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REFLEXÕES

PARA 2021
O futuro depois
do coronavírus

Artigos de Jim O’Neall, Laura de Freitas, Thomas Lovejoy,


Joana Freitas, Paul Volberding e Robert Zubrin
APRESENTAÇÃO

O ano de 2020 entrou para a história como um período atípico, em que


instituições, governos e as relações humanas foram levados ao limite. Desde as
primeiras notícias de que um estranho vírus mortífero surgido na metrópole chinesa
de Wuhan havia começado a se espalhar — primeiro por vizinhos asiáticos e depois
pela Europa —, o conceito de normalidade entrou em colapso. As primeiras cenas dos
imensos hospitais de campanha chineses, montados a toque de caixa para acolher os
doentes, o desespero do país para produzir equipamentos de auxílio respiratório e
máscaras descartáveis deram espaço a imagens de cruzeiros em quarentena, hospitais
lotados de pacientes, médicos à beira da estafa, caixões enfileirados à espera do
sepultamento em cemitérios acima da capacidade. Notificações de casos — e mortes
— surgiram mundo afora e o Brasil tornou-se escala do novo coronavírus em fevereiro,
praticamente ao mesmo tempo em que a crise sanitária foi qualificada como pandemia.
As consequências desse desastre ainda são desconhecidas e o fim das medidas de
contenção do vírus só deve acontecer com a chegada de vacinas contra a doença. E
mesmo com o imunizante disponível, é fato que as mudanças engendradas nos últimos
dez meses deixarão marcas permanentes, além de provocar profundas reflexões sobre
que caminhos queremos — e podemos — seguir.
Esse é o espírito dos seis artigos que compõem esta publicação — dois de autoras
brasileiras e quatro de colaboradores internacionais —, com observações sobre a
pandemia e os resquícios que deixará para o futuro. São textos que discutem como
conceitos arraigados sobre o conhecimento técnico-científico, as diretrizes que regem
a economia das nações e mesmo a noção de gravidade para as outras doenças foram
subvertidos em 2020. Trata-se de um conteúdo reflexivo, propício à virada de ano que
se avizinha.
Aparentemente isolados entre si, os artigos retratam o estranhamento da
convivência com o coronavírus em áreas diversas do conhecimento. É o que acontece
com as impressões do ambientalista Thomas Lovejoy, um dos mais respeitados do
mundo, e as do economista Jim O’Neill, criador do conceito dos Brics, vistas sob o
signo do isolamento social, das restrições de deslocamento e de uma ameaça contagiosa
e mortífera. Profissionais como o engenheiro aeroespacial Robert Levin, especialista
em estudos que embasam uma possível colonização do espaço, e o oncologista Paul
Volberding, pesquisador da epidemia de aids a partir dos anos 1990, circunscrevem o
novo vírus dentro de contextos inusitados e pouco explorados até agora.
Com esta quinta edição, VEJA INSIGHTS se propõe a estimular digressões que
ajudem a compreender o quanto as circunstâncias vividas hoje pela humanidade são
inusuais. E como elas exigem uma abordagem muito mais ampla do que a dedicada a
fenômenos fugazes e passageiros. Boa leitura!
SUMÁRIO

2 SAÚDE PÚBLICA É UM ATIVO


Jim O’Neill

5 ESCUTEM OS CIENTISTAS
Laura de Freitas

8 ENTRE A AIDS E A COVID-19


Paul Volberding

11 AS PESTES NA HISTÓRIA
Joana Freitas

14 A TERRA É UMA SÓ
Robert Zubrin

17 O FATOR HUMANO
Thomas Lovejoy
REFLEXÕES PARA 2021

SAÚDE PÚBLICA É UM ATIVO


Organizações como o FMI podem evitar que crises sanitárias se tornem desastres
econômicos ao cobrar os países a investir em sistemas de prevenção de doenças

JIM O’NEILL*
BETTMANN/GETTYIMAGE

PRESSÃO  Conferência que criou o FMI, em 1944: saúde deve se tornar um indicador de desenvolvimento econômico

A
ntes de tudo, peço permissão para turas profundas que, em muitos casos, sim-
começar com uma ressalva. Mui- plesmente nunca se materializaram.
tas vezes as previsões ousadas e Isto posto, exponho aqui uma experiên-
confiantes sobre o futuro são um cia pessoal. Foram os horrores do 11 de se-
erro, principalmente em um mo- tembro de 2001, quando terroristas destruí-
mento de perplexidade tão gran- ram o World Trade Center, em Nova York,
de como o que vivemos, marcado que levaram diretamente à maior mudança
por uma brutal perturbação em tantas vidas de minha vida, do ponto de vista profissio-
em todas as partes do mundo. Por mais real nal. Esse terrível acontecimento me fez so-
e legítimo que seja o desejo de tirar conclu- nhar com o conceito dos chamados Brics e a
sões que apontem para mudanças perma- ideia de que as economias de Brasil, Rússia,
nentes na sociedade, as pessoas mais velhas Índia e China se tornariam relevantes na vi-
— como as de minha geração — certamente da empresarial e política do planeta. Pelo
passaram por outras crises, esperaram rup- menos até o fim daquela década, o surgi-
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“ Os países serão pressionados a


