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ensaio

PANDEMIA, POLÍTICAS PÚBLICAS


E APRENDIZAGEM SOCIAL
perspectivas e abordagens
menos convencionais
PANDEMIC, PUBLIC POLICY AND SOCIAL LEARNING
perspectives and unconventional approaches

Luiz Flavio Arreguy Maia Filho


https://orcid.org/0000-0003-0420-5102
UFRPE, Doutor em Economia

Jurandir Alves de Almeida Júnior


https://orcid.org/0000-0001-8492-7898
Prefeitura do Recife, médico veterinário, mestrando em Saúde Única pela UFRPE

RESUMO ABSTRACT
O desafio civilizatório representado pela pan- The civilizational challenges presented by the
demia do coronavírus demanda, no Brasil e Coronavirus pandemic, in Brazil and other en-
em outros ambientes marcados por tensio- vironments marked by tension and polariza-
namentos e polarizações, novas análises e tion, demand new analysis and interpretations
interpretações, com vistas a revigorar o diá- to enhance constructive dialogue and help
logo propositivo e favorecer a construção de interactive learning. By reviewing conceptu-
aprendizagens. Ao resgatar bases conceituais al bases less frequently visited among us and
menos difundidas entre nós e aplicá-las a um applying them to a context of policy imple-
contexto de enfrentamento direto da Covid-19, mentation in order to fight COVID-19, this es-
o presente ensaio propõe reflexões críticas e say proposes critical reflections and identifies
procura identificar oportunidades de apren- what may be extraordinary opportunities for
dizagem social, mudanças de comportamento social learning, behavioral changes and insti-
e desenvolvimento institucional. tutional development.
Palavras-Chave: Pandemia; Políticas Públicas; Keywords: Pandemic; Public Policies; Be-
Comportamentos; Instituições; Saúde Única. haviors; Institutions; One Health.
Estudos Universitários: revista de cultura, v. 37 | n. 1 e 2 | Dez. 2020

INTRODUÇÃO
Pouco mais de um mês após o registro mundo inteiro correndo atrás dos mesmos
equipamentos e mesmos materiais. Esse é o
oficial da primeira infecção pelo co-
quadro geral. Essa é a queixa do paciente [...]
ronavírus no Brasil, o então titular do A história natural dessa doença está sendo
Ministério da Saúde, Luiz Henrique escrita pela sociedade (MANDETTA, 2020).
Mandetta, declarava em entrevista co-
letiva, em 3 de abril de 2020: A síntese do ministro – na verdade,
um desabafo – antevia como diferentes as-
Temos uma doença infecciosa, respiratória,
que [se] transmite; que o vírus é competen-
pectos da doença Covid-19 e da realidade
te. Se [nos] juntarmos, vamos fazer conta- brasileira, interagindo, dariam contornos
minação uns dos outros; alguns não terão bem específicos ao nosso enfrentamento
absolutamente nada, nem saberão que têm do desafio global. Desde aquelas primei-
a doença; outros terão formas leves; um nú-
ras semanas, contudo, já havia sinais de
mero expressivo terá uma doença que vai le-
vá-los ao hospital; e um número vai [ser leva-
ritmos bem distintos de adoecimento na
do] ao CTI... e um número vai a óbito. Ponto. comparação entre regiões vizinhas, mun-
No momento, não tenho vacina. Ponto. No do afora – a despeito das condições so-
momento, não tenho um remédio que eu cioeconômicas, frequentemente, similares,
possa acreditar que, usando esse remédio
além de estruturas urbanas, sanitárias e até
em larga escala, eu consiga tratar [a doença]. 43
Ponto. No momento, não tenho testes que
hospitalares semelhantes. A que se deve-
eu consiga fazer na velocidade que eu pode- riam os melhores desempenhos? Frutos
ria imaginar, [n]um país dessas dimensões[,] de um governo melhor? Comunidades
para correr atrás do paciente contaminado. mais experientes ou mais bem instruí-
Ponto. No momento, não tenho como pe-
das? Diferentes cepas do vírus?
gar determinados locais no Brasil – que tem
milhões de pessoas em favelas, com quar-
Em Taiwan, país próximo ao local
tos minúsculos e quadros sociais – para fa- do surto original na China e território
zer isolamento. Esse é o quadro. E tenho um com alta mobilidade inter-regional de
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cidadãos, uma combinação excepcional organizações e governos regionais ter-


