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SEÇÃO TEMÁTICA:

AS LIÇÕES DA PANDEMIA

A Aprendizagem da Dor
Nadja HermannI
I
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS – Brasil

RESUMO – A Aprendizagem da Dor. O interesse pela pandemia extrapola a


área de especialistas em saúde pelas repercussões em todos os âmbitos da
vida, particularmente na educação. Ao mesmo tempo que traz o estranho, o
que é ameaçador, desestabilizando a ordem vigente, a dolorosa experiência
mobiliza nossa capacidade de sentir e aprender. Dessa aprendizagem da
dor já é possível recolher as primeiras lições da pandemia: o reconhecimen-
to da vulnerabilidade da condição humana, a importância da verdade para
enfrentar os problemas e a solidariedade com o outro. O artigo conclui que
a aprendizagem e o saber mais amplo decorrentes dessas lições tem uma
força transformadora, que se constitui numa espécie de superação, não no
sentido de um sentimentalismo ingênuo, mas algo que surge da própria si-
tuação dolorosa, pois, como percebe Hölderlin, justamente onde há o peri-
go cresce a salvação.
Palavras-chave: Aprendizagem. Vulnerabilidade. Verdade. Solidariedade.

ABSTRACT – Learning from Pain. The interest in the pandemic goes


beyond the health professionals’ area of expertise due to repercussions in
all areas of life, particularly in education. At the same time that it brings the
foreign, what is threatening, destabilizing the current order, the painful ex-
perience mobilizes our capacity to feel and learn. From this learning throu-
gh pain, it is already possible to take the first lessons of the pandemic: the
recognition of the vulnerability of the human condition, the importance
of truth to face problems, and solidarity with others. The article concludes
that the learning and broader knowledge resulting from these lessons have
a transformative force, which constitutes a kind of overcoming, not in the
sense of naive sentimentality, but something that arises from the painful
situation itself, because, as Hölderlin realizes, precisely where there is dan-
ger, salvation thrives.
Keywords: Learning. Vulnerability. Truth. Solidarity.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e110033, 2020. 1


http://dx.doi.org/10.1590/2175-6236110033
A Aprendizagem da Dor

E não se podia encontrar ninguém que, numa tal ocasião,


não tivesse sido experimentado pela doença, pela morte
ou pelo luto (Lucrécio Caro, Da natureza).

Mas onde há perigo,


cresce também aquilo que salva (Hölderlin, Patmos).

Primeiras Palavras
Na história epidemiológica há registro de grandes pandemias,
todas virulentas e ameaçadoras. Lembremos apenas duas das mais
conhecidas: a peste bubônica que atingiu a Europa entre 1347-1351,
matando 200 milhões de pessoas, e a gripe espanhola, que teve início
em 1918, com uma estimativa entre 40 a 50 milhões de mortos1. Mes-
mo sabedores disso, atônitos e com medo, assistimos ao surgimento da
Covid-19, algo inusitado, uma vez que não havíamos vivido uma expe-
riência dessa magnitude, deixando inclusive governos desorientados.
Convém destacar que epidemiologistas não chegam a se surpreender
e especialistas em informática médica alertam sobre a probabilidade
de “uma pandemia maior que a atual”, tendo como “base a possibilidade
teórica de mutações de vírus” (Massad, 2020). Mas se a abordagem epide-
miológica e médica cabe aos especialistas, o interesse pela pandemia
extrapola em muita a área especializada, assumindo grande amplitude,
pois a doença e a morte repercutem em todas as dimensões da vida. Pelo
impacto avassalador que provocam, as pestes instigam o pensamento,
numa espécie de convocação à reflexão, à apreciação legítima da rea-
lidade, como se observa no famoso poema filosófico de Tito Lucrécio
Caro (ca. 96 a. C. - ca. 55 a. C.), Da natureza (De Rerum Natura), cujos
últimos versos narram a peste que abalou Atenas, na antiga Grécia, em
430 a. C., durante a Guerra do Peloponeso, deixando antever, em bela
rítmica, uma intenção pedagógica. O poema retoma, com notável talen-
to poético, a filosofia materialista de Epicuro2, segundo a qual a natu-
reza é um grande sistema em que todas as partes se acham em relação
recíproca. Tudo é composto por elementos em perpétuo movimento e a
vida humana está submetida às mesmas condições que regem o univer-
so, numa dinâmica entre movimento criador e destruidor presentes na
natureza. Conhecendo o sistema da natureza, o homem pode afugentar
os horrores e dispersar os obscurantismos da mente, afastar o medo dos
deuses e da morte incutidos pelas religiões e, assim, buscar a felicida-
de. A catastrófica pandemia referida no poema ensina a humanidade
que os males que a afligem não são causados por castigos divinos: “Já
não tinham importância nenhuma nem a religião nem os numes dos
deuses: a dor presente era muito mais forte” (Lucrécio, 1973, VI, 1279).
Os males se dissipam pela correta compreensão da natureza das coisas,
essa é a lição da filosofia de Epicuro que o poeta quer mostrar. Note-se
que era comum em textos antigos a referência à peste, como se observa
no início do Édipo Rei, de Sófocles, mas, nesse caso, está associada ao
castigo divino. Em Da natureza, a introdução da peste não tem mais
esse sentido; ao contrário, é uma aposta na ratio.

2 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e110033, 2020.


Hermann

Apesar da longa história das pandemias e seus impressionantes


registros, com a Covid-19 vivemos uma situação singular, tanto por
sua magnitude e consequências já visíveis como por aquelas ainda não
dimensionadas. Sua capacidade de contágio foi altamente potenciali-
zada devido às condições da sociedade globalizada, com grandes aglo-
merações urbanas e populações de alta densidade geográfica e intensa
mobilidade. A epidemia avançou rapidamente 3 e após breves períodos
de controle retorna em novas ondas, evidenciando que na natureza há
sempre algo que escapa, como ensinavam os gregos antigos. Já a ciência
moderna quer desvelá-la, apostando em novas condições epistêmicas e
tecnológicas para dominá-la, como indica a chegada da vacina. Tenta-
mos controlar tudo o que está a nossa volta, mas a natureza exerce muito
mais poder do que supúnhamos. Diante dessa situação pandêmica, Ha-
bermas (2020), em entrevista ao Jornal Frankfurter Rundschau, afirma:
“nunca se soube tanto sobre nosso não saber e sobre a pressão de atuar
e viver na incerteza”.
Acostumados que estávamos com respostas médicas quase ime-
diatas para muitas doenças, a epidemia trouxe à luz a fragilidade huma-
na e a imprevisibilidade dos riscos e das consequências sociais e econô-
micas, provocando desorientação e desamparo. Não tivemos a chance
de nos refugiar em outra cidade para escapar da peste como fizeram as
personagens de Decameron, de Boccaccio (2002), no século XIV, ao se-
rem acometidas pela peste negra. Fuga que se traduziu numa forma de
superação da morte e do desespero. Tal exemplo não é uma mera ilus-
tração, tampouco uma ironia; na verdade, Decameron permite um exer-
cício comparativo entre dois períodos históricos diversos, evidencian-
do que, apesar do alto grau de desenvolvimento tecnológico, ficamos
sem refúgio, quase imobilizados pelo alto grau de transmissibilidade do
patógeno. Tentando evitar o contágio, os governos adotaram medidas
como distanciamento social e isolamento, proibição de viagens, fecha-
mento do comércio e da indústria, ampliação da infraestrutura hospi-
talar, além da obrigatoriedade do uso de máscara e cuidados de higiene.
Enquanto estes últimos cuidados dependem do grau de responsabili-
zação de cada indivíduo, a ciência assume a responsabilidade social,
concentrando esforços coletivos em pesquisas para conhecer o vírus e
produzir vacinas. O fechamento das escolas foi uma das medidas mais
perturbadoras, sobretudo porque privou a interação entre crianças, as-
pecto decisivo no seu próprio desenvolvimento e aprendizagem.

Quais Lições Aprendemos com a Pandemia?


Pode-se afirmar que há uma dimensão fenomenológica na pan-
demia como um acontecimento que traz o estranho, o que é ameaça-
dor, porque desestabiliza a ordem vigente, cria interditos, desautoriza
respostas habituais, impondo novos modos de organização da vida e
de relacionamento com os outros, além da adoção de medidas extra-
ordinárias, muitas delas só conhecidas em estados de guerra. Tais mu-
danças acarretam inquietação, perturbação e insegurança existencial.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e110033, 2020. 3


A Aprendizagem da Dor

O quanto somos afetados depende do amplo espectro de fatores asso-


ciados à pandemia – as características do patógeno, a disponibilização
de redes de proteção à saúde, as condições sociais, psíquicas, econô-
micas e políticas – e do grau de esclarecimento científico e educativo.
Este último será decisivo em nossa própria proteção e no controle da
transmissão do vírus.
O significado dos impactos e das mudanças na vida cotidiana e
social provocado pela Covid-19 ainda está sendo avaliado. A dolorosa
experiência atinge profundamente não só o corpo, como também o es-
pírito humano, tornando incontornáveis certas perguntas, mobilizan-
do nossa capacidade de sentir e aprender, pois o pensamento crítico
não se detém, se lança em busca de possibilidades interpretativas. Um
olhar atento à dinâmica interna da aprendizagem desencadeada pela
epidemia em suas múltiplas implicações – a despeito da persistência de
incertezas – já permite recolher as primeiras lições extraídas da expe-
riência. A presente Seção Temática foi produzida nessa perspectiva: O
que aprendemos? Quais lições se impõem?
Intitulada esta Seção como As Lições da Pandemia, faz-se oportu-
no um breve esclarecimento sobre o emprego do termo. Lições aqui não
se referem àquilo que se transmite por ensino, nem qualquer forma de
transmissão do saber, mas se vinculam às origens persistentes da ati-
vidade de aprender profundamente enraizadas na experiência da vida.
Das grandes catástrofes humanas podemos aprender algo verdadeira-
mente vital, pois transmutam nossa compreensão, trazem o tema em
questão para um novo tópos. Trata-se de mudanças na consciência, da
instauração de um saber da “experiência que se faz” (Gadamer, 1990, p.
359). O conceito de experiência em Gadamer é potente para dimensio-
nar o sentido radical de aprender uma lição. Como não há propriamente
uma teoria da experiência e tampouco deve ser confundida com a ex-
perimentação científica que depende de repetição, Gadamer retoma, a
partir da dialética hegeliana, o caráter de negatividade da experiência,
justamente por considerar que, nesse aspecto, há um notável acerto de
Hegel. Ou seja, na experiência somos confrontados com a estrutura de
negatividade, o que não significa negar os fatos, como ocorre nas men-
tes eivadas de negacionismo e fundamentalismo. Ao contrário,
[...] significa que até então não havíamos visto corretamen-
te as coisas e que só agora nos damos conta de como real-
mente são. Assim, a negatividade da experiência possui um
sentido marcadamente produtivo. Não é simplesmente um
engano que é visto e corrigido, mas representa a aquisição
de um saber mais amplo (Gadamer, 1990, p. 359).
Aquele que experimenta o sofrimento, o medo e as restrições im-
postas pela pandemia volta-se para si mesmo (inverteu-se em termos de
dialética hegeliana) e ganha assim novo horizonte, dentro do qual algo
se converte em experiência para ele mesmo. Por meio do saber mais
amplo promovido pela experiência se alteram o próprio entendimento
sobre a situação e sobre nós mesmos, pois se reconhece aquilo que apa-
recia como estranho.

4 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e110033, 2020.


Hermann

Faz parte da estrutura da experiência a frustração de muitas ex-


pectativas, sendo, de certo modo, uma aprendizagem da decepção, o
que a torna dolorosa, mas não deve ser confundida com pessimismo.
A experiência prepara o discernimento, que não é simplesmente sa-
ber algo específico a respeito de um estado de coisas, mas “[...] contém
sempre um retorno de algo que estávamos presos por cegueira. Nesse
sentido, [discernimento] implica sempre um momento de autoconhe-
cimento” (Gadamer, 1990, p. 362). Portanto, o que aprendemos e com-
preendemos pela experiência tem um caráter formativo, prepara nossa
capacidade de ponderar, habilitando juízos mais precisos e ampliando
o horizonte interpretativo, o que mantém a abertura a novas experiên-
cias.
Os efeitos catastróficos de uma pandemia nos ensinam a buscar
respostas operacionais, científicas e técnicas tais como investir na pes-
quisa científica, ampliar redes de atendimento hospitalar, buscar for-
mas de conduzir o ensino por meios de tecnologias de informação etc.
São respostas decisivas no enfrentamento técnico do problema, mas a
pandemia ensina também a pensar o sofrimento. A aprendizagem da
dor nos faz experienciar a finitude humana, que, na sua forma mais
autêntica, conduz “[...] ao limite absoluto todo dogmatismo nascido da
alma humana que se deixa dominar por seus desejos” (Gadamer, 1990,
p. 363). A experiência da finitude permite dissipar as diferenças entre as
expectativas realistas e os desejos.
Entre as lições aprendidas com a pandemia, destaca-se em pri-
meiro lugar o reconhecimento da perturbadora vulnerabilidade huma-
na. Situações trágicas e dolorosas constituem-se em um dos primeiros
ensinamentos contra a autossuficiência humana, porque nos confronta
com limites, lembra que somos mortais e que não há nenhum sentido
em pretender características divinas. Aprendemos que não devemos
apenas nos proteger contra o terrível contágio do vírus, mas que a vul-
nerabilidade nos torna também dependentes de informação qualifica-
da, das redes de proteção à saúde, das políticas públicas e da educação
institucional (escolas, Universidades). Reconhecer a vulnerabilidade e
vencer o abismo da onipotência se impõem como condição de empa-
tia e de solidariedade para nos compadecermos com o sofrimento do
outro, que na pandemia assume grande proporção, tanto pela doença
como pela morte.
A vulnerabilidade expõe, sobretudo, a nossa dependência da in-
teração humana, sobretudo seu caráter fundante para o processo edu-
cativo, uma vez que mesmo as experiências mais exitosas de educação
remota não contemplam aquilo que o encontro humano oferece. A ex-
clusividade do ensino remoto foi circunstancial, mas evidenciou, contra
um contentamento ingênuo e, às vezes eufórico, que a formação exige,
além do confronto do sujeito consigo mesmo, o encontro com os outros
na perspectiva de amadurecimento da própria identidade, capacidade
de deliberação e abertura ao outro. Mead (2008) demonstrou de forma
inequívoca o quanto interação e educação se relacionam.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e110033, 2020. 5


A Aprendizagem da Dor

De uma segunda lição aprendemos que, para enfrentar os proble-


mas, não necessitamos de ilusões e sim de verdade. Essa certamente é
uma dura lição, pois tem no seu cerne a pergunta de Nietzsche: “Quanta
verdade suporta, quanta verdade ousa um espírito?” (Nietzsche, 1988, p.
258). A grandiosidade dessa pergunta vai contra a estreiteza das mentes
que insistem em questionar o estatuto da ciência, operando num plano
meramente ideológico, inspirado em teorias da conspiração. A episte-
mologia reconhece que a realidade assume diferentes perspectivas, que
há pontos de vista divergentes, mas seria falacioso não reconhecer que a
ciência nos dá um conhecimento confiável da realidade, que, sob deter-
minadas condições epistêmicas e técnicas, podemos chegar à verdade,
que se sabe provisória, mas não se afunda num relativismo insusten-
tável. Por isso, nem todas as maneiras de lidar com um problema são
corretas, pois há consensos científicos que podem indicar os melhores
caminhos. Como observa Alfredo Marcos, no artigo que integra esta Se-
ção Temática: “A frivolidade relativista se evaporou diante da constân-
cia cruel da realidade que nos golpeia” (2020, e109147).
Nossa compreensão e nosso conhecimento dependem do enfren-
tamento da realidade e dos fatos, de provas racionais e não da torrente
de informações (muitas falsas, fake news) e confabulações que apenas
ofuscam o discernimento e reafirmam as próprias crenças de quem as
divulga. No século I a. C., o empenho de Lucrécio, no poema referido
anteriormente, foi sobrepujar o obscurantismo associado à religião e ao
medo dos deuses, a ser superado pelo conhecimento da natureza. Hoje
o obscurantismo que assombra está associado ao fundamentalismo
anticientífico que nega a verdade, a gravidade da epidemia e ainda des-
preza as orientações de como proceder, desafiando, inclusive, impor-
tantes instituições como os Institutos de pesquisa e as Universidades,
que sustentam os processos de conhecimento, baseados em verdades
justificadas e comprovadas, que promovem benefícios à humanidade.
Igualmente desacreditam a escola enquanto um espaço privilegiado de
formação científica, de preparo para uma mentalidade aberta e crítica.
Quanto mais limitada for a compreensão de alguém mais forte será a
tendência em negar a verdade e tudo aquilo que não se ajusta aos seus
esquemas assimiladores e às ideologias, num egocentrismo obtuso.
Esse negacionismo produz uma espécie de brutalidade que, além
de desfigurar o estatuto da ciência, traz consequências desastrosas no
plano político e social, como observam, em artigo desta Seção Temáti-
ca, Duarte e César (2020, e109146):
[...] o negacionismo é um fenômeno político porque, o
mais das vezes, está associado com a extração de vanta-
gens políticas por parte de grupos econômicos interessa-
dos em negar ou questionar teses e conhecimentos cientí-
ficos. Isto ocorre, sobretudo, quando tais conhecimentos
inspiram políticas públicas destinadas a transformar
comportamentos e modos de vida coletivos, os quais afe-
tam interesses econômicos poderosos.

6 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e110033, 2020.


Hermann

Em terceiro lugar, aprendemos a lição de que não se avança na


superação da epidemia, sem solidariedade e coesão de esforços. Somos
seres vulneráveis e dependentes, encontramo-nos entrelaçados numa
rede de interdependência social, que exige cuidados recíprocos. O que
parece ser um simples regramento sanitário – fique em casa, evite aglo-
merações – encerra também um juízo ético. Esse tipo de juízo considera
as razões internas e específicas de cada caso que é objeto de decisão, a
cultura, os valores, a relação com o outro e tudo aquilo que julgamos ser
digno de afeição, que atua sobre nossos desejos, nosso caráter e vincu-
lações pessoais. Assim, a decisão de seguir uma norma sanitária diante
de uma poderosa pandemia ultrapassa o nosso eu e nos coloca diante
da alteridade, do que posso fazer para ser solidário, de como posso co-
laborar para não pôr a vida dos outros em risco. A pandemia exige, por
detrás do regramento sanitário, uma resposta ética, que é a solidarie-
dade4.
Habermas chama a atenção ao fato de nossas intuições morais nos
informar a respeito da melhor forma de nos comportarmos diante da si-
tuação de extrema vulnerabilidade dos indivíduos. Nessa perspectiva,
a ética atua como um “dispositivo de proteção” que compensa a vulne-
rabilidade da vida (Habermas, 1991, p. 14). A solidariedade é entendida
como a força de um sentimento que vincula os membros de uma socie-
dade, ou seja, cria um sentimento de pertença, reivindica “empatia e
cuidado em relação ao bem-estar do próximo” (Habermas, 1991, p. 16).
O ego, como diz Habermas, “tem que ser capaz de imaginar como é que
cada um se transfere para a situação do outro” (Habermas, 1991, p. 59).
A capacidade de permutar perspectivas leva o sujeito a se tornar
solidário com o outro, independentemente de laços pessoais e identi-
tários, como ocorreu durante a pandemia, quando muitas atitudes be-
nevolentes e práticas concretas de auxílio e de cuidado (distribuição de
alimentos para populações carentes, auxílio de busca hospitalar, reali-
zação de compras de mantimentos para pessoas isoladas etc.) auxilia-
ram o bem-estar de pessoas fragilizadas. Igualmente a solidariedade se
impõe como empatia e compromisso humano em relação à dor e ao luto
daqueles que perderam familiares e amigos. Por outro lado, a epidemia
também expõe a falta de responsabilidade solidária no mau exemplo de
autoridades públicas e de pessoas que permanecem indiferentes ao so-
frimento alheio e desrespeitam as recomendações de prevenção, como
usar máscaras e evitar aglomerações.
A possibilidade de imaginar-se na situação do outro requer uma
tonalidade afetiva, uma disposição afetiva, que ultrapasse o egoísmo e
as lealdades restritas aos grupos de pertencimento. Isso é uma tarefa a
ser preparada cuidadosamente por uma educação atenta à sensibilida-
de, que estimule experiências solidárias, de modo a desbloquear rígidas
crenças e nos tornar mais capazes de interpretar as situações de vulne-
rabilidade em relação aos outros.
A três lições referidas – vulnerabilidade da condição humana, a
busca da verdade para enfrentar os problemas contra as brumas da ig-
norância e a solidariedade com o outro – são lições aprendidas de um

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e110033, 2020. 7


A Aprendizagem da Dor

tempo de dor. Elas não são totalmente estranhas para nós, mas são redi-
mensionadas pelo caráter avassalador da pandemia, e o saber mais am-
plo que daí resulta tem uma força transformadora, constitui-se numa
espécie de superação, não no sentido de um sentimentalismo ingênuo,
mas como uma força que brota ali mesmo onde se encontra a situação,
como canta a lírica de Hölderlin nos versos que integram a epígrafe des-
te texto, pois, justamente onde há o perigo, a dor, aí nasce a salvação.

Detalhando as Lições: os artigos que integram a seção


temática
Os artigos que integram a Seção Temática destacam as nuances
das lições aprendidas nessa dolorosa pandemia. Traduzem em argu-
mentos e refinamento conceitual as muitas inquietações que nos afli-
gem, no empenho em evidenciar e compreender suas repercussões na
educação escolar, na vida social e política. Há aqui uma pluralidade de
enfoques, em que cada articulista interpreta a experiência da pandemia
na perspectiva de suas investigações.
Christoph Türcke, pesquisador alemão da área da filosofia, em-
presta à Seção Temática um olhar apurado em Medo e razão em tempos
de coronavírus, interpretando a profundidade do choque causado pelo
vírus e o medo que provoca como um insulto narcísico, pois o vírus pro-
vém de uma força da natureza, que se supunha superada na era da alta
tecnologia. O medo nada tem de irracional desde que não se sucumba
a mitos conspiratórios e raciocínios distorcidos. A pandemia só ampli-
fica tendências já existentes, como, por exemplo, o caso emblemático
da indústria das tecnologias da informação, que se autoapresenta como
solução e “furtivamente, fará desaparecer toda uma dimensão da rea-
lidade, que todos afirmam ser insubstituível”. Türcke conclui que essa
situação só mudará se houver resistência.
Alfredo Marcos, pesquisador espanhol de tradição aristotélica, no
artigo Con covid y sin covid: la vulnerabilidad humana, alerta que a lição
aprendida da Covid – a vulnerabilidade – não é nova, mas é algo que
esquecemos. Ela se mostra na impossibilidade de nos protegermos per-
feitamente, pois nem a ciência nem a tecnologia podem tudo predizer e
controlar. Tampouco temos um guia seguro para orientar nossas ações.
Tais orientações surgem da realização de nosso ser pessoal, seguindo o
naturalismo moderado de Aristóteles. Como somos animais racionais,
temos uma base biológica que nos faz vulneráveis. Mas enquanto racio-
nais podemos argumentar, pensar, nos orientar pelo bem e promover as
virtudes que conduzem à realização pessoal, de modo a contemplar a
mútua dependência entre a condição animal, social e espiritual. É dessa
condição, conclui Marcos, “que brota nossa força formativa”.
Em Nihilismo, pandemia y educación, Andrea Díaz, pesquisadora
uruguaia na área de filosofia da educação, analisa, de forma ensaística,
as consequências da pandemia numa perspectiva existencial. Diante
da noite escura que a pandemia representa se estabelece um nihilismo,
uma descrença em qualquer progresso racional e uma desesperança.

8 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e110033, 2020.


Hermann

Todavia, a ideia de nihilismo ativo em Nietzsche aciona uma forma de


saída, uma possibilidade de sentido a partir da imanência, que pode ser
obtida pela experiência de resistência íntima, sugerida por Esqueirol,
que reivindica tanto o cuidado de si e do outro como também uma resis-
tência política. Se estamos presos a espaços virtuais, pode-se usar esses
mesmos meios para resistir ao poder e seus perigos. A escola na pande-
mia promove um encontro com o aluno, que, mesmo sendo virtual “é
um encontro que sustenta a relação com o mundo por meio de um saber
de uma disciplina”. A educação é, assim, um lócus dessa resistência, um
lugar de “renovação do mundo e de esperança”.
André Duarte, pesquisador na área de filosofia política, e Maria
Rita de Assis César, pesquisadora na área educação, analisam os im-
pactos do negacionismo tanto na gestão da pandemia como na demo-
cracia brasileira, no artigo Negação da política e negacionismo como
política: pandemia e democracia. Discutem o problema da negação em
dois registros: primeiramente analisam a estratégia da negação da po-
lítica usada por Jair Bolsonaro, que, sem romper definitivamente com a
democracia, passou a afrontá-la. Num segundo momento, discutem a
estratégia do negacionismo como política no modo de conduzir a ges-
tão da pandemia. Por fim, apontam como essas duas estratégias “[...]
se conjugaram, produzindo fenômenos sócio-políticos que corroem a
democracia, como a banalização das mortes e a naturalização da cliva-
gem entre vidas valiosas, vidas submetidas a processos de menos-valia
e vidas descartáveis”.
Alfredo Veiga-Neto, pesquisador na área da educação, em Mais
uma lição: sindemia covídica e educação, inicialmente, justifica o em-
prego do termo sindemia, por se tratar de “conceito poderoso para uma
compreensão mais abrangente e refinada dos problemas criados pelo
novo vírus”. Na sequência, faz uma lúcida articulação entre os des-
dobramentos das crises geradas pela Covid-19 com as deficiências do
nosso sistema escolar, marcado “por desigualdades, exclusões, elitis-
mo, facilitação e superficialidade”, o que gera “amplos contingentes de
estultos e refratários às orientações científicas de prevenção à pande-
mia e seu controle”. Argumenta, ainda, que essa situação se agrava pelo
negacionismo, fundamentalismo político e religioso, anticientificismo
e conspiracionismo, que orientam as ações políticas. Retoma alguns
princípios norteadores da educação científica na construção de men-
talidades abertas.
Três artigos focalizam especificamente as repercussões da pan-
demia para a educação escolar, no que tange à situação do ensino re-
moto. Uma interessante análise se encontra no artigo Um sentido para
a experiência escolar em tempos de pandemia, de José Sérgio Fonseca de
Carvalho, pesquisador de filosofia da educação, que situa a educação
escolar no contexto de crise (Arendt), como perda das referências para
nossas ações. A partir desse pressuposto, o autor pondera sobre “novas
oportunidades para o pensamento e a ação” que a crise proporciona e
propõe a narrativa, na tradição de Ricouer, como uma forma articula-
dora de sentido ao esvaziamento da dimensão temporal da educação. A

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e110033, 2020. 9


A Aprendizagem da Dor

narrativa da experiência escolar, no ensino remoto, de uma adolescente


aponta para a necessidade de promover junto aos alunos “a oportuni-
dade de habitarem um outro mundo no tempo e no espaço por meio do
acesso e da ressignificação de obras ficcionais e historiográficas nas
quais a experiência de viver uma pandemia seja reconfigurada à luz do
presente”.
Em Comunicação Educativa: perspectivas e desafios com a Co-
vid-19, Joaquim José Jacinto Escola, pesquisador português na área de
filosofia e educação, retoma a perspectiva conceitual da comunicação
educativa, oferendo uma análise das vinculações entre educação e co-
municação (Freire, Jaspers, Marcel). Retoma a história da comunicação
(Cloutier, 2001), bem como a periodização das tecnologias na educação
(Costa, 2007), para indicar a “estreita relação entre os tipos de comuni-
cação, os dispositivos utilizados, e as respostas disponibilizadas pela
comunicação educativa em face dos desafios que a Covid-19”. Conclui
que, diante dos desafios da pandemia, o trabalho realizado por meio de
plataformas de ensino a distância, no contexto português, reforçou o
papel decisivo dos professores e da cooperação entre eles para articular
a comunicação presencial e a comunicação a distância.
Simone Bicca Charczuk, pesquisadora da área de psicologia da
educação, aborda a importante questão da transferência no ensino re-
moto, no artigo Sustentar a transferência no ensino remoto: docência em
tempos de pandemia. Inicia com uma distinção entre ensino remoto e
educação a distância (EaD), para esclarecer que os alegados problemas
de interação não são inerentes a essas modalidades de ensino. Argumen-
ta que avaliações e críticas sobre modos de ensino dependem de suas
bases teóricas. Apoiada na psicanálise freudo-lacaniana, interpreta o
processo de ensinar e de aprender a partir do conceito de transferência,
reafirmando a possibilidade de estabelecer-se o laço transferencial en-
tre professor, aluno e conhecimento no ensino remoto, “considerando a
escuta e a palavra como representantes da presença e da corporeidade
neste contexto”.
Como qualquer texto só se efetiva com a participação do leitor,
convidamos à leitura dos artigos desta Seção Temática, que represen-
tam um esforço em compreender este tempo tão desafiador, correndo o
risco inerente a uma reflexão que ainda se encontra muito próxima dos
acontecimentos.
Recebido em 29 de novembro de 2020
Aprovado em 18 de dezembro de 2020

Notas
1 Conforme dados fornecidos pelo infográfico da história das pandemias, no site
Visual Capitalsit. Disponível em: <https://www.visualcapitalist.com/history-
of-pandemics-deadliest/>. Acesso em: 05 maio 2020.
2 O poema é um elogio ao filósofo grego Epicuro (341 a. C.-270 a. C.), como se
lê nestes versos: “Ó tu que primeiro pudeste, de tão grandes trevas, fazer sair
um tão claro esplendor, esclarecendo-nos sobre os bens da vida, a ti eu sigo, ó

10 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e110033, 2020.


Hermann

glória do povo grego, e ponho agora meus pés sobre os sinais deixados pelos
teus, não por qualquer desejo de rivalizar contigo, mas porque por amor me
lanço a imitar-te” (Lucrécio, 1973, III, 1, p. 71).
3 Pinzani (2020) observa que, especialmente em relação aos governos sul-ame-
ricanos, faltou uma estratégia global de combate à pandemia: “Isso se explica,
por um lado, pela rapidez com a qual a epidemia se tornou pandemia, pegando
de surpresa os governos, e, por outro, pela pouca ou nenhuma inclinação desses
mesmos governos em confiar à OMS a gestão da crise” (Pinzani, 2020, p. 22).
4 Há uma proximidade entre a atitude ética solidária e o entendimento de espe-
cialistas na área epidemiologia no combate à pandemia, como se observa na
declaração de Lipkin (2020): “A Covid-19 requer soluções globais e é encorajador
ver o G20 se comprometer com um programa de vacinação mundial, em vez de
buscar soluções nacionais. [...] A covid-19 nos mostrou nossa vulnerabilidade
a vírus emergentes, mas também demonstrou nossa capacidade de responder
com ciência, compaixão e um objetivo comum”.

Referências
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GADAMER, Hans-Georg. Hermeneutik I Wahrheit und Methode: Grundzüge
einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke. Tübingen: Mohr Sie-
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chtwissen gab es noch nie’. Entrevista concedida a Markus Schwering. Frank-
furter Runschau, Frankfurt am Main, 10 abr. 2020. Disponível em: <https://
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interview-13642491.html>. Acesso em: 05 maio 2020.
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LUCRÉCIO CARO, Tito. Da Natureza. Tradução de Agostinho da Silva. São Pau-
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MASSAD, Eduardo. Coronavírus pode ser só ‘ensaio’ de uma próxima grande
epidemia. UOL, São Paulo, 05 maio 2020. Disponível em: <https://noticias.uol.
com.br/saude/ultimas-noticias/bbc/2020/05/05/coronavirus-pode-ser-so-en-
saio-de-proxima-grande-pandemia-diz-medico-e-matematico-da-usp.htm>.
Acesso em: 10 nov. 2020.
MEAD, George Herbert. The philosophy of education. Boulder, CO: Paradigm
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NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. KSA. Berlin/New York: Deutscher Taschen-
buch Verlag, de Gruyter, 1988. v. 6.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e110033, 2020. 11


A Aprendizagem da Dor

PINZANI, Alessandro. Fraqueza do Estado e elitização da cidadania na Améri-


ca do Sul: Lições políticas da pandemia. In: REICH, Evânia; BORGES, Maria de
Lourdes; XAVIER, Raquel Cipriani (Org.). Reflexões sobre a pandemia. Floria-
nópolis: Nefiponline, 2020. P. 21-29.

Nadja Hermann é professora titular de Filosofia da Educação aposentada


da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3823-7057
E-mail: nadjamhermann@gmail.com

Editora-responsável: Carla Vasques

Este é um artigo de acesso aberto distribuído sob os termos de uma Licen-


ça Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Disponível em: <http://
creativecommons.org/licenses/by/4.0>.

12 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e110033, 2020.


SEÇÃO TEMÁTICA:
AS LIÇÕES DA PANDEMIA

Medo e Razão em Tempos de Coronavírus


Christoph TürckeI
I
Hochschule für Grafik und Buchkunst, Leipzig – Alemanha

RESUMO – Medo e Razão em Tempos de Coronavírus. O que faz o choque


do coronavírus tão profundo é o insulto narcisista de que uma força arcaica
da natureza, que se acreditava ter sido superada na era da alta tecnologia,
retorna em todo o mundo. Os mitos da conspiração em torno do coronaví-
rus negam esse insulto. Eles querem se livrar do medo desnecessário, ao
mesmo tempo em que desmascaram os produtores de pânico ávidos por
dinheiro. Mas eles próprios estão com medo e buscam pseudo-causas por-
que não podem suportar a incerteza.
Palavras-chave: Medo. Razão. Conspiração. Tempo Presente.

ZUSAMMENFASSUNG – Angst und Vernunft in Corona-Zeiten. Was den


Corona-Schock so tief macht, ist die narzisstische Kränkung, dass eine ar-
chaische Naturgewalt, die man im Hochtechnologiezeitalter überwunden
glaubte, weltweit zurückkehrt. Die Verschwörungsmythen um Corona ver-
leugnen diese Kränkung. Sie wollen von unnötiger Angst befreien, indem
sie macht- und geldgierige Panikmacher entlarven. Aber sie sind selbst an-
gstbesetzt. Sie greifen nach Pseudo-Ursachen, weil sie die Ungewissheit ni-
cht ertragen können.
Schlüsselwörter: Angst. Vernunft. Verschwörung. Geschenkte Zeit.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109624, 2020. 1


http://dx.doi.org/10.1590/2175-6236109624
Medo e Razão em Tempos de Coronavírus

Diz-se que o medo é um mau conselheiro. Realmente, ele pode


impedir a reflexão, a análise e o julgamento. Mas não nos esqueçamos
que o medo foi o primeiro conselheiro da humanidade. Mais do que
isso: é a forma elementar da memória. Perceber algo como um perigo é
uma reminiscência do que já foi experimentado. “Algo assim não deve
acontecer novamente”, diz o medo. Ele começou como um mecanismo
de prevenção de riscos baseado na memória, e a razão é nada mais do
que o medo traduzido em prudência e julgamento.
Ter medo da Covid-19 é completamente razoável. O vírus lembra
todas as epidemias que já ocorreram: da peste à gripe do ano passado.
Ele nos torna conscientes daquilo que por conveniência ignoramos: a
velha suscetibilidade à doença ainda não foi ultrapassada, apesar de
toda tecnologia. O coronavírus já existe há muito tempo. Mas a Covid-19
é diferente das outras doenças: altamente infecciosa, fatal para muitos
dos infectados e com propriedades ainda pouco conhecidas. Os peri-
gos que não têm forma clara são particularmente assustadores. Não há
nada de irracional nisso. Os efeitos secundários da luta contra o vírus
também legitimam o medo: as grandes limitações de direitos democrá-
ticos básicos – liberdade de ir e vir, viajar e se reunir; direito à educação,
de exercer sua profissão e manter seu negócio. Os efeitos secundários,
como aqueles que ocorrem, por exemplo, na quimioterapia, podem ser
tão graves quanto o mal combatido. No entanto, uma mentalidade ra-
cional não confunde efeitos secundários com o principal, o que neste
caso é muito simples: o vírus. Ele nos lembra que somos seres da natu-
reza. A sociedade humana é o projeto conjunto da partilha de trabalho
das forças naturais. A natureza pode ser moldada em grande medida,
mas não deixa de ser superior e sempre voltará a colocar a sociedade em
estados de emergência.
A supremacia da Covid-19 foi desencadeada pelos seres humanos.
Os culpados podem ser nomeados: os responsáveis pela higiene inade-
quada no mercado animal de Wuhan, onde o vírus se espalhou; os des-
cuidados, negligentes e, sobretudo, quem o acobertou, possibilitando
sua rápida propagação. Mas estes culpados não são os criadores da pan-
demia. Eles não criaram o vírus. Ele é uma força da natureza, não uma
construção. Quando seu acobertamento não adiantava mais, Wuhan
e logo toda a China foram isoladas. Com um atraso impressionante,
o exemplo foi seguido em todos os continentes. Por último, a África.
Nem todos os países têm uma infraestrutura que permita a plena im-
plementação deste isolamento. No entanto, salvo algumas exceções,
as medidas de isolamento são espantosamente semelhantes em todo o
mundo – não por causa de acordos na Organização das Nações Unidas
(ONU), mas porque todos os governos enfrentam o mesmo problema.
Quer sejam mais ou menos democráticos, os líderes compreenderam
rapidamente que algo estava se espalhando, e do qual estavam sendo
ameaçados tanto quanto a maioria da população. Talvez alguns ainda
se lembrem que o governo da Alemanha Ocidental construiu um gran-
de bunker perto de Bona para a guerra nuclear. Contra a Covid-19, não
é possível simplesmente se esconder, e até os chefes de governo podem
acabar em unidades de tratamento intensivo.
2 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109624, 2020.
Türcke

Quando Xi Jinping e Boris Johnson adotaram o confinamento


(um após o acobertamento, o outro após o conceito de “imunidade de
rebanho”), eles não mudaram de “estratégias utilitárias” para uma vi-
são “kantiana” (dignidade e bem-estar dos indivíduos), como diz John
Schellnhuber. Eles simplesmente estavam apavorados. Suas vidas tam-
bém estavam em jogo – incluindo sua imagem. Nenhum político quer
entrar na história como o responsável por uma pandemia. Daí as pala-
vras de ordem – “o menor contágio possível” – que surgiram por medo
de perder seus cargos, e não por causa da moralidade “kantiana”. Mes-
mo assim, a população se beneficiou delas e entendeu instintivamente
que os governos têm tanto medo quanto nós. O medo compartilhado
conecta. Por isso, a imposição de estado de emergência se deu sem pro-
blemas, sendo inicialmente aceita quase sem queixas.
“Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”, dizia o fi-
lósofo do direito Carl Schmitt em 1922. Ele pensava, acima de tudo, na
guerra. Aquele que tem o poder de impor a lei marcial e marchar tropas
contra inimigos externos ou internos é, de fato, soberano. Quem é so-
berano paralisa toda a indústria de automóveis, de aviação e o turismo
do próprio país, solicita ao Banco Central a impressão de quantias mi-
lionárias, pede novos empréstimos gigantescos para os grandes fundos
financeiros, leva seu país a dívidas públicas extraordinárias e garante
que leitos suficientes de terapia intensiva, ventiladores e máscaras es-
tejam disponíveis? Neste caso, o estado de emergência é primeiramente
por causa de forças superiores da natureza.
Este tipo de estado de emergência não foi sequer considerado
quando a República Federal da Alemanha aprovou leis de emergência
nos anos 1960. Elas eram também praticamente apenas destinadas ao
evento da guerra e provocaram protestos ferozes de todos aqueles que
estavam fartos da guerra. A ironia da história: até o corona, as leis de
emergência nunca foram aplicadas e, neste caso, elas não eram, estrita-
mente falando, aplicáveis. Só um acordo informal entre todos os parti-
dos permitiu que o parlamento concedesse poderes especiais ao gover-
no – mesmo em caso de epidemia, a lei o prevê exclusivamente para o
caso de guerra. Em 1968 não se contava mais com uma pandemia.
Agora o inesperado voltou, e o confinamento está tentando ga-
nhar tempo. Parece um sacrifício arcaico. Sacrificaremos o crescimen-
to econômico e os direitos fundamentais por um breve período para
salvá-los em longo prazo. E isso só é possível graças aos profissionais
de saúde. A medicina de hoje tem potencial para domar o vírus. Só pre-
cisa ser mobilizada primeiro. Isso foi diferente com a gripe espanhola
em 1918. A medicina era, em grande parte, indefesa. Além disso, nem
os setores econômicos nem os direitos fundamentais foram limitados
para conter a gripe. Por isso, morreram muito mais que 40 milhões de
pessoas.
Giorgio Agamben, filósofo amplamente reconhecido, fez disto um
argumento ridículo: os então poderes do Estado não viram nenhuma
razão para restringir os direitos fundamentais por causa da gripe espa-
nhola, mas os atuais, que são muito mais democráticos, o fazem com a

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109624, 2020. 3


Medo e Razão em Tempos de Coronavírus

Covid-19, que é muito menos perigosa. Porém, sabemos do que se trata:


a tomada do poder e a supressão da democracia. Sério? O novo vírus
deve ser livre e democrático? Cada Estado que exige a distância de 1,5 m
entre as pessoas, intervém, quer queira ou não, no direito fundamental
da livre circulação.
Agamben é um dos pioneiros de uma falsa conclusão, que começa
a funcionar como um vírus. Ele vê a restrição dos direitos fundamentais
não como efeito colateral inevitável do confinamento, mas como seu
real objetivo. Porque querem restringir os direitos básicos e fazer ne-
gócios, os poderes dominantes instigaram a pandemia, daí a suspeita.
Hoje em dia a liderança chinesa é realmente uma potência dominante
e tem como objetivo controlar todo o cotidiano do povo e até mesmo
suas atitudes. Mas para fazer isso, ela construiu seu Sistema de Crédito
Social e não precisa espalhar uma epidemia, o que causaria um violento
colapso econômico e faria com que o país se sujeitasse a medidas de
distanciamento e uso de máscaras, imposto à população.
Bill Gates também não precisa disso. Embora seja um dos mais
ricos e poderosos magnatas do mundo, e também um ícone de caridade
– uma imagem cuidadosamente criada por ele, para assegurar os inte-
resses do império da Microsoft –, por que ele começaria uma pandemia
que também traz restrições irritantes à sua vida privada e social, apenas
para ganhar dinheiro com a vacina que, em termos de sua riqueza total,
seria basicamente migalhas? Absurdo. E as empresas farmacêuticas?
Sim, aquelas que vencerem a corrida das vacinas ganharão muito. Mas
trazer um vírus ao mundo contra o qual não temos uma vacina seria
estúpido. A competição pode ganhar a corrida. E a própria vacina? Sim,
nem sempre pode funcionar como o desejado, nunca será sem efeitos
colaterais, que alguns não vão tolerar bem. No entanto, o método para
imunizar o corpo vulnerável contra esta doença com a dose mínima
do vírus é genial. As vacinações obrigatórias contra doenças altamente
contagiosas que ameaçam a vida não são execuções em massa.
É um mito da conspiração que alguém tenha começado a pande-
mia para lucrar com ela. Pelo contrário! Desde que começou, muitos
estão tentando acabar com ela, sendo um amplificador de tendências
que já existiam. Orbán já queria se tornar um autocrata há tempos. A in-
dústria da tecnologia da informação (TI) já queria há muito digitalizar
escolas e universidades, as empresas já queriam implementar o home-
office, e as grandes empresas de gastronomia e turismo já queriam en-
golir as pequenas. Isto se tornou apenas mais fácil. Nas áreas atingidas
pela pobreza, o vírus intensifica a fome; nos campos de refugiados e nos
matadouros, as doenças.
Em todas as zonas críticas, a pandemia apresenta um quadro níti-
do do capitalismo global. Que a ONU não é uma instituição de caridade
pura; que o conselho de virologistas por si só não é suficiente para esta-
belecer medidas de confinamento; que a ruína econômica pode ser pior
do que o contágio; que um aplicativo para identificar casos de corona
fornece muito mais dados para controle do que revela rotas de contágio:
tudo isso não é uma teoria da conspiração. Pelo contrário, as pessoas

4 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109624, 2020.


Türcke

que as reconhecem são cidadãos vigilantes. Não querem ser privadas


de direitos fundamentais por nenhuma razão, mas isso não muda o fato
de que “manter distância sempre que possível” é atualmente a única
coisa sensata – e, ainda assim, uma invasão do direito fundamental da
liberdade de circulação.
A questão é que a vigilância política e a mentalidade da conspi-
ração às vezes não são fáceis de distinguir. Os mitos da conspiração
em torno do corona querem se livrar do medo desnecessário expondo
alarmistas poderosos e gananciosos. Mas eles mesmos estão com muito
medo: agarram-se à primeira causa, porque não conseguem suportar a
incerteza. Trata-se de um reflexo infantil primitivo. Mesmo a peste da
Idade Média foi imediatamente atribuída à vontade punitiva de Deus
ou à má-fé dos judeus. Hoje, os judeus levam novamente a culpa, mas
também as empresas farmacêuticas, a Organização Mundial da Saúde
(OMS), o Robert-Koch-Institut e Bill Gates. Quando se tem bodes expia-
tórios, as causas são aparentemente tangíveis, têm significado, e pro-
metem orientação e apoio. Mas bodes expiatórios são “pseudocausas”.
Eles não permitem dúvidas. A investigação séria das causas vem acom-
panhada de dúvidas; examina se as causas que se impõem são realmen-
te o que parecem – e para isso aceita a dificuldade da incerteza.
Hoje, a grande incerteza está relacionada ao sistema de ensino.
Se já tivéssemos digitalizado as escolas, agora não teríamos problemas,
dizem os adeptos da tecnologia. Mas eles não reconhecem que certos
processos educacionais elementares, que exigem entendimento e ver-
balização em conjunto na sala de aula, não acontecem no ensino remo-
to. Quanto menores as crianças, menos produtivo é o processo. O que
acontece no monitor, a menos que pais atenciosos assumam a tarefa da
verbalização, não é nada mais do que um passatempo. Por que o medo
de admitir isso? Por que fingir que a máquina educacional poderia e
deveria simplesmente continuar a funcionar, embora não se possa ne-
gar às classes finais a formatura iminente? Mas por que desejam contar
o ano escolar a qualquer preço? O seu fracasso seria, em longo prazo,
pouco prejudicial. Mas seria uma oportunidade única se, em vez de
continuar a fazer trabalhos online, as crianças fossem simplesmente
encorajadas a fazer algo que a tela as habitua a fazer sistematicamente:
ler persistentemente, e ler regularmente em voz alta para seus pais, seja
em turco ou árabe. Se isso não funcionar, não seremos capazes de pren-
der a atenção das crianças como as telas o fazem. O que faremos então?
Os monitores são os principais redutores da educação a dados e
informações. Certamente também criam conexão em tempos de sepa-
ração. Permitem que conferências, aconselhamento de clientes, psico-
terapia, aulas escolares e universitárias prossigam através do vídeo. Mas
é uma medida emergencial que não consegue transmitir muito, sendo
ainda bem mais extenuante do que os encontros presencias, já que você
tem que imaginar constantemente a terceira dimensão. Artistas tam-
bém estão criando formatos de vídeo originais (exposições de arte, per-
formances, concertos ao vivo) que se tornaram muito populares, como
plataformas do sonho compartilhado do retorno dos eventos ao vivo.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109624, 2020. 5


Medo e Razão em Tempos de Coronavírus

O confinamento rouba muito, mas ele também dá algo a muitas


pessoas afetadas, o tempo: para os pais com seus filhos, aos artistas
para pintar, escrever e compor, aos músicos para praticar – e a todos
os interessados por cultura o tempo para ler. Tudo que sempre dese-
jamos. Mas agora que o temos, ele mostra que o desejado também as-
susta. Tempo? É isso que têm os desempregados, os doentes, os velhos.
Quem se entretém, não tem tempo. Desaceleração; horas para brincar
e falar com as crianças; retirar-se para um canto de leitura: como se
pode suportar isso? Quando os nervos se esgotam rapidamente, os pais
que ficam em casa brigam com as crianças, alguns se distraem com o
Facebook e outros com jogos de computador, nem sempre só porque
o apartamento é muito pequeno. O tempo dado também faz a todos
a pergunta: uma vez que a inundação de e-mails, ligações, trânsito e
trabalho acaba, o que resta de você mesmo? Você consegue preencher
o espaço vazio com algo que não seja apenas um reflexo da máquina
de estímulo? Quão autodeterminado, quão maduro você é? O esclareci-
mento, segundo Kant, é a saída do homem de sua menoridade, da qual
ele próprio é culpado. Pode-se também dizer que o esclarecimento é o
medo assumido e transformado em razão.
Os governos sugerem que depois do corona tudo será como antes.
É claro. É importante assegurar o pleno restabelecimento de todos os
direitos fundamentais. E estar alerta contra a indústria de TI. Ela é a
vencedora da crise e vai insistir que seus remédios emergenciais, que
superaram a lacuna durante o confinamento, se tornem novos padrões,
e que consultas, seminários, psicoterapias, teatro e shows migrem em
série para a rede. Furtivamente, fará desaparecer toda uma dimensão
da realidade, que todos afirmam ser insubstituível. A não ser que haja
resistência1.
Recebido em 20 de outubro de 2020
Aprovado em 05 de novembro de 2020

Nota
1 Este artigo foi publicado na Opernwelt (Revista Mundo da Ópera) 7/20, com
o título “Medo e Razão” (p. 16-19) e em Tanz. Zeitschrift für Ballet, Tanz und
Performance (Dança. Revista de Ballet, Dança e Performance), em julho de
2020, com o título “Pavor” (p. 10-13). A presente versão é apenas para uso pes-
soal – nenhuma transferência de arquivo ou impressão para terceiros!

