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POPULAÇÕES EMERGENTES: A SINDEMIA DECORRENTE DA COVID-19 E A

INTERSECCIONALIDADE

Katiele Daiana da Silva Rehbein1


Nina Trícia Disconzi Rodrigues2

RESUMO: O presente artigo expõe resultado de pesquisa bibliográfica, com método de


abordagem dedutivo, e monográfico e histórico como método procedimental, sobre a sindemia
decorrente da Covid-19 como fator agravante das vulnerabilidades sociais. Assim, a pesquisa
possui como problema: As estruturas político-econômicas de combate à Covid-19 afetam, e
matam, populações vulneráveis? Deve haver mudança estratégica de enfrentamento da
pandemia? Para responder ao problema, realizou-se estudo dos principais aspectos referentes
ao tema e, feita abordagem teórica, concluiu-se que as ações implementadas para contenção do
Coronavírus acarretaram em excludentes, logo, deve-se analisar a situação pela ótica da
sindemia e não mais como pandemia.

Palavras-Chave: Covid-19; Interseccionalidade; Pandemia; Pobreza; Sindemia.

ABSTRACT: This article exposes the results of bibliographic research, using a deductive and
monographic and historical approach as a procedural method, about the union resulting from
Covid-19 as an aggravating factor for social vulnerabilities. Thus, the research has a problem:
Do the political-preservation structures to combat Covid-19 affect, and kill, vulnerable groups?
Should there be a strategic change to face the pandemic? To answer the problem, a study of the
main aspects related to the theme was carried out and, with a theoretical approach, it was
concluded that the actions implemented to contain the Coronavirus resulted in exclusions,
therefore, the situation must be analyzed from the perspective of the union and not just as a
pandemic.

Key-Words: Covid-19; Intersectionality; Pandemic; Poverty; Syndemia.

INTRODUÇÃO

Ao final do ano de 2019 iniciou-se o surto da Covid-19, doença derivada do vírus


SARS-CoV-2, da família dos Coronavírus, com registros iniciais na cidade de Wuhan, na