de políticas públicas antiepidêmicas, uso minam por se dividir: entre a indigna-
de novas tecnologias, boa comunicação ção e o apoio ao distanciamento social;
e forte adesão da população tornou o quanto ao uso obrigatório de máscaras;
país uma referência mundial de sucesso quanto à adoção de medicamentos e tra-
(WANG; NG; BROOK, 2020). Por aqui, duas tamentos sem prescrição médica. É bem
substituições de ministros da saúde, 70 verdade que atores globais, como o pre-
milhões de pessoas em programas emer- sidente francês Emmanuel Macron e a
genciais de renda, cerca de 5 milhões de primeira-ministra alemã Angela Merkel,
infectados e mais de 140 mil óbitos em ocuparam o Twitter para articular con-
não mais que 6 meses; o Brasil, que ha- sensos em torno de visões mais serenas
via retornado ao Mapa da Fome em 2018, sobre um futuro pós-pandêmico (RUFAI;
com mais de 10 milhões de pessoas em BUNCE, 2020). No Brasil, infelizmente,
condição de pobreza extrema, registra- parecem nos faltar interlocutores e bases
va fortes altas nas taxas de desocupação mínimas para um diálogo propositivo.
(13,8%) e de subutilização da sua força Quando a interlocução se torna viciada
de trabalho (30,1%)1. e contraproducente, ela tende a ser aban-
Diante daquilo que costuma ser cha- donada. Dado o contexto de instabilidade
mado de uma parada abrupta da econo- política, polarização, recessão, crise fiscal e
mia, quase totalmente revertida ao final retrocessos em nossa agenda de inclusão
de agosto, boa parte dos nossos gestores social, parece oportuno levar a discussão
e analistas dedicavam atenção integral sobre a temática pandêmica para novos
a aspectos regulatórios conjunturais, terrenos – sejam eles ramos menos co-
como os protocolos de reabertura de se- nhecidos da economia, sejam abordagens
tores econômicos. Não raras vezes, eles inovadoras para a saúde pública. Afinal,
se apoiaram em interpretações questio- enfoques criativos podem revigorar a ca-
náveis de gráficos e curvas epidêmicas pacidade de nos ouvirmos e, com algu-
para concluir, com total convicção, que ma sorte, construirmos aprendizagens.
uma paralisação mais longa da econo- A leitura do presente ensaio constitui
mia ceifaria mais vidas que o próprio um investimento na oportunidade aci-
coronavírus. A supressão da transmis- ma presumida: após os resgates de teo-
são comunitária da Covid-19 e a criação rias e conceitos-chave insuficientemente
de uma resiliência estrutural no sistema difundidos no Brasil, mas de relevância
público de saúde, focos estratégicos de para a questão pandêmica, propõe-se a 44
atenção na maioria dos países, não têm releitura de uma vivência específica, ex-
sido sequer cogitadas no Brasil. perimentada por equipes que atuaram
Com o reforço inquietante das men- na linha de frente em políticas urbanas
sagens em redes sociais, indivíduos, contra a Covid-19. Como retorno de tal

1 Silva (2020) traz discussão, dados e explicações da trajetória recente brasileira, no tema da fome. Já os dados
de desocupação e subutilização da força de trabalho são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
referentes ao trimestre terminado em julho de 2020.
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investimento, espera-se uma maior dis- redução acelerada da biodiversidade;


posição para se apreciar a extensão e a e outras que há séculos nos atormentam:
riqueza das aprendizagens possíveis, violência, pandemias e fome.
aprendizagens que as lastimáveis per- É possível que olhares afeitos ao redu-
das da pandemia não deveriam ofuscar. cionismo questionem a categorização de
“problema perverso” para essa pandemia:
afinal, o desafio seria, sob esses olhares,
BASES CONCEITUAIS INCOMUNS:
A QUESTÃO PANDÊMICA SOB resumível ao desenvolvimento de vacinas
OUTRAS ÓTICAS eficazes; mas acontece que os problemas
Os pontos levantados pelo ex-ministro perversos “reagem” às soluções reducio-
da saúde e a própria história natural da nistas: como medir os riscos biológicos
doença no Brasil suscitam, de fato, con- e sistêmicos do abreviamento de prazos
siderações que vão muito além da epi- para a introdução da vacina? Como evitar
demiologia, das medidas emergenciais e a interferência política nas etapas de apro-
mesmo da leitura “hidráulica” de fluxos vação? Como promover sua confiabilida-
econômicos; com o avanço da doença de? Que implicações jurídicas adviriam
sobre territórios e populações, interagem da aplicação de vacinas aprovadas com
demandas e condições socioeconômicas, parâmetros distintos dos que recomen-
políticas, financeiras, tecnológicas, jurídi- dam o conhecimento científico? Como
co-regulatórias, culturais e até geracionais. produzir e distribuir a vacina em escala
Trata-se, portanto, do que se convencio- global? Como impedir o comércio ilegal
nou denominar “problema perverso” – de vacinas? Os questionamentos mostram
tradução livre do termo “wicked problem” que o tratamento de um “problema per-
(MOON, 2020). Problemas dessa natureza verso” precisa passar pela consideração de
são: (i) difíceis de ser consensualmente como se articulam, harmônica ou confli-
delimitados; (ii) caracterizados por in- tuosamente, as instituições e os compor-
terdependências de fatores e multiplici- tamentos individuais – especulação essa
dade de causas; (iii) de responsabilidade que será desenvolvida adiante.
ampla e, com frequência, difusa; (iv) en- Talvez uma dúvida ainda mais inquie-
voltos em opacidade, no que tange à pre- tante seja quanto à ênfase excessiva na
visibilidade dos efeitos de intervenções. suposta solução – uma vacina –, podendo
“Problemas perversos” são questões retardar a identificação de causas sistê-
civilizatórias. Além das epidemias, nossa micas mais profundas e, possivelmente,
breve jornada no século XXI nos apre- mais urgentes. Afinal, como negar que os 45
senta uma gama variada de tais adversi- sucessos recentes na contenção de múl-
dades; algumas realmente novas, como a tiplos surtos epidêmicos com potencial
depleção de recursos ambientais e ecos- pandêmico2 ajudem a entender a subes-
sistemas, o aquecimento global, a re- timação inicial da Covid-19 por líderes
sistência microbiana a antibióticos e a de diversos países desenvolvidos? Como