gastar de forma mais responsável
seus recursos em sistemas de
prevenção de doenças e
atendimento médico.”
mento dos Brics certamente pautou as expec- cancarada separação entre saúde pública e
tativas globais. E, mesmo com as enormes finanças desaparecerá. Os países serão
decepções de Brasil e Rússia na última déca- pressionados a gastar de forma mais res-
da, esse conceito ainda existe. O sucesso eco- ponsável seus recursos em sistemas de
nômico em curso na China e na Índia, pelo prevenção de doenças e atendimento mé-
menos até a Covid-19, e a persistência das dico. Se olharmos para alguns dos poucos
reuniões anuais dos líderes políticos dos índices internacionalmente comparáveis
Brics mantêm vivo o movimento. para o desenvolvimento econômico sus-
Feitos os devidos cuidados, dedico-me tentável, não é surpresa que os países que
a meus palpites para o mundo pós-Covid-19. tipicamente pontuam mais alto sejam
Em primeiro lugar, teremos que adotar ain- aqueles que, pelo menos na primeira onda
da por um bom tempo alguma forma de dis- de Covid-19, apresentaram os menores nú-
tanciamento social, provavelmente de natu- meros de mortes. Levando-se em conta o
reza variável, até que uma vacina bem-suce- índice Growth Environment Score (GES
dida possa ser desenvolvida, produzida e Index), que ajudei a criar quando fui eco-
distribuída em massa, em todo o mundo. nomista-chefe do Goldman Sachs, os oito
Mesmo com a perspectiva de termos tal va- países que tiveram melhores respostas e
cina em breve, a produção e distribuição em menor número de mortos estão justamen-
escala global ainda deve levar algum tempo. te entre os dez mais bem pontuados de
Obviamente, é improvável que aconteça uma lista de 150. Os três líderes do ran-
qualquer possibilidade de retorno ao mundo king — Hong Kong, Singapura e Coreia do
pré-Covid 19 até que uma vacina esteja am- Sul — notoriamente foram mais bem-suce-
plamente disponível. didos na gestão da crise que a maioria.
Assim sendo, acredito que a grande Tomando tal ponto de partida, defendo
consequência da epidemia é que a agora es- a ideia de que o Fundo Monetário Interna-

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cional (FMI) passe a incluir a análise dos sis- ção, sempre obcecados em maximizar os
temas de saúde dos países como parte da sé- lucros trimestrais. Prevejo um mundo em
rie regular do artigo IV dos países membros. que o lucro será apenas uma das metas a
Essa é a única maneira de muitos países tra- ser atingidas pelas empresas e corporações
tarem a prevenção de doenças em saúde com — e não apenas a única levada em conside-
seriedade, e o FMI agora tem o dever de pres- ração.
sionar para que isso aconteça. A instituição já Outra área em que antevejo uma mu-
opina em aspectos como as mudanças climá- dança é a noção geográfica da vida urbana
ticas e tem todas as condições de fazer o mes- em contraposição à rural. Como todos nós
mo com relação aos sistemas de saúde. E pre- podemos agora dizer, viver em ambientes
cisa se adaptar a esse novo cenário, assim menos densos tem benefícios para a saúde
como o resto de nós. e em todo o mundo podemos ler histórias
Também vislumbro a perspectiva de do ressurgimento das atividades no campo,
que o mundo democrático desenvolvido se em termos de vendas de itens básicos. Isso
tornará mais “escandinavo”. A meu ver, vi- pode ser, naturalmente, um fenômeno tem-
veremos uma era em que o capitalismo de porário, mas creio que seja capaz de se tor-
stakeholders (que envolve todas as partes nar um movimento mais perene com o avan-
interessadas no processo econômico e no ço da tecnologia e a capacidade de muitas
ambiente de negócios) assumirá o lugar do indústrias baseadas em serviços estimula-
obsessivo capitalismo acionista das últimas rem o trabalho remoto. Mesmo antes da Co-
décadas. Essa perspectiva já ganhava espa- vid-19, já observávamos nos Estados Unidos
ço nas agendas nos últimos anos, mas sus- essa transição, apesar de as áreas metropoli-
peito que ela se acelerará como resultado tanas ainda seguirem como a grande alavan-
da atual crise. Como todos nós testemunha- ca do crescimento econômico.
mos, qualquer negócio pode literalmente Há uma série de outros setores, como
entrar em colapso em questão de semanas, mudanças climáticas e globalização, que
sem que os acionistas tenham possibilidade devem ser impactados pela pandemia, mas
de alguma atuação em episódios como o da em escala ainda imprevisível. Nesses e em
Covid-19. Isso deve ser um alerta não só pa- outros casos, acredito que só o tempo po-
ra os acionistas, mas também para os CEOs derá determinar a real dimensão do que
da empresa e seus conselhos de administra- ainda estamos por ver.

*Jim O’Neil é economista, chefe de pesquisa em


economia global do banco Goldman Sachs e criador
do conceito de Brics, o grupo de países emergentes que
envolve Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul

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ESCUTEM OS CIENTISTAS
Não é à toa que quase todo filme de desastre começa com um especialista ignorado
— a resposta às ameaças virá sempre da razão e do conhecimento científico

LAURA DE FREITAS*
ACERVO DO MEMORIAL DO COLÉGIO MARISTA ARQUIDIOCESANO

INFLUENZA  Pacientes de gripe espanhola em São Paulo: minimizada no início, a doença matou 50 milhões no mundo todo

“E
stamos todos em quarentena es- mia da história da atual crise provocada pe-
trita por causa da ‘gripe’. Ouvi la Covid-19 — eventos tão diferentes e tão
dizer que existem cerca de 2 000 parecidos ao mesmo tempo. E, em um exer-
casos agora. Sinto muito por vo- cício imaginativo, pode-se pensar que, se o
cê ter contraído a doença. Por remetente da mensagem estivesse se per-
aqui, temos cerca de cinquenta guntando “como seria o mundo pós-in-
pessoas morrendo todos os dias.” fluenza” e caísse de paraquedas nas ruas da
Não, a mensagem não foi extraída de um Nova York — ou de São Paulo — moderna,
print de WhatsApp em pleno abril de 2020. acabaria um tanto decepcionado. Os avan-
Trata-se do excerto de uma carta escrita ços científicos, é claro, são evidentes: há
por um soldado americano em 1918, quan- respiradores, antibióticos, antivirais e vaci-
do a gripe espanhola ceifou cerca de 50 mi- nas contra o vírus-vilão da época; mas, em
lhões de vidas no mundo, 30 000 só no essência, nossas respostas de enfrentamen-
Brasil. Cem anos separam a maior pande- to são as mesmas. A historiadora e antropó-
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“ A boa notícia é que as lições


