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INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS

HISTÓRICOS
AULA 3
Prof. Caio de Amorim Féo

CONVERSA INICIAL

Nesta etapa, é preciso que você preste bastante atenção por se referir a uma temática altamente

abstrata. Abordaremos aqui a relação entre tempo e história, pretendendo expor o que significa

tempo e como este se relaciona com o nosso dia a dia, seja no papel de historiadores durante a

prática historiográfica, seja como indivíduos suscetíveis às transformações ao longo do tempo. Nesse

sentido, está envolvida na temática desta etapa a discussão de outros conceitos, como anacronismo,
sincronia e diacronia, tão fundamentais ao estudo que estarão destacados em tópicos específicos a

eles.

TEMA 1 – DEFININDO TEMPO

Este tópico consiste em um procedimento basilar quando estamos tratando de um assunto com

elevada carga de abstração, como é o caso do tempo. Pode parecer simples e até mesmo banal

responder à pergunta “o que é tempo?”, mas a verdade é que se trata de um assunto muito mais

complexo e diversificado do que se pode imaginar. A partir do momento em que paramos para
refletir e raciocinar sobre o tempo, percebemos que não é simples definir sua manifestação e

constituição, algo que podemos constatar quando observamos a mudança da percepção acerca do

tempo ao longo da história. Desse modo, o presente tópico tem por intuito estabelecer os

parâmetros fundamentais do que configura o tempo, especialmente por meio das formulações de

físicos como Isaac Newton e Albert Einstein.

1.1 O QUE É TEMPO?

Não é incomum, no nosso dia a dia, encontrarmos inúmeras representações daquilo que

entendemos como tempo. Desde que acordamos e iniciamos nosso dia, o tempo se faz presente com

as horas estampadas no relógio ou nos aparelhos celulares. Nos jornais, quando presenciamos as
informações sobre a previsão meteorológica, estamos diante de outra representação do tempo, desta

vez associada à natureza, ou seja, ao tempo da natureza. Isso nos leva à sensação de que o tempo é,

de fato, algo multiforme, plural em sua essência. Contudo, podemos dizer que essa afirmação

envolvendo a pluralidade do tempo é, simultaneamente, equivocada e correta.

Julio Aróstegui (2006) estabeleceu algumas das principais considerações acerca dessa temática.

Segundo o autor, o homem, por ser um animal social, é o único ser vivo capaz tanto de fazer parte

do tempo da natureza como também de fabricar seu próprio tempo. Isso não deve nos mobilizar,

entretanto, a estabelecer uma espécie de dicotomia acerca do tempo, dividindo-o entre tempo físico
e tempo social, sendo o primeiro relacionado a algo externo ao homem enquanto o segundo está

diretamente relacionado à ação humana.

Originalmente essa divisão passou a ser comum nos discursos de eruditos que se baseavam na

concepção de tempo elaborada por Isaac Newton de que o tempo seria absoluto, ou seja,

correspondia a um fluxo externo no qual o ser humano estaria inserido. Aróstegui (2006) nos explica,

contudo, que essa definição fora contestada desde o século XIX por filósofos como Ernst Mach, mas

ganharia novos contornos com a proposição de Albert Einstein e a teoria da relatividade. De acordo

com Aróstegui, o tempo para Einstein consistia não no fluxo onde os fatos eram produzidos e se

desenvolviam, mas sim correspondia a uma “dimensão das próprias coisas” (Aróstegui, 2006, p. 276).

Isto é, trata-se de uma perspectiva que coloca no movimento a chave de entendimento do tempo e

sua mudança.