Referência
TÜRCKE, Christoph. Fracksausen. Tanz. Zeitschrift für Ballett, Tanz und Per-
formance, Berlin, p. 10-13, Juli 2020.

6 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109624, 2020.


Türcke

Christoph Türcke lecionou como Professor de Filosofia na Hochschule für


Grafik und Buchkunst Leipzig entre 1995 e 2014. Mais recentemente, publi-
cou o livro Digitale Gefolgschaft. Auf dem Weg in eine neue Stammesgesells-
chaft (Vassalagem digital: a caminho de uma nova organização social) pela
editora C. H. Beck.
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-3161-5847
E-mail: ctuercke@hgb-leipzig.de

Editora-responsável: Carla Vasques

Este é um artigo de acesso aberto distribuído sob os termos de uma Licen-


ça Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Disponível em: <http://
creativecommons.org/licenses/by/4.0>.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109624, 2020. 7


SEÇÃO TEMÁTICA:
AS LIÇÕES DA PANDEMIA

Con Covid y Sin Covid: la


vulnerabilidad humana
Alfredo MarcosI
I
Universidad de Valladolid, Valladolid – España

RESUMEN – Con Covid y Sin Covid: la vulnerabilidad humana. La crisis del


Covid-19 deja una enseñanza en forma de reminiscencia. No aprendemos de
ella nada nuevo, pero nos recuerda algo que supimos y olvidamos. Nos mues-
tra con nueva luz nuestra vulnerabilidad, la imposibilidad de protegernos
perfectamente mediante la predicción y el control. Las ciencias no predicen
con certeza y las tecnologías no alcanzan a tenerlo todo bajo control, aunque
las primeras y las segundas tengan otras muchas y beneméritas funciones.
Las ideologías, no ven el futuro, por más que simulen hacerlo. Y, sin embar-
go, no carecemos que guía fiable para decidir nuestras acciones. Esta orien-
tación hay que buscarla en el ser, no en el porvenir. Es la fidelidad a nuestra
común naturaleza humana la que ha de aconsejarnos, es la realización plena
de nuestro ser personal, de nuestra peculiar vocación la que nos guía. Y el
medio para la autorrealización consiste en el desarrollo de un carácter vir-
tuoso. El mismo ca rácter que ha mitigado los estragos de la pandemia, pues
en cierto grado estaba ya presente en muchos de nuestros conciudadanos, el
mismo que hubiera paliado aun más el sufrimiento de haber estado disponi-
ble en más personas y en mayor grado.
Palabras-clave: Covid-19. Vulnerabilidad. Predicción. Virtudes. Prudencia.

ABSTRACT – With or Without Covid: a tale on human vulnerability. The


Covid-19 crisis leaves us with a lesson in the form of reminiscence. We don’t
learn anything new from it, but it reminds us of something we knew and had
forgotten. It shows us our vulnerability in a new light, the inability to per-
fectly protect ourselves through prediction and control. Science does not
predict with absolute certainty, and technologies do not keep everything
under control, even if the former and the latter play many other praisewor-
thy roles. Ideologies can’t see the future, try as they might. And yet, we are
not without reliable guidance in deciding our actions. This guidance must
be sought in what we are, not in the future. It is the fidelity to our common
human nature that must advise us. It is the full realization of our personal be-
ing, of our peculiar vocation that guides us. So, the means for self-realization
lie in the development of a virtuous character. This is the very same character
that has mitigated the havoc the pandemic has wreaked, as to some extent, it
was already present in many of our fellow citizens; the very same that would
have alleviated even more suffering if only it had been present in more people
and to a greater extent.
Keywords: Covid-19. Vulnerability. Prediction. Virtues. Prudence.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109147, 2020. 1


http://dx.doi.org/10.1590/2175-6236109147
Con Covid y Sin Covid

Introducción
Todo lo que ha sucedido en los últimos meses a raíz de la pandemia
de Covid-19 puede ser considerado como una especie de experiencia de
lo imposible. Nadie imaginaba hace un año lo que hoy recorre el mundo.
Nadie pensó, por ejemplo, que un país desa rrollado como España ce-
rraría la ominosa primavera del 2020 con una sobre-mortalidad de mil
personas por cada millón de habitantes. Estamos ante la experiencia de
lo que previamente considerábamos imposible. O, para ser más preci-
sos, de lo que previamente ni siquiera imaginábamos como posibilidad.
El hecho de que nos haya sucedido algo que no habíamos ni imagi nado
debería aportarnos ya una primera y perentoria lección. Podríamos ex-
ponerla con las palabras de Karl Popper: el porvenir está abierto1. El fu-
turo no está ante nuestra vista. Es más, el futuro no existe en acto. Hay
que hacerlo para que aparezca, pero aparece ante nosotros siempre ya
como presente. La propia natura leza, por un lado, y la libertad humana,
por otro, lo van configurando.
Lo desconcertante del caso es que cuando ocurre algo que nadie
preveía ni imaginaba siquiera, resulta que muchos, en lugar de asumir
la lección referida, se lanzan a hacer predicciones para la post-pande-
mia y nadie se priva de hablar en futuro2. De nuestros pensadores de
guardia, Giorgio Agamben augura un terrible futuro policiaco de vigi-
lancia total, mientras que Byung-Chul Han celebra – desde Alemania
– que el autoritarismo oriental vaya a acabar con la privacidad. Y, para
Slavoj Zizek, está a punto de arribar un nuevo comunismo, dado que el
virus ha puesto al aire las miserias del capitalismo. Lo cual es una idea
asombrosa, pues se refiere a un problema generado – aun no sabemos
como – en China, el mayor recinto del planeta gobernado todavía por
un partido comunista. Y después está Yuval Harari, quien también se ha
lanzado a predecir cómo será el mundo post-pandémico, sin el crédito
que le hubiese dado haber predicho la propia pandemia. Pero lo cierto
es que la filosofía no tiene por misión el hacer futuroscopia, no se ocupa
de predecir lo que será, sino de estudiar el ser y el deber ser.
Da la impresión de que todavía no han sacado algunos la principal
lección que la pandemia nos recuerda. Y digo nos recuerda porque tal
lección podíamos haberla aprendido ya mucho antes, con o sin covid: lo
único que sabemos del futuro es que no sabemos cómo será. Podíamos
haberlo aprendido de las tradiciones sapienciales: “Si quieres hacer reír
a Dios, cuéntale tus planes”, dice el refrán hebreo. También de la poesía
de todos los tiempos. Por ejemplo, nuestro Jorge Guillén lo cantó así: “Lo
extraordinario: todo”. O bien de los textos filosóficos más sensatos. Con
Hans Jonas (1995): “Nosotros sabemos – y tal vez es lo único que sabe-
mos – que la mayoría de las cosas serán distintas[.], que hemos de contar
siempre con la novedad, pero que no sabemos calcularla 3”. Ahora bien,
tras la sacudida que nadie supo anticipar, muchos han retomado ya las
gafas de ver el futuro y se han echado a profetizar. ¿Qué les indica que
mañana mismo no pueda darse una nueva sacudida de distinta ralea
o una réplica del mismo temblor o una vacuna eficaz o algo que hoy ni
imaginamos? Siguen algunos sugestionados por el mismo trampantojo

2 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109147, 2020.


Marcos
que puso ante nosotros la moder nidad, es decir, siguen pensando que
hay que escrutar el futuro y sacar de ahí las indicaciones pertinentes
para orientar nuestra acción. Una vanguardia de sedicentes visionarios
quiere precedernos en la senda del supuesto progreso. Ellos ven el futu-
ro y su visión nos encarrila, dicen.
Pero mirar al futuro es una ocupación estéril, no se ve nada en
realidad. Si uno quiere aprender, ha de mirar hacia el pasado, ha de re-
buscar en lo actual. Ha de investigar qué es lo que nos ha pasado y quié-
nes somos nosotros, estos curiosos seres a los que nos está pasando algo
inesperado. Es eso lo que tenemos a la vista y nada más.

¿Qué nos Está Pasando?


La modernidad nos enseñó a orientar nuestra vida mirando hacia
el futuro, pues se suponía que la ciencia lo predecía y la tecnología lo
controlaba. Hoy sabemos que no es así. Se trataba de una ilusión pro-
vocada por una casualidad histórica. Resulta que la primera ciencia
matematizada, la primera que logró elaborar predicciones aceptables
y dotadas de cierto grado de precisión fue la astronomía planetaria. Y
se da el caso de que esta ciencia estudia un sistema aproximadamente
aislado. Gracias a la misma, fuimos capaces de componer calendarios
duraderos, aunque nunca perfectos. Así, la ilusión laplaciana de pre-
dictibilidad quedó grabada a fuego en la conciencia moderna. Se pensó
que el sistema solar podía ser imitado perfectamente por un reloj, por
una máquina. O sea, que en realidad el sistema solar era un mecanismo
regular y perfectamente predecible, en lugar de un rincón del universo
y de su historia. De ahí se pasó a pensar que todo el mundo físico, que
la naturaleza en su conjunto, poseía estas mismas características. En
especial, los seres vivos y – por qué no – el propio ser humano acaba-
rían siendo vistos bajo el prisma mecanicista. La última extrapolación
de esta fantasmagoría llevó a concebir las sociedades humanas y su his-
toria como algo predecible. Así, varias ideologías modernas se volcaron
hacia la futuroscopia. Al auto-atribuirse capacidad visionaria, adqui-
rían también una cierta autoridad, incluso un poder represor y coactivo:
lo que va a ser ha de ser.
Psicológicamente, la imagen es tan elemental como potente. Na-
die quiere quedarse parado o retroceder cuando ha emprendido ca-
mino hacia una meta. La visión del futuro se nos impone, pues, como
misión. Debemos avanzar hacia ese futuro que vemos, que algu nos con
especial claridad y seguridad parecen tener a la vista. Es decir, será bue-
no todo aquello que tienda hacia ese futuro que vemos, y malo lo que
nos paralice o haga retroceder. Quien controle la imagen del futu ro con-
trolará también lo que se entiende por bueno y malo. Quien sea capaz de
afirmar con mayor convicción hacia dónde vamos, será también quien
nos diga hacia dónde debemos ir.
Pero esta idea moderna de predictibilidad resulta hoy obsoleta.
No hay persona sensata que la mantenga. Ha quedado solo para uso y
disfrute de las ideologías. Hoy sabemos que ni siquiera un reloj funcio-
na como un reloj. La astronomía planetaria estudia el sistema solar, es
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Con Covid y Sin Covid

decir, un sistema que para la escala humana resulta casi aislado. Ahora
bien, el resto de los sistemas que nos interesan, desde los ecosistemas
hasta los organismos o los sistemas sociales, no están aislados. Mantie-
nen intrincadas relaciones con el entorno y poseen una gran compleji-
dad interna. Esto los hace impredecibles. Lo más que pueden hacer las
ciencias es aportar modelos y escenarios abstractos que arrojan previ-
siones condicionales imprecisas, falibles y sometidas a incertidumbre.
Por no hablar del elemento de impredictibilidad que la libertad huma-
na introduce en el mundo. El logos nunca está a la altura de la physis,
siempre hay más cosas en el cielo y en la tierra de las que puedan soñar
nuestras filosofías, como sabían ya los antiguos, como olvidaron los
modernos, como hoy nos recuerda la inopinada pandemia. Por supues-
to, si empezamos a considerar magnitudes alejadas de la escala huma-
na, muy grandes espacial o temporalmente, nos damos cuenta de que ni
siquiera el sistema solar es perfectamente predecible, pues está some-
tido a diferentes interacciones, no todas ellas integrables en nuestros
modelos.
Los modelos y teorías científicas pueden ser vistos como sistemas
de expectativas. Incluso los artefactos dotados de la llamada inteligen-
cia artificial (IA) son sistemas de expectativas. O más bien son una pró-
tesis de nuestros sistemas de expectativas. Un sistema de IA coloca un
punto en un espacio n-dimensional construido a partir de un histórico
de datos, y, en función de ello, nos dice qué se puede esperar del objeto
representado por ese punto. Como cualquier sistema de expectativas,
puede colapsar cuando registra la ocurrencia de algo que previamente
consideraba imposible, es decir, que ni siquiera consideraba. Es lo que
más arriba hemos llamado la experiencia de lo imposible. Cuando esto
ocurre, el sistema de expectativas que empleábamos se queda sin capa-
cidad de adaptación, no puede aprender de esta experiencia. Cuando
nos sobresalta la experiencia de lo imposible, cuando nuestro sistema
de expectativas colapsa, solo podemos sobrevivir creando otro. Y este
paso no tiene por qué ser puramente arbitrario, azaroso o irracional,
sino que, en algún sentido, está guidado por un saber práctico y social
que Aristóteles llamó phrónesis. Dicho saber nos facilita la constitución
integradora de la experiencia, la gestión de las emociones vinculadas a
la frustración de expectativas, la propedéutica del momento creativo y
el filtrado crítico de los sistemas de expectativas emergentes.
Muchas de nuestras interacciones con la realidad encajan en es-
quemas previos, pero otras obligan a romper dichos esquemas y a crear
otros nuevos. En este último caso, el salto hacia un nuevo esquema o
paradigma o sistema de expectativas, hacia una nueva teoría o modelo,
estará impulsado por un elemento creativo y guiado por alguna forma
de racionalidad prudencial, si es que no queremos fiarlo todo al azar.
Precisamente, la apa rición en nuestro horizonte de la reciente pande-
mia ha disparado un proceso de reestructuración del tipo mencionado.
Y siempre hay que contar con que suceda de nuevo algo con lo que no
podemos de antemano contar.
Todo esto ya lo supimos en su día, pero hemos preferido olvidarlo,
pues resulta incómodo pensar que no tenemos todo bajo control, que
4 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109147, 2020.
Marcos

lo inesperado puede ocurrir, que nuestros planes más queridos pueden


hacer reír a Dios. Ahora, tras la primera oleada Covid-19, nadie puede
ya obviar esta sabiduría de la ignorancia. Pero si el futuro ha dejado de
ser nuestra guía, la brújula de nuestras acciones, entonces, ¿cómo pode-
mos orientar nuestras vidas? No, desde luego, intentando mirar al futu-
ro, sino fijándonos en nuestra esencia, en nuestra naturaleza, en lo que
somos. Nuestra acción se proyecta hacia el futuro, pero a la vista solo
tenemos lo que somos, de aquí hay que extraer la sabiduría. Respecto de
lo que será, lo único que hemos de dar por sabido es nuestra ignorancia.
Sea el ser y no el futuro nuestra guía. Del ser aprendemos el deber ser. Y,
como enseña Hans Jonas4, no tiene por qué haber en ello falacia alguna.
En resumen: experimentamos hoy lo que previamente conside-
rábamos imposible o que ni siquiera habíamos imaginado. Sabemos ya
que este tipo de experiencias pueden darse y que nuestra preparación
para las mismas no puede venir de la predicción, pues por definición no
son predecibles (son imposibles, o inimaginables). Nuestra única fuente
de orientación resulta de la fidelidad a nuestra propia naturaleza, del
saber qué soy (naturaleza humana), quién soy (persona) y cuál es mi
vocación (o función, en términos de Aristóteles). El futuro humano de-
beríamos construirlo con la vista puesta en la naturaleza humana, no
basándonos en el espejismo de una supuesta predicción. No nos orienta
la utopía, sino la fidelidad a nuestra esencia. En palabras de Píndaro:
“Llega a ser el que eres” (Píticas, II, 72), con independencia de que circu-
le o no algún coronavirus por la zona.

¿Qué Somos?, ¿Quiénes Somos? La Vulnerabilidad Humana


En el debate actual sobre la naturaleza humana podemos diferen-
ciar dos posiciones de partida: la posición nihilista de quienes niegan
que exista la naturaleza hu mana y la posición naturalista radical de los
que creen que todo es naturaleza, y solo naturaleza, en el ser hu mano.
En medio tenemos otra propuesta -a mi entender más sensata- consis-
tente en desarrollar una concepción de la naturaleza humana de inspi-
ración aristotélica y próxima, por lo demás, al sentido común y la expe-
riencia cotidiana. En la tradición aristotélica hay una afirmación de la
naturaleza humana, pero sin reducción de la misma al plano puramen-
te natural. Se podría hablar al respecto de un naturalismo moderado.
La idea de naturaleza humana propia de esta tradición tiene cla ras im-
plicaciones normativas, a través de nociones como las de virtud (areté),
felicidad (eudaimonía) y función (ergón) del ser humano. Hablamos de
desarrollar -y no meramente de recuperar- una cierta concepción de la
naturaleza humana. Es decir, hay que poner dicha concepción a la altu-
ra de nuestros actuales conocimientos. Hoy estamos en mejor posición
que cualquiera de nuestros predecesores para averiguar qué es un ser
humano, y ello gracias a los avances históricos en ciencias natura les,
sociales y humanas. Por eso se requiere desarrollar o traer a nuestros
días una cierta concepción muy valiosa de lo humano, y no meramente
recuperarla.

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Con Covid y Sin Covid

Para decirlo en breve, el ser humano es, según la tradición aris-


totélica, un animal social racional (zoon politikon logikon). El método
para desarrollar esta idea ha de consistir en la apertura y exploración de
cada una de estas tres cajas5.
En primer lugar, el hecho de que seamos animales tiene hondas
implicaciones. Los humanos no somos cualquier tipo de ser racional,
sino muy precisamente animales. Esto nos obliga a pensar y a pensar-
nos desde el cuerpo, desde la experiencia del animal que somos. Si, por
naturaleza, somos animales, ello significa, entre otras cosas, que somos
vulnerables, susceptibles de daño y sufrimiento, de placer y dolor. Ob-
servemos que el hecho de ser vulnerables no nos hace menos humanos,
sino que es parte de aquello en lo que consiste precisamente ser hu-
mano6. “Los humanos – afirma la bioeticista de la Complutense Lydia
Feito – somos vulnerables como condición de nuestra propia naturaleza
como personas [...] Es una característica antropológica que nos define.
No obstante, tendemos a esconderla [...] La pandemia ha venido a re-
cordarnos nuestra vulnerabilidad de un modo grosero y aplastante”7
(Feito, 2020, p. 2).
El virus de Wuhan ha producido una constancia palmaria de
nuestra vulnerabi lidad. Constancia que ha coincido en el tiempo con la
moda transhumanista, la cual aboga por la supresión de la vulnerabili-
dad humana. Pero la supresión de nuestra vulnerabilidad solo se puede
lograr a costa de la pérdida de nuestra humanidad. Veámoslo8.
El término vulnerable procede del latín, vulnerabilis, lengua en la
cual también refiere a lo que es susceptible de ser herido. Igualmente,
en muchas lenguas latinas el verbo herir procede del latín, ferire, que
quiere decir, perforar o cortar. Es decir, lo vulnerable es lo perforable.
En términos más básicos, se trata de la condición de una entidad en la
que se puede inserir otra. Ello exige lógicamente la distinción entre in-
terior y exterior. También viene sugerida la idea de daño funcional. La
inserción de algo externo en una entidad se considera una herida en la
medida en que causa un daño funcional en la entidad en cuestión. Los
seres vivos tienen interior y exterior, poseen barreras semipermeables
que los identifican, los separan de su entorno y al mismo tiempo los
comunican con él haciéndolos funcionales, pero también, y por lo mis-
mo, vulnerables. La interioridad y necesaria apertura del viviente es lo
que a un tiempo lo hace vulnerable. La separación del viviente respecto
de su medio, así como su individualidad, hacen que aparezca una cara
interna en los más diversos sentidos y grados: desde el recinto espacial
cercado por una membrana o por una piel o por una estructura ósea,
hasta la intimidad e identidad inmunológica que cierra un sí-mismo y
lo separa químicamente del resto de los seres; desde la más elemental
percepción del entorno, hasta una actividad mental desarrollada y rica,
cuyo exponente extremo es la intimidad mental y autoconsciente del ser
humano, su vida interior.
Es esta, nuestra base biológica, la que nos hace vul nerables. Las
rocas o los conceptos no lo son. El ser hu mano solo dejaría de ser vul-
nerable si dejase de ser un viviente, para transformarse, por ejemplo,

6 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109147, 2020.


Marcos

en software, como proponen algunos transhumanistas. Pero, con ello,


obviamente, habría dejado también de ser humano. Em manuel Levinas
(1978) llega incluso a entender la subjetividad humana en términos de
vulnerabilidad, e identifica esta última como condición de posibilidad
de cualquier for ma de respeto hacia lo humano9. Reconocerse humano
implica reconocerse viviente, y, por lo tanto, vulnerable. En consecuen-
cia, no por ser más vulnerable se es menos humano. Todas las perso-
nas, sean más o menos vulnerables, poseen una igual dignidad. Por eso,
como aprecia MacIntyre (2001), hemos de preguntarnos conjuntamente
por la animalidad del ser humano y por su vulnerabilidad, y por eso am-
bas cuestiones son cruciales para la ética10.
Por supuesto, debemos intentar en lo posible mitigar nuestra vul-
nerabilidad y protegernos de los daños, pero la aspiración a la absoluta
invulnerabilidad para el ser humano tiene algo de absurdo o contradic-
torio. Esta lección tendríamos que haberla aprendido ya del viejo rela-
to referido al talón de Aquiles: cuando Aquiles nació, su madre, Tetis,
intentó hacerlo invulnerable sumergiéndolo en el río Estigia. Pero lo
sostuvo por el talón derecho al introducirlo en la corriente, por lo que
ese preciso punto de su cuerpo, donde presionaban los dedos de Tetis,
no resultó mojado y siguió siendo, en consecuencia, vulnerable. En el
asedio a Troya, Paris mató a Aquiles clavándole una flecha envenenada
en el talón. La perfecta invulnerabilidad hubiese tenido un precio que
Tetis no estuvo dispuesta a pagar, a saber, hubiese requerido que la ma-
dre soltase al hijo y lo abandonase a la corriente. Este relato nos indica
el camino a seguir respecto de la vulnerabilidad humana: tenemos que
reconocerla e intentar mitigarla mediante el cuidado propio y mutuo,
sabiendo que su completa supresión es incompatible con la naturaleza
humana.
Una vez identificado el sujeto vulnerable, hay que estudiar los di-
versos tipos vulnerabilidad que le afectan11. En el caso de las personas,
se suele distinguir entre vul nerabilidad psico-somática, social y espiri-
tual12. Los distintos tipos de vulnerabilidad están correlacionados con
diferentes factores de riesgo. Y, como nos ha demostrado la enfermedad
Covid-19, estos tipos de vulnerabilidad, aunque sean conceptualmen-
te distinguibles, están en lo concreto íntimamente interconectados y
se afectan mutuamente. Por ejemplo, la enfermedad somática puede
causar trastornos psíquicos y viceversa, y ambas pueden incidir sobre
las relaciones sociales, así como generar crisis de sentido. También una
crisis de sentido puede acabar provocando distintas enfermedades y
cambios en las relaciones sociales, y así sucesivamente. Dicho de otro
modo, la vulnerabilidad es la posibilidad de ser herido, cuando dicha
posibilidad se actualiza y uno es realmente herido en lo psico-somático,
social o espiritual, se vuelve por lo mismo más vulnerable a nuevas heri-
das en cualquiera de estos aspectos. La pandemia, tras el daño causado
sobre los cuerpos de los afectados, ha sacudido las estructuras sociales
y finalmente ha acabado por producir una crisis de sentido en quienes
han vivido de cerca, o en primera persona, una extraña muerte en aisla-
miento y sin apenas honras fúnebres.

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Con Covid y Sin Covid

Ante la constatación de esta realidad, caben varias lí neas de ac-


ción divergentes. Se puede optar por la simple resignación, lo cual per-
judica especialmente a los más vulnerables. Algunos gobiernos pro-
pusieron en primera instancia una política (suicida) de inhibición, un
dejar hacer al virus. También hay quien se ha puesto a soñar con utopías
post-humanas de perfecta protección. Se trata de paisajes des-humani-
zados, pues es, al fin y al cabo, nuestra naturaleza humana la que nos
hace vul nerables. Entiendo que esta línea pone en riesgo la existencia
misma de la humanidad, y con ello incumple el imperativo categórico
enunciado por Hans Jonas (1995): “[...] que haya una humanidad13”. Así
pues, la mejor opción consiste en el reconocimiento y mitigación de la
vulnerabilidad, con particular atención, claro está, a las personas que
son más vulnerables.
Resulta intuitivamente claro que la simple resignación no es una
actitud moralmente aceptable. Pero la actitud deshumanizadora es
también susceptible de crítica. Permítaseme traer aquí algunos frag-
mentos escritos por Martha Nussbaum (2004). A través de los mismos
podemos intuir con claridad el paisaje post-humano al que deberíamos
enfrentarnos para lograr la invulnerabilidad, en el cual todo nuestro
universo conceptual, emocional y social quedaría trastocado, con la
consiguiente pérdida de referencias morales.
Aristotle once said that if we imagine the Greek gods as
depicted in legend--all-powerful, all-seeing creatures
who need no food and whose bodies never suffer damage
– we will see that law would have no point in their lives […]
.We humans need law precisely because we are vulnera-
ble to harm and damage in many ways […]. But the idea of
vulnerability is closely connected to the idea of emotion
[…]. To see this, let us imagine beings who are really invul-
nerable to suffering […]. Such beings would have no rea-
son to fear […]. They would have no reasons for anger […]
for grief […] they would not love anything outside them-
selves […]. Envy and jealousy would similarly be absent
from their lives.
Consideremos ahora, según sugiere Nussbaum (2004), “[...] the
large role that emotions […] play in mapping the trajectory of human li-
ves, the lives of vulnerable animals […]. If we leave out all the emotional
responses […] we leave out a great part of our humanity14”. En definitiva,
la invulnerabilidad total abre un paisaje claramente deshu manizado,
ajeno a todo lo que comúnmente conocemos como la naturaleza hu-
mana.
Exploremos, pues, la tercera vía, la del reconoci miento y mitiga-
ción de la vulnerabilidad humana. Se trata aquí de reducir en lo posible
la vulnerabilidad, con especial atención a los más vulnerables, median-
te una profundización en lo humano, mediante su plena realización,
y no mediante su supresión o superación. Reconocer que somos vul-
nerables no es sino conocer y aceptar nuestra propia naturaleza. Este
reconocimiento es ya en sí mismo una virtud, y de él depende el de-
sarrollo de otras virtudes. Por otra parte, la vulnerabi lidad se mitiga en
8 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109147, 2020.
Marcos
la medida en que logremos integrar, coordinar, armoniosamente los
aspectos esenciales de lo humano. Veamos, ya con mayor brevedad, los
dos que nos restan.
En segundo lugar, nuestra condición social nos hace mutuamen-
te dependientes y nos ubica en una determi nada comunidad, la familia
humana. Lo mismo que sucedía con la vulnerabilidad sucede con la de-
pendencia, es decir, que no nos hace menos humanos, sino que es pre-
cisamente una parte de aquello en lo que consiste ser humano. Desde
el terreno de la filosofía, quizá ha sido Alasdair MacIntyre quien mejor
ha entendido y explicado en los últimos tiempos este aspecto de lo hu-
mano. Él ha sabido desarrollar la antigua idea aristotélica del ser huma-
no como animal político, hasta su formulación contemporánea como
animal dependiente. Incluso para ser autónomos dependemos de los
demás, y al servicio de los demás hemos de poner nuestra autonomía15.
En tercer lugar, somos racionales, sí, y esto nos ubica en una nueva
esfera espiritual. Incluye nuestra capacidad de pensar y de pensarnos,
de hacer ciencia y tecnología, de reflexionar, de contemplar y de ponde-
rar las razones para hacer y creer. Porque somos racionales pedimos y
damos razón, buscamos explicaciones y causas, incluidas las más radi-
cales y últimas, deliberamos, decidimos voluntariamente en un sentido
u otro, valoramos el bien y la belleza. Entendemos aquí lo racional en
un sentido amplio y contemporáneo, que incluye e integra la inteligen-
cia emocional, las aportaciones de la intuición, y en general la sensatez.
Gracias al aspecto racional de la condición humana nos constituimos
como sujetos autónomos, podemos darnos a nosotros mismos normas y
criterios, y aceptar o no de manera lúcida y libre aquellas orientaciones
que recibimos de fuera.
Lo interesante del asunto es que estas tres dimensiones de lo hu-
mano, a las cuales nos hemos asomado tan apresuradamente, no son
reductibles entre sí ni tampoco están meramente yuxtapuestas. Su rela-
ción mutua viene mejor descrita por el término integración: cada una de
ellas impregna completamente a las otras dos, las diferencia. Nuestra
inteligencia es sentiente, nuestra forma de percibir ya viene modulada
por nuestro pensamiento, nuestra racionalidad es social y conversa-
cional, no se construye sino en comunicación con los otros, nuestras
funciones animales las llevamos a cabo de modo cultu ral, nuestra au-
tonomía, como decíamos, está al servicio de los dependientes y depen-
demos de los demás para llegar a construirla. En este sentido hay que
entender las palabras del pensador francés Paul Ricoeur (1995) cuando
afirma que autonomía y vulnerabilidad son conceptos complementa-
rios. La autonomía humana es la de un ser vulnerable, que reconoce a
otros seres vulnerables en su entorno, seres que limitan y a un tiempo
posibilitan su autonomía16. Para llegar a la sustantividad que es cada
persona, hemos de tener siempre presente que lo huma no se da de ma-
nera integral, unitaria, indivisible en cada uno de nosotros.
La actual pandemia nos recuerda que la aspiración a la autono-
mía del individuo ha de verse contrapesada en todo momento por el
reconocimiento de nuestra vulnerabilidad y mutua dependencia. En
condiciones de alarma como las que vivimos, uno debe aspirar, qui zá
Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109147, 2020. 9
Con Covid y Sin Covid

más que nunca y con mayor fuerza, a mantenerse por sí mismo, a no


resultar una carga para el resto, a liberar capacidad de asistencia. Ade-
más, nos percata mos como nunca del sentido que tiene esta autonomía:
ha de orientarse precisamente hacia el cuidado de los demás, hacia la
mitigación de la vulnerabilidad humana. Y al mismo tiempo, no queda
más remedio que reconocer nuestra estrecha interdependencia y vul-
nerabilidad. Todo ello configura de un modo intenso y vívido una ética
del cuidado propio y mutuo. Cada paso que damos en los hogares de la
cuarentena, en los heroicos trabajos que sostienen las constantes ba-
sales de la sociedad, nos enseña que todos dependemos de todos, que
formamos la gran familia humana; que hay grandeza en reconocer esta
interrelación, así como en buscar la propia autonomía que de tanto pue-
de servir a otros. Se nos impone como evidencia en estos momentos la
importancia nunca bien ponderada de haber formado con antelación
núcleos fuertes y estables de comunidad, redes de amigos, de conciuda-
danos, y, sobre todo, familias. Todo ello es preceptivo para cualquier
persona antes, durante y después de esta y de cualquier otra pandemia.

¿Qué Hacer? El Cultivo de las Virtudes


Todo lo dicho no implica que no hayamos aprendido nada de la
actual situación sanitaria. Pero ha sido un tipo de aprendizaje peculiar,
una cierta forma de reminiscencia. La pandemia nos ha recordado lo
que ya deberíamos haber aprendido antes, nos ha mostrado con mayor
viveza y fuerza lo que no deberíamos haber olvidado. En suma: que el
futuro está abierto y que nuestra guía moral ha de ser nuestra esencia
humana y personal. Parece algo elemental, pero este cambio de pers-
pectiva nos coloca ya definitivamente fuera de los tiempos modernos,
lejos de la ideología según la cual las ciencias – incluidas las ciencias
sociales – predicen con certeza y las tecnologías controlan con seguri-
dad. Este cambio de perspectiva nos ofrece, además, una escapatoria al
desamino nihilista. No es verdad que nos hayamos quedado sin guía:
como tal ejerce el ser.
Así, para cualquiera de nosotros, rige como brújula la fidelidad a
nuestra común naturaleza humana y a la persona que cada cual es. Para
la sociedad en su conjunto funge como guía la preservación de unas
condiciones mínimas en las cuales el respeto al ser se pueda cumplir.
Se podría traducir esta última máxima metafísica a términos más con-
cretos, jurídicos y políticos: se trata, en última instancia, de preservar
los derechos huma nos, basados en la dignidad de todos y cada uno de
los miembros de la familia humana.
Cada persona y la sociedad en general han de fomentar, enton-
ces, el conjunto de virtudes que posibi litan la realización humana, que
permiten para cada uno el cumplimiento de la enseñanza de Píndaro. Y
no porque el desarrollo de virtudes sea la mejor – digá moslo en manida
frase – apuesta de futuro, sino porque constituye el mejor modo de rea-
lizar nuestro ser. En la tradición aristotélica es la práctica de la virtud,
la búsqueda de la excelencia, la que permite la realización humana. Por
añadidura, como un regalo o una gracia inesperada, si miramos hacia
10 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109147, 2020.
Marcos

el pasado reciente, nos percatamos de que el cultivo de las virtudes hu-


biera sido la mejor fórmula para afrontar la extraña experiencia que nos
acongoja.
Nos damos cuenta con luz nueva de la pléyade de virtudes que
nos hubieran venido bien, que ahora mismo nos vendrían bien, que de
hecho han mitigado el sufrimiento en la medida en que han estado pre-
sentes, que hemos echado de menos cuando no las hemos encontrado
dispuestas y en función; virtudes que segura mente deberíamos haber
cultivado desde tiempo atrás y en mejores circunstancias. Hemos asu-
mido en estos días que hay que contar con lo inesperado. Pero resulta,
al parecer, que solo el cultivo de un carácter conforme a la virtud nos
prepara para aquello que no sabemos calcu lar, ni predecir, quizá ni
imaginar.
Tenemos normas y dictados de urgencia que llegan desde el poder
político, desde nuestros no siempre ejemplares gobernantes. Pero las
normas no bastan. El sentido del deber no moviliza, y menos aun sostie-
ne la acción en circunstancias adversas. Los cálculos de utilidad, como
se ha visto, no siempre son factibles y pocas veces resultan fiables. Hace
falta, sí, resulta imprescindible, sopesar las consecuencias de cada una
de nuestras acciones, atender a lo que el sentido del deber indica y ob-
servar las normas promulgadas. Pero la vida misma nos enseña hoy que
hemos de ir más allá y venir más acá de todo eso, que hay algo anterior y
posterior a la norma, al deber o al cálculo; algo que es necesario y que, al
mismo tiempo, no es formalmente exigible; algo que depende del carác-
ter de las personas, que brota de nuestra natu raleza y acaba por cuajar,
al decir de Aristóteles, en una especie de segunda naturaleza.
Gracias a esta segunda naturaleza se pueden equilibrar, bajo el
consejo de la prudencia, el reconocimiento de nuestra vulnerabilidad
y dependencia con la legítima aspiración a la autonomía personal. “La
vulnerabilidad en la que somos, vivimos y desarrollamos nuestra vida
– escribe Lydia Feito (2020) – nos exige extremar nuestra prudencia [.]
Somos vulnerables y, desde el reconocimiento de nuestra fragilidad, de-
bemos ofrecer la respuesta ética: el cuidado, que se traduce en la obliga-
ción de acciones prudentes17”.
En esta segunda naturaleza se instalan las virtudes del cuidado y
de la dependencia que tan imprescindibles se han mostrado en los úl-
timos días. Si miramos hacia nuestra común naturaleza humana nos
veremos inclinados al cultivo de las virtudes que pueden llevarnos a la
realización y a la excelencia, virtudes como la prudencia, por supuesto,
pero también el compromiso, la honradez, la fortaleza, la templanza, la
humildad y la serenidad, la generosidad en el esfuerzo, la laboriosidad,
la creatividad, el buen ánimo, la amabilidad, la puntualidad, el agrade-
cimiento, la austeridad en el consumo y la moderación en líneas genera-
les, la sinceridad, la tolerancia, la capacidad de sufrimiento, la alegría, la
disciplina, la disposición de obediencia a la autoridad legítima y así su-
cesivamente, hasta algo tan modesto, pero crucial, como son los buenos
hábitos de higiene y limpieza. Se aprende todo ello con la práctica y con
el ejemplo. Hemos afrontado la experiencia de lo impensable gracias a

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109147, 2020. 11


Con Covid y Sin Covid

que dichas virtudes, en cierto grado, estaban ya presentes entre noso-


tros. Y hemos notado que si las hubiésemos cultivado en mayor grado,
la respuesta ante lo inesperado hubiera sido más satisfactoria, hubiéra-
mos ahorrado una buena cantidad de sufrimiento y desazón.
Cuando el sentido del deber se quedó escaso, cuando faltó tiem-
po y medios para el cálculo de consecuencias, hemos echado mano del
carácter. Hemos conocido estos días ejemplos iluminadores en la línea
mencionada. Por citar tan solo dos: los profesionales de la sanidad – en
destacado lugar –, los encargados de la distribución, del orden público,
de la enseñanza, de la investigación médica y un largo etcétera de fun-
ciones básicas para evitar el colapso, han dado, están dando, pruebas
de coraje, creatividad, laboriosidad y capacidad de sacrificio. También
la sociedad en general ha sabido dar muestras ejemplares de agradeci-
miento – una de las virtudes que MacIntyre liga al reconocimiento de la
dependência –. Aprendemos todos cuando vemos a una enfermera que
mantiene la paciencia tras veinticuatro horas de guardiã o a un conduc-
tor que sacrifica la noche entera para ga rantizar el abastecimiento. De
una nueva y sorprendente liturgia social, el aplauso al atardecer, hemos
aprendido la virtud del agradecimiento.

Conclusiones
La pandemia que estamos sufriendo supone una especie de prue-
ba de estrés, no solo para los sistemas sanitarios y para la economía del
planeta, sino también para los distintos sistemas éticos18. Las éticas del
deber resultan imprescindibles, pero en estas circunstancias excepcio-
nales se nos han quedado cortas. Ante el esfuerzo heroico que tantas
personas han ofrecido voluntaria y gratuitamente, la mera noción de
deber se nos antoja minúscula e insuficiente. Cuando tantos han ac-
tuado en el nivel de lo supererogatorio, la simple apelación al deber se
convierte en una ética de mínimos, un tanto raquítica para afrontar lo
que se nos ha venido encima. En cuanto a los cálculos uti litaristas, hay
que decir que tampoco han soportado con éxito la prueba de estrés. Di-
chos cálculos de poco sirven cuando todas las previsiones van saltando
por los aires, cuando la propia OMS, la comunidad científica, los exper-
tos y no digamos los gobiernos van dando a diestro y siniestro palos de
ciego. Tampoco las éticas de la posmodernidad han salido muy airosas
de la prueba de estrés. Cuesta ver el virus como una mera construcción
social. Una buena parte de la frivolidad relativista se ha evaporado ante
la constancia cruda de la realidad que nos golpea.
Quizá, por las razones que venimos exponiendo, han soportado
mejor la prueba de estrés las éticas de virtud y del cuidado, que no de-
penden tan drásticamente del apego al deber, de los cálculos de utili-
dad o de las veleidades individuales y culturales. Las éticas de la vir-
tud miran al fondo de la naturaleza humana. Allí encuentran los rasgos
propios de nuestra condición animal, social y espiritual, allí detectan la
vulnerabilidad humana, nuestra mutua dependencia, la aspiración le-
gítima a la realización personal. De ahí brota la fuerza normativa, de ahí
surge la necesidad de cultivo y desarrollo de una segunda naturaleza,

12 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109147, 2020.


Marcos

de un carácter virtuoso. Gracias a que ese carácter estaba ya presente


en muchos, nuestra sociedad ha logrado ir más allá del deber, de la pre-
dicción de utilidades y del capricho individual. Si algo hemos echado de
menos es que dicho carácter hubiera estado presente en más personas
y en mayor grado. En esta línea de cultivo del carácter encontramos el
modo correcto para mitigar la vulnerabilidad humana que tan presente
se nos ha hecho en estos días.
Recibido el 01 octubre de 2020
Aprobado el 12 de noviembre de 2020

Notas
1 Popper and Lorenz (1992).
2 Agamben et al. (2020).
3 Jonas (1995, p. 200).
4 Jonas (1995, p. 95).
5 Para una exposición en profundidad de estas ideas puede verse Marcos and
Pérez (2018).
6 Masiá (1997).
7 Feito (2020, p. 2).
8 Sigo aquí las principales ideas contenidas en Marcos (2015) y en Marcos (2016).
9 Levinas (1978, chap III, section 5, p. 120-128). Véase también Nicolas Antenat
(2003).
10 MacIntyre (2001, p. 10). Las nociones de interior y exterior, así como la de
vulnerabilidad, se aplican también a entidades no vivas, como por ejemplo
casas o computadores, pero se hace de modo analógico o metafórico, tomando
estas entidades como si fuesen seres vivos o prolongaciones en algún sentido
de los mismos.
11 Puede verse el número monográfico de la revista Medic dedicado a los Disability
Studies como nueva área de investigación. (Ugolini et al. 2013).
12 Véase Torralba (2002).
13 Jonas (1995, p. 87-88).
14 Las dos citas de Nussbaum proceden de: Nussbaum (2004, cap. 1).
15 MacIntyre (2001, p. 10); Marcos (2013, p. 21-34); Marcos (2012, p. 83-95).
16 Ricoeur (1995).
17 Feito (2020).
18 Marcos (2020).

Referencias
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pos de pandemias. ASPO, 2020. Available at: <http://iips.usac.edu.gt/wp-content/
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Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109147, 2020. 13


Con Covid y Sin Covid

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MARCOS, Alfredo; ALONSO, Carlos. Un paseo por la ética actual. Madrid: Digital
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NUSSBAUM, Martha. Hiding from Humanity: disgust, shame, and the law. Prince-
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21, 2013. Available at: <http://www.medicjournalcampus.it/archivio-della-rivis-
ta/2013/volume-21-dicembre-2013>. Accessed on: 07 Sept. 2020.

Alfredo Marcos es Doctor en Filosofía por la Universidad de Barcelona, pro-


fesor de Filosofía de la Ciencia en la Universidad de Valladolid, donde ha
sido también Director del Departamento de Filosofía.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2101-5781
E-mail: amarcos@fyl.uva.es

Editor a cargo: Carla Vasques

Este é um artigo de acesso aberto distribuído sob os termos de uma Licença


Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Disponível em: <http://
creativecommons.org/licenses/by/4.0>.

14 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109147, 2020.


SEÇÃO TEMÁTICA:
AS LIÇÕES DA PANDEMIA

Nihilismo, Pandemia y Educación


Andrea Díaz GenisI
I
Universidad de la República del Uruguay (UDELAR), Montevideo – Uruguay

RESUMEN – Nihilismo, Pandemia y Educación1. Se trata de conectarnos,


como punto de partida, con la experiencia del coronavirus a partir de la
idea de nihilismo activo en Nietzsche para buscar con él o a pesar de él, una
vía de salida. Para posteriormente encontrarnos con la búsqueda de sen-
tido a partir de la experiencia de resistencia íntima de la que habla Joseph
Esquirol, consiente de la importancia del cuidado de sí ligado al cuidado de
los otros y de una resistencia política que nos advierte de los peligros del
poder dominante y las debilidades a la que estamos sometidos los sujetos
en tiempos de amenaza de Pandemia. Luego, se trata de pensar en la tarea
de la educación como resistencia, como lugar de renovación del mundo y de
la esperanza.
Palabras-clave: Nihilismo. Búsqueda de Sentido. Resistencia Íntima y Polí-
tica. Cuidado de Sí y de los Otros. Educación. Amor al Mundo.

ABSTRACT – Nihilism, Pandemic and Education. It is about connecting,


as a starting point, with the experience of the coronavirus from the idea
of active nihilism in Nietzsche to search with it or despite it, a way out. To
later find the search for meaning based on the experience of intimate resis-
tance that Josep Esquirol talks about, aware of the importance of self-care
linked to the care of others and of a political resistance that warns us of
the dangers of power dominant and the weaknesses to which we subjects
are subjected in times of pandemic threat. Then it comes to thinking about
education as resistance, as a place of renewal of the world and of hope.
Keywords: Nihilism. Search for Meaning. Intimate and Political Resistan-
ce. Care for Oneself and Others. Education. Love to the World.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109526, 2020. 1


http://dx.doi.org/10.1590/2175-6236109526
Nihilismo, Pandemia y Educación

Llegó una cierta noche, la del coronavirus, que no es reparadora,


puesto que está llena de insomnio, de miedos y fantasmas que nos re-
cuerdan todos los mundos y las esperanzas perdidas. Que nos recuerda
nuestra condición de finitud, nuestra propia vulnerabilidad y muerte.
Es la noche que nos conecta con esa nada 2 de la que venimos escapando
a partir de tantas pantallas y diferentes modos de entretenimiento, algo
que sin lugar a dudas no queríamos enfrentar o mirar cara a cara.
Eso que tampoco queríamos mirar se llama Occidente, un pro-
yecto de mundo colonizador que habita su propia decadencia desde
hace muchos siglos, la propia condición humana que cae una y otra vez
en la cuenta de sus grandes promesas incumplidas. Nihilismo3, le lla-
mó el filósofo Friedrich Nietzsche, a esa noche oscura y no reparadora,
y es pasible de aplicarlo a la situación que ahora vivimos. No se trata
solamente de lo que nos trajo acarreado la muerte de Dios según este
filósofo, entendido como muerte de los absolutos donde ya no hay un
supra- mundo o un supra- sentido al que recurrir que nos salve de ese
encuentro con el vacío. También se trata de caer en la conciencia de que
este tipo de animal, el humano, no ha sido capaz de sostener la vida de
su cría, y a pesar de toda su razón, ciencia y tecnología (y no sólo a pesar
de sino muchas veces con) ha puesto en jaque la vida toda sobre el pla-
neta. Somos los grandes depredadores de la vida. Esa cría de lo humano,
ahora, ha de meterse en su habitación ante un virus invisible, mientras
laboratorios desesperados buscan una inmunidad, para cientos, miles y
millones que podrían enfermarse y morir. Toda la soberbia del pequeño
hombre cae en un segundo, ese ser, que ha develado ser peor en lo hu-
mano que en lo animal, se encuentra envuelto en una vida que puede
prescindir de él en un abrir y cerrar de ojos.
Nihilismo es tener conciencia de esa farsa de los grandes meta-
relatos, de todas esas historias que nos contaron para vencer los miedos
de la interminable noche a la intemperie y con miedo. Ahora que du-
damos por enésima vez del mañana, del futuro, del progreso racional
(puesto que no hay nada más irracional que atacar las fuentes de la vida
que son la propia naturaleza y el ser humano), se oscurece más la noche,
y a todo parece faltarle el valor, todo es igual, dice el nihilista, nada pa-
rece merecer la pena.
Por lo menos, los místicos, decía Fernando Pessoa a través del he-
terónimo de Bernardo Soares, jugaban con el misterio y pudieron ha-
berse vaciado del vacío del mundo. Escuchemos estas hermosas pala-
bras. Dice Pessoa (ano):
Siempre seré, bajo el gran palio azul del cielo mudo, paje
de un rito que no comprendo, vestido de vida para reali-
zarlo y ejecutando, sin saber por qué, gesto y pasos, postu-
ras y maneras, hasta que la fiesta acabe, o mi papel en ella,
y pueda ir a comer exquisiteces en los puestos que están,
dicen, allá abajo, al fondo del jardín4.
En esta noche oscura de nihilismo, también caemos en la cuenta
de que no hay mística ni misterio puesto que no hay Dios ni absolutos,
no hay ni fiesta, ni jardín ni si quiera hay frente ni fondo, puesto que no

2 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109526, 2020.


