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PARA 2021
O futuro depois
do coronavírus
5 ESCUTEM OS CIENTISTAS
Laura de Freitas
11 AS PESTES NA HISTÓRIA
Joana Freitas
14 A TERRA É UMA SÓ
Robert Zubrin
17 O FATOR HUMANO
Thomas Lovejoy
REFLEXÕES PARA 2021
JIM O’NEILL*
BETTMANN/GETTYIMAGE
PRESSÃO Conferência que criou o FMI, em 1944: saúde deve se tornar um indicador de desenvolvimento econômico
A
ntes de tudo, peço permissão para turas profundas que, em muitos casos, sim-
começar com uma ressalva. Mui- plesmente nunca se materializaram.
tas vezes as previsões ousadas e Isto posto, exponho aqui uma experiên-
confiantes sobre o futuro são um cia pessoal. Foram os horrores do 11 de se-
erro, principalmente em um mo- tembro de 2001, quando terroristas destruí-
mento de perplexidade tão gran- ram o World Trade Center, em Nova York,
de como o que vivemos, marcado que levaram diretamente à maior mudança
por uma brutal perturbação em tantas vidas de minha vida, do ponto de vista profissio-
em todas as partes do mundo. Por mais real nal. Esse terrível acontecimento me fez so-
e legítimo que seja o desejo de tirar conclu- nhar com o conceito dos chamados Brics e a
sões que apontem para mudanças perma- ideia de que as economias de Brasil, Rússia,
nentes na sociedade, as pessoas mais velhas Índia e China se tornariam relevantes na vi-
— como as de minha geração — certamente da empresarial e política do planeta. Pelo
passaram por outras crises, esperaram rup- menos até o fim daquela década, o surgi-
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REFLEXÕES PARA 2021
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REFLEXÕES PARA 2021
cional (FMI) passe a incluir a análise dos sis- ção, sempre obcecados em maximizar os
temas de saúde dos países como parte da sé- lucros trimestrais. Prevejo um mundo em
rie regular do artigo IV dos países membros. que o lucro será apenas uma das metas a
Essa é a única maneira de muitos países tra- ser atingidas pelas empresas e corporações
tarem a prevenção de doenças em saúde com — e não apenas a única levada em conside-
seriedade, e o FMI agora tem o dever de pres- ração.
sionar para que isso aconteça. A instituição já Outra área em que antevejo uma mu-
opina em aspectos como as mudanças climá- dança é a noção geográfica da vida urbana
ticas e tem todas as condições de fazer o mes- em contraposição à rural. Como todos nós
mo com relação aos sistemas de saúde. E pre- podemos agora dizer, viver em ambientes
cisa se adaptar a esse novo cenário, assim menos densos tem benefícios para a saúde
como o resto de nós. e em todo o mundo podemos ler histórias
Também vislumbro a perspectiva de do ressurgimento das atividades no campo,
que o mundo democrático desenvolvido se em termos de vendas de itens básicos. Isso
tornará mais “escandinavo”. A meu ver, vi- pode ser, naturalmente, um fenômeno tem-
veremos uma era em que o capitalismo de porário, mas creio que seja capaz de se tor-
stakeholders (que envolve todas as partes nar um movimento mais perene com o avan-
interessadas no processo econômico e no ço da tecnologia e a capacidade de muitas
ambiente de negócios) assumirá o lugar do indústrias baseadas em serviços estimula-
obsessivo capitalismo acionista das últimas rem o trabalho remoto. Mesmo antes da Co-
décadas. Essa perspectiva já ganhava espa- vid-19, já observávamos nos Estados Unidos
ço nas agendas nos últimos anos, mas sus- essa transição, apesar de as áreas metropoli-
peito que ela se acelerará como resultado tanas ainda seguirem como a grande alavan-
da atual crise. Como todos nós testemunha- ca do crescimento econômico.
mos, qualquer negócio pode literalmente Há uma série de outros setores, como
entrar em colapso em questão de semanas, mudanças climáticas e globalização, que
sem que os acionistas tenham possibilidade devem ser impactados pela pandemia, mas
de alguma atuação em episódios como o da em escala ainda imprevisível. Nesses e em
Covid-19. Isso deve ser um alerta não só pa- outros casos, acredito que só o tempo po-
ra os acionistas, mas também para os CEOs derá determinar a real dimensão do que
da empresa e seus conselhos de administra- ainda estamos por ver.
