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teatro e cultura híbrida

domingo, 7 de março de 2010

Foucault e o libertarismo
Foucault e o libertarismo

Edson Passetti e Salete Oliveira

“Silêncio.
Estragon: Para fazer direito, seria preciso me matarem, como o outro.
Vladimir: Que outro? (Pausa) Que outro?
Estragon: Como bilhões de outros.”
Samuel Beckett, Esperando Godot

As pesquisas de Foucault atingiram as humanidades de maneira contundente.


Não pouparam a segurança que estas imaginaram ter como ciências, e
tampouco a aposta do iluminismo no sujeito livre e autônomo, oscilando entre a
governamentalidade e a utopia da sociedade igualitária.
Na perspectiva política de Foucault, que acompanha à sua maneira as
sugestões da genealogia do poder traçada por Nietzsche, não cabe espaço para
totalitarismos. Trata-se de um filósofo e historiador que se encontra no interior
de relações de poder e resistências; é um escritor que não se deixa capturar
por identidades ou especialização, nem que se acomoda no sábio patamar
reservado aos condutores de consciência; é também um libertário demolidor.

História de lutas

Foucault foi um historiador político lidando com o presente, atuando


propositalmente em reduções de relações de poder centralizadas e
aproximando o intelectual dos problemas imediatos. Ao revirar a noção
negativa de poder para mostrar os efeitos de suas positividades, propunha-se a
responder como acontecem e repercutem as lutas entre forças. Mas nesta
escolha não repousava o aperfeiçoamento de uma situação corrigindo sua
anomia. Procurava desassossegar a razão, as instituições, as leis, as soluções
políticas sustentadas confortavelmente por projetos e programas de reformas.
O poder para Foucault é uma situação estratégica configurada por forças em
luta que desencadeiam diversas e indissociáveis resistências.
A análise genealógica do poder não busca o grande começo nem a
grandiosidade do gesto inicial que teriam sido distorcidos mais tarde e que
aguardam restauração por meio do saber desinteressado em nome da
humanidade ou de uma classe social. Ao contrário, ela se ocupa dos baixos
começos, ali onde o que se pretende superior foi mesquinho. Como aconteceu
no direito. Antes das belas palavras, das declarações e das leis universais o
direito ocorre pelos desdobramentos de situações conflituosas.
A genealogia do poder capta a vitória de uma força ou da coalizão de algumas
sobre as demais no instante em que declaram sua superioridade particular
como universal, lançando mão de arbitrariedades e sagacidades. Ao anunciar a
procedência dos grandes valores ela também noticia a emergência dos seus
baixos instintos. Afasta-se dos proprietários da verdade, da inabalável razão
iluminista e de seu suposto controle sobre as paixões. Não há mais a Idéia ou o
Espírito, apenas forças em luta. Não há também uma teoria do poder, mas
estudo de relações de poder sob o regime da soberania, da disciplina, dos
controles, implicando em captar suas incômodas descontinuidades.
As relações de poder implicam resistências e estas também não ocupam um
lugar especial, nem estão reduzidas à expressão de valores superiores; as
resistências podem ser tanto ativas e contestadoras, como reativas e
conservadoras. Na modernidade e na contemporaneidade, as relações de poder
e resistências não cessam, combinando lei, religião, economia, organização,
linguagem, pessoas. Elas provocam a aparição de novos costumes capazes de
inventar novas tradições, experimentações inusitadas, liberações
surpreendentes e incontroláveis, liberdades infinitesimais. As relações de poder
e resistências acontecem em diversos âmbitos e encontram ressonâncias,
acomodações, contestações e perseguições dentro e fora do Estado. As relações
de poder são ascendentes e descendentes, desdenham da legitimidade e
encontram-se indissociavelmente vinculadas à produção de saber.
Desta maneira o que acontece no âmbito da microfísica do poder são também
produções de saber repercutindo desde resistências locais até efeitos de poder
de Estado. A interminável luta por liberdades contra autoridades centralizadas e
governos superiores de pais, adultos, hierarquias e Estado escancaram os
efeitos das lutas (de causar a vida até a eficácia de causar a morte) e dos
supostos refúgios seguros acolhidos nas doutrinas.
Não há um saber desinteressado a favor da humanidade ou de uma classe;
todo saber é interessado e procede de relações de poder. Foucault leva, então,
o estudante e o pesquisador a entrarem na luta, problematizando instituições
inquestionáveis, como por exemplo, Estado de direito ou Sociedade sem
Estado, enfrentando nas diversas sociedades a sociabilidade fundada na
punição e na recompensa, provocando inquietudes ao experimentar liberdades.