Díaz Genis

hay verdad absoluta a la que atenernos. Sólo caída. El tema es precisa-


mente cómo construir una vida sin caer en la desesperación o lo que es
peor, en la indolencia. Hasta aquí el nihilismo más pasivo, rotundo y
negativo, que hemos de superar de alguna manera, sin caer en la trampa
del reencantamiento del mundo que intenta inventar nuevos Dioses 5.
Esta es nuestra postura: ocurre que nadie nos va a dar el sentido,
el sentido debe construirlo y forjarlo el humano en su comunidad junto
a los otros. Es inmanente no trascendente, aunque debe partir de ideas
fuerza que empujen hacia adelante, tiene que ver con afirmar la vida a
partir de la conciencia de la finitud y precariedad (en algunos aspectos,
esto nos dirá Nietzsche a través de su idea de nihilismo activo).
Dado que nosotros mismos somos los sepultureros de Dios,
démosle por fin un buen entierro, mas si hubo Dios, ideales, absolutos,
utopías, quiere decir que el ser humano, gran inventor y artífice de fic-
ciones, puede retomar y retornar la fuerza que proyectó en su ilusión. Si
no hay verdad, tampoco hay mentiras, y podemos vivir a sabiendas de
que todo es interpretación, lo que no implica que cualquier interpreta-
ción es válida o aceptable.
¿Qué nos protegerá de la gran noche indolente donde todo es igual
y nada vale la pena? Nosotros mismos con los otros.
¿Cómo construir esa protección en la belleza, en lo simple y co-
tidiano, ese lugar cálido que sostiene, ese hogar físico y espiritual que
cobija?
Y quiero decir ahora que ese sentido del que hemos de partir, lo
hemos de encontrar en lo próximo. Hay una resistencia íntima posible y
viable en lo próximo, en lo cotidiano, donde se comienza a jugar la bata-
lla contra el nihilismo y donde se dan los pequeños pasos que superan
abismos6.
Si bien el ser humano es el gran depredador, la gran amenaza es
también la gran esperanza para sí mismo y el resto de los seres que ha-
bitan el plantea. No se trata de que lo malo es la enfermedad y la muer-
te. que forman parte de la vida, lo malo es matar premeditadamente al
otro, enfermarlo o simplemente no dejarlo vivir. Incluso arrojarse el
derecho de decidir quiénes tienen el derecho a vivir, y quiénes a morir
(necropolítica le llama Achille Mbembe)7.
¿Dónde debemos refugiarnos, sino en nosotros mismos? decían
los filósofos antiguos8. Y hay que aprender a estar con nosotros mismos,
la cosa más difícil, hemos de aprender a habitar ese refugio en nosotros
mismos. Uno de los grandes problemas del hombre, ya lo decía Pascal,
es no saber habitar su propia habitación. No saber vivir sin fuga. No ha-
ber aprendido el goce de habitar en el sí propio (y no sólo me refiero a
habitar su ser, sino en su hogar mayor, su vida sobre el planeta).
Y preguntarnos desde el fondo, ¿qué nos puede inmunizar, en el
sentido de proteger desde dentro?, ya no de la muerte y la enfermedad
frente a lo que no hay ni puede haber inmunidad absoluta, dado que
forman parte de la vida. Y encontrar la defensa en el alcohol en gel o
el tapabocas, la distancia con el otro o mucho mejor en la vacuna, sino

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109526, 2020. 3


Nihilismo, Pandemia y Educación
también en una fortaleza que nos nutra desde dentro y nos permita des-
plegarnos transformados hacia afuera.
Pues no se trata solo de sobrevivir a un virus y luego de otro virus
y así ad infinitum (no le quito importancia a esto), sino de poder habitar
en nosotros mismos y con los otros, de hacer de este hogar en el que
habitamos un mundo vivible.
Instauremos una filosofía de lo próximo y preguntémonos ¿qué
nos salva hoy del frio metafísico de la grande ausencia y el vacío de sen-
tido? Lo próximo, esa tarea que involucra lo que amo y a los que amo.
Ese plato, esa comida caliente, es fuego interior y exterior que nos sos-
tiene, ese jardín que cultivamos día a día. Y esto no requiere de grandes
construcciones o grandes promesas. Un sostener que para ser tal, no
puede ser sólo individual. Todo lo que es a favor de mi debe ser en favor
de los otros, si esos otros están bien, lo estamos todos. Si yo no estoy
bien, provoco mal en los otros y en mí. Un estar juntos, aunque estemos
solos y aislados. Reconstruir el vínculo perdido con nosotros, con los
otros y con el mundo. Crear comunidad con nosotros mismos, con los
otros, y con el mundo.
Nos podemos apercibir que hasta ahora eso que llamamos vida
se ha construido desde la huida, entre otras cosas, habíamos estado hi-
potecados, estamos prestados al consumo, consumidos en un tiempo
productivo transformable en dinero, enajenados, perdidos de nosotros
mismos, de los otros y del mundo. Internalicemos esta frase: “Somos un
nosotros lleno de otros, si los otros no están bien, yo tampoco”.
No hay cuidado de sí sin cuidado de los otros, el cuidado de los
otros, no puede implicar el descuido de mí, ya lo sabían los antiguos
(Díaz Genis, 2016).
Y la pregunta que no deja de retumbar en mis oídos ¿por qué he-
mos llegado hasta aquí, y en qué nos hemos descuidado tanto?
Pues no solo hemos matado a Dios, como decía Nietzsche, nos he-
mos matado a nosotros mismos y hemos puesto en riesgo la vida toda.
El virus, no es la muerte ni la enfermedad. Ni siquiera es la sole-
dad más fría de la noche más fría. Es lo que intentamos separar, aunque
permanece unido y enamorado. Yo soy el otro y soy naturaleza también.
Afuera hace frio, pudiste o puedes construir un hogar que sea re-
fugio de todos.
Ese hogar es la vida del planeta un punto ínfimo en la pluralidad
del universo existente.
Esa es nuestra tarea y está incumplida.

Vivir es resistir9
Hay que recordar que también vivir es resistir no solo íntima y
privadamente, sino también pública y políticamente10.
Se trata entonces de no caer tampoco en un absoluto pesimismo,
que me deje sin posibilidad de reacción a las amenazas del momento
presente. Para ello debemos recordar que: El Covid 19 es un virus y no
4 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109526, 2020.
Díaz Genis

puede ser, bajo ninguna circunstancia, un pretexto para imponer una


especie de dictadura policíaca y militar.
Deben indicarse modos de cuidarse razonables y no de propagar
el miedo irracional al contagio o a la enfermedad. Claro que esa situa-
ción implica una distancia con el otro para cuidarme, pero también es
una forma de reivindicar el valor del otro, su necesidad, dado que no
soy sin el otro, sin su ayuda, sin su apoyo, sin su trabajo, sin su cobijo.
Es insostenible una soledad que me separe del otro absolutamente, el
otro, aunque no esté próximo, es el que me acompaña en el autocuidado
y también me cuida. Hay una orden de una cierta distancia razonable,
pero una orden de distancia absoluta es imposible y absurda. En su ex-
tremo, no es susceptible de ser contagiado el que está muerto, aunque
muerto y todo, también amenaza.
El coronavirus no puede ser una carta en blanco que permita la
supresión de la libertad a título de una protección que no tiene derecho
a réplica o cuestionamiento. Queremos recordar que existe el derecho a
desobedecer (ya lo decía Thoreau), si una orden deja de ser razonable. A
esto no solo se le llama desobediencia civil, sino sensatez, que se supone
que es una cosa bien repartida en el mundo. El confinamiento no nos
impide pensar por nosotros mismos.
El agente siempre es cada sujeto, cada familia. Somos el agente
de nuestro propio cuidado, que es también cuidado a los otros, no de
los otros11.
No estamos, a partir de la Covid 19, solo representados como vivos
a partir del trabajo imprescindible o el teletrabajo. Habitamos otros es-
pacios, lugares y tiempos que no son sólo los de la productividad, tam-
bién son los del goce, la diversión, la alegría y el tiempo libre.
Tampoco la Covid nos puede anular en la capacidad crítica acerca
de los otros elementos sociales, políticos y culturales, que están presen-
tes y siguen estando presentes y que debemos seguir elaborando con-
ceptualmente.
La Covid, a partir del confinamiento, nos desvincula de lo real, de
la calle y de la asociación con el otro, instrumento fundamental para la
lucha, transformación social y parte del sentirnos vivos. Debemos bus-
car otras formas de protesta, de resistencia y asociación. Hay otra calle
posible, pero necesitamos aguzar la inteligencia para entender que el
espacio virtual, como otro espacio de lo público, también es un espacio
lleno de trampas, virus, falsedades y tergiversaciones, lugar de manipu-
laciones extremadamente potentes. De obediencias programadas que
aún no somos capaces de analizar o comprender, de violencias implí-
citas, etc.

El coranovirus nos ha dejado pegados a una vida virtual y a una


realidad construida dominantemente por los medios de comunicación
o en los espacios virtuales. Hay que buscar en esos mismos medios, for-
mas alternativas de construir realidad y de ofrecer resistencia desde la
pluralidad de visiones. Recordar que estamos en la máquina que ha sido

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109526, 2020. 5


Nihilismo, Pandemia y Educación

programa por alguien y con ciertos objetivos o intenciones, y que esto


no es neutral.
Nunca puede tornarse como legítima la prohibición de la protes-
ta social. Hemos de buscar otras formas de ser creativos en la misma,
para no bajar la guardia y para rechazar toda forma de militarización
de la vida social so pretexto de seguridad. Si lo más peligroso es ahora
reunirnos, busquemos formas creativas de reunión que no nos pongan
en peligro.
El coronavirus puede instalarnos en un aislacionismo centrado
en la soberanía nacional que no es buena estrategia, hay que recordar
que somos uno, seres plantarios y que el virus no tiene fronteras y lo
que le pasa a unos nos pasa a todos. No perdamos empatía y solidaridad
con los otros de otras naciones, de esto salimos juntos. Cuidémonos de
los fascismos que dejan entrar el virus del miedo y la intolerancia que
pueden contagiarse aún más rápido que el coronavirus.
No hay otra normalidad, pues no hay normalidad. La anormali-
dad que ha de ser rechazada como nueva normalidad es la que permite
habilitar la exclusión del otro visto como amenaza o peligro y no como
compañero de lucha. Debemos estar advertidos de una anormalidad,
como nueva normalidad, que pueda someternos y quitarnos derechos,
tornarnos más frágiles a la hora de poder poner límite a los abusos que
vienen del poder dominante.
Quiero terminar esta parte de la reflexión con esta excelente li-
tografía de Maurits Cornelis Escher, artista holandés de renombre in-
ternacional. Es su autorretrato reflejado en una esfera de cristal. En el
contexto del artículo quiere simbolizar un aislamiento que pueda ser
oportunidad para entrar en un proceso de autoconocimiento (expreso
aquí el deseo de que el habitar en sí mismos en una habitación propia
intente ser una buena experiencia, algo que nos dé provecho). La bús-
queda de protección, simbolizada por la esfera, implica esa resistencia
íntima a la que apelamos, esa inmunidad desde dentro que se proyecta
a un afuera, que no es solo personal, sino que también es política.

Figura 1 – Autorretrato Reflejado en una Esfera de Cristal

Fuente: M. C. Escher (1935).

6 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109526, 2020.


Díaz Genis

Por Amor al Mundo


Voy a partir de las tan hermosas palabras de Hanna Arendt sobre
educación:
La educación es el punto en el que decidimos si amamos
el mundo lo bastante como para asumir una responsa-
bilidad por él y así salvarlo de la ruina, de no ser por la
renovación, de no ser por la llegada de los nuevos y de los
jóvenes, sería inevitable. También mediante la educación
decidimos si amamos a nuestros hijos lo bastante para
no arrojarlos de nuestro mundo y librarlos a sus propios
recursos, ni quitarles de las manos la oportunidad de em-
prender algo nuevo, algo que nosotros no imaginamos, lo
bastante como para prepararlos con tiempo a la tarea de
renovar un mundo común (Arendt, 2016, p. 301).
La educación es una forma de hospitalidad hacia los nuevos, hacia
los que vienen, una forma de responsabilidad y renovación del mundo.
Sin ese amor al mundo y a los nuevos, por lo cual nosotros los viejos
tomamos responsabilidad ante ellos, no habría educación. La educa-
ción como uno de los sostenes del mundo. Si bien no hay mundo sin
la novedad, tampoco sin el contacto con la tradición, a partir de una
herencia que contiene el valor que los viejos hemos recuperado como
acto de donación y bienvenida. Esto es lo que debe ser sostenido en la
educación, el encuentro de lo viejo con lo nuevo como mediación y an-
ticipación del mundo a través de un amor que construye la posibilidad
de encuentro siempre renovado. ¿Qué es lo que se pone en juego en la
relación entre profesores y alumnos? Una cierta relación con el saber
a través del estudio, y un cierto amor bajo la forma de una forma de
hospitalidad. Cuando acontece la Covid, se corta abruptamente la po-
sibilidad de educar entre paredes, se rompen vínculos con el exterior, se
impide volver a clase, y con esto se eliminan muchos de los rituales que
hacen al acto educativo en un contexto presencial. Mas algo importante
también acontece en lo disruptivo que nos trae la pandemia. Ahora, nos
preguntamos con más fuerza que nunca: ¿qué hace de la escuela una
escuela12?, ¿qué se puede y debe sostener a pesar del impedimento de
la clase presencial, y a partir de la necesidad de una educación de tipo
virtual? La pandemia implicó un acontecimiento que está horadando
nuestro pensar sobre lo educativo, que nos está transformando el pre-
guntar acerca de qué es educar.
Nosotros creemos que se puede, sin lugar a dudas, sostener algo
de lo fundamental del fenómeno educativo, aun en la distancia y aun en
la virtualidad, aun sin poner el cuerpo y en medio de la pandemia.
Esta especie de ciborg 13 educador en relación con un ciborg estu-
diante, está sostenido por ese amor al saber y a los alumnos, un vínculo
que, a pesar de lo virtual y con lo virtual, sigue siendo una presentación
del mundo y un hacerse responsable por él. La educación puede ser en-
tendida como tiempo libre para el estudio, un tiempo para el ocio que
nos coloca en una relación particular con el saber14.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109526, 2020. 7


Nihilismo, Pandemia y Educación

Dar clase en este contexto virtual, pospandémico, también pue-


de ser comprendido como una resistencia íntima y política que intenta
superar el nihilismo. Creemos, ahora más que nunca, que la escuela
presencial es la mejor escuela, la escuela que vale la pena, ahora y más
que nunca nos dimos cuenta de la importancia educativa del encuentro
presencial y afectivo en el cuerpo a cuerpo y en interacción, desde el
espacio público. Esto no cabe duda, pues afirmamos con Masschelein
y Simons (2014) la defensa de lo público en la escuela, y la necesidad de
que no se deba convertir la educación en un espacio privado para unos
pocos. La escuela es el espacio de lo común, de lo que es de todos, y
para todos. Ahora, mientras esperamos volver a dar cuerpo y potenciar
el espacio público de la escuela vaciada15, hay algo que hay que sostener,
y seguir sosteniendo que hace escuela en tiempos de pandemia. El en-
cuentro con el otro, el nuevo, el alumno, aunque sea un encuentro vir-
tual, es un encuentro, que sostiene la relación con el mundo a través del
saber de una disciplina. Son sobradas las muestras de cariño hacia los
docentes en tiempos da pandemia (también las críticas), docentes que
ponen cuerpo en la virtualidad, ponen sus materiales y hasta su propia
casa (a veces en situaciones no muy buenas) para sostener esa relación
con el saber configurado en el acto educativo y esto incluye la posibili-
dad de reflexionar sobre la propia pandemia, sobre las condiciones de
la educación en tiempos de pandemia, como tema de estudio en el aula,
seminario, coloquios, etc . Sin esa posibilidad estaríamos menos lúci-
dos y mucho más solos, con patologías aún más severas a partir del ais-
lamiento y la incomunicación. Claro que debemos dar pasos para crear
una comunidad, y no sólo entablar una comunicación16. Hay que crear
comunidad educativa, configurando lazos invisibles que potencien y
creen nuevos mundos. El amor de transferencia como dice Freud, que
construye relación con el saber y que es el amor que importa en edu-
cación, como lo pensó hondamente Platón en su Banquete, construye
autoridad docente a partir de la ética, a partir de un reconocimiento que
es el tipo de autoridad que conviene al docente17. El profesor, implícita-
mente, al abrir una sesión de zoom o de cualquier otro tipo de platafor-
ma virtual que crea aula en tiempos de Pandemia, y a pesar y con todas
las vicisitudes, le está diciendo lo siguiente al alumno:
[…] estamos aquí, porque nos hemos hecho responsables por el mundo,
no los dejamos solos, aquí seguimos alentando la chispa del saber que
hay entre nosotros, y que justifica nuestra tarea, bienvenidos al mundo,
un mundo puesto en duda y cuestionado, aquí les presentamos las me-
jores tradiciones que hemos escogido para vosotros, así, a partir de esta
base, uds podrán ensanchar su ser, desarrollarse como humanos y reno-
var este mundo.
No se trata de elegir entre redes o paredes18, como decía Paula Si-
bilia en uno de sus libros. Las paredes tienen su necesidad y su razón
de ser, las redes, nos pueden aportar muchas cosas y ahora nos sirven
de apoyo en una situación de crisis, lo decimos, dado que no somos ni
apocalípticos ni integrados19.
Pero lo esencial sigue siendo un saber que se pone en común, una
relación que se pone en juego. Claro está que el tiempo del ocio para el

8 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109526, 2020.


Díaz Genis

estudio no debe ser para los privilegiados, sino para toda la humanidad
como legado. La pandemia dejó otra vez la evidencia de las grandes des-
igualdades con las que nos encontramos a la hora de enfrentar las crisis,
es decir, los que más pierden siempre son los que menos tienen, los más
vulnerables. Pero mucho más perjudicados aun si no hay nadie que se
responsabilice por los avatares del mundo, si no hay nadie que diga aquí
estoy a pesar de todo. En este caso, por mantener una presencia y un
vínculo que, aunque no suficiente, quizás se habría roto absolutamente
de no haberse podido sostener. Con esto no estamos queriendo decir
que se debe sustituir lo real por lo virtual, la educación presencial por la
virtual, sino que lo que no puede darse ni debería darse es que los viejos,
los adultos y los docentes no nos hagamos cargo. Así, aunque insufi-
ciente, y precaria, la responsabilidad queda intacta cuando hacemos lo
que podemos con lo que tenemos en tiempos de crisis y nihilismo. Eso
es también otra manera de hablar de resistencia íntima y política.
Aquí estamos de pie todavía, profanando todo lo que se dice con-
sagrado o sagrado e intocable, para experimentar como amantes del
saber, del mundo y de los nuevos lo que somos. Queremos admitir, y
testimoniar que hemos llegado hasta aquí, porque el mundo adulto no
ha sabido cuidar ni cuidarse, y nos hacemos cargo, nos cabe ahora se-
guir pensando más a fondo y actuar en consecuencia, ponerlo todo en
cuestión, sin dejar de crear e imaginar otros futuros posibles, en este
entretiempo que construye resistencia en educación, de esa manera no
estaremos dando lugar a la derrota, sino a la esperanza.

Recibido el 01 octubre de 2020


Aprobado el 12 de noviembre de 2020

Notas
1 Este artículo constituye una reformulación de un artículo ya publicado en la
Revista Ariel. Andrea Díaz Genis. Recursos y resistencias de una filosofía próxima.
Revista de Filosofía arbitrada. Montevideo: ARIEL, n. 25, julio 2020.
2 Etimológicamente nihil significa nada.
3 El análisis sobre el nihilismo está basado en Friedrich Nietzsche, ver La Volun-
tad de Poder (2000).
4 Fernando Pessoa (2013), Libro del Desasosiego. Barcelona: Acantilado, p. 178.
5 Todo esto pensando desde el contexto de la filosofía nietzscheana. Para pro-
fundizar en este punto ver Andrea Díaz Genis (2008), El Eterno Retorno de lo
Mismo o el Terror a la Historia. Montevideo: Editorial Ideas.
6 Ver en este sentido el libro de Josep María Esquirol (2015).
7 Mientras mencionamos esto, sigue muriendo personas en el Mediterráneo,
huyendo del hambre y la desesperación sin ser rescatados, sin derechos, inca-
paces de ser llorados como dice Butler, abandonados para morir, simplemente
no refugiados. Según Acnur, hay 70,8 millones de personas en todo el mundo
se han visto obligadas a huir de sus hogares por situación de extrema violencia
política, guerra, hambre, etc. Entre ellas hay casi 25,9 millones de personas
refugiadas, más de la mitad menores de 18 años. Los Muertos desde el 2014 en

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109526, 2020. 9


Nihilismo, Pandemia y Educación

su travesía hacia a Europa son más de 20000. Consultado en: <https://news.


un.org/es/story/2020/03/1470681>. Acceso el: 22 de abril de 2020.
8 Sobre la importancia de una relectura de la filosofía antigua para la formación
de lo humano ver: Andrea Díaz Genis (2016).
9 Esta parte supone partir de muchas de las críticas ofrecidas por María Galindo
en la Sopa de Wuhan (Agamben; Zizek et al. 2020).
10 Hoy no es tan fácil distinguir el espacio público del espacio privado. La resis-
tencia política se produce en el espacio íntimo del hogar.
11 Importante son las reflexiones de Harari al respecto. Consultado en: <https://
elpais.com/elpais/2020/04/06/planeta_futuro/1586170713_492779.html>.
Acceso el: 22 de abril de 2020.
12 Cualquiera sea la escuela, primaria, secundaria, universidad.
13 Mezcla de máquina y organismo.
14 En esto seguimos las reflexiones de Masschelein y Simons en su libro: La
Defensa de la Escuela. Una cuestión pública (2014). En este libro los autores
hacen referencia a la educación a partir de los griegos entendida como skholé,
tiempo libre.
15 Este concepto de Escuela vaciada nos parece interesante, ver Bertorni, F, y
otros: La Escuela Vaciada. La Enseñanza en época pospandémica. Madrid,
Altamarea, 2020.
16 Como bien dice Byung Chul Han en su último libro acerca de los rituales: La
desaparición de los rituales, Madrid, Herder, 2020.
17 Sin la asimetría de la autoridad no es posible la educación según Hannah
Arendt. El alumno reconoce en el profesor el lugar de la autoridad del que
enseña, del que tiene algo que enseñar, mostrar, nada menos que el mundo,
y que el alumno necesita para ser, transformarse, habitar el mundo. Mas lo
que conviene a la autoridad del docente, no es la autoridad de la imposición,
sino la del reconocimiento por parte del alumno, como parte de un bien que le
permitirá ejercer un derecho en el que está implicado su futuro, su bienestar y
su desarrollo como ser humano.
18 Paula Sibilia. ¿Redes o paredes? La escuela en tiempos de dispersión. Buenos
Aires: Ed. Tinta Fresca, 2012.
19 Como hace un tiempo dictaba uno de los libros más conocidos de Umberto Eco.

Referencias
AGAMBEN, Giorgio; ZIZEK, Slavoj et al. Sopa de Wuhan. La Plata: ASPO, 2020.
ARENDT, Hannah. La Crisis en Educación. In: ARENDT, Hannah. Entre el Pa-
sado y el futuro. Ocho ejercicios sobre la reflexión política. Buenos Aires: Ariel,
2016.
BERTORNI, Federico et al. La Escuela Vaciada. La Enseñanza en época pospan-
démica. Madrid: Altamarea, 2020.
DÍAZ GENIS, Andrea. El Eterno Retorno de lo Mismo o el Terror a la Historia.
Montevideo: Editorial Ideas, 2008.
DÍAZ GENIS, Andrea. La Formación Humana desde una Perspectiva Filosó-
fica. Inquietud, cuidado de sí y de los otros, autoconocimiento. Buenos Aires:
Biblos, 2016.
10 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109526, 2020.
Díaz Genis

ESQUIROL, Josep María. Resistencia Intima. Ensayo de una filosofía de la


proximidad, Barcelona: Acantilado, 2015.
HAN, Byung Chul. La Desaparición de los Rituales. Madrid: Herder, 2020.
MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. La Defensa de la Escuela. Una cuestión
pública. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2014.
NIETZSCHE, Friedrich. La Voluntad de Poder. Madrid: Edaf, 2000.
PESSOA, Fernando. Libro del Desasosiego. Barcelona: Acantilado, 2013.
SIBILIA, Paula. ¿Redes o paredes? La escuela en tiempos de dispersión. Buenos
Aires: Ed. Tinta Fresca, 2012.

Andrea Díaz Genis es Doctora en Filosofía por la Facultad de Filosofía y


Letras de la UNAM, México. Profesora Titular del Dpto. de Historia y Fi-
losofía de la educación de la FHUCE UdelaR. Autora de múltiples artícu-
los y libros sobre su especialidad. Destaca el último titulado: La formación
humana desde una perspectiva filosófica. Inquietud de sí, cuidado de sí y
de los otros, autoconocimiento, que fuera premio Nacional del Ministerio
de Educación y Cultura en el 2015, publicado por Biblos Argentina en 2016.
Conferencista y profesora invitada en varios países de Europa y la región.
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-3765-3895
E-mail: diazgena@gmail.com

Editor a cargo: Carla Vasques

Este é um artigo de acesso aberto distribuído sob os termos de uma Licença


Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Disponível em: <http://
creativecommons.org/licenses/by/4.0>.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109526, 2020. 11


SEÇÃO TEMÁTICA:
AS LIÇÕES DA PANDEMIA

Negação da Política e Negacionismo


como Política: pandemia e democracia
André de Macedo DuarteI
Maria Rita de Assis CésarI
I
Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba/PR – Brasil

RESUMO – Negação da Política e Negacionismo como Política: pandemia


e democracia. O texto se desenvolve em três etapas complementares: pri-
meiro, discutimos a estratégia da negação da política, com a qual Bolso-
naro afrontou valores democráticos sem romper definitivamente com a
democracia, tanto na campanha presidencial como na pandemia. No se-
gundo momento, discutimos a estratégia do negacionismo como política,
importante para a compreensão do modo como Bolsonaro empreendeu sua
gestão da pandemia. No terceiro momento, argumentamos que durante a
pandemia aquelas duas estratégias se conjugaram, produzindo fenômenos
sócio-políticos que corroem a democracia, como a banalização das mortes
e a naturalização da clivagem entre vidas valiosas, vidas submetidas a pro-
cessos de menos-valia e vidas descartáveis.
Palavras-chave: Negacionismo. Negação da Política. Pandemia. Banaliza-
ção da Morte. Crise da Democracia.

ABSTRACT – Denial of Politics and Denialism as a Policy: pandemic and


democracy. The text is developed in three complementary stages: Firstly,
we discuss the strategy of denying politics, which allowed President Bol-
sonaro to reject democratic values without definitively breaking with de-
mocracy, employed both during the presidential campaign but also during
the pandemic. Secondly, we analyze the strategy of denialism as a policy,
important to the understanding of the way thru which Bolsonaro under-
took his management of the pandemic. Thirdly, we argue that during the
pandemic both strategies were combined, thus producing socio-political
phenomena that erode democracy, such as the trivialization of deaths and
the naturalization of the cleavage between valuable lives, less valuable li-
ves, and disposable lives.
Keywords: Denialism. Denial of Politics. Pandemic. Death Banalization.
Crisis of Democracy.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020. 1


http://dx.doi.org/10.1590/2175-6236109146
Negação da Política e Negacionismo como Política

Este artigo faz a experiência arriscada de refletir sobre aconteci-


mentos dramáticos do país no exato momento em que estão se desenro-
lando. Dado o caráter de urgência dessa forma de intervenção intelectu-
al, o texto assume o formato do ensaio e não tem pretensões teóricas à
exaustividade, visando tão somente a interrogar o Bolsonarismo, fenô-
meno político cujas características parecem ter se acentuado durante a
pandemia do novo Coronavírus.
Entendemos o Bolsonarismo como um movimento político auto-
ritário, de extrema-direita, que promove divisões ou clivagens (simbó-
licas, econômicas, culturais, políticas) entre formas de vida cujo valor
e significado é avaliado a partir de rígidos processos de hierarquização
valorativa. Um aspecto central do Bolsonarismo é distinguir entre as
vidas que valem mais, as que valem menos e as que nada valem. Em
sentido amplo, o Bolsonarismo é uma forma viver, sentir, pensar e se
relacionar consigo, com os outros e com o mundo, é um ethos autoritá-
rio e violento, que reafirma e reforça as posições normativas da ordem,
da segurança e da hierarquia, escorando-se em valores e concepções
patriarcais, heterossexuais, cristãs, empreendedoristas e apegadas à
branquitude, donde seu caráter racista e discriminatório. De modo ge-
ral, o Bolsonarismo é contrário à ciência, ao pensamento crítico e às
políticas educacionais públicas, motivo pelo qual apoia práticas de cen-
sura contra a liberdade de cátedra, ao mesmo tempo em que agride o
financiamento das universidades e sua autonomia administrativa.
Enquanto amálgama do conservadorismo e do autoritarismo bra-
sileiros, o Bolsonarismo encontra sua síntese no ideal fantasmático do
Homem de Bem (Duarte, 2020), ideal normativo que se compõe de va-
lores e ideais do cristianismo, do conservadorismo anti-esquerda, do
patriotismo nacionalista, do armamentismo, do machismo, da família
tradicional heterossexual, da meritocracia, do empreendedorismo eco-
nômico sacrificial, que responsabiliza o indivíduo pelo seu sucesso ou
fracasso social, bem como de ideais relativos à plena liberdade de mer-
cado, da recusa dos serviços e servidores públicos e da liberdade das
maiorias para discriminar as minorias, sobretudo aquelas organizadas
em movimentos políticos e sociais. Em um sentido político mais restri-
to, o Bolsonarismo tem como propósito fortalecer a oposição binária
entre nós/eles, amigo/inimigo, por meio da qual se pretende minimizar
e, se possível, neutralizar toda forma de oposição e dissidência política.
O Bolsonarismo orienta-se por um projeto paradoxal de democracia, de
caráter autoritário, que se propõe a restringir os direitos e liberdades
daquelas formas de vida que não espelham seu modelo ideal normativo
de cidadão, o Homem de Bem.
Neste texto, analisamos dois traços distintivos do Bolsonarismo,
bastante evidenciados no modo pelo qual o Governo Federal vem ten-
tando enfrentar a pandemia: a estratégia da negação da política, con-
densada na autoproclamação de Bolsonaro como um outsider ou como
um político anti-establishment, bem como a estratégia do negacionis-
mo como política para fazer frente à pandemia. O texto se desenvolve
em três etapas complementares: no primeiro momento, discutimos a

2 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020.


Duarte; César

estratégia da negação da política, a qual permitiu que Bolsonaro pu-


desse afrontar valores democráticos sem romper definitivamente com
a democracia, estratégia que caracterizou suas declarações políticas
durante a campanha presidencial, mas que se viu intensificada duran-
te a crise da pandemia. No segundo momento, discutimos a estratégia
do negacionismo como política, central para a compreensão da forma
peculiar pela qual Bolsonaro empreendeu sua gestão da pandemia. No
terceiro e conclusivo momento, defendemos a hipótese de que a conju-
gação daquelas duas estratégias durante a pandemia do novo Corona-
vírus acentuou ainda mais a crise da democracia brasileira, ao produzir
fenômenos sócio-políticos como a banalização das mortes e a natura-
lização da clivagem entre vidas valiosas, vidas submetidas a processos
de menos-valia e vidas descartáveis. Neste sentido, parece-nos que o
Bolsonarismo soube se aproveitar politicamente da pandemia para pro-
mover seus interesses políticos e suas visões de mundo conservadoras e
autoritárias, ao menos até o momento.

A Estratégia da Negação da Política


A candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da República em
2018 beneficiou-se de um ambiente prévio de forte rejeição à política
e aos políticos tradicionais. Este ambiente político não é certamen-
te novidade no Brasil, mas foi se fortalecendo e se generalizando des-
de as manifestações públicas de Junho de 2013, as quais, ao longo de
pouco mais de 30 dias, evoluíram da cobrança coletiva por melhores
serviços públicos urbanos, para a rejeição abrangente e incondicional
contra tudo isso que está aí, a luta contra a corrupção tornando-se uma
de suas principais bandeiras. As Jornadas de Junho de 2013 foram um
acontecimento político inesperado e enigmático, um signo a ser inter-
pretado, motivo pelo qual se travou acirrada batalha interpretativa a
respeito de seu significado político (Bignotto, 2020; Nobre, 2020, 2013;
Maricato et al., 2013). Tudo começou com as reivindicações do Movi-
mento Passe Livre (MPL) em grandes cidades como São Paulo, Rio de
Janeiro, Goiânia, Florianópolis, Porto Alegre, Curitiba, dentre outras
capitais. Inicialmente, seu foco foram os aumentos do preço do trans-
porte público, com tudo que essa medida acarreta para a experiência
cotidiana da vida nas grandes cidades, sobretudo para os jovens e os
trabalhadores. Rapidamente, contudo, o movimento evoluiu e surgiu
um lema significativo: Não é apenas por 20 centavos! Durante algumas
semanas, o que se viu foi uma imensa multidão de jovens que saíram
às ruas pela primeira vez para participar de um movimento político di-
fuso, mas que, ao menos inicialmente, parecia dar sinais de que pre-
tendia aprofundar o processo de transformações e de inclusão social
que fora iniciado com as políticas de inclusão social do Partido dos Tra-
balhadores. Ao mesmo tempo em que o MPL inaugurava um espírito
de rebeldia anônimo, criativo e independente dos partidos políticos, a
grande mídia entregava-se à tarefa de pautar o movimento na direção
do combate à corrupção, bem como repudiava as violências cometidas
durante as manifestações, dividindo os manifestantes entre os assim

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020. 3


Negação da Política e Negacionismo como Política

chamados vândalos e os cidadãos ordeiros. A partir de então, o que era


um movimento a-partidário foi se tornando um movimento anti-par-
tidário e contrário à própria política. Durante esse importante giro co-
meçaram a surgir forças autoritárias, representadas por grupos sociais
vinculados à direita e extrema-direita. Não faltou quem alertasse, des-
de o início das manifestações, para o perigo político que elas traziam
consigo, motivo pelo qual, retrospectivamente, se tornou lugar-comum
afirmar que elas foram o ovo da serpente que eclodiu no impeachment
de Dilma Rousseff. Por outro lado, o caráter autônomo, descentralizado
e horizontalizado das Jornadas também parecia indicar a possibilidade
de um fortalecimento da democracia brasileira. Parece-nos, portanto,
simplista a tese que busca estabelecer relações de causa e efeito entre as
Jornadas de Junho de 2013 e o impeachment de 2016, embora não cai-
bam dúvidas de que foi durante este período que começou a se agravar
a atual crise da democracia brasileira. Newton Bignotto (2020) analisou
recentemente essa crise que se desenvolveu entre 2013-2018 a partir da
noção de “guerra de facções” entre grupos políticos que defendem po-
sições ideológicas e de interesses particulares radicalmente contrapos-
tos, cada um deles visando a se “[...] apropriar dos mecanismos estatais
para fazer prevalecer seus pontos de vista a todo custo” (2020).
A rejeição à política começou a se aprofundar em 2014, na esteira
das manifestações a favor e contra as obras públicas para a realização
da Copa do Mundo. Também contribuiu o agravamento da crise eco-
nômica e a estagnação do crescimento do PIB, além da inauguração e
gradual intensificação das ações da Operação Lava-Jato, a qual esta-
beleceu um nexo inquestionável entre política e corrupção, insisten-
temente ressaltado pelas mídias convencionais e pelas redes sociais. A
apertada vitória de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais de 2014
levou o Partido da Social Democracia Brasileira a questionar a validade
das eleições, a propor sua anulação e a postular o impeachment como
alternativa para aceder ao poder a qualquer custo. Tais posições foram
sendo majoritariamente reproduzidas por campanhas midiáticas que
estimularam o sentimento coletivo de revolta contra a corrupção, ca-
nalizado especialmente contra o Partido dos Trabalhadores. A partir de
março de 2015 o país viu as ruas serem inundadas por milhares de ma-
nifestantes vestidos com a camiseta verde-amarelo da seleção brasilei-
ra de futebol, enfurecidas com as denúncias de corrupção e os supostos
desmandos autoritários do PT, convertido em símbolo reatualizado do
velho perigo vermelho do comunismo. Em pouco tempo o Juiz Sergio
Moro foi transformado em justiceiro nacional e toda a classe política,
mas especialmente os políticos vinculados ao PT, foram transformados
em inimigos vermelhos e corruptos, a serem politicamente eliminados
do jogo político nacional. No contexto da Operação Lava Jato, houve di-
versos casos de abusos e de medidas jurídicas que suspenderam prin-
cípios básicos do estado democrático de direito em nome da luta contra
a corrupção. Tais abusos não foram condenados pela mídia, antes pelo
contrário, criando-se assim todas as condições favoráveis para a apro-
vação do impedimento presidencial, finalmente ocorrido em sessão

4 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020.


Duarte; César

congressual que entrou para a história como “[...] uma mancha no curso
da democracia brasileira” (Bignotto, 2020). O voto do deputado Bolso-
naro fazendo o elogio público ao torturador de Dilma Rousseff é certa-
mente um marco a respeito da guinada política que abriu caminho para
a ascensão da extrema-direita ao poder.
O curto governo de Michel Temer (2016-2017) tampouco foi pou-
pado das investigações e denúncias de corrupção no contexto dos des-
dobramentos da operação Lava Jato. Consolidou-se assim o enfraque-
cimento generalizado das instituições democráticas e dos principais
partidos e lideranças políticas que vinham disputando a Presidência da
República desde meados dos anos 90. Ademais, como observou Mar-
cos Nobre (2020), “Grande parte do eleitorado estava se sentido existen-
cialmente ameaçada em 2018. Temia pelo seu emprego, pela sua vida,
pela vida de sua família, pela religião que professava, pelo seu prestígio
social” (p. 24). Foi assim que Jair Bolsonaro se tornou um ator político
decisivo, algo praticamente impensável alguns anos atrás. O atentado
à faca durante a campanha presidencial foi um episódio decisivo, pois
permitiu uma arquitetada e bem-sucedida vinculação simbólica entre
seu corpo e o corpo político brasileiro, ambos agredidos e em risco de
morte, como argumentou Letícia Cesarino (2019) em sua apurada aná-
lise da ascensão do populismo digital no país.
No entanto, essas foram apenas as circunstâncias políticas pré-
vias que permitiram e incentivaram a construção de Bolsonaro como
um outsider, isto é, como um político antissistema, a despeito de ter fei-
to parte dele por quase trinta anos, mesmo que habitando suas franjas
obscuras. Por certo, diversos candidatos a cargos políticos do passado
brasileiro souberam como capitalizar para si certo ambiente nacional
difuso de rejeição à política. O aspecto importante é que apenas Bolso-
naro soube como converter a estratégia eleitoral da recusa da política
em estratégia de governamento, recusando-se a negociar com o sistema
e a respeitar integralmente as regras do jogo democrático, ainda que
permanecendo no seu interior. Leonardo Avritzer (2020) definiu a es-
tratégia governamental de Bolsonaro como antipolítica, entendendo-a
como “[...] a reação à ideia de que instituições e representantes eleitos
devem discutir, negociar e processar respostas a temas em debate no
país. A antipolítica constitui uma negação de atributos como a nego-
ciação ou a coalizão” (2019, p. 19). Para Avritzer (2020), a “[...] suposta
luta anticorrupção” teria sido decisiva para isso (2020, p. 19). Seguin-
do uma linha de raciocínio semelhante, Marcos Nobre (2020) observou
que “[...] não é acaso que a tática de Bolsonaro tenha envolvido sem-
pre uma recusa de governar” (p. 23). Para Nobre, ao ganhar as eleições
como candidato outsider, Bolsonaro se tornou refém daquela condição
e converteu a guerra contra o sistema político e suas instituições em
estratégia de governo, fazendo do caos o seu método ao apresentar-se
como a solução para os problemas que ele mesmo cria (2020, p. 15-16). A
negação da política como estratégia de governamento é mais um aspec-
to propriamente novo e desconcertante do Bolsonarismo, movimento
que não apenas se apresenta publicamente como antipolítico e antis-

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020. 5


Negação da Política e Negacionismo como Política

sistêmico, como atua de maneira a fazer com que elementos centrais à


democracia assumam efeitos antidemocráticos, sem, contudo, romper
definitivamente com a própria democracia. Ademais, ao se apresentar
como um político que nega o sistema político, Bolsonaro pôde introdu-
zir em seus discursos diversas teses antidemocráticas. Como elas são
proferidas no interior mesmo do jogo democrático, são frequentemen-
te entendidas como cortina de fumaça ou como retórica desprovida de
consequências políticas mais graves.
Um rápido levantamento das declarações políticas de Bolsonaro
mostra a persistência de suas convicções antipolíticas, antissistêmicas
e antidemocráticas. Dentre as afirmações pelas quais Bolsonaro visa a
negar a política, defender teses negacionistas quanto à história política
nacional, ou apresentar-se como externo ao sistema político, temos as
seguintes declarações recentes: “Tá na cara que estou sendo um pro-
blema para o sistema, não é para esse partido ou aquele, é para o sis-
tema” (2018); “Não houve golpe militar em 1964. Quem declarou vago
o cargo do presidente na época foi o Parlamento. Era a regra em vigor”
(2018); sobre os assassinatos e torturas perpetrados pela ditadura mili-
tar, afirmou: “Errar, até na sua casa, todo mundo erra. Quem nunca deu
um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu? Acontece” (2018).
Dentre algumas de suas muitas declarações de cunho claramente an-
tidemocrático, podem-se mencionar os seguintes exemplos: “Costumo
dizer que não falo o que o povo quer. Sou o que o povo quer” (2016);
“Não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os bra-
sileiros. Ideologias que destroem nossos valores e tradições, destroem
nossas famílias, alicerce da nossa sociedade” (2019); “Preso não deve ter
direito nenhum, não é mais cidadão. O sentido da cadeia não é resso-
cializar, mas tirar o marginal da sociedade” (2017)1 (Constantino; Costa;
Eiras, 2020); “Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob
a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia. Esses margi-
nais vermelhos serão banidos de nossa pátria” (2018); “Vamos fuzilar
a petralhada aqui do Acre” (2018); “Somos um país cristão. Não existe
essa historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão. Vamos fazer
o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar às maiorias.
As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem” (2017)2 (Bol-
sonaro diz que cloroquina..., 2020, online). Finalmente, vejamos alguns
exemplos de declarações com as quais Bolsonaro apela a vagos ideais
democráticos e os direciona contra as práticas e valores da democracia:
“A arma de fogo, mais do que garantir a vida de uma pessoa, garante
a liberdade de um povo” (2018); “Se eu quiser entrar armado aqui, eu
entro” (2016)3 (Bolsonaro diz que cloroquina..., 2020, online); “Estamos
com um governo que respeita a família. E para quem tem qualquer dú-
vida: parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição. Vamos ler lá o que é
família. Quando alguém mudar a Constituição, eu falo das outras famí-
lias” (2019)4 (Fonseca, 2020).
Esse breve apanhado de declarações negando o sistema político,
professando teses de teor negacionista quanto à ditadura e seus crimes,
descomprometendo-se com a democracia ou valendo-se de ideais de-

6 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020.