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REFLEXÕES PARA 2021
ESCUTEM OS CIENTISTAS
Não é à toa que quase todo filme de desastre começa com um especialista ignorado
— a resposta às ameaças virá sempre da razão e do conhecimento científico
LAURA DE FREITAS*
ACERVO DO MEMORIAL DO COLÉGIO MARISTA ARQUIDIOCESANO
INFLUENZA Pacientes de gripe espanhola em São Paulo: minimizada no início, a doença matou 50 milhões no mundo todo
“E
stamos todos em quarentena es- mia da história da atual crise provocada pe-
trita por causa da ‘gripe’. Ouvi la Covid-19 — eventos tão diferentes e tão
dizer que existem cerca de 2 000 parecidos ao mesmo tempo. E, em um exer-
casos agora. Sinto muito por vo- cício imaginativo, pode-se pensar que, se o
cê ter contraído a doença. Por remetente da mensagem estivesse se per-
aqui, temos cerca de cinquenta guntando “como seria o mundo pós-in-
pessoas morrendo todos os dias.” fluenza” e caísse de paraquedas nas ruas da
Não, a mensagem não foi extraída de um Nova York — ou de São Paulo — moderna,
print de WhatsApp em pleno abril de 2020. acabaria um tanto decepcionado. Os avan-
Trata-se do excerto de uma carta escrita ços científicos, é claro, são evidentes: há
por um soldado americano em 1918, quan- respiradores, antibióticos, antivirais e vaci-
do a gripe espanhola ceifou cerca de 50 mi- nas contra o vírus-vilão da época; mas, em
lhões de vidas no mundo, 30 000 só no essência, nossas respostas de enfrentamen-
Brasil. Cem anos separam a maior pande- to são as mesmas. A historiadora e antropó-
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REFLEXÕES PARA 2021
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REFLEXÕES PARA 2021
esforços para conter a disseminação do novo canas durante a pandemia de 1918 mostrou
coronavírus são um dos efeitos mais dura- que o afrouxamento precoce de interven-
douros da era da influenza, tal como a pande- ções, como a proibição de reuniões públi-
mia de H1N1 nos legou a presença rotineira cas (teatros, cinemas, concertos etc.), trazia
do álcool em gel portátil — o provável com- uma nova onda de casos, forçando os go-
panheiro da pasta de dentes neste novo mun- vernos a instaurar as medidas outra vez. A
do que emerge do primeiro semestre de 2020. boa notícia é que, ao menos, as lições ou-
A crise de 2009 também trouxe grandes trora adquiridas a duras penas têm tudo pa-
avanços na cooperação científica em nível ra ganhar celeridade nos próximos anos.
global e a desburocratização da publicação Mais do que nunca, divulgadores de ciên-
de dados e resultados de estudos, além, é cla- cia, especialistas em suas áreas, tiveram
ro, dos novos testes para diagnóstico, novas destaque nesta pandemia pelo fato de re-
vacinas e medicamentos. Podemos esperar o presentarem uma fonte acessível e confiá-
mesmo padrão no cenário pós-Covid-19, com vel de informações. O biólogo Átila Iamari-
destaque para a ampliação das pesquisas so- no, por exemplo, deixou de ser figurinha
bre os coronavírus humanos e animais (vale carimbada somente nas “bolhas nerd” e pas-
lembrar que muitas delas já existiam — quem sou a circular pelos grupos de WhatsApp
sabe, agora, não recebam a prioridade que dos vovôs e vovós a quem o apelo por isola-
merecem?). Outro destaque do futuro prová- mento é particularmente importante. Ou-
vel é o estreitamento das relações entre a tros canais vinculados ao selo Science
ciência e a matemática, com a criação de mo- Vlogs Brasil observaram grande crescimen-
delos de previsão de novas pandemias, cru- to de público e um aumento explosivo de dú-
ciais para estarmos mais preparados quando vidas enviadas e sugestões de temas para
a próxima chegar. vídeos, o que aponta para a demanda urgen-
A curto prazo, porém, a vida pós-pan- te por fontes confiáveis de informação, ca-
demia será sentida nas relações do dia a dia, pazes de falar ao público de igual para igual.
