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Pandemia, isolamento social e colapso global

RENATO NUNES BITTENCOURT*

Resumo:
O artigo analisa as reconfigurações sociais impostas pela necessidade de
isolamento social decorrentes da pandemia do COVID-19, assim como as
imperiosas necessidades de participação efetiva do Estado na salvação da
sociedade para que as carências materiais oriundas dessa crise global sejam
razoavelmente atenuadas em prol do bem da humanidade. Some-se ainda
críticas aos segmentos políticos obscurantistas e anticientíficos
mancomunados com discursos fascistas que tanto ameaçam a consecução
das políticas públicas convenientes para a efetivação do papel interventor do
Estado na ordem econômica.
Palavras-Chave: Pandemia; Isolamento Social; Economia; Estado.
Pandemic, social isolation and global collapse
Abstract:
This article analyzes the social reconfigurarion imposed by the need of social
isolation due to the COVID-19 pandemic, as well as the imperative needs of
the State’s effective participation in saving society from material shortages
originated by this global crisis so it is reasonably decreased for humanity’s
benefit. Furthermore, it adds criticisms to obscurantist and tricky anti-
scientific political segments, permeated by fascist speeches that threaten the
achievement of the public policies that would be convenient for the
effectiveness of a maximum State in the economic order.
Key words: Pandemic; Social Isolation; Economy; State.

*
RENATO NUNES BITTENCOURT é Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ;
Coordenador do Curso de Administração da FACC-UFRJ.

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Quando o conhecimento se transformar em poderoso instrumento do
progresso humano, ele se converterá em preocupação dos homens e
mulheres em todos os domínios da vida. Retirando suas energias dos
incomensuráveis recursos dos povos livres, ele não só vencerá
irrevogavelmente a fome, a doença e o obscurantismo, mas no próprio
processo de seu avanço vitorioso recriará a estrutura intelectual e
psíquica do homem (BARAN, 1984, p. 258).

Introdução moralismo seletivo dos bons costumes.


Apesar dos diversos avanços científicos Com efeito, preferem confiar em sua fé
e tecnológicos, apesar das maiores cega desprovida de boas obras. São
facilidades para a difusão do idiotas felizes que estão plenamente
conhecimento em uma configuração satisfeitos com sua ignorância
mundial globalizada, encontramos ainda petrificada, mas que se ressentem
diversas figuras políticas, celebridades quando são confrontados por
ignominiosas ou grupelhos ideológicos mentalidades esclarecidas que se
que navegam na contramão da pautam em fatos e evidências. Essa
racionalidade e do esclarecimento súcia virulenta não aceita o
social. São elementos intelectualmente contraditório ou a verdade que não
degenerados que fabulam teorias ratifica suas próprias opiniões
conspiratórias e visões de mundo estapafúrdias. A eclosão de uma
contrárias ao sadio bom senso. Esses pandemia é o cenário perfeito para que
vermes humanos odeiam a ciência, a toda sorte de discursos delirantes
razão e o conhecimento, e assim ocupem o imaginário das massas
pretendem confundir a sociedade com alienadas e ignorantes, manipuladas por
suas sandices criminosas. Essa chusma deformadores de opinião que pretendem
de imbecis nega o aquecimento global, assim gerar o caos cognitivo na
acredita que a Terra é plana, difama a sociedade.
eficácia das vacinas para o controle Não sou epidemiologista para analisar a
epidemiológico. Esses indigentes pandemia conforme os rigorosos
morais apresentam uma compreensão da critérios científicos exigidos para a
realidade niilista e obscurantista, não análise técnica de tal questão. Minhas
obstante muitas vezes se envolverem no palavras pretendem apenas contribuir
manto sagrado da religião e do para uma problematização que envolve