outrora adquiridas a duras penas
têm tudo para ganhar celeridade”
loga Lilia Schwarcz lembra que as reações pequenos lampejos de esperança do passa-
contra a gripe espanhola foram muito seme- do estão sendo colhidos no presente e, com
lhantes às de agora — a começar pelos mo- o advento da era da informação, podem ser
vimentos negacionistas, que minimizavam a amplificados no futuro. A gripe espanhola
situação e tentavam opor o cuidado da saú- evidenciou, por exemplo, que uma comuni-
de da população à preservação da economia cação benfeita por parte das autoridades,
local. Tratamentos sem comprovação cien- que inclua explicações claras sobre a situa-
tífica também deixaram marcas: estudos ção e a real gravidade da doença, enfatizan-
mostram que doses altíssimas de aspirina do as razões científicas por trás de cada
podem ter causado mortes por intoxicação. medida tomada, evita pânico e aumenta o
Desde então, a humanidade já enfrentou ou- entendimento da população sobre o assun-
tras quatro pandemias e, infelizmente, tudo to, gerando maior engajamento e o com-
isso nos soa familiar. Não à toa, em pleno prometimento em seguir as medidas im-
2014 o presidente da comissão especial da postas. Notícias e informações conflitantes,
Organização Mundial da Saúde (OMS), Har- por outro lado, deixam a população perdi-
vey Fineberg, que tratou da crise do H1N1, da e sem saber o que seguir, fazendo com
avisou que não estávamos preparados para a que busquem alternativas próprias, nem
próxima. No fim das contas, a sensação é de sempre seguras ou favoráveis à contenção
que, como sociedade, aprendemos pouco. da pandemia, conforme demonstrou um es-
Ouve-se com frequência que a “vida tudo retrospectivo publicado em 2007 com
pós-coronavírus não será mais a mesma”. Da base na experiência de cidades americanas.
parte da ciência, pelo menos, nada é feito à A lição, é verdade, foi aprendida por pou-
base das bolas de cristal e, portanto, proje- cos, mas se faz ouvir em países que, agora,
tar esse mundo passa por uma análise minu- investem na mesma postura no combate à
ciosa dos eventos passados. Nesse sentido, o Covid-19 e, não por acaso, conseguem dar
diagnóstico de que caminhamos a passos conta da demanda por leitos.
lentos (a julgar pelas últimas crises) é ater- Foi naquela época também, início do
rador. Afinal, para que este novo cenário século XX, que os cientistas e governantes
não nos leve a outra experiência quase dis- perceberam que pandemias se espalhariam
tópica ( já reparou, aliás, que todo filme de mais rapidamente que no passado, dadas as
desastre começa com um cientista ignora- condições urbanas. As medidas de saúde pú-
do?), é preciso ajustar o leme. Felizmente, blica que vemos sendo adotadas hoje como

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esforços para conter a disseminação do novo canas durante a pandemia de 1918 mostrou
coronavírus são um dos efeitos mais dura- que o afrouxamento precoce de interven-
douros da era da influenza, tal como a pande- ções, como a proibição de reuniões públi-
mia de H1N1 nos legou a presença rotineira cas (teatros, cinemas, concertos etc.), trazia
do álcool em gel portátil — o provável com- uma nova onda de casos, forçando os go-
panheiro da pasta de dentes neste novo mun- vernos a instaurar as medidas outra vez. A
do que emerge do primeiro semestre de 2020. boa notícia é que, ao menos, as lições ou-
A crise de 2009 também trouxe grandes trora adquiridas a duras penas têm tudo pa-
avanços na cooperação científica em nível ra ganhar celeridade nos próximos anos.
global e a desburocratização da publicação Mais do que nunca, divulgadores de ciên-
de dados e resultados de estudos, além, é cla- cia, especialistas em suas áreas, tiveram
ro, dos novos testes para diagnóstico, novas destaque nesta pandemia pelo fato de re-
vacinas e medicamentos. Podemos esperar o presentarem uma fonte acessível e confiá-
mesmo padrão no cenário pós-Covid-19, com vel de informações. O biólogo Átila Iamari-
destaque para a ampliação das pesquisas so- no, por exemplo, deixou de ser figurinha
bre os coronavírus humanos e animais (vale carimbada somente nas “bolhas nerd” e pas-
lembrar que muitas delas já existiam — quem sou a circular pelos grupos de WhatsApp
sabe, agora, não recebam a prioridade que dos vovôs e vovós a quem o apelo por isola-
merecem?). Outro destaque do futuro prová- mento é particularmente importante. Ou-
vel é o estreitamento das relações entre a tros canais vinculados ao selo Science
ciência e a matemática, com a criação de mo- Vlogs Brasil observaram grande crescimen-
delos de previsão de novas pandemias, cru- to de público e um aumento explosivo de dú-
ciais para estarmos mais preparados quando vidas enviadas e sugestões de temas para
a próxima chegar. vídeos, o que aponta para a demanda urgen-
A curto prazo, porém, a vida pós-pan- te por fontes confiáveis de informação, ca-
demia será sentida nas relações do dia a dia, pazes de falar ao público de igual para igual.
que, muito provavelmente, terão de se adap- Espera-se que essa relação não apenas não
tar a períodos de isolamento alternados com se perca com o passar dos anos, mas se torne
períodos de circulação como o novo normal um dos alicerces deste novo quadro que en-
até que se encontre uma vacina ou trata- frentaremos em conjunto. Quem sabe os
mento de sucesso, conforme apontou estudo tempos de privação do beijo no rosto — um
publicado pela Universidade Harvard na hábito tão caro e tipicamente brasileiro —
revista Science. Novamente, a previsão tem nos dirija a um mundo no qual não precise-
lastro histórico: uma pesquisa retrospectiva mos mais nos perguntar: “E se a gente tives-
sobre as ações de diferentes cidades ameri- se escutado os cientistas?”.