2 O manual Managing Pandemics (OMS, 2018) traz uma lista de todos os surtos com potencial pandêmico que
foram contidos no século XXI.
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Como ignorar que os surtos


pandêmicos, com frequência,
têm origem em zoonoses
associadas à urbanização não
planejada e ao manejo irregular
de animais de criação?

ignorar que os surtos pandêmicos, com pioneiras sobre aspectos psicológicos das
frequência, têm origem em zoonoses decisões nas organizações, tendo criado
associadas à urbanização não planeja- o conceito de racionalidade limitada; ele
da e ao manejo irregular de animais de investigava não apenas as limitações, mas
criação? Não conseguiríamos identificar também as tendências cognitivas do ser
padrões nas interações entre instituições humano, que o levam – com frequência –
e comportamentos estabelecidas bem a agir de modo distinto do presumido na
diante de nós? Economia e na Administração (segundo
o comportamento do agente maximiza-
dor). Daniel Kahneman, por sua vez, foi
SIMON, KAHNEMAN E THALER:
HUMANIDADE NO COMPORTAMENTO escolhido em 2009 por contribuições ao
ECONÔMICO estudo das decisões sob incerteza (Teoria
A Economia Comportamental (EC) vem do Prospecto). O princípio da aversão à
se tornando rapidamente um dos cam- perda, segundo o qual as pessoas realizam
pos mais influentes da Teoria Econômica, avaliações subjetivas assimétricas ante
tendo sido reconhecida com três Prêmios ganhos e perdas de um mesmo valor, tem
Nobel3 , dois deles neste século XXI; são sido muito empregado em pesquisas que
pesquisas que têm inspirado revisões de envolvem desde o redesenho de produ- 46
conceitos, modelos e métodos, atraindo tos financeiros até inovações em políticas
uma nova geração de economistas para públicas de saúde. Richard Thaler, mais
as investigações interdisciplinares. recentemente (em 2017), recebeu o prê-
Em 1978, Herbert Simon já havia mio em reconhecimento a um conjunto
sido homenageado por suas pesquisas de contribuições suas à EC, incluindo a

3 As referências contidas ao longo do texto sobre os agraciados com o Prêmio Nobel de Economia e suas
pesquisas sintetizam muitas informações advindas do sítio eletrônico mantido por The Nobel Prize Foundation,
disponível em www.nobelprize.org.
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identificação experimental de traços da vivemos no momento, no sentido de que re-


sistimos a mudanças, somos pouco capazes
psicologia humana que poderiam favo-
de prever preferências futuras, somos suscetí-
recer, de forma ética e transparente, me- veis a memórias distorcidas e somos afetados
lhores decisões e comportamentos. Os por estados psicológicos e emocionais. Por
chamados “nudges” (termo usualmen- fim, somos animais sociais, com preferên-
te traduzido como “empurrõezinhos”) cias sociais, como as expressas na forma de
confiança, altruísmo, reciprocidade e senso
podem ajudar as pessoas a não caírem
de justiça, e nós temos um desejo por coe-
nas armadilhas cotidianas de suas pró- rência pessoal e um apreço por normas so-
prias mentes – como exemplos, nossos ciais (SAMSON, 2015, p. 26, tradução nossa).
hábitos alimentares, a irregularidade na
prática de atividades físicas, a posterga- Sob tal ótica, não é tão difícil inter-
ção da poupança para a aposentadoria, pretar fenômenos como a controvérsia
entre outros. político-ideológica em torno do uso da
Como se pode imaginar, os econo- hidroxicloroquina, por exemplo, bem
mistas hoje estão muito mais propensos como de outros medicamentos indica-
a considerar a natureza psicológica das dos sem sustentação médico-científica;
preferências e do juízo que, em última muitos dos vieses cognitivos e sociais
instância, impactam a determinação e envolvidos encontram-se devidamente
mesmo a ganância dos indivíduos. Vale estudados e documentados4. Vale reite-
conferir, nesse sentido, a extraordinária rar que se trata de tendências cognitivas
síntese de Samson (2015), na obra que da condição humana (universais), ainda
constitui um bom ponto de partida para que culturas, vivências e contextos es-
novos pesquisadores interessados na EC pecíficos possam atenuar a frequência
(ÁVILA; BIANCHI, 2015): e a intensidade de suas manifestações.
Por outro lado, a EC resgata outros
Segundo a Economia Comportamental, as
pessoas nem sempre são indivíduos egoís-
caracteres da experiência humana que
tas e calculistas, com preferências estáveis e a diferenciam drasticamente do cha-
bem-definidas, de modo que muitas de nos- mado homo economicus – versão sinté-
sas escolhas não são o resultado de delibe- tica do indivíduo, definido pela otimi-
ração cuidadosa. Em vez disso, nosso pen-
zação do bem-estar individual, despido
samento tende a sofrer com conhecimento
e cognição insuficientes, a ser submetido à de dimensões culturais, éticas, políticas
incerteza com frequência e a ser impactado e religiosas. Em alguma medida, o novo
de modo significativo pelo contexto das de- ramo da pesquisa econômica se alinha à
cisões. Nós somos inconscientemente in-
segunda obra mais importante de Adam 47
fluenciados pela informação imediatamente
disponível na memória, por sentimentos ge-
Smith, considerado o pai das Ciências
rados automaticamente e por informações Econômicas; afinal, em sua Teoria dos
mais evidentes ao nosso redor, e nós ainda sentimentos morais (1759), o pensador

