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Um ano de pandemia: o que

aprendemos e o que falta saber


sobre a Covid-19
8.2.2021

Saúde

Doze meses após o registo do primeiro caso de Covid-19 no


Brasil, a ciência avançou nos conhecimentos sobre a doença —
embora ainda haja muito o que entender (e aprender) pela
frente

|
Marília Marasciulo

Globo+

O que se sabe após um ano de pandemia de Covid-19 (Foto: DrAfter123/Getty Images)

Tudo começou em Wuhan, cidade de 11 milhões de habitantes na


:
China central. A partir do dia 1º de dezembro de 2019, uma série de
casos de pneumonia de etiologia desconhecida começaram a ser
reportados no hospital central da cidade, até que, no dia 30 do
mesmo mês, o oftalmologista Li Wenliang compartilhou com colegas
que as infecções provavelmente decorriam de um novo tipo de
coronavírus.

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No dia 7 de janeiro de 2020, a informação se tornou oficial: os casos


eram de fato causados por um novo coronavírus, mais tarde
chamado Sars-CoV-2, que provocava a doença que hoje
conhecemos como Covid-19, sigla para coronavirus disease 2019
(doença do coronavírus 2019, em tradução livre). Dois meses
depois, no dia 11 de março, diante de 118 mil casos diagnosticados
em 114 países e 4.291 mortes, a Organização Mundial da Saúde
(OMS) oficialmente declarou a pandemia de Covid-19 — um dia
antes da primeira morte causada pela doença no Brasil, que
registrou o primeiro caso em 26 de fevereiro.

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De lá para cá, a crise sanitária se agravou: o mundo já soma mais de


100 milhões de casos e 2,1 milhões de mortes, segundo o repositório
de dados da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Para
piorar, países ocidentais como o Brasil, que tiveram dificuldade de
controlar a disseminação do vírus, hoje enfrentam um novo pico de
casos, que se soma a problemas econômicos, sociais e políticos
decorrentes da pandemia.

Os conhecimentos científicos sobre a nova doença, porém,


evoluíram muito nos últimos 12 meses. Se no início havia dúvidas
sobre a genética do vírus, como ele é transmitido e que medidas de
mitigação poderiam ser tomadas para acabar com a pandemia, um
:
ano depois essas e outras questões já foram compreendidas pela
ciência, e deveriam servir para orientar gestores, profissionais da
saúde e a população para um combate mais eficaz.

“Muita coisa a gente já sabe e não está usando de forma correta,


não está acompanhando a ciência”, diz o engenheiro biomédico Vitor
Mori, pós-doutorando no Larner College of Medicine da
Universidade de Vermont, nos Estados Unidos, e membro do
Observatório Covid-19 BR. “A tomada de decisão do poder público
deu lugar a um debate passional que vem colocando os lobbies
privados acima da saúde pública. Mas sem controlar a crise
sanitária, não tem como manter a economia girando.”

A seguir, veja o que a ciência já sabe sobre a Covid-19 — e o que


ainda falta desvendar.

1. Todos podem se infectar, mas nem todos apresentam


sintomas

No início da pandemia, houve dúvidas em relação a quem teria maior


risco de se infectar e de desenvolver complicações das doenças: os
chineses seriam mais propensos pelos hábitos alimentares; os
italianos, pela prática de se cumprimentar com beijo na bochecha;
em cruzeiros, os culpados eram os buffets; idosos teriam maior risco
por terem a saúde mais debilidada.

Embora as primeiras vítimas da Covid-19 de fato tenham sido idosos


e pacientes com doenças preexistentes, e esses continuem sendo
grandes fatores de risco para casos mais graves e morte, já se sabe
que o vírus também pode infectar e vitimar pessoas saudáveis e de
todas as idades. O problema é que nem todos os infectados
apresentam sintomas, que podem incluir febre, tosse, fadiga, dor de
cabeça, perda de olfato e/ou paladar e problemas gastrointestinais. E
mais: mesmo que apresentem manifestações, elas podem levar de
:
dois a 14 dias para aparecerem, período no qual o infectado está
ativamente transmitindo o vírus.

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Em um estudo que embasou orientações do Centro de Controle e


Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, pesquisadores
identificaram que 20% das infecções pelo Sars-CoV-2 permanecem
assintomáticas, mas contagiosas — número bem menor que os 80%
divulgados no início da pandemia. A maioria apresenta algum
sintoma dias depois.

2. A transmissão se dá principalmente pelo ar

Também no início da pandemia, houve grande preocupação em


higienizar superfícies como forma de evitar a transmissão. O uso de
máscaras em lugares públicos, por sua vez, só passou a ser
obrigatório no Brasil a partir de julho de 2020, com a lei nº
14.019/2020. Atualmente, as evidências apontam justamente o
contrário: o risco de transmissão por superfícies é baixo (embora
manter as mãos limpas seja importante para evitar carregar o vírus
para as vias respiratórias), e pelo ar é alto.