*Laura de Freitas é farmacêutica-bioquímica, doutora


em biociências e biotecnologia e pesquisadora da USP,
cofundadora do canal de divulgação científica no YouTube
Nunca vi 1 cientista, com mais de 38 000 inscritos

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ENTRE A AIDS E A COVID-19


É cedo para dizer como a atual pandemia afetará o mundo, mas não há dúvida de
que ela mudará a humanidade — e de um modo mais importante do que o vírus HIV

PAUL VOLBERDING*
ALLAN TANNENBAUM/GETTYIMAGE

COMPORTAMENTO  Protesto nos EUA, em 1989, motivado pela síndrome da imunodeficiência adquirida: sexo e drogas

S
em dúvida, existem similaridades soas que contraíram HIV, a quantidade de
entre a epidemia de HIV ocorrida indivíduos com coronavírus é uma explosão.
nos Estados Unidos quatro déca- Trata-se de uma doença bem mais transmis-
das atrás e a atual pandemia da sível e provocada quase imediatamente após
Covid-19 — mas há também dife- a infecção, enquanto o HIV pode levar quase
renças muito grandes. As doenças dez anos para adoecer o paciente. Durante es-
são bem distintas entre si: HIV, se período, a pessoa pode transmitir o vírus,
sem tratamento, mata todos os pacientes; o no entanto só por contato sexual ou sanguí-
coronavírus mata, aparentemente, entre 1% neo, não por meio de superfícies ou fluidos.
e 3% dos infectados. O novo vírus é menos A principal diferença na forma como en-
letal, porém muito mais contagioso. frentávamos epidemias quarenta anos atrás
Em comparação com o número de pes- e o modo como as enfrentamos agora é que,

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“ A principal diferença na forma


como enfrentávamos epidemias
quarenta anos atrás e agora
está na tecnologia”
no fim dos anos 1980, a tecnologia era muito de que haverá outras pandemias. Só me resta
inferior à atual. Nós levamos de três a quatro esperar que a próxima seja parecida com a de
anos apenas para encontrar o vírus causador hoje. Se for o caso, estaremos prontos.
da aids. O sequenciamento genético do HIV Ainda assim, não acho que a maneira
levou aproximadamente duas décadas. Já na como enfrentamos epidemias no âmbito in-
pandemia de Covid-19, o vírus foi encontrado dividual tenha mudado muito. Nós sempre
em uma ou duas semanas, sequenciado em temos de nos adequar à doença contra a qual
pouquíssimo tempo. O ritmo da ciência e as estamos batalhando. A resposta adequada
ferramentas das quais os cientistas dispõem ao HIV seria não fazer sexo desprotegido
são muitíssimo melhores do que aqueles que ou não injetar drogas. Muitas pessoas evita-
possuíamos na luta contra o HIV. ram esses comportamentos na epidemia dos
O maior problema, na minha opinião, é anos 1980 como meio de não contrair o HIV.
que não aprendemos lição alguma quanto à Por sua vez, a disseminação do novo corona-
importância da realização de testes rápidos vírus é tão fácil e rápida que o único modo
nas porções da população que mais neces- de evitá-lo é se escondendo dele.
sitam deles. Assim que criamos o exame de Globalmente, estamos nos escondendo
HIV, começamos a fazer testes muito rápidos — embora, até onde eu saiba, o Brasil não
e precisos. Escolhíamos grupos aleatórios da esteja unido nesse esforço. Eu mesmo estou
população e analisávamos seu sangue. Des- escondido na minha casa. Temos sido orien-
cobrimos com muita acurácia a porcentagem tados pelas autoridades claramente, e isso pa-
de portadores de HIV pelo país. Com o no- rece funcionar. Aqui em São Francisco, onde
vo coronavírus ainda não temos esses dados, vivo, as medidas de saúde pública parecem
embora a nossa tecnologia tenha evoluído estar dando resultado.
imensamente. O modo como nós lançamos É claro, entretanto, que se trata de
mão dela é horroroso. um desastre, de uma crise mundial. Não
Contudo, é preciso dizer que a tecnologia podemos sair de casa, a indústria está em
tem seus limites. A história humana nos alerta colapso nos quatro cantos do planeta. Is-

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so nunca aconteceu antes. Em comparação descoberta da vacina, e espero que ela atraia
com o cenário atual, o impacto econômico toda a atenção que merece. Será algo notável.
do HIV foi mínimo. O mundo é muito diferente.
Não sabemos se o novo coronavírus su- No futuro, nos prepararmos para um
mirá, como a primeira epidemia de Sars su- vírus parecido com o atual seria fácil: pre-
miu. Há quem diga que ele voltará no outo- cisaríamos de testes rápidos, formas velo-
no (dos EUA). Não sabemos se será possível zes de criar vacinas, meios mais práticos
criar uma vacina. É muito cedo para dizer para declarar quarentenas e evitar o conta-
como essa pandemia afetará a Terra, toda- to com os outros. Essas são as lições princi-
via não há dúvida alguma de que ela mudará pais do atual coronavírus.
a história da humanidade — e de um modo No entanto, nunca sabemos como
muito mais relevante do que o HIV. O vírus será o próximo vírus. Acredito que, em
da Covid-19 está matando milhares de pes- geral, a nossa tecnologia é robusta o sufi-
soas, destruindo economias, forçando mi- ciente para que respondamos com eficiên-
lhões a se esconder, forçando os esportes, a cia à maioria das coisas que conseguimos
música e demais artes a acabar. Acredito que imaginar. Só que ninguém imaginou uma
a repercussão disso poderá durar gerações. epidemia como a do HIV. Era um vírus
Sinto pena da geração dos meus filhos. completamente desconhecido.
Ainda não sei se a ciência sairá dessa pan- Não podemos esquecer que nada na
demia mais forte. Caso criemos uma vacina nossa história nos uniu tanto quanto a pan-
eficiente em breve, ela será triunfante. Afinal, demia do novo coronavírus. Trata-se de
foi graças à ciência que encontramos o vírus um desastre; porém estamos conversan-
e, nessa hipótese, a cura. Mas, repito, é cedo do mais. Pessoas do mundo inteiro têm os
para dizer. Estou com os dedos cruzados. mesmos medos. Espero que consigamos
Os cientistas que encabeçarem a luta con- controlar a situação — mas, para isso, pre-
tra o novo coronavírus serão muito mais re- cisamos refletir muito sobre as lições que
nomados no futuro do que eu sou atualmente. o novo coronavírus nos deixou, assim que
Não há dúvida. Espero estar aqui para ver a tudo estiver em ordem.