Ora, se a física hoje trata do tempo como algo relativo e não absoluto, não se pode dizer que a

história também não tenha alterado sua percepção acerca do tempo. Porém, por terem pressupostos

e preocupações distintas entre si, a percepção da história acerca do tempo passou a estar

relacionada à mudança de acordo com um momento anterior e posterior. Nos termos de Aróstegui:

O verdadeiro tempo da história é, pois, aquele que se mede em mudança frente à duração. [...] que

em princípio é possível medir e que nas realidades sócio-históricas é um ingrediente essencial


‘interno’ à sua identidade, pois tais realidades não ficam inteiramente determinadas em sua

materialidade se não são remetidas a uma posição temporal. (Aróstegui, 2006, p. 287-288)

TEMA 2 – HISTORICIZANDO O TEMPO


Apesar de serem ciências distintas entre si, física e história compartilham algumas das reflexões

filosóficas acerca de seus objetos, e entre elas está a sobre o tempo. Como vimos, os

desenvolvimentos desde Isaac Newton até Albert Einstein configuraram pressupostos interessantes a

respeito do tempo, e o que veríamos em relação às discussões dos historiadores corresponderia ao

aprofundamento da especificidade do tempo trabalhado pelo historiador, isto é, na configuração de

um tempo histórico.

2.1 TEMPO HISTÓRICO

Trazer à tona as características que compõem o chamado tempo histórico requer que façamos

um movimento em direção à historicização do tempo. Isso significa que, apesar da categoria “tempo”

ser mobilizada e utilizada por outras ciências, é preciso estabelecer aqueles elementos que melhor

definem o tempo e lhe conferem um estado fundamental no estudo histórico. Julio Aróstegui (2006)

afirmou que toda e qualquer sociedade é uma sociedade com tempo, o que implica dizer que, a

partir do momento em que um historiador se dirige a estudar uma sociedade, ele apreende não

apenas conhecimento histórico acerca dela, como também conhecimento acerca da temporalidade.

Leandro Duarte Rust, durante uma extensa explanação das perspectivas dominantes acerca do

tempo entre historiadores medievalistas, colocou-se de forma contrária à noção de tempo “como

exterior ao ser”, destacando que “o tempo, como realidade humana, deveria ser encarado como um

complexo fato de experiência social” (Rust, 2011, p. 55). Essa experiência se manifesta de distintas

formas, mas, independentemente de suas variedades, sempre ocorre uma relação dialética entre

passado, presente e futuro.

Luis Artur Costa e Tânia Mara Galli Fonseca (2007) ressaltaram a mutabilidade do tempo

apresentando algumas possibilidades de sua identificação. Entre elas, estaria o tempo cíclico,

definido como partindo de uma noção ancorada na repetição, promovida pela sucessão das

gerações, das tradições de uma dada sociedade, transmitidas pela oralidade. Ainda seguindo as

propostas dos autores (2007), podemos também falar de um tempo linear, sustentado não na

repetição, mas no acúmulo de informações. Em uma palavra:

Tal finalidade do tempo [linear] pode ser finita ou infinita, laica ou religiosa, catastrófica degradante

ou salvadora edificante; mas sempre é uma flecha afirmando uma teleologia, a qual se relaciona
com a eternidade enquanto algo externo a esta linha, mesmo que possa estar marcando suas

extremidades. (Costa; Fonseca, 2007, p. 113)


As manifestações do tempo histórico estão intimamente relacionadas com a ação dos homens e

das mulheres no tempo, construindo uma dualidade que Jörn Rüsen definiu como parte da tomada

de (ou elaboração) da consciência histórica, sendo esta guiada “pela intenção de dominar o tempo

que é experimentado pelo homem como ameaça de perder-se na transformação do mundo e dele

mesmo” (Rüsen, 2001, p. 60). Essas questões tratadas por Rüsen serão melhor debatidas no terceiro

tópico, mas serve-nos aqui para que possamos entender que o tempo histórico reflete uma ação do

homem com o tempo na realidade em que vive.

2.2 TEMPO E ESPAÇO

Se não há dúvida de que a história é a ciência que busca estudar e compreender as relações dos

homens ao longo do tempo, para recordarmos a máxima de Marc Bloch, também é preciso
acrescentar que são analisadas as relações dos homens ao longo do tempo e do espaço. Esta

definição já fora mencionada por José D’Assunção Barros (2006), que explicitou a noção de espaço

“como lugar que se estabelece na materialidade física, como campo que é gerado através das

relações sociais, ou como realidade que se vê estabelecida imaginariamente em resposta aos dois

fatores anteriores” (Barros, 2006, p. 462).