1
Especialista em Direito Ambiental pelo Centro Universitário Internacional; Especializanda em Direito
Constitucional Aplicado pela Faculdade Legale; Bacharel em Direito pela Faculdade Antonio Meneghetti – AMF;
Aluna do Técnico em Meio Ambiente da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM; Membra do Grupo de
Estudos e Pesquisas em Democracia e Constituição – GPDECON/UFSM e do Grupo de Pesquisa em Direitos
Animais – GPDA/UFSM, ambos coordenados pela Profª. Drª. Nina Trícia Disconzi Rodrigues Pigato e vinculados
ao Curso e Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM; E-mail:
katirehbein.direito@gmail.com.
2
Doutora em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo – SP; Professora Adjunta do Departamento de
Direito da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Democracia e Constituição – GPDECON/UFSM, vinculado ao Curso e Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direitos Animais –
GPDA/UFSM, vinculado ao Curso e Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa
Maria – UFSM. E-mail: nina.rodrigues@ufsm.br.
província de Hubei, na China, com mais de 86.749.940 de casos confirmados, em panorama
mundial, com registro de pelo menos 1.890.342 mortes confirmadas, em 188 países, até o dia
08 de janeiro de 2021 (ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DA SAÚDE, 2021).
No início, a cidade de Wuhan e suas proximidades foram fechadas para que não
houvesse o alastramento do vírus. Entretanto, a Covid-19 espalhou-se rapidamente para os
países vizinhos e atingiu praticamente todos os países do mundo. Desde o dia 11 de março de
2020, data da declaração da Covid-19 como uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), se vive um momento de reconfiguração social.
Nesse contexto, salienta-se que a Covid-19 evoluiu ao status de epidemia para uma
pandemia rapidamente. Todavia, pesquisadores apontam que essa terminologia já não é a mais
correta para se referir a crise mundial do Coronavírus, isso porque passou a ser considerada
uma sindemia.
Brevemente, pode-se dizer que uma sindemia é caracterizada por trazer a circunstância
em que duas ou mais doenças interagem, acarretando danos maiores que somente a soma dessas
doenças. Os impactos ocasionados por essa interação também é facilitado pelas condições
sociais e ambientais que, de alguma forma, aproxima essas duas doenças ou tornam a população
mais vulnerável ao seu impacto.
Não há como falar em sindemia sem trazer as vulnerabilidades sociais, assim como se
trazer a vulnerabilidade sem considerar a interseccionalidade desses grupos minoritários. Dessa
forma, é notório que a Covid-19 assola e mata mais rigorosamente a população negra e pobre,
isso porque são os grupos mais atingidos, dadas as condições de vida econômico-social e
sociocultural.
Ante o exposto, evidencia-se que a presente pesquisa tem por objetivo apresentar o
resultado de uma pesquisa bibliográfica, sendo o escopo principal do estudo analisar o cenário
da sindemia da Covid-19, sob perspectiva interseccional e as vulnerabilidades sociais. Desse
modo, a pesquisa se fundamenta pela necessidade de explicação de diferentes aspectos que
envolvem a problemática que viabiliza a pesquisa, a qual atina seu cerne na seguinte questão:
As estruturas político-econômicas de combate à Covid-19 afetam, e matam, populações
vulneráveis? Deve haver mudança estratégica de enfrentamento da pandemia?
Buscando encontrar respostas ao problema, a pesquisa utilizou-se da abordagem
dedutiva, sendo que a mesma parte de uma abordagem global de conceituação e identificação
historicidade da Covid-19 e da evolução do status de pandemia para sindemia, para, a partir
dessa abordagem mais ampla, trazer as perspectivas interseccionais da vulnerabilidade social.
E, também, da metodologia procedimental monográfica e histórica.
Desse modo, o trabalho se estruturou em duas partes. Onde, na primeira, busca-se
expor noções essenciais à compreensão da história da crise mundial derivada da Covid-19,
assim como a evolução da terminologia pandemia para uma sindemia; e, em segundo momento,
verificar o combate ao vírus e o genocídio dos pobres, trazendo as perspectivas interseccionais
da vulnerabilidade social dos grupos minoritários.