Anarquistas

De fato, os anarquistas contemporâneos começaram a se interessar por


Foucault a partir de suas análises genealógicas. Mas, rapidamente, também,
captaram os questionamentos éticos que derivam para a afirmação de uma
estética da existência na atualidade. Os anarquistas passaram, então, a
estabelecer relações entre as sugestões de Foucault desde Vigiar e punir até as
suas derradeiras pesquisas que compuseram os volumes 2 e 3 de História da
Sexualidade com alguns ditos-e-escritos e cursos que lentamente foram
publicados.
Como mostrara desde a aula inaugural no Collège de France, depois publicada
como A ordem do discurso, na modernidade, sexo e política foram as principais
interdições que acumularam desde saberes anátomo-psicocanalíticas até os
disciplinares esquadrinhados em espaços de vigilância e punição. Para os
anarquistas, a liberdade sexual arruinando a monogamia burguesa e as
experimentações de vida associativista, com base na reciprocidade e em
relações federativas, compõem a experimentação da Anarquia no presente em
confronto com a era Propriedade comunal, privada, estatal ou mista da
modernidade e defendida pelos liberais, conservadores e socialistas.
Para muitos anarquistas Foucault é um pensador inopinado. Chegou junto com
as invenções libertárias durante o acontecimento 1968, e, em pouco tempo,
passou a ser também companhia de transgressivos jovens estudantes e
professores libertários.

O mundo havia mudado mesmo. O intelectual não era mais o cérebro do


trabalho manual, nem o diretor de sua emancipadora consciência; as relações
de poder não se restringiam mais a redes como na milimétrica descrição de
Foucault sobre sociedade disciplinar com sua vigilância panóptica, acoplada aos
sutis e escandalosos dispositivos de punição; agora, tomava vulto os fluxos de
poder com suas virtualidades, pois a inteligência passava a ser o alvo da
produtividade e a democracia o articulador entre a economia e a grande
política.
O corpo e a biopolítica deixavam de ser os alvos principais das utilidades e
docilidades perseguidas pelas relações de poder e contestada por resistências.
A expansão do universo, a ocupação do espaço sideral, a comunicação
constante, o fluxo ininterrupto de produtos e serviços, o conhecimento
pormenorizado das entranhas do corpo e de sua constituição pelo DNA,
levaram, também, o próprio Foucault a se deslocar para uma sociedade que
começava a se modificar e que mais tarde Gilles Deleuze chamou de sociedade
de controle.
O 1968 desdobrou e deslocou Foucault para múltiplas resistências e para a
estética da existência. Os anarquistas, na mesma ocasião, também se
desviavam da crença na grande revolução procedente das reflexões e práticas
de Mihkail Bakunin para o associativismo de Proudhon, os efeitos do anarco-
individualismo, que veio de Max Stirner, problematizando a pertinência do
anarco-sindicalismo, que alcançara um contundente efeito na Revolução
Espanhola e que tivera grande influência no início do século 20, inclusive no
Brasil.
Para estes anarquistas desassossegados Foucault contribui de maneira decisiva,
incentivando a volta ao combate às relações microfísicas do poder, rompimento
com doutrinas, e aproximação com novas experimentações libertárias. São
vários os pesquisadores e ativistas libertários que combinaram Foucault com
demais saberes libertários e de outros filósofos anti-universalistas como Salvo
Vaccaro, Todd May, Wilhelm Schmitt, Saul Newman, Christian Ferrer,
Margareth Rago... Para os demais, como Noam Chomsky, David Graeber e
Eduardo Colombo, entre outros, Foucault é uma figura nociva, na medida em
que abalroa os anarquismos como condutores de consciência e os identificam
compondo com um novo cristianismo.
Foucault, pelo sim e pelo não, assim como o 1968 tornaram inevitável que os
anarquistas mostrassem tanto seu lado conservador, como as suas capacidades
inventivas. Mas principalmente, ele colaborou para problematizar a expectativa
da revolução redentora e o sentido consolador e narcotizante da utopia
igualitária. As singularidades anarquistas podem ser descritas em suas
atividades de resistências ativas (do Living Theatre às zonas autônomas
temporárias) ou reativas, circunscritas ao movimento anti-globalização em que
os comunistas e socialistas re-paginados pelo discurso por uma outra
globalização capturam os jovens-velhos libertários que, em pouco tempo,
transformam-se de associativistas em ongueiros. Alguns anarquistas
conservadores, também não admitem anarquismos nas universidades, seguindo
as datadas reflexões de Piotr Kropotkin. Contudo, e inevitavelmente, desde o
início do século 21, estudantes e professores defensores deste anarquismo se
estabeleceram nas universidades, compondo um inusitado anarquismo
acadêmico, em que defendem a continuidade da doutrina de Bakunin a
Mahkno.