Duarte; César

mocráticos para distorcer e descaracterizar a democracia, mostram


que o candidato que foi eleito para a Presidência da República em 2018
jamais se afastou dos ideários autoritários que tornaram célebres suas
velhas declarações a favor da tortura, do fechamento do Congresso, do
assassinato indiscriminado e da própria ditadura: “Só vai mudar, in-
felizmente, quando nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro.
E fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30
mil!” (1999). Essa atitude de negação da política e de negação da demo-
cracia em nada se alterou durante o surto do novo Coronavírus no Bra-
sil, antes pelo contrário. Em manifestação antidemocrática ocorrida em
Brasília no dia 19.04.20, na qual os manifestantes clamavam pelo fecha-
mento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, Bolso-
naro enunciou o que pode ser entendido como a suma de sua estratégia
de negação da política e da democracia. Em cima de uma caminhonete,
sem máscara, aos berros e tossindo, Bolsonaro disse o seguinte:
Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação
pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás, nós te-
mos um novo Brasil pela frente. [...]. Todos, sem exceção
no Brasil, têm que ser patriotas e acreditar e fazer a sua
parte para que nós possamos colocar o Brasil no lugar de
destaque que ele merece. [...]. Acabou a época da patifaria.
[...]. Todos no Brasil têm que entender que estão submis-
sos à vontade do povo brasileiro. Tenho certeza que todos
nós juramos um dia dar a vida pela pátria. Vamos fazer o
que for possível para mudar o destino do Brasil. [...]. Che-
ga da velha política (Nós..., 2020, online)5 .
Diante dessas afirmações, resta-nos apenas concordar com a
afirmação de Marcos Nobre, segundo a qual “A posição antissistema de
Bolsonaro está umbilicalmente ligada a seu projeto autoritário, não há
como separar uma coisa da outra” (2020, p. 19). Parece-nos, pois, en-
ganoso considerar tais afirmações como bravatas berradas ao vento.
Por outro lado, elas representam o comportamento político do governo,
mesmo durante a pandemia, bem como sinalizam qual é o ideal de na-
ção e de regime político esposado pelo Bolsonarismo. A pandemia não
foi uma circunstância que pegou o governo desprevenido, forçando-o a
recorrer a declarações histriônicas para encobrir sua incapacidade de
afrontar o problema, ou simplesmente para ganhar tempo. Marcos No-
bre observou que desde o início de março de 2020 Bolsonaro havia sido
informado pelo Gabinete de Segurança Institucional quanto à gravida-
de do problema que se anunciava, o que não o impediu de “[...] ir a uma
manifestação contra o Congresso e contra o STF no dia 15 de março,” ou
de fazer o famoso pronunciamento “[...] em cadeia de rádio e TV do dia
24 de março”, no qual classificou a contaminação por Covid-19 como
‘gripezinha’ e ‘resfriadinho’” (Nobre, 2020, p. 8). Se o Governo Federal
não se planejou para fazer frente à pandemia por meio de ações e polí-
ticas públicas concertadas e organizadas em nível nacional, isto se deu
porque o Presidente assim o quis: pareceu-lhe que mais importante do
que combater o vírus era combater o sistema político e aproveitar-se da
situação caótica para acertar contas com políticos – sobretudo os Go-

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020. 7


Negação da Política e Negacionismo como Política

vernadores Witzel e Doria – e autoridades de seu próprio governo – os


ministros Moro e Mandetta – que, antes aliados, mudaram de posição
ao longo da evolução da pandemia no país, tornando-se seus maiores
desafetos políticos.
Mais recentemente o Presidente estabeleceu conexões com par-
lamentares integrantes da ala conservadora do Congresso denominada
como Centrão, em desacordo com as críticas que ele próprio dirigira an-
teriormente àquele grupo, associando-o à velha política venal da tro-
ca de favores. Contudo, tal aproximação não tem que ver com alianças
para obter aprovação de suas políticas no Congresso, algo de que ele
não tem necessitado quando se trata de suas principais reformas neoli-
berais, mas destina-se a proteger seu mandato e o de seus filhos das in-
vestigações empreendidas pelo STF. Assim, como observou Marcos No-
bre, Bolsonaro instituiu um “[...] governo de guerra não contra o vírus,
mas, sobretudo, contra o impeachment – o que inclui tentar bloquear
persecuções judiciais de maneira mais ampla” (2020, p. 14). Uma vez
mais, tal comportamento não é simplesmente instrumental e circuns-
tancial, mas serve de maneira exemplar ao fortalecimento da posição
de Bolsonaro e de seu ideário político autoritário. A estratégia da nega-
ção da política dissemina uma concepção de democracia que faz dela
um regime compatível com o autoritarismo. Uma vez mais, estamos de
acordo com Nobre (2020) quando ele argumenta que Bolsonaro
[...] associa suas posições de extrema direita à defesa de
tudo o que é ético e decente e identifica o restante – todo
o sistema político – com a ‘esquerda’, ou seja, com tudo o
que é corrupto e corrompido da vida social em geral. [...].
A ‘verdadeira democracia’ é apenas aquela que existia du-
rante a ditadura militar (p. 20).
Em uma palavra, Bolsonaro não se preocupou fundamentalmen-
te em enfrentar o vírus, mas sim em politizar a pandemia para se forta-
lecer no poder e alimentar o sonho da reeleição, o que certamente lhe
dará maior margem de manobra para levar a cabo a implantação gradu-
al de uma democracia de caráter autoritário no país. E para que não se
tenha a impressão de que a validade dessas hipóteses acerca da negação
da política como estratégia de governamento seja restrita apenas às fa-
las e ações de Bolsonaro, basta acompanhar a longa entrevista concedi-
da pelo vice-Presidente, Hamilton Mourão, ao jornalista Tim Sebastian,
que comanda o programa jornalístico Conflict Zone, do canal Deutsche
Welle, em 09.10.20. Nessa entrevista, além de defender a honra do Coro-
nel Brilhante Ustra e de negar que ele tenha sido torturador, a despeito
dele ser o único militar incriminado por tais práticas, Mourão ainda
afirmou que a participação e as falas de Bolsonaro nas manifestações
antidemocráticas não deveriam ser levadas a sério, pois não constituí-
am ameaça à democracia: “[...] é muito mais conversa do que, digamos,
ação6” (Sebastian, 2020, online).

8 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020.


Duarte; César

O Negacionismo Como Política


Por certo, o negacionismo no que concerne à pandemia sempre
esteve presente nos atos e nas falas presidenciais desde antes de abril
de 2020, bastando recordar suas inúmeras declarações espalhafatosas a
respeito da gripezinha e da suposta histeria da mídia acerca dos efeitos
superdimensionados do vírus. O aspecto que somente aos poucos foi
se revelando é que o negacionismo de Bolsonaro quanto à pandemia
constituiu, desde o princípio, uma política de caráter autônomo e efi-
caz, e não mero diversionismo7 (Roque, 2020a). Afinal, a despeito do au-
mento descontrolado do número de mortos e contaminados, a insistên-
cia de Bolsonaro na manutenção do negacionismo quanto à pandemia
não abalou os índices de sua popularidade, antes pelo contrário 8 (Po-
pularidade..., 2020, online). Decorridos sete meses desde a chegada da
pandemia ao país, parece-nos claro que o negacionismo de Bolsonaro
constitui uma política per se, aquela que consiste em negar, confundir,
agredir, ignorar, desprezar, silenciar quem quer que não esteja absolu-
tamente de acordo com suas medidas de combate à pandemia, ou com
as escolhas políticas e morais que pautam seu governo.
Em alguma medida, o negacionismo está relacionado com a des-
coberta freudiana acerca da negação, Verneinung (Freud, 2014), a ca-
pacidade psíquica do sujeito de negar desejos reprimidos. Como diz
Freud, “Negar algo no juízo no fundo significa: isto é uma coisa que eu
preferiria reprimir” (2014, p. 23). É certamente possível propor diagnós-
ticos políticos e sociais acerca dos desejos reprimidos subjacentes à de-
fesa incondicional de teses negacionistas (Dunker, 2020; Swako, 2020),
mas não se pode desconsiderar que o negacionismo é, ele mesmo, um
fenômeno político e social, ainda que sua análise requeira reconhecer a
importância central dos afetos, emoções e desejos na sua constituição
e propagação (Bucci, 2019). O negacionismo é um fenômeno social não
apenas porque implica a produção e difusão em massa de teses con-
troversas em relação a consensos científicos validados, mas também
porque teses negacionistas provocam impactos diretos no comporta-
mento de milhões de pessoas. Simultaneamente, o negacionismo é um
fenômeno político porque, o mais das vezes, está associado com a ex-
tração de vantagens por parte de grupos econômicos interessados em
negar ou questionar teses e conhecimentos científicos. Isto ocorre, so-
bretudo, quando tais conhecimentos inspiram políticas públicas des-
tinadas a transformar comportamentos e modos de vida coletivos, os
quais afetam interesses econômicos poderosos. Não por acaso, uma das
primeiras manifestações do negacionismo científico esteve associada
à negação e deslegitimação, por parte de cientistas, dos estudos cien-
tíficos que associavam o tabagismo à proliferação de doenças graves. É
sabido também que o negacionismo climático é fomentado por cientis-
tas financiados pelos interesses das empresas petrolíferas desde que, a
partir da década de 1990, consolidou-se o consenso científico acerca do
dióxido de carbono, dentre outros gases poluentes, como causadores do
efeito estufa que acentua o aquecimento terrestre. Como afirmou Ta-

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020. 9


Negação da Política e Negacionismo como Política

tiana Roque (2020b), “Como era impossível negar o aquecimento global


antrópico, a única saída era travesti-lo de controvérsia 9”.
Além de deslegitimar ou pôr em dúvida conhecimentos aceitos
como verdadeiros pelas instituições sociais habilitadas para auferir tal
qualificação, o negacionismo põe em questão a autoridade dos cientis-
tas, de seus métodos científicos, bem como a autoridade e a legitimida-
de das próprias instituições sociais destinadas à validação da produção
do conhecimento. Ademais, ao negar ou pôr em dúvida a autoridade das
instâncias sociais responsáveis pela produção do conhecimento cien-
tífico, o negacionismo também enseja formas de associação coletiva
caracterizadas por comportamentos radicalizados, avessos à discussão
argumentativa. O mínimo que se pode dizer é que o negacionismo dis-
semina e fomenta comportamentos desconfiados ou indiferentes quan-
to ao valor social da ciência, produzindo efeitos no comportamento de
milhões de pessoas, que passam a tomar decisões cruciais para suas
próprias vidas amparando-se apenas naquilo que lhes parece mais con-
veniente ou útil em determinada circunstância. Não se podem descon-
siderar os efeitos sociais e políticos derivados da coesão social formada
entre aqueles que acreditam e divulgam teses negacionistas, pois se
tornam parte de um universo paralelo, de uma sociedade peculiar, no
interior da qual desfrutam de sentimentos de pertencimento e de auto-
valorização, de que se sentiam privados no mundo social mais amplo
em que vivem. Eis porque Dunker (2020) observou que o negacionismo
cria uma atmosfera social na qual “[...] tudo se passa como se a negação
coletiva nos tornasse mais e mais imunes à dúvida. Nossa crença au-
menta à medida que repudiamos a crença alheia” (2020, p. 5). Por este
motivo, tampouco é casual que a difusão social de teorias negacionistas
parasite ou engendre crenças religiosas (Dunker, 2020, p. 5), ou esteja
conectada à formulação de teorias conspiratórias (Oliveira, 2020): em
ambos os casos, se reforçam os sentimentos de pertença coletiva. Neste
sentido, o negacionismo é poderoso não somente porque produz con-
fusões, dúvidas, incertezas, enganos e mesmo graves equívocos, mas
também porque empodera aqueles que compartilham tais visões de
mundo. Nos casos mais graves de defesa do negacionismo, observa-se
uma situação bem descrita por José Swako (2020): “Não só o negacionis-
ta se acha ‘razoável’, como também lhe é mentalmente impossível não
ter ‘a razão’10” (Swako, 2020).
Se há dimensões do fazer e da produção científica que não são
politicamente neutras, há que se observar que, se o negacionismo se
origina desde o interior do campo científico, ele procede a partir de
processos de manipulação, esgarçamento e distorção dos procedimen-
tos científicos, os quais, entretanto, são desconhecidos do público em
geral. Tampouco é infrequente que teses negacionistas sejam formula-
das por cientistas cuja posição no interior da comunidade científica é
irrelevante, questionada ou mesmo recusada pelas próprias instâncias
de aferição do reconhecimento científico. Assim, se por um lado o nega-
cionismo não se confunde com, nem se reduz ao mero obscurantismo
ou à ignorância, por outro lado, ele pode levar à adoção de comporta-

10 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020.


Duarte; César

mentos perigosos para a vida humana e para a garantia das condições


de vida no planeta. Não pode haver negacionismo sem a reprodução so-
cial massiva de teses negacionistas, as quais são rapidamente transfor-
madas em opiniões negacionistas, de caráter imediatamente acessível
e de forte apelo emocional. Ao longo do seu processo de difusão social
massificada, as teses negacionistas perdem qualquer referência ao fazer
científico e seus métodos, pois o que importa é a politização grosseira e
enviesada da ciência e dos cientistas.
O negacionismo tende a se intensificar e a se multiplicar no mun-
do todo no contexto contemporâneo da pós-verdade, caracterizado
como aquele “[...] ambiente em que os fatos objetivos têm menos peso
do que apelos emocionais ou crenças pessoais em formar a opinião
pública” (Bucci, 2019). O fenômeno da pós-verdade está diretamente
relacionado com a crise de autoridade que abalou a confiança da po-
pulação nos mediadores tradicionais, particularmente a mídia, que es-
tabelecia a comunicação entre cientistas, poder público e as pessoas.
Com a intensificação do uso das redes sociais, tornou-se fácil e rotineiro
descartar a verdade factual (Bucci, 2019) produzida a partir de critérios
compartilhados e avalizados consensualmente, multiplicando-se as
mentiras, os boatos e as informações fraudulentas (fake news), por meio
de uma comunicação direta, simples, acessível e fortemente carregada
de aspectos emocionais, os quais transformam o receptor em um agen-
te disseminador da desinformação. Segundo Eugênio Bucci (2019),
Nas redes sociais, diferentemente do que acontecia na
televisão ou no cinema, a propagação das mensagens
depende diretamente da ação das audiências, nas quais
o desejo leva vantagem sobre o pensamento. Uma notí-
cia (falsificada, fraudulenta ou mesmo verdadeira, pouco
importa) só se difunde à medida que corresponda a emo-
ções, quaisquer emoções, ‘positivas’ ou ‘negativas’.
Eis porque notícias fraudulentas se multiplicam e repercutem
com muito mais rapidez que notícias confiáveis e lastreadas, fomentan-
do desinformação e confusão que se retroalimentam reciprocamente.
Na mesma direção, Oswaldo Giacoia (2020) argumentou que,
Dado que os indicadores de acesso substituem os antigos
critérios de verificação, embute-se o risco de esse novo
parâmetro gerar um círculo vicioso: a quantidade de
acessos quase sempre está em relação com o potencial de
atração contido na distorção da mensagem. Isso signifi-
ca que o horizonte de avaliação é o do impacto causado11
(Giacoia, 2020).
Assim, proliferação do uso das redes sociais é parte do fenômeno
que tem sido chamado de crise epistêmica, associada à “[...] passagem de
um regime de verdade baseado na confiança nas instituições para um
outro regime regulado pela crença individual e pela experiência pesso-
al, dando voz a movimentos conspiratórios em que a informação é um
campo de disputa sobre a produção de narrativa” (Oliveira, 2020, p. 22).

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020. 11


Negação da Política e Negacionismo como Política

Tal contexto, como se pode supor, é francamente favorável à formação e


disseminação de inúmeras formas simultâneas de negacionismo, como
as que hoje circulam nas redes: climático-ecológico, histórico-político,
quanto ao gênero e orientação sexual, científico-sanitário, geofísico,
etc.
Ora, no caso da pandemia do novo Coronavírus, o negacionismo
se tornou moeda corrente no Brasil sob o governo Bolsonaro. As conse-
quências disso foram ainda mais graves, dado que não apenas a própria
doença e seus efeitos no organismo humano eram (e ainda são) relati-
vamente desconhecidos da comunidade médica mundial, mas também
pelo fato de que as recomendações médico-científicas exigiam forte e
imediata modificação de comportamentos, na esteira da proposição de
políticas públicas informativas e preventivas por parte das autoridades
nacionais. Estavam dadas, assim, todas as condições para que a pande-
mia de Covid-19 se transformasse num foco privilegiado de produção e
disseminação governamentais de teses negacionistas, as quais impli-
caram não apenas a politização do vírus, mas também a politização de
medicamentos, como a Cloroquina e a Hidroxicloroquina, a politização
da própria Organização Mundial da Saúde e de suas recomendações
científicas, bem como, mais recentemente, a própria politização das
vacinas. Tudo isso produziu considerável impacto nas relações políti-
cas entre o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, os Governadores de
Estado, Prefeitos e a própria população, gerando-se um ambiente ca-
ótico e favorável a que as pessoas fossem levadas a tomar decisões por
si mesmas, amparando-se nas concepções que lhe parecessem mais
convenientes. Foi nesse contexto que o negacionismo se afirmou e se
confirmou como mais uma forma política de governamento de popu-
lações no país.
Dada a afinidade do Bolsonarismo com as más práticas do uso
agressivo das redes sociais, incluindo-se aí o disparo organizado de
propaganda política enganosa, de notícias fraudulentas visando a con-
fundir a população e/ou desmoralizar oponentes políticos, além dos
ataques de ódio direcionados contra indivíduos e grupos sociais que
discordem das afirmações e dos atos do Presidente, não seria de se es-
pantar que este movimento político recorresse ao negacionismo como
política governamental diante da pandemia. Passados 6 meses desde
a chegada do vírus ao Brasil, o site Aos Fatos, que checa a veracidade
das declarações presidenciais, contabilizou nada menos que 653 decla-
rações falsas ou distorcidas de Bolsonaro sobre a pandemia e sobre as
ações adotadas pelo governo no seu enfrentamento, totalizando uma
média de três informações enganosas por dia sobre o assunto entre 11
de março e 11 de setembro de 202012 (Ribeiro; Cunha, 2020). De maneira
mais geral, Bolsonaro pronunciou 1417 frases em que abordou o tema
da pandemia, sendo que os alvos prioritários de suas afirmações vi-
sando a promover confusão, dúvida e desinformação entre os cidadãos
brasileiros tiveram seu foco na defesa do uso da Cloroquina, na crítica
à OMS e às suas recomendações sanitárias, e nos ataques políticos ao
Supremo Tribunal Federal, aos governadores de Estado e aos prefeitos,

12 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020.


Duarte; César

os quais foram acusados de impedir o Presidente de agir para conter


a pandemia. O presidente também proferiu conhecidas teses negacio-
nistas com relação à imunidade de rebanho, repetindo exaustivamente
que os brasileiros somente estariam protegidos da infecção depois que
uma porcentagem entre 60-70% da população tivesse sido contamina-
da. Segundo o site, essa narrativa foi enunciada por 34 vezes a fim de
desacreditar a importância do isolamento social como forma preven-
tiva eficaz de contenção da pandemia, medida que foi imediatamente
politizada segundo o argumento de que seria desnecessária, ineficaz,
geraria pânico e, finalmente, agravaria a crise econômica, com o que se
pretenderia desestabilizar o Governo Federal. Bolsonaro foi também o
principal defensor do uso da Cloroquina no Twitter, repetindo a infor-
mação de que o medicamento seria eficaz por 21 vezes. Em 9 vezes, o
Presidente afirmou que a Cloroquina seria o único tratamento existente
contra a Covid-19, ao passo em que noutras 11 vezes admitiu não haver
comprovação científica de que o medicamento fosse eficaz, apostando,
entretanto, que melhor seria fazer uso dele do que não o fazer. Como
diversos negacionistas, Bolsonaro fundamentou suas afirmações em
estudos médicos observacionais, considerados de menor confiabilida-
de, bem como se amparou na sua própria experiência individual como
usuário do medicamento. Considere-se, finalmente, que as declarações
negacionistas de Bolsonaro quanto à pandemia foram feitas em lives e
entrevistas divulgadas nas redes sociais, alcançando com rapidez mi-
lhões de cidadãos e multiplicando seu impacto de maneira exponencial.
Vejamos agora um apanhado significativo das declarações nega-
cionistas de Bolsonaro sobre a pandemia e sobre as maneiras de lidar
com os riscos da doença: “Depois da facada, não vai ser uma gripezi-
nha que vai me derrubar” (20.03.20); “Não estou acreditando nesses nú-
meros” (27.03.20); “Eu desconheço qualquer hospital que esteja lotado”
(02.04.20); “Esse vírus é igual a uma chuva, vai molhar 70% de vocês”
(03.04.20); “Cada vez mais o uso da cloroquina se apresenta como algo
eficaz” (08.04.20); “Parece que está começando a ir embora a questão
do vírus” (12.04.20); “Não tem que se acovardar com esse vírus na fren-
te” (18.04.20); “É uma neurose. 70% da população vai pegar o vírus”
(09.05.20); “Lockdown não dá certo” (14.05.20); “O pessoal que reclama
da cloroquina, então dê alternativa” (02.06.20); “Ou a OMS trabalha
sem viés ideológico, ou vamos estar fora” (05.06.20); “Houve um super-
dimensionamento” (07.07.20); “A maioria da população brasileira con-
trai o vírus e não percebe” (07.07.20); “Se não temos alternativa, vamos
com a hidroxicloroquina” (18.07.20); “Não precisa ter pavor no tocante
ao vírus” (23.07.20); “Efeito colateral (da economia) é mais grave que o
próprio vírus” (06.08.20); “Quem não quer tomar cloroquina, não tente
proibir” (06.08.20)13 (Ribeiro; Cunha, 2020).
O site Aos Fatos também levantou a informação de que entre 15
de março e 2 de agosto o Presidente se deixou fotografar ou filmar em
público por 30 vezes, desobedecendo a indicação da comunidade cien-
tífica quanto à importância do isolamento social. Mais recentemente,
no dia 19.08.20, Bolsonaro declarou que o uso de máscaras tem eficácia

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020. 13


Negação da Política e Negacionismo como Política

quase nula14 (Bolsonaro diz que máscara..., 2020, online), ao passo em


que no dia 24.08.20 afirmou que “[Se a cloroquina] não tivesse sido po-
litizada, muito mais vidas poderiam ter sido salvas dessas 115 mil que
o país perdeu até o momento15” (Bolsonaro diz que cloroquina..., 2020,
online). Já no dia 3 de setembro afirmou que “[...] tem muito médico di-
zendo que essa máscara não protege nada, bulhufas16” (Lacerda, 2020).
Finalmente, com o avanço das pesquisas e testagens de novas vacinas,
apareceram declarações politizando a não obrigatoriedade da vacina-
ção contra a Covid-19, bem como recusando a vacina chinesa Corona-
vac. No dia 19/10 o Presidente declarou: “Hoje em dia, pelo menos me-
tade da população diz que não quer tomar essa vacina. Isso é direito
das pessoas. Ninguém pode, em hipótese alguma, obrigá-las a tomar
essa vacina17” (Carvalho; Uribe; Cancian, 2020). Subindo o tom das de-
clarações e da própria politização da questão, em 21.10.20 Bolsonaro
desautorizou seu Ministro da Saúde, que pouco antes havia anunciado
a assinatura de um protocolo de intenções com o Governo de São Paulo
para a compra de 46 milhões de doses da vacina chinesa, desenvolvida
em parceria com o Instituto Butantã. Disse Bolsonaro: “Já mandei can-
celar. O Presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade. [...]. Até
porque estaria comprando uma vacina que ninguém está interessado
nela, a não ser nós18” (Andrade, 2020). Tais declarações, ao politizarem
grosseiramente o assunto, visam a produzir dúvidas e incertezas na
população, ao mesmo tempo em que alimentam movimentos negacio-
nistas contra a validade da prática da vacinação em geral. Como vimos
anteriormente, este é um uso peculiar da noção de liberdade individual,
utilizado em sentido contrário à defesa do valor democrático da prote-
ção da saúde da população, especialmente em tratando de uma doença
altamente contagiosa e potencialmente letal.
Esse compêndio de declarações presidenciais parece indicar que
o negacionismo ultrapassou, em muito, o plano da mera difusão de opi-
niões pessoais, transformando-se em estratégia política de gestão da
pandemia e das condições de vida da população, na ausência de políti-
cas públicas sanitárias coerentes. A consequência direta dessa intensa
disseminação de teses negacionistas no país foi a criação de uma at-
mosfera social nebulosa, permeada por fanatismos, dúvidas e incerte-
zas. Em meio à confusão produzida pelo negacionismo como política, as
recomendações científicas visando à prevenção da disseminação do ví-
rus foram rechaçadas incondicionalmente pelo Governo Federal, sem-
pre que se mostraram contrárias aos interesses políticos e econômicos
imediatos defendidos pelas autoridades. Por outro lado, recomendações
médicas desprovidas de comprovação científica foram aceitas incondi-
cionalmente, sempre que atenderam àqueles mesmos interesses políti-
cos e econômicos, como no caso da propaganda indiscriminada a favor
do uso da Cloroquina, de sua fabricação pelo Exército brasileiro, além
da difusão de desinformação quanto a outros medicamentos também
desprovidos da devida comprovação científica, como vermífugos, den-
tre outras formas de tratamento não convencional, para o tratamento
dos efeitos do vírus. Como imaginar que, sob tais condições, a popula-
ção brasileira pudesse se comportar de maneira a não se expor ao ris-
14 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020.
Duarte; César

co da contaminação e da morte? Foi, portanto, num contexto em que o


negacionismo como política ocupou o vazio decorrente da ausência de
políticas públicas organizadas para prevenir a difusão do vírus no país,
que chegamos à cifra de mais de 150 mil mortos por Covid-19, ao longo
de sete meses de pandemia.

O Agravamento da Crise da Democracia Brasileira


Durante a Pandemia
Como vimos, o negacionismo não é um fenômeno social histori-
camente recente, assim como a negação da política, enquanto estratégia
de marketing e autopromoção de candidatos, tampouco é novidade en-
tre nós. O que é novo no cenário político brasileiro recente é não apenas
que a negação da política e o próprio negacionismo tenham se trans-
formado em políticas determinadas, mas também que elas tenham se
articulado e se intensificado até o ponto de se converterem em traços
distintivos do governo Bolsonaro durante a pandemia do novo Coro-
navírus. Esta associação de estratégias políticas heterodoxas durante
a pandemia também ofereceu a Bolsonaro a oportunidade de genera-
lizar e fortalecer o conservadorismo mais focado que vinha orientando
sua fabricação de inimigos internos, no contexto da deslegitimação das
políticas pregressas de reconhecimento de direitos a populações his-
toricamente marginalizadas, como pobres, negras, mulheres, LGBTI+,
indígenas, populações tradicionais, etc. Durante a pandemia, Bolsona-
ro converteu as estratégias da negação da política e do negacionismo
como política em armas eficazes de autopromoção e autopreservação
políticas e, até o momento, ele parece ter levado a melhor. A despeito de
suas desastrosas consequências sociais e políticas, a revolta e a indig-
nação contra seus mandos e desmandos durante a pandemia parecem
ter arrefecido ou mesmo desaparecido, em comparação com o que vi-
nha ocorrendo até meados de junho-julho de 2020: sumiram os panela-
ços, bem como desapareceram as incipientes tentativas de mobilização
popular contra as ações e omissões do Governo Federal. Como compre-
ender essa situação política um tanto paradoxal?
Na conclusão deste ensaio, gostaríamos de propor a hipótese de
que a associação das estratégias da negação da política e do negacionis-
mo como política teria produzido no país certo efeito de anestesia cole-
tiva. Ao que parece, um dos efeitos políticos da prolongada exposição da
população às declarações reiteradas, pelas quais o Presidente minimi-
zou as consequências drásticas da pandemia, bem como ignorou a dor
e o luto pelas mortes, pode ter sido a extenuação e o cansaço coletivos,
como se as pessoas deixassem de aguardar por cuidado e consideração,
e por medidas efetivas de combate, prevenção e esclarecimento contra
a pandemia, e decidissem que era chegada a hora de seguir adiante. Ao
fazê-lo, e nada seria mais compreensível do que agir deste modo sob
tais condições, todos nos adequamos àquela atitude que já havia sido
sugerida pelo próprio chefe do Executivo quando o número de mortos
beirava a casa dos 100 mil, no início de agosto: “vamos tocar a vida”19

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020. 15


Negação da Política e Negacionismo como Política

(Vamos..., 2020, online). Some-se a esse quadro de extenuação coletiva


o fato de que a televisão baixou o tom das denúncias e das reportagens
envolvendo as mortes por Covid-19, substituindo as reportagens in loco
nos hospitais e cemitérios pela fria apresentação de gráficos relativos à
média móvel de mortos e contaminados, apresentados de maneira só-
bria e protocolar. Acrescente-se também ao quadro a tardia chegada do
auxílio emergencial a mais de 60 milhões de brasileiros, aspecto que
também teve seu papel na disseminação de um clima artificial de nor-
malidade entre os brasileiros. Neste estranho contexto político e social,
parece que a articulação daquelas duas estratégias logrou produzir a
naturalização do absurdo, isto é, a banalização das mortes e a sedimen-
tação da clivagem histórica que, entre nós, vem separando desde longa
data as vidas que valem mais daquelas que valem menos e daquelas que
podem mesmo ser descartadas por meio de sua máxima exposição ao
risco de contaminação e de morte.
Por fim, pensemos também, e sobretudo, no possível efeito políti-
co implicado na privação da possibilidade de exercer o luto pela perda
dos entes queridos, condição altamente estressante a que todos fomos
submetidos durante a pandemia. Estimativas de estudos epidemioló-
gicos calculam que cada morte atinja emocionalmente pelo menos até
outras 6 pessoas, o que nos dá uma ideia da extensão do trauma na-
cional com a altíssima taxa de mortalidade pelo vírus20 (Oliveira, 2020).
Como observou argutamente Carla Rodrigues (2020), refletindo sobre o
significado do luto na obra de Judith Butler (2004b), “[...] o direito ao luto
se dá como forma de luta política” (p. 61). Se esta ideia faz sentido, e nos
parece que faz, então talvez se possa conjecturar até que ponto a priva-
ção da possibilidade de exercer o luto não mantém relação com a nos-
sa atual impossibilidade política de lutar contra o descaso do governo
Bolsonaro durante a pandemia, quando a vida de todos foi considerada,
de maneira explícita ou implícita, como descartável ou como de pouca
valia, isto é, como não merecedoras de luto. E não nos esqueçamos de
que, num país desigual como o Brasil, tal condição de precariedade já
está imposta, desde antes do nascimento e da morte, a amplas parcelas
da população.
A reflexão sobre o luto ganha maior desenvolvimento e proemi-
nência na obra de Butler (2004a) em conexão com a noção de preca-
riedade, formulada e desenvolvida a partir de Precarious Life, obra na
qual a autora refletiu sobre o problema da guerra contra o terrorismo
islâmico levada a cabo pelos Estados Unidos, após o ataque às Torres
Gêmeas em 11 de setembro de 2001. Este acontecimento dramático
está na raiz de suas reflexões sobre a precariedade, a vulnerabilidade
e a interdependência enquanto condições intrínsecas à vida humana
e não-humana na Terra. Ao pensar sobre a condição da precariedade e
da vulnerabilidade, bem como ao criticar a desigualdade socialmente
induzida na partilha global entre as vidas passíveis de serem enlutadas
e as vidas descartáveis ou desprovidas de valor, Butler deu ensejo à for-
mulação de uma interrogação ético-política que conferiu importância
política ao luto. Ela se pergunta: de que modo a clivagem entre as vi-

16 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020.


Duarte; César

das dignas de luto e as vidas indignas de luto, as quais são consideradas


como inumanas, “[...] opera de maneira a produzir e manter algumas
concepções excludentes acerca de quem é humano em sentido norma-
tivo: o que conta como vida vivível e como morte que se deve velar?”
(Butler, 2004a, p. xiv-xv). A partir da noção de precariedade, entendida
tanto numa chave ontológico-existencial (todos estamos sujeitos à vio-
lência, à agressão, ao sofrimento, à violência e à morte), quanto numa
chave sócio-política (algumas vidas estão mais sujeitas aos efeitos de
violência e morte produzidos pela desigualdade no acesso às infraes-
truturas sociais e econômicas de proteção da vida), Butler fez de nossa
capacidade para velar e chorar a morte dos outros uma instância privi-
legiada para a reflexão ético-política acerca do que significa viver em
um mundo comum, no qual todos dependemos mutuamente de outros,
de sorte que se tenha de afirmar o dever de combater o espraiamento da
violência e da desigualdade.
Foi a partir dessa reflexão sobre o luto, tão oportuna num país
que acabava de sofrer o trauma do terrorismo internacional, que Butler
estabeleceu uma interessante relação entre o luto e a questão da comu-
nidade política: “Muitas pessoas pensam que o luto é privado, que ele
nos traz de volta a uma situação solitária, mas eu penso que ele expõe a
socialidade constitutiva do eu, uma base para pensar uma comunida-
de política de ordem complexa” (Butler, 2004b, p. 19). Temos aqui uma
noção sumamente importante para refletir sobre os impactos políticos
envolvidos na impossibilidade de organizarmos rituais fúnebres, velar-
mos e chorarmos coletivamente nossos mortos. Se faz sentido pensar
que o luto revela não apenas a dimensão crucial da perda do outro, mas
também o fato de que há os outros que coparticipam dessa perda, além
de todos os outros que nos são desconhecidos, mas sem os quais nossa
vida se tornaria insustentável, impossível, então, talvez possamos supor
que a privação da experiência dos rituais fúnebres e a privação da pos-
sibilidade de chorar coletivamente nossos mortos tenha forte impacto
político sobre a comunidade. De fato, é difícil haver ação política sob
condições que acentuam, além do suportável, a experiência do medo,
da insegurança, da perda de contato consigo mesmo e com os outros?
Ao mesmo tempo em que a fragilidade de cada um foi acentuada ao
máximo, tornando ainda mais insuportáveis as condições de vida da
maioria da população, já historicamente submetida a processos de vul-
neração e precarização socialmente induzidos, também se nos impôs a
impossibilidade de nos reunirmos, de estarmos juntos, em júbilo, rai-
va ou tristeza, para lutarmos coletivamente por melhores condições de
vida.
Talvez tais considerações possam esclarecer, ao menos em parte,
porque, quanto mais foi aumentando o número de mortos pela pande-
mia do novo Coronavírus no Brasil, tanto mais silencioso e abafado foi
se tornando o sentimento de indignação, assim como cada vez menos se
encontraram canais abertos para a manifestação pública do sentimen-
to de indignação. A conjugação das estratégias da negação da política e
do negacionismo como política parece ter resultado na disseminação

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020. 17


Negação da Política e Negacionismo como Política
por todo o país de um misto de amargos sentimentos de impotência e
de resignação. De fato, tais sentimentos têm sido estimulados desde o
princípio pela reiteração da mesma gélida indiferença presidencial em
relação aos mortos e à dor das famílias: “E daí? Lamento. Quer que eu
faça o quê?” dissera o Presidente em abril, quando o número de mortos
estava na casa dos 5 mil. Ao que parece, aquelas escandalosas declara-
ções presidenciais revelaram agora a sua finalidade: reprimir e descon-
siderar a indignação e o protesto organizado, tornar-nos familiarizados
com a naturalização das mortes, trivializar a perda de tantas vidas, bem
como silenciar todos aqueles que ainda permanecem por aqui, induzin-
do-nos a nos salvar individualmente, enquanto ainda podemos fazê-lo.
Quanto tempo durará tudo isso? Ninguém o sabe, mas, não nos esque-
çamos de que não há sofrimento intenso que possa se manter calado.

Recebido em 21 de outubro de 2020


Aprovado em 19 de novembro de 2020

Notas
1 Cf. Disponível em: <https://epoca.globo.com/as-ideias-os-valores-de-bolso-
naro-em-100-frases-23353141>. Acesso em: 23 set. 2020.
2 Cf. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-
25-frases-polemicas/>. Acesso em: 23 set. 2020.
3 Cf. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-
25-frases-polemicas/>. Acesso em: 23 set. 2020.
4 Cf. Disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2019-08-07/
declaracoes-polemicas-bolsonaro.html>. Acesso em: 23 set. 2020.
5 Cf. Disponível em: <https://folhasul.com.br/site/2020/04/19/nos-nao-vamos-
negociar-nada-chega-de-patifaria-diz-bolsonaro-em-discurso-a-apoiado-
res/>. Acesso em: 23 set. 2020.
6 Cf. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/09/vice-ha-
milton-mourao-diz-que-governo-lidou-muito-bem-com-a-pandemia.ghtml>.
Acesso em: 23 set. 2020.
7 No Brasil, Tatiana Roque tem promovido uma importante discussão acerca do
negacionismo climático em sua relação com a ascensão ao poder de governan-
tes vinculados à extrema-direita. Veja-se o seu artigo O negacionismo no poder.
Revista Piauí, fev. 2020b. Mais recentemente, já no âmbito da pandemia do novo
Coronavírus, ela foi uma das primeiras teóricas a compreender a importância
que Bolsonaro atribuiu ao negacionismo como forma de governamento. Cf.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=52wP-CPFIOs>. Acesso
em: 23 set. 2020.
8 Pesquisa Ibope divulgada em 24 de setembro de 2020 indica que 40% da popu-
lação aprovam o governo de Bolsonaro. Cf. Disponível em: <https://jovempan.
com.br/noticias/brasil/popularidade-jair-bolsonaro-maior-percentual-desde-
o-inicio-do-mandato.html>. Acesso em: 23 set. 2020.
9 Cf. O Negacionismo no Poder, op.cit.
10 Swako, José. O Que Nega o Negacionismo?. In: A Terra é Redonda, 2020. Cf.
Disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/o-que-nega-o-negacionis-
mo/#_edn4>. Acesso em: 21 set. 2020.

18 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020.


Duarte; César

11 Giacoia, Oswaldo. E se o erro, a fabulação, o engano revelarem-se tão es-


senciais quanto a verdade? In Jornal Folha de São Paulo, Caderno Ilustrís-
sima de 19.02.2017. Cf. Disponível em: <https://w w w1.folha.uol.com.br/
ilustrissima/2017/02/1859994-e-se-o-erro-a-fabulacao-o-engano-revelarem-
se-tao-essenciais-quanto-a-verdade.shtml>. Acesso em: 21 set. 2020.
12 Cf. Disponível em: <https://www.aosfatos.org/noticias/bolsonaro-deu-656-
declaracoes-falsas-ou-distorcidas-sobre-covid-19-em-seis-meses-de-pande-
mia/>. Acesso em: 17 set. 2020.
13 Cf. Disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2020-08-08/
veja-cem-momentos-em-que-jair-bolsonaro-minimizou-a-covid-19.html>.
Acesso em: 17 set. 2020.
14 Cf. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/re-
dacao/2020/08/19/bolsonaro-mascara-eficacia.htm>. Acesso em: 17 set. 2020.
15 Cf. Disponível em: <https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/
pol%C3%ADtica/bolsonaro-diz-que-cloroquina-teria-salvado-vidas-perdidas-
na-pandemia-1.469793>. Acesso em: 17 set. 2020.
16 Cf. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/09/04/125-mil-
mortos-bolsonaro-desestimula-uso-de-mascara-de-protecao-contra-a-
covid>. Acesso em: 17 set. 2020.
17 Cf. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/10/
nao-sera-obrigatoria-esta-vacina-e-ponto-final-afirma-bolsonaro-sobre-
coronavac.shtml>. Acesso em: 21 set. 2020.
18 Cf. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/
redacao/2020/10/21/bolsonaro-cancela-acordo-por-coronavac-nao-abro-
mao-da-minha-autoridade.htm?utm_source=facebook&utm_medium=social-
media&utm_campaign=noticias&utm_content=geral&fbclid=IwAR0Zvwyh
P5Nce6dFzPAbWNk05JSszGMidFgB49EUxIngdIH7ujZMO0qf YGU>. Acesso
em: 22 set. 2020.
19 Cf. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/
redacao/2020/08/06/vamos-chegar-a-100-mil-mortos-mas-vamos-tocar-a-
vida-diz-bolsonaro.htm>. Acesso em: 22 set. 2020.
20 Cf. Dispon ível em: <ht t ps://g1.g lobo.com/bemesta r/coronav i r us/
noticia/2020/05/01/a-cada-morte-por-coronavirus-seis-a-dez-pessoas-sao-
impactadas-pela-dor-do-luto-dizem-especialistas.ghtml>. Acesso em: 19 set.
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Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020. 19


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20 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020.


Duarte; César
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Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020. 21


Negação da Política e Negacionismo como Política

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André de Macedo Duarte é Professor Titular do Departamento de Filosofia


da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil. É Professor do Programa
de Pós-Graduação em Filosofia da UFPR e do Programa de Pós-Graduação
em Educação da UFPR. Bolsista de Produtividade do CNPq 1-C.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8401-0032
E-mail: andremacedoduarte@yahoo.com.br

Maria Rita de Assis César é Professora Titular do Departamento de Teoria


e Prática de Ensino da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil. É
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR. Bolsista
de Produtividade do CNPq 2.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5843-2899
E-mail: mritacesar@yahoo.com.br

Editor-responsável: Carla Vasques

Este é um artigo de acesso aberto distribuído sob os termos de uma Licen-


ça Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Disponível em: <http://
creativecommons.org/licenses/by/4.0>.

22 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020.


SEÇÃO TEMÁTICA:
AS LIÇÕES DA PANDEMIA

Mais uma Lição: sindemia


covídica e educação
Alfredo Veiga-NetoI
I
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS – Brasil

RESUMO – Mais uma Lição: sindemia covídica e educação. Este artigo ar-
ticula os desdobramentos das crises geradas pela pandemia da COVID-19,
com as deficiências da educação escolar, no Brasil. Argumenta que uma
escola marcada por desigualdades, exclusões, elitismo, facilitação e super-
ficialidade vem gerando amplos contingentes de estultos e refratários às
orientações científicas de prevenção à pandemia e seu controle. Tal situa-
ção é agravada por parte das classes políticas dirigentes, cujos líderes são
fiéis adeptos do negacionismo, fundamentalismo político e religioso, an-
ticientificismo e conspiracionismo. Propõem-se alguns princípios nortea-
dores para a educação científica com ênfase nas dimensões gnosiológica e
formativa. É feita uma revisão da nomenclatura usada pelos estudos sobre
pandemias.
Palavras-chave: Pandemia. Sindemia Covídica. Currículo e Educação
Científica. Governamentalidade. Estultice.

ABSTRACT – A Further Lesson: the Covid syndemic and education. This ar-
ticle articulates the developments of the crises generated by the COVID-19
pandemic with the deficiencies of school education in Brazil. It argues that
a school marked by inequalities, exclusions, elitism, facilitation and super-
ficiality has generated large contingents of fools and people refractory to
scientific guidance for prevention and control of the pandemic. This situa-
tion is made worse by the political governing classes, whose leaders are fol-
lowers of negationism, political and religious fundamentalism, anti-scien-
tificism and conspiracy theories. A few guiding principles are proposed for
scientific education emphasizing the gnoseological and formative dimen-
sions. The nomenclature used in studies on pandemics is reviewed.
Keywords: Pandemic. Covid Syndemic. Curriculum and Scientific Educa-
tion. Governmentality. Stupidity.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020. 1


http://dx.doi.org/10.1590/2175-6236109337
Mais uma Lição

Lição: experiência adquirida por vivência, que serve como


aviso ou conselho; ensinamento (Dicionário Houaiss, ver-
bete lição).
Comecemos pelo conhecido comentário de Hanna Arendt (2011)
sobre as crises: toda crise é também uma porta aberta para a criação e
a inovação. Foi pensando na possibilidade de espiar pela porta da atu-
al crise pandêmica que, nestes últimos meses, me lancei a pensar e a
escrever sobre os sombrios tempos covídicos que estamos vivendo em
2020, especialmente em suas ressonâncias com a Educação. Este aqui é
mais um texto gestado na crise da COVID-191 e nascido no decorrer das
perplexidades que nos atravessam diariamente. Atônito – como muitos
outros2 – diante de tantas notícias ruins, comportamentos irracionais,
declarações estapafúrdias e interpretações bizarras, tenho tematizado
e problematizado as raízes, desdobramentos e consequências da atual
pandemia. E, pensando no comentário de Hannah Arendt, tenho me
esforçado para tirar, deste nosso difícil e irrespirável presente, algumas
lições para a Educação e, mais especialmente, para a educação cientí-
fica 3.
Agora, pretendo trazer mais uma contribuição – focada, específica
– no sentido de, espiando pelas frestas da porta aberta pela crise pandê-
mica, compreender melhor alguns fatores que sustentam a complicada
e tóxica atmosfera social, política e discursiva que hoje nos envolve, no
Brasil. Não tenho dúvida de que quanto mais compreendermos de onde
vem e como se alimenta tal atmosfera tóxica, mais fácil será enfrentar-
mos o mau tempo e mais preparados estaremos para nos protegermos
de tudo isso, bem como para nos prevenirmos a médio e a longo prazos.
Quando me refiro a frestas, aponto para o fato de que não pen-
so em abrir amplamente a porta da crise; nem tenho competência para
isso. Pretendo apenas espiar pelas frinchas e, tanto quanto possível,
vislumbrar e discutir de onde vêm os desencontros e desacertos nas
discussões sobre a atual pandemia e nos encaminhamentos que a ela
são dados em nosso país. Essa discussão será desenvolvida na próxi-
ma seção. A partir daí, na última seção enumerarei, de maneira bem
resumida, algumas sugestões para a Educação, especialmente no que
concerne ao campo do currículo.
Aqui, não chego propriamente a criar ou inovar. Bem menos do
que isso, meus objetivos são mais modestos: quero tão somente levar
em consideração algumas medidas educacionais que sejam úteis para o
enfrentamento de situações semelhantes às atuais e que, infelizmente,
venham a ocorrer daqui para diante. Sendo assim, reconheço que este
texto tem uma abrangência restrita, como, aliás, são sempre restritos os
alcances e resultados de quaisquer sugestões e operações de engenharia
social e, no nosso caso, educacional. Afinal, não existem soluções sim-
ples para problemas complicados. Acrescente-se a isso o fato de que não
se pode confundir necessidade com suficiência, ou seja, não se pode
tomar automaticamente como suficientes mesmo as soluções mais bem
elaboradas e que se apresentam como inescapavelmente necessárias 4.
Enfim, sempre se deve reconhecer os limites de qualquer proposta.

2 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020.


Veiga-Neto

O que segue está dividido em duas seções assimétricas. A primeira


seção – Diagnóstico – tem um tom diagnóstico, metodológico e descriti-
vo. Ali, desenvolverei discussões que contribuem para a caracterização
da atual crise pandêmica. A segunda seção – Proposições – é mais curta,
tem um tom propositivo e move-se no campo dos Estudos de Currículo.
Justifico a assimetria entre as duas seções: antes de nos lançar-
mos às tarefas de propor correções para o que aí está ou de prevenir seu
retorno, é absolutamente necessário conhecer o que aí está. É preciso
mapear o terreno, descrever os obstáculos que temos por diante, avaliar
as dificuldades que trancam nosso caminho. Conhecer em detalhes os
problemas é condição necessária para resolvê-los, minorá-los, contor-
ná-los ou superá-los. Assim, antes de falarmos em soluções e superação,
é preciso saber o que, afinal, queremos mesmo solucionar e superar...

Diagnóstico (com precauções metodológicas)


Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana.
Mas, em relação ao universo, ainda não tenho certeza (Al-
bert Einstein, físico).
Para deixar bem claro de onde falo e como falo, começo explici-
tando os pontos de onde inicio a caminhada e o caminho que vou se-
guir.
Se entendermos o método como o caminho a trilhar para alcançar
um ou mais objetivos, então se pode dizer que nesta seção trato de algu-
mas precauções metodológicas5. Ora, pensar no método e problemati-
zá-lo implica conhecer e mapear o terreno em que nos movimentamos
e, de certo modo, implica também já ir fazendo um diagnóstico do que
temos na paisagem que nos rodeia e das dificuldades que temos pela
frente.
Começarei pelo vocabulário; em seguida, comentarei a complexi-
dade com a qual se apresentam as pandemias em geral e, mais especial-
mente, a atual pandemia covídica.

O vocabulário
Sem pretender fixar significados e sentidos às palavras e expres-
sões, considero importante relembrá-las e esclarecer como estou me
valendo delas neste texto6. No esforço de reduzir a ambiguidade, sigo
sempre as palavras de Antoine Arnauld, expoente da Logique de Port
Royal, que, em seu célebre debate com Nicolas Malebranche, perguntou:
“A primeira regra do tratamento adequado em ciência não é a definição
dos seus termos principais, para fixar a noção correspondente como
tendo um único significado, mesmo que haja poucos motivos para te-
mer que ele seja compreendido de maneiras diferentes?” (Arnauld, 1780,
p. 296; in Dascal, 2006, p. 309).
Reconheço a impossibilidade de se fixar um único significado
para qualquer palavra, conceito, enunciado etc. Mesmo assim, sempre

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020. 3


Mais uma Lição

valem os esforços para cercar as polissemias e, tanto quanto possível,


diminuir a ambiguidade dos discursos7.
Em primeiro lugar, as palavras endemia, epidemia e pandemia.
Como bem sabemos, chama-se de endemia a doença que ocorre em
uma população, durante um longo tempo. A palavra epidemia designa
uma enfermidade em geral contagiosa e de caráter transitório, que ata-
ca simultaneamente um grande número de indivíduos em um espaço
geográfico limitado. Para designar uma epidemia em escala planetária,
usa-se a palavra pandemia.
Em segundo lugar, a palavra sindemia. Ela encerra o conceito cria-
do pelo antropólogo-médico estadunidense Merrill Singer, na década
de 1990, para designar as combinações sinérgicas entre a saúde de uma
população e os respectivos contextos sociais, econômicos e culturais,
aí incluídos os recursos disponíveis (hospitais, ambulatórios, medica-
mentos, especialistas etc.).
Recentemente, uma comissão criada pelo periódico científico
The Lancet usou esse neologismo para se referir à associação, em escala
mundial, entre obesidade, desnutrição e mudanças climáticas (Swin-
burn et al., 2019, p. 1):
O relatório da Comissão do Lancet demonstra que as pan-
demias de obesidade, desnutrição e mudanças climáti-
cas são o principal desafio para as pessoas, o ambiente
e o planeta. Como descrito abaixo, essas três pandemias
representam, em conjunto, a Sindemia Global, com deter-
minantes comuns subjacentes nos sistemas de alimenta-
ção, transporte, urbanismo e uso da terra8.
Trata-se de um neologismo bastante útil para nos referirmos à
combinação e potencialização de problemas que se situam nos âmbi-
tos sanitário, sociocultural e ambiental. Portanto, aí se incluem princi-
palmente, no âmbito sanitário: questões da saúde individual e coletiva,
patogenia e transmissibilidade de certas moléstias, prevenção e tera-
pêutica etc.; no âmbito sociocultural: hábitos, crenças, valores, práticas
culturais, educação, estrutura populacional – em termos demográficos,
etários, econômicos, migracionais etc.; no âmbito ambiental: poluição,
esgotamento de recursos naturais, mudanças climáticas etc. Dado que
na pandemia da COVID-19 se combinam esses três âmbitos, a palavra
sindemia passou também a ser usada para designá-la.
Ao comentar a gravidade da COVID-19 e as situações de comor-
bidade que ela envolve, assim se manifestou, em setembro de 2020, o
editor-chefe da The Lancet (Horton, 2020, p. 874):
A associação dessas doenças num cenário de disparida-
des sociais e econômicas exacerba os efeitos de cada do-
ença tomada em separado. A COVID-19 não é uma pande-
mia. É uma sindemia. A natureza sindêmica da ameaça
que nós temos pela frente significa que é necessária uma
abordagem mais matizada se quisermos proteger a saúde
das nossas comunidades9 (Tradução minha).