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eixos epistemológicos, sociais, do COVID-19. Países que, por
políticos, econômicos e gerenciais dessa irresponsabilidade governamental e
grande ameaça para a humanidade. A motivos antissociais, demoraram a
pandemia da COVID-19 é mais um realizar medidas de controle epidêmico
evento dizimador que exige a sofrem as consequências dessa
problematização de nossa configuração hesitação capital. Apesar de afetar com
hegemônica de Estado sob a égide do mais violência os idosos e pessoas com
desajuste ultraliberal e da doenças respiratórias preexistentes,
predominância dos interesses ninguém está a salvo desse vírus.
corporativos em relação aos sociais. Além das medidas profiláticas e dos
Uma pandemia não é apenas um procedimentos técnicos adequados para
problema médico, mas também político.
a contenção da virulência na estrutura
Antropologia do isolamento social social, a grande medida a ser adotada ao
longo de uma pandemia é a manutenção
Como infelizmente ocorre em todos os da serenidade. Discursos ideológicos,
casos pandêmicos, determinados povos preconceitos xenofóbicos e teorias
sempre se tornam o bode expiatório fabulosas apenas confundem as cabeças
dessas situações terríveis. O COVID-19 das pessoas mais suscetíveis e
apresentou as suas primeiras incidências prejudicam os esforços técnicos para a
na China, e logo iniciaram-se uma série realização dos devidos cuidados
de discursos xenofóbicos contra o seu sanitários. Contudo, não podemos
povo, imputado como culpado por esse também manter uma postura seráfica e
novo mal global. Nesse momento de acreditar que tudo vai bem no meio do
ódio étnico, qualquer ato é utilizado caos e que não seremos afetados,
para justificar as mais vis imprecações. transferindo apenas para outrem os
No caso chinês, os pretensos hábitos riscos de contágio. Por isso desde o
alimentares da população, em especial o início da conflagração de uma medida
consumo de uma mítica sopa de de isolamento social precisamos já
morcego. Como em um mundo adotar as prescrições técnicas
globalizado é muito difícil que a ameaça convenientes em caráter de urgência e
viral fique restrita em um só país, em apenas se fiar nas autoridades médicas/
pouco tempo a situação do COVID-19 científicas, menosprezando animais
se tornou pandêmica, ocasionando políticos descompromissados com o
grande letalidade em países que bem comum, empresários que visam
demoraram a adotar medidas sanitárias apenas a manutenção dos seus lucros, os
restritivas, infelizmente inevitáveis sensacionalismos midiáticos, os
nesse tipo de calamidade social. formadores de opinião irresponsáveis e
certos tipos de lideranças religiosas que
Toda pandemia coloca em xeque os
lucram com as convulsões sociais.
limites do cosmopolitismo. Fronteiras
nacionais fechadas, restrições de voos Nos esforçamos sobremaneira para
nos aeroportos, rigoroso controle de evitarmos a temida contaminação e nos
entrada e de saída em cada país. As submetemos forçosamente ao
ameaças de contaminação despertam isolamento social, limpamos
disposições pânicas entre nações sofregamente as mãos com álcool em
vizinhas. Vemos uma série de medidas gel (alardeada como a grande arma
de exceção adotadas para a contenção salvífica contra a COVID-19),