1 A HISTORICIDADE DA COVID-19: DE PANDEMIA À SINDEMIA

Historicamente, não trata-se da primeira vez que a humanidade é assolada por doença
viral cujo contágio excedeu as fronteiras do país epicentro da propulsão. A lista de vírus é
abrangente (SENHORAS, 2020). Toma-se como exemplo o HIV, que se encontra presente na
sociedade desde o ano de 1920, quando descoberto na capital da República Democrática do
Congo, em Kinshasa; o SARS-CoV, que é da família dos Coronavírus, vírus que derivou a
doença da Síndrome Respiratória Aguda Grave, entre os anos de 2002 e 2003; o vírus MERS-
CoV, também da família dos Coronavírus, causador da Síndrome Respiratória do Oriente
Médio, que persiste desde o ano 2012; o Vírus Ebola, que assolou a sociedade entre os anos de
2014 e 2016; e, atualmente, a Covid-19, doença causada por um vírus que também é da família
Coronavírus, o SARS-CoV-2 (QUAMMEN, 2020).
O surto de SARS-CoV-2 teve registros de início em 31 de dezembro do ano de 2019,
quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi avisada sobre vários casos de pneumonia
da cidade de Wuhan, que faz parte da província de Hubei, na República Popular da China
(ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2020), onde funcionava o mercado de
frutos do mar de Huanan, com a venda de animais silvestres, conhecidos como “mercados
úmidos”. As origens genéticas do vírus SARS-CoV-2 trouxeram a compreensão de que ele é
um rearranjo de um Coronavírus que transbordou e se sintetizou com o sistema imunológico
humano, durante ou antes do surto de Wuhan, de um morcego com uma cepa de pangolim (que
são animais proibidos de serem comercializados, pois estão em extinção) (WALLACE, 2020).
O novo Coronavírus foi o responsável por causar a doença da Covid-19, denominada
cientificamente por Coronavirus Disease 2019, e originou infecções respiratórias que variam
de quadros que vão de infecções assintomáticas a casos respiratórios considerados graves, que
levam ao óbito rapidamente, requerendo atendimento médico célere e específico aos infectados
(ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2020).
No dia 30 de janeiro de 2020, a OMS declarou que o SARS-CoV-2 tratava-se de uma
emergência de saúde pública de importância internacional (ESPII) (ORGANIZAÇÃO
MUNDIAL DA SAÚDE, 2020). Em virtude desse cenário, como meio de prevenção, o Brasil
sancionou a Lei nº 13.979, no dia 06 de fevereiro de 2020, que trouxe as “medidas para
enfrentamento da emergência de saúde pública”, decorrente do novo Coronavírus (BRASIL,
2020). Posteriormente, em 11 de março de 2020 a OMS elevou o estado de contaminação pelo
vírus à pandemia (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2020).
Esse alerta global auferido pela OMS tornou-se muito importante para que os países
tentassem minimizar os meios de propagação do vírus, momento de implementar medidas que
viessem a descontinuar o ciclo de transmissão da Covid-19. Ainda, tem-se que a relevância do
poder de transmissibilidade do vírus atravessa por várias classificações que vão de endemia,
epidemia, até chegar a uma pandemia e sindemia.
Nessa perspectiva, cumpre elucidar que quando uma doença subsiste somente em uma
determinada região, ou quando as proporções são ínfimas e a doença não sobrevive em outros
lugares, é conceituada como uma endemia. Quando essa doença se alastra para outras
populações, em mais de uma cidade ou região, conceitua-se como uma epidemia. Contudo,
quando uma epidemia se espalha rapidamente de forma desequilibrada, por mais de um
continente ou por todo o mundo, ela é compreendida como uma pandemia (FRANÇA, 2020).
A Covid-19 evoluiu nessas três conceituações de forma muito rápida, e desde que foi
caracterizada pela OMS como uma pandemia, fora tratada como uma, visto sua abrangência.
Todavia, essa terminologia já não é a mais correta a ser utilizada. Isso porque a doença passou