4 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020.


Veiga-Neto

A criação desse neologismo não significa apenas uma especifici-


dade ou maior adequação entre a terminologia técnica e os novos fenô-
menos colocados em marcha pela pandemia da COVID-19. Bem mais
do que isso, essa nova palavra encerra um conceito poderoso para uma
compreensão mais abrangente e refinada dos problemas criados pelo
novo vírus e, consequentemente, para um enfrentamento mais efe-
tivo de tais problemas, em termos de reorientar tanto os tradicionais
enfoques e procedimentos da medicina clínica, quanto os tradicionais
programas de saúde coletiva. Em suma, referir-se à pandemia covídica
como uma sindemia é interessante, importante e potente, na medida
em que acentua o seu caráter extremamente polimórfico e complexo.
Sendo assim, daqui para diante passarei a me referir à atual pandemia
da COVID-19 com a expressão sindemia covídica.
No âmbito sociocultural acima referido, há mais um complicador:
num mundo cada vez mais conectado, permeável e aberto à livre circu-
lação de informações de todo tipo, as boas e más notícias e orientações
– na forma de breaknews, goodnews, fakenews, cheatnews 10 e até as men-
tiras mais grosseiras – são ampla, acrítica e igualmente difundidas11. Se
isso é assim do lado da emissão e difusão, deve-se também considerar o
que acontece do lado da recepção. Em parte decorrente da saturação de
informações às quais todos estamos sujeitos e em parte decorrente do
perfil mal preparado e pouco crítico dos amplos contingentes de consu-
midores da informação, o conteúdo daquilo que é visto, lido e escutado
é pouco diferenciado. Parece haver uma tendência de tudo ser absorvi-
do como se, a priori, tudo fosse verdade; ou de tudo ser negado como se,
a priori, tudo fosse mentira12.
Para piorar o quadro, uma característica traiçoeira das fakenews
e das cheatnews é que muitas delas são bem elaboradas, se apresentan-
do de forma palatável, plausível e geralmente simples, o que as torna
pretensamente verdadeiras. Isso funciona muito bem principalmente
para aqueles que não estão suficientemente aparelhados para pensar
criticamente.

A Complexidade e (Consequente) Irredutibilidade


Entendendo uma pandemia como um fenômeno sanitário, socio-
cultural e ambiental extremamente complexo, mutável e situado num
patamar epistemológico acima das raízes que lhe dão origem e o ali-
mentam, ela é irredutível a qualquer uma das muitas variáveis que dela
participam. De modo a clarificar tal complexidade, tenho recorrido ao
caleidoscópio como uma metáfora bastante potente para me referir aos
fenômenos que estamos vivendo hoje.
Como se sabe, um caleidoscópio compõe-se de um tubo cilíndri-
co escuro, no fundo do qual há uma câmara, um espaço limitado por
duas paredes de vidro branco, translúcido e leitoso; no interior dessa
câmara, estão soltos pedacinhos de vidros multicoloridos. Na outra ex-
tremidade do cilindro, há um orifício por onde se observa o que ocor-
re dentro do tubo. As paredes internas do tubo são revestidas com um

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020. 5


Mais uma Lição

prisma triangular espelhado longitudinal, cujo objetivo é multiplicar as


imagens a serem observadas. Como os pequenos vidros coloridos são
móveis, a cada movimento feito no tubo eles mudam de lugar dentro
da câmara, de modo que seus múltiplos reflexos pelas paredes longi-
tudinais do prisma espelhado formam imagens infinitamente variadas
contra o fundo branco, translúcido e leitoso. Apesar da sua simplicidade
construtiva, o caleidoscópio produz belos e cambiantes efeitos.
Excluindo o bonito efeito estético que se obtém a cada movimen-
to do cilindro, em tudo o mais o caleidoscópio serve como metáfora às
pandemias. Vejamos por quê.
Sendo o caleidoscópio um artefato especular e multifacetado, as
imagens que se observam no seu interior são apenas representações –
indiretas e invertidas, porque especulares – de fenômenos e disposições
que ocorrem dentro da câmara leitosa. Assim, a cada movimento do ar-
tefato, aquilo que vemos não corresponde exatamente ao que se passa
no seu interior. Qual num jogo gestáltico, para irmos adiante da – ou
superarmos a – impressão imediata das imagens que vemos, nossa ima-
ginação tem de ficar oscilando constantemente entre aquilo que vemos
ou percebemos e aquilo que pensamos (porque já sabemos) sobre a es-
trutura físico-construtiva do caleidoscópio. Em outras palavras, aquilo
que vemos não está mesmo lá, mas se apresenta para nós como se lá es-
tivesse mesmo.
Para compreendermos o que se passa mesmo no interior do calei-
doscópio, é preciso um exercício mental que articule observação e per-
cepção com conhecimento prévio e abstração. Faz-se necessária uma
mínima capacidade mental que articule objetividade com subjetivida-
de. Em suma, é preciso a associação entre aquilo que se vê e um míni-
mo de conhecimentos; tal associação implica uma razoável capacidade
mental de abstração. E ainda que as exigências não sejam grandes, é
impressionante observar a dificuldade de tantas e tantas pessoas para
compreenderem os fenômenos envolvidos na formação das imagens
nos caleidoscópios. O mesmo acontece com as pandemias em geral. As
dificuldades da compreensão decorrem do grau variado da estultice13
e do travamento mental de cada um. Seja por uma escolarização de-
ficiente ou ausente, seja por uma carência de estímulos precoces das
atividades psi, ou seja, mesmo por alguma insuficiência dos e nos cir-
cuitos do córtex cerebral, muitas pessoas não conseguem realizar essas
operações mentais que exigem alguma mobilidade cognitiva. Na carta
nº 52 de Sêneca a Lucílio, aquele assim pergunta: “[...] que tendência é
essa, Lucílio, que nos desvia do rumo pretendido, que nos empurra para
o ponto de onde pretendemos sair? [...] Andamos à deriva entre resolu-
ções contrárias; não conseguimos ser fiéis a uma vontade livre, absolu-
ta, constante” (Sêneca, 2014, p. 176).
O estulto até pode mudar de opinião; mas, quando isso acontece
é por influência externa e não por alguma autorreflexão. Por isso, ele
anda à deriva, apresenta comportamentos erráticos, imprevisíveis.
As constatações acima não carregam, em si mesmas, nenhum ju-
ízo de valor a priori. Elas partem de verificações empíricas, simples e
6 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020.
Veiga-Neto

diretas. Entendo que é necessário comentá-las na medida em que nos


ajudam a compreender – e, quando for o caso, a desarmar – os pontos de
apoio nos quais se sustentam os imensos desacordos entre os discursos
e as diferentes representações sociais que, entre nós, são atribuídas à
sindemia covídica. E desarmar, também e em cada um de nós, as re-
presentações estultas ou até criminosas sobre a sindemia covídica, que
amplos setores do governo fazem circular constantemente no nosso
país.
No mesmo sentido e por uma questão de semelhanças com o que
se observa na condução da sindemia covídica no Brasil, vale a pena
abrir aqui um primeiro parêntese, para lembrar como Hannah Arendt
entende a burrice, quando descreve o nazista Adolf Eichmann em seu
julgamento, no ano de 1961, em Jerusalém. Nas palavras de Gros (2018,
p. 122), para a filósofa, “[...] a burrice é pensar por clichês, por generali-
dades. É isso que Arendt chama de burrice: a automaticidade da fala, o
pronto pensar os elementos de linguagem. [...] é a ausência de juízo”. A
partir dessa caracterização da burrice, Arendt cria a expressão banali-
dade do mal para designar a “[...] burrice ativa, deliberada, consciente.
Essa capacidade de tornar a si próprio cego e burro, essa teimosia em
não querer saber” (Gros, 2018, p. 129).
Agora, abro um segundo parêntese para caracterizar cada um
daqueles pontos de apoio referidos mais acima: o negacionismo, terra-
planismo, conspiracionismo, fundamentalismo, anticientificismo, triba-
lismo e o refratarismo. Vejamos cada um deles, de modo bem resumido.
A palavra negacionismo denota a prática de negar sistematica-
mente realidades ou verdades que, embora evidentes, causam algum
medo ou desconforto. Em geral, o negacionismo revela uma dificuldade
no enfrentamento de problemas que, para serem compreendidos e re-
solvidos, exigem o emprego de alguma racionalidade fora do alcance
dos estultos. A arrogância, a pobreza intelectual, o fundamentalismo,
o anticientificismo e o conspiracionismo reforçam os comportamentos
negacionistas.
O terraplanismo é o nome dado à doutrina arcaica, fantasiosa e
profundamente conservadora que afirma ser a Terra um disco flutuan-
do no espaço, e não uma esfera, como na Antiguidade já haviam de-
monstrado Pitágoras e Aristóteles.
Conspiracionismo designa um modo de enxergar conspirações
atuando em toda parte e engendradas por agentes malignos – pesso-
as, organizações ou espíritos –, trabalhando calculada e secretamente
contra nós. O reptilianismo, por exemplo, é uma modalidade do conspi-
racionismo: um grupo de répteis humanoides teriam invadido a Terra
– vindos do espaço ou do interior do planeta – e estariam vivendo mis-
turados na população, com o objetivo de nos destruírem.
Em termos gerais, fundamentalismo é a postura de inegociável fi-
delidade a um princípio fundacional, unificador e transcendente e, por
isso, colocado acima de qualquer entendimento, interpretação ou visão
de mundo (weltanschauung). Na medida em que funciona como uma

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020. 7


Mais uma Lição

âncora ou um gancho no céu (Rorty, 1988), o pensamento dogmático


dos fundamentalistas reduz seus medos frente aos mistérios da existên-
cia e assim funciona, para eles, como uma segurança ou tábua de salva-
ção. Entre nós, o fundamentalismo político parece se destacar mais do
que o religioso.
Anticientificismo refere-se à postura contrária à Ciência – seus
métodos, suas práticas, seus princípios. Os movimentos antivacinais,
por exemplo estão imbricados com o anticientificismo e, frequentemen-
te, também com o conspiracionismo.
Por tribalismo designa-se a adesão a um determinado grupo so-
cial mais ou menos autônomo e bastante fechado – a tribo –, cujos mem-
bros partilham de mesmos princípios basilares e mesmos ideais. Em
sociedades tradicionais, a tribo tem – ou pensa ter – uma ascendência
familiar comum.
Por refratarismo, designo a resistência em aceitar, a priori, as evi-
dências dos fatos e suas interpretações dadas até mesmo pelo senso
comum. O refratarismo confunde-se em parte com o negacionismo e
o anticientificismo. Para além deles, no entanto, o refratarismo abarca
também a teimosia, a cegueira, a arrogância de que pensa que tudo sabe
e a insensibilidade frente às dificuldades alheias e às mazelas sociais.
Todos eles são -ismos que, de certo modo, jogam entre si e se arti-
culam uns aos outros, formando algo semelhante a uma rede coerente,
firme, conservadora e autojustificada. De modo correlato ao jogo das
infinitas imagens que vemos no caleidoscópio, da articulação entre
esses -ismos resulta um reforço mútuo que acaba levando muitos a vê-
los, compreendê-los e defendê-los como naturais e verdades inquestio-
náveis. Mas não se deve esquecer que todos eles são manifestações de
superfície; quais tristes icebergs, todas essas crenças e princípios têm,
abaixo de si, uma massa considerável de fantasias e desinformação, de
simploriedade e contrainformações, de tolice e pura imaginação, de ar-
rogância e insensibilidades. E, amarrando tudo isso, estão boas doses
de estultice.
É claro que, alimentando e reforçando a circulação de uma massa
considerável de fantasias e contrainformações, além da estultice tam-
bém podem estar em jogo, nesses –ismos, muitos interesses escusos.
Seus promotores ora pensam aumentar o capital político sobre seus
simpatizantes, eleitores e partidários, todos também estultos e/ou mal-
intencionados; ora querem consolidar suas posições públicas e políti-
cas alcançadas às custas da disseminação do desprezo para com os ou-
tros e ódio aos adversários, geralmente vistos como inimigos; ora têm
medo de que eventuais mudanças coloquem em risco seus confortáveis,
porém discutíveis, privilégios.
Continuemos explorando a metáfora. A cada movimento que se
faz no caleidoscópio, muda a imagem observada; mas tal mudança não
obedece necessariamente à amplitude ou à velocidade do movimento
feito por nós. A relação entre um movimento e o seu resultado visível
não é de causalidade estrita, mas sim de causalidade complexa e com
a eventual intervenção de certas condições de possibilidade. Os movi-

8 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020.


Veiga-Neto

mentos intervêm, mas os resultados são sempre aleatórios, pois entram


em jogo também outras variáveis e outras condições de possibilidade
sobre as quais não se tem um controle a priori. E, para complicar ainda
mais, quase sempre também entram em jogo processos estocásticos,
cuja determinação a priori é até impossível de ser feita. No caleidoscó-
pio, nunca se tem um controle direto – e, muito menos, determinístico
– sobre os movimentos dos vidros coloridos e sobre as posições que eles
assumem a cada movimento que se faz com o artefato. Tudo se passa
como se estivéssemos num jogo de dados.
Transportemo-nos do caleidoscópio para as pandemias em geral
e, no nosso caso, para a sindemia covídica. Agora, a situação fica bem
mais complicada; mas, em termos gerais, ainda vale recorrer à metáfo-
ra. De uma parte, é preciso entender tanto a natureza multifatorial dos
fenômenos que ocorrem em ambas, quanto o seu caráter não-necessi-
tarista – mas contingente, indeterminístico e até estocástico. De outra
parte – e nunca é demais insistir –, tem-se de considerar que uma pan-
demia é a manifestação articulada de fenômenos naturais – biomédicos
e geográficos (climáticos, orográficos, hidrográficos, atmosféricos etc.)
– combinados com fenômenos sociais – populacionais (demográficos,
migratórios etc.) e culturais (hábitos, crenças e mitos, práticas discursi-
vas e não-discursivas etc.). E, para complicar ainda mais, tal articulação
não se dá apenas como uma somatória simples dos fenômenos envolvi-
dos, mas sim como interações que são ora sinérgicas, ora antagônicas;
ou seja, interações cujos resultados ora são maiores do que a soma das
partes e ora são menores ou nulos, isso é, as partes se anulam quando
combinadas entre si.
Vê-se, então, que a compreensão de como funcionam as pande-
mias – e de como podemos abordá-las e até nos livrarmos delas – exi-
ge muitos levantamentos, elaboradas análises, cálculos estatísticos e
várias operações mentais cuja complexidade e abstração colocam-se
muitíssimo além das evidências imediatas e concretas da – ou daqui-
lo que se considera ser a – realidade. Multifatorialidade, contingência,
indeterminação e interações complexas instituem aquilo que se pode
chamar de rationale pandêmico; ele situa-se num plano que resiste a
qualquer simplificação reducionista. Com tudo isso, mais uma vez se vê
o quão adequado é o neologismo sindemia...
E há mais: é preciso entender, também, que tanto o caleidoscó-
pio quanto as pandemias articulam variáveis espaciais com variáveis
temporais, de modo que qualquer análise que se queira fazer de am-
bos envolve determinadas imagens restritas a um dado espaço e num
dado tempo. Além do mais, as imagens mudam em função dos ângulos
e posições espaciais e teóricas – no sentido de weltanschauung (visão
de mundo) – assumidas pelo observador. Nem o caleidoscópio nem as
pandemias são estáveis; suas configurações não ficam pacientemente à
espera das nossas observações, descrições e soluções14.
É claro que, mesmo confrontados por tais dificuldades, podemos
minimamente conduzir ou prever – com algum grau de aproximação e
de eventual sucesso, mas nunca de certeza – as imagens no caleidoscó-
Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020. 9
Mais uma Lição

pio, antes de fazer um movimento com ele. O mesmo acontece com os


resultados que esperamos obter no enfrentamento das pandemias, seja
na sua avaliação e acompanhamento, seja na sua prevenção ou solução.
Mas estaremos sempre presos às sequências que são típicas das ciências
experimentais: tentativas ——> muitos erros ——> novas tentativas
——> novos erros e poucos acertos ——> novas tentativas ——> mui-
tos acertos e poucos erros e assim por diante. Então, mesmo sem nunca
termos a mínima certeza lógica de atingir o pleno sucesso daquilo que
previmos acontecer, é preciso ir adiante e, acreditando na indução ba-
coniana, aumentar a probabilidade de que os acontecimentos se deem
conforme nossa previsão15.
Tudo o que foi discutido acima aponta para a imperiosa neces-
sidade de abordar a sindemia covídica armados com um pensamen-
to suficientemente apto para enfrentar a descrição, a compreensão e
o controle de fenômenos extremamente complexos. Trata-se de uma
complexidade que ultrapassa largamente as facilidades prometidas
pelo senso comum, praticadas pelo pensamento mágico, pelos impera-
tivos formulados com base em fundamentalismos toscos e pelas certe-
zas e esperanças baseadas apenas naquilo que desejamos, nos favorece
e nos tranquiliza.
Para encerrar esta seção, vejamos mais algumas palavras sobre o
cenário sindêmico que hoje nos cerca e nos sufoca.
É fácil ver que a atual sindemia fez aflorar e amplificou um varia-
do conjunto de crises mundo afora. No Brasil de hoje, por exemplo, não
é exagero identificar pelo menos cinco tipos de crises que se combinam,
se interpenetram e se reforçam mutuamente: covídica, econômica, po-
lítica, ética e estúltica16. Sendo assim, o quadro que se nos apresenta é
de extrema complexidade, inapreensível por uma análise reducionista
e, também por isso, incompreensível por amplos contingentes da popu-
lação e, bem como, por uma parte significativa das classes dirigentes.
Por reconhecer as dificuldades para alterar esse status quo, muito
se vem investindo em maciças campanhas publicitárias, entrevistas e
discussões públicas com especialistas, desarme das contrainformações
etc. Tudo isso na pretensão de esclarecer e de neutralizar as mentiras e
fantasias das fakenews e cheatnews. Mas talvez o maior obstáculo hoje
encontrado por esses esforços – que tentam desarmar as contrainfor-
mações e estimular as boas e bem fundamentadas condutas sanitárias
capazes de minorar aquele conjunto de crises que nos assola – esteja
do lado da população-alvo desses movimentos. Parece que, na maioria
das vezes, as pessoas se cansam de adotar as medidas sanitárias que
contrariam seus arraigados hábitos culturais coletivos. Outras vezes, a
recepção e o processamento das boas informações ficam simplesmente
bloqueadas, ab principium, devido a um ou mais dos -ismos aos quais
já me referi. Afinal, a tenacidade ao pensamento mágico, à fantasia, à
imaginação, à ficção e à excentricidade parece mesmo indestrutível,
a menos que, muito precocemente e pela educação, se consiga formar
crianças e jovens cujo substratum mentis seja capaz de abrigar e desen-
volver uma racionalidade minimamente crítica e consequente.
10 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020.
Veiga-Neto
É neste ponto que passamos para a próxima e última seção.

Proposições
Qualquer jumento pode derrubar um celeiro com um coice;
mas é preciso um carpinteiro para construir um (Samuel
Rayburn, congressista estadunidense17).
Sintetizando bastante as discussões feitas até aqui e agora di-
rigindo o foco para a educação, meu argumento vai no sentido de ser
imperioso e urgente proceder-se a abrangentes – porém simples e não
dispendiosas – mudanças nas ênfases curriculares, com destaque para
a educação científica. Vejo, aí, uma boa oportunidade de diminuir uma
parte das históricas deficiências da educação escolarizada no Brasil. A
formação de amplos contingentes familiarizados com o pensamento
científico significa, também, a formação de uma cidadania sem paro-
quialismos, mas com uma mente mais aberta e alargada para o mundo.
Compreender a importância da ciência no mundo de hoje já é um bom
início para comportamentos menos estultos e não submissos ao pensa-
mento mágico e dogmático. De saída, ao falar em proposições faço dois
alertas:
Em primeiro lugar, não se trata de aderir automaticamente ao ca-
tastrofismo e ao prometeísmo, essas que eu considero ser duas dentre as
muitas pragas da Pedagogia moderna. Não estamos à beira do fim do
mundo. E insisto: medidas pedagógicas são necessárias, mas, por si só,
elas não vão nos salvar nem resolver todas as deficiências e problemas
sociais que nos afligem.
A deficiência a que me refiro fica por conta e resulta do fato de que
a educação escolar, em nosso país, acumula uma secular tradição de
desigualdades estruturais, exclusões de toda ordem, elitismo descara-
do, facilitação, aligeiramento e superficialidade curricular. Mesmo os
amplos setores sociais incluídos na escola, na maioria das vezes encon-
tram ali currículos – em termos de conteúdos e práticas didáticas – tão
pobres e malconduzidos que se ampliam, cada vez mais, os contingen-
tes de indivíduos individualizados18, encalhados na doxa19, pouco afei-
tos aos conhecimentos sistematizados e à mobilização de raciocínios
lógicos, por mais simples que esses sejam.
Efeitos notáveis disso tudo se manifestam no plano da política, no
qual se articulam, de um lado, os governantes estultos e/ou mal-inten-
cionados e, de outro lado, um amplo contingente de governados, na sua
maior parte desinformados e desinteressados. É bem comum e conhe-
cida a situação: escandalosamente, as classes políticas aproveitam-se
da fraca escolarização de amplas parcelas da população – e sua corre-
lata pobreza e analfabetismo (também político) – para, colocando em
marcha o populismo20, o fundamentalismo, o conspiracionismo etc.,
formarem castas e dinastias familiares, bem como se perpetuarem no
poder.
Parece imperioso, então, caminharmos no sentido do fortaleci-
mento de uma educação escolar voltada para diminuir ou mesmo sanar

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020. 11


Mais uma Lição

esses problemas. Mas dita apenas assim, essa frase não passa de um
clichê. Temos, então, de ir muito adiante dos lugares-comuns. A ques-
tão complicada é: que medidas se pode tomar, principalmente a curto
prazo?
Em segundo lugar, o que segue nesta seção não pretende ser origi-
nal. Muito disso já vem sendo dito e defendido, há bastante tempo, por
inúmeras correntes pedagógicas. De qualquer maneira, sugiro alguns
poucos encaminhamentos curriculares e lhes dou algumas ênfases, na
medida em que os considero apropriados e urgentes, face às situações
calamitosas que a sindemia covídica está justamente colocando em evi-
dência.
No que diz respeito às sugestões curriculares aqui tratadas, há
duas dimensões principais a serem consideradas: a gnosiológica e a for-
mativa. Certamente, não há uma linha clara de separação entre ambas;
e elas são até interdependentes.
Na dimensão gnosiológica, estão os assim chamados conteúdos
curriculares, isso é, as informações e conhecimentos a serem ensina-
dos e aprendidos21. Um ponto a sublinhar é o fato de que os conteúdos
não devem ficar no simples patamar das informações. Por mais atuali-
zadas, importantes e interessantes que sejam as informações e os co-
nhecimentos, por si mesmos eles são de pouco valor se não cumprirem
duas funções: ampliar articuladamente o repertório e, principalmente,
servir para desenvolver operações mentais mais e mais integradoras,
elaboradas e complexas. Combinar e articular os conteúdos entre si,
rebater uns com os outros, distinguir o que é importante do que é aces-
sório, agrupá-los em distintas categorias, sequenciá-los, estabelecer as
hierarquias e identificar os possíveis nexos causais entre eles são pro-
cedimentos que promovem e exercitam o raciocínio lógico. Com isso,
elevam-se a integração e a elaboração mental a patamares cada vez
mais avançados.
Na dimensão formativa estão a aprendizagem e o exercício de con-
dutas éticas segundo princípios e códigos sociais historicamente esta-
belecidos por uma dada cultura e partilhados no seu interior, de modo
a promover “[...] uma vida coletiva, includente, respeitosa ao outro e à
diferença e, por isso mesmo, atenta ao comum” (Veiga-Neto, 2020, sp).
Importa incluir atividades conjuntas no currículo – como trabalhos de
campo, aulas práticas em laboratório, projetos coletivos etc. – que exer-
citem a colaboração mútua, o respeito às rotinas e protocolos e o uso
de modelos como reprodução controlada ou representação de fenôme-
nos naturais e sociais. Todas essas são atividades que valem tanto por
si mesmas quanto como meios para aprender, exercitar e promover os
valores (acima referidos) de uma vida coletiva.
Nesta dimensão, um primeiro ponto a considerar é o fato de que a
atenção ao comum implica compreender a importância das singulari-
dades e, simultaneamente, os limites a serem respeitados nas relações
interpessoais. Assim, por exemplo, no que tange à liberdade individu-
al é sempre imperioso manter em equilíbrio os interesses e direitos de
cada um com os interesses e direitos da comunidade em que cada um
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Veiga-Neto

está inserido22. Tal equilíbrio é, ele mesmo, um imperativo situado aci-


ma daquilo que muitos consideram ser a transcendentalidade do (assim
chamado) imperativo das liberdades e dos direitos individuais23.
Um segundo ponto a considerar quanto à dimensão formativa
refere-se àquilo que se denomina capacidade de escuta. Tal capacida-
de implica o respeito ao outro, decorrente do reconhecimento da sua
autoridade, na medida da sua história e em função da posição que esse
outro ocupa numa determinada rede social. Como bem apontou Virilio
(1995), num mundo em aceleração constante, avança o presentismo –
entendido como a contração social do tempo, reduzido e colapsado ao
agora. O presentismo bloqueia e desvanece a memória do passado e,
consequentemente, o valor da história e da tradição. Ao ocaso do pas-
sado e consequente esmaecimento do valor da história e da tradição,
corresponde a sensação de que o mundo se cria a todo instante; con-
sequentemente, tendem a se enfraquecer ou desaparecer as noções de
autor, autoria e autoridade.
Ainda no âmbito da dimensão formativa, um terceiro ponto a con-
siderar é a atenção ao princípio da caridade. Sem nenhuma conotação
religiosa ou humanitária e a partir da proposta inicial de Neil Wilson
e depois desdobrada por Donald Davidson, esse princípio é entendido
como o dever – em qualquer comunicação, explanação, diálogo ou con-
trovérsia – “[...] de que se atribua ao outro a melhor das intenções e a
melhor compreensão possível” (Dascal, 2006, p. 309). Sendo assim, vai-
se para além da escuta como simples escuta. O princípio da caridade
exige que a escuta seja qualificada, pois se assume – e se exige que todos
os interlocutores assumam – a presunção e o compromisso ético de que
tudo aquilo que está em jogo na comunicação deve estar, necessaria-
mente, no verdadeiro 24.
Um quarto ponto a considerar está relacionado à formação daqui-
lo que Foucault (2008) chamou de governamentalidade. Aqui, cabe uma
digressão.
Dos quatro conceitos que o filósofo atribuiu a essa palavra, valho-
me daquele que mais interessa: a saber, a governamentalidade como o
encontro ou superfície de contato entre o governamento que alguém
exerce sobre si mesmo, o governamento que exerce sobre os outros e
o governamento que esses outros exercem sobre aquele alguém (Fou-
cault, 2001). Na medida em que a governamentalidade conecta o gover-
no de si mesmo com o governo dos outros, ela se situa no circuito da-
quele que eu chamo de terceiro domínio foucaultiano: o domínio do ser
consigo mesmo. Em outras palavras, trata-se de como alguém se torna
sujeito a partir das ações sobre si mesmo, mas sem esquecer que nesse
processo há sempre a intervenção de outro(s) sujeito(s). Resulta daí a
bem conhecida máxima estoica: só governa bem os outros quem gover-
na bem a si mesmo.
Pode-se deduzir, então, que a dimensão formativa do currículo é
imanente à governamentalidade. Mas, além disso, elas mantêm entre
si uma relação de causalidade, do tipo que Deleuze (1991) qualificou de
imanente, ou seja, elas mutuamente se atualizam como causa e efeito25.
Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020. 13
Mais uma Lição

Sendo assim, ao dar ênfase à dimensão formativa na educação cientí-


fica não se está apenas preparando sujeitos racionais, capazes de exer-
citarem melhor o raciocínio lógico e compreenderem como funciona a
ciência. Tudo isso é importante, principalmente se acrescentarmos as
funções de formar futuros defensores da ciência e, até mesmo, eventu-
ais futuros cientistas. Mas vou além: é importante, também, porque se
está trabalhando a favor de formar subjetividades mais capazes de se
autogovernarem e de bem governarem os outros. É bom lembrar que,
sendo assim, a educação científica assume uma importância que extra-
pola, em muito, as tradicionais alegações que a defendem em nome da
formação de mão de obra especializada e apta para o trabalho técnico-
científico.
Relacionada a esta primeira, cabe uma segunda digressão. O des-
locamento que, no terceiro domínio, Foucault faz do uso de poder para
o uso de governo tem bastante a ver com os processos de subjetivação
e, por essa via, com a dimensão formativa do currículo. Como bem sa-
bemos, exercer o poder e governar referem-se a ações que uns exercem
sobre as ações dos outros; mas estas duas palavras encerram sentidos
ligeira, mas decisivamente, distintos. A par de outros detalhes que não
cabe aqui discutir, lembro que o verbo poder deriva do radical indo-
europeu poti- (poderoso, senhor, aquele que está acima e manda), por
via do latim vulgar potēre. Poder está no mesmo campo semântico de
poderio, potestade, potente, potência, déspota etc.; trata-se de um cam-
po semântico que aponta para uma diferença de nível, tomada como
natural e, em princípio, inegociável. Por outro lado, a palavra governar
deriva do verbo grego κυβερνώ (kyvernó), cujo significado é, muito apro-
ximadamente, levar o outro com a aquiescência desse outro e até com
sua própria vontade. No caso de governar, não se leva à força, nem com
mentiras, nem ocultando motivos; ao contrário, governar implica levar
pela verdade, pelo reconhecimento daquele que é levado em relação
àquele que o leva 26. No governo de uns sobre os outros há uma raciona-
lidade envolvida numa economia de trocas, acordos implícitos, vanta-
gens e reconhecimentos mútuos27.
Esta digressão pode parecer um mero detalhe. Mas ela é impor-
tante na medida em que nos faz compreender que a dimensão formati-
va do currículo envolve também o ensino e a aprendizagem de modos
de governar-se e de governar os outros. Sendo assim, ao enfatizar a di-
mensão formativa do currículo, se está promovendo não apenas a fabri-
cação de sujeitos com visões de mundo mais elaboradas, mas, também,
participantes de formas de vida mais inteligentes, éticas e humanas, ca-
pazes de um bom autogoverno e, consequentemente, de um bom gover-
no sobre os outros. E isso vale, é claro, tanto para a educação científica
quanto para a educação musical, literária, artística, humanista etc.
Mesmo se vendo que a Educação Científica pode ser extremamen-
te rica para o atendimento e a consecução das dimensões gnosiológi-
cas e formativas acima comentadas, se fazem necessários mais alguns
cuidados. Refiro-me à historicidade da ciência. Ainda que muito im-
portantes as informações e os conhecimentos específicos acerca das

14 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020.


Veiga-Neto

teorias, leis, princípios, nomenclaturas, fórmulas e conceitos científi-


cos, é preciso colocá-los sempre em relação com os processos, acordos
e embates históricos nos quais eles foram gestados, se desenvolveram
e se firmaram. Ao invés de simplesmente reduzir a educação científi-
ca ao ensino de ciências, é preciso enfatizar o caráter histórico-social,
aproximativo, relacional, provisório e falível das práticas e correlatas
teorizações científicas. Tal ênfase é determinante para uma aprendiza-
gem científica circunstanciada que acaba por mostrar a profunda e ín-
tima relação entre o mundo da ciência e do mundo da vida cotidiana. Ao
mesmo tempo, mobiliza maneiras de estar no mundo e de pensar, capa-
zes de neutralizar os indesejáveis –ismos discutidos na seção anterior.
No mesmo caminho vai a problematização acerca das relações
entre os fatos observacionais e a construção das teorias que tentam ex-
plicá-los. É preciso trabalhar contra o senso comum e não dar os conhe-
cimentos, saberes, práticas e os avanços científicos como tranquilos,
como se estivessem desde sempre aí, acabados e à disposição de serem
descobertos. E também não os dar como revelações divinas e resultados
imediatos, conseguidos por cientistas geniais e aplicados. Nunca será
demais enfatizar o caráter temporal, social, coletivo e colaborativo das
descobertas e invenções da ciência – com todas as suas convergências
e divergências, acordos e desacordos, avanços e retrocessos, idas e vin-
das. Deste modo, vão ficando claros os topoi que, combinados, caracte-
rizam a ciência, como é o caso, principalmente, do ceticismo 28, verifica-
ção empírica 29, debate aberto 30, falibilismo 31 e falseacionismo 32.
Colocar constantemente em jogo esses topoi faz da educação cien-
tífica um excelente instrumento para a criação e o desenvolvimento de
sensibilidades, visões de mundo e comportamentos não-dogmáticos,
não-fundamentalistas, não-negacionistas, não-tribalistas, não-refratá-
rios. Tais sensibilidades e visões de mundo promoveriam mentalidades
capazes de escapar dos paroquialismos, de compreender e assumir a
historicidade e a provisoriedade do conhecimento humano em geral,
aí incluído o conhecimento científico. Aceitar o aperfeiçoamento, a
revisão e a rejeição de noções tidas, até determinado momento, como
basilares e, ao mesmo tempo, exercitar a autocrítica e a abertura para
o diálogo, para a outridade e para a diferença são imperativos pragmá-
ticos essenciais para a criação de pessoas mais prudentes, socratica-
mente humildes e, por aí, capazes de um melhor enfrentamento à atual
sindemia.
A um primeiro olhar, minha posição pode parecer otimista de-
mais acerca dos poderes da educação científica. Mas não tenho dúvidas
acerca da sua força para entrar no circuito de combate e neutraliza-
ção da estultice que, correndo solta em nosso país, serve de amálga-
ma e combustível para os estragos causados pela sindemia covídica.
De novo, é importante distinguir entre condição necessária e condição
suficiente...
Em sintonia com o psicólogo e ensaísta canadense Steven Pinker
(2018), entendo que a educação científica é capaz de promover o huma-
nismo racional, por ele defendido. Apostando na ciência, ele vai na con-
Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020. 15
Mais uma Lição

tramão dos numerosos críticos que enxergam, na ciência, as origens e o


motor das principais mazelas da Modernidade.
Pinker enumera aqueles que para ele são os quatro temas funda-
mentais para melhor compreendermos a Contemporaneidade: razão,
ciência, humanismo e progresso. E considera a razão como o tema pri-
mordial e mais importante:
Se existiu algo que os pensadores do Iluminismo tiveram
em comum foi a exigência de que se aplicasse vigorosa-
mente o critério da razão para entender o mundo, em vez
de recorrer a geradores de ilusão como a fé, o dogma, a
revelação, a autoridade, o carisma, o misticismo, o profe-
tismo, as visões, as intuições ou a análise interpretativa
de textos sagrados (Pinker, 2018, p. 26).
Nesse contexto então, ele ressalta o papel da ciência como o “[...]
refinamento da razão com o objetivo de entender o mundo” (Pinker,
2018, p. 27). E assim continua: “Para os pensadores iluministas, a liber-
tação da ignorância e da superstição mostrou o quanto a nossa sabe-
doria convencional pode ser equivocada e como os métodos da ciência
[...] são um paradigma de como alcançar o conhecimento confiável”
(Pinker, 2018, p. 28).
Para encerrar, insisto que minhas proposições não são grandes
novidades no campo em que os Estudos de Currículo tratam da educa-
ção científica; e tampouco tenho a pretensão de sugerir medidas radi-
cais, imediatas, dispendiosas e efetivas para problemas cujas soluções
completas se colocam muito além do alcance da educação científica.
Afinal, não há soluções mágicas e remédios milagrosos para dar conta
dos enormes e intrincados problemas que se acumulam há séculos em
nosso país.
Por obra desta perturbadora crise sindêmica, esses problemas –
como já referi – tornam-se a cada dia mais evidentes, se combinam e se
potencializam, dando origem a situações extremamente preocupantes
e socialmente degenerativas. Como procurei deixar claro, o que tentei
fazer foi colocar em jogo essas combinações e potencializações para, a
partir daí, enumerar algumas medidas curriculares simples, de baixo
custo e factíveis a curto prazo. Medidas que, talvez, nos empoderem um
pouco mais para o enfrentamento dessas situações que tornam nosso
mundo tão sombrio.
Recebido em 1 de outubro de 2020
Aprovado em 12 de novembro de 2020

Notas
1 COVID-19 é o nome atribuído à pandemia do vírus SARS-CoV-2, originado na
China no final de 2019.
2 Para abordagens mais amplas e detalhadas, vide principalmente Loureiro;
Lopes (2020).

16 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020.


Veiga-Neto

3 Uso educação científica como sinônimo de Educação em e para a Ciência.


4 Vale a pena chamar a atenção para uma confusão lógica bastante comum no
campo da educação: ter a ilusão de que é possível resolver um problema social,
apelando para uma ação sabidamente necessária, porém insuficiente.
5 Nunca é demais lembrar que método deriva da junção entre as formas gregas
metá (adiante, através de) e hodós (caminho).
6 Seguindo Wittgenstein (1987), faço uma distinção entre significado (Bedeutung)
e sentido (sinn).
7 Para usar a conhecida formulação do Segundo Wittgenstein (1979, § 38, p. 27),
“[...] os problemas filosóficos nascem quando a linguagem entra em férias”.
8 Aqui, o original foi retirado do ar... A citação acima é oficial e ainda está no ar
em: <https://actbr.org.br/uploads/arquivos/Resumo_-Sindemia-Global.pdf>.
9 No original: The aggregation of these diseases on a background of social and
economic disparity exacerbates the adverse effects of each separate disease.
COVID-19 is not a pandemic. It is a syndemic. The syndemic nature of the threat
we face means that a more nuanced approach is needed if we are to protect the
health of our communities.
10 Tenho proposto a palavra cheatnews para designar as contrainformações mis-
tas, isso é, aquelas cujas partes, tomadas separadamente, não são falsas, mas
que são organizadas e apresentadas de modo a enganar, falsear, induzir ao erro.
Do inglês cheat (fraude, trapaça). Meias-verdades, por exemplo enquadram-se
na categoria das cheatnews.
11 Não esqueçamos que, muitíssimas vezes, elas são também maliciosamente
difundidas.
12 As bolhas informacionais algorítmicas são a própria materialidade imaterial,
porque virtual, nas quais se agrupam os simpatizantes, seguidores ou absor-
vedores dessa ou daquela versão da informação.
13 Característica ou atributo dos estultos, isso é, daqueles que, não apresentando
sensatez e bom discernimento, são estúpidos, néscios ou, no jargão popular,
burros (uma palavra que prefiro não usar para não ofender os muares...).
Derivada dos radicais indo-europeus stā- (estar de pé e imóvel) e stel- (pôr-se,
colocar-se), a palavra estulto situa-se no mesmo campo semântico das palavras
estábulo, estático, apóstolo, estátua, obstinado, estar, poste, pedestal, estupor,
estado e suas derivadas. Para pormenores sobre a estultice desde os estoicos,
vide: aula de 27 de janeiro de 1982, no Collège de France – A hermenêutica do
sujeito (Foucault, 2004). Vide, também: McGushin (2007).
14 Em termos práticos, costuma-se equiparar as dificuldades de analisar as pan-
demias, e nelas intervir, com as dificuldades de trocar um pneu de um carro
de corrida, mantendo o carro em movimento...
15 Afinal, como argumentou David Hume, a indução não se sustenta na lógica,
mas envolve elementos que são da ordem da psicologia e da empiria (Marques,
2011).
16 Ainda que não dicionarizada na língua portuguesa, uso a palavra estúltica
para adjetivar os comportamentos ou a qualidade dos indivíduos estultos, de
modo a marcar uma clara diferença com o substantivo estulto.
17 No original: A jackass can kick a barn down, but it takes a carpenter to build one.
18 Nesse aparente pleonasmo, sigo Beck (2010), para quem a maioria dos processos

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020. 17


Mais uma Lição

contemporâneos envolvidos com a formação das individualidades não são de


individuação, mas de individualização, gerando vazios políticos e levando a
uma sociedade de indivíduos individualistas.
19 Estou usando doxa no sentido trivial de opinião ou juízo que, elaborado num
momento histórico, pretende ser verdadeiro, mas que não vai além de uma
crença ingênua, falsa e enganosa. Assim, a doxa deve ser superada por conhe-
cimentos e saberes bem fundamentados e claramente articulados.
20 Reconhecendo a polissemia dessa palavra, esclareço que estou usando popu-
lismo como a prática política voltada a captar a simpatia e adesão populares por
se declarar em defesa dos interesses das classes de menor poder econômico.
21 Para uma distinção forte, no campo dos Estudos de Currículo, entre informa-
ções, conhecimentos e saberes, vide Veiga-Neto; Noguera (2010).
22 A aceitação (ou a recusa) das medidas cautelares coletivas e individuais, no
enfrentamento da sindemia covídica, são excelentes exemplos dessa atenção
(ou da falta dela).
23 Novamente, certas situações sociais durante o enfrentamento da sindemia
covídica nos fornecem excelentes – porém tristes – exemplos dessa confusão
entre, de um lado, uma liberdade individual e absoluta e, de outro lado, uma
liberdade socialmente informada. Entre outros, esse é o caso da insistente
desobediência às recomendações técnicas que proíbem a livre circulação
e ocupação dos espaços públicos. Os que desobedecem alegam que têm a
liberdade de exercer o direito individual de ir e vir. Não compreender ou não
querer compreender a diferença entre a liberdade ligada a um direito universal
transcendente – como é o direito à vida, por exemplo – e a liberdade dependente
de um direito circunstancial é, no mínimo, uma estultice.
24 Tomo essa expressão de empréstimo a Michel Foucault (2018).
25 Recorro a Deleuze (1991, p. 46), para quem a causa imanente é aquela “[...] que
se atualiza em seu efeito. Ou melhor, a causa imanente é aquela cujo efeito a
atualiza, integra e diferencia, [havendo uma] correlação, pressuposição recí-
proca entre a causa e o efeito, entre a máquina abstrata e os agenciamentos
concretos”.
26 O verbo latino conducĕre (cum + ducĕre) do qual em português deriva o verbo
conduzir, tem esse mesmo significado: quando se conduz, não se usa a força,
mas se leva (ducĕre) o outro com o outro, com a aquiescência do outro, com a
vontade do outro.
27 Vem daí a conhecida frase de Foucault: “[...] só se governam homens livres”.
28 O ceticismo é a doutrina segundo a qual nunca se pode chegar a uma certeza
inquestionável sobre qualquer coisa tomada como verdadeira; implica dúvida
permanente e reconhece a incapacidade humana de uma compreensão abso-
luta do que se considera ser a realidade.
29 O tópos da verificação empírica pode ser entendido como o princípio segundo
o qual os enunciados devem guardar uma inequívoca correspondência com as
observações empíricas. Ele não se confunde com o verificacionismo proposto
pelo positivismo lógico do Círculo de Viena (Wittgenstein, 1987).
30 O tópos do debate aberto é entendido como a livre exposição e circulação de
ideias, proposições e teorias.
31 O falibilismo é entendido como o princípio geral de que qualquer proposição,
teoria ou enunciado é sempre falível, ou seja, está sempre sujeito a ser teórica

18 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020.


Veiga-Neto

ou empiricamente comprovado como falso. Assim, o falibilismo vai na con-


tramão do dogma e das certezas últimas. É um quase sinônimo do princípio
do falseacionismo proposto por Karl Popper (Blay, 2007).
32 Denomina-se falseacionismo o princípio criado por William Whewell e Char-
les Peirce, mas amplamente desenvolvido e utilizado por Karl Popper para
distinguir a ciência da pseudociência. Segundo esse princípio, o mérito dos
enunciados e das teorias científicas não está na sua verificação, mas na pos-
sibilidade de serem falseadas e, assim, refutadas.

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Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020. 19


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Alfredo Veiga-Neto possui Graduação em História Natural (1967) e em


Música (1963) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS);
Mestrado em Genética (1975) e Doutorado em Educação (1996) pela mes-
ma Universidade. É Professor Titular da Faculdade de Educação da UFRGS.
Professor Convidado Permanente do PPG-Educação/UFRGS. Foi Vice-Pre-
sidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
(ANPEd). É Coordenador do Grupo de Pesquisa em Currículo e Contempo-
raneidade (UFRGS) e integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa em Inclu-
são (GEPI/UNISINOS/CNPq).
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-7148-3578
E-mail: alfredoveiganeto@gmail.com

Editora-responsável: Carla Vasques

Este é um artigo de acesso aberto distribuído sob os termos de uma Licen-


ça Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Disponível em: <http://
creativecommons.org/licenses/by/4.0>.

20 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109337, 2020.


SEÇÃO TEMÁTICA:
AS LIÇÕES DA PANDEMIA

Um Sentido para a Experiência


Escolar em Tempos de Pandemia
José Sérgio Fonseca de CarvalhoI
I
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo/SP – Brasil

RESUMO – Um Sentido para a Experiência Escolar em Tempos de Pande-


mia. No presente artigo a emergência da pandemia global é analisada como
um fator que torna ainda mais visível e aguda a crise da educação. Isso
ocorre porque à não presencialidade espacial dos alunos agrega-se o esva-
ziamento da dimensão temporal da educação. Esse esvaziamento é tratado
a partir da narrativa da experiência escolar de uma adolescente. Sua inter-
pretação e análise apontam para a necessidade de a experiência escolar
propiciar a seus alunos a oportunidade de habitarem um outro mundo no
tempo e no espaço por meio do acesso e da ressignificação de obras ficcio-
nais e historiográficas nas quais a experiência de viver uma pandemia seja
reconfigurada à luz do presente.
Palavras-chave: Pandemia. Filosofia da Educação. Ricoeur. Arendt.

ABSTRACT – A Meaning for School Experience in Pandemic Times. In this


article, the emergence of the global pandemics is analyzed as a factor that
makes the crisis in education even more visible and acute. The lack of spa-
tial presence of students at schools is compounded by the deflation of the
historical dimension of education. This deflation is then analyzed taking
as its departing point the narrative of a teenager’s school experience. Its
interpretation and analysis point out the need for schools and teachers to
provide their students with opportunities to inhabit another world intime
and space through the access and reframing of fictional works and historio-
graphical studies in which the experience of living in a pandemic context is
reconfigured in the light of the present.
Keywords: Pandemics. Philosophy of Education. Ricoeur. Arendt.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109144, 2020. 1


http://dx.doi.org/10.1590/2175-6236109144
Um Sentido para a Experiência Escolar em Tempos de Pandemia

[...] eu pensava mais modestamente no meu livro, e se-


ria inexato dizer que pensava nos que o leriam, em meus
leitores. Porque, a meu ver, eles não seriam meus leitores,
mas leitores de si mesmos, não sendo meu livro senão uma
espécie de lente de aumento, daquelas que o oculista de
Combray propunha a um comprador; o meu livro, graças
ao qual eu lhes forneceria uma maneira de lerem-se a si
mesmos 1 (Marcel Proust).

