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Artigo | A volta forçada às aulas presenciais e a

imunidade de rebanho
Isto é não apenas um escândalo, mas um crime cometido em nome do
lucro e permitido pelas leis do livre mercado

Gaudêncio Frigotto
Brasil de Fato | São Paulo (SP) | 30 de Julho de 2020 às 18:43

Autoridades e grupos empresariais que estão defendendo a volta forçada às aulas presenciais no
Brasil são os mesmos que defendem a imunidade de rebanho - Alan Santos/PR
Acabo de ler uma nota técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos (Dieese), chamada "Educação: a pandemia da Covid-19 e o debate da
volta às aulas presenciais". Após detalhada análise do tema, com dados estatísticos sob
diferentes ângulos, a conclusão segue rigorosamente as recomendações dos cientistas e da
maioria, quase absoluta, dos chefes de Estado do mundo. “O foco das preocupações das
autoridades públicas e das organizações da sociedade civil há de ser fixado na preservação da
vida e da saúde das pessoas, para se evitar que a falta de ação conjunta e eficaz dos poderes
públicos, condene milhões de crianças e adultos a uma estação ainda maior de privações”

Se o leitor prestar atenção verá que as autoridades e grupos empresariais que estão defendendo a
volta forçada às aulas presenciais no Brasil são os mesmos que defendem a imunidade de
rebanho. Não importa se isto aumenta em milhares de mortes que poderiam ser evitadas. Neste
particular, os estudos demonstram que, quando a maioria dos governadores e prefeitos se opôs à
insensatez do governo federal e orientaram o isolamento e o distanciamento social, foram
poupadas milhares de vidas.

Mas é incrível que se reitere o argumento irracional de que é um vírus que vai atingir a
maioria e por isso melhor liberar geral o quanto antes. A questão é que em todos os países de
governos comprometidos com a vida adotou-se a decisão humanitária e ética do isolamento e
distanciamento social para que o sistema de saúde pudesse atender a todos com qualidade e
dignidade diminuindo de forma significativa o número de perdas humanas.

Esta é a questão central e a súplica diária de médicos, enfermeiros, bombeiros e motoristas de


ambulância que estão no front para salvar vidas expondo as suas. Quem não percebe que se trata
disso é analfabeto humano e de forma consciente ou inconsciente participa do genocídio social.
A cada dia que passa fica claro que a perda de vidas atinge muitíssimo mais os grupos sociais
que estão no nível de pobreza ou miséria. Um descaso com os pobres, jogados ao seu destino?
Isto não configuraria uma postura de eugenia social de cunho neofacista?

A volta presencial às aulas antes da vacina pressupõe, pelo que indicam os estudos científicos
em todo mundo, a taxa mínima de mortes de covid-19 e a necessidade de testes em massa. No
Brasil há 20 dias temos uma média de mais de mil vidas perdidas. Que garantia teremos de
que essa média não persista? E quantos alunos, pais e professores não terão perdido entes
queridos?

Um mau exemplo sobre a volta forçada às aulas presenciais é do prefeito do Rio de Janeiro
que, diante da pressão do patronato, deu liberdade para que as escolas privadas iniciem no
dia 3 de agosto as aulas. Pelo que o sindicato das escolas particulares vem divulgado com frases
de profundo cinismo, a decisão do prefeito foi a de ouvir a pressão do lado mais forte. Frases
como a que segue não são certamente dos professores, das equipes pedagógicas e do pessoal de
apoio.

“Estudos só confundiram. Trancar todos em casa não é ciência. Confinar é desconhecer, ignorar,
subtrair vida, é fragilizar, é debilitar, mexer com o emocional”. O que a Organização Mundial
da Saúde (OMS) e as instituições cientificas que estudam epidemias como a da covid-19
recomendam é o distanciamento social, e não o confinamento. O que estarão ensinando aos
jovens, nessas escolas, se seus donos desdenham da ciência e dizem que os estudos sobre a
covid-19 “só confundem”?

Por certo o patronato está pensando nas perdas, mas quem não está perdendo? Sabemos que há
um grupo reduzido de megaempresários que lucrou muito no período da desgraça humana da
pandemia. Isto é não apenas um escândalo, mas um crime permitido pelas leis do livre mercado.
Mas que perda é maior que a vida de mais de 90 mil pessoas e que podem chegar ao dobro se
não houver uma nova atitude das autoridades e da coletividade perante a pandemia? Também
perda e sofrimento dos desempregados e precarizados que chegam, aproximadamente, a 30
milhões de trabalhadores. As pequenas e médias empresas que são as que mais empregam
estão falindo por falta de apoio governo federal.

A saída da pandemia não se dará pela lógica do quero salvar o que é meu e o resto que se dane.
A nota técnica do Dieese não desconsidera que é preciso buscar soluções para o setor produtivo,
mas de forma coordenada por todos os poderes e instituições da sociedade civil. O que é menos
indicado é colocar milhões de crianças e milhares de professores e funcionários em lugares
fechados, mesmo com a distância de dois metros. Quem será responsabilizado se uma única
criança ou jovem, entre as que irão contrair a covid-19 falecer? E se for uma professora, um
professor, um funcionário? A resposta e a responsabilização deverão ser de quem autorizou e
quem optou por iniciar aulas presenciais.
A possibilidade de encaminhar as soluções é tarefa e dever do Estado e, portanto, dos que foram
eleitos ou nomeados para tanto. Mas o que vimos nas declarações do ministro mor da política
econômica e de outros colegas na patética reunião ministerial de 22 de abril caminham em
direção contrária. O Ministério da Saúde, que deveria liderar a coordenação nacional do
enfrentamento da pandemia, está com ministro interino há meses. O Ministério da Educação a
quem caberia coordenar as decisões, em acordo com estados e municípios, se transformou numa
trincheira ideológica dos que defendem que a escola ensina, mas não deve educar. Nada
diferente se espera do novo ministro nesta matéria pelo que foi divulgado de suas ideias sobre
educação.

O sensato é que os pais não mandem seus filhos à escola enquanto não houver segurança de
riscos mínimos. O preço de um erro nesta decisão poderá ter consequências irreparáveis. Não se
trata de confinar os filhos, mas cuidar de sua saúde e da família. Também é sensato que as
instituições científicas, culturais e sindicatos utilizem de todos os recursos jurídicos para não
expor os professores, as equipes pedagógicas e o pessoal de apoio ao risco de contágio.

O que significa perder um ano de escolaridade perante esta situação humanitária? E seria perder
um ano ou, como sugere o pensador americano Noam Chomsky, uma oportunidade para a
geração de jovens apreender em que mundo vivemos e que seu futuro depende da sua
capacidade para alterar as relações sociais e a lógica destrutiva que impera nesse momento
histórico?

*Gaudêncio Frigotto, filósofo e educador. Professor titular aposentado da Universidade


Federal Fluminense (UFF). Atualmente professor associado no Programa de pós-graduação
em Políticas Públicas e Formação Humana na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UFRJ).

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