a ser compreendida como uma sindemia por diversos estudiosos do tema.
O termo sindemia, que trata-se de um neologismo que combina sinergia com
pandemia, foi cunhado pelo antropólogo americano Merrill Singer, na década de 1990, para
explicar a circunstância em que duas ou mais doenças interagem, acarretando danos maiores
que somente a soma dessas doenças (BATISTA et al., 2020). Ademais, o impacto causado por
essa interação também é facilitado pelas condições sociais e ambientais que, de algum modo,
aproxima essas duas doenças ou tornam a população mais vulnerável ao seu impacto, ou seja,
essa interação com a circunstância social é o que faz com que não seja apenas uma comorbidade
(PLITT, 2020).
No caso da Covid-19, nota-se como a doença interage com uma variedade de
condições pré-existentes (diabetes, câncer, problemas cardíacos e diversos outros fatores) e se
percebe uma taxa desproporcional de resultados adversos em populações desfavorecidas,
primordialmente de baixa renda, além de minorias étnicas (PLITT, 2020).
Uma pandemia como a contemporânea não engloba somente um vírus que “ataca”
corpos. Ela significa, também, uma alteração da ordem social, além da interação dessas
doenças. Logo, falar em sindemia propõe uma interação entre os agentes causais, os processos
sociais, e os estados patológicos, que representam uma patoplastia complexa. Sendo assim,
como já mencionado, a terminologia sindemia deriva da soma de sinergia com pandemia.
Entretanto, se pode utilizar a partícula “sin” (sem) como um indicador de fusão de horizontes
conceituais, já que a busca rápida pelas causas desordena a necessidade de compreender o que
está acontecendo (STEPKE, 2020).
Salienta-se que se os países tratarem da Covid-19 como uma sindemia vai haver uma
visão mais ampla do momento social contemporâneo, abrangendo a educação, emprego,
habitação, alimentação, e meio ambiente. Tratando a Covid-19 mormente como uma pandemia
exclui tal prospecto mais amplo (HORTON, 2020).
Dito isso, pode-se descrever que uma abordagem sindêmica revela aspectos biológicos
e sociais, interações que são importantes para o prognóstico, tratamento e política de saúde.
Limitando o dano causado pelo SARS-CoV-2 exigirá uma atenção muito maior para a
desigualdade socioeconômica do que até agora foi admitido. Uma sindemia não é apenas uma
comorbidade. As sindemias são caracterizadas por aspectos biológicos e sociais, interações
entre condições e estados, e essas interações aumentam a suscetibilidade de uma pessoa,
chegando a prejudicar sua saúde (HORTON, 2020).
Ainda, pela perspectiva de sindemia, tem-se que as ameaças postas à saúde não são
epidemias concorrentes, assim como fenômenos separáveis. Em vez disso, se manifestam de
forma desproporcional e tendem a se agrupar entre populações específicas, principalmente as
mais vulneráveis socialmente, com pouco poder aquisitivo financeiro. Logo, engloba um
conjunto de problemas de saúde que agem mutuamente de forma potencializador, onde, agindo
paralelamente num contexto de ambiente social e físico deletério que aumentam a
vulnerabilidade, impactam significativamente o estado geral de doença de uma população, seja
ela física ou mental (SINGER, 2010).
Nota-se que as desigualdades sociais, além de seus problemas particulares, são
categóricos no agravamento de doenças, principalmente no contexto atípico atual. As
contrariedades que consternam a humanidade recaem assertivamente sobre os grupos mais
vulneráveis. No Brasil, vista a herança escravista, que ainda detém reflexos do paradigma
colonial, a vulnerabilidade recai sobre as mulheres, negros, homossexuais, transexuais, dentre
outros, mais rigorosamente quando são pobres (UNIVERSIDADE..., 2020). Nesse sentido,
passa-se a análise da interseccionalidade da vulnerabilidade social durante a pandemia da
Covid-19.
2 DO COMBATE À COVID-19 AO GENOCÍDIO DOS POBRES: PERSPECTIVAS
INTERSECCIONAIS DA VULNERABILIDADE SOCIAL