Apresentação do Problema
No prefácio de sua mais importante coletânea de ensaios – En-
tre o passado e o futuro –, Arendt enuncia assumir como pressuposto a
tese de que o pensamento político emerge dos incidentes da experiência
viva e a eles deve permanecer ligado , já que são os únicos marcos por
onde pode-se obter orientação (Arendt, 2006, p. 14). Trata-se, em primei-
ro lugar, de tornar patente uma convicção que orientou a elaboração de
todas as suas obras: as categorias do pensamento político herdadas da
tradição se mostraram inadequadas para compreender os fenômenos
que emergiram com a ascensão dos regimes totalitários e cujos elemen-
tos, a despeito da derrocada do fascismo e do nazismo, permanecem a
nos ameaçar, ainda que sob novas formas (como a mentira deliberada e
organizada, uma forma de ação política criada pelo nazismo e que hoje
se apresenta no fenômeno das fake news). Assim, em face da ineficácia
dessas categorias, restou-nos recorrer à capacidade de reflexão como
forma de enfrentar o desafio de buscar um sentido para os aconteci-
mentos políticos que abalaram nossas convicções e práticas. Mas, para
além dessa constatação, sua afirmação representa também uma toma-
da de posição em relação à natureza da tarefa que Arendt atribui à re-
flexão filosófica: pensar o presente, procurando decifrar o significado
de nossas experiências mais recentes (Arendt, 2011, p. 6). A reflexão sobre
as condições do presente implica, em sua perspectiva, um esforço in-
telectual que visa compreender tanto aquilo de que padecemos – que,
portanto, sobre nós se abate, como uma pandemia – quanto a forma
pela qual respondemos ao desafio de viver uns junto aos outros em um
mundo comum sujeito à contínua transformação. Por essa razão, mais
do que um mero esforço intelectual, o exercício de buscar compreender
os fenômenos políticos é uma forma de se reconciliar com a realidade e
de tentar, a despeito de tudo, sentir-se em casa no mundo (Arendt, 2008,
p. 330).
Que desafios, pois, a experiência de viver uma pandemia global
coloca à reflexão daqueles que abraçaram a educação – concebida em
seu sentido lato como a transmissão intergeracional de um legado de
experiências e realizações simbólicas e materiais – como sua profis-
são e modo de habitar o mundo comum? Essa interrogação, que ser-
virá como fio condutor deste exercício de pensamento, não terá como
seu objeto central as radicais transformações que se impuseram às
práticas docentes – como as aulas remotas – nem seus supostos efeitos
nos processos de aprendizagem ou nas novas relações pedagógicas e

2 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109144, 2020.


Carvalho

institucionais que engendra. Não que estes aspectos sejam de menor


importância. Eles são cruciais e podem mesmo representar a dissolu-
ção da forma escolar, tal como ela se configurou a partir do século XVI
enquanto uma alternativa crítica à educação doméstica (Lahire, 2008).
Mas, a despeito do reconhecimento da importância dessas questões, o
que aqui nos interessa tomar como objeto de reflexão são questões vin-
culadas ao próprio sentido da experiência escolar nesse novo contex-
to: que recursos simbólicos pode a escola oferecer a esses jovens que,
subitamente, foram impelidos a enfrentar uma situação que nem eles
nem aqueles que se encarregam de sua educação poderiam vislumbrar?
Como poderiam as gerações mais velhas tomar para si a responsabili-
dade de pensar a pandemia e, com esse gesto, convidar os mais jovens a
fazê-lo em diálogo com suas próprias experiências e expectativas?
É evidente que essas interrogações supõem que não se trata sim-
plesmente de encontrar novas maneiras de se fazer precisamente o
mesmo que se fazia antes de a epidemia se impor como um aconteci-
mento que inviabilizou as formas prévias de convívio intra e intergera-
cional. A ruptura no cotidiano da educação forçou professores e alunos
a enfrentarem uma situação que não hesitaríamos em classificar como
uma crise, desde que a acepção conferida a esse termo não se reduza a
seus usos mais correntes que o identificam de forma imediata às no-
ções de declínio, decadência ou ocaso. Uma crise, nos lembra Arendt,
dilacera fachadas, oblitera preconceitos e põe a nu o fato de que perdemos
as respostas em que de ordinário nos apoiávamos, sem que sequer sou-
béssemos que eram repostas a problemas básicos da convivência huma-
na (Arendt, 2006, p. 117). Nesse sentido, enunciar a existência de uma
crise ética, por exemplo, não representa afirmar uma decadência nos
padrões de conduta moral, mas simplesmente constatar que os critérios
aos quais as gerações anteriores recorriam para discernir entre o certo
e o errado; entre o nobre e o vil já não dão conta das experiências e de-
safios do presente.
Por essa razão, a emergência de uma crise nos compele a voltar às
questões mesmas. Ela nos impele a examinar, por exemplo, os critérios
por meio dos quais julgamos o valor ético de atos e palavras, sem poder
contar com o apoio de uma tradição, ou seja, de uma referência estável
que seleciona e nomeia parâmetros de julgamento e de ação, que, por-
tanto, lega, preserva e indica onde se encontram os tesouros do passado
(Arendt, 2006, p. 5) que poderiam ser tomados como referências para
compreender o presente. É nesse sentido que poderíamos interpretar
o aforisma de René Char, segundo o qual, nossa herança nos foi lega-
da sem testamento (Arendt, 2006, p. 9): uma ruptura da tradição sempre
implica um desafio no que concerne à relação que estabelecemos entre
um legado de realizações do passado, os horizontes de expectativas em
relação ao futuro e a ação que se desenrola no presente. Um desafio que
comporta tanto riscos como oportunidades:
A inegável perda da tradição no mundo moderno não im-
plica, em absoluto, a perda do passado, pois tradição e
passado não são o mesmo. [...] Com a perda da tradição,

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109144, 2020. 3


Um Sentido para a Experiência Escolar em Tempos de Pandemia

perdemos o fio que nos guiou com segurança através dos


vastos domínios do passado; esse fio, porém, foi também
a cadeia que acorrentou cada sucessiva geração a um as-
pecto pré-determinado do passado. Poderia ocorrer que
somente agora o passado se abrisse a nós com inesperada
novidade e nos dissesse coisas que ninguém teve ainda
ouvidos para ouvir. Mas não se pode negar que, sem uma
tradição firmemente ancorada [...] toda dimensão do pas-
sado foi também posta em perigo. Estamos ameaçados de
esquecimento, e um tal olvido significaria que, humana-
mente falando, nós nos despojaríamos de uma dimensão:
a dimensão da profundidade na existência humana. Pois
memória e profundidade são o mesmo, ou antes, a pro-
fundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser
através da recordação (Arendt, 2006, p. 93-94).
O que significa, pois, educar em um mundo despojado da tradi-
ção e incerto quanto a seus horizontes de expectativas? Em primeiro
lugar, implica reconhecer que o presente se torna problemático não só
porque perdemos as certezas das sociedades tradicionais como também
porque “[...] algumas das esperanças que a modernidade nos havia lega-
do parecem hoje se esvanecer” (Fabre, 2011, p. 7). Mas, se há perdas de
referências e de critérios compartilhados, há também novas oportuni-
dades para o pensamento e a ação. A ruptura da tradição nos permite
experimentar outras formas de habitar os vastos domínios do passado,
conferindo novas significações ao que ocorreu ou trazendo à luz o que
havia sido condenado à escuridão do esquecimento. É porque a tradição
se rompeu e o mundo tornou-se tão problemático que, enfim, podemos
escovar a história a contrapelo, para recorrer à bela imagem de Benjamin
(1994, p. 225). Podemos, por exemplo, trazer à luz, nas práticas escola-
res, a grandeza de uma figura até então ocultada pela história, como po-
eta e abolicionista Luiz Gama, salvando da ruína do tempo não só suas
obras, mas sobretudo a relevância política de suas palavras e de seus
atos por meio do ensino. Nesse sentido, uma crise – uma cisão entre
as respostas que herdamos do passado e os problemas e questões que
emergem no presente – pode representar um convite ao pensamento e
à ação. O que a seguir proponho é, pois, um exercício de pensamento
acerca das circunstâncias do presente que tomará como seu elemento
desencadeador a narrativa da reação de uma jovem adolescente à forma
como sua escola tem lidado com a pandemia.

A Narrativa do Incidente e a Busca de um Sentido


É na configuração da trama ou do enredo (intrigue) de uma nar-
rativa, nos esclarece Ricoeur (2010a), que operamos a síntese capaz de
organizar e dar sentido ao aparente caos de acontecimentos aleatórios,
encadeando-os não como mera sucessão (um após o outro), mas como
elementos interconectados (um em razão do outro) capazes de veicular
o sentido que atribuímos a uma experiência. A configuração de uma
trama narrativa tem, segundo Ricoeur,

4 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109144, 2020.


Carvalho

[...] a capacidade de extrair uma história de múltiplos in-


cidentes ou de transformar os múltiplos incidentes em
uma história [...] a história narrada é sempre mais do que a
enumeração, numa ordem simplesmente serial ou suces-
siva, dos incidentes que ela organiza em um todo inteligí-
vel (Ricoeur, 2010b, p. 198).
Narrar implica, pois, configurar, na forma de uma história ou re-
lato, a experiência viva dos incidentes e acontecimentos a que estamos
sujeitos no transcurso de nossa existência. Assim, a narrativa nos faculta
compartilhar intersubjetivamente um saber acerca do “[...] modo como
alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e
do modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece.
[...] Não se trata [de expor] a verdade do que são as coisas, mas o sentido
ou o sem-sentido do que nos acontece” (Larrosa, 2002, p. 27). Assim, a
despeito de sua natureza pessoal e contingencial, a experiência obje-
tivada em uma narrativa compartilhável adquire a potencialidade de
trazer à tona aspectos fundamentais da condição humana, engendran-
do “[...] uma espécie de inteligência que se pode chamar de inteligência
narrativa, e que está muito mais próxima da sabedoria prática e do juízo
moral do que da ciência e do uso teórico da razão” (Ricoeur, 2010b, p.
200). Nesse sentido, compreender e interpretar uma narrativa implica
captar e traduzir a inteligibilidade prática nela configurada, conferindo
à história narrada uma dimensão discursiva conceitual a partir de seus
elementos centrais e da forma como nela estão encadeados.
***
Embora sua aula remota já houvesse terminado há mais de meia-hora,
Maya permanecia em seu quarto, ignorando que chegara a hora do almo-
ço. Bati a sua porta e ela a abriu com uma expressão que revelava mais
tédio do que contrariedade. Respondeu a minha pergunta de forma tão
automática quanto à que recorri em minha indagação. Sim, tudo havia
corrido normalmente na aula, me assegurou. Rompi com o automatismo
das frases feitas e lhe indaguei acerca de seu desânimo, desta feita com
meus olhos cravados nos seus, como quem interroga a alma. Não tinha
sido uma aula regular, ela me explicou, mas um debate, como sempre
acontece no horário que denominam ‘espaço de debate’. O tema? Como
os alunos se sentiam em face da pandemia que já durava meses. Tal como
na semana anterior, e nas que a antecederam, os professores retomavam a
mesma pergunta e os alunos repetiam as mesmas respostas, reproduzin-
do clichês midiáticos. Procurei lhe explicar que esse gesto revelava uma
preocupação sincera da escola com o bem-estar de seus alunos; que eles
sabiam que a situação era excepcional e exigia cuidados. Ela riu, não sem
sarcasmo, e pôs um ponto final contundente ao meu esforço pedagógico:
‘Pai, tem um monte de gente morrendo, a gente fica olhando uma tela, fa-
zendo exercícios de matemática e de inglês. Depois eles perguntam como
estamos nos sentindo! Ah, faz favor...vamos almoçar’.
***
De forma breve e singela, a experiência de Maya – aqui reificada
em uma narrativa – toca em alguns dos mais significativos desafios e

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109144, 2020. 5


Um Sentido para a Experiência Escolar em Tempos de Pandemia

dilemas que somos obrigados a enfrentar nesta crise: a impotência que


acomete a quase todos nós, professores, ao tentarmos transpor para o
plano bidimensional da tela (que, significativamente, omite o da pro-
fundidade) a experiência que acumulamos ao lidar com a presenciali-
dade dos corpos de nossos alunos. Já não mais podemos, por exemplo,
recorrer a capacidade de ler em seus gestos e rostos (agora obliterados
por uma foto ou uma letra) o grau de êxito ou de fracasso de uma estra-
tégia de ensino. O isolamento de cada aluno em seu espaço privado já
não mais permite que uma sala de aula se configure como uma totali-
dade dotada de características próprias e não redutíveis aos indivíduos
que a compõem. Já não nos dirigimos mais a uma turma específica, mas
a uma somatória de indivíduos que, a partir da privatividade de suas
casas, compartilham um mesmo espaço virtual. E, a despeito de tudo
isso, faz-se necessário que a escola continue sendo uma escola, que os
professores e professoras ensinem e que creiam que seus alunos pode-
rão aprender algo.
Mas as transformações no que concerne à dimensão da presen-
cialidade na experiência escolar não se limitam ao seu aspecto espacial.
Elas também se fazem sentir em um âmbito que condensa o próprio
sentido do processo educativo: o vínculo temporal que se tece entre as
gerações. Habitar o presente sempre significa situar-se entre um espaço
de experiências do passado e um horizonte de expectativas em relação ao
futuro (Koselleck, 2006), cabendo aos educadores tanto a responsabili-
dade pela durabilidade de um legado de realizações simbólicas como
sua ressignificação e renovação no presente. Educar implica, pois,
transmitir às novas gerações experiências simbólicas que nos chegam
dos vastos domínios do passado e que são apresentadas e ressignifica-
das, criando as bases para sua durabilidade e renovação no futuro. As-
sim procede um professor de filosofia que compartilha com seus alunos
uma reflexão tecida há 2.500 anos; um professor de literatura que lê um
poema de Drummond ou trabalha uma canção dos Racionais MC’s, um
alfabetizador que inicia crianças na prática milenar da escrita alfabéti-
ca. Por meio do ensino de uma disciplina, área do saber ou prática social
específica, um professor atualiza e ressignifica não só seus conteúdos
peculiares, mas, sobretudo, a natureza do vínculo afetivo e histórico
que estabelece com essas áreas de saber, conhecimento e compreensão
que caracterizam um certo legado histórico que a cultura escolar esco-
lheu preservar da ruína do tempo por meio do ensino.
Assim, a noção de uma transmissão simbólica intergeracional,
aqui evocada como sentido da ação educativa, não se confunde com
a mera capacidade de comunicação sincrônica entre indivíduos; essa
faculdade que os humanos compartilham com várias outras espécies
animais e que lhes permite abolir a distância entre os corpos a fim de
comunicar informações a seus semelhantes. Diferentemente dessa co-
municação que opera transcendendo e abolindo distâncias espaciais –
como a aula remota ou a dança das abelhas –, a transmissão temporal
de uma cultura é um fenômeno eminentemente humano, que opera no
tempo, vinculando as gerações entre si e com a dimensão histórica do
mundo simbólico e material que habitam. Assim, por exemplo, os hu-

6 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109144, 2020.


Carvalho

manos transmitem a seus filhos não somente uma carga genética, mas
um nome que ao mesmo tempo identifica e vincula simbolicamente
aquele que o recebe a seus ancestrais. E o mesmo se passa em relação
à transmissão – e, claro, à recepção, como sua contrapartida necessá-
ria – de saberes, práticas, princípios e conhecimentos que configuram a
dimensão histórica da existência humana em sua complexa dialética de
conservação e renovação de um legado intersubjetivo comum.
A própria noção de geração (cuja aplicabilidade a outras espécies
é mais metafórica do que descritiva) se assenta precisamente sobre esse
vínculo temporal que marca tanto continuidade como ruptura. Mes-
mo nos casos em que a ruptura geracional parece ser bastante radical
– como a da década de sessenta do século passado – é somente por opo-
sição ao passado, que permanece e nos afeta, que se pode falar da eclo-
são de algo novo, inaudito e até então imprevisível nas relações entre
gerações. É, pois, nesse entrecruzamento entre o espaço de experiên-
cias simbólicas do passado e o horizonte de expectativas do futuro que
se tece a presencialidade temporal do processo formativo daqueles que
acabam de chegar a um mundo simbólico compartilhável. Mas como
operar essa transmissão simbólica em um contexto no qual a trans-
missibilidade da experiência é colocada em xeque (Benjamin, 1994, p.
1142) – e no qual o horizonte de expectativas se encontra reduzido aos
temores mais imediatos, comportando mais incertezas do que apostas?
Nesse sentido, é como se a divisa punk que se espalhou pelos mu-
ros da década de oitenta – No Future! – abandonasse seu papel de pro-
testo contra a crença na noção de progresso como significado do devir
histórico para se inscrever como expressão de uma resignação em face
do caráter sombrio do presente. Vivemos a experiência de um tempo
que já não mais crê, como o fazia Políbio, que educamos os jovens para
que sejam dignos de seus antepassados. Mas que tampouco crê, como
os modernos, que a educação seria um instrumento necessário e sufi-
ciente para a construção de uma nova ordem no mundo (seja ela a socie-
dade sem classes, a era científica e tecnológica ou qualquer outra crença
teleológica acerca do sentido da história).
É bem verdade que esse diagnóstico antecede a emergência da
pandemia. Mas aquilo que era até então apenas uma categoria teórica
a mobilizar um número restrito de intelectuais – como a noção de pre-
sentismo em Hartog (2013) – tomou uma nova dimensão à medida que
passou a habitar o cotidiano da experiência docente. Como educar em
uma sociedade na qual a ânsia pelo gozo do presente tende a conce-
ber o legado simbólico do passado como obsoleto e na qual o horizonte
de expectativas parece se circunscrever ao tempo das vidas individu-
ais que nela hoje habitam? Somos, pois, testemunhas de uma transfor-
mação radical na relação que as novas gerações estabelecem com sua
experiência temporal, cujos efeitos atingem o próprio significado que
atribuímos à ação educativa e não simplesmente os meios aos quais re-
corremos para sua efetivação. Trata-se de uma experiência existencial
que transcende a pandemia, mas que com ela tomou uma visibilidade
até então inusitada.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109144, 2020. 7


Um Sentido para a Experiência Escolar em Tempos de Pandemia

Isso porque, para além de exigir novos meios para atingir finali-
dades historicamente associadas à formação escolar, a pandemia fez vir
à tona um problema bem mais radical que, em alguma medida, pode ser
entrevisto nos comentários finais de Maya. Sua crítica acerca da ausên-
cia de significado das atividades que lhe haviam sido propostas, mais
do que uma queixa individual, pode ser interpretada como uma inter-
rogação que condensa a perplexidade de toda uma geração: afinal, em
face das condições concretas que vivemos, a experiência escolar ainda
tem algum sentido?

Um Sentido para a Experiência Escolar em Tempos de


Pandemia
A interrogação acerca do sentido da experiência escolar sob as
condições do presente exige, contudo, a elucidação de dois pressupos-
tos nela implícitos. O primeiro diz respeito à própria natureza do em-
preendimento: buscar um sentido para a experiência viva do presente
não se confunde com procurar a verdade de um fato. Se esta última é a
ideia diretriz – embora jamais plenamente lograda – das investigações
científicas, a busca pelo sentido é, antes, uma tarefa do pensamento;
um desafio que se dirige, pois, à reflexão e toma como seu objeto a ex-
periência. Em segundo lugar, nos termos em que foi formulada, ela re-
quer uma breve distinção analítica entre os usos das noções de sentido
e finalidade.
A noção de finalidade, por oposição à de sentido, opera sempre a
partir de uma lógica instrumental e oriunda da experiência humana da
fabricação, na qual algo é produzido como um meio cujo fim é preesta-
belecido e exterior ao próprio processo de sua produção. Assim, produz-
se uma mesa cuja finalidade reside em um objetivo que lhe é exterior
(expresso pela questão: para que isto serve?): apoiar o computador que
se está a utilizar, por exemplo. Por outro lado, o uso do computador é
um novo meio para um fim que lhe é igualmente exterior, como escre-
ver um artigo. Cria-se, assim, uma cadeia infinita de meios e fins, des-
pojados de qualquer sentido ou significado intrínseco, já que o artigo,
também ele, se constituirá como um meio para outro fim previamente
estabelecido (Carvalho, 2018). Já a noção de sentido faz referência aos
significados intrínsecos que podemos atribuir a uma prática ou mesmo
a um objeto. Uma relação de amizade, por exemplo, não se pauta por
qualquer finalidade extrínseca a seu próprio cultivo. Conceber a ami-
zade como um meio para obter um outro fim qualquer – o emprésti-
mo de um automóvel, por exemplo – implica em ignorar ou degradar
o significado da própria noção de amizade. É evidente que um amigo
pode eventualmente nos emprestar um automóvel, mas a razão de ser
de uma relação de amizade não pode ser equacionada ou compreendida
a partir de finalidades instrumentais preestabelecidas. Nesse sentido,
a amizade não tem uma finalidade instrumental, embora possa ter um
profundo significado ou sentido em nossa existência. E o mesmo pode
ocorrer até mesmo em nossa relação com certos objetos com os quais

8 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109144, 2020.


Carvalho

nos vinculamos não a partir de qualquer finalidade instrumental, mas


a partir do significado pessoal que lhe atribuímos. Podemos, por exem-
plo, guardar e cuidar de um objeto – como a embalagem de um bombom
– por conta de sentido afetivo que lhe atribuímos, a despeito de ele já
não mais possuir qualquer valor de uso ou tampouco de troca.
Esse exemplo, embora trivial, é importante porque ressalta que
tanto a finalidade como o sentido não são propriedades imanentes aos
objetos ou às práticas sociais, mas antes indicam diferentes formas
pelas quais com eles nos relacionamos. Vale ainda ressaltar que essas
modalidades de relacionamento não são mutuamente exclusivas, pois
comportam diversos graus e matizes de intersecção. Assim, podemos
nos relacionar com a poesia de uma forma instrumental – se a estuda-
mos por seus eventuais efeitos na aprovação no exame vestibular – ou
nela vislumbrando um sentido existencial intrínseco, impossível de ser
estimado por qualquer parâmetro exterior à própria experiência estéti-
ca que nos proporciona. Assim, não só é possível que uma mesma pes-
soa alterne essas duas modalidades de relação com um único objeto,
como a partir de uma delas, passe a cultivar a outra (como ocorre quan-
do o vínculo com a literatura, por exemplo, deixa de ser uma exigên-
cia da vida escolar para se constituir em uma atividade que cultivamos
independentemente de qualquer exigência ou finalidade extrínseca à
própria experiência que nos proporciona).
Esse exemplo de intersecção entre possíveis modalidades de re-
lação com a literatura é particularmente importante para refletirmos
acerca de sua presença no âmbito da experiência escolar. É evidente
que um processo educacional pode ter diversas finalidades e compor-
tar uma variedade de sentidos para os agentes nele envolvidos. Mas é
igualmente evidente que temos experienciado um aparente paradoxo
nesse campo: à medida em que se multiplicam as finalidades atribuí-
das à escola – que vão do domínio de certas competências à prepara-
ção do cidadão democrático ou do empreendedor social – seu potencial
sentido parece se esvair, abrindo espaço para toda sorte de niilismos.
Dentre as múltiplas razões para esse fenômeno, uma parece merecer
especial atenção no contexto em que vivemos: a crença pedagógica no
protagonismo dos alunos como “[...] forma de realização em escala co-
letiva do ideal cartesiano de rejeitar todos os saberes transmitidos pelos
seus mestres a fim de edificar suas certezas a partir do cógito” (Blais;
Gauchet; Ottavi, 2016, p. 51). Não se trata, é evidente, de postular a exis-
tência de uma pedagogia cartesiana, mas de trazer à tona os efeitos nas
práticas e nos discursos pedagógicos contemporâneos da recepção des-
sa imagem cartesiana de um sujeito soberano e autossuficiente (Carva-
lho, 2001), que de si mesmo retiraria a autocompreensão da existência.
Tomemos como exemplo a atividade proposta aos alunos no epi-
sódio narrado por Maya. Podemos considerar que seu objetivo é louvá-
vel: fornecer aos alunos a oportunidade de significar a própria experi-
ência. Não obstante, ela toma como pressuposto que esse significado
será alcançado pelo exame imediato de si e das condições em que se
vive, como se o sujeito a ele chegasse em uma operação análoga ao có-

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109144, 2020. 9


Um Sentido para a Experiência Escolar em Tempos de Pandemia

gito cartesiano, cuja consciência de si advém do afastamento do mundo


em que se insere e que o precedeu. Ocorre contudo, que a intuição des-
se cógito soberano – que deriva a certeza de sua existência do próprio
pensamento – é uma verdade vã e vazia, posto que “[...] a reflexão só
poderia ser uma apropriação de nosso ato de existir quando efetuada
por meio de uma crítica voltada às obras e atos que são signos desse ato
de existir”, conforme nos alerta Ricoeur (2013, p. 41. Tradução nossa).
Noutras palavras, a compreensão da experiência – que sempre é um ato
de autocompreensão – só ocorre pela apropriação – e posterior ressig-
nificação à luz do presente – das obras da cultura (sejam elas literárias,
artísticas, historiográficas, musicais, científicas etc.) que se oferecem a
nossa interpretação:
A existência só vem à palavra, ao sentido e à reflexão
como resultante de uma contínua exegese de todas as
significações que se manifestam no mundo da cultura.
A existência não se torna um ‘si’ – humano e adulto – se-
não apropriando-se desse sentido que reside inicialmen-
te ‘fora’, em obras, instituições, monumentos de cultura
onde a vida do espírito é objetivada (Ricoeur, 2013, p. 46.
Tradução e grifos nossos).
Assim, a operação por meio da qual um sujeito atribui sentido à
experiência vivida decorre não do isolamento e do exame de si, mas de
um encontro entre o mundo da obra e o mundo do leitor (Ricoeur, 2010a).
Ora, uma obra – seja ela um texto, uma imagem, uma canção, uma in-
vestigação historiográfica... – condensa uma experiência em uma totali-
dade (o mundo da obra). Mas é só a partir de sua leitura, de sua recepção,
de sua apropriação e de seus efeitos no mundo do leitor que ela supera
seu caráter formal de um objeto do passado para ganhar vida e sentido
no presente. É, pois, interpretando signos que se encontram fora de nós
mesmos, reificados em obras que reconfiguram a experiência nas mais
diversas linguagens, que alguém se constitui como sujeito ou acede a si
mesmo, nas palavras de Ricoeur (2013). O processo educativo é, nesse
sentido, concebido como uma espécie de hermenêutica, tendo por de-
safio a interpretação e a reinterpretação de símbolos cujos significados
jamais são dados de forma definitiva, mas estão constantemente sujei-
tos a novas apropriações por parte daqueles que com eles dialogam em
cada momento histórico. É, pois, ao habitar esse universo de símbolos
de uma cultura que nos capacitamos a interpretar o mundo, a nós mes-
mos e aos demais e, assim, atribuir sentido e significado às nossas experi-
ências (Bárcena; Mèlich, 2000, p. 104. Tradução nossa).
Nesse sentido, mais profícuo do que interrogar os alunos acerca
de seus sentimentos em relação à experiência pessoal na pandemia se-
ria lhes convidar a examinar como aqueles que os precederam no mun-
do reconfiguraram simbolicamente suas experiências em uma situação
análoga. Nos romances de Garcia Márquez ou de Camus; nos quadros
de Egon Schiele ou de Munch, nas obras de Shakespeare ou de Ingmar
Bergman encontramos diferentes formas de refiguração artística das
dores, dos temores e do isolamento enfrentados em face das ameaças

10 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109144, 2020.


Carvalho

de uma epidemia; assim como travamos contato com a grandeza e a


coragem de homens e mulheres – reais ou fictícios – que fazem des-
se incidente uma oportunidade para a afirmação da dignidade da ação
humana (como Dr. Rieux, o protagonista da obra de Camus, A Peste).
A essas obras literárias, teatrais, artísticas, cinematográficas, podemos
adicionar as inúmeras obras historiográficas que tomam como objeto a
emergência de tragédias sanitárias que ceifaram milhões de vidas hu-
manas e as formas pelas quais as diferentes sociedades as enfrentaram.
Disponibilizar esses monumentos da cultura onde a vida do espíri-
to é objetivada para as novas gerações significa oferecer-lhes uma sólida
oportunidade de elaborar o vivido, pensar o presente e lhe atribuir um
sentido a partir de um diálogo com produções culturais que reificaram
– de forma ficcional ou historiográfica – experiências análogas. É, pois,
com os pés fincados no presente, mas em diálogo com obras que nos
chegam do passado, que tecemos, aqui e agora, certos horizontes de ex-
pectativas para o futuro. Talvez não seja por mero acaso que, ao longo
de mais de seis meses de isolamento, a única tarefa que Maya quis co-
migo compartilhar foi um documentário sobre a Peste Negra que havia
assistido a pedido de seu professor de história. Ao terminar de revê-lo
pela terceira vez, indagou a mim e a sua mãe: Vocês acham que vivemos
uma nova idade média? Essa pandemia também vai durar séculos?
Por mais difícil que tenha sido para um pai ouvir essas perguntas
de uma filha ainda adolescente, finalmente senti que ela, com os pés no
presente, interpretava os signos e símbolos que lhe chegavam do pas-
sado e, a partir deles, tecia suas expectativas e seus temores quanto ao
futuro. E ao assim fazer conferia à sua experiência escolar um sentido.

Uma Breve Palavra Final


As reflexões aqui tecidas, provocadas por um acontecimento
específico do presente, não têm a pretensão de figurarem como uma
resposta geral ao niilismo que ameaça o mundo moderno e suas ins-
tituições, como a escola pública. Não obstante, creio que a eventual
fecundidade de alguns dos princípios aqui enunciados pode se esten-
der para além da especificidade deste contexto e de seus efeitos mais
imediatos nos processos de escolarização. Dentre esses princípios está
a crença, compartilhada com Ricoeur, de que “[...] a prática da narrativa
consiste numa experiência de pensamento mediante a qual nos exerci-
tamos a habitar mundos estranhos a nós” (Ricoeur, 2010a, p. 422). E a
convicção, dela derivada, de que a tarefa da educação – mais do que a
conformação dos educandos às supostas exigências práticas do mundo
contemporâneo – é a de lhes facultar habitar outros mundos. Nisso resi-
de, a meu ver, a razão de ser da escola; seu mais profundo sentido e sua
dignidade. É por meio dessa possibilidade eminentemente humana – a
de habitar mundos que são estranhos ao tempo e ao espaço que nos foi
dado viver – que a experiência e a imaginação humanas podem atuali-
zar em cada jovem aluno a capacidade, ontologicamente radicada em
todos os seres humanos, de romper com toda sorte de determinações

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109144, 2020. 11


Um Sentido para a Experiência Escolar em Tempos de Pandemia

e começar algo novo. Uma capacidade que, como nos lembra Arendt,
opera como “[...] um lembrete sempre presente de que os homens, em-
bora tenham de morrer, não nasceram para morrer, mas para iniciar
algo novo” (Arendt, 2005, p. 194).

Recebido em 11 de outubro de 2020


Aprovado em 12 de novembro de 2020

Notas
1 No original: “[…] je pensais plus modestement à mon livre, et ce serait même
inexact que de dire en pensant à ceux qui le liraient, à mes lecteurs. Car ils ne
seraient pas, selon moi, mes lecteurs, mais les propres lecteurs d’eux-mêmes,
mon livre n’étant qu’une sorte de ces verres grossissants comme ceux que
tendait à un acheteur l’opticien de Combray ; mon livre, grâce auquel je leur
fournirais le moyen de lire en eux-mêmes” (Marcel Proust, Le temps retrouvé,
[1927], 1989, p. 610, tradução e grifos nossos).
2 A perda da transmissibilidade da experiência é trazida à tona de forma densa
e poética na interrogação com a qual Benjamin (1994) fecha seu primeiro pa-
rágrafo do texto Experiência e pobreza: “[...] quem tentará, sequer, lidar com a
juventude invocando sua experiência?” (p. 114).

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12 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109144, 2020.


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José Sérgio Fonseca de Carvalho é professor Titular de Filosofia da Educa-


ção na Universidade de São Paulo (USP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0074-0872
E-mail: jsfcusp@usp.br

Editora-responsável: Carla Vasques

Este é um artigo de acesso aberto distribuído sob os termos de uma Licen-


ça Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Disponível em: <http://
creativecommons.org/licenses/by/4.0>.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109144, 2020. 13


SEÇÃO TEMÁTICA:
AS LIÇÕES DA PANDEMIA

Comunicação Educativa: perspectivas


e desafios com a COVID-19
Joaquim José Jacinto Escola I
I
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Porto – Portugal

RESUMO – Comunicação Educativa: perspectivas e desafios com a CO-


VID-19. A reflexão sobre a comunicação educativa instiga-nos a refletir so-
bre a importância da comunicação humana e das mediações tecnológicas
na educação. A situação pandémica que atinge o mundo colocou-nos um
conjunto de desafios sem paralelo. A história da comunicação, (Cloutier,
2001) bem como a periodização das tecnologias na educação (Costa, 2007)
comprovam uma estreita relação entre os tipos de comunicação, os dispo-
sitivos utilizados, e as respostas disponibilizadas pela comunicação edu-
cativa em face dos desafios que a COVID-19 colocou, tendo como pano de
fundo o contexto de ensino português.
Palavras-chave: Comunicação Educativa. Tecnologia Educativa. Socie-
dade do Conhecimento. Tecnologias da Informação e Comunicação. CO-
VID-19.

ABSTRACT – Educational Communication: perspectives and challenges


with COVID-19. The reflection on educational communication encourages
us to reflect on the importance of communication and technological me-
diations in education. The pandemic situation that affects the world has
presented us with an unparalleled set of challenges. The history of com-
munication (Cloutier, 2001) as well as the periodization of Technologies
in education (Costa, 2007) prove a close relationship between the types of
communication, the devices used, and the responses made available by
educational that the COVID-19 put it, against the backdrop of the portu-
guese teaching context.
Keywords: Educational Communication. Educational Technology. Know-
ledge Society. Information and Communication Technology. COVID-19.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020. 1


http://dx.doi.org/10.1590/2175-6236109345
Comunicação Educativa

Introdução
Sociedade pós-moderna (Lyotard, 1987, 1989), Sociedade Trans-
parente (Vattimo, 1991), Sociedade da Informação e Comunicação, So-
ciedade informacional, Sociedade em Rede (Castells, 1989), sociedade
do conhecimento, Telepolis (Echeverria, 1994), Tecnopolis (Postman,
1994) são algumas da inúmeras propostas que têm emergido, num mo-
mento ou outro, para caracterizar o tempo em que vivemos. Creio que a
multiplicidade das designações atesta a complexidade do tempo e a ma-
nifesta dificuldade de encontrar um elemento que seja verdadeiramen-
te agregador. Em todas elas permanecem dimensões que são comuns
e que nos permitem identificar o que é deveras essencial no tempo em
que vivemos. Conscientes de que o projeto da modernidade não se cum-
priu, apesar de um dos mais reconhecidos arautos da pós-modernidade
(Lyotard, 1987, 1989) terem pretendido avançar para um tempo que se
pretende novo.
Vivemos num mundo avassalado por uma massa assustadora de
informação que chega a qualquer um através de múltiplas fontes de
informação e de forma ininterrupta. O desenvolvimento tecnológico
trouxe consigo um inaudito progresso nos dispositivos tecnológicos
que vão conquistando um lugar fundamental nos processos de media-
ção comunicacional. A proposta de leitura da história da comunicação
com que nos brindou Jean Cloutier, em dois momentos fundamentais,
ainda que distanciados quase três décadas no tempo, continua a ser de-
cisiva para a compreensão do papel da comunicação educativa. A Era de
EMEREC ou a Comunicação Audio-scripto-visual na hora dos self-media
(1979) e Petit traité de communication. EMEREC à l´heure des technolo-
gies numeriques (2001) são, por isso mesmo, duas obras fundamentais
para a compreensão da relação entre a comunicação, as mediações tec-
nológicas e o vasto território da educação.
Neste artigo, somos desafiados a pensar o lugar da comunicação
educativa numa tripla dimensão. Conceptualização do conceito de co-
municação educativa, discussão em torno da relevância crescente das
mediações tecnológicas no processo de ensino e aprendizagem e, por
fim, os desafios que a pandemia do COVID-19 trouxe à comunicação
educativa no contexto português.

A Comunicação Educativa
Cada vez é mais evidente o lugar que a comunicação detém na
contemporaneidade. É-nos dado observar a gradual consolidação da
sociedade da informação e da comunicação, enterrando definitivamen-
te as decadentes sociedades industriais. A própria designação de pós-
industrial (Bell, 1976), pós-moderna (Lyotard, 1987, 1989), atesta a mu-
dança paradigmática em que a matéria prima passa a ser a informação.
A palavra comunicação tem a sua origem no adjectivo latino com-
munis, com o sentido de posse em comum de algo por vários indivídu-
os. É frequente encontrarmos nos dicionários o vocábulo associado às

2 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020.


Escola

ideias de união que se pode construir entre espaços físicos como são os
passeios, escadas, ruas, canais, ou outros, ou num universo humano a
afinidade no trato e relação entre duas pessoas.
É no espaço da reflexão antropológica de cariz filosófica que bus-
camos e encontramos verdadeiramente uma fundamentação adequada
à compreensão da comunicação educativa. A filosofia contemporânea,
pelo menos alguns dos mais significativos movimentos, distinguiu-se
por uma recusa muito clara de um pensamento herdeiro da modernida-
de, nutrido de um gélido racionalismo que eleva e absolutiza a categoria
de sujeito autocentrado, auto-suficiente, egologicamente construído
e legitimado num crescente deserto de seres atomizados e isolados. O
pensamento cartesiano consagra um lugar fulcral ao sujeito (subjec-
tum), o cogito, enquanto ser racional, ser pensante, garante da verdade
de todos os raciocínios. Prisioneiro desta perspectiva poderíamos con-
siderar, de uma forma global, que a concepção tradicional de educação
tendeu a privilegiar nos processos comunicacionais, a educação como
processo unidirecional, centrada na principal ou quase exclusiva fonte
de informação, o professor e, nesta medida sem possibilidade de retor-
no e ajustamento das mensagens.
O que é a comunicação educativa? Partamos da definição que Pa-
ciano Fermoso (1985, p. 275) na sua Teoria de la Educación considerou
que
A comunicação educativa é uma comunicação qualifica-
da, na que a participação, a doação e as demais caraterís-
ticas são específicas e especialmente aplicadas. Há muito
outros tipos de comunicação, mas singulariza-se entre
todas é a comunicação educativa.
A tese essencial de Paciano Fermoso (1985) é a de que apesar de
nos confrontarmos com uma multiplicidade de tipos de comunicação,
a comunicação educativa revela uma especificidade muito própria, que
a individualiza e distingue das demais formas de comunicação. Ao con-
ceder uma atenção à especificidade da comunicação educativa Paciano
Fermoso põe o foco muito mais no que a distingue do que o que a apro-
xima da comunicação de uma forma global. Neste sentido seria legíti-
mo considerar a comunicação educativa como um capítulo da comu-
nicação em geral. Numa análise mais atenta, o autor chama a atenção
para duas das características mais evidentes da mesma: as noções de
participação e doação.
Partindo da etimologia da palavra comunicação sobressaem, de
forma evidente, os sentidos de comunicar, participar, comungar, nos
quais detetamos uma referência comum à ideia de comunidade ou de
posse de algo em comum. Na noção de comunicação está presumida a
unidade ou comunidade entre as pessoas que comunicam. Emílio Re-
dondo (1999, p. 163), definirá a comunicação como a
[...] relação real estabelecida entre dois – ou mais seres –
em virtude da qual um deles participa do outro, ou ambos
participam entre si; ou também relação real estabelecida

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020. 3


Comunicação Educativa

entre dois ou mais seres em virtude do qual se põem em


contato, e um deles – ou ambos – fazem doação de algo a
outro (Redondo, 1999, p. 178).
Creio, neste sentido, que estas duas marcas distintivas, ainda que
sejam fundamentais para a comunicação educativa, encontram-se pre-
sentes na origem da noção de comunicação. O regresso à matriz mais
original da comunicação educativa reforça a continuidade entre o sen-
tido originário da noção de comunicação e a estreita relação daquela
com a noção de educação. Esta última tem também inscrita a dimensão
da dádiva, sobretudo se atendermos ao sentido mais original da ação de
educar como alimentar, criar, amamentar ou mesmo nutrir. O modelo
maternal a que se liga a educação não pode ser esquecido num processo
em que a mãe disponibiliza à criança o alimento, nutre-a com o que há
de mais importante à manutenção do seu bem estar. Alimentar é garan-
tir as condições essenciais à sobrevivência física daquele a quem se dis-
ponibiliza o nutriente essencial. Se a dimensão física da dádiva se en-
contra presente na noção de amamentar, ao longo dos séculos, no curso
da evolução da noção de educação é-nos dado assistir a uma transmuta-
ção da dimensão física do alimento para a dimensão espiritual. A noção
de aluno, conserva ainda, na sua raiz etimológica, a ideia de alimenta-
ção. Etimologicamente o aluno (alumnum) é aquele que é alimentado.
A educação é também dádiva se for tomada no sentido de tirar de dentro
para fora, na medida em que se procura, através do esforço educativo do
professor, encontrar no outro o melhor que tem em si. Investir o melhor
de nós, enquanto educadores, para que o aluno deixe brotar de dentro
de si, o que potencialmente aguarda uma oportunidade para se desve-
lar. Se o movimento de retirar de dentro para fora emerge como oposto
ao alimentar, lido tantas vezes como acção de colocar dentro, de colma-
tar um vazio, de preencher, não deixa de conservar a ideia de que ação
do professor, do educador é de disponibilizar na própria praxis o melhor
de si para assegurar que do interior do educando brote, por sua vez, o
melhor de si. O terceiro sentido, a educação como condução conserva a
noção de dádiva e, ao mesmo tempo, de participação. A metáfora da via-
gem que se inscreve na ação de guiar, de conduzir, impõe ao professor
e ao alunos, viajantes embarcados na mesma viagem da construção do
conhecimento, o desafio superior de percorrerem os caminhos, de assu-
mirem os riscos inerentes à viagem, de participarem conjuntamente na
identificação das vias, veredas no curso das quais se foram desenhando
as rotas mais instigantes do conhecimento. Os três sentidos associados
à noção etimológica de educação conservam estas dimensões de dádiva
e participação aproximando do conceito de comunicação.
Todo o processo educativo não pode ser concebido desvinculado
do universo comunicativo, sob pena de desvirtuar o que é essencial na
educação. Neste sentido a tese central é a de que educação e comunica-
ção constituem dois pólos indissociáveis. Se é possível admitir que pode
haver comunicação sem educação, a inversa não nos parece verdadeira.
Nessa medida, à imagem da pragmática da comunicação de (Watzlawi-
ck; Beavin; Jackson, 1967), defendemos que o primeiro grande axioma

4 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020.


Escola

da comunicação educativa é a de que não não há educação sem comu-


nicação.
Assim o postulado de que não há educação sem comunicação im-
põe-se como condição primeira, premissa irrefutável de toda a autênti-
ca comunicação educativa. A afirmação deverá continuar a manifestar
a pretensão de validade mesmo quando confrontada com as mediações
que vão pontuando as criações mais recentes do universo tecnocientífi-
co. Sujeitar-se a este critério de validade significa procurar responder a
um esforço de legitimação da acção pedagógica como acção comunica-
tiva. Numa leitura atenta da história da educação percebemos com fa-
cilidade que nem sempre a educação esteve associada à uma autêntica
comunicação. A exclusiva preocupação com a transmissão de um con-
junto de conteúdos ou informações não esgota a essência da comunica-
ção pois tal posição está ainda impregnada de uma perspectiva egocên-
trica incapaz de se abrir a um heterocentrismo, condição indispensável
e, por isso mesmo, fundamental para a construção de uma educação
autêntica.
O segundo axioma da comunicação educativa estabelece que Exis-
tir e Educar têm a mesma extensão, evidenciando o paralelismo entre a
existência humana e a de educação.
Se existir é estar fora, estar no mundo, ser em situação, ser no
mundo com outros, quer a educação, quer a existência acontecem entre
o nascimento e a morte. O sentido da educação como viagem, como ca-
minho, explorado anteriormente, mostra que o sujeito concretiza o seu
projeto vital em relação próxima com o mundo e com os outros, liga-se à
condição antropológica do ser humano como ser inacabado, insatisfei-
to, não concluído. Paulo Freire, em vários textos lembrou a importância
do inacabamento para a compreensão do necessidade da comunicação
e do diálogo. Na Pedagogia do Oprimido escreve Freire (2007):
A concepção e práticas ‘bancárias’, imobilistas, ‘fixistas’,
terminam por desconhecer os homens como seres histó-
ricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do
caráter histórico e da historicidade dos homens. Por isso
mesmo é que os reconhece como seres que estão sendo,
como seres inacabados, inconclusos, em e com uma re-
alidade que, sendo histórica, também é igualmente ina-
cabada. Na verdade, diferentemente dos outros animais,
que são apenas inacabados, mas não são históricos, os
homens se sabem inacabados. Têm consciência da in-
conclusão. Aí se mostram as raízes da educação mesma,
como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na
inconclusão dos homens e na consciência que dela têm.
Permanente, na razão da inconclusão dos homens e do
devir da realidade (Freire, 2007, p. 84).
As noções de educação permanente e de aprendizagem ao longo
da vida, especialmente a última, pontuam cada vez mais os discursos
oficiais, mostrando que a complexidade e a evolução da civilização
impõem a necessidade de formação ao longo da vida. Estas reforçam a

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020. 5


Comunicação Educativa

convergência entre as noções de educação e existência, a relação entre


a condição de inconclusão do ser humano e a imperiosa necessidade
de educação.
O terceiro axioma defende que na comunicação educativa a comu-
nicação objetiva potencia a passagem para a comunicação intersubjetiva.
Podemos aceitar que em inúmeros momentos da história da edu-
cação a tendência foi para acentuar a dimensão objectiva da comunica-
ção, sendo a tónica colocada muito mais na transmissão da informação
do que na criação de condições para a eclosão de uma “[...] comunicação
com comunhão” (Marcel, 1950, p. 221), signo de uma verdadeira comu-
nicação intersubjectiva. Discutindo a noção de presença Gabriel Marcel
estabelece a distinção entre as duas formas de comunicação (objetiva
e subjetiva), que são de capital importância para a compreensão na co-
municação educativa:
Podemos sentir com muita intensidade que alguém que
está no mesmo quarto que nós, alguém a quem vemos,
ouvimos e podemos tocar, não está, apesar de tudo, pre-
sente. Que se encontra infinitamente mais longe de nós
do que aquele que amamos e que se encontra a milhares
de kilómetros [...]. Que presença é esta que falta aqui? Não
seria correto dizer que não conseguimos comunicar com
o indivíduo que se encontra ao nosso lado. Ele não é nem
surdo, nem cego, nem imbecil. Entre nós uma determi-
nada comunicação material foi assegurada, mas somente
material, em tudo semelhante à comunicação estabeleci-
da entre dois postes distintos, um emissor e outro recep-
tor. O essencial falta apesar de tudo. Poder-se-ia dizer que
é uma comunicação sem comunhão (Marcel, 1950, p. 221).
Esta distinção entre a comunicação objetiva e comunicação in-
tersubjetiva realizada por Jaspers (1989), coloca-se na mesma linha da
distinção proposta por Marcel da comunicação com comunhão e sem
comunhão. A comunicação educativa não rejeita a dimensão instrutiva,
objetiva, mais centrada nos conteúdos, e que designamos por comuni-
cação objetiva. No entanto, a chave está na capacidade do professor ser
capaz de garantir a transição entre a comunicação sem comunhão para
uma comunicação com comunhão, respeitando sempre o outro na sua
identidade, reconhecendo sempre a pessoa que habita no aluno.
A concepção freiriana de educação, ao instituir de forma tão ra-
dicalmente dicotómica a distinção entre a educação bancária da edu-
cação dialógica associa, de modo inequívoco, numa relação profunda
as noções de educação e comunicação, transferindo para a segunda a
primazia, e, não escondendo a predileção que a mesma desde sempre
exerceu sobre si. Escreve o eminente pensador brasileiro:
Analisemos, ainda que brevemente, essas duas posições
educativas: uma, que respeita o homem como ‘pessoa’;
outra, que o transforma em ‘coisa’.
Iniciemos a apresentação e crítica da segunda concepção
em alguns dos seus pressupostos.