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estocamos alimentos, planejamos humana no perímetro domiciliar. São
atividades lúdicas para tornar a usuais situações de ansiedade, estresse,
monotonia desse longo tempo na angústia. Para vencer essas
clausura doméstica uma experiência adversidades existenciais pode-se
mais suportável possível. Na expansão recorrer aos passatempos, exercícios
da pandemia, evitar aglomerações, físicos, leituras, filmes, meditações,
encontros coletivos, não é uma recusa orações, práticas amorosas, manutenção
ao social, pelo contrário, é uma da casa. Vale sempre destacar que o
consciente afirmação da prevalência da isolamento social não é uma experiência
sociedade sobre nossa mera antropológica-midiática tal como um
individualidade. Na pandemia, reality show na qual vendemos uma
permanecer em casa é um ato político. imagem espetacular para os
Aproveitamos essa larga quantidade de espectadores. Tampouco é um spa no
dias e noites para colocar em ordem os qual relaxamos, somos massageados e
afazeres da casa, fortalecer (ou não) os desintoxicamos o organismo mediante
laços familiares, aprofundar os estudos, mudanças saudáveis de hábitos, ainda
iniciar novas leituras, ouvir música, que possamos fazer dessa experiência
assistir filmes, em suma, diversas de isolamento social um meio positivo
atividades que agradam ao ânimo e para transformar nosso modo de vida.
melhoram nossa qualidade de vida em Beijos, abraços e apertos de mão se
uma necessária reclusão. As exigências tornam inimigos da higiene social.
sanitárias de quarentena são obviamente Pessoas mais efusivas e calorosas
desagradáveis para nossas inclinações sofrem com o isolamento social e
pessoais. Festas são canceladas, eventos anseiam por encontros sem mais tardar.
esportivos adiados, saídas sociais Essa experiência traumática nos faz
impedidas, em suma, a vida prosaica é pensar na metáfora do porco-espinho.
suspensa até segunda ordem. Ações Se ficarmos demasiadamente próximos
paranoicas são bastante comuns nas uns dos outros, nos incomodamos; se
pandemias. Não apenas o uso contínuo nos mantermos afastados, sentimos
da máscara se torna uma condição solidão. O meio-termo está na distância
indispensável para a aceitabilidade equilibrada. Talvez nesses tempos de
pessoal diante do pavor da quarentena seja esse o meio-termo tão
contaminação, mas todo tipo de cuidado almejado. Contudo, ansiamos para que
para que fluidos corporais não atinjam possamos voltar ao jogo de
outrem. Nessas condições terríficas, aproximação e de distância que só a
uma tosse insistente ou um espirro sociabilidade normal proporciona e
descuidado podem se tornar atos festejarmos a vida em comum com
terroristas, para maior miséria dos todas as suas contradições. Já para
hipocondríacos. As medidas de pessoas imbuídas de espírito monástico
segurança sanitária são cruciais sempre, ou misantropos, a reclusão forçada
mas precisamos apenas atentar para não pelos imperativos do isolamento social
vermos o outro como um inimigo talvez seja vivenciada de maneira mais
biológico. suave, talvez até mesmo interpretada,
horribile dictu, como uma dádiva da
O isolamento social é incômodo, e natureza.
exige paciência de toda pessoa que se
encontra nessa situação de contenção

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Para muitos pais de família, permanecer fundamental. Contudo, a miserabilidade
com seus filhos aquartelados em casa das pessoas que sofrem de carências
por muitos dias seguidos é uma materiais básicas jamais pode passar
experiência exaustiva, pois estão despercebida, seja pelos poderes
acostumados ao ritmo acelerado da vida públicos, seja por nós mesmos. Como
urbana que mais afasta do que une as qualquer pessoa mentalmente saudável
pessoas e que torna a convivência visa sobreviver aos impactos de uma
efetiva bastante reduzida. Pais pandemia e sabe que o seu bem
workaholics e filhos hiperativos que individual também depende da
realizam diversas práticas salutares satisfação do bem alheio, a
como futebol, natação, balé ou curso de desassistência ao desconhecido é
língua suspendem suas atividades prejuízo social para todos, pois o risco
externas e assim modificam seus de derrota na imunização coletiva torna-
hábitos familiares. se altamente provável em tais
circunstâncias.
Os riscos sociais da pandemia
A pandemia sempre afeta violentamente Caberia ao Estado o papel de fornecer
favelados e pessoas em situação de rua. assistência social plena para livrar as
Não podemos desviar a consciência pessoas carentes da tragédia pandêmica.
para o fato de que incontáveis seres Todavia, como nossa máquina pública
humanos se encontram em condições está subjugada pelo vírus privatista, as
extremamente insalubres que tornam intervenções sempre são esquálidas e
praticamente impossível para elas não resolvem a raiz do problema
realizar os cuidados sanitários crônico de nossa miserabilidade social.
fundamentais. Pessoas sem saneamento Quando a gestão plutocrática da coisa
básico decente, pessoas que dormem ao pública não realiza o seu ofício, atores
relento, pessoas socialmente sociais solidários mitigam as carências
desassistidas, são como bucha de sanitárias. Alguns clubes esportivos, em
canhão nos surtos pandêmicos. O vírus, procedimento louvável, cedem os seus
expressão de uma microscópica força espaços para a alocação de leitos que
incontrolável da natureza, não segue acolherão pessoas infectadas. Porém, há
ideologias, mas seus impactos maléficos ainda instituições que poderiam ceder
são potencializados pela própria suas estruturas para a construção de
ideologia da sociedade capitalista, hospitais provisórios, acampamentos
excludente, seletiva e asséptica. para os sem-teto ou para pessoas que
Somente os bem-logrados socialmente habitam casas insalubres: as igrejas.
encontram mais chances de resistência Não faz sentido que os templos cristãos,
aos efeitos devastadores do COVID-19, cuja razão de ser reside no acolhimento
como também de qualquer epidemia litúrgico dos fiéis, fique com suas portas
voraz. Pela necessidade de fechadas diante do sofrimento cotidiano
distanciamento físico interpessoal no vivenciado pelos pobres, risco social
período de quarentena recomendada potencializado pela violência da
pela epidemiologia, não convém que pandemia. As grandes cidades estão
acolhamos em casa pessoas repletas de igrejas que poderiam acolher
desconhecidas. Não se trata de uma em conformidade às normas assépticas
política reativa, avessa ao outro, mas o de segurança todas as pessoas que
cumprimento de uma medida sanitária sofrem de carência domiciliar. Em