que, muito provavelmente, terão de se adap- Espera-se que essa relação não apenas não
tar a períodos de isolamento alternados com se perca com o passar dos anos, mas se torne
períodos de circulação como o novo normal um dos alicerces deste novo quadro que en-
até que se encontre uma vacina ou trata- frentaremos em conjunto. Quem sabe os
mento de sucesso, conforme apontou estudo tempos de privação do beijo no rosto — um
publicado pela Universidade Harvard na hábito tão caro e tipicamente brasileiro —
revista Science. Novamente, a previsão tem nos dirija a um mundo no qual não precise-
lastro histórico: uma pesquisa retrospectiva mos mais nos perguntar: “E se a gente tives-
sobre as ações de diferentes cidades ameri- se escutado os cientistas?”.
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REFLEXÕES PARA 2021
PAUL VOLBERDING*
ALLAN TANNENBAUM/GETTYIMAGE
COMPORTAMENTO Protesto nos EUA, em 1989, motivado pela síndrome da imunodeficiência adquirida: sexo e drogas
S
em dúvida, existem similaridades soas que contraíram HIV, a quantidade de
entre a epidemia de HIV ocorrida indivíduos com coronavírus é uma explosão.
nos Estados Unidos quatro déca- Trata-se de uma doença bem mais transmis-
das atrás e a atual pandemia da sível e provocada quase imediatamente após
Covid-19 — mas há também dife- a infecção, enquanto o HIV pode levar quase
renças muito grandes. As doenças dez anos para adoecer o paciente. Durante es-
são bem distintas entre si: HIV, se período, a pessoa pode transmitir o vírus,
sem tratamento, mata todos os pacientes; o no entanto só por contato sexual ou sanguí-
coronavírus mata, aparentemente, entre 1% neo, não por meio de superfícies ou fluidos.
e 3% dos infectados. O novo vírus é menos A principal diferença na forma como en-
letal, porém muito mais contagioso. frentávamos epidemias quarenta anos atrás
Em comparação com o número de pes- e o modo como as enfrentamos agora é que,
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REFLEXÕES PARA 2021
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REFLEXÕES PARA 2021
so nunca aconteceu antes. Em comparação descoberta da vacina, e espero que ela atraia
com o cenário atual, o impacto econômico toda a atenção que merece. Será algo notável.
do HIV foi mínimo. O mundo é muito diferente.
Não sabemos se o novo coronavírus su- No futuro, nos prepararmos para um
mirá, como a primeira epidemia de Sars su- vírus parecido com o atual seria fácil: pre-
miu. Há quem diga que ele voltará no outo- cisaríamos de testes rápidos, formas velo-
no (dos EUA). Não sabemos se será possível zes de criar vacinas, meios mais práticos
criar uma vacina. É muito cedo para dizer para declarar quarentenas e evitar o conta-
como essa pandemia afetará a Terra, toda- to com os outros. Essas são as lições princi-
via não há dúvida alguma de que ela mudará pais do atual coronavírus.
a história da humanidade — e de um modo No entanto, nunca sabemos como
muito mais relevante do que o HIV. O vírus será o próximo vírus. Acredito que, em
da Covid-19 está matando milhares de pes- geral, a nossa tecnologia é robusta o sufi-
soas, destruindo economias, forçando mi- ciente para que respondamos com eficiên-
lhões a se esconder, forçando os esportes, a cia à maioria das coisas que conseguimos
música e demais artes a acabar. Acredito que imaginar. Só que ninguém imaginou uma
a repercussão disso poderá durar gerações. epidemia como a do HIV. Era um vírus
Sinto pena da geração dos meus filhos. completamente desconhecido.