6 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020.


Escola

Daqui por diante, essa visão chamaremos de concepção


‘bancária’ da educação, pois ela faz do processo educativo
um ato permanente de depositar conteúdos. Ato no qual o
depositante é o ‘educador’ e o depositário o ‘educando’.
A concepção bancária – ao não superar a contradição
educador-educando, mas, pelo contrário, ao enfatizá-lo,
não pode servir senão à ‘domesticação’ do homem.
Da não superação dessa contradição, decorre:
a) que o educador é sempre quem educa; que o educando,
o que é educado;
b) que o educador é quem disciplina; o educando, o dis-
ciplinado;
c) que o educador é quem fala; o educando , o que escuta;
d) que o educador prescreve; o educando segue a prescri-
ção;
e) que o educador escolhe o conteúdo dos programas; o
educando o recebe em forma de ‘depósito’;
f) que o educador é sempre quem sabe; o educando, o que
não sabe;
g) que o educador é o sujeito do processo; o educando seu
objeto (Freire, 1974, p. 14-15).
Com legitimidade, poder-se-ia defender, partindo da própria de-
signação de educação dialógica, que Paulo Freire recorda o lugar incon-
tornável do diálogo e da comunicação em todo o processo educativo.
Inspirando-se em Jaspers discute a centralidade do diálogo e ao mesmo
tempo que denuncia o anti-diálogo (Freire, 1984, p. 106-108). Para refor-
çar esta dimensão, referindo-se ainda do pensamento de Karl Jaspers,
escreve na obra Educação e Mudança (1979, p. 28): “Jaspers disse: ‘Eu
sou na medida em que os outros são.’ O homem não é uma ilha. É comu-
nicação. Logo, há uma estreita relação entre comunhão e busca”.
Na obra Extensão e Comunicação, Freire (1988) aprofunda a ques-
tão ao declarar que
Não há, realmente, pensamento isolado, na medida em
que não há homem isolado.
Todo o ato de pensar exige um sujeito que pensa, um obje-
to pensado, que mediatiza o primeiro sujeito do segundo,
e a comunicação entre ambos, que se dá através de signos
linguísticos. O mundo humano é, desta forma, um mundo
de comunicação.
Corpo consciente (consciência intencionada ao mundo,
à realidade), o homem atua, pensa e fala sobre esta reali-
dade, que é a mediação entre ele e os outros homens que
também atuam , pensam e falam (Freire, 1988, p. 66).
A comunicação educativa filia-se na concepção dialógica da edu-
cação, inspirando-se no pensamento de Freire (2007), mas também na
dialógica de Buber (2014), na filosofia existencial de Marcel (1927, 1950)
e Jaspers (1989), no personalismo de Mounier (2010). Desta forma, muito
mais importante do que considerar a educação a partir de um ângulo
que teve na oposição/relação Sujeito – Objecto o paradigma, importa ir
para além deste modelo. Também o pólo Sujeito – Sujeito não responde

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020. 7


Comunicação Educativa

cabalmente à especificidade do fenómeno comunicacional no espaço


educativo. Se o pólo Sujeito – Sujeito consegue evitar o perigo da redu-
ção do aluno à condição de objecto, a coisificação (Sartre) do aluno, di-
mensão pouco respeitosa da humanidade do homem, não assegura por
si só, a marca da relação inscrita na condição humana. A modernidade,
na linha e inspiração cartesiana, ao outorgar ao sujeito a condição de
auto-suficiência tendeu a desvalorizar as dimensões da relação e comu-
nicação.
A comunicação educativa, combinando a comunicação sem co-
munhão com a comunicação com comunhão, estabelece níveis de in-
tensidade relacional e comunicacional que têm nos pólos eu – tu ou eu
– ele, eu – isso ou ainda o nós, o contexto de discussão acerca de re-
conhecimento da alteridade da conversão do outro em interlocutor vá-
lido. A comunicação educativa recusa liminarmente a relação eu-isso,
por considerar que o aluno, em nenhuma situação, pode ser pensado
como objeto, e muito menos reduzido à condição de coisa. Ainda que
a relação que se estabelece inicialmente entre educador e educando se
apresente como uma relação eu-ele, o conhecimento crescente entre
ambos, a simpatia experimentada, o respeito e reconhecimento, per-
mitirão a passagem para a uma relação eu-tu, e o nós. A comunicação
interpessoal desempenha, por isso mesmo, na relação aluno-professor,
aluno-aluno um papel fundamental, pois é aí, na busca conjunta do co-
nhecimento, que o verdadeiro encontro entre ambos se dá. O envolvi-
mento de ambos, a participação ativa e cooperante do professor e aluno
na viagem em direção ao conhecimento criam as condições para o reco-
nhecimento pelo outro dando-se neste campo o encontro entre ambos.
O quarto axioma reconhece que os meios e recursos de ensino e, de
forma muito especial, os recursos digitais podem ter um papel muito rele-
vante como mediações nos processos de comunicação e como facilitadores
na construção do conhecimento.
Nos últimos dois séculos, a problemática da comunicação edu-
cativa tem que ser pensada numa maior proximidade com o univer-
so técnico e tecnológico, refletindo crítica e criteriosamente sobre os
instrumentos saídos do progresso tecnocientífico. Toda a história da
educação identifica a presença de mediações, de que os professores se
serviram no processo de comunicação. O livro foi, indiscutivelmente,
o meio e recurso que durante mais tempo se destacou como apoio ao
ensino desde a escola elementar ao ensino superior. O livro de texto,
manual escolar, continua a desempenhar um incontornável papel nas
escolas, mesmo que hoje apareça como manual digital. A invenção da
imprensa com carateres móveis por Gutenberg, potencializa a utiliza-
ção do livro nos contextos educativos. Mais próximo de nós, em termos
temporais, séculos XIX e XX, a escola assistiu à invenção de dispositivos
que apesar de emergirem em contextos completamente exteriores a si,
paulatinamente foram sendo integrados pelos professores nos proces-
sos e estratégias de comunicação educativa. A fotografia, o cinema,
o rádio, a televisão, mais recentemente, a web tornaram-se presença
regular nas escolas como meios e recursos de apoio ao ensino, garan-

8 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020.


Escola

tindo ao professor a possibilidade de explicitar e concretizar melhor as


temáticas, ultrapassar um certo verbalismo e modelos unidirecionais
de comunicação. Mas é com o desenvolvimento das Tecnologias da In-
formação e Comunicação, com a influência da informática, tecnologia
vídeo e telemática que mais se acentua a presença da tecnologia como
suporte na comunicação educativa.
A utilização massiva da tecnologia pelos cidadãos tem conse-
quências na organização da sociedade, mas também na escola. A histó-
ria da tecnologia educativa atesta esta estreita relação entre a invenção
de dispositivos tecnológicos, o uso generalizado na sociedade e a in-
tegração posterior daqueles na prática docente. Esta história confirma
duas tendências: a estreita relação entre a invenção dos dispositivos e a
sua rápida integração na prática dos professores e o sentimento de re-
ceio em relação à possibilidade dos dispositivos conquistarem um lugar
incontornável capaz de conduzir à supressão dos professores. A primei-
ra tendência é facilmente confirmada numa análise da periodização da
evolução das tecnologias na educação (Costa, 2007). A segunda é com-
provada por registos que foram sendo conservados ao longo do tempo.
Em relação à segunda tendência, Neil Postman (2002, p. 68) na obra O
Fim da Educação. Redefinindo os valores da Escola e Larry Cuban (1986,
p. 5) na obra Teachers and Machines: the classroom use of the technolo-
gy since 1920 deixam-nos um poema escrito na década de 20 do século
passado por um professor, onde se testemunha o medo provocado pelo
sucesso e pela novidade das invenções tecnológicas mais recentes.
O Senhor Edison diz
Que a Rádio irá suplantar os professores.
Há já quem aprenda línguas com discos Vitrola
Os filmes irão visualizar
Aquilo que a rádio não consegue transmitir.
Os professores serão relegados para povoações isoladas.
Onde há carroças de bombeiros puxadas por cavalos,
E mulheres de cabelos longos;
Ou talvez exibidos em museus.
A educação tornar-se-á uma questão
De carregar no botão.
Talvez me dêem emprego no PBX.
Dispensar atenção ao quadro evolutivo das tecnologias na edu-
cação ajuda a compreender a dinâmica da criação tecnológica e a in-
tegração na sala de aula. A comunicação educativa incorpora as ferra-
mentas tecnológicas, explorando sempre as possibilidades didáticas
dos mesmos. Tomando como referência a proposta de Costa (2007), que
se inspira na cronologia da Association for Education Communications
and Technology, a periodização das tecnologias na Educação realiza-se
em seis períodos. O primeiro período decorre entre 1923 e 1931. Neste,
destaca-se a presença de materiais visuais e a sua integração na prática
docente. A opção pelos materiais audiovisuais era feita com o objetivo
de apoiar, na visualização e concretização das ideias, bem como na ex-
plicitação dos conceitos. Estes suportes audiovisuais, paulatinamente

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020. 9


Comunicação Educativa

integrados no ensino pelos professores, passam a ser vistos como ajuda


ao trabalho docente. Neste primeiro momento, destacam-se dois meios
de comunicação de massa: o rádio e o cinema mudo. As influências
teóricas encontram-se vinculadas aos estudos sobre comportamento
animal e humano, tendo em Thorndike, a fonte e, ao mesmo tempo,
inspiração em termos de teorias de aprendizagem (conexionismo e as-
sociacionismo).
O segundo período desenvolve-se entre 1932 e 1945, e corres-
ponde ao que Costa (2007, p. 18-19) designou por período da consolida-
ção. Assistimos à criação de dispositivos de ensino que mereceram o
reconhecimento na comunidade educativa pelo êxito que alcançaram
enquanto suporte de comunicação durante a preparação dos contin-
gentes militares que iriam para o combate na Segunda Grande Guerra.
Os constrangimentos provocados pela necessidade de preparar um nú-
mero tão elevado de soldados, com um grupo reduzido de formadores,
num período de tempo tão curto, levam a uma maior atenção aos re-
cursos de ensino. A criação do retroprojetor, primeiro meio e recurso
especialmente concebido para o ensino, vai marcar durante décadas as
estratégias de comunicação em vários níveis de ensino, abandonando o
contexto original de criação, isto é, a preparação de militares, e invadin-
do as salas de aula. Este período é também marcado pelo desenvolvi-
mento de materiais para o ensino, com destaque para a televisão educa-
tiva, e, simultaneamente, pela formação de profissionais e professores
para a elaboração de materiais de suporte à transmissão da informação.
Alguns estudos na área da psicologia vão investigar as problemáticas da
relação entre a percepção e a memória, a quantidade de informação re-
tida em função de cada um dos sentidos ou da combinação entre estes.
Destas investigações saem resultados que apoiarão teorias de aprendi-
zagem que buscam fundamentar as opções do audiovisual nos proces-
sos de ensino e aprendizagem.
O terceiro período, designado por período da grande expansão
(Costa, 2007, p. 20-22), tem início em 1946, logo após o terminus da Se-
gunda Grande Guerra e estende-se até o ano de 1957, marcando defi-
nitivamente a génese da Tecnologia Educativa. A influência da Psico-
logia, particularmente a partir do comportamentalismo, faz com que
a proposta de Skinner, seja considerada historicamente como marco
para a resolução de problemas no domínio de comunicação através de
novos meios. Ele envolve outras áreas de conhecimento, trazendo para
o centro da discussão das questões didáticas o contributo de cada uma
destas fontes, imprimindo um caráter muito especial à tecnologia edu-
cativa. Os artigos de Skinner (1954) The Science of Learning and the Art
of Teacnhing publicado em 1954, e Teaching Machines, publicado em ou-
tubro de 1958, na revista Science, compilados em livro mais tarde (Skin-
ner, 1969), proclamam uma revolução científica no ensino e, simultane-
amente, fazem a apologia das máquinas de ensinar, da automatização
do ensino, evolução que teria como corolário lógico a supressão do pro-
fessor. Estes dois artigos assinalam o nascimento oficial da Tecnologia
Educativa.

10 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020.


Escola

Entre 1958 e 1970 decorre o período que Costa (2007, p. 20-22)


apelida de grande expansão. Objetivamente assiste-se a um progres-
so muito importante no domínio das tecnologias. O desenvolvimento
do programa espacial russo que culmina com o lançamento em finais
de 1957 do primeiro satélite, o Sputnik, gera pânico nos dirigentes dos
EUA. Como resposta, os Estados Unidos aceleraram o desenvolvimen-
to tecnológico em todo país, por forma a competir com o seu principal
inimigo. Aumentam o financiamento para investir na criação de con-
teúdos e modificações curriculares em Universidades e escolas (curri-
culum packages), em articulação com iniciativas que visavam apetre-
char as instituições educativas com as mais modernas tecnologias e
materiais. A influência da Teoria Matemática da Informação (Shannon;
Weaver, 1948) e de outros teóricos da comunicação e da Teoria dos Sis-
temas (Bertalanffy, 1986) são decisivas para a expansão da tecnologia
na educação.
O quinto período tem como baliza temporal os anos de 1971 e
1982 e é caracterizado como sendo o da reafirmação e abertura (Costa,
2007, p. 22-24). O desenvolvimento da tecnologia informática traz para
o interior das intuições educativas o computador, o dispositivo que
conquistará um lugar central na área da tecnologia educativa. Reali-
zam-se experiências pedagógicas para se explorar as possibilidades de
utilização do computador como recurso de ensino. Do ponto de vista
da investigação, definem-se claramente duas linhas: uma que já vem
do período anterior, “[...] uma concepção de tecnologia educativa que
subordina a investigação sobre os processos de aprendizagem ao ma-
terial utilizado. A outra, que se encontra intimamente ligado à análise
da influência que os materiais e os dispositivos têm sobre as modalida-
des de aprendizagens” (Costa, 2007, p. 22-23). A definição de tecnologia
educativa proposta pela Association for Education Communications and
Technology (AECT, 2001), em 1972, vem pôr em evidência a orientação
sistemática, proporcionando uma visão integrada, sistémica e racional
no sentido de resolver problemas de ensino e aprendizagem. Educatio-
nal Technology é definida como “[...] a field involved in facilitation of
humain learning through the systematic identification, development,
organization and utilization of a full range of learning resources and
througt the management of these processes”. A tecnologia educativa,
durante este período, evidencia o diálogo interdisciplinar, o contributo
de várias áreas de conhecimento (ciências da comunicação, psicologia,
sociologia, informática, entre outras) que lhe concedem o fundamento
para a legitimar a intervenção na resolução dos problemas do ensino e
aprendizagem.
O último período decorre entre 1983 e 1999, o período determina-
do pelo computador (Costa, 2007, p. 24-28). Naquele exploram-se as pos-
sibilidades de inovação de que as Tecnologias da Informação e Comu-
nicação dispõem. A informática, a tecnologia vídeo, a telemática ou a
robótica passam a ter um papel de grande relevância na educação. O in-
teresse de investigação dos meios analógicos transfere-se gradualmen-
te para os meios digitais. Costa (2007, p. 24) identifica dois momentos

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020. 11


Comunicação Educativa

dentro desse período e que exigem uma diferenciação quanto ao grau


de desenvolvimento tecnológico: o primeiro mais ligado à multimédia,
e que caracteriza a década de 90, e o segundo, que coincide com o iní-
cio do novo milénio, mais centrado nas possibilidades que o acesso à
internet abre, mais especificamente as possibilidades que a World Wide
Web oferece. A figura que abaixo apresentamos mostra a evolução das
tecnologias na educação.

Figura 1 – A Evolução da Tecnologia na Educação

Fonte: Costa (2007, p. 29). Adaptado da Association for Education Communications


and Technology.

Como rapidamente se percebe desta breve incursão na história


da Tecnologia Educativa, criação tecnológica, decorrente do progresso
científico e tecnológico, conquista uma especial relevância em momen-
tos diferenciados e os seus reflexos são evidentes na sociedade. A influ-
ência e presença da tecnologia no espaço mediático e na sociedade de
uma forma geral repercutir-se-á na escola. Na Sociedade da Informação
e Comunicação, a comunicação educativa comprova de modo evidente
a entrada de determinada tecnologia na escola e o modo como foram
sendo utilizados os recursos tecnológicos.
Uma das marcas decisivas da sociedade da informação e comu-
nicação radica na descentração da escola como foco principal de con-
servação do vasto património de saber acumulado ao longo de séculos.
A comunicação objetiva do professor é amplamente apoiada por fontes
diferenciadas. A presença constante dessas fontes, disponibilizando
informação, alarga significativamente a quantidade de informação a
que cada indivíduo pode aceder. No entanto, tal situação é vista como
podendo arrastar consigo a uma diminuição evidente do prestígio da
própria escola. Se o aluno pode encontrar a informação relevante de
que necessita fora da instituição escola, se a mesma se apresenta co-
dificada através de linguagens mais próximas do seu interesse e mais
fáceis de descodificar, e se as mensagens assim organizadas chegam
mais facilmente ao estudante, o próprio prestígio do professor seria de
algum modo atingido. Contudo, a situação de pandemia teve o privilé-
gio de por em evidência que o papel do professor saiu reforçado, apesar
do reforço da utilização dos recursos de EaD, destacando-se como guia
e mediador do conhecimento.

12 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020.


Escola

Desafios à Comunicação Educativa no Período de


Pandemia e Pós-Pandemia
O contexto em que se desenvolveu a pandemia trouxe um conjun-
to muito significativo de desafios à comunicação educativa. O primei-
ro grande desafio prende-se, de forma inequívoca, com a manutenção
da concepção cumulativa da comunicação no quadro da sua evolução
proposto por Cloutier (1975; 2001). A ideia de que cada episódio na his-
tória da comunicação alarga as possibilidades que o episódio anterior
consagrou (2001, p. 1), esbarra, no atual contexto, com uma dificuldade
premente que é a crescente mediatização da comunicação que se serve
exclusivamente de dispositivos tecnológicos nos processos de comuni-
cação educativa, diminuindo grandemente o lugar da palavra dita. A
tese de que cada novo episódio acrescenta novos meios aos antigos sem
os eliminar encontra no contexto pandémico dificuldades evidentes. Os
quinto e sexto episódios da história da comunicação de Cloutier (2001),
a comunicação comunitária e a comunicação planetária, respetiva-
mente, não eliminaram a comunicação interpessoal, mas a decisão do
confinamento da população portuguesa e o encerramento físico das es-
colas, bem como a ausência de atividades presenciais diminuiu drama-
ticamente as possibilidades de uma comunicação integral, no sentido
de permitir que o ser humano esteja completamente como ser de co-
municação, ser situado, encarnado, numa palavra como ser de relação.
A opção pela continuidade das atividades letivas, recorrendo a plata-
formas de ensino a distância, numa combinação entre a comunicação
síncrona e a assíncrona, foi muito importante não só porque permitiu a
continuidade da relação entre os professores e os alunos, mas também
porque, recorrendo aos dispositivos tecnológicos, conseguiu assegu-
rar um contexto seguro de aprendizagem dos estudantes e, ao mesmo
tempo, transpor os constrangimentos espaciais e temporais com que a
comunidade educativa se confrontava.
O momento que vivemos convida-nos a regressar ainda à perio-
dização de comunicação em Cloutier, para se constatar que o ponto de
desenvolvimento a que chegámos celebra a concretização do desejo
antigo do homo communicans de fazer chegar mais longe as suas men-
sagens e conseguir que as mesmas se inscrevessem em suportes que
lhes permitissem a sua conservação no tempo. Como defende Cloutier
(2001) a partir do segundo episódio da comunicação, a comunicação de
elite, e que teve início com a invenção da escrita, começa-se paulatina-
mente a responder às dificuldades temporais, inventando-se tecnolo-
gias que podem conservar as mensagens para além da existência dos
sujeitos que as produziram. A durabilidade das mensagens necessita
apenas de encontrar suportes em que as mesmas possam ser gravadas.
Por um lado cada indivíduo consegue fazer chegar mais longe as suas
mensagens, tem condições de as ver perpetuar/conservar para além da
sua existência e duração, no entanto, uma parte significativa do valor
da comunicação no seu primeiro episódio (comunicação interpessoal),
em que o medium, o meio privilegiado é o corpo, esbate-se na imagem

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020. 13


Comunicação Educativa

ou numa representação virtual do mesmo no ciberespaço. Não é a to-


talidade do corpo, não são todos os sentidos que se relacionam. A rá-
pida transformação de uma educação/comunicação presencial numa
comunicação mediatizada, levou a que os alunos, confinados em casa,
passassem a não estar presencialmente no espaço escolar. Esta experi-
ência do confinamento, que se iniciou em 12 de março de 2020, manteve
os alunos até o final do ano letivo (junho de 2020) a assistir às aulas e a
interagir, ainda que virtualmente, com os professores.
Uma questão essencial se fez sentir e tornou mais complexa a
resposta à dificuldade que é a fratura digital (Castells, 2004, p. 301-302;
Escola, 2015, p. 65-67), que destaca a efetiva desigualdade entre os co-
municadores numa pretensa sociedade de informação e comunicação.
Do início da pandemia “[...] até meados de maio, ou seja, até metade do
3º período letivo, mais de metade dos docentes não tinha conseguido
contactar com os seus alunos. Não estavam contactáveis pelos meios”
(FENPROF, 2020, p. 6).
As possibilidades técnicas, disponibilidade de equipamento das
instituições educativas, dos professores e alunos, foi o que garantiu o
funcionamento regular das instituições educativas. Nos estados de
emergência e de calamidade, assegurou-se, de uma forma global, que os
alunos continuassem ligados à escola e aos seus professores, mas quer
queiramos quer não, não permitiu uma experiência de comunicação
que conservasse o ser humano integralmente, o ser humano enquan-
to ser encarnado. O ver, o ouvir estão disponíveis nas mensagens orga-
nizadas no espaço mediático pelas plataformas de ensino a distância,
no entanto, os restantes sentidos encontram-se arredados no processo
comunicacional, empobrecendo-o naturalmente. A dinâmica comuni-
cacional da sala de aula, na interação professor – aluno, aluno – aluno,
é transformada de uma forma radical pela situação do confinamento.
Apesar do medo do contágio, das medidas de distância social, do uso
da máscara, o regresso ao ensino presencial no ano letivo 2020-21 foi
celebrado com grande entusiasmo pelos alunos portugueses. O que está
em causa continua a ser a possibilidade de partilha dos mesmos espa-
ços, da sala de aula como contexto de interação, de comunicação, de
aprendizagem.
Mais do que nunca o contexto da pandemia foi um desafio para os
educadores. Mais do que assegurar o cumprimento dos conteúdos pro-
gramáticos, presentes nos programas disciplinares, impunha-se agora
compreender contextos em que o aluno se encontrava e, simultanea-
mente, procurar espaços de verdadeiro encontro intersubjetivo, onde
as aprendizagens se realizassem, mas sobretudo se apoiasse cada um a
ultrapassar o sentimento de isolamento, medo, insegurança e desespe-
rança. O domínio da relação e da comunicação intersubjetiva ganham
uma nova centralidade, auxiliar a que construção da identidade dos
alunos se fizesse num clima de cuidado (solicitude e disponibilidade),
de liberdade, responsabilidade.
Alguns estudos realizados ainda durante o ano letivo anterior
(2019-20) mostraram dados muito relevantes sobre o modo como as ins-

14 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020.


Escola

tituições educativas, os professores e alunos encarregados de educação


em Portugal responderam aos desafios provocados pela COVID-19, e
ajudam-nos a pensar o presente e as implicações futuras para a comu-
nicação educativa. O estudo de Silva e Ribeirinha (2020) ao inquirir so-
bre a forma como estava “[...] a decorrer o processo de EaD emergencial
em Portugal em tempos de pandemia?” obteve alguma heterogeneidade
nas respostas dos participantes no estudo, no entanto, o que se eviden-
cia é a ausência de experiência de integração das tecnologias digitais.
Apesar do esforço de modernização tecnológica das escolas por parte
dos decisores políticos, que desde a década de 80 do século XX assumi-
ram políticas educativas que apoiavam projetos no domínio da tecno-
logia educativa a serem desenvolvidos nas escolas portuguesas, a situ-
ação de pandemia pôs a descoberto algumas dimensões que não eram
tão claras para a sociedade portuguesa: não havia uma experiência con-
solidada de integração das tecnologias digitais; o uso das Tecnologias
Digitais da Informação e Comunicação não se revelaram uma prática
generalizada nas escolas e que a inclusão digital dos alunos evidenciava
deficits apreciáveis.
Sobre a integração curricular das tecnologias digitais de Informa-
ção e Comunicação (EaD), num estudo dirigido pelo investigador do
Instituto Superior de Psicologia Aplicada, João Marôco (2020), onde se
interrogaram, através de um inquérito online, entre os dias 5 e 25 de
junho 2020, 4150 participantes (Educadores de infância, professores
do ensino básico e secundário), obtiveram-se resultados sobre a fre-
quência de utilização das ferramentas de EaD em sala de aula, antes da
pandemia. Colocamos em destaque três resultados: 35% dos professo-
res declararam que nunca utilizaram uma plataforma de ensino a dis-
tância, seja Moodle, Classroom, MSTeams, ou qualquer outra; 46% dos
respondentes afirmaram nunca ter utilizado software/apps de avaliação
digital (Moodle Quiz, Quizlet, QuizMaker, etc…), e 64% dos inquiri-
dos declararam nunca ter utilizado software/apps de aulas online (p.e.
Zoom, Google Meet, MS Teams,…). Merecem ainda alguma atenção as
respostas dos professores às perguntas sobre a utilização dos recursos
de EaD durante a pandemia e a pergunta sobre as expectativas de utili-
zar recursos de EaD depois da pandemia.
Quanto a estas duas questões há uma proximidade entre os re-
sultados, o que significa que os professores, apesar de não usarem com
frequência os recursos de EaD nas suas práticas letivas, depois de terem
passado pela necessidade da sua integração nas suas aulas por força da
pandemia, demonstram abertura para continuar a fazer uso das mes-
mas no período pós-pandemia, é manifesta a disponibilidade para in-
tegrarem curricularmente os recursos de ensino EaD numa prática não
emergencial.
No mesmo estudo, os professores foram inquiridos sobre a difi-
culdade na utilização dos recursos de EaD, os dados obtidos mostram
que nunca se ultrapassou os 14% de professores que tivessem declara-
do como difícil o software /aplicações para aulas online, as plataformas
de gestão de ensino e o software/aplicações de avaliação digital. Ao

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020. 15


Comunicação Educativa

contrário, entre 68% e 60% consideraram como muito fácil o software/


aplicações para aulas online (68%), as plataformas de gestão de ensino
(61%) e o software/aplicações de avaliação digital (60%).
Sobre a representação das vantagens ou desvantagens do ensino
a distância por comparação com o ensino presencial, os resultados ob-
tidos na investigação de Marôco são relevantes. Dos professores inqui-
ridos sobre o que pensam em relação ao ensino a distância um em cada
dois professores, cerca de 50% dos docentes consideram que o ensino a
distância só deve ser usado em situação de emergência, e para consoli-
dar conhecimentos e competências. No que diz respeito às preferências
dos professores e alunos sobre a modalidade de ensino a distância ou
ensino presencial, cerca de 75% dos professores consideram que nem os
professores, nem os alunos têm preferência pelas aulas online. Mais de
80% dos professores consideram que não existem condições adequadas,
do ponto de vista dos recursos de ensino (computador, software, acesso
à internet), quer para as famílias (88%), quer para as escolas (91%) para
o ensino a distância.
No que respeita à representação que os professores revelam da
eficiência das aulas no ensino a distância para quem ensina e para
quem aprende, os resultados são muito claros. Sessenta e cinco por cen-
to dos professores discordam ou discordam completamente que o ensino
a distância torna as aulas mais eficientes para quem aprende e 61% dos
professores discordam ou discordam completamente que o ensino a dis-
tância torna as aulas mais eficientes para quem ensina. Esta conclusão
atesta, de forma inequívoca, a importância que os professores portu-
gueses atribuem às aulas presenciais.
Convém, no entanto, incluir na discussão a problemática da for-
mação docente. O cenário em que os professores tiveram que agir era
radicalmente diferente que qualquer cenário de formação tivesse pen-
sado. A aposta na formação em recursos EaD, nas plataformas de ensino
a distância ou mesmo o software de avaliação em EaD havia sido muito
reduzida ou quase inexistente. As dificuldades tornam-se mais signi-
ficativas se tivermos em conta que os professores portugueses são um
grupo envelhecido e que o sistema não conseguiu renovar os quadros
(FENPROF, 2020, p. 4).
A questão da formação para o uso de recursos de EaD na inves-
tigação de Marôco (2020) revela que quatro quintos dos professores
declara que discordam ou discordam completamente que a maioria dos
professores tem formação suficiente para o ensino a distância. Há um
dado importante que ressalta no estudo. Apesar de 80% dos professo-
res não possuir formação suficiente, confrontados com a necessidade
de fazer uso desses recursos, a maioria dos professores, ainda que de
forma autodidata, soube encontrar soluções para as dificuldades. Este
dado sobre a formação para o uso de recursos de EaD, articulado com
os dados referentes à menor dificuldade que na utilização de recursos
de EaD ajuda a compreender a capacidade de resposta dada pelos pro-
fessores no período do confinamento. Importa interpretar com alguma
reserva estes dados, uma vez que nada é dito sobre as transformações

16 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020.


Escola

nas metodologias de ensino. Dito de outro modo, não é seguro que a


integração dos recurso de EaD nas práticas docentes tenha sido acom-
panhada de uma mudança efetiva nas práticas e nas metodologias.
Cabero Almenara (2020) tem discutido com acuidade esta questão na
Espanha, alertando para o que considera ser uma reduzida competên-
cia digital demonstrada por alguns docentes na incorporação educativa
das tecnologias digitais.
Há um dado muito relevante sobre o qual importa refletir. As es-
colas portuguesas iniciaram as aulas do terceiro período, após o perío-
do de interrupção letiva das férias da Páscoa, no mês de abril de 2020.
Aquilo a que se assistiu nas instituições educativas do país, foi a subs-
tituição das aulas presenciais por aulas lecionadas através de platafor-
mas de ensino a distância, opção e orientação que se manteve inaltera-
da até ao fim do ano letivo.
O presente ano letivo iniciou-se na segunda semana de setembro,
entre os dias 15 e 17 de setembro, mas com uma orientação muito dife-
rente da que tinha vigorado no terceiro período do ano anterior. Apesar
dos números da pandemia não darem sinais de abrandamento e de se
suspeitar que o país seria atingido por uma segunda vaga do COVID-19,
a partir do mês de outubro, constatamos uma decisão diferente: o go-
verno português, o ministério da educação querem que os alunos re-
gressem ao regime presencial combinado, eventualmente, em alguns
momentos, com o ensino virtual, isto é, um regime misto. Neste sen-
tido as conclusões do estudo de Silva e Ribeirinha (2020) concretizou-
se, uma vez que estes investigadores defendiam que uma das lições da
primeira fase da pandemia seria que o b-learning passaria a ser o novo
normal na educação escolar. Apesar da avaliação feita sobre o funcio-
namento apresentar resultados muito satisfatórios durante o período
de confinamento dos alunos, a decisão do Ministério da Educação foi
pela manutenção do regime presencial nas Escolas, independentemen-
te de se continuar a assistir ao crescimento do número de infetados e
de focos de contágio, o que sugere uma menorização do ensino a dis-
tância. Cabero Almenara e Valencia-Ortiz (2020, p. 222-223) discutem a
mesma questão na Espanha e consideram que a opção pelo presencial,
atendendo ao imaginário social e académico acabou por apesentar a
formação virtual, quando comparada com a presencial, como uma for-
mação de segunda categoria. Para os autores (Cabero Almenara; Valen-
cia-Ortiz, 2020, p. 222-223), a única coisa que pode estar em causa é a
qualidade. As preferências por um tipo ou outro de formação decorrem
de critérios/varáveis com que se lida. As preferências por uma ou outra
formação têm que ver com a idade dos estudantes, conteúdos a transmi-
tir ou mesmo as competências que se deseja alcançar.
A exigência de manutenção da distância social nos espaços, o uso
obrigatório de máscara, a organização dos espaços circum-escolares e
dos tempos de recreio para evitar que os alunos se misturem indiscri-
minadamente e se torne mais complexa a identificação das cadeias de
contacto. Em Portugal há a apologia do regresso ao novo normal (Cas-
tells, 2020), o que confirma a tendência europeia de recusar o confina-

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020. 17


Comunicação Educativa

mento das populações ou o encerramento das escolas e a sua entrada


num sistema híbrido, para estar em conformidade com o mundo, pois
como Castells (2020) prevê “O nosso mundo é será necessariamente hí-
brido, feito de realidade carnal e realidade virtual”.
Cabero Almenara e Valencia-Ortiz (2020, p. 219) alertam para o
perigo de se fazer no virtual o mesmo que se fazia no presencial, “[...]
abusando de videoconferências, com o erro adicional de não ponderar
o volume de informação e atividades que transmitiam e exigiam aos
estudantes” (Cabero Almenara, 2020, p. 2). Tratando-se de contextos di-
ferenciados as estratégias de comunicação variam exigindo que profes-
sores e alunos recorram a habilidades e competências diferentes:
Em grande medida o que que se tentou foi replicar no vir-
tual o que se havia feito antes no presencial, sem refletir
que se trata de dois contextos diferentes que requerem
tanto ao docente como aos alunos mobilizar habilidades
e competências diferentes (Cabero Almenara; Valencia-
Ortiz, 2020, p. 219).

Conclusões
Neste artigo, num primeiro momento procurámos refletir sobre a
noção de comunicação educativa, estabelecendo o que designei como
os quatro axiomas da comunicação educativa, discutindo a sua impor-
tância na relação com as tecnologias na educação e com a tecnologia
educativa. A evolução da comunicação (Cloutier, 2001) estabelece uma
relação entre a comunicação no contexto educativo e os dispositivos
técnicos que se foram inventando e o modo como se integraram na
escola, transformando a comunicação educativa. Nos quatro axiomas
buscamos evidenciar quatro ideias centrais para responder a uma ci-
vilização cada vez mais tecnológica. Por muito que se multipliquem as
ferramentas tecnológicas e que estas invadam os vários domínios da
sociedade, se instalem e condicionem o quotidiano dos cidadãos, a pro-
blemática comunicação educativa impõe a necessidade de inscrever a
comunicação no âmago da ação educativa. Assim, defendemos como
primeiro axioma que não há educação sem comunicação; o segundo
axioma discute a estreita relação entre a existência e a educação, mos-
trando que a educação tem a mesma extensão que a noção de existên-
cia. A condição humana marcada pelo inacabamento, inconclusão e
insatisfação, tornam o homem um sujeito de busca, aprendendo desde
o nascimento até morte, estabelecendo como segundo axioma a relação
entre existir e educar(se).
Ainda que a escola tenha uma preocupação com a comunicação
objetiva, com o cumprimento estrito dos programas oficiais, com a
transmissão da informação, e naturalmente o sucesso na aprendiza-
gem, a comunicação educativa vai para além desta exigência defendo
no seu terceiro axioma que a comunicação objetiva, formativa, instruti-
va deve abrir espaço a uma relação eu-tu, a uma comunicação intersub-

18 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020.


Escola

jetiva, onde verdadeiramente se encontra a pessoa de cada aluno com a


pessoa do próprio professor.
O quarto axioma reconhece que os meios e recursos de ensino e,
de forma muito especial, os recursos digitais sejam integrados, criterio-
samente, como mediações nos processos de comunicação e, ao mesmo
tempo, como facilitadores na (co)construção do conhecimento e na for-
mação da identidade dos alunos. A história das tecnologias na educa-
ção, da tecnologia educativa e da comunicação mostram um diálogo
estreito com a comunicação educativa.
O contexto da pandemia trouxe enormes desafios à sociedade e à
escola, recordando-nos, de forma definitiva, que nada será igual depois
da experiência que o mundo inteiro fez da pandemia do COVID-19. Par-
tindo de estudos muito recentes, discutimos algumas das questões que
têm e terão implicações na concepção de comunicação educativa que
defendemos. A exigência do confinamento da população portuguesa
em geral e dos alunos e professores, em particular, estabeleceu um qua-
dro de exigências e proporcionou uma experiência absolutamente úni-
ca, onde todos foram convidados a aprenderem a viver no que Castells
(2020) designou como novo normal. Uma das cinco lições para a educa-
ção no período pós-pandemia, como escrevem Silva e Ribeirinha (2020),
foi “[...] tornar o b-learning como o novo normal na educação escolar”.
Ainda que os professores e alunos não tivessem tido formação es-
pecífica para a utilização de recursos de EaD, foram capazes de o fazer
num período de tempo muito curto. De repente a utilização de platafor-
mas de ensino e distância configurava-se como única possibilidade de
assegurar a continuidade das atividades letivas e de permitir o contato
e relação entre os alunos e os docentes, impedidos de assistir presen-
cialmente às aulas. A necessidade de utilização de recursos EaD “[...]
aprofundou dimensão digital/online das escolas e da sociedade” (Sil-
va; Ribeirinha, 2020). Esta constatação do estudo de (Silva; Ribeirinha,
2020) é , seguramente, uma das marcas mais relevantes decorrentes da
pandemia. Vai para além dela, pois as aprendizagens que professores e
alunos realizaram sobre a utilização de recursos EaD mostraram possi-
bilidades que num ensino híbrido poderia e deveria ser aproveitado. O
contexto pandêmico, as indicações da Direção Geral de Saúde e as res-
trições impostas pelo governo português ao funcionamento das escolas
permitiram identificar potencialidades dos dispositivos tecnológicos
como mediações nos processos comunicacionais, mas, ao mesmo tem-
po, devolveram a consciência a todos do lugar incontornável da comu-
nicação intersubjetiva na comunicação educativa, da “[...] importância
vital da escola – presencial” (Silva; Ribeirinha, 2020).
As dificuldades criadas pela pandemia desvelaram uma realida-
de um pouco esquecida do país, ou pelo menos da qual não se tinha
uma consciência tão clara. A promessa da modernidade no progresso
contínuo esbarra com situações de incumprimento, de não realização.
A promessa de que a tecnologia criaria condições para um acesso ge-
neralizado e mais democrático a todos os bens disponibilizados pela
revolução informática esmorece diante das desigualdades efetivas en-

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020. 19


Comunicação Educativa

tre continentes, entre países, entre regiões. Em Portugal, constatou-se


a existência de uma efetiva fratura digital. A percentagem de cidadãos
sem computador em casa, sem acesso à internet, com poucas compe-
tências digitais, que não faziam utilização frequente do computador,
que não possuem computadores em número suficiente para assegurar
o teletrabalho dos pais e o acesso às aulas dos seus filhos tornou mais
difícil a resposta. No entanto, com o esforço de todos, acabou-se por
encontrar soluções para ajudar a minorar a fratura digital. Em certa
medida, como defendem Silva e Ribeirinha (2020), a pandemia acabou
por tornar clara a fratura digital e, ao mesmo tempo, desencadeou no
interior da sociedade a busca de soluções que garantissem a inclusão di-
gital e a transição digital. A comunicação educativa teve, no período do
confinamento, um conjunto incontornável de desafios que com o en-
volvimento de todos permitiu encontrar respostas que vieram reforçar
o reconhecimento do papel decisivo dos professores e da cooperação
entre estes, de responder a um contexto de emergência, preparando-se
para a situação que se vive nas instituições de ensino em Portugal, que
é a da competência para articular a comunicação presencial e a comu-
nicação a distância.
Recebido em 1 de outubro de 2020
Aprovado em 12 de novembro de 2020

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Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020. 21


Comunicação Educativa

Joaquim José Jacinto Escola licenciou-se em Filosofia na Universidade de


Coimbra, Portugal no ano letivo de 1986- 87. Obteve o grau de licenciado
em Filosofia- ramo de formação profissional no ano letivo de 1990- 91 na
Universidade de Coimbra. Obteve o grau de Mestre em Filosofia Contem-
porânea, Universidade de Coimbra, Portugal, em 1993. O Doutoramento,
em Ciências da Educação foi realizado na Universidade de Trás-os-Montes
e Alto Douro, Portugal, em 2003. Atualmente é Professor Auxiliar com no-
meação definitiva no Departamento de Educação e Psicologia, Escola de
Ciências Humanas e Sociais, UTAD, desde 2008.
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6676-6928
E-mail: jescola@utad.pt

Editora-responsável: Carla Vasques

Este é um artigo de acesso aberto distribuído sob os termos de uma Licen-


ça Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Disponível em: <http://
creativecommons.org/licenses/by/4.0>.

22 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109345, 2020.


SEÇÃO TEMÁTICA:
AS LIÇÕES DA PANDEMIA

Sustentar a Transferência no Ensino


Remoto: docência em tempos de pandemia
Simone Bicca CharczukI
I
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS – Brasil

RESUMO – Sustentar a Transferência no Ensino Remoto: docência em


tempos de pandemia. Problematizamos a docência no ensino remoto em
tempos de pandemia. A despeito das diferenças entre ensino remoto e edu-
cação a distância (EaD), apontamos que críticas a ambos recaem sobre as
dificuldades de interação entendidas como inerentes a eles. Em contraposi-
ção, argumentamos que ponderações a todo modo de ensino precisam en-
fatizar modelos teóricos conceituais que os sustentam. Inspirados na cons-
trução do caso em psicanálise, apresentamos narrativas acerca do ensino
remoto e as analisamos a partir do conceito de transferência. Apostamos
que o laço transferencial entre professor, aluno e conhecimento pode ser
estabelecido no ensino remoto, considerando a escuta e a palavra como re-
presentantes da presença e da corporeidade neste contexto.
Palavras-chave: Docência. Ensino Remoto. Transferência. Psicanálise.