4 Merece destaque, nesse caso, o “favoritismo seletivo” (“ingroup bias”) e o chamado “efeito Dunning-Krueger”;
se a natureza do primeiro viés citado é de fácil dedução, o mesmo não se pode afirmar do segundo, cabendo
uma breve explicação: as pessoas com pouco conhecimento sobre um assunto não avaliam precisamente
a magnitude de sua ignorância; assim, elas tendem a se iludir e cometer erros perfeitamente evitáveis. Ver
Arceneaux (2012).
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escocês investigou profundamente a na- dentro de uma lógica de reforços (positi-


tureza e o papel social da empatia. vo ou negativo), na TSC ganha destaque
Em todo caso, à medida que a EC a observação de determinados modelos
influencia instituições e políticas pú- sociais: pais, professores, figuras de au-
blicas ao redor do mundo (THE WORLD toridade ou emocionalmente significa-
BANK, 2015), fica cada vez mais evidente tivas para o observador.
que, ao saírem de sua zona de confor- Na dinâmica batizada de “determi-
to, os economistas parecem ter retoma- nismo recíproco”, três grupos de fatores
do uma longa e histórica jornada – de tenderiam a interagir e embasar a ação
novas e melhores interações com ou- dos indivíduos: os comportamentais; os
tras ciências. cognitivo-pessoais; e as influências con-
textual-sociais. Ao investigarem a pre-
BANDURA: APRENDIZAGEM SOCIAL dominância de determinados fatores,
E AQUISIÇÃO DE COMPORTAMENTOS profissionais da saúde e formuladores de
O canadense Albert Bandura tornou-se, políticas públicas vêm, há décadas, de-
aos 43 anos, o mais jovem presidente da senvolvendo e realizando intervenções
Associação Americana de Psicologia. (individuais ou coletivas) com maiores
Mais de 30 anos depois (em 2002), era probabilidades de sucesso – em favor
um dos 10 psicólogos mais citados do tanto do abandono de comportamentos
mundo (HAGGBLOOM et al., 2002). Na prejudiciais à saúde, quanto da manuten-
extraordinária carreira, o pesquisador ção de hábitos saudáveis e da prevenção
da Stanford University foi sempre reco- de recidivas (BANDURA, 2004).
nhecido pela originalidade e relevância Para Bandura (2004), a categoria dos
de suas contribuições, como a Teoria da fatores comportamentais inclui os in-
Aprendizagem Social (mais tarde am- centivos (reforços positivos e negativos
pliada para Teoria Social Cognitiva) e os subsequentes a uma ação); a intenciona-
conceitos de “autoeficácia” e “desengaja- lidade do próprio indivíduo – que, por-
mento moral”. Frequentemente aplicadas tanto, é visto como ativo na aquisição,
no campo da saúde humana5 , as duas manutenção ou mudança de comporta-
primeiras contribuições acima citadas mento –; e as habilidades comportamen-
trazem elementos particularmente ri- tais, ou seja, o estoque de experiências
cos para a leitura da questão pandêmica. observadas ou vividas que terminam por
A Teoria Social Cognitiva (TSC) ofe- instrumentalizar uma ação.
rece, entre outras coisas, uma compreen- Entre os fatores cognitivo-pessoais, 48
são detalhada dos processos cognitivos, encontram-se, além do nível de conhe-
fatores e condições que favorecem ou pre- cimento sobre um comportamento e as
judicam a aquisição de comportamentos expectativas de resultados, duas inovações
pelas pessoas. Em contraste com o sim- conceituais admiráveis: a “eficácia coletiva”
plismo das hipóteses de comportamentos e a “autoeficácia”. A primeira diz respeito
adquiridos por reflexo ou exclusivamente à relutância de uma pessoa em incorrer

5 A presente subseção foi escrita com base na excelente síntese de McCalister, Perry e Parcel (2008).
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no esforço de mudança comportamental percebidos, seja através da observação


quando ela se percebe desacompanhada, da vivência de modelos sociais signifi-
divergente dos seus ou dos que a cercam. cativos, as mudanças de comportamento
Já a “autoeficácia” consiste na confiança de uma pessoa tendem a responder, em
que uma pessoa deposita em si mesma intensidade, à carga emocional regis-
para realizar certa ação e alcançar os re- trada em sua memória. Nesse sentido,
sultados esperados. Essencial, na visão quem pode estimar os efeitos de meses
de Bandura, para a aquisição de com- de confinamento nos comportamentos
portamentos, a autoeficácia poderia ser de saúde de crianças e adolescentes? Que
reforçada pela destreza adquirida com impactos terá, na vida de um cidadão, a
um volume maior de experiências, pela perda de um pai ou de uma mãe para
observação de modelos sociais signifi- a Covid-19? Que significados passará a
cativos e mesmo pela persuasão verbal. ter o uso de máscaras na vida cotidiana
Finalmente, as influências contextual- pós-pandêmica? As cargas emocionais
-sociais na aquisição de comportamentos das experiências que vivemos são, sem
envolvem as barreiras e oportunidades sombra de dúvida, extraordinárias.
cotidianas, o apoio social (ou sua ausên-
cia) e a prevalência de aprendizagens ELINOR OSTROM E A NOVA
observacionais. São, portanto, elementos ECONOMIA INSTITUCIONAL
do meio em que se insere uma possível Em 2009, pela primeira vez uma mulher
ação, e que a tornam – ao olhar do in- foi agraciada com o Prêmio Nobel em
divíduo – promissora, ou não. Economia, embora o prêmio tenha sido
Merece destaque um último aspecto compartilhado com Oliver Williamson.
das pesquisas relacionadas à TSC, para Os pesquisadores americanos haviam
a consideração da questão pandêmica: contribuído para uma melhor compreen-
seja a partir de uma experiência direta, são do papel desempenhado por arran-
com riscos ou incentivos pessoalmente jos institucionais e pela governança, no