Nu-Sol

Foucault é um filósofo que atravessou a difícil e sólida fronteira iluminista


sinalizando para o esgotamento da revolução redentora, a permanência dos
pequenos fascismos diários − muito mais perigosos à liberdade do que o
grande fascismo de época − e a cruel eficácia das punições. O associativismo
libertário, por sua vez, ocupa-se das experimentações liberadoras que
funcionam como obstáculos aos efeitos de dominação e sujeição e à violência
no âmbito pessoal e social, repudiando a sociabilidade autoritária atravessada
pela cultura do medo, ainda que em nome da justiça. Para um anarquista a
representação não só é inaceitável como se constituiu em um dos dispositivos
mais eficazes do assujeitamento.
Um ponto muito pouco tratado pelos anarquismos contemporâneos, apesar de
muito trabalhado pelos velhos anarquistas é o do castigo. Abolir o regime do
castigo na associação libertária é uma atitude rumo à formação do anarquista e
expressa seu estilo de vida, pois é somente abalando a si próprio que se
avança para a constante supressão das desigualdades. Não se trata, portanto,
de uma ação inaugural decorrente da revolução, como imaginam os demais
socialistas e comunistas, nem o ato de justiça derradeiro na história para o qual
se lança mão de um similar regime da vingança.
A educação libertária está adiante dos direitos universais e da eventual
reparação de suas injustiças por meio da revolução. Ela ignora o universalismo
do direito para firmá-lo na relação bilateral, imediata e restrita a objetos. Com
isso, pretende romper com a rede das ilegalidades inerente e fortalecedora do
direito moderno, seja em sua versão burguesa ou na socialista autoritária.
Foucault notou com precisão, em Vigiar e punir, a estocada anarquista à ordem
pautada na razão universal, ao abordar as primeiras resistências ao direito
burguês expressas na imprensa socialista operária revertendo a identificação
imediata do criminoso com o pobre, o trabalhador, a criança abandonada e o
desempregado para associá-la ao proprietário burguês, e de onde emergiu, em
1840, a famosa constatação de Proudhon: a propriedade é um roubo!
Em torno do direito, seus desdobramentos e suas ilegalidades os anarquistas e
Foucault também estimulam conversações. Diante da educação pelo castigo
atuam como sinais de alerta. E na atualidade, quando se clama cada vez mais
por combate à impunidade, eles aparecem indissociáveis. Da perspectiva de
Foucault está em questão abordar a emergência das súplicas pela multiplicação
de punições por encarceramentos, sentença de morte ou penas alternativas,
acobertadas com o nome de tolerância e no limite explicitadas como programa
de tolerância zero. Do ponto de vista anarquista se espera ultrapassar a
solução medicalizadora ao crime elaborada por Kropotkin, ainda no século 19,
em que a prisão deveria ser substituída pelo atendimento psicológico e médico,
pois o crime passava a ser compreendido como doença social.
A sociabilidade libertária com base na superação do regime do castigo nas
pessoas, não admite mais a esperança científica. Foi o cientificismo no século
19, como mostrou Foucault, que não só reformou e humanizou a prisão, mas
foi além, apoiado nas humanidades construiu o conceito de anormal. A ciência
passou a ditar e governar o normal e o anormal, segundo suas justificativas
acopladas à política. Do ponto de vista da história efetiva; distante das teorias
liberal e marxista, bem como da hipótese repressiva do poder, a análise do
investimento do governo sobre a vida teve como efeito uma sociedade de
normalização cujas procedências longe de advirem da origem grandiloqüente
que fixa o normal como anterior ao anormal, expõe a construção histórica do
anormal como condição para a posterior emergência do normal. O soberano
saber mais uma vez se fortaleceu segundo o governo das forças políticas
vencedoras de época, explicitando a historicidade do discurso da verdade. A
prisão, então reformada, não deixou de ser cruel, apenas ampliou seu raio de
ação, aprisionando burocracia, parentes, comércio ilegal, corpos e desejos.
Funcionando como imagem invertida da sociedade passou a informar uma nova
e estranha sensação, a de que estamos todos presos! A vida na e da prisão não
se esgotou nela. O manicômio foi contornado pela psicanálise. Os internatos
cederam lugar aos regimes escolares. Os insurgentes foram organizados em
partidos e sindicatos. Investiu-se, enfim, com sucesso, em disciplina, em
normalização.
Dentre as diversas minorias identificadas como anormais e perigosas estavam
os anarquistas. Eram os iracundos mais perigosos e perniciosos à sociedade
como procurou provar Cesare Lombroso. Para ele Marx e os nacionalistas
traziam com suas propostas benfeitorias para a sociedade, mas os anarquistas,
ao contrário queriam somente a demolição. Era a maneira dos cientistas e