Ainda não sei se a ciência sairá dessa pan- Não podemos esquecer que nada na
demia mais forte. Caso criemos uma vacina nossa história nos uniu tanto quanto a pan-
eficiente em breve, ela será triunfante. Afinal, demia do novo coronavírus. Trata-se de
foi graças à ciência que encontramos o vírus um desastre; porém estamos conversan-
e, nessa hipótese, a cura. Mas, repito, é cedo do mais. Pessoas do mundo inteiro têm os
para dizer. Estou com os dedos cruzados. mesmos medos. Espero que consigamos
Os cientistas que encabeçarem a luta con- controlar a situação — mas, para isso, pre-
tra o novo coronavírus serão muito mais re- cisamos refletir muito sobre as lições que
nomados no futuro do que eu sou atualmente. o novo coronavírus nos deixou, assim que
Não há dúvida. Espero estar aqui para ver a tudo estiver em ordem.
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REFLEXÕES PARA 2021
AS PESTES NA HISTÓRIA
A vida sedentária trouxe consequências. O aumento populacional e o contato direto
com animais acabaram favorecendo a propagação de muitos vírus e bactérias
JOANA FREITAS*
DEAGOSTINI/GETTYIMAGE
RASTRO DE TERROR Triunfo da Morte (c. 1562), do artista flamengo Pieter Bruegel, o Velho: dizimação por toda parte
S
e há um traço que considero uno a O mundo adormece num dia e, no se-
toda a humanidade, é a sua capaci- guinte, acorda numa realidade totalmente
dade de esquecer. Ano após ano, sé- nova. A realidade é bruta e, ciclicamente,
culo por século, seguimos no nosso vem mostrar ao homem quanto ele é vulnerá-
caminho enterrando as lembranças vel. A nossa história é polvilhada de aconte-
do que nos dizimou, do que nos reti- cimentos que nos mudam por dentro, que nos
rou a paz. O homem tem esse gran- fazem questionar, que nos dividem e que nos
de defeito de esquecer os caminhos que já per- laçam por novos caminhos. As epidemias são
correu, de interiorizar lições que lhes foram sempre momentos de ruptura.
dadas em épocas de sofrimento. É o efeito do Há 10 000 anos a humanidade selava o
esquecimento coletivo. A história apresenta-se seu destino. O conforto e a prosperidade de
então como uma ajudante da memória, um im- uma vida sedentária trariam as suas conse-
pedimento para que o esquecimento seja total. quências. O aumento populacional e o contato
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REFLEXÕES PARA 2021
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REFLEXÕES PARA 2021
A mortalidade foi tão elevada que o custo da ropa enfrentou então anos muito frios, com a
mão de obra aumentou drasticamente. Exis- consequente perda de colheitas. A fome es-
tiam mais terras para cultivo e mais habita- preitava — e a morte aguardava.
