Deve-se ver no caso a caso. No
transexualismo feminino principalmente: a remoção dos seios e a prótese peniana seriam
um sinal de histeria ou psicose? A questão foi trabalhada anteriormente por Catherine
Millot que discutiu sobre isso com um colega psiquiatra de Saint-Anne nos anos 75.
Assim, é preciso compreender a oposição entre feminilidade e histeria: o corpo,
ao invés de fazer semblante na mascarada, se sacrifica no real.
O conceito de corte em Lacan varre o campo do simbólico, do imaginário e do
real. Em relação ao real do corpo, o interesse pela anatomia é frequentemente confirmado.
Assim, no Seminário “A angústia”, retornando ao questionável aforisma de Freud, “a
anatomia é o destino”, Lacan acrescenta a seguinte nuance: essa fórmula “se torna
verdadeira se atribuirmos ao termo ‘anatomia’ seu sentido estrito e, digamos, etimológico,
que valoriza a anatomia, a função de corte. Tudo o que sabemos de anatomia está ligado,
de fato, à dissecação”. [24]. A articulação clássica entre os cortes significantes, que Lacan
chama ainda de “fragmentação mental” nos Escritos, e a anatomia imaginária, sofre um
curioso destino: os cortes se tornam reais e a aposta de uma indústria do fantasma.
No Brasil, especialmente, a vaginoplastia se encontra em pleno andamento, e
particularmente o relooking da anatomia do sexo feminino através da ninfoplastia, a
saber, a redução cirúrgica do volume dos lábios vaginais. Se trata de redesenhar um sexo
pré-púbere a golpes de bisturi. A incidência do cinema pornô é evidente na constituição
desse fantasma. Não se trata de uma excisão ritual que sacrifica as aberrações de uma
simbolização arcaica da diferença dos sexos. Nos concentramos antes em redesenhar as
bordas, é pelas bordas que o sujeito pretende se refazer um corpo. Conhecemos a função
erótica da margem e da borda no campo da pulsão [25]. Mas uma coisa é sublinhar uma
borda por uma mascarada e outra é redesenhar o corpo com a ajuda do bisturi. Não se
trata de ressaltar a fenda da pálpebra com maquiagem, mas de abrir os olhos com o bisturi
como fazem os adolescentes japoneses, indiferentes ao orgulho nacional, anulando o traço
unário da diferença entre o oriente e o ocidente.
O interesse de Lacan pelas bordas ou por tudo que faz limite entre interno e
externo, como as membranas [26], é notável; esses limites são ilustrados,
metaforicamente, é claro, nas margens que constituem as minorias sexuais, como a
comunidade LGBT, onde nem todos são histéricos, certamente, mas a complacência
histérica nesse discurso é muito maior. Hoje, as margens da sexualidade entram em
conivência com o bisturi. Passa-se do acontecimento de corpo ao acontecimento de borda,
o que constitui uma nova versão da complacência somática do sujeito ao discurso da
ciência. Novamente, testemunhas especialmente do Brasil, vêm confirmar esse
diagnóstico.
Para concluir eu diria que se ‘onde isso fala, isso goza’, a recíproca não é sempre
verdadeira. Onde isso goza, nem sempre isso fala. A tradição sustenta que a histérica fala
com seu corpo enquanto retorno do recalcado, mas nesses casos extremos, os limites da
simbolização são franqueados com o encorajamento da ciência que contribui para fazer

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calar. Há como um desafio que nos reenvia às origens da psicanálise - recusa e
complacência do corpo -: é o inconsciente real em exercício. Mas em um sentido inverso:
a bela açougueira de Freud acaba nas mãos do açougueiro

Tradução: Arryson Zenith Jr.

Notas

*Conferência feita durante o 4º Encontro “As segundas-feiras da AMP, em direção ao


Rio” sobre “O corpo falante”, encontro animado na ECF por Laure Naveau, com C.
Lazarus-Matet e S. Cotter, 4 de abril de 2016, é possível escutar o áudio em:
http://www.radiolacan.com/fr/topic/778/3
[1] Janet P., Névroses e t idées fixes, Paris, Masson, 1914, pp. 296-297.
[2] Legrand du Saulle H., «Les hystériques. Etat physique et mental. Actes insolites,
délictueux et criminels. », Paris, J.-B. Baillière et fils, 1883.
[3] Lacan J., Le Séminaire, livre XX, Encore, Paris, Seuil, 1975, p. 79.
[4] Freud S., «Considérations générales sur l’attaque hystérique», Névrose, psychose et
perversion, Paris, PUF, 1973, p. 165.
[5] Freud S., Résultats, idées, problèmes II, Paris, PUF, 1985, P. 237.
[6] Lacan, J. O Seminário, Livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, 1992
p. 88
[7] Lacan, J. O Seminário, Livro 14, A lógica do fantasma. Recife, Centro de estudos
freudianos de recife, 2008, p. 362
[8] Lacan, J. O Seminário, Livro 8, A transferência. Rio de Janeiro, Zahar, 2010 p. 303
[9] Arasse D., Histoire du corps, sous la direction de Georges Vigarello, Tome I, p.431.

[10] Lacan, J. O Seminário, Livro 8, A transferência. Rio de Janeiro, Zahar, 2010 275
[11] Lacan, J. O Seminário, Livro 9, A identificação, lição 9 de maio de 1962. Recife,
Centro de estudos freudianos de recife, 2003, p. 313
[12] Miller J.-A., «A economia do gozo», curso de 13 e 20 de maio, 3 e 10 de junho de
2009 de «A orientação lacaniana – Coisas de fineza em psicanálise», em A Causa
freudienne, n°77, Paris, Navarin, fevereiro de 2011, p. 143.
[13] Vinciguerra R.P., Femmes lacaniennes, Paris, Michèle, 2014, pp. 92-93.
[14] Ibid., p. 88.

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[15] Ibid.
[16] Lacan, J. O Seminário, Livro 16. De um Outro ao outro. Rio de Janeiro, Zahar, 2008,
p. 325
[17] Ibid
[18] La Cause du désir, n°91, Revue de psychanalyse, Paris, Navarin,
2015.
[19] Lacan, J. Joyce o sintoma, Outros Escritos Rio de Janeiro, Zahar, 2003, p.560
[20] Lacan J., Conferência em Genebra sobre o sintoma, publicado na revista opcao
lacaniana nº23 p. 6-16
[21] Miller J.-A., «Quelques réflexions sur le phénomène psychosomatique», Greps, Le
phénomène psychosomatique et la psychanalyse, 1986, Anolytica, pp. 125-126.
[22] Lacan J., «...»?, Écrits, Paris, Seuil, 1966
[23] Podemos ler comentários de Éric Laurent sobre esse sujeito no livro “O avesso da
biopolítica, uma escrita para o gozo”, publicado pela editora Contracapa, 2016.
[24] Lacan, J. O Seminário, Livro 10. A Angústia. Rio de Janeiro, Zahar, 2005, 259
[25] Lacan, J. “Subversão e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, Escritos,
Zahar, 1998, p.807
[26] Bichat X., Traité des membranes en général et de diverses membranes en particulier,
Richard, Caille et Ravier (Paris), 1799, [avec plusieurs rééditions ultérieures et
posthumes]
[27]

Texto original em francês:

COTTET, Serge. "Actualité du corps hystérique". Quarto, Revue de Psychanalyse, n. 114.


Publiée en Belgique, Octobre 2016. pp 17-22, disponível em: https://goo.gl/1w8Eot

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