juristas de lidar com a radicalidade dos anarquistas, em defesa da sociedade.
Eles passaram a ser identificados com criminosos e anormais, principalmente
desde o final do século 19, quando os anarquistas italianos passaram a ocupar
áreas de opressão violenta, cujo desdobramento levou ao terrorismo tiranicida
na Europa. Enquanto os demais setores revolucionários eram gradativamente
disciplinados em partidos e vanguardas, os anarquistas radicalizaram suas
ações e foram classificados como ameaça à sociedade da época, definição que
atingiu até a atualidade. Espera-se que os anarquistas metam medo não só por
estarem relacionados ao terrorismo, mas por levarem uma suposta vida
libertina. Eles são tidos como a ameaça que atrai desejos. Eles são apenas a
recusa à normalidade.
Os anarquistas não são anormais. São perigosos ao provocarem riscos à ordem
hierárquica, desigual, violenta e tirânica da sociedade. Eles são um perigo
salutar às pessoas e à sociedade, pois é no risco que se inventa a vida. É na
coragem de combater o regime dos castigos em si próprio e nos
desdobramentos que ele sustenta na sociedade que a anarquia é também uma
prática de abolição do castigo.
O abolicionismo penal lida com situações-problemáticas, na maioria das vezes
envolvendo infrações cometidas por pessoas jovens e adultas pobres,
migrantes e habitando condições de miséria social e pessoal. Nestas condições
um anarquista abolicionista penal rompe com o direito universal e com os
modelos recomendados e se arrisca ao propor respostas-percursos. Procura,
desta maneira, cuidar de cada caso como um caso especial, como ele cuida de
si. Prescinde dos pastores (do juiz, do promotor, dos advogados, dos técnicos
humanistas, dos funcionários de gabinete e carcereiros orquestrados para
proferirem um castigo sentenciado) que zelam pela ordem no rebanho. O
abolicionista penal é um anarquista apresentando para a sociedade a
experimentação da maneira como ele lida com infrações no interior da sua
associação. Nela ele se ocupa com a infração de um jeito análogo ao que
Claude Lévi-Strauss encontrou entre populações tribais − consideradas
selvagens pelos normais −, evitando expulsar, confinar ou matar, afastando-se
da idéia de criar um arquipélago repressivo.
Os velhos libertários como Willian Godwin, no século 18, e o jovem Etienne de
la Boétie no século 16, queriam a luta contra com o Um, o soberano. La Boétie
perguntava como as pessoas preferem o governo de outrem a viver livre de
governos. Anunciava a incessante luta simultânea contra os assujeitamentos e
os pastores, fato crucial da cultura contemporânea como registrou Foucault.
Godwin invadia radicalmente a pretensão universal do direito moderno e da
prisão, também esmiuçados por Foucault. Mas ambos, Godwin e La Boétie,
anunciavam uma época que levaria os radicais a acreditarem que no futuro
viveria o sujeito livre e autônomo, o verdadeiro Homem. Foucault, na esteira de
Nietzsche, veio explicitar que esta pretensão revelava a desertificação do
Homem moderno e com isso se afastou da utopia anarquista.
O anarquista evita o poder pastoral, estudado com afinco por Foucault, e que
atravessa culturas com eficácia e re-ordenamentos. Ele se recusa a comandar,
a se submeter a uma razão superior, como a da ciência, e escapa da
inevitabilidade revolucionária herdada de Bakunin ou do anarquismo científico
de Kropotkin. O anarquista sempre soube que preso comum e preso político é
somente uma distinção de quem defende a continuidade, o recrudescimento ou
a reforma do sistema punitivo e prisional. Enfim, o anarquista quando escapa
dos efeitos da revolução russa e da sua repercussão na revolução espanhola,
sem esquecer as respectivas experimentações, fortalece a sua associação e
inventa sua estética da existência.
Foucault e os anarquismos estabelecem tensas situações irreversíveis a quem
se dispõe a enfrentar o regime de governo e das grandes e quase
imperceptíveis punições. Alertam para o perigo dos fascismos, os
encantamentos com a democracia e com os consolos socialistas. Empurram o
pesquisador para conhecer outras experimentações e reflexões. Impeliram o
Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária da Pós-Graduação em Ciências
Sociais da PUC-SP, www.nu-sol.org ), desde 1997, ao encontro com Max
Stirner e a enfrentar o poder em ato. Viver sem camuflar o seu poder e as suas
relações, contornando os perigos do enamoramento de si − tirânico e
fomentador da acomodação na sujeição − e impulsionando para os riscos com
os cuidados de si − libertários e provocadores de liberações.

Edson Passetti e Salete Oliveira são professores no Depto. de Política da PUC-SP e coordenam o Nu-
Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) da PUC-SP.
http://www.unicamp.br/~aulas/pdf3/32.pdfhttp://www.nu-sol.org/

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