Segundo Ciro Flamarion Santana Cardoso (2005), há a possibilidade de a perspectiva espacial ter

sido anterior, em sentido de tomada de consciência, em relação à temporal nas sociedades humanas.

O autor parte de exemplos que remontam a povos antigos, como os do Egito Antigo ou os sumérios,

que teriam espacializado o tempo, mas ainda indica que na nossa língua portuguesa isso também

ocorre. Nas palavras de Cardoso, “qualificamos em português o tempo como ‘curto’ ou ‘longo’, isto é,

com um vocabulário espacial” (2005, p. 12).

A própria definição do tempo para Einstein, que comentamos anteriormente, entendida como

uma das dimensões da realidade, “não pode ser concebida independentemente da de espaço”, como

bem destacou Julio Aróstegui (Aróstegui, 2006, p. 277). Um exemplo bastante elucidativo dessa

relação imbricada entre tempo e espaço foi exposto por Barros (2006). Em situações de guerra

envolvendo o mar Mediterrâneo – região primorosamente estudada por Fernand Braudel –, durante

o verão, a prática militar transcorria normalmente. Contudo, durante o inverno, a forte movimentação

do mar dificultava o deslocamento das embarcações com sua tripulação de guerreiros, o que tornava

a estação propícia para o estabelecimento de tréguas e, assim, a pausa nos conflitos militares. Em

resumo, e trazendo à tona a definição de Barros, “o Clima (um aspecto físico do meio geográfico)
reconfigura o Espaço, e este redefine o ritmo de tempos em que se desenrolam as ações humanas.

Espaço, Tempo e Homem” (2006, p. 469).

TEMA 3 – DESTRINCHANDO O TEMPO HISTÓRICO

Tendo definido as principais orientações da constituição do tempo, especialmente do tempo

histórico, que nos é mais importante aqui, é preciso que sigamos agora para o desmembramento do
tempo no sentido de compreender seus usos pelos seres humanos. Não se trata aqui de nos

referirmos à materialização do tempo em objetos como relógios ou quaisquer outros aparelhos que
nos indicam as horas, mas sim de como os homens e as mulheres se valem do tempo como fator

importante no processo de conhecimento e experiência da realidade em que estão inseridos. Nesse


sentido, será necessário explicitar duas perspectivas: a primeira, dos regimes de historicidade de

François Hartog; a segunda, da relação entre passado, presente e futuro segundo Reinhart Koselleck.

3.1 REGIMES DE HISTORICIDADE

A proposta de François Hartog que explicitaremos aqui não está separada no sentido de ser
oposta às ideias de Reinhart Koselleck, mas optamos por tratá-las separadamente com o intuito de

facilitar a compreensão de ambas as perspectivas, uma vez que a proposta de Hartog se valeu de
muitas das reflexões de Koselleck.

Nesse sentido, o que significa regime de historicidade? De acordo com Hartog (2013), o conceito
de regime de historicidade corresponde a uma ferramenta de cunho heurístico que auxilia o

historiador a compreender os “momentos de crise do tempo” (p. 37). Isto é, trata-se de analisar não
como os diferentes tempos (passado, presente e futuro) são pensados em um dado momento

histórico, mas sim como o homem se relaciona com o tempo em um dado período.

O autor estabelece que esse conceito seria capaz de possibilitar ao historiador vislumbrar a
consciência de uma dada sociedade acerca de si mesma no tempo, o que varia de acordo com os

períodos históricos. Por exemplo, durante a Antiguidade, as relações se davam por uma priorização
do tempo passado, como pudemos ver no conteúdo a respeito da noção de história mestra da vida

manifesta por autores como Marco Túlio Cícero, ou seja, um regime de historicidade passadista.
Os avanços de François Hartog foram importantes na percepção acerca do tempo em nossa

sociedade. De acordo com Ciro Flamarion Santana Cardoso, após a Segunda Guerra Mundial (1939-
1945), o mundo passou “ao abandono da crença num tempo orientado e na noção de progresso”,

perspectiva seguida até então desde a Revolução Francesa em 1789 (Cardoso, 2005, p. 21). Com a
consciência da destruição e do massacre que o homem poderia causar a si mesmo manifestada pelas

duas grandes guerras, a noção de progresso, portanto orientada por uma perspectiva que prioriza o
futuro, acabou abandonada, da mesma forma que o passado como norteador havia sido

abandonado com o advento da Revolução Francesa.