“Desde Wuhan já se sabia da transmissão pelo ar, o próprio Donald


Trump admitiu que a transmissão se dava pelo ar, pois se fosse só
por contato ‘seria fácil’ controlar a pandemia”, diz o pesquisador do
Observatório Covid-19 BR. “Mas houve uma pressão para não falar
nisso para não causar pânico. Com o tempo, as evidências foram
ficando mais fortes e impossíveis de ignorar.”

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Em outubro, o CDC passou a reconhecer oficialmente que, embora a


principal forma de transmissão sejam gotículas expelidas na
:
respiração, partículas menores, que ficam suspensas no ar por
horas, têm potencial infeccioso.

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Com isso em mente, além do uso de máscara cobrindo nariz e boca,


medidas de segurança eficazes deveriam incluir evitar espaços
fechados, garantir a ventilação e priorizar ambientes abertos. Em vez
disso, explica Mori, consolidaram-se protocolos que, na prática, não
passam de um “teatro da higiene” — como a medição de
temperatura ao entrar em ambientes fechados e o uso de álcool em
gel. “Esses protocolos dão a percepção de que o ambiente é seguro,
mas esses lugares são os mais perigosos que existem, porque são
fechados, com pessoas aglomeradas, sem máscara e falando alto”,
diz Mori, que critica também os protocolos que definem redução de
20% a 40% da lotação dos espaços. “De onde vem esse número?
Não vejo base científica”.

Para ele, pensando em estratégias de redução de danos, o correto


seria tirar as pessoas de restaurantes e shoppings, e incentivar
atividades ao ar livre. “Desse jeito, estamos apagando incêndio com
gasolina.” É que o maior risco de transmissão pelo ar se dá em
lugares fechados; a contaminação ao ar livre e sem aglomerações é
pouco provável.

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3. Medidas de isolamento e distanciamento são eficazes contra


o contágio

Em vez do “teatro da higiene”, o consenso da comunidade científica


é o de que, por enquanto, a única maneira real de frear a
disseminação do vírus são medidas de distanciamento ou
isolamento social. Sem “hospedeiros” ou “vetores”, o Sars-CoV-2
:
não consegue circular e, portanto, infectar pessoas em larga escala.
“Para reduzir o número de casos, é preciso evitar aglomerações,
usar máscara, fazer testagem e rastreamento de contatos”, resume a
médica sanitarista Ana Freitas Ribeiro, da vigilância epidemiológica
do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo. “Só fazer a
testagem é insuficiente do ponto de vista de controle, porque temos
que achar os assintomáticos, não adianta só isolar os doentes. Para
isso, é preciso encontrá-los e fazer também o rastreamento de seus
contatos. É uma medida viável só quando não há uma transmissão
tão alta.”

Medidas de distanciamento são as únicas estratégias para conter o vírus em locais onde testagem em
massa não ocorre (Foto: DrAfter123/Getty Images)

A sanitarista cita o exemplo da China, que testou 4,7 milhões de


pessoas e encontrou somente 45 sintomáticos e 120 assintomáticos.
Com os casos em ascensão, como no Brasil atualmente, a estratégia
mais viável é frear a circulação do vírus — o que, até que seja
alcançada uma cobertura vacinal ampla, só ocorrerá com medidas
de isolamento duras. “Em locais que estão com um alto número de
leitos ocupados, não tem outra medida que não a de
distanciamento”, opina Ribeiro. “É uma questão humanitária, até
porque não conseguimos ampliar o número de leitos e de
profissionais, não tem outro jeito.”

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4. O papel do Estado é fundamental

Ficar em casa, porém, é inviável para muita gente. E, depois de um


ano de pandemia, o sentimento de fadiga por falta de contato social
é comum e esperado. É por isso que políticas públicas que olham
para além das necessidades do sistema de saúde (como aumento
do número de leitos e compra de ventiladores mecânicos) são
:
essenciais. “O enfrentamento da pandemia demanda ações e
respostas coletivas, mas o processo tem mostrado a dificuldade que
a sociedade tem de pensar coletivamente”, explica a cientista política
Gabriela Lotta, professora de Administração Pública e Governo da
Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Para fazer os indivíduos pararem
de pensar individualmente, só com ações do Estado.”

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Na visão de Lotta, políticas de assistência social para aqueles em


situação vulnerável, como o auxílio emergencial que esteve em vigor
até dezembro de 2020, são cruciais para incentivar que as pessoas
fiquem em casa. É também importante investir em campanhas de
conscientização sobre as medidas de prevenção e a necessidade de
respeitar o isolamento. E, diante da não adesão da população, adotar
medidas mais drásticas de cobrança e punição. “Como no Brasil isso
[um lockdown] nunca foi feito, fica algo meia-boca e não acaba
nunca”, avalia. Para ela, a estratégia de deixar a doença seguir seu
curso, investindo na ampliação de leitos e compra de respiradores,
acaba sendo mais cara e insustentável.