*Paul Volberding é o oncologista americano que


se tornou conhecido por ser um dos líderes da luta
contra o HIV na década de 80 (e nas subsequentes).
Hoje, trabalha como professor da Universidade
da Califórnia em São Francisco (EUA), onde dirige
o instituto de pesquisas sobre a aids

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AS PESTES NA HISTÓRIA
A vida sedentária trouxe consequências. O aumento populacional e o contato direto
com animais acabaram favorecendo a propagação de muitos vírus e bactérias

JOANA FREITAS*
DEAGOSTINI/GETTYIMAGE

RASTRO DE TERROR  Triunfo da Morte (c. 1562), do artista flamengo Pieter Bruegel, o Velho: dizimação por toda parte

S
e há um traço que considero uno a O mundo adormece num dia e, no se-
toda a humanidade, é a sua capaci- guinte, acorda numa realidade totalmente
dade de esquecer. Ano após ano, sé- nova. A realidade é bruta e, ciclicamente,
culo por século, seguimos no nosso vem mostrar ao homem quanto ele é vulnerá-
caminho enterrando as lembranças vel. A nossa história é polvilhada de aconte-
do que nos dizimou, do que nos reti- cimentos que nos mudam por dentro, que nos
rou a paz. O homem tem esse gran- fazem questionar, que nos dividem e que nos
de defeito de esquecer os caminhos que já per- laçam por novos caminhos. As epidemias são
correu, de interiorizar lições que lhes foram sempre momentos de ruptura.
dadas em épocas de sofrimento. É o efeito do Há 10 000 anos a humanidade selava o
esquecimento coletivo. A história apresenta-se seu destino. O conforto e a prosperidade de
então como uma ajudante da memória, um im- uma vida sedentária trariam as suas conse-
pedimento para que o esquecimento seja total. quências. O aumento populacional e o contato

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REFLEXÕES PARA 2021

“ Na época dos descobrimentos,


no século XV, quando os europeus
chegaram às Américas, a varíola
foi a doença mais mortal”
direto com animais forneceriam terreno fértil zes faria com que a sua presença fosse nota-
à propagação de muitos vírus e bactérias. da, em duas das quais com toda a sua
Acordamos no século V a.C. A Grécia impetuo­sidade e ceifando milhões de vidas.
vivia a sua idade de ouro; tudo era esplen- Em passo ritmado, chegamos ao século XIV.
dor. Todo esse brilho se apagou com um Nele, a peste negra abriu as suas asas sobre a
surto de febre tifoide que dizimou a popula- Ásia e a Europa, levando 80 milhões de al-
ção das cidades e lhes concedeu um fim mas. Morreu tanta gente que a Europa neces-
mergulhadas num sofrimento atroz. Toda a sitou de mais 200 anos para restabelecer os
Grécia se ressentiu, toda uma era acabava seus níveis populacionais. As ruas do século
de findar. Esse foi o primeiro de muitos re- XIV eram vias rápidas de contágio. Pratica-
gistos que acabariam por surgir. O homem mente toda a herança de boas práticas sanitá-
voltaria a adormecer e já no século seguinte rias e de higiene deixadas pelos romanos ha-
enfrentaria a sua primeira grande luta con- viam desaparecido. As ruas eram esgotos
tra a peste bubônica. O imperador Justinia- abertos. Nelas circulavam pessoas e animais,
no seguia confiante na sua reconquista. no meio de dejetos, lixo e até de cadáveres.
Queria novamente as antigas fronteiras do Uma outra epidemia surgiu e cresceu
Império Romano que, havia mais de dois sé- com a da peste: a ignorância. A igreja enfren-
culos, seguia dividido. A sua Constantino- tou um período conturbado no qual as suas
pla era o ponto zero, daí seguiria rumo à tão doutrinas foram desafiadas e postas em cau-
desejada unificação. Tudo corria de feição e sa. O fanatismo religioso e uma onda de cor-
os antigos territórios até a Ibéria, um a um, rentes de misticismo cresceram de modo
iam sendo anexados. Ele não tardaria, po- nunca visto antes. Os judeus começaram a ser
rém, a encontrar um inimigo implacável, perseguidos àquela altura, acusados de enve-
que dizimaria as suas tropas e deixaria um nenar as águas e causar a morte. Muitos deles
rastro de morte em todo o império. Milhões iriam mesmo perecer nas mãos de quem per-
perderam a vida. Estima-se que cerca de dia a razão. Qualquer pessoa que fosse de fo-
metade da população mundial pereceu. E ra da comunidade era vista como um poten-
com ela o sonho de um Império Romano cial perigo e era totalmente desprezada. O
unido e forte acabou também enterrado. A desconhecido é a fonte maior do medo. De-
peste foi o derradeiro golpe. pois do terror, a Europa floresceu e a econo-
Mas o homem não pode parar, a estrada mia contemplou um grande período de de-
da história é longa e a sombra da peste bubô- senvolvimento. Observaram-se mudanças
nica seria a sua companhia. Por diversas ve- sociais, econômicas e culturais importantes.