Sendo assim, a experiência temporal predominante atualmente consistiria na que prioriza o


presente, também conhecida por presentista ou presentismo. Hartog (2013), no entanto, estabelece

que o momento de ruptura teria se concretizado em torno da queda do muro de Berlim e do fim da
Guerra Fria, no fim do século XX. Para o autor, a possibilidade de ação somente poderia ser efetiva

como transformação social se ocorresse no presente e estivesse orientada para o próprio presente, e
não mais para o futuro. Dessa forma, Hartog argumenta que o fim do século XX teria lhe aparentado

que “o crescimento rápido da categoria do presente” chegou ao nível de ser possível afirmar que o
“presente [se tornou] onipresente” (Hartog, 2013, p. 26).

3.2 KOSELLECK E O HORIZONTE DE EXPECTATIVA

Partindo das considerações sobre o tempo e a história, Reinhart Koselleck (2006) trouxe à tona
uma nova perspectiva acerca da constituição do tempo histórico. Sua perspectiva gira em torno da

vivência humana no presente acerca do passado e futuro, no sentido de como as relações sociais se
constroem em conjunto com a formulação do tempo. Julio Aróstegui (2006) explica que a proposta

de Koselleck compreende que as relações humanas estão em constante movimento dentro do tempo
da história, tempo este que “não se entende senão a partir da tensão em direção ao futuro”
(Aróstegui, 2006, p. 283-284).

A articulação do pensamento de Koselleck sobre o tempo consiste em um duplo movimento


realizado entre o que chama de campo de experiência ou espaço de experiência e horizonte de

expectativa. O primeiro consiste, segundo o autor (2006), nos eventos passados que se manifestam
no presente de alguma maneira, seja por meio de um dado comportamento assumido por uma

sociedade ou um indivíduo, seja por meio da rememoração. Já o segundo, por sua vez, consiste em
uma espécie de previsão acerca do porvir que interfere nas ações do presente, o qual se supõe, nesse
sentido, como uma etapa anterior ao futuro esperado.

Pode-se dizer que o futuro é entendido por Koselleck como pensado por meio de um
prognóstico, justamente esse processo de construção do horizonte de expectativa. Buscando
simplificar essas questões um tanto abstratas, Koselleck afirma que: “O prognóstico é um momento

consciente de ação política. Ele está relacionado a eventos cujo ineditismo ele próprio libera”
(Koselleck, 2006, p. 32). Isso significa que o tempo histórico constitui uma elaboração fruto das

relações sociais, o que implica dizer, portanto, que o “prognóstico produz o tempo” (Koselleck, 2006,
p. 32). Obviamente essa percepção do futuro nem sempre fora dessa maneira. Em períodos

históricos, como o da Idade Média, as previsões (geralmente de cunho apocalíptico) dominavam as


expectativas, moldando um futuro totalmente previsível, ainda que sem que se soubesse quando

ocorreria. Ao contrário do prognóstico moderno, fruto da dominação, segundo Koselleck, do Estado


moderno sobre a manipulação do futuro, a expectativa do futuro é sempre construída como

possibilidade de ocorrência, nunca como certeza.

Portanto, o que nos interessa em relação aos pressupostos de Koselleck é como o tempo é fruto
de uma elaboração humana feita no presente que mobiliza tanto referências do passado quanto do

futuro para construir uma perspectiva acerca deste último.

TEMA 4 – O PECADO MORTAL DO HISTORIADOR

Vimos até então como o tempo está articulado à vida humana, seja em termos naturais, seja
como construção social. Contudo, o que expomos até então consiste em uma constatação acerca da

vida de homens e mulheres, independentemente de suas práticas profissionais. Cabe agora discutir
como o tempo influencia a análise do historiador sobre seu objeto de pesquisa, delimitando as

questões mais fundamentais a respeito da pesquisa histórica. Neste tópico, discutiremos aquilo que
todo historiador deve evitar: o anacronismo.