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tempos de indigência social e de risco processo consumista mediante a
viral, a prioridade é a acolhida ao pobre, obsolescência programa dos bens
depois a realização da missa ou do materiais. Para Elisabeth C. Odum e
culto: “Quando um homem entrega um Howard T. Odum,
pedaço de pão a um outro homem, se o
As pessoas que foram educadas
dom por bem dado e bem recebido, isso com ênfase nos direitos individuais
se assemelha a uma verdadeira podem ter um ponto cego na sua
comunhão” (WEIL, 2019, p. 103). visão de mundo, e não são capazes
A solidariedade cristã exige que essas de perceber que os desperdícios de
um indivíduo causam danos aos
pessoas sejam tratadas dignamente,
demais (ODUM & ODUM, 2012,
recebam remédios, roupas, alimentação,
p. 265).
afeto (ainda que à distância). Se o
comércio está de portas fechadas, não O desenvolvimento social, apesar de
faz sentido que igrejas de segmentos nunca ser plenamente sustentável, é
cristãos teologicamente duvidosos ponto inquestionável para uma política
estejam abertas para cultos. A fé pública comprometida com boa
verdadeira não se realiza na frequência ordenação democrática da vida.
física ao templo. Talvez alguns Saneamento básico, acesso aos recursos
pastores-ladrões queiram vender tecnológicos, afluência alimentícia e a
produtos abençoados como remédios prestação de serviços públicos jamais
para a cura da pandemia, assim como podem ser relativizados. Cabe apenas
não querem renunciar aos seus lucros que evitemos o desperdício das coisas
provenientes dos dízimos dos fiéis. disponíveis.
A longa permanência domiciliar pela Uma situação pandêmica torna o anseio
inerente falta de circulação social talvez narcísico pela individualidade uma
reconfigure nossos hábitos de consumo, violação do interesse comum. A
tornando-nos mais sustentáveis, mais pretensão de se manter a vida
frugais, mais responsáveis com o uso de descompromissada com o tecido social
recursos, evitando-se desperdício de é um delito. A calamidade pública exige
alimentos e reaproveitando-os de forma que o direito de ir e vir seja relativizado.
criativa. Habilidades gastronômicas são Diversos procedimentos de controle
despertadas nesses tempos de falta de operacionalizados pelo poder público se
recursos e crise de abastecimento. Não tornam inevitáveis para evitar a anomia
estamos (talvez) em uma economia de de pessoas e grupos que pouco se
tempos de guerra, mas o momento exige importam com as restrições sociais
medidas práticas similares. É concernentes ao processo de isolamento
infantilidade a pretensão de se manter social, e uma boa racionalização dessas
um padrão de consumo e de bem-estar medidas atenua o mal-estar moral desse
material em um período de crise monitoramento sanitário. Não
pandêmica, no qual certos produtos precisamos abater pessoas que dão
rareiam das prateleiras dos mercados. escapadelas de casa apesar das
Essas conjunturas sociais calamitosas prescrições oficiais. Saídas restritas para
promovem, forçosamente, a proposta de se fazer compras no mercado ou na
um decrescimento sereno e o repensar farmácia se tornam eventos
de nosso modelo social produtivista que sensacionais. É inegável também que
compreende a vida como um longo uma pandemia fortalece ainda mais as