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as mudanças de comportamen­to
de uma pessoa tendem a responder,
em intensidade, à carga emocional
registrada em sua memória
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funcionamento tanto de organizações disputas acadêmicas entre os economis-


individuais como do sistema econômico. tas que depositam fé inarredável seja no
Muitos dos principais artigos de livre mercado, seja no Estado, para resol-
Ostrom tinham foco na gestão com- ver problemas complexos da sociedade.
partilhada dos chamados “bens comuns”: Na medida em que se considere a
os cardumes de um rio, os recursos am- saúde global – coletiva, pública, trans-
bientais de uma floresta e os recursos nacional – um bem comum planetário,
hídricos de uma região são exemplos parece especialmente lastimável reco-
de ativos econômicos que tendem a ser nhecer que o principal órgão promotor
esgotados quando predominam com- da governança para a melhor gestão des-
portamentos competitivos (oportunis- se recurso, a Organização Mundial da
tas) entre os agentes/exploradores. A Saúde (OMS), venha atuando sob ataques
pesquisadora, no entanto, observava e ameaças de suspensão de financiamen-
que certos arranjos bem razoáveis entre to, em plena crise6.
as partes interessadas podiam emergir
em determinadas circunstâncias – me- A SAÚDE ÚNICA EM CONSTRUÇÃO
nos incomuns do que admitia a eco- Segundo relatório recente das Nações
nomia convencional. Nessas situações, Unidas, o fortalecimento da Saúde Única
tais arranjos acabavam por estabelecer figura entre as dez principais medidas a
uma gestão potencialmente duradoura serem promovidas mundialmente para
dos ativos. Entre as condições aponta- se evitar a recorrência de crises pan-
das, estavam o bom funcionamento dos dêmicas, como a que vivemos (UNEP,
mecanismos de participação na tomada 2020); trata-se, sobretudo, de um prin-
de decisões, o monitoramento dos ati- cípio geral para a promoção da saúde
vos compartilhados, o estabelecimento e do bem-estar de forma integrada, ou
de escalas gradualistas para a aplicação seja, reconhecendo-se a inseparabilida-
de sanções proporcionais à gravidade de de dos aspectos humanos, ecológicos e
eventuais violações do acordo, além de ambientais para a existência de uma ci-
mecanismos gerais de resolução de con- vilização saudável.
flitos. Mais tarde, outros pesquisadores A origem do princípio remonta ao
incluíram no rol de condições aspectos ano de 2008, quando dois órgãos das
como a efetividade da comunicação en- Nações Unidas – a OMS e a Organização
tre as partes e o aperfeiçoamento dos das Nações Unidas para a Alimentação
incentivos à reciprocidade na condu- e a Agricultura (FAO) – e a Organização 50
ção de esforços. Mundial de Saúde Animal (OIE) lança-
Em linhas gerais, os achados des- ram a iniciativa One World, One Health.
sa vertente institucional da economia Desde então, um conjunto amplo de es-
sempre contrastaram, pelos seus graus forços foi realizado e alcançou sucesso
de maturidade e verossimilhança, com parcial (MACEDO COUTO; BRANDESPIM,

6 A OMS vem sendo criticada em reiteradas declarações do Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump,
sobre a maneira como lidou com a gestão chinesa do surto original epidêmico na cidade de Wuhan. Ele declara
ter suspendido a participação do seu país no financiamento anual da agência.
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2020): por um lado, houve ampla vali- O ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA


dação científica do conceito, com um NA LINHA DE FRENTE: VIVÊNCIA

conjunto amplo e diversificado de evi- E APRENDIZAGENS

dências empíricas confirmando graus Como muitas outras agências regionais e


superiores de eficácia e eficiência das locais, a Secretaria de Saúde da Prefeitura
intervenções; elas vão desde campanhas do Recife e, em particular, o seu Centro
articuladas de vacinação humana e ani- de Vigilância Ambiental iniciaram o ano
mal em ambientes rurais, passando pela monitorando as notícias internacionais,
identificação de impactos sistêmicos com atenção muito voltada para as me-
com o mal uso de antibióticos na pro- didas recomendadas pela OMS e as estra-
dução de alimentos, até a mensuração tégias dos países que primeiro registra-
dos benefícios para a saúde humana da vam infecções. Não havia, até então, um
convivência com animais de estimação conjunto padronizado de ações para en-
e do contato com ambientes naturais não frentar a epidemia, mas o objetivo geral
degradados. Por outro lado, seguem mi- era detectar eventuais entradas de via-
noritários os casos de adoção da Saúde jantes internacionais infectados, rastrear
Única na formulação de políticas públi- contactantes e impedir a chamada trans-
cas nacionais, permanecendo algo inci- missão comunitária – quando não mais
piente quanto às articulações interseto- é possível mapear as origens do contágio
riais e multidisciplinares. Diante disso, e conter uma sequência de infecções. Os
especialistas e defensores da Saúde Única conhecimentos e as notas técnicas da
costumam recomendar medidas como Agência Nacional de Vigilância Sanitária
a introdução do conceito em diferen- (Anvisa), conferindo respaldo jurídico
tes grades curriculares para a formação a essa ou àquela técnica, vinham sendo
profissional; o estabelecimento de ba- construídos simultaneamente ao dese-
ses legais que legitimem a Saúde Única nho local das estratégias.
como abordagem de política pública; e a Havia muita preocupação com a ex-
formação de redes intersetoriais, envol- posição dos servidores, e não apenas com
vendo profissionais (gestores públicos e os responsáveis pela limpeza e sanitização
privados) e acadêmicos. de áreas como o Aeroporto ou o Porto
Caberia, à luz do que se discutiu nas do Recife. Os profissionais da vigilância
subseções anteriores, alertar: pode ser ambiental têm suas atividades distribuí-
inoportuno esperar uma ampla e efetiva das em zonas que cobrem toda a cidade;
adoção da Saúde Única na formulação obviamente, temiam-se tanto a infecção
51
de políticas públicas a partir da simples e o adoecimento da equipe quanto sua
disseminação dos conhecimentos aci- eventual atuação inadvertida como ve-
ma mencionados. Tudo indica tratar-se, tor de propagação da doença.
também nesse caso, de uma complexa A partir de 17 de março de 2020, com
interação entre vários fatores que favo- o estabelecimento da transmissão comu-
recem ou obstaculizam a aquisição de nitária em Pernambuco, iniciaram-se as
comportamentos e a construção insti- exigências de distanciamento social e de
tucional de governança. higienização frequente das mãos – o uso
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de máscaras era recomendado, naquelas aquisição já puderam se beneficiar de um


primeiras semanas, apenas para as pes- decreto específico, que previa a dispen-
soas sintomáticas. Um decreto munici- sa de licitação. Apesar disso, ainda havia
pal, editado no dia seguinte (18 de março alguma insegurança acerca de quais as
de 2020), determinava o fechamento de melhores especificações para os produtos
escolas, do comércio e de serviços não a serem utilizados. Foram, inicialmente,
essenciais. O nível de inquietude entre 15 equipamentos costais e 2 equipamen-
as equipes da vigilância ambiental se ele- tos motorizados tripulados.
vou, uma vez que a maior parte das suas O primeiro uso dos equipamentos em
atividades envolvem visitas a residências caráter emergencial se deu antes mesmo
e contato direto com a população. Um da conclusão e aprovação da proposta de
processo muito cuidadoso de diálogo intervenção sistêmica de sanitização para
foi realizado entre gestores e membros a região metropolitana. O óbito de um
dessas equipes, buscando-se sensibilizar paciente por Covid-19 em unidade básica
e conscientizar a todos sobre a missão de saúde arriscava criar pânico, exigin-
institucional a que estavam vinculados, do uma ação imediata que devolvesse a
além dos riscos e das responsabilidades tranquilidade a profissionais, pacientes
que precisariam assumir no enfrenta- e familiares. A ação foi bem-sucedida e
mento da doença. a unidade voltou a operar, normalmente.
Ao mesmo tempo que se estudavam Concluído e aprovado o programa
as ações de sanitização na China e na metropolitano de sanitização de am-
Europa, o aprendizado decorrente da cri- bientes, sob responsabilidade do Centro
se provocada pela chikungunya, anos an- de Vigilância Ambiental, o primeiro ob-
tes7 , deixava claro o caráter essencial da jetivo era assegurar a sanitização diária
prontidão e da rapidez nas intervenções. A de todas as unidades básicas de saúde da
necessidade de sanitização dos ambientes cidade. No entanto, o objetivo foi sendo
por onde passaram os primeiros infecta- progressivamente ampliado, passando a
dos e seus contactantes indicava os pri- incluir paradas de ônibus, terminais ro-
meiros passos da intervenção. A prática doviários, delegacias, fóruns de justiça e
adquirida no uso de equipamentos utili- outros locais de atendimento à popula-
zados com inseticidas para o combate a ção, como agências da Caixa Econômica
arboviroses (dengue, zika, chikungunya), Federal e Casas Lotéricas, chegando até
semelhantes aos empregados na saniti- os institutos de longa permanência para
zação de ambientes, era uma vantagem; idosos – em certos casos, mediante re- 52
por outro lado, havia urgência na aqui- quisições do Ministério Público.
sição de equipamentos específicos num Já nas primeiras ações, uma série
momento em que diversas organizações de novas rotinas e protocolos de se-
também os buscavam – com forte impacto gurança (envolvendo o uso correto de
sobre os custos. Os primeiros processos de EPIs, máscaras e álcool em gel, além do

7 No segundo semestre de 2015, foram registrados os primeiros casos autóctones (quando a doença é contraída
na região de residência do indivíduo) de infecção pela chikungunya em Pernambuco.
Estudos Universitários: revista de cultura, v. 37 | n. 1 e 2 | Dez. 2020