4.1 ANACRONISMO

Tratar do tempo é uma tarefa de que todo e qualquer historiador não pode fugir.

Independentemente da época que esteja analisando, o pesquisador precisa ter a consciência de que
múltiplas temporalidades estão em constante interação, tanto no que diz respeito ao período em
questão quando em relação à prática historiográfica, isto é, que envolve a temporalidade do objeto e

a temporalidade do historiador.

Nem sempre isso é tão claro quanto parece, ainda que os historiadores estejam, de certa forma,
bem “vacinados” contra o mal que trataremos aqui. Referimo-nos ao anacronismo, que Antonio

Fontoura definiu de forma clara e objetiva como a avaliação “de um determinado período histórico
com base nas concepções de outro” (Fontoura, 2016, p. 139). Geralmente essa perspectiva gira em

torno de uma linha de raciocínio que envolve o presente do historiador, promovendo interpretações
de períodos históricos passados pautados em significados comuns em seu tempo que não condizem

com a época que está estudando.

Trata-se da naturalização dos significados comuns da realidade do historiador como sendo


comuns a todas as temporalidades. Considerar que há significados atemporais consistiria em um

grave erro na análise histórica, comprometendo a compreensão de qualquer fenômeno que se


pretenda estudar de forma mais aprofundada. Recordando as palavras precisas e claras de Fontoura:

“A atemporalidade é, tecnicamente, uma espécie de anacronismo [...], pois é incapaz de conceber


diferenças temporais e iguala todas as pessoas, de todas as épocas, com base em valores do

presente” (Fontoura, 2016, p. 121).

Um caso de anacronismo na história foi apresentado por Márcia Naomi Kuniochi (2004), que

abordou a percepção a respeito da vida de Irineu Evangelista de Souza, conhecido como Barão de
Mauá, por meio das obras escritas fundamentalmente no século XX, incluindo tanto biografias

quanto historiografias. Sua investigação pode concluir que há distintas percepções acerca do barão
que são condicionadas à situação em que os escritores estavam vivendo, por vezes o associando
como especulador do setor financeiro e, em outros momentos, colocando-o como grande investidor

de obras de infraestrutura. De acordo com Kuniochi (2004), essa inconstância da imagem do Barão de
Mauá está associada às ações diversas deste no plano dos negócios brasileiros durante o século XX.

Nas palavras da autora, as visões anacrônicas acerca do barão manifestadas pela historiografia
poderiam ser “reflexo[s] de um desconhecimento da história dos negócios no Rio de Janeiro e no

país, em meados do século XIX. No momento em que a paisagem de fundo estiver definida, seus
personagens poderão ser vistos com maior nitidez” (Kuniochi, 2004, p. 166).

TEMA 5 – O TEMPO NAS ANÁLISES HISTORIOGRÁFICAS


Definido o que o historiador não deve fazer no trabalho historiográfico, explicitado pelo
anacronismo, é o momento de trazermos à tona a aplicação do tempo no fazer historiográfico. Nesse

sentido, cabe aqui destacar especialmente os avanços de Fernand Braudel com suas perspectivas
acerca dos tempos curto, médio e longo. Portanto, o presente tópico busca debater as questões

envolvendo as temporalidades históricas em duas direções: a primeira diz respeito ao que consiste na
primazia do tempo longo exposta por Braudel em relação aos demais tempos; a segunda consiste na

possibilidade do historiador de analisar um determinado fenômeno, de forma sincrônica, diacrônica,


ou mesmo um trabalho de maior fôlego conjugando sincronia e diacronia.

5.1 OS TEMPOS DE FERNAND BRAUDEL

Como vimos anteriormente, as concepções acerca da história mudaram ao longo dos séculos,

mais especialmente a partir da virada do século XIX para o XX. Dentre as diversas mudanças, uma se
destacou, como bem ressaltou Antonio Fontoura (2016): a ruptura com uma história orientada pelo

acontecimento. A história focada em acontecimentos, em eventos de grandes personagens, não mais


orientava os estudos históricos como aquelas que melhor explicavam as relações dos homens no

tempo e no espaço.