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medidas de fiscalização dos corpos, A lógica de mercado contrária ao
aferição de temperatura corporal em bem-social
aeroportos, formação de cordões
sanitários e outros procedimentos afins. O grande idiota útil ao serviço dos
A assepsia individual mais do que imperativos do mercado não pensa na
nunca é um imperativo ético. O sabão é saúde da população, mas na
o instrumento da salvação pessoal. rentabilidade dos negócios escusos dos
Corpo limpo, sociedade limpa. Os plutocratas, alheios ao sofrimento social
paradigmas da sociedade decorrente não apenas da necessidade
disciplinar/sociedade de controle são sanitária de quarentena, mas também da
atualizados em nossa era perda da qualidade de vida. Para esses
ultratecnocrática. O controle da vida empresários rapinantes, a produção não
humana não é mais sobre a pode parar e assim os trabalhadores
subjetividade, a interioridade da alma, devem candidamente se expor aos
mas sobre a superfície do corpo, que riscos da contaminação viral para que a
apresenta seus perigos e fatores riqueza não deixe de fluir para as contas
contingentes que sempre se revelam bancárias das elites. Canalhas
ameaçadores para a ordem pública. endinheirados que fogem dos riscos da
Nasce assim uma ontologia da pandemia encastelados em suas
epiderme. mansões hermeticamente protegidas,
mas que percebem os seus empregados
As imperiosas necessidades impostas como animais que somente são valiosos
pelo enfrentamento epidemiológico para quando estão ao seu serviço. Conforme
que possamos neutralizar os efeitos do argumenta Jung Mo Sung,
COVID-19 e reduzir ao máximo as O rico que nunca teve contato
perdas humanas solapam o clássico direto com pobres não pode
discurso neoliberal de que não existe entender nem aceitar que é culpado
sociedade, apenas indivíduos pela pobreza. Pois ele se vê
Independentemente das motivações simplesmente como alguém que
éticas que se encontram por trás da exerceu com eficiência o lugar e a
cooperação e da solidariedade função econômica que lhe cabia. O
interpessoal na grande crise pandêmica problema do capitalismo não é a má
que exigem de cada individuo uma intenção ou a maldade do rico, mas
parcela de sacrifício de sua liberdade do sistema como tal, que concentra
riqueza e exclui os pobres pelo seu
social de ir e vir em prol do bem
próprio funcionamento (SUNG,
comum, esse grande esforço coletivo 2018, p. 227-228).
representa a superação de toda forma de
inclinação autocentrada, idiota, egoísta. Com discursos análogos aos dos
O fim da vida humana não é sua mera nazistas, esses empresários desdenham
sobrevivência pessoal, mas o do risco de perecimento dos
desenvolvimento de redes de trabalhadores submetidos aos efeitos da
cooperação em nome da promoção do contaminação viral, naturalizando
bem-estar social. possíveis mortes de milhares de pessoas
como eventos inevitáveis, pois a
produção precisa continuar, para maior
satisfação dos rentistas e dos acionistas,
os eleitos do paraíso selvagem do