O ser humano [...] escondido por trás da


máscara e do equipamento de proteção
convivia (e ainda convive) diariamente
com os adoecimentos e os óbitos

distanciamento social, da atenção aos (e ainda convive) diariamente com os


toques em maçanetas etc.) precisou ser adoecimentos e os óbitos, dentro e fora
trabalhado com os agentes, organizados dos seus horários de atuação profissio-
em equipes responsáveis por cada um nal. O fato é que a carga emocional das
dos três turnos diários, além dos plan- vivências de toda a comunidade era (e
tões aos finais de semana. Nada disso te- tem sido) muito grande, contribuindo
ria sido possível, claro, se não tivessem para o despertar de uma sensibilida-
sido superados inúmeros obstáculos na de maior para os riscos das doenças de
aquisição e na logística (distribuição, hi- origem animal, para a importância das
gienização e manutenção), por exemplo, práticas de higiene na proteção de si e
de um número muito maior de macacões dos outros e para as relações da nossa
protetores do que dispunha o órgão, até saúde com a qualidade dos ambientes
então. Obviamente, tudo dependia do pa- em que vivemos.
trocínio da liderança máxima da área, de À medida que outros órgãos da admi-
sua aderência às diretrizes científicas e nistração pública demandavam a saniti-
da sua disposição para mobilizar todos zação de seus espaços para a retomada
os recursos administrativos e financei- de suas atividades presencias, eles pas-
ros que fossem necessários. A curva de savam não apenas a constar na lista de
aprendizado era acelerada para todos, ambientes a serem periodicamente visita-
por estrita necessidade. dos, mas suas próprias práticas e equipes
Observou-se, desde o início, um grau de limpeza interna também precisavam 53
extraordinário de engajamento dos agen- ser instruídas: por meio de visitas diag-
tes; sua seriedade, seu rigor e seu capri- nósticas e verdadeiras estratégias para-
cho na condução das atividades de sa- didáticas, orientavam-se a identificação
nitização, não raras vezes, surpreendiam de locais e pontos de maior risco, o uso
quem acompanhava aqueles trabalhos. seguro de produtos eficazes, e o empre-
O ser humano – familiar, filho, mãe ou go, na frequência adequada, das técni-
pai – escondido por trás da máscara e cas necessárias à garantia da segurança
do equipamento de proteção convivia dos servidores e demais cidadãos. Desse
ensaio

modo, as equipes de sanitização assumiam relatada. Cabe aqui, dado o escopo do


cotidianamente seu papel de multiplica- presente texto, apenas abrir caminho e
dores de conhecimentos e habilidades. exemplificar a propriedade e o potencial
O processo de aprimoramento das dessas conexões para o desenvolvimento
equipes de sanitização contava ainda, de de comportamentos e instituições.
um lado, com a frequente atualização da O reconhecimento de que as ações de
base geral de conhecimento sobre o co- sanitização constituem intervenções no
ronavírus, e, de outro, com a incorpora- tratamento de um “problema perverso”
ção de saberes como os provenientes da implica, em primeiro lugar, o reconhe-
medicina veterinária – campo de atua- cimento da necessidade de avaliações
ção prévia e de formação de diversos criteriosas dos resultados alcançados
membros das equipes. Exemplos disso em diferentes contextos, ou que envol-
são a familiaridade com o manuseio do veram diferentes agentes e públicos.
produto saneante mais utilizado (clore- Infelizmente, a tendência burocrática
to de benzalcônio) e a adoção do cha- brasileira conduz, na prática, a esforços
mado pedilúvio: recipiente disposto na de avaliação sob orientação quase sem-
entrada de certos ambientes, contendo pre corretiva. A frequência das denún-
químicos para sanitização dos calçados cias contra gestores públicos, por vezes
dos entrantes – ambas as práticas, cor- com base em evidências inconsistentes,
riqueiras na avicultura. pode resultar no bloqueio de um valioso
Ao final de setembro, os gestores do diferencial das agências públicas efica-
Centro de Vigilância Ambiental estimam zes: a inteligência.
que as equipes tenham superado a mar- Os estudos da economia comporta-
ca de 100 mil ações de sanitização, tendo mental avançaram muito, nas últimas dé-
em vista a média do número de ações, cadas, na compreensão dos processos de
entre 700 e 800, que passaram a ser con- tomada de decisão sob risco; um gestor
duzidas diariamente, desde as primeiras de órgão público, como a secretaria de
semanas. Esses gestores registram, sem saúde de um município, instado a deci-
dificuldade, a disseminada percepção de dir sobre a rápida aquisição de equipa-
uma profunda mudança na autoimagem mentos e produtos químicos que estão –
de todos os envolvidos. Eles se viram pro- circunstancialmente – desaparecendo
tagonistas de um enfrentamento histó- do mercado, precisa, na realidade, esco-
rico, tiveram de lidar com seus próprios lher entre se expor aos riscos jurídicos
medos e anseios, e seguiram adiante, dia da ação ou da inação. Essa não parece 54
após dia, por entenderem o impacto so- uma maneira consistente, para se dizer o
cial de suas atividades. mínimo, de promover comportamentos
e instituições inteligentes no combate a
RELEITURA DA VIVÊNCIA, A PARTIR uma crise como a atual.
DAS BASES CONCEITUAIS Ainda em linha com a leitura estrutu-
Os construtos apresentados anteriormente ralista de Ostrom, é importante dizer que
encontram, de fato, inúmeras possibilida- as mudanças nos processos de controle e
des de conexão e aplicação para a vivência fiscalização públicos no Brasil precisam
Estudos Universitários: revista de cultura, v. 37 | n. 1 e 2 | Dez. 2020