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REFLEXÕES PARA 2021

A mortalidade foi tão elevada que o custo da ropa enfrentou então anos muito frios, com a
mão de obra aumentou drasticamente. Exis- consequente perda de colheitas. A fome es-
tiam mais terras para cultivo e mais habita- preitava — e a morte aguardava.
ções disponíveis. O nível de vida da popula- Chegamos ao início do século XX, no
ção melhorou significativamente. qual a humanidade travaria a sua maior ba-
Trezentos anos depois, em pleno século talha contra uma pandemia. O ano era 1918,
XVII, a peste surgiria de novo. Dessa vez, só na a I Guerra assolava a Terra, principalmente
cidade de Londres foram contabilizados o Velho Continente. Cerca de 8 milhões per-
100 000 óbitos. Começou-se então a notar os deram a vida naquele conflito armado. Nú-
sinais de que a maneira pela qual se devia com- meros pequenos quando comparados com o
bater a doença estava perto de se modificar. Em que estava para acontecer. Era inverno e
muitos locais as pessoas se confinaram em casa com o frio de fevereiro um inimigo invisível
durante meses, mesmo que estivessem saudá- entrou em cena. Não escolhia lados — ataca-
veis. O contato era reduzido e havia um maior va praticamente a todos. A pneumônica
cuidado na forma de enterrar os mortos. Exis- (mais conhecida como gripe espanhola) vi-
tem relatos inclusive de lenços terem sido usa- ria a infectar 500 milhões de pessoas em to-
dos para cobrir o rosto e desinfetar as moedas do o globo, ou seja, uma em cada três pesso-
com vinagre. Foram criadas barreiras sanitá- as foi atingida. Pelo menos 50 milhões per-
rias em diferentes povoamentos. Deus não es- deriam a vida. A pneumônica vinha com
tava, afinal, na posse de todas as regras. O ho- uma agravante: por alguma razão, eram os
mem podia ser agente ativo na luta pela sobre- mais novos que morriam mais. O planeta via
vivência. As doenças não escolhiam apenas os assim as suas futuras gerações ser dizimadas
pecadores e as almas pesadas. pela guerra e pela doença.
Dois séculos antes, em plena época dos A gripe espanhola alterou o seguimento
descobrimentos, os colonos europeus haviam da própria guerra e impôs mudanças aos fu-
chegado às Américas. E mais do que armas turos contextos políticos, nacionais e inter-
prontas para disparar, levaram com eles a mu- nacionais. A ciência começou a fazer avan-
nição mais letal. Dentre muitas doenças, a va- ços. Os cuidados de saúde em sistemas inci-
ríola foi a mais mortal. Dos 60 milhões que pientes desenvolveram-se; houve especial-
ocupavam todo o território americano ficaram mente melhoras significativas nos níveis sa-
apenas 6 milhões. O próprio homem funcio- nitário e de higiene. Para a combater o pro-
nou como uma arma biológica numa guerra blema, o mundo se isolou. Fecharam-se es-
silenciosa. Toda a ação, no entanto, tem a sua colas e locais públicos, todos se recolheram
consequência. A mortalidade provocada na no seu íntimo.
América iria provocar a morte na Europa. Hoje acordamos e abrimos a janela. A
Com a diminuição populacional, com o cresci- nossa porta voltou a ter de ser fechada nova-
mento efetivo da área florestal, com o decrés- mente. Em pleno século XXI o homem conti-
cimo significativo das emissões de dióxido de nua a ter os mesmos medos, as mesmas dúvi-
carbono, a temperatura mundial cairia. A Eu- das, as mesmas incertezas.

* Joana Freitas é arqueóloga, dedica-se aos estudos


sobre a pré-história e a evolução da espécie humana

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REFLEXÕES PARA 2021

A TERRA É UMA SÓ
O esforço de vencer a Covid 19, assim como a exploração espacial, mostra como é importante
para a humanidade trabalhar em conjunto para resolver os problemas do nosso planeta

ROBERT ZUBRIN*
NASA/JPL-CALTECH/MSSS

POUSO  A sonda americana Curiosity em Marte: o planeta poderia ser usado para desenvolvimento da biotecnologia

H
á duas reações distintas à nova saiamos disso tudo com a compreensão de
epidemia. Uma é a percepção de que somos todos parte de um mesmo time.
que todos estamos juntos nessa — Nesse caso, temos um inimigo comum mui-
temos testemunhado uma cola- to claro. Lembro-me de ouvir Ronald Rea-
boração global de cientistas que gan dizer que, se tivéssemos uma invasão
querem resolver o problema. De alienígena, os Estados Unidos poderiam
outro lado, há a reação diametral- trabalhar em conjunto com a União Soviéti-
mente oposta, por parte de segmentos da ca. Pois estamos passando por uma invasão
classe política, que emprega o “cada um por alienígena agora mesmo. Mas os invasores
si”. Daí, vem a competição por quem compra não vêm em nenhum disco voador.
antes as máscaras, por exemplo. Existe a possibilidade de que a comuni-
A primeira opção é potencialmente dade internacional faça um esforço conjun-
muito positiva, porque pode permitir que to. No entanto, os políticos parecem ir para o

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REFLEXÕES PARA 2021

“ Somos nós contra um serzinho


diminuto que mal merece o nome
de microrganismo. Contra ele
vão agir os poderes da razão”
lado oposto, o que nos faz enfrentar a possi- computadores ou até mesmo os mecanis-
bilidade de um colapso da ordem mundial. mos de previsão do tempo. Entretanto, a
Agora, as pessoas parecem denunciar a coisa vai muito além disso.
globalização com frases do tipo: “Que horror, O programa espacial dos Estados Uni-
nós dependemos dos chineses para conseguir dos multiplicou o recrutamento de pessoas
remédios e muito mais!”. Contudo, foi essa para a ciência. Ele tornou a ciência a maior
mesma globalização que, desde o fim da II aventura possível. Eu mesmo entrei no ra-
Guerra Mundial, permitiu que grande parte mo por causa do programa Apollo. Nos
do mundo fosse retirada da pobreza. Estaría- anos 1960, o país dobrou seu número de
mos dispostos a abrir mão dela e devolver a graduandos na área científica.
Terra ao estado em que estava antes de 1945? Também houve o efeito global: muitos
É uma questão que temos de responder. Esta- indivíduos passaram a olhar para a ciência,
mos em uma encruzilhada. para o espaço, para a medicina. Embora eu
Um ponto positivo sobre esta crise é não conheça nenhuma doença cuja cura te-
que, se a compararmos ao espalhamento da nha sido encontrada por cientistas na Estação
praga na Idade Média, as pessoas costuma- Espacial Internacional, eu apostaria que toda
vam reagir a esse tipo de coisa com terror, o equipe que produziu uma vacina nos últimos
que é compreensível. A doença vinha do na- cinquenta anos contou com a participação de
da, ninguém entendia o porquê de Deus es- alguém que foi influenciado pelo programa
tar fazendo aquilo. Grande parte da civiliza- espacial. O capital intelectual é a base da nos-
ção europeia ruiu. Não estamos vendo isso sa força. Esse programa, de modo indireto,
agora, nem vimos durante a pandemia de contribuiu enormemente para a nossa capaci-
gripe espanhola em 1918. Isso porque o ra- dade de lutar contra o coronavírus.
cionalismo tornou-se a base da civilização. Para mim, pensar a questão espacial
O pânico e a perda da razão são as piores durante a pandemia não é sobre se, no caso
catástrofes imagináveis para a humanidade. de termos pessoas em Marte durante a epi-
É importante lembrar que as áreas da demia, elas poderiam escapar ao vírus. Para
saúde e do espaço influenciam-se mutua- mim, esse argumento não faz muito sentido.
mente. O estudo do espaço ajudou a cons- Não vamos ao espaço para desertar a Terra.
truir tecnologias muito importantes, como Vamos ao espaço para proteger a Terra.