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capitalismo tardio. Trata-se de uma A teoria econômica é, mais do que
revitalização da eugenia social, pois as nunca, um discurso ideológico (no
mortes de idosos atenuaria os rombos sentido mais banalmente negativo
previdenciários e os trabalhadores do termo) destinado a fazer com
que sejam aceitas as decisões dos
mortos diminuem as filas de
únicos que decidem: os monopólios
desemprego e a necessidade de suporte generalizados (AMIN, 2018, p.
econômico do Estado. A proposta de 167).
suspensão dos contratos de trabalho,
horrenda medida pró-mercado,
representa a necrofilia extrema dessa Os apólogos do economicismo
elite mesquinha, que não se importaria ultraliberal relativizam as mortes dos
em condenar uma grande massa humana trabalhadores em favor da manutenção
à morte por inanição. Em um momento produtivista do mercado, que não pode
grave que existe paz e comunhão social, ser interrompido. Contudo, mais do que
qualquer proposta política que cause nunca é fato que o mundo não está em
temor em uma população já exaurida uma situação ótima, e assim urge que os
pela incerteza existencial merece interesses humanitários prevaleçam
inapelável e literal defenestração. sobre a bolsa de valores e sobre os
Vincent de Gaulejac afirma que anseios empresariais. Permanecer em
casa durante a crise pandêmica não é
Gerenciar o humano como um
recurso, ao mesmo título que as
preguiça, tal como os facínoras fascistas
matérias-primas, o capital, os apregoam. Atordoada pela perda de
instrumentos de produção ou ainda capitais, a direita xucra realiza carreatas
as tecnologias, é colocar o para conclamar a população a
desenvolvimento da empresa como desobedecer às determinações sanitárias
uma finalidade em si, de isolamento social e retornar aos
independentemente do postos de trabalho, com a justificativa
desenvolvimento da sociedade, e de que só assim não haverá problema de
considerar que a instrumentalização carência de mercadorias. Conforme dito
dos humanos é um dado natural do anteriormente, na vigência de uma
sistema de produção (GAULEJAC,
pandemia o uso de recursos deve ser o
2007, p. 80).
mais racionalizado possível, e cabe ao
Para as classes capitalistas os poder público fornecer para os cidadãos
trabalhadores são meros servos que os bens necessários para a subsistência.
devem enfrentar os riscos de A sociedade inteligente deve deixar essa
contaminação para garantir os lucros turba empresarial reclamando sozinha
das elites, protegidas de todos os males. dos seus desgostos financeiros. A
Se for necessário que alguém morra, cupidez por lucro desse empresariado
que seja o trabalhador, polivalente, antissocial é a encarnação pura do viés
precário, descartável, substituível, ideológico, alheio aos critérios
conforme o discurso empresarial do científicos seguidos pela OMS e pelas
fascismo de mercado. O capitalismo, tal autoridades sanitárias locais. Esse
como se constata, jamais promoverá as egoísmo econômico é tão corrosivo que
condições sociais para o bem comum, e tais idiotas, desconhecedores do
as lutas de classes se reconfiguram em cotidiano da campanha epidemiológica
nossa era de insegurança global. no combate ao COVID-19, não sabem
Conforme argumenta Samir Amin, que os profissionais de saúde, em casos

