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Democracia, ciência e

políticas públicas no
contexto da COVID-19
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Palavras-chave
COVID-19, democracia, políticas públicas, MMP

A política pública sobre epide- rapidamente, aumentando chances Klaus Frey 1


Professor Titular de
mias como é o caso da propagação de cometer equívocos, eventual- Políticas Públicas na
da COVID-19, que por seu caráter mente com efeitos severos sobre o Universidade Federal
do ABC e pesquisador de
global foi classificada como pan- bem-estar da sociedade. A soció- produtividade do CNPq,
demia, lida com extremas incer- loga israelita Eva Illouz2 fala da desenvolvendo pesquisas
nas áreas de políticas
tezas sobre a possível evolução intrusão da política na ciência, públicas e ambientais,
no tempo, afetando um conjunto de da contaminação da ciência pela governança pública,
democracia e desenvolvi-
políticas públicas que precisam política. Existe o grande risco mento sustentável.
ser mobilizadas para a mitigação que a pressa e o ativismo cientí- Recentemente, editou o
livro Politics and con-
de seus efeitos, além de envolver fico impliquem em futuras decep- flict in governance and
interesses de ordem econômica, ções e uma perda de confiança na planning: theory and
practice, pela Routledge
social, ecológica e ética1. ciência que, em diversos países Taylor; Francis Group,
como no Brasil e nos EUA, já se (com Ayda Eraydin).
Existe uma alta dependência dos Professor colaborador
encontra sob ataques permanentes do Projeto GovernAgua -
governos do conhecimento produ-
dos atuais governantes. SARAS Institute -
zido pela ciência. A política e InterAmerican Institute
for Global Change Rese-
a sociedade esperam da ciência Os governos, nos seus extremos, arch (IAI).
um conhecimento superior, de- tendem a confiar inabalavelmente
clarações capazes de orientar e na ciência para tomar as suas
conduzir nossas ações, sobretudo decisões, buscando, de algum
as políticas públicas do Estado. modo, se desresponsabilizar por
Todavia, nós nos confrontamos com eventuais equívocos que podem
afirmações conflitivas, controvér- ser cometidos; ou ao contrário,
sias acadêmicas, correções con- ignorá-la, contrariando aberta-
tínuas de avaliações por parte de mente as advertências da ciên-
diferentes cientistas, oriundos cia. Este é o caso do presidente
de diferentes áreas de conheci- Bolsonaro, que, motivado por in-
mento. A velocidade das transfor- teresses eleitorais e de poder
mações atropela o funcionamento ou por uma cegueira ideológica
habitual da ciência. Enquanto a generalizada, contesta franca-
ciência demanda tempo para le- mente as orientações da comuni-
vantar dados, analisar, contes- dade científica, até se expondo e
tar, revisar e finalmente, validar expondo outros abertamente aos
os resultados obtidos, seguindo riscos do contágio, estimulando
padrões e normas processuais ri- e participando de manifestações
gorosos que dão robustez e con- e aglomerações públicas, além de
fiabilidade às afirmações e inter- desencadear conflitos com minis-
pretações dos dados levantados, a tros competentes, governadores
política, em tempos de crise, não e prefeitos.
permite e não concede este tempo.
De fato, a tomada de decisão, no
A necessidade de agir e de tomar
caso da COVID-19, se mostra de
decisões de forma instantânea,
fato delicada ao envolver esco-
na medida em que os números mudam
lhas “trágicas”, caracterizadas,
e os acontecimentos se precipi-
nas palavras de Peters3 (p. 27),
tam, coloca a própria ciência sob
por demandar “opções em favor de
forte pressão de tomar posições
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um grupo na sociedade, [que] produzem ine- e municípios. E as relações de solidariedade
vitavelmente privações para outros membros já vêm se enfraquecendo na sociedade com a
da sociedade”. Ações restritivas como o polarização e radicalização política que
confinamento das pessoas nas suas casas, tomou conta do país desde o impeachment do
enquanto por um lado salva vidas, sobre- governo Dilma, mas parece se agravar ainda
tudo dos grupos de maior vulnerabilida- mais à medida que o coronavírus está avan-
de, desacelerando o processo de propagação çando “do Einstein para o SUS”6.
do vírus e, consequentemente, aliviando a
Considerando a Macrometrópole Paulista, o
pressão sobre o sistema de saúde pública.
problema se torna ainda mais grave, visto
Por outro, pode, se for mantido por um tempo
que se trata de uma região fortemente in-
prolongado, levar empresas à falência, des-
terconectada e interdependente, com fluxos
truir postos de trabalho, contribuir para
intensos entre municípios e regiões. Mas onde
o aumento da pobreza e da violência e, de
cada governo municipal acaba agindo por si,
forma geral, para o acirramento dos confli-
enquanto assiste, perplexo, a confrontação
tos tradicionais entre gerações e classes
bizarra entre um presidente negacionista e
sociais (embora o mesmo deva ocorrer sem
irresponsável e um governador inclinado para
tais medidas proibitivas).
o autoritarismo tecnocrático, ambos aparen-
Podemos distinguir três principais condi- temente incapazes de articular e coordenar
ções que favorecem a efetividade das polí- as ações, promovendo um diálogo democrático
ticas de mitigação dos efeitos da COVID-19: com a sociedade, fomentando a cooperação e
a qualidade preexistente dos serviços pú- dando orientações aos municípios e comuni-
blicos de saúde e de assistência social; a dades locais.
transparência governamental, transmitindo
Torna-se crucial de a União, os estados e os
mensagens claras e inequívocas dos gover-
municípios se juntarem para conjuntamente
nantes promovendo confiança na ação estatal;
tomarem decisões claras, desenvolverem es-
o grau de solidariedade entre os diferentes
tratégias coordenadas de combate à COVID-19,
setores sociais afetados de forma diferen-
baseado em um diálogo aberto e transparente
ciada.
com a sociedade civil, apoiado pelo conhe-
No primeiro ponto, o Brasil se beneficia ain- cimento científico que vem se consolidando
da da contínua consolidação dos sistemas de nacional e internacionalmente e em uma estra-
políticas sociais que ocorreu nas últimas tégia clara de comunicação com a população.
décadas, embora as políticas de austeri- O que está em jogo não são apenas as vidas de
dade reforçada pela Emenda Constitucional milhares de brasileiros ameaçados pelo vírus
95/2016, que limita por 20 anos os gastos e o aprofundamento da crise econômica, mas
públicos, tem enfraquecido fortemente os também o próprio futuro da democracia e de
nossos sistemas de proteção social4. Quanto nossa capacidade de vivermos juntos de forma
à clareza e transparência governamental pacífica e solidária nos tempos vindouros em
assistimos uma “cacofonia das autoridades que, com as mudanças climáticas em curso,
[provocando] um pesado estorvo no momento crises devem se tornar o ”novo normal”.
de enfrentar a pandemia”5, não havendo con-
sonância entre as esferas da União, estados