A interseccionalidade pode ser entendida como um conceito sociológico que se


preocupa com as interações e marcadores sociais nas vidas dos grupos minoritários. Através
dela que é possível compreender que existem diversas formas de opressão na sociedade – seja
por classe social, raça ou outras –, que correlacionam-se entre si e trazem as mais variadas
formas de submissão social, trazendo a baila que são inseparáveis e tendem a discriminar e
excluir os sujeitos da sociedade que são de grupos vulneráveis. Portanto, pode ser considerada
como uma ferramenta analítica relevante para se analisar as relações sociais de classe, raça e
sexo, e a adoção de políticas públicas eficientes.
Salienta-se que esse termo foi cunhado durante o desenvolver do movimento feminista
negro, nos Estados Unidos da América (EUA), na década de 1970. O movimento defendia um
pensamento e posicionamento crítico para a edificação de identidade e subjetividades a partir
do marco de cenários de hierarquizações dominações de gênero, classe, raça e sexualidade.
Assim, o conceito se difundiu como símbolo da discussão social das vivências sociais, mas
celeremente passando a fundamentar questionamentos ao cruzamento de marcadores sociais
que afetam as minorias sociais (HIRATA, 2014; ALVES; ARAÚJO, 2020).
Segundo Crenshaw (2002), trata-se do problema que visa capturar os resultados
estruturais e dinâmicos entre dois ou mais eixos de subordinação. Especificamente, a
interseccionalidade trata do meio pelo qual a opressão de classe, o racismo, patriarcalismo e
outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que constituem as posições
relativas de classes, mulheres, raça, etnias e outras. Ademais, ela trata da forma com as ações
políticas específicas geram opressões que fluem nesses eixos, edificando aspectos dinâmicos
ou ativos do desempoderamento desses grupos vulneráveis.
Aqui se versa sobre uma teoria interdisciplinar que busca apreender a complexidade
das desigualdades sociais por meio de uma ótica integrada. Ela questiona o enclausuramento e
a hierarquização dos eixos da diferenciação social, que são as categorias dos grupos
vulneráveis. A perspectiva interseccional vai muito além do mero reconhecimento da
multiplicidade dos sistemas de opressão que agem a partir dessas categorias e roga sua interação
na produção e na reprodução das desigualdades sociais (HIRATA, 2014).
Historicamente, as tragédias que atingem a humanidade, têm maior peso sobre os
grupos que são considerados vulneráveis socialmente. No Brasil, especificadamente, essas
estruturas desiguais mantêm-se porque a história é assinalada por uma herança de escravidão,
algumas pessoas ainda se comportam e pensam dentro daquele sistema colonial e a
vulnerabilidade acaba atingindo massivamente as minorias, com mais intensidade quando são
pobres (UNIVERSIDADE..., 2020). E a sociedade moderna se organiza a partir dessa
colonialidade, que espelha as estruturas de dominação e exploração de um grupo sobre outro,
“fiscalizando” e regulando as autoridades políticas e os recursos de produção. Essas relações se
instituem e se justificam ideologicamente a partir de motivos racializados levando à exclusão
de sujeitos (QUIJANO, 2009).
Nesse sentido, não há como falar em vulnerabilidade sem considerar a
interseccionalidade desses grupos minoritários. Pois são rigorosamente esses grupos os mais
atingidos, devido não apenas às condições de vida econômico-social, mas sociocultural. Isso
porque encontram-se em moradias precárias, sem o mínimo saneamento básico, ocupados em
subempregos, sem atendimento efetivo de saúde e, somada a toda essa conjuntura, prevalece
toda a carga de preconceito sobre eles (UNIVERSIDADE..., 2020).
Notório é que a Covid-19 mata no Brasil mais pessoas que são negras e pobres. Com
a evolução da pandemia, morreram pessoas pobres na linha de frente do tratamento da doença,
trabalhadores informais de serviços essenciais, trabalhadores que não tiveram como deixar de
trabalhar, além de pessoas pobres idosas e com comorbidades, com acesso desigual ao sistema
de saúde (GRAGNANI, 2020).
Pesquisas apontam como a pandemia impacta de forma diferente os países e regiões
mais pobres do mundo, ao passo que as populações consideradas de baixa renda utilizam com
mais frequência os meios de transporte público, possuem maior número de moradores por
residência, menos acesso a saneamento básico, além das dificuldades de se efetivar o
isolamento social, dadas as características de emprego e renda (PIRES et al., 2020).
Por conseguinte, ao relacionar a dimensão da interseccionalidade dos grupos
minoritários com o cenário pandêmico atual, fica evidente a necessidade de que, concomitante