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extremos, precisam escolher qual vida governos para que investimentos
será salva. Para Paul Farmer, maciços para o enfrentamento dos
males pandêmicos sejam efetivados.
O simples fato de os pobres estarem
muito mais vulneráveis à doença e Enquanto isso, tacanhos ministros
terem negado o acesso à saúde faz ultraliberais defendem a privatização
com que eles estejam muito mais absoluta da coisa pública brasileira
suscetíveis a serem vítimas dos como panaceia para resolver todos os
abusos contra os direitos humanos, nossos problemas, discurso bastante
independentemente de como esses conveniente para a força destrutiva de
abusos são definidos. Incluir os nosso fascismo de mercado, que apenas
direitos sociais e econômicos na pretende ajudar plutocratas, banqueiros
luta pelos direitos humanos ajuda a e investidores, em detrimento das
proteger os mais suscetíveis a massas humanas economicamente
sofrerem os insultos da violência
inviáveis.
estrutural (FARMER, 2017, p.
258).
Uma série de medidas rígidas devem ser
Primeiro a salvação da humanidade, adotadas pelo Estado para que a
depois a reconstrução econômica. De calamidade pública decorrente da
que adianta salvar a economia se houver pandemia seja atenuada. Acima de tudo
pilhas e pilhas de mortos das mais a concessão estatal de renda básica para
diversas famílias? Por isso a atuação os cidadãos (trabalhadores formais ou
interventora do Estado na economia é informais) para que possam, no vigor da
essencial. A histeria mercadológica recessão, adquirir os itens necessários
afirma que a baixa produção na vigência para subsistência. Dívidas bancárias dos
da pandemia gerará desemprego. Então cidadãos devem ser anistiadas (e não
cabe ao Estado usar suas reservas para meramente postergadas). Urge a
manter a maior totalidade possível da estatização de hospitais privados para o
população reclusa em casa, provendo- atendimento da grande massa humana
lhe salário compatível com suas contaminada. A provisão de alimentos e
demandas básicas para a boa de medicamentos deve ficar sob
conservação da vida. Não cabe controle dos órgãos estatais para se
qualquer preocupação com controle evitar problema de abastecimento,
fiscal de gastos. Mesmo proeminentes distribuição e abuso de preços. Impostos
economistas que sempre defenderam sobre bens de consumo devem ser
rigorosos ajustes fiscais afirmam que a zerados. Cabe também a
ordem do dia da pandemia do COVID- comercialização a preço de custo dos
19 é salvar a sociedade e que cabe ao remédios. Cestas básicas devem ser
Estado esse papel providencial mediante distribuídas para famílias de baixa
investimento de dinheiro público em renda. Consumo de água, luz e gás
todos os setores, ajudando a manter devem permanecer grátis por tempo
empresas, empregos e assistindo indeterminado, havendo, em
trabalhadores que permanecem contrapartida, conscientização para uso
corretamente em casa para evitar o risco racionalizado desses recursos. Uma
de contágio. Mesmo o FMI, bastião das alternativa viável para o fechamento
medidas de austeridade econômica, provisório do comércio para que não
enfatiza a necessidade urgente de ocorra maiores riscos de contaminação
flexibilização das metas fiscais dos dos transeuntes e funcionários seria a

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redução do seu horário de atendimento semântica que impede o esclarecimento
ao público. Afinal, mesmo no período sobre os cuidados sanitários para tratar a
de isolamento social ocorrem COVID-19. Indicação de remédios
eventualidades que exigem rápidas falsos, procedimentos epidemiológicos
saídas de casa para que as necessidades equivocados, corrida desenfreada aos
urgentes sejam supridas, medidas produtos considerados eficazes para o
paliativas que manteriam em atividade tratamento dos sintomas, uma série de
parcial negócios bastante lucrativos e emissões horrendas que atrapalham as
importantes para o desenvolvimento ações técnicas dos profissionais de
local da sociedade. Contudo, a palavra saúde que se esforçam heroicamente
final deve sempre estar com as para tratar dos pacientes da pandemia.
autoridades sanitárias, não com a casta
política. Para terminar essa seção, não podemos
deixar de afirmar que um presidente
O descrédito irracionalista anti- delirante, mantenedor de relações
humanista promiscuas com milicianos, adorador de
Para os fascistas, os obscurantistas, os torturadores, é um desserviço para a
fundamentalistas do mercado, os razão política e para a coisa pública.
reacionários, evidências científicas são Você pode ser de direita, esquerda,
desprovidas de legitimidade. Somente centro, liberal, conservador, menos
as ideias doentias fabricadas por seus ignorante. Vitória nas eleições não
correligionários são autênticas. Dados significa passe livre para uma gestão
técnicos e objetivos são nulos para essa presidencial desastrosa. Quando um
chusma energúmena. A verdade se energúmeno “eleito democraticamente”
encontra na voz do seu líder mítico que (ainda que com a ajuda de difamações
os conduzirá como gado ao abismo. As políticas e de mentiras absurdas,
opiniões insensatas de influenciadores convenientemente escamoteadas pelo
digitais são mais valorizadas que as tribunal eleitoral) viola o senso
explanações dos médicos. Essa republicano de condução do poder
canalhada não hesita em propagar uma executivo, deve ser retirado do cargo.
série de atrocidades nas redes sociais e Trata-se do grande vírus político que
nos aplicativos, apregoando que muitas mata diariamente a sociedade brasileira,
outras doenças recentes motivaram mais para além de toda pandemia que nos
mortes do que o COVID-19 e que os aflige, que não é uma simples gripe, tal
esforços epidemiológicos empregados como o idiota com faixa presidencial
no combate à pandemia são propaga de maneira tão leviana. Para
procedimentos histéricos, demagógicos vencermos as agruras de uma pandemia,
e eleitoreiros. O número de mortos em necessitamos de uma liderança
uma pandemia deve ser sempre comprometida com o bem-estar da
lamentado, não importa a sua sociedade e não de um presidente
quantidade. Somente psicopatas irresponsável que é um efetivo inimigo
necrófilos relativizam esses valores. O do gênero humano.
anti-humanismo presente nesse tipo de
discurso mereceria, em uma situação
política normal, interdição imediata.
Essa irresponsabilidade criminosa da
direita xucra é a culpada pela confusão