ABSTRACT – Ensuring Transference on Remote Learning: teaching in pan-


demic times. We discuss teaching in remote learning in pandemic times.
Despite the differences between remote learning and distance learning
(EaD), we point out that criticisms of both focus on the interaction diffi-
culties understood as inherent to them. We argue, however, that consider-
ations on any teaching method must emphasize the theoretical-conceptual
models that support them. Inspired by the clinical case construction ap-
proach, we present narratives about remote learning and analyze them
based on the concept of transference. We believe that the transference be-
tween teacher, student and knowledge can be established in remote learn-
ing, considering listening and speech as representatives of presence and
corporeality in this context.
Keywords: Teaching. Remote Learning. Transference. Psychoanalysis.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109145, 2020. 1


http://dx.doi.org/10.1590/2175-6236109145
Sustentar a Transferência no Ensino Remoto

Ao final do ano de 2019, entramos em sinal de alerta sanitário em


decorrência da descoberta de um novo vírus, cuja incidência inicial
ocorreu na cidade de Wuhan, na China. Tal vírus, nomeado Covid-19,
rapidamente se espalhou pela Europa e o aparecimento de novos casos
no Brasil sucedeu, de forma mais prevalente, a partir do mês de mar-
ço de 2020, causando impacto por seu grande poder de transmissão e
pela elevada taxa de mortalidade. Foi nessa época que ganharam terre-
no no nosso país medidas para incentivar alguns cuidados de higiene,
como lavagem frequente das mãos e uso de álcool em gel, bem como
para propor distanciamento social visando conter o avanço da doença.
Além disso, locais que geram aglomeração de pessoas foram rapida-
mente orientados a restringirem ou cancelarem suas atividades, sendo
que as escolas e universidades foram alguns dos primeiros espaços a
seguirem essa orientação, demonstrando preocupação com o cuidado
de si e dos outros. Com a impossibilidade de habitar esses tradicionais
estabelecimentos de ensino, vislumbrou-se o desafio de refletir sobre
outros modos de estruturar os processos de ensinar, a fim de promovê-
lo efetivamente, assim como de aprender em espaços diversos, fora do
corriqueiro ambiente escolar e acadêmico.
Destaque-se que, no Brasil, esse movimento de invenção de mo-
dos alternativos para sustentar o educar tem acontecido de forma um
tanto diversa e controversa, pois, desde o início da pandemia no país,
não houve uma posição unânime quanto ao protocolo a seguir, seja por
parte dos governos municipais, estaduais ou federal. É importante en-
fatizar, ainda, que as diretrizes (ou a falta destas) por parte do atual pre-
sidente Jair Bolsonaro, bem como sua posição negacionista diante da le-
talidade do novo vírus, fez que as medidas de distanciamento social se
efetivassem de modo errante e não coordenado. No momento, estamos
colhendo o resultado desse posicionamento, com o cômputo de mais
de 150 mil mortes contabilizadas até o mês outubro de 2020, valendo
salientar que, infelizmente, não há previsão de decréscimo significativo
do contágio e do número de óbitos diários. Por outro lado, com o fecha-
mento das escolas, contribuímos para que esse número não seja ainda
maior, preservando, assim, a segurança e o cuidado com a comunidade
escolar e seu entorno.
No que diz respeito, mais especificamente, aos modos de susten-
tar espaços para o ensino, a aprendizagem e o exercício da docência
nesse contexto, uma estratégia que se disseminou no país foi a adoção
de recursos remotos, principalmente o uso da internet, a fim de pos-
sibilitar aos professores dos diversos níveis de ensino o envio e com-
partilhamento de materiais didáticos e atividades com os alunos. Tal
estratégia ocasionou uma série de críticas e resistência dos envolvidos
(isto é, professores, familiares e alunos), como também da sociedade
civil. Esse movimento se centrou em dois grandes focos de problemati-
zação: (i) a enorme desigualdade socioeconômica dos brasileiros e, con-
sequentemente, a falta de acesso aos recursos necessários para o acom-
panhamento de aulas remotas por grande parte da população; e (ii) a
contraposição entre ensino presencial e educação a distância (EaD), ou
ensino remoto, e a pretensa qualidade daquele em detrimento destes.
2 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109145, 2020.
Charczuk

Sem desconsiderar a complexidade do tema e a necessária críti-


ca às desigualdades socioeconômicas enunciadas anteriormente, neste
artigo enfocamos, especialmente, o debate acerca do exercício da do-
cência quando realizado por intermédio de tecnologias digitais, o uso
da internet e a elaboração do ensino remoto. Nosso objetivo central é
propor a exposição e o debate de elementos que nos permitam pensar o
fazer do professor e as possibilidades de encontro entre professor, aluno
e conhecimento em um contexto diverso da sala de aula, gerado de for-
ma emergencial pela instalação desta pandemia e a aderência ao ensino
remoto em substituição às aulas presenciais.
Para tanto, seguimos o caminho metodológico inspirado na
construção do caso, conforme proposto pela perspectiva da pesquisa
psicanalítica. Nessa abordagem, é destacada a importância do traço,
entendido como característica, sinal, vestígio ou marca do que não se
dá imediatamente a ver, dos indícios e da escuta destes, seja nos casos
clínicos (Freud, 1975) ou em obras de arte (Freud, 2012a), além de outras
manifestações sociais e da cultura. Sobre esse método, Dunker e Za-
netti (2017), inspirados em Lacan, indicam, ainda, que a construção do
caso implica a leitura, identificação e organização de traços, ou signos,
relevantes, da mesma maneira que o trânsito entre formas de significa-
ção e sua expressão, além da proposição de modos de escrita, denomi-
nados transliteração.
Nesse sentido, tomamos o ensino remoto e a docência nesse con-
texto como caso para pensarmos o fazer do professor nessa inédita for-
ma de ensinar. Traços e indícios desse processo, tal como suas vicissi-
tudes, são buscados em notícias colhidas na internet e relatos pessoais.
Em diálogo com conceitos da psicanálise freudo-lacaniana, principal-
mente com o conceito de transferência, tecemos alguns aportes para
pensar a docência em tempos de distanciamento social e, consequente-
mente, em modos possíveis para o educar.
Primeiramente, problematizamos uma falsa dicotomia entre en-
sino presencial e EaD, ou ensino remoto, para sustentarmos que não é a
forma de ensino – seja ele presencial ou a distância, ou remoto – que ga-
rante à proposta didático-pedagógica o efeito de troca, relação e cons-
trução de aprendizagens, mas, sim, os modelos teóricos conceituais que
sustentam tais formas. Em um segundo momento, apresentamos recor-
tes de narrativas colhidas nas redes sociais e mídias digitais acerca dos
modos de vivência do ensino remoto por professores, alunos e familia-
res. Essas narrativas nos dão indícios ou signos para problematizarmos
a docência a partir do diálogo com a psicanálise, o que é proposto na
sequência. Por fim, em conclusão, reunimos em síntese elementos para
pensar o fazer do professor no âmbito do ensino remoto, além de lan-
çarmos outros questionamentos necessários de serem abordados em
trabalhos futuros.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109145, 2020. 3


Sustentar a Transferência no Ensino Remoto

Uma Falsa Dicotomia Entre Ensino Presencial e EaD,


ou Ensino Remoto
Como já mencionamos, além da necessária crítica acerca dos as-
pectos socioeconômicos que impedem grande parte dos brasileiros de
ter acesso aos recursos para seguir trabalhando e estudando remota-
mente devido à enorme desigualdade de renda entre a população, ponto
este que denunciamos, mas que não será explorado neste artigo, uma
falsa dicotomia entre o ensino presencial e a EaD, ou o ensino remoto,
aparece como alvo dos debates sobre as alternativas encontradas para
transpor as aulas dos diferentes níveis de ensino presencial para ou-
tras formas de sustentar o ensinar. Quando nos referimos a uma falsa
dicotomia, não estamos afirmando a equivalência dos modos de levar
a cabo o ensino, apagando as diferenças entre eles, mas indicamos o
equívoco, no nosso entender, em considerar o ensino presencial como
necessariamente garantidor de uma qualidade no ensinar e aprender
em detrimento de uma má qualidade inerente à EaD, ou ao ensino re-
moto.
Antes de darmos sequência a esse debate, consideramos impor-
tante uma breve diferenciação entre EaD e ensino remoto, mesmo que
ambos envolvam o uso de recursos digitais, predominantemente, para
a sua implementação. Uma clássica definição de EaD é apresentada por
Moore e Kearsley (2007), os quais destacam que, além do uso de tecno-
logias e da temporalidade diferenciada do processo, um curso é consi-
derado como EaD quando existe a presença de professores e alunos que
se encontram em um espaço virtual (predominantemente) organizado
a partir de pressupostos didático-pedagógicos propostos para tal fim,
que orientam a proposição de atividades e sua avaliação subsequente.
Um dos importantes documentos brasileiros sobre EaD se trata
do Decreto nº 9.057, de 25 de maio de 2017 (Brasil, 2017), no qual o termo
educação a distância é caracterizado da seguinte forma:
Art. 1º Para os fins deste Decreto, considera-se educação
a distância a modalidade educacional na qual a mediação
didático-pedagógica nos processos de ensino e apren-
dizagem ocorra com a utilização de meios e tecnologias
de informação e comunicação, com pessoal qualificado,
com políticas de acesso, com acompanhamento e ava-
liação compatíveis, entre outros, e desenvolva atividades
educativas por estudantes e profissionais da educação
que estejam em lugares e tempos diversos (Brasil, 2017).
Ao lermos essas definições, destacamos que, embora mencionem
o uso de recursos digitais como intermediadores na relação entre pro-
fessor, aluno e conhecimento, cada curso na modalidade a distância
está ancorado em pressupostos teórico-conceituais que sustentam as
práticas didático-pedagógicas e estão articulados com os recursos di-
gitais utilizados e sua forma de uso, além de orientarem as relações en-
tre os participantes da cena educativa – característica esta explicitada
principalmente no conceito abordado por Moore e Kearsley (2007). Por
outro lado, o ensino remoto não pode ser considerado uma modalidade
4 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109145, 2020.
Charczuk

educativa, mas, sim, uma ação pedagógica, na qual se processa certa


transposição do ensino presencial para o ensino mediado por ferra-
mentas digitais, predominantemente, ou pela proposição de apostilas
e materiais impressos remetidos aos alunos.
Ainda, no caso do ensino remoto, não existe planejamento ou
modelos teórico-conceituais específicos e prévios para sua prática; há
apenas a transposição do trabalho presencial para um espaço digital ou
impresso. Usam-se recursos digitais ou materiais entregues aos alunos
para viabilizar o que foi planejado pedagogicamente para ser realiza-
do presencialmente, sem a enunciação explícita de um plano didático-
pedagógico articulado com as ferramentas. Tal definição se aproxima
do que é apresentado por Bozkurt e Sharma (2020), quando se referem
ao ensino remoto de emergência, caracterizando-o como uma solução
temporária para uma problemática que se instala de modo imediato. Os
autores mencionam, ainda, que, embora tal solução possa se apropriar
de forma original e criativa de recursos e experiências desenvolvidos no
âmbito da EaD, não podemos tratá-los de forma equivalente.
Embora existam essas diferenças, que não permitem colocarmos
a EaD e o ensino remoto como equivalentes, conforme mencionado aci-
ma, as críticas recebidas por essa modalidade e essa ação pedagógica
são um tanto semelhantes, pois focalizam e imputam justamente uma
precarização inerente ao uso de ferramentas digitais como intermedia-
doras nos processos de ensinar e aprender. Assim, o ensino mediado por
tecnologias digitais – seja ele a modalidade EaD ou ensino remoto – é
considerado a priori, pelo senso comum, como de má qualidade, porque
impede o olho no olho, a espontaneidade, centrando-se no professor
que apenas repassa informações para os alunos etc.
Discordamos desses posicionamentos, pois consideramos que a
discussão centrada somente nas ferramentas digitais é insuficiente e
empobrece a complexidade do assunto. Para pensarmos o ensino, bem
como avaliarmos sua potencialidade na viabilização de processos de
aprendizagem que reconheçam professores e alunos como sujeitos e
autores, precisamos estar atentos principalmente aos modelos teórico-
conceituais que ancoram essas práticas. Aqui, consideramos importan-
te salientar que, mesmo não evidenciando um modelo que ampara a
prática do ensino remoto de forma prévia ao planejamento dela, como
apresentado anteriormente, esse modo de efetivar o ensinar guarda a
marca dos modelos que sustentam o fazer do professor, ainda que este
não tenha consciência de sua existência e operatividade.
Nesse sentido, consideramos pertinente uma sintética apresenta-
ção de alguns modelos teórico-conceituais para articularmos tais defi-
nições sobre a potência, ou não, das formas de ensinar. Classicamente,
encontramos na literatura da área da educação a conceitualização de
três formas de conceber a construção dos conhecimentos e que, con-
sequentemente, nos dão pistas para pensar os modos de ensino, quais
sejam: (i) o modelo associacionista empiricista; (ii) o modelo inatista,
ou apriorista; e (iii) o modelo construtivista. No que se refere especi-
ficamente a uma abordagem epistemológica sobre a relação do sujeito

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109145, 2020. 5


Sustentar a Transferência no Ensino Remoto

com os conhecimentos, destacamos o trabalho de Jean Piaget (1988),


que apresenta os três modelos supracitados conforme segue: (i) o pri-
meiro se vincula ao associacionismo empiricista e entende o conhe-
cimento como aquisição externa, fruto da apresentação de estímulos
sensoriais apresentados pelo outro ao sujeito; (ii) por sua vez, os fatores
inatos e maturacionais são priorizados pelo segundo modelo, que com-
preende a razão como pré-formada no sujeito e os conhecimentos como
expressão interna da razão; (iii) por fim, o último modelo compreende
o conhecimento como processo construído por elaborações sucessivas,
sendo o acento colocado sobre a atividade do sujeito e não nos meca-
nismos exógenos (primeiro modelo) ou endógenos (segundo modelo).
Passamos agora ao exercício de articular tais modelos teóricos-
conceituais com os modos de ensino. Quando pensamos esses mode-
los articulados com o ensino presencial, podemos destacar a clássica
abordagem proposta por Becker (2001) quando o autor apresenta três
modelos pedagógicos da forma que segue: (a) o primeiro, denominado
pedagogia diretiva, está ancorado no modelo teórico conceitual empi-
ricista, cujo pressuposto central é a noção de que o conhecimento deve
ser transmitido do professor para o aluno; (b) o segundo, a pedagogia
não diretiva, apoia-se no modelo teórico-conceitual inatista, ou aprio-
rista, que entende o conhecimento como pré-formado no aluno, bas-
tando que este o traga à consciência com a facilitação do professor, que
pouco tem ingerência sobre o processo; (c) por fim, o autor refere à pe-
dagogia relacional, que se constitui a partir do modelo teórico concei-
tual construtivista, compreendendo a aprendizagem como construção,
a partir da ação do aluno e de sua relação com o professor.
Para pensarmos as implicações dos modelos teórico-conceituais
na EaD, recorremos ao trabalho de Preti (2009), o qual indica que uma
prática empiricista na EaD, ou no ensino remoto, compreende aqueles
cursos oferecidos massivamente como pacotes educacionais cujos ob-
jetivos consistem na instrução e no treinamento dos cursistas por meio
da oferta de informação massiva e conteudista. A ênfase recai, portanto,
na distribuição de conteúdo na web ou na forma de apostilas; no cum-
primento de uma agenda de atividades previamente estabelecidas e
avaliações cumulativas. Em uma abordagem inatista, é enfatizada a in-
dependência do aluno, que aprende sozinho, ao seu tempo, por meio de
consultas a materiais disponíveis, com predomínio da autoavaliação; já
nos cursos elaborados a partir de uma abordagem construtivista, o que
é priorizado é a interação entre professor, aluno e conhecimento e são
enfatizados os recursos digitais, que possibilitam a troca e a aprendiza-
gem compartilhada (tais como fóruns de discussão, wikis para elabo-
ração de textos coletivos etc.), sendo pertinente frisar que os recursos
são compreendidos como ferramentas de autoria e não mais como fins
em si mesmos. Apoiando-nos nas abordagens de Piaget (1988), Becker
(2001) e Preti (2009), se deslocamos o acento de análise nas tecnologias
digitais em si para os modelos teóricos-conceituais que ancoram os
diversos modos de ensino – presencial, a distância ou remoto –, pode-
mos perceber que todos estão sujeitos a práticas transmissivas (quando
se aproximam do modelo empiricista), autodidatas e individualistas
6 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109145, 2020.
Charczuk

(quando a proximidade é com o modelo inatista, ou apriorista), ou à pre-


valência da relação entre professor, aluno e conhecimento (sustentadas
em pressupostos construtivistas).
Mesmo que a teoria psicanalítica freudo-lacaniana não seja apre-
sentada por Piaget (1988), Becker (2001) e Preti (2009) na caracterização
desses modelos teórico-conceituais, sustentamos aqui sua aproxima-
ção com os modelos construtivistas pela crítica, ou pelo afastamento,
ao conceito de realidade proposto pelo behaviorismo (escola psicoló-
gica que se apoia no empiricismo) e pelo idealismo (próximo às teorias
inatistas, ou aprioristas). Em vez de conceber a relação com a realidade
como cópia, Lacan (2008a, p. 62) expõe que “[…] a realidade só é entre-
vista pelo homem, pelo menos no estado natural, espontâneo, de uma
forma escolhida”, sendo que “[...] o homem lida com peças escolhidas
da realidade1”. Sobre o idealismo, o autor diz que “[…] consiste em di-
zer que somos nós que damos a medida da realidade, e que não se deve
buscar para além disso. É uma posição reconfortante. A de Freud, aliás
como o de todo homem sensato, é coisa bem diferente” (Lacan, 2008a,
p. 42). Além disso, a importância que essa abordagem outorga à relação
com o outro como sujeito falante que produz intermediação nos pro-
cessos de pensamento e constituição da subjetividade e, consequen-
temente, dos processos de aprendizagem (Lacan, 2008a) também nos
permitem aproximá-la das abordagens construtivistas. Especificamen-
te sobre o conceito de aprendizagem para a psicanálise, D’Agord (2010,
p. 148) afirma que
Uma direção de aprendizagem fundada no método psica-
nalítico envolve, em primeiro lugar, a suposição de sujeito
de um saber inconsciente. Isto é, o professor, como aquele
que dirige aprendizagens, supõe um saber naqueles que
se encontram em situação de aprendizagem (os estudan-
tes). Na situação de aprendizagem, um saber inconsciente
é o que determina nossas escolhas conscientes por tópi-
cos do conhecimento.
Afirmamos nossa aproximação com a psicanálise freudo-laca-
niana, pois consideramos que são os conceitos dessa teoria que melhor
subsidiam a proposição de um ensino que reconheça professor e alu-
no como sujeitos, tanto do processo de ensinar quanto do processo de
aprender. Igualmente, ancorados nessa abordagem, propomos nossa
análise da docência em tempos de isolamento. Na sequência, pontua-
mos as contribuições da psicanálise para pensar a docência no contex-
to do ensino remoto, sendo apresentadas e articuladas com reflexões
acerca de cenas do ensino remoto colhidas das redes sociais e da mídia
digital. Por ora, compartilhamos algumas cenas de ensino e algumas
articulações destas com o debate teórico até aqui desenvolvido.

Cenas do Ensino Remoto na Pandemia


Muitos são os relatos, depoimentos e narrativas que podem ser
acompanhados, principalmente pelos meios digitais, que tratam de
impasses, desafios, sofrimento e invenções das famílias, crianças e
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Sustentar a Transferência no Ensino Remoto

professores nesses meses de confinamento e afastamento da escola.


Em uma consulta à web (dados secundários) e depoimentos enviados
por familiares (dados primários), foi possível colher alguns relatos que
nos inspiram a problematizar a docência em tempos de ensino remoto,
sendo que resgatamos algumas narrativas, organizadas adiante em sete
cenas.
Na Cena 1, Ceila Sodré de Carvalho, que tem duas filhas adoles-
centes na rede estadual de ensino na cidade de Vila Rica, Mato Grosso,
diz o seguinte:
Apesar de estar achando bom, acho o sistema limitante.
Na escola, sei que a metodologia é um pouco mais rígida.
Eu valorizo os dois meios por conta das circunstâncias de
agora, da pandemia, mas sei que a convivência das mi-
nhas filhas com os outros e com os professores em sala de
aula, por exemplo, é muito importante, e agora elas estão
sem isso (Sampaio, 2020).
Na Cena 2, Barbara Lehmkul, mãe de Arthur, de 4 anos, morado-
res de Ituporanga, Santa Catarina, aponta que as atividades em casa
são “[…] uma forma de os pais participarem do dia a dia das crianças,
ajudar a educar. Com o Arthur mais próximo da gente, eu descobri que
ele já sabe até separar as palavras com sílabas. Está sendo muito bom”
(Szenczuk, 2020).
Na Cena 3, Ana, mãe de Lucas, de 4 anos, e Ricardo2, de 9 anos, que
são moradores de Curitiba, Paraná, compartilhou o seguinte relato, por
Whatsapp, em conversa informal:
Mandaram um vídeo da professora do Lucas dançando música de festa
junina, como se estivesse ensaiando as crianças… A orientação para os
pais é que vestíssemos as crianças com roupas típicas e gravássemos eles
dançando a coreografia proposta pela professora. Resultado na prática:
Lucas chorando porque não queria dançar em casa e sim na escola ‘de
máscara pro vírus não pegar’. Em outros momentos, tentei dar as aulas
seguindo os temas… Ele só faz o que está a fim, diz ‘você não é minha
profe!’.
O Ricardo usa camiseta da escola para assistir às aulas… foi uma forma
que criamos (eu e as outras mães da turma) para manter essas ‘manias de
escola’. Ele desenvolveu autonomia, se organiza em torno da rotina es-
tabelecida, faz as lições, se envolve… apronta (às vezes fica desenhando
no caderno ou vendo o celular embaixo da ‘carteira’) leva bronca… Ele
reclama, acho muito tempo para a aula online, mas funciona… a falta de
interação humana pesa, sinto ele tenso e às vezes se desorganiza emo-
cionalmente…
A Cena 4 consiste em uma transcrição do áudio de Whatsapp, en-
viado por João Vitor dos Santos, de 6 anos, morador de Lagoa Vermelha,
Rio Grande do Sul, para a sua professora, Benice Ávila Matos, conforme
segue:
[...] sem você, professora, eu não consigo aprender bem.
A mãe não é igual a você. Você tem as ‘manias’ de ‘prô’.
A minha mãe não tem. Ela trabalha num restaurante, ela

8 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109145, 2020.


Charczuk
só tem a ‘mania’ de fazer comida. Desculpe te incomodar
agora, só que eu queria falar pra senhora isso (Padilha,
2020).
Na Cena 5, apresenta-se Pedro Daniel, de 18 anos, aluno da rede
pública do Paraná, que argumenta o que segue:
Sinceramente, eu estou achando bem ruim, pois a comu-
nicação e a interação com os professores são bem difíceis,
e é difícil acompanhar o que eles passam pela TV ou pelo
computador. Esse método de ensino parece mais compli-
cado de entender, e é ruim porque não temos como tirar
dúvidas no momento em que elas surgem. Caso você não
entenda algo, não é como no colégio, onde os professores
repetem até você entender (Sampaio, 2020).
A Cena 6 manifesta a fala de Débora Meneghetti, professora, resi-
dente em Recife, Pernambuco:
O olhar do aluno na sala diz muito. Ele pode sacudir a
cabeça afirmando que compreendeu, mas o olho diz
que não. Com a aula remota, as câmeras da turma ficam
desligadas enquanto explico o assunto. Tenho então que
ser mais detalhista, repetir, ensinar mais devagar para
ter certeza de que entenderam. É bom porque antes da
pandemia alguns alunos comentavam que eu era muito
apressadinha. Fui forçada a desacelerar e estou achando
bom (Azevedo, 2020).
Por último, a Cena 7 expõe a impressão de Elisa, professora da
rede pública de ensino do Estado do Paraná:
Eles têm tentado nos convencer de que nós somos prota-
gonistas nesse processo […]. A gente é protagonista, mas
eles dizem que você pode mexer nos conteúdos que a sede
está mandando, mas dizem que não deve mexer muito,
não é aconselhável. Dizem que você pode tirar as ativi-
dades, mas aí o aconselhável depois é não tirar. Então, é
uma coisa muito complicada. Nunca na vida quis traba-
lhar com EAD, e agora estou metida nessa encrenca (Sam-
paio, 2020).
Na busca por essas cenas, não foi nosso objetivo propor uma sis-
tematicidade ou critérios específicos e rígidos de consulta. Priorizamos
apenas sites que traziam notícias do cenário brasileiro ou relatos re-
cebidos por Whatsapp3. Interessou-nos, em algumas cenas que foram
apresentadas, seu valor de traço, daquilo que não se dá imediatamente
a ver, que precisa ser, de certa forma, interpretado.
Freud (2012a), no texto O Moisés de Michelangelo, de 1914, apre-
senta a construção da análise da escultura do artista, movimento este
que nos permite afirmar que a construção em psicanálise não se refere
ao desvelamento de um sentido puramente oculto, mas como algo iné-
dito, criado a partir do trabalho do analista no encontro com o material
analisado (fala do analisando, obra de arte etc.). No texto Construções
em Análise, Freud (1975) aproxima o trabalho da psicanálise com a pes-
quisa arqueológica. Tal comparação se apoia no fato de que o analista
Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109145, 2020. 9
Sustentar a Transferência no Ensino Remoto

“[...] extrai suas inferências a partir dos fragmentos de lembranças, das


associações e do comportamento do sujeito da análise” (Freud, 1975, p.
293), ou do material a ser analisado, acrescentamos.
Podemos acompanhar alguns traços que se repetem nas cenas
apresentadas, como falta ou dificuldade de interação (Cenas 1, 3, 5 e 6),
diferença entre professora e mãe (Cenas 3 e 4) e deslocamentos da práti-
ca (Cenas 3, 6 e 7). No que se refere à falta ou à dificuldade de interação,
na Cena 1 a mãe entrevistada enfatiza a questão da ausência de convi-
vência das filhas adolescentes com colegas e professores quando indica
que: “[...] agora elas estão sem isso” (Sampaio, 2020), o que também é
evidenciado na cena 3, haja vista que a mãe diz que “[...] a falta de intera-
ção humana pesa”. O aluno da cena 5 enfatiza que “[…] a comunicação e
a interação com os professores são bem difíceis, e é difícil acompanhar
o que eles passam […]” e a professora na cena 6 afirma que “[...] o olhar
do aluno na sala diz muito. Ele pode sacudir a cabeça afirmando que
compreendeu, mas o olho diz que não. Com a aula remota, as câmeras
da turma ficam desligadas enquanto explico o assunto” (Azevedo, 2020;
Sampaio, 2020).
Ao nos debruçarmos sobre essas narrativas, podemos conjecturar
que a interação mencionada se refere a estar junto com os outros cole-
gas e professores, compartilhando um mesmo espaço físico presencial,
devendo-se observar que outras formas de interação, mediadas pelas
tecnologias digitais, parecem não ganhar espaço de reconhecimento
possível. Nesse sentido, não queremos fazer equivaler interação presen-
cial, que implica a presencialidade do corpo físico, e interação virtual,
pois compreendemos que consistem em modos diferentes de estar com
o outro; porém, não podemos desconsiderar que os espaços mediados
por dispositivos digitais também podem produzir encontros. Quando
não reconhecemos essa possibilidade, corremos o risco de dicotomizar
interação presencial e interação virtual, de forma semelhante ao que se
faz com ensino presencial e EaD, ou ensino remoto, conforme aponta-
mos anteriormente.
O aluno da Cena 5, ao falar de interação, destaca um outro aspec-
to: a dificuldade na interação não está necessariamente na ausência
da presença física, mas “[…] em acompanhar o que eles [professores]
passam […]”. Aqui, o aluno parece denunciar muito mais um modelo
teórico-conceitual empiricista do que o fato de as aulas acontecerem
remotamente. Contudo, a crítica que, em um primeiro momento, pode
estar dirigida ao ensino remoto camufla uma questão de fundamento:
como abordamos na seção anterior, tanto o ensino presencial pode ser
diretivo (Becker, 2001) quanto a EaD, ou o ensino remoto (Preti, 2009).
Na mesma direção, quando a professora da Cena 6 diz que “[...] o olhar
do aluno na sala diz muito […]. Com a aula remota, as câmeras da turma
ficam desligadas enquanto explico o assunto”, questionamo-nos: e se
as câmeras fossem ligadas, não seria possível acompanhar o olhar do
aluno? Ambas as cenas nos permitem identificar que a problemática da
interação diz muito mais sobre a forma como ela pode se estabelecer,
ou não, bem como quanto aos fundamentos teórico-conceituais que a

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balizam do que sobre o espaço (presencial, a distância, ou remoto) que


a suporta.
Outro traço interessante que é possível decantar das narrativas
reside na diferença que as crianças pequenas, vinculadas à educação
infantil, pontuam entre ser mãe e ser professora. Na Cena 3, Lucas, de
4 anos, diz para sua mãe “[...] você não é minha profe!”; João Vitor, de 6
anos, na Cena 4, fala para a professora “[...] sem você, professora, eu não
consigo aprender bem. A mãe não é igual a você. Você tem as ‘manias’
de ‘prô’. A minha mãe não tem”. Nesse sentido, considera-se de suma
importância destacar a escola como lugar terceiro, que faz borda em
relação ao espaço privado da família e o espaço público da sociedade.
Sobre esse ponto, Kupfer e Bernardino (2009, p. 12) destacam que “[...] é
fundamental que as crianças possam fazer bons encontros – não apenas
com seus pais, fundadores de suas marcas primordiais, mas também
com todos aqueles que vão representar para elas esse campo simbólico
mais amplo, ao plano social”. Com suas falas, essas crianças parecem
distinguir o papel da professora do papel da mãe, reconhecendo aquela
como alguém que as sustenta no lugar de aluno, lugar terceiro que se
coloca entre a díade mãe (ou família) – filho. Em relação a esse aspecto,
observamos que o ensino remoto tende a borrar esses lugares, exigin-
do das mães, predominantemente, a função de sustentar a proposta da
escola e, principalmente, o lugar da professora, o que é rechaçado pelo
menino da Cena 3; a diferença entre uma e outra é também denunciada
pelo menino da Cena 4, “[...] você tem as ‘mania’ de profe, a minha mãe
não tem”. Mais adiante, na seção seguinte abordaremos outros aspectos
envolvendo o lugar de aluno da educação infantil no contexto do ensino
remoto.
Em relação ao traço deslocamentos da prática, somos convocados
a refletir sobre o que se conserva e o que promove torção nessa passa-
gem do ensino presencial para o ensino remoto. Na Cena 3, a mãe relata
que o filho de 9 anos veste a camiseta da escola no horário da aula, ato
simbólico apoiado por ela (e as outras mães dos colegas) como represen-
tante de um lugar, marca da escola em casa. O lugar-escola se conserva
no espaço-casa. De acordo com a fala da mãe, isso tem auxiliado na or-
ganização e autonomia do filho, mesmo que momentos de angústia se
inscrevam. A professora da Cena 6 manifesta que “[...] antes da pande-
mia alguns alunos comentavam que eu era muito apressadinha” e que
agora tem modificado seu modo de compartilhar o conteúdo, “[...] fui
forçada a desacelerar e estou achando bom”, o que denota possibilida-
des de aprender e construir outros modos de ser professora, promoven-
do uma torção no fazer docente que, quiçá, possa inspirar mudanças
no retorno ao ensino presencial. Por outro lado, a professora da Cena 7
denuncia que, apesar de outorgar protagonismo aos professores, a rede
de ensino, ao mesmo tempo que indica a possibilidade de modificação
do conteúdo e das atividades no ensino remoto, nega esse movimento
ao professor. Assim, embora haja a sinalização de uma abertura para a
invenção do professor, este se vê convocado a uma transposição do en-
sino presencial para o remoto sem possibilidade de autoria.

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Sustentar a Transferência no Ensino Remoto

Em suma, as cenas compartilhadas parecem nos dar subsídios


que permitem um deslocamento da crítica e da problemática do ensino
remoto, dos aspectos tecnológicos em direção aos laços estabelecidos
por intermédio das tecnologias. Se o modo de ensino, por si só, não sus-
tenta uma prática autoral que reconheça professor e aluno como sujei-
tos do processo de ensino e aprendizagem, resta-nos questionar, nesse
momento de exceção em que vivemos, como sustentar um espaço de
transmissão que não seja necessariamente o espaço físico da escola,
bem como de que modo constituir e sustentar uma relação entre pro-
fessor, aluno e conhecimento no contexto de distanciamento social. Na
seção seguinte, propomos alguns outros traços inspirados nas cenas
compartilhadas que nos permitam pensar o fazer do professor e o en-
contro com o aluno no ensino remoto.

Docência e Ensino Remoto: sustentar a transferência


A demanda emergente da passagem de uma forma de trabalho
docente presencial para a oferta do ensino remoto produziu nos profes-
sores uma urgência em adaptar os modos de encontro com os alunos e
a partilha dos conteúdos didáticos. Nesse sentido, podemos conjeturar
que os professores, em um primeiro momento, (pre)ocuparam-se em
pensar recursos técnicos (áudio, vídeo, apostilas) que subsidiassem o
ensino, fazendo com que o estabelecimento de um outro laço possível
com o conhecimento e com os alunos ficasse frágil ou fosse colocado
em segundo plano. A impossibilidade de compartilhamento da escola
como espaço físico tradicional exige que a sustentação do laço possa se
dar de outras maneiras e tendo que contar com o intermédio das tec-
nologias digitais. Mais do que centrarmos no debate sobre os recursos
tecnológicos em si, propomos que o questionamento acerca dos modos
de sustentar a interação no ensino remoto inscreve-se como grande de-
safio.
Conforme argumentamos anteriormente, apostamos que é justa-
mente o laço entre professor, aluno e conhecimento que produz efeitos
de reconhecimento dos sujeitos e de autoria nos processos de ensino e
aprendizagem, aproximando-nos dos modelos teóricos construtivistas
e da abordagem psicanalítica. As cenas apresentadas acima nos indica-
ram que a interação, ou falta desta, se destaca como um dos signos im-
portantes que se dá a ler no processo de análise das narrativas e aparece
como grande preocupação de familiares, alunos e professores. Quando
pensamos na interação a partir da psicanálise, somos remetidos ao con-
ceito de transferência e no modo como esta opera no contexto educati-
vo.
Tal conceito está estreitamente vinculado com o método de trata-
mento proposto pela psicanálise. Conforme destaca Maurano (2006), o
termo remete ao laço afetivo estabelecido entre o médico e o paciente,
sendo que tal laço permite a expressão e reatualização das conflitivas
inconscientes na cena analítica. Lacan (2010) dedicou um dos seus se-
minários ao trabalho com o conceito de transferência, resgatando os
apontamentos freudianos sobre o tema e incluindo a dimensão da fala

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como central no processo transferencial. Segundo Lacan (2010, p. 221),


“[…] parece-me impossível eliminar do fenômeno da transferência o
fato de que ela se manifesta na relação com alguém a quem se fala”.
A transferência pode estar presente em outros contextos de en-
contro, nos quais um sujeito remete sua fala a outro(s), como é o caso
da educação, e se apresenta como um dos fenômenos principais quan-
do tratamos da relação entre professor, aluno e conhecimento a partir
da perspectiva psicanalítica. Aqui, podemos resgatar a fala do menino
João Vitor, na Cena 4, pois, quando ele comenta sobre o seu processo de
aprendizagem no ensino remoto, coloca o acento na professora e não
necessariamente no espaço escolar, afirmando o que segue: “[...] sem
você, professora, eu não consigo aprender bem”. Em seu clássico texto
Sobre a Psicologia do Colegial, publicado em 1913, Freud (2012b) comen-
ta que a personalidade dos professores mobiliza e constrói laço com os
estudantes tanto quanto, ou mais que, os conteúdos, pois entende que
o acesso ao conhecimento é realizado através da pessoa do mestre. Po-
demos considerar que é a transferência que possibilita ao aluno se valer
do professor e extrair dessa relação um saber próprio que se torna base
para a construção de novos saberes e conhecimentos (Kupfer, 1995).
Com essa reflexão, os autores nos convocam a pensar sobre o efei-
to que tal laço provoca tanto nos alunos quanto nos professores. Para
Speller (2004), é de suma importância que o professor se aproxime des-
se conceito no exercício da docência, pois, ao trabalhar com pessoas, a
profissão exige dele que se ocupe das relações estabelecidas com essas
pessoas e não somente conhecer o conteúdo a ser ensinado, elegendo
uma proposta metodológica para transmitir conhecimento. Nesse sen-
tido, pode-se questionar de que modo inscrever uma presença e esta-
belecer um laço transferencial, mesmo que estes sejam mediados pelas
tecnologias, em espaços outros que não a escola.
Em vez de apenas repassar materiais (textos, áudios ou vídeos)
prontos aos alunos com o auxílio dos meios digitais ou impressos, consi-
deramos que um elemento fundamental para o estabelecimento e a sus-
tentação do laço transferencial entre professor, aluno e conhecimento
no contexto do ensino remoto reside na possibilidade de o professor se
apresentar como sujeito-autor desses materiais, podendo deixar neles
marcas da forma como lida com o conhecimento. Nesse sentido, a pala-
vra do professor, seja por vídeo, áudio ou escrita, torna-se marca de sua
presença; faz-se corporeidade na ausência de um corpo ocupante da
materialidade de um espaço físico. Como menciona Lajonquière (2011),
a educação não pode estar distanciada da palavra do mestre, pois, se as-
sim se coloca, não pode ser considerada como processo formativo, mas
apenas repasse de informações.
No que se refere especificamente à possibilidade da palavra e pre-
sença do professor no contexto de educação a distância, destacamos o
trabalho de Silva (2010), no qual a autora afirma que “[...] estar próxi-
mo ou distante de alguém, presente ou ausente, no contexto atual de
desenvolvimento tecnológico que dispomos, não é mais uma questão
geográfica, é mais uma posição do sujeito na linguagem” (p. 118). Apos-

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Sustentar a Transferência no Ensino Remoto
tamos que as reflexões trazidas pela autora também são válidas para o
ensino remoto.
Ainda nesse sentido, afirmamos a importância da palavra e do
encontro entre corporeidades, como pontua a professora na Cena 6.
Mesmo na ausência do olhar devido ao desligamento das câmeras, a
professora modula a voz, desacelera, pois, a partir da escuta do aluno,
já instaurada desde antes da pandemia, desloca-se de uma posição do-
cente acelerada para ocupar outra diante desse novo cenário. A escuta
se faz presença e a palavra da professora também se inscreve produzin-
do o efeito que dá corpo ao encontro; assim, as tecnologias, sejam elas
digitais, analógicas ou impressas, ganham terreno como novo espaço a
ser ocupado de forma inédita, tanto pelo docente quanto pelos alunos,
como lugar de laço entre professor, aluno e conhecimento.
Além disso, consideramos que os materiais e as propostas de ativi-
dades remetidas pelo professor precisam constituir também lugar para
a inscrição de cada aluno como sujeito de seu processo de aprender.
Portanto, apostamos nas propostas que visem mobilizar as perguntas
e a pesquisa, pois estas se mostram mais potentes tanto para o ensino
quanto para a aprendizagem quando comparadas com atividades que
visem respostas prontas ou mera aferição de conhecimentos.
Quando o aluno é convidado a construir conhecimentos a par-
tir de suas perguntas, torna-se possível inscrever nestas um tanto de si,
de suas inquietações e angústias nesse processo de construção. Freud
(2016), em 1905, frisa que é por meio das perguntas dirigidas ao adulto
que a criança tece suas teorias sexuais infantis, precursoras do desejo
de saber e mobilizadoras dos processos sublimatórios que sustentam
as futuras aprendizagens. Já no texto O pequeno Hans, de 1909, Freud
(2015) apresenta o percurso de investigação do menino acerca da se-
xualidade, afirmando que “[...] ânsia de saber e curiosidade sexual são
inseparáveis” (p. 129). Consideramos que esse aporte teórico nos auxi-
lia a pensar no efeito da pergunta como mobilizadora de saberes e co-
nhecimentos, podendo nos auxiliar também a pensar na proposição de
atividades aos alunos, mesmo no contexto remoto. Nessa direção, apos-
tamos em proposições de atividades tais como os projetos de aprendiza-
gens, nos quais os alunos são convidados a tecer uma pesquisa apoiada
nas perguntas que podem formular a respeito de determinados conte-
údos, compartilhando seus achados e construções com o professor e os
colegas (Longo, 2012; Fagundes; Sato; Maçada, 1999).
Algumas breves considerações restam a serem feitas quando le-
vamos em consideração o processo de constituição subjetiva do aluno e
sua relação com o ensino remoto. As crianças pequenas, vinculadas es-
pecialmente ao contexto da educação infantil, que vivenciam um tem-
po constitutivo que as coloca fortemente alienadas no corpo do outro
(Lacan, 2008b), e aquelas que se encontram com algum impasse no seu
processo de constituição como sujeito, tendem a necessitar da presença
física e material do corpo de um outro adulto no percurso do ensino re-
moto. Assim, considera-se que o adulto que divide o espaço físico com a
criança precisa operar como suporte para a palavra do professor, o que
pode causar impasses nesse processo.
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Por um lado, como acompanhamos na Cena 2, embora possa


ocorrer um estreitamento de laço entre a criança e a família, pode ocor-
rer, igualmente, o risco de que a diferença entre mãe e professora, como
também entre casa e escola, não se inscreva, ou apareça dificultada.
Assim, opera-se um engolfamento do espaço público terceiro pelo es-
paço privado-doméstico que dificulta o encontro da criança com outras
abordagens do social possíveis, além da familiar. Cabe destacar que a
escola se configura para as crianças como um lugar próprio e de en-
contro com outras crianças, ao contrário da casa, lugar compartilhado
com a família. Conforme já apontamos neste trabalho, a escola como
espaço terceiro entre a criança e a família é de suma importância na
constituição do pequeno ser como sujeito e sua inserção na cultura (Ku-
pfer; Bernardino, 2009), a qual também se constitui em espaço protetivo
para situações de violências domésticas de toda ordem – casos estes que
tendem a ficar ainda mais invisibilizados no atual contexto, principal-
mente quando envolvem crianças bem pequenas.
Em contrapartida, como vimos na Cena 3, quando a criança afir-
ma que há diferença entre casa e escola, denotando um movimento
promotor de sua constituição subjetiva, o que pode se tornar difícil no
processo é justamente o adulto familiar fazer valer a palavra da profes-
sora, na ausência física do corpo desta, tendo em vista a fala do menino
Lucas: “[...] tu não é minha professora!”. Nessas situações, talvez o re-
curso possível para sustentar algo de escolarização para essas crianças
e suas famílias seja a proposição de atividades que possam ser feitas em
conjunto por adultos e crianças, encontrando na professora e na escola
um espaço que possa receber os relatos, fotos e vídeos dessas experiên-
cias vivenciadas em casa. Possibilitar espaço de escuta das aprendiza-
gens que se fazem nesse tempo, em companhia da família, parece ser de
suma importância nesse momento de isolamento social e pode se cons-
tituir como lugar privilegiado de inscrição da escola como lugar terceiro
partícipe no processo de subjetivação da criança.
Quando colhemos narrativas sobre o percurso de crianças mais
velhas, nos anos iniciais da escola – principalmente após o processo
de alfabetização – e adolescentes do ensino médio, no ensino remoto,
observamos que estes já atravessaram o processo de separação (Lacan,
2008b), evidenciando-se um movimento de constituição subjetiva que
permite a elas o investimento em objetos para além do corpo e da mo-
rada familiar; o estatuto da palavra já apresenta certa independência
do objeto e adquire consistência simbólica, além de a criança poder se
afirmar como sujeito de desejo. Embora não seja suficiente para ga-
rantir um percurso no ensino remoto sem dificuldades e angústias, o
processo pode ocorrer de forma mais tranquila e independentemente
da família. Esse aspecto pode ser acompanhado no relato da mãe de
Ricardo, na Cena 3, quando compartilha que:
[...] ele desenvolveu autonomia, se organiza em torno da rotina estabe-
lecida, faz as lições, se envolve… apronta (às vezes fica desenhando no
caderno ou vendo o celular embaixo da ‘carteira’) leva bronca… Ele re-
clama, acho muito tempo para a aula online, mas funciona…

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109145, 2020. 15


Sustentar a Transferência no Ensino Remoto

Em suma, o contexto do ensino remoto se coloca como emer-


gência e desafio para todos os participantes da cena educativa nesse
contexto de pandemia. Nesta seção, apresentamos algumas análises e
reflexões que nos possibilitam problematizar esse percurso inédito nos
processos de ensinar e aprender, pontuando, principalmente, o concei-
to de transferência como laço entre professor, aluno e conhecimento,
o qual pode também ser estabelecido no ensino remoto, mesmo que
nesse novo espaço educativo se instaurem novas formas de mal-estar
que ainda precisam ser escutadas e para as quais ainda precisaremos
construir instrumentos de acompanhamento e intervenção. Um tem-
po a posteriori será necessário para a elaboração dessa experiência que
vivemos no presente e que tanto nos desacomoda, tencionando modos
clássicos de pensar o ensinar e o aprender, mobilizando-nos a criar ou-
tros modos possíveis.

Considerações Finais
Não é nossa tarefa ‘entender’ logo um caso clínico, isso
talvez aconteça mais tarde, quando tivermos recebido
impressões suficientes dele. Provisoriamente deixamos
nosso juízo em suspenso e acolhemos com igual atenção
tudo o que se oferece à observação (Freud, 2015).
A incidência mundial da pandemia causada pela Covid-19 desve-
lou a fragilidade humana com a exposição a um vírus, contra o qual ain-
da estudamos formas de combate. Por outro lado, deparamo-nos com a
importância de estarmos com os outros e de sustentarmos outras for-
mas possíveis de laço, valendo-nos predominantemente dos meios digi-
tais para encontros, festejos e despedidas a fim de tentarmos diminuir
a distância física provocada pela necessidade do distanciamento social.
Com os contextos educativos não foi diferente. Professoras e professo-
res, de todos os níveis educacionais ao redor do mundo se defrontaram
com o desafio de operar o educar sem contar com o espaço físico da
escola. Nesse sentido, embora controverso e alvo de críticas, o ensino
remoto, das diversas formas que está sendo levado a cabo, vem susten-
tando o ensinar e o aprender em muitos países.
Valendo-nos da afirmação de Freud (2015), que abre esta última
sessão como epígrafe, quando consideramos a docência no ensino re-
moto como caso, podemos pensar que ainda não extraímos informa-
ções mais consistentes sobre essa forma de ensino. Como nos coloca o
mestre vienense (Freud, 2015), precisamos, momentaneamente, deixar
nossas leituras inacabadas, o juízo suspenso, para que possamos extrair
dessa experiência novos elementos que nos possibilitem pensá-la, e
também vivê-la. Por ora, o percurso realizado ao longo deste artigo nos
permite algumas considerações provisórias sobre o ensino remoto e o
exercício da docência nessa inédita forma de ensinar e aprender.
Tivemos a oportunidade de argumentar que as críticas dirigidas
ao ensino remoto e à EaD tendem a enfocar o uso das tecnologias toma-
das como prejudiciais ao laço, impossibilitando-o ou produzindo-o de

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maneira deficitária. Porém, consideramos que, embora reconheçamos


diferenças entre o laço presencial e o laço remoto, as críticas deveriam
ser dirigidas muito mais para as bases teórico-conceituais que podem
sustentar esse modo de ensino do que ao modo em si. Conforme abor-
damos, embora o ensino remoto careça de bases conceituais prévias ao
seu planejamento e proposição, elemento este que pode diferenciá-lo da
EaD, ele se ancora em conceitos que suportam, consciente ou incons-
cientemente, o fazer dos professores. É esse aspecto que, apostamos,
precisa ser considerado nas críticas e avaliações a serem produzidas
acerca dessa forma de propor o ensino. Nesse sentido, a oposição entre
ensino presencial e EaD, ou ensino remoto, se mostra superficial e in-
suficiente, pois quaisquer das formas podem assumir uma abordagem
diretiva, não diretiva ou relacional (Becker, 2001; Preti, 2009).
Outro elemento que despontou como de suma importância para a
nossa análise, intimamente ligado à discussão precedente, foi o debate
em torno da questão da interação. Percorremos algumas narrativas de
familiares, alunos e professores que versaram sobre suas experiências
com o ensino remoto. Nelas, direta ou indiretamente, a interação entre
professor, aluno e os conhecimentos compartilhados apareceu como
elemento importante nas percepções e avaliações feitas até o momento
sobre esse modo de ensino. A fim de problematizarmos teoricamente
sua potencialidade, analisamos esse novo modo de ensino a partir do
conceito de transferência conforme proposto pela psicanálise freudo-
lacaniana, devendo-se considerar que o laço transferencial entre pro-
fessor, aluno e conhecimento pode ser estabelecido no ensino remoto
por meio da escuta do aluno e da palavra do professor remetida àquele
junto aos materiais e às atividades compartilhados nos diversos am-
bientes virtuais ou enviados por meio impresso. Nesse sentido, a es-
cuta do aluno e a palavra do professor, e vice-versa, seriam elementos
indispensáveis para a construção de um laço e a sustentação de uma
corporeidade na impossibilidade de encontro físico dos corpos. Assim,
as tecnologias passam a suportar um espaço possível de encontro, de
palavra e não somente de reposição e divulgação de materiais didático-
pedagógicos.
Pontuamos, também, algumas singularidades quando pensamos
nas diferenças no processo de ensino remoto quando envolve alunos
pequenos, da educação infantil, de anos iniciais e finais, além do ensi-
no médio. Destacamos que os alunos menores, especialmente aqueles
de educação infantil e dos primeiros tempos nos anos iniciais, reque-
rem a participação de um adulto para dar suporte à palavra do profes-
sor no ensino remoto. Tal presença pode acarretar diversas vicissitudes,
tais como dificuldade na afirmação da diferença entre mãe e profes-
sora, além da distinção entre casa e escola, ou ainda o desafio dos pais
em sustentar a palavra da professora na ausência física desta. Os alunos
maiores, apesar das dificuldades e angústias geradas por esse modo de
ensino, parecem demonstrar possibilidades de engajamento e laço com
a proposta dos professores, dependendo da forma como elas são lança-
das. Evidencia-se que consideramos o processo de professores e alunos
que dispõem de recursos socioeconômicos e técnicos que permitam o

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Sustentar a Transferência no Ensino Remoto
acesso ao ensino remoto. Muito resta a ser discutido, principalmente
em termos políticos e socioeconômicos, sobre a exclusão de professo-
res e alunos desse processo justamente por desigualdades sociais que
não são exclusivas desse tempo de pandemia, mas que nesse contexto
se mostram exacerbadas.
Reconhecemos a complexidade do atual momento em que vive-
mos, seja ela subjetiva, política, econômica ou social. No contexto do
ensino remoto, precisamos recolocar o desafio e o compromisso social,
ético e político com a equidade de acesso de todas e todos a uma edu-
cação genuinamente inclusiva. Por ora, apostamos que as reflexões te-
cidas em torno da docência em tempos de distanciamento social são
necessárias e contribuem para reconhecer a função do professor e rea-
firmar a inscrição da educação como laço imprescindível entre sujeitos.
Nesse sentido, afirmamos a potência da abordagem psicanalítica para
apoiar e analisar uma prática docente que reconheça professores e alu-
nos como sujeitos-autores dos processos de ensinar e aprender, man-
tendo uma ética da relação por meio da transferência, reconhecendo
e auxiliando a nomear invenções e angústias nesse momento singular
e emergencial que caracteriza o encontro educativo no ensino remoto.

Recebido em 01 de outubro de 2020


Aprovado em 12 de novembro de 2020

Notas
1 É importante enfatizar que a noção de escolha para a psicanálise não remete
a um processo deliberado racionalmente, mas segue determinações do fun-
cionamento inconsciente. Para uma discussão pormenorizada sobre a noção
de escolha em psicanálise, indicamos a consulta ao artigo de Costa e Gomes
(2017).
2 Os nomes apresentados na Cena 3 são fictícios.
3 O uso destes relatos neste trabalho foi devidamente autorizado.

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Simone Bicca Charczuk é psicóloga (UNISINOS), Mestre em Saúde Coletiva


(UNISINOS) e Doutora em Educação (UFRGS). Professora da Faculdade de
Educação (UFRGS). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise,
Educação e Cultura - NUPPEC
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1947-1366
E-mail: sibicca@gmail.com

Editor-responsável: Carla Vasques

Este é um artigo de acesso aberto distribuído sob os termos de uma Licen-


ça Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Disponível em: <http://
creativecommons.org/licenses/by/4.0>.

20 Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109145, 2020.

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