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REFLEXÕES PARA 2021

Se pensarmos em termos de ocupar lecida. É ela que vai salvar as pessoas. Nem
outros planetas, o que uma colônia em os mais céticos poderão ignorar esse fato. O
Marte poderia exportar? Conhecimento. A avanço da medicina nos últimos 200 anos
colônia poderia ajudar a tecnologia a avan- foi um dos mais poderosos agentes no con-
çar em diversas áreas, sobretudo a biotec- vencimento dos indivíduos sobre a valida-
nologia. Ela teria colheitas superproduti- de do conhecimento científico. Aqueles que
vas e seus habitantes seriam especialistas acreditam na ciência são os responsáveis
absolutos em transgênicos. Todavia, a en- por curar doenças.
genharia genética vai além das plantas: ela Isto é apenas um vírus. Somos nós
tem aplicações na medicina e no aprendi- contra um serzinho diminuto que mal me-
zado de verdades fundamentais sobre bio- rece o nome de microrganismo. Contra ele
logia. Será um ramo novo e extremamente vão agir os poderes da razão, de uma civili-
criativo da civilização humana. zação de 7 bilhões de pessoas com capaci-
Mas é importante pesar as vantagens e dades científicas sem precedente. Já cria-
desvantagens de tal colonização. O que a mos vacinas para diversas doenças. Todo
Europa ganhou de fato ao colonizar a Amé- ano há uma nova para a mais recente ver-
rica? Essencialmente benéfica foi a criação são da gripe. Não somos mais indefesos
de novos ramos da sociedade ocidental que contra essas criaturas. Se tomarmos o
nasceram da ocupação e acrescentaram à exemplo de união dos cientistas, podere-
história humana. mos caminhar em direção a uma era de ir-
É isso que fazemos quando explora- mandade universal inédita.
mos o espaço: adicionamos algo à cultura. Não deveríamos dizer que os Estados
Criamos novos problemas que, futuramen- Unidos e a China estão brigando entre si
te, outras pessoas terão de resolver. Isso pela cura, por exemplo. Eles estão em
nos resolve. A ideia de ter um planeta como meio a um esforço para parar o vírus que,
refúgio em casos de pandemia não é essen- em última instância, beneficiará o mundo
cial. A questão é tornar a sociedade huma- todo. Isso é comum na nossa história. Os
na o time mais poderoso possível. É só as- americanos usam invenções chinesas, co-
sim que poderemos lidar com pandemias e mo o papel. Os chineses usam invenções
asteroides ou o que quer que o cosmo lance americanas na mesma proporção. Os pro-
em nossa direção. gressos de cada um beneficiam o planeta
A ciência sairá dessa crise muito forta- todo no fim das contas.

*Robert Zubrin é engenheiro aeroespacial, fundador da


Mars Society, defensor de um processo de transformação
do ambiente de Marte a ponto de deixá-lo em condições
de abrigar seres vivos da Terra, e autor, com
R. Wagner, do livro The Case for Mars (1996),
prefaciado por Arthur C. Clarke

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REFLEXÕES PARA 2021

O FATOR HUMANO
O surto global de Covid-19 não é uma revanche da natureza. Pelo contrário,
foram as ações humanas que deram condições para que ele se instaurasse

THOMAS LOVEJOY*
ERNESTO CARRIÇO/NURPHOTO/GETTY IMAGES

PERIGO  Desmatamento na Amazônia: vetor de moléstias

A
ssim como muitas pessoas em todo o forma, os surtos de Sars e Mers se espalhavam pela
mundo, estou em quarentena por cau- Ásia e o Oriente Médio.
sa da Covid-19. Não é a primeira pan- Exceto pela poliomielite, que só é transmitida
demia da minha vida: experimentei de humano para humano, a maioria daqueles agen-
epidemias pré-vacinais, como a da po- tes de doenças fazia parte de ciclos naturais que
liomielite, quando os pais soletravam alcançam nossa espécie devido a desequilíbrios na
em frente dos filhos — PÓLIO —, para natureza. O exemplo clássico é o da febre amarela.
explicá-la, pensando que não seriam compreendi- Facilmente evitada hoje em dia pela melhor vacina
dos. Um século atrás, claro, houve a pandemia glo- que já foi inventada — a que serve para a vida toda
bal de influenza. E, recentemente, todos nós acom- —, houve um ciclo urbano de um mosquito (o Ae-
panhamos as notícias à medida em que o ebola des aegypti) adaptado para viver em comunidades
aparecia em populações na África, e, da mesma humanas. Antes da vacina, a eliminação em massa