1 - CAMPANA, P.; GÓMEZ M. E. Ciencia, coronavirus y democracia 4 - BICHIR, R.; STUCHI, C.G. (2020). A assistên-
(Qué importante que es lo poco que necesitamos). 15/15\15, cia social e a pandemia. Gestão, política e socie-
Revista para una nueva civilización, 2020. Disponível dade. São Paulo, Journal Estado de São Paulo. 2020. Dis-
em: <https://www.15-15-15.org/webzine/2020/04/04/cien- ponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/
cia-coronavirus-y-democracia-que-importante-que-es-lo-po- gestao-politica-e-sociedade/a-assistencia-social-e-a-pan-
co-que-necesitamos/?fbclid=IwAR0en8s4YqEYXerUcqIoH1yvptX- demia-contribuicoes-de-uma-politica-relegada/?utm_
nE4VXNBT0oRPG6tNndpvFWZkdyr-Ck68>. Acesso em: 10 abr. 2020. source=estadao%3Afacebook&utm_medium=link&fbclid=IwAR-
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2 - ILLOUZ, E. Reagieren weiblich geführte Staaten besser Acesso em: 14 abr. 2020.
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kultur/2020-04/corona-pandemie-frauen-lockdown-soziolog- pico da pandemia. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/
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antes-do-pico-da-pandemia.html>. Acesso em: 12 abr. 2020.
3 - PETERS, B.G. (2015). Advanced introduction to public
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COVID-19. Piauí – online. 2020. Disponível em: <https://
piaui.folha.uol.com.br/do-einstein-para-o-sus-rota-letal-
da-COVID-19/>. Acesso em: 14 abr. 2020.

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