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5. O único tratamento comprovado é para casos graves

Hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina, vitamina D, remdesivir… A


lista de medicamentos que foram apontados como possíveis
tratamentos para a Covid-19 é longa. Até o momento, porém,
nenhum deles teve eficácia comprovada — alguns deles, como a
hidroxicloroquina e o remdesivir, foram derrubados pelo maior
estudo feito até agora com quatro medicamentos em 32 países, o
Solidarity, da OMS. No caso específico da cloroquina, diversos
trabalhos já demonstraram inclusive sua ineficácia em tratar a
infecção.
:
O único remédio que comprovadamente reduziu a mortalidade em
doentes mais graves é a dexametasona, testada no ensaio clínico
Recovery, feito com mais de 11 mil pacientes. Os resultados
apontaram que o medicamento pode evitar uma em cada oito
mortes entre os pacientes acometidos de forma severa e salvar uma
vida a cada 25 entre os que recebem oxigênio.

Cabe destacar que não se trata de um remédio profilático, depende


de administração intravenosa e não tem efeitos para casos leves.
“Trata-se de uma doença que causa uma resposta inflamatória muito
grande, então seria muito importante descobrir um tratamento para
casos leves e moderados”, explica a sanitarista do Emílio Ribas.

"Enfrentar a pandemia demanda ações e respostas coletivas,


mas o processo tem mostrado a dificuldade da sociedade em
pensar coletivamente"

Gabriela Lotta, cientista política e professora FGV

6. Ter a doença não garante imunidade

Nosso sistema imunológico responde de diferentes maneiras a


diferentes vírus. A virologista Marilda Siqueira, chefe do Laboratório
de Vírus Respiratórios e do Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz
(IOC/Fiocruz), explica que em infecções de sarampo, por exemplo, a
imunidade adquirida é de longa duração, e que a vacina contra a
mesma doença garante proteção por cerca de 15 anos. Já a
imunidade contra o vírus sincicial respiratório, que provoca a maioria
dos casos de infecções respiratórias em bebês, tem curta duração —
por isso, a doença acaba sendo sazonal. “No caso do Sars-CoV-2, a
duração da imunidade, tanto natural quanto induzida pela vacina,
ainda não está muito clara, só vamos entender melhor com mais
anos pela frente”, explica a especialista.
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Nos últimos meses, inclusive, houve registros de casos de


reinfecção pelo novo coronavírus. Ainda que poucos, considerando-
se o número total de casos no mundo, eles acenderam debates
sobre a resposta imunológica ao vírus. É por isso que, em um
primeiro momento, os principais objetivos da vacina são diminuir a
gravidade da infecção e o número de infectados, para depois reduzir
a circulação do vírus. “Se ele vai desaparecer completamente, ainda
não se sabe, há muitos fatores que podem interferir nisso”, completa
Siqueira.

7. O vírus pode sofrer mutações

Outro ponto que tem chamado a atenção — e pode ou não ter


relação com a resposta imunológica — foi o surgimento de mutações
do Sars-CoV-2. Isso, segundo a virologista da Fiocruz, era esperado.
“Tudo que se multiplica quer sobreviver, e esse é um vírus que
conseguiu se multiplicar e infectar muitas pessoas, então há um
risco grande de causar variantes”, explica. “Se ele tivesse infectado
só 100, 200 pessoas, não teria tido tanto tempo para mutar tanto
quanto se estivesse presente em milhares de pessoas.”

A questão agora é entender se essas variantes vão afetar a resposta


às vacinas, e se a transmissibilidade e potencial patogênico são
maiores. Ao mesmo tempo, porém, o sequenciamento genômico do
vírus tem possibilitado a identificação de marcadores biológicos que
podem apontar como a doença provavelmente vai evoluir. “Nós
temos hoje um conhecimento genômico acumulado maior que o dos
outros vírus, fruto de um esforço grande de pensadores no mundo
todo”, ressalta Siqueira.

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:
8. Comunicação é fundamental

Não há como cobrar adesão e apoio da população, se não há


explicações corretas e atualizadas sobre a doença — ou, pior ainda,
se o próprio poder público contribui para a disseminação de
mensagens erradas e defasadas. Vitor Mori avalia, por exemplo, que
em nenhum momento o governo federal explicou a importância de
usar máscaras adequadas — de nada adianta usar tecidos que
permitem a entrada de ar, tapar só a boca ou não ajustá-la
corretamente ao rosto — ou que o uso de máscaras não dispensa a
necessidade de se respeitar o distanciamento e evitar
aglomerações.

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A questão dos testes foi outra confusão, na opinião de Mori: pouca


gente entendeu a diferença entre teste rápido, sorológico e PCR, por
exemplo. E não apenas as limitações e propostas de cada um, mas
também que o exame não é “passaporte” para abandonar as
medidas de proteção. “Você pode ter um PCR negativo, mas ter se
infectado no minuto seguinte ao exame”, exemplifica.

Isso demonstra que todos os conhecimentos adquiridos pela ciência


ao longo do último ano podem não significar nada se não forem
comunicados — e adotados — de forma séria e responsável. Está nas
mãos de todos, e não só dos cientistas, combater esse vírus.
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