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REFLEXÕES PARA 2021

“ Enquanto lidamos com o


coronavírus, a mudança climática
avança, causando alterações em
todos os ecossistemas”
de locais com potencial para criação de mosquitos bém pragas de plantas e animais e organismos de
era poderosamente eficaz na prevenção de doenças. doenças em todo o planeta.
Já o ciclo normalmente conhecido como “fe- Enquanto escrevo, foi descoberto um navio
bre amarela da selva” é diferente. Ele se move de chinês de carvão no porto de Baltimore com mas-
maneira nômade na floresta, matando bugios e ou- sas de ovos da traça cigana asiática, uma praga co-
tros macacos — e, nos últimos tempos, o mico-leão- nhecida por pelo menos 500 tipos de planta. Não
dourado nos arredores do Rio de Janeiro. De vez em devemos nos surpreender com o surgimento contí-
quando, uma pessoa saía da floresta com um caso nuo de novas doenças — algumas com potencial
de febre amarela, mas a transmissão era misteriosa pandêmico — se a humanidade continuar com sua
e intrigante, porque o ciclo natural ocorria a 30 me- destruição total da natureza.
tros de altura, na copa das árvores. Essa não é, como se chegou a dizer, “a vin-
Como estudante de graduação, compartilhei gança da natureza”. Na verdade, causamos isso a
um escritório com um médico e pesquisador colom- nós mesmos, apesar das insistentes advertências
biano, Jorge Boshell, no Instituto Evandro Chagas, dos cientistas.
em Belém do Pará, atualmente líder de pesquisas Entretanto, no futuro, poderíamos ser mais
com vírus artrópodes. No início de sua carreira, Jor- sensatos e cuidadosos do que temos sido. Reduzir
ge sucedera a Marston Bates e se tornara o segundo a destruição de biomas e, principalmente, de flo-
diretor do laboratório da Fundação Rockefeller em restas tropicais e controlar — de preferência, até
Villavicencio, na Colômbia. Um dia, enquanto ob- o ponto de eliminação — o tráfico de animais sil-
servava os lenhadores derrubarem uma árvore, ele vestres, fechando os mercados que existem na
os viu subitamente cercados por mosquitos Haema- China e no sul da Ásia e proibindo a venda de sua
gogus azuis — conhecidos transmissores de febre carne na África, deve ser uma prioridade nacional
amarela da selva. e internacional. Já há relatos de que a China reti-
De muitas maneiras, esse episódio pode ser rará sua promessa de acabar com os mercados de
considerado o exemplo definitivo para as conse- vida selvagem. Cada nova morte pela Covid-19
quências negativas à saúde causadas pela pertur- precisa enfatizar a necessidade de fazer isso de
bação à natureza. O desmatamento na Amazônia modo rápido e completo.
permite o surgimento de criadouros para hospe- Para os epidemiologistas, a pandemia de Co-
deiros e vetores de moléstias, como malária e es- vid-19 não é uma verdadeira surpresa. Parente
quistossomose. As consequências são ampliadas muito próximo do vírus da Sars, o novo microrga-
pelos modernos sistemas de transporte que mistu- nismo vive em morcegos que são amplamente
ram não apenas patógenos humanos como tam- imunes aos seus efeitos nocivos (um aspecto idios-

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REFLEXÕES PARA 2021

sincrático da biologia desses mamíferos voadores bém observou que parecia existir uma forte corre-
que pode contribuir para o desenvolvimento de um lação entre aqueles que sofreram varíola bovina e
tratamento em humanos). Basicamente, os merca- aqueles que pareciam não ter sido tocados por
dos de vida silvestre são um recinto ideal para o ví- outra doença — a varíola humana.
rus saltar de um morcego selvagem para um outro Embora não soubesse quais eram os agentes
animal que logo depois será adquirido e consumido. causadores das duas condições, Jenner concluiu
A lição para a humanidade dessa pandemia é que a varíola das vacas conferia imunidade à va-
que não devemos temer a natureza que nos susten- ríola humana. Sendo um homem de convicções,
ta e de onde nos originamos e sim restaurá-la, ele conduziu um experimento que demonstrou
abra­
çá-la e entender como se beneficiar dela. que as vítimas da varíola da vaca não “pegavam”
Agora sabemos, por exemplo, como a própria bio- a varíola humana. O nome latino para a causa in-
diversidade pode diminuir a incidência de doenças visível da doença era o vírus vaccinia (termo lati-
em pelo menos alguns casos. Nos EUA, a transmis- no para vaca), que levou à palavra vacinação —
são da doença de Lyme diminui quando a produ- um dos fundamentos da medicina moderna.
ção de bolotas de carvalho é modesta e os outros O número de pessoas que tiveram vidas mais
organismos do ciclo estão mais equilibrados entre longas, saudáveis e produtivas por causa das va-
si em comparação com a situação que ocorre nos cinas é inestimável — certamente ronda a casa
principais anos de colheita. dos bilhões. A produtividade da humanidade
E toda essa biodiversidade é essencialmente também foi aprimorada. Estamos ansiosos em re-
uma gigantesca biblioteca de soluções pré-testa- ceber a vacina contra a Covid-19 o mais rápido
das para vários desafios e questões biológicas al- possível e entusiasmados com o fato de uma vaci-
cançadas através da seleção e evolução naturais. A na contra a dengue parecer bastante próxima. To-
humanidade tem um enorme respeito pelas biblio- davia, alguém reconheceu ou agradeceu à nature-
tecas de nossas próprias “obras”, os livros. Há to- za e ao vírus vaccinia?
dos os motivos para tratar a biblioteca viva da na- Algumas pessoas estão vendo a pandemia
tureza com o mesmo cuidado. como a natureza lutando contra tudo o que foi e
Uma das perguntas que um biólogo como eu continua sendo feito pelo homem. No entanto, é o
realmente odeia é alguém questionar sobre um comportamento humano e o desrespeito à nature-
organismo, escolhido a esmo e, via de regra, des- za que têm sido a causa do surto global de Co-
conhecido pela ciência: “Qual é a importância vid-19. Além disso, à medida que lidamos com a
dele?” É como ir à estante de alguém, puxar um pandemia, a mudança climática está avançando,
volume da prateleira e dizer: “Não foi lido, então, causando fortes ondas de alterações em todos os
por que é importante?” ecossistemas, facilitando a balança a favor de pa-
Na mesma linha, pode-se perguntar qual a tógenos ainda desconhecidos para nós.
utilidade dos vírus — ou o valor de um determina- O caminho sábio a seguir é investir em con-
do vírus? Uma figura lendária na história da medi- servação e ciência e abraçar a natureza e a varieda-
cina certa vez fez essa pergunta antes mesmo que a de gloriosa de vida com a qual compartilhamos a
ciência soubesse que havia um vírus em questão. O Terra. Só assim teremos um futuro promissor para
naturalista e médico britânico Edward Jenner a humanidade e um planeta biodiverso saudável.
(1749-1823) sabia que havia uma doença que ocor-
ria em vacas leiteiras chamada varíola. Ele tam- * Thomas Lovejoy é biólogo e ambientalista

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