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Considerações finais propagados por imbecis engravatados
que prosperam politicamente através da
Vemos cada vez mais o embate entre a
decadência da vida humana em
razão, o conhecimento e a ciência, de
sociedade.
um lado, e de outro a ideologia ao
serviço de interesses antissociais. Ao
contrário de todo bom senso, Referências
orientações epidemiológicas e técnicas,
AMIN, Samir. A implosão do capitalismo
vemos uma figura irracionalista, contemporâneo: outono do capitalismo,
degenerada, niilista e autoritária primavera dos povos? Trad. de Wanda Brant.
defender a desinformação como política Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2018.
pública em nome da satisfação escusa BARAN, Paul A. A economia política do
de interesses alheios ao bem comum. É desenvolvimento. Trad. de S. Ferreira da
óbvio que o isolamento social é uma Cunha. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
medida desagradável, mas eficaz FARMER, Paul. Patologias do Poder: saúde,
para evitarmos maiores riscos da direitos humanos e a nova guerra contra os
pandemia que afeta o mundo. Por isso pobres. Trad. de Alexandre Andrade Martins.
tanto enfatizamos a formação de São Paulo: Paulus, 2017.
lideranças que conduzam as GAULEJAC, Vincent de. Gestão como doença
organizações do futuro comprometidas social: ideologia, poder gerencialista e
com a democracia econômica, a fragmentação social. Trad. de Ivo Storniolo.
Aparecida: Ideias e Letras, 2007.
inclusão social, a diversidade, o
empreendedorismo sustentável, o ODUM, Elisabeth C. & ODUM, Howard T. O
cuidado com o meio ambiente, a declínio próspero: princípios e políticas. Trad.
de Enrique Ortega. Petrópolis: Vozes, 2012.
afirmação da dignidade da pessoa
humana e a preservação incólume dos SUNG, Jung Mo. Idolatria do dinheiro e
direitos humanos: uma crítica teológica do
direitos trabalhistas. Quando ocorrem novo mito do capitalismo. São Paulo: Paulus,
grandes crises globais que afetam a 2018.
preservação da vida humana,
WEIL, Simone. Espera de Deus. Trad. de
percebemos a importância do Karin Andrea de Guise. Petrópolis: Vozes,
investimento em pesquisas de ponta em 2019.
saúde, educação, ciência, tecnologia,
gestão pública, pois é o conhecimento o
verdadeiro motor da transformação Recebido em 2020-03-27
Publicado em 2020-03-28
social, não preconceitos ideológicos

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