ções disponíveis. O nível de vida da popula- Chegamos ao início do século XX, no
ção melhorou significativamente. qual a humanidade travaria a sua maior ba-
Trezentos anos depois, em pleno século talha contra uma pandemia. O ano era 1918,
XVII, a peste surgiria de novo. Dessa vez, só na a I Guerra assolava a Terra, principalmente
cidade de Londres foram contabilizados o Velho Continente. Cerca de 8 milhões per-
100 000 óbitos. Começou-se então a notar os deram a vida naquele conflito armado. Nú-
sinais de que a maneira pela qual se devia com- meros pequenos quando comparados com o
bater a doença estava perto de se modificar. Em que estava para acontecer. Era inverno e
muitos locais as pessoas se confinaram em casa com o frio de fevereiro um inimigo invisível
durante meses, mesmo que estivessem saudá- entrou em cena. Não escolhia lados — ataca-
veis. O contato era reduzido e havia um maior va praticamente a todos. A pneumônica
cuidado na forma de enterrar os mortos. Exis- (mais conhecida como gripe espanhola) vi-
tem relatos inclusive de lenços terem sido usa- ria a infectar 500 milhões de pessoas em to-
dos para cobrir o rosto e desinfetar as moedas do o globo, ou seja, uma em cada três pesso-
com vinagre. Foram criadas barreiras sanitá- as foi atingida. Pelo menos 50 milhões per-
rias em diferentes povoamentos. Deus não es- deriam a vida. A pneumônica vinha com
tava, afinal, na posse de todas as regras. O ho- uma agravante: por alguma razão, eram os
mem podia ser agente ativo na luta pela sobre- mais novos que morriam mais. O planeta via
vivência. As doenças não escolhiam apenas os assim as suas futuras gerações ser dizimadas
pecadores e as almas pesadas. pela guerra e pela doença.
Dois séculos antes, em plena época dos A gripe espanhola alterou o seguimento
descobrimentos, os colonos europeus haviam da própria guerra e impôs mudanças aos fu-
chegado às Américas. E mais do que armas turos contextos políticos, nacionais e inter-
prontas para disparar, levaram com eles a mu- nacionais. A ciência começou a fazer avan-
nição mais letal. Dentre muitas doenças, a va- ços. Os cuidados de saúde em sistemas inci-
ríola foi a mais mortal. Dos 60 milhões que pientes desenvolveram-se; houve especial-
ocupavam todo o território americano ficaram mente melhoras significativas nos níveis sa-
apenas 6 milhões. O próprio homem funcio- nitário e de higiene. Para a combater o pro-
nou como uma arma biológica numa guerra blema, o mundo se isolou. Fecharam-se es-
silenciosa. Toda a ação, no entanto, tem a sua colas e locais públicos, todos se recolheram
consequência. A mortalidade provocada na no seu íntimo.
América iria provocar a morte na Europa. Hoje acordamos e abrimos a janela. A
Com a diminuição populacional, com o cresci- nossa porta voltou a ter de ser fechada nova-
mento efetivo da área florestal, com o decrés- mente. Em pleno século XXI o homem conti-
cimo significativo das emissões de dióxido de nua a ter os mesmos medos, as mesmas dúvi-
carbono, a temperatura mundial cairia. A Eu- das, as mesmas incertezas.
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REFLEXÕES PARA 2021
A TERRA É UMA SÓ
O esforço de vencer a Covid 19, assim como a exploração espacial, mostra como é importante
para a humanidade trabalhar em conjunto para resolver os problemas do nosso planeta
ROBERT ZUBRIN*
NASA/JPL-CALTECH/MSSS
POUSO A sonda americana Curiosity em Marte: o planeta poderia ser usado para desenvolvimento da biotecnologia
H
á duas reações distintas à nova saiamos disso tudo com a compreensão de
epidemia. Uma é a percepção de que somos todos parte de um mesmo time.
que todos estamos juntos nessa — Nesse caso, temos um inimigo comum mui-
temos testemunhado uma cola- to claro. Lembro-me de ouvir Ronald Rea-
boração global de cientistas que gan dizer que, se tivéssemos uma invasão
querem resolver o problema. De alienígena, os Estados Unidos poderiam
outro lado, há a reação diametral- trabalhar em conjunto com a União Soviéti-
mente oposta, por parte de segmentos da ca. Pois estamos passando por uma invasão
classe política, que emprega o “cada um por alienígena agora mesmo. Mas os invasores
si”. Daí, vem a competição por quem compra não vêm em nenhum disco voador.