avançar mais8, seguindo tendências le- suas ações, suas autoimagens e a imagem
gislativas internacionais; trabalhando social que conquistaram os tornam mo-
melhor a formação e os mecanismos de delos sociais, multiplicando-se no tem-
boa governança nas atividades de fiscais po os benefícios de suas contribuições.
e procuradores; construindo protocolos Por fim, o óbvio: não deve haver ar-
e experiências de avaliação positiva dos gumento mais forte em favor da Saúde
gestores com melhor desempenho; esta- Única do que as vivências e os apren-
belecendo, por fim, uma dinâmica cons- dizados oferecidos por esta pandemia.
trutiva de comportamentos e institucio- A sanitização de ambientes confere, na
nalidades em favor da eficiência – e não verdade, saliência a um quadro riquíssi-
da aversão ao risco jurídico – na tomada mo de aprendizados sociais: o combate a
de decisões estratégicas. Enquanto essa um inimigo invisível; os riscos associa-
linha de reformas avança pouco, e nos dos ao manejo irregular e ao abandono
atemos a demandar maior disponibili- de animais em nossas periferias urbanas;
dade orçamentária para este ou aquele o avanço criminoso sobre reservas na-
programa, seguem as epidemias de den- turais de espécies que acabam se adap-
gue, chikungunya, zika e Covid-19, com tando ao ambiente urbano e produzindo
o esgotamento de um dos nossos mais impactos na saúde coletiva; a experiên-
valiosos bens comuns: a saúde coletiva. cia direta da população com a revisão
Sob a luz da TSC, como se antecipou, dos seus hábitos de higiene e com o uso
vale destacar a significância e o extraor- de máscaras, para a proteção de si e dos
dinário conjunto de conhecimentos, ha- outros: todas essas realidades, e ainda
bilidades e atitudes legados pelas equipes outras, de elevada carga emocional, po-
de sanitização. Oficinas de treinamento, dem e devem constituir pilares para a
consultorias ou assessorias de especia- construção de comportamentos e ins-
listas internacionais dificilmente seriam tituições de Saúde Única.
capazes de conquistar mesmo uma fra-
ção do desenvolvimento comportamen- CONSIDERAÇÕES E INQUIETAÇÕES FINAIS
tal experimentado por esses agentes. Em 2020, dezenas de milhões de pessoas,
Frequentemente comparados a soldados em todo o mundo, submergiram em ter-
em uma guerra, essas pessoas não ape- mos socioeconômicos aos patamares da
nas merecem reiterado reconhecimen- pobreza. No Brasil, um ambiente políti-
to social; elas se qualificaram a ser mais co-ideológico marcado pelas limitações
ouvidas pelos que são eleitos para legis- de nossas lideranças já nos tornava inca- 55
lar e gerir as políticas sociais. pazes – mesmo antes da pandemia – de
Os heróis do enfrentamento pandê- impedir retrocessos na agenda de inclu-
mico – que, na verdade, encontram-se em são social e de emancipação econômica
diferentes setores – constituem um acer- da população. Apressamo-nos em buscar
vo vivo de competências. O impacto de soluções para os sintomas econômicos

8 Silva, Couto e Abreu (2018) fazem o resgate das etapas e das diretrizes no processo de aperfeiçoamento dos
controles internos do setor público brasileiro.
ensaio

de curto prazo; relegamos a um futuro Wuhan, a cidade ao leste da China


incerto o enfrentamento das causas de que será eternamente lembrada como
nossas mazelas. epicentro do surto de coronavírus, não
Entretanto, a natureza da institucio- é, como muitos pensavam a princípio,
nalidade brasileira, com seu federalismo uma área subdesenvolvida de vivências
de conflitos, a recorrência de crises insti- provincianas. A cidade exibe característi-
tucionais entre os poderes da República e cas semelhantes às metrópoles do Brasil
o ativismo regulatório desacompanhado e do mundo: grande população urbana,
de pragmatismo, encontra nesta devas- intenso comércio regional e internacional,
tadora experiência pandêmica interes- integração a centenas de vilas rurais por
santes novidades. O enfrentamento da rodovias, e a grandes cidades do planeta
Covid-19 por aqui, por mais precário, por dezenas de voos diários. No mundo
regionalmente heterogêneo e marcada- de periferias integradas, Wuhan e o surto
mente insuficiente que seja, constitui pandêmico serão, a partir de agora, um
uma excepcional semente de aprendi- símbolo da globalização sem governan-
zagens e comportamentos. Buscou-se ça; aquela a partir de cuja configuração
argumentar, no presente ensaio, por que nossas limitações cognitivas e o subde-
tais sementes podem germinar e gerar senvolvimento de nossas instituições po-
institucionalidades mais robustas e in- dem resultar, reiteradamente, em apren-
clusivas do que as que vivenciamos em dizados sociais tardios. Sem previdência,
500 anos de história. com alguma sorte, teremos resiliência.

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Texto de autores convidados. Recebido em: 5 out. 2020.


MAIA FILHO, Luiz Flavio Arreguy; ALMEIDA JÚNIOR, Jurandir Alves de. Pandemia, políticas públicas e
aprendizagem social: perspectivas e abordagens menos convencionais. Estudos Universitários: revista de cultura,
Recife, v. 37, n. 1/2, p. 42-57, dez. 2020. ISSN Edição Digital: 2675-7354.

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