ao enfrentamento à Covid-19 que deve acontecer de modo geral, as ações só serão, de fato,
efetivas se houverem estratégias que ponderem que a organização social é pautada na
desigualdade social. À vista disso, é inadiável a construção de políticas públicas que englobem
as particularidades dos diversos grupos sociais que se encontram nessa situação, ou seja, sair
da ótica de pandemia e olhar pela perspectiva da sindemia.
Compreender as peculiaridades desses grupos vulneráveis da sociedade é, por
exemplo, reconhecer que a possibilidade de lavar as mãos com frequência, utilizar álcool gel,
entre outras recomendações de higiene e segurança estipuladas, são ações extremamente
complexas de serem adotadas, primordialmente onde há déficit de saneamento básico. Segundo
dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), coletados em 2018, o
número de pessoas que não têm acesso a água tratada no Brasil chega a quase 35 milhões, e 100
milhões não possuem esgoto. Logo, fica evidente como as condições de prevenção e cuidados
se instituem de modos diversos a segmentos sociais específicos, assim como o potencial de
letalidade do SARS-CoV-2 (CALMON, 2020).
No mesmo sentido, tem-se que 15% da população brasileira vive sem abastecimento
de água e cerca de 36% reside em localidades sem coleta de esgoto sanitário, seja por rede
coletora ou pluvial, a crise pandêmica contemporânea desmantela a relação intrínseca entre a
desigualdade espacial e a desigualdade social, primordialmente nas grandes cidades (ARRAIS
et al., 2020).
A densidade demográfica das regiões somada à falta de infraestrutura de saneamento
potencializa os reflexos da pandemia, que atinge especificamente a parcela mais vulnerável da
sociedade. Outro fator que traz as especificidades da dimensão da crise do Coronavírus é a
dificuldade de cumprir com o isolamento social. Sendo assim, fica evidente que a pandemia
não atinge a todos os sujeitos da sociedade na mesma intensidade, isso porque ela tem classe
social, e é nessa seara que a suposição da democratização da doença se rompe (ARRAIS et al.,
2020).
Também, pode-se trazer algumas razões para as taxas de mortalidade serem maiores
na população pobre no Brasil. Podendo ser pontuadas a acessibilidade a serviços básicos de
saúde, as condições mais precárias de moradia, falta de acesso a saneamento básico e a fome,
ou necessidade de trabalhar para ganhar o dinheiro para a comida do dia. Mesmo com o auxílio
de R$600,00 (seiscentos reais) para os trabalhadores informais, a renda tornou-se insuficiente,
realidade completamente distinta à situação de quem pode ficar isolado em quarentena ou
trabalhando home office (GRAGNANI, 2020).
Ademais, as condições relativas ao bem-estar pessoal, como alimentação saudável,
exercícios físicos e lazer, não são uma realidade da população pobre brasileira. Pessoas
vulneráveis por questões de classe, com menos dinheiro, tem menos acesso a uma boa
alimentação e consome mais alimentos industrializados. Também está sujeita a mais estresse
pela falta de estrutura de transporte, de moradia, dentre outros. Ainda, outro fator grave no
contexto da pandemia é a prevalência de comorbidades, como a diabetes e hipertensão, que
afetam essa população desproporcionalmente, não por questões de cunho hereditário, mas
porque está mais exposta a situações consideradas precárias (GRAGNANI, 2020).
E, então, afinal qual seria a solução para essa problemática? A mudança de estratégia
no enfrentamento da crise! Como mencionado anteriormente, deve-se analisar o contexto sob a
égide da sindemia e não somente como uma pandemia, isso porque outorga passar da
abordagem clássica da epidemiologia ao risco de transmissão para uma perspectiva da pessoa
em seu contexto social.
Esse posicionamento é compartilhado por cientistas que acreditam que, para a
contenção e também do impacto da Covid-19, é primordial contemplar as condições sociais que
tornam determinados grupos mais vulneráveis ao vírus. Desse modo, Singer traz que se
realmente se busca acabar com a pandemia deve-se aprender a lidar com as situações
subjacentes que tornam um sindicato possível, isto é, lidar com os fatores estruturais que
dificultam o acesso dos pobres à saúde ou a uma alimentação adequada (apud PLITT, 2020).
Portanto, não importa o quão eficaz seja uma vacina ou um tratamento, a busca por
uma solução puramente biomédica contra a Covid-19 não será eficaz para acabar com o vírus.
A menos que os governos dos mais diversos países estruturem políticas públicas e programas
que revertam as profundas disparidades sociais, do contrário as sociedades jamais estarão
realmente protegidas da Covid-19 (HORTON, 2020).