antes as máscaras, por exemplo. Existe a possibilidade de que a comuni-
A primeira opção é potencialmente dade internacional faça um esforço conjun-
muito positiva, porque pode permitir que to. No entanto, os políticos parecem ir para o
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REFLEXÕES PARA 2021
Se pensarmos em termos de ocupar lecida. É ela que vai salvar as pessoas. Nem
outros planetas, o que uma colônia em os mais céticos poderão ignorar esse fato. O
Marte poderia exportar? Conhecimento. A avanço da medicina nos últimos 200 anos
colônia poderia ajudar a tecnologia a avan- foi um dos mais poderosos agentes no con-
çar em diversas áreas, sobretudo a biotec- vencimento dos indivíduos sobre a valida-
nologia. Ela teria colheitas superproduti- de do conhecimento científico. Aqueles que
vas e seus habitantes seriam especialistas acreditam na ciência são os responsáveis
absolutos em transgênicos. Todavia, a en- por curar doenças.
genharia genética vai além das plantas: ela Isto é apenas um vírus. Somos nós
tem aplicações na medicina e no aprendi- contra um serzinho diminuto que mal me-
zado de verdades fundamentais sobre bio- rece o nome de microrganismo. Contra ele
logia. Será um ramo novo e extremamente vão agir os poderes da razão, de uma civili-
criativo da civilização humana. zação de 7 bilhões de pessoas com capaci-
Mas é importante pesar as vantagens e dades científicas sem precedente. Já cria-
desvantagens de tal colonização. O que a mos vacinas para diversas doenças. Todo
Europa ganhou de fato ao colonizar a Amé- ano há uma nova para a mais recente ver-
rica? Essencialmente benéfica foi a criação são da gripe. Não somos mais indefesos
de novos ramos da sociedade ocidental que contra essas criaturas. Se tomarmos o
nasceram da ocupação e acrescentaram à exemplo de união dos cientistas, podere-
história humana. mos caminhar em direção a uma era de ir-
É isso que fazemos quando explora- mandade universal inédita.
mos o espaço: adicionamos algo à cultura. Não deveríamos dizer que os Estados
Criamos novos problemas que, futuramen- Unidos e a China estão brigando entre si
te, outras pessoas terão de resolver. Isso pela cura, por exemplo. Eles estão em
nos resolve. A ideia de ter um planeta como meio a um esforço para parar o vírus que,
refúgio em casos de pandemia não é essen- em última instância, beneficiará o mundo
cial. A questão é tornar a sociedade huma- todo. Isso é comum na nossa história. Os
na o time mais poderoso possível. É só as- americanos usam invenções chinesas, co-
sim que poderemos lidar com pandemias e mo o papel. Os chineses usam invenções
asteroides ou o que quer que o cosmo lance americanas na mesma proporção. Os pro-
em nossa direção. gressos de cada um beneficiam o planeta
A ciência sairá dessa crise muito forta- todo no fim das contas.
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O FATOR HUMANO
O surto global de Covid-19 não é uma revanche da natureza. Pelo contrário,
foram as ações humanas que deram condições para que ele se instaurasse
THOMAS LOVEJOY*
ERNESTO CARRIÇO/NURPHOTO/GETTY IMAGES
A
ssim como muitas pessoas em todo o forma, os surtos de Sars e Mers se espalhavam pela
mundo, estou em quarentena por cau- Ásia e o Oriente Médio.
sa da Covid-19. Não é a primeira pan- Exceto pela poliomielite, que só é transmitida
demia da minha vida: experimentei de humano para humano, a maioria daqueles agen-
epidemias pré-vacinais, como a da po- tes de doenças fazia parte de ciclos naturais que
liomielite, quando os pais soletravam alcançam nossa espécie devido a desequilíbrios na
em frente dos filhos — PÓLIO —, para natureza. O exemplo clássico é o da febre amarela.