3 CONCLUSÃO

Consoante explanado no decorrer da pesquisa, a Organização Mundial da Saúde –


OMS, no dia 11 de março de 2020, decretou a crise contemporânea mundial ao status de
pandemia, decorrente da Covid-19, doença esta que é derivada do novo Coronavírus, o Sars-
CoV-2. O vírus, inicialmente, foi identificado na cidade de Wuhan, na província de Hubei, na
República Popular da China, no final do ano de 2019, espalhando-se de forma descontrolada
para quase todos os países do mundo, inclusive o Brasil.
As terminologias e formas de incidência do vírus evoluíram nas conceituações
rapidamente, indo de epidemia para pandemia e, agora, tratada por estudiosos do tema como
uma sindemia, isso por possuir um alto grau de transmissibilidade. Logo, notou-se que os
grupos que vivenciam os cotidianos de maior pobreza estão mais expostos à Covid-19. Portanto,
o contexto socioeconômico é um fator decisivo na maior vulnerabilidade à doença, atuando
como um propulsor para a expansão do novo Coronavírus.
A população em estado de vulnerabilidade social é a mais impactada pelos efeitos da
doença, visto a ausência ou insuficiência dos recursos financeiros, estratégias para a prevenção
e/ou tratamento da comorbidade em seus cotidianos. Tudo isso associado às dificuldades de
ficar em isolamento social, acesso à saúde, saneamento básico e a manutenção do emprego,
mesmo que informal, e renda.
Sendo assim, tem-se que as populações que são consideradas de baixa renda utilizam
majoritariamente os meios de transporte público, possuem maior número de moradores por
residência, menor acesso ao saneamento básico, além das dificuldades de se efetivar o
isolamento social, dadas as características de emprego e renda, estando mais propensas a
fazerem o vírus circular, além de estarem mais vulneráveis a contraírem a infecção.
Isso posto, é possível afirmar que, dentre os resultados encontrados como resposta ao
problema que ensejou a pesquisa, a cada ação que foi implementada pelo Poder Público para
combater o vírus, acarretou em excludentes aos grupos vulneráveis socialmente, mormente os
pobres, no Brasil e não somente neste. Exemplo disso é a orientação de lavar constantemente
as mãos, porém quase 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água potável, ou seja, 15% da
população brasileira, assim como 100 milhões não possuem rede básica de esgoto nas
residências, evidenciando a precariedade de moradia. Além de não poderem cumprir com o
isolamento social, dada a importância do emprego e da renda para a sobrevivência própria e da
família.
Fato é que as estruturas político-econômicas de combate à Covid-19 têm afetado, e
matado, as populações que são consideradas vulneráveis socialmente, ocorrendo um verdadeiro
genocídio dos pobres no Brasil. Ademais, a mudança estratégica de enfrentamento da pandemia
é necessariamente urgente, devendo-se analisar a situação pela ótica da sindemia, permitindo
se deslocar da abordagem clássica da epidemiologia para uma visão da pessoa em seu contexto
social.
Por fim, a abrangência pela perspectiva sindêmica do contexto mundial contemporâneo
permite priorizar os grupos mais vulneráveis. Além de expor a necessidade de remanejamento
de recursos públicos para reforçar as ações de promoção da saúde e medidas preventivas para
essa população, coloca em evidência que deve haver políticas novas de formulação e
estabilização socioeconômica, diminuindo desigualdades sociais. Isso tudo porque a pandemia
da Covid-19 não é democrática como está sendo abordada, ela tem classe social e mata mais
incisivamente os pobres.

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