explicá-la, pensando que não seriam compreendi- Facilmente evitada hoje em dia pela melhor vacina
dos. Um século atrás, claro, houve a pandemia glo- que já foi inventada — a que serve para a vida toda
bal de influenza. E, recentemente, todos nós acom- —, houve um ciclo urbano de um mosquito (o Ae-
panhamos as notícias à medida em que o ebola des aegypti) adaptado para viver em comunidades
aparecia em populações na África, e, da mesma humanas. Antes da vacina, a eliminação em massa
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sincrático da biologia desses mamíferos voadores bém observou que parecia existir uma forte corre-
que pode contribuir para o desenvolvimento de um lação entre aqueles que sofreram varíola bovina e
tratamento em humanos). Basicamente, os merca- aqueles que pareciam não ter sido tocados por
dos de vida silvestre são um recinto ideal para o ví- outra doença — a varíola humana.
rus saltar de um morcego selvagem para um outro Embora não soubesse quais eram os agentes
animal que logo depois será adquirido e consumido. causadores das duas condições, Jenner concluiu
A lição para a humanidade dessa pandemia é que a varíola das vacas conferia imunidade à va-
que não devemos temer a natureza que nos susten- ríola humana. Sendo um homem de convicções,
ta e de onde nos originamos e sim restaurá-la, ele conduziu um experimento que demonstrou
abra
çá-la e entender como se beneficiar dela. que as vítimas da varíola da vaca não “pegavam”
Agora sabemos, por exemplo, como a própria bio- a varíola humana. O nome latino para a causa in-
diversidade pode diminuir a incidência de doenças visível da doença era o vírus vaccinia (termo lati-
em pelo menos alguns casos. Nos EUA, a transmis- no para vaca), que levou à palavra vacinação —
são da doença de Lyme diminui quando a produ- um dos fundamentos da medicina moderna.
ção de bolotas de carvalho é modesta e os outros O número de pessoas que tiveram vidas mais
organismos do ciclo estão mais equilibrados entre longas, saudáveis e produtivas por causa das va-
si em comparação com a situação que ocorre nos cinas é inestimável — certamente ronda a casa
principais anos de colheita. dos bilhões. A produtividade da humanidade
E toda essa biodiversidade é essencialmente também foi aprimorada. Estamos ansiosos em re-
uma gigantesca biblioteca de soluções pré-testa- ceber a vacina contra a Covid-19 o mais rápido
das para vários desafios e questões biológicas al- possível e entusiasmados com o fato de uma vaci-
cançadas através da seleção e evolução naturais. A na contra a dengue parecer bastante próxima. To-
humanidade tem um enorme respeito pelas biblio- davia, alguém reconheceu ou agradeceu à nature-
tecas de nossas próprias “obras”, os livros. Há to- za e ao vírus vaccinia?
dos os motivos para tratar a biblioteca viva da na- Algumas pessoas estão vendo a pandemia
tureza com o mesmo cuidado. como a natureza lutando contra tudo o que foi e
Uma das perguntas que um biólogo como eu continua sendo feito pelo homem. No entanto, é o
realmente odeia é alguém questionar sobre um comportamento humano e o desrespeito à nature-
organismo, escolhido a esmo e, via de regra, des- za que têm sido a causa do surto global de Co-
conhecido pela ciência: “Qual é a importância vid-19. Além disso, à medida que lidamos com a
dele?” É como ir à estante de alguém, puxar um pandemia, a mudança climática está avançando,
volume da prateleira e dizer: “Não foi lido, então, causando fortes ondas de alterações em todos os
por que é importante?” ecossistemas, facilitando a balança a favor de pa-
Na mesma linha, pode-se perguntar qual a tógenos ainda desconhecidos para nós.
utilidade dos vírus — ou o valor de um determina- O caminho sábio a seguir é investir em con-
do vírus? Uma figura lendária na história da medi- servação e ciência e abraçar a natureza e a varieda-
cina certa vez fez essa pergunta antes mesmo que a de gloriosa de vida com a qual compartilhamos a
ciência soubesse que havia um vírus em questão. O Terra. Só assim teremos um futuro promissor para
naturalista e médico britânico Edward Jenner a humanidade e um planeta biodiverso saudável.
(1749-1823) sabia que havia uma doença que ocor-
ria em vacas leiteiras chamada varíola. Ele tam- * Thomas Lovejoy é biólogo e ambientalista
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