Fernand Braudel (1965) destacou que a história dos metódicos, concentrada e articulada nos
acontecimentos, priorizava o que chamou de tempo breve, um esforço em analisar um fenômeno de

alcance extremamente circunscrito e curto. No entanto, na visão de Braudel, ater-se ao


acontecimento não nos proveria a compreensão de um fenômeno histórico pelo fato de este estar

sujeito a elementos dispostos em uma duração maior. Dito de outro modo, “o acontecimento é
explosivo [...]. Com sua fumaça excessiva, ele enche a consciência dos contemporâneos, mas não dura

muito, mal se vê sua chama” (Braudel, 1965, p. 264). Isso significa que o acontecimento mobiliza os
contemporâneos a ele de forma que ofusca a compreensão da constituição daquele acontecimento.

De acordo com Braudel (1965), somente conseguiríamos compreender os fenômenos históricos

em toda sua amplitude se partíssemos ao estudo da longa duração. Nesse sentido, torna-se
imprescindível a categoria de estrutura, que, como define Braudel: “Para nós historiadores, uma

estrutura é, sem dúvida, um conjunto, uma arquitetura, mas é mais ainda uma realidade que o tempo
usa mal e veicula demoradamente” (Braudel, 1965, p. 268). Essas estruturas, passíveis de apreensão

por intermédio do estudo orientado pela longa duração, manifestariam tanto exemplos difíceis de
serem rompidos ao longo do tempo quanto outros mais duradouros, o que significa dizer que a
mudança ocorre, mas de forma lenta. Podemos citar como exemplo de estrutura mais duradoura o

pensamento machista ainda predominante na sociedade brasileira, o qual, ainda que venha sendo
combatido nos últimos anos, ainda é característico da mentalidade de nossa sociedade.

Em suma, podemos afirmar que a perspectiva de Fernand Braudel das três durações

corresponderia ao seguinte esquema:

5.2 SINCRONIA E DIACRONIA

Se as temporalidades foram definidas por Fernand Braudel como representadas pelos tempos
longo, médio e breve, de que maneira o estudo histórico se beneficiaria de sua articulação? Embora

garantisse uma condição especial à longa duração, Braudel (1965) deixava clara a necessidade de

uma dialética da duração, ou seja, associando na pesquisa histórica os três tempos que havia definido

para compreender o fenômeno estudado. Como destacou Peter Burke acerca da obra de Braudel, O
Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II, “permanece uma conquista pessoal de

Braudel combinar um estudo de longa duração com o de uma complexa interação entre o meio, a

economia, a sociedade, a política, a cultura e [também] os acontecimentos” (Burke, 1992, p. 73).

A elaboração da perspectiva braudeliana se dirigiu especialmente à crítica de Claude Lévi-Strauss

à história proferida em suas obras no fim da década de 1940 e ao longo da década de 1950. De
acordo com José Eustáquio Ribeiro, a argumentação de Braudel pretendia dar

[...] uma resposta às críticas que as demais ciências sociais faziam à história, especialmente as

partidas de Lévi-Strauss, que entendiam que a história, para ser científica, necessitava abandonar o
seu próprio solo, a temporalidade, por isso afirmar as continuidades resistentes, mas não carentes,

ao tempo. (Ribeiro, 2009, p. 111)

Isso significa que, para Braudel, há a necessidade de romper com a noção de um estudo que
priorize a análise sincrônica, com sincronia significando, conforme explicou Antonio Fontoura (2016),

a análise contextual de algo que ocorre ao mesmo tempo, pois “não pode haver sincronia perfeita:

uma parada instantânea, suspendendo todas as durações, é quase absurda, ou, o que dá no mesmo,

muito factícia” (Braudel, 1965, p. 277). Por tal razão, Ribeiro constata que Braudel não pode ser visto
como

[...] um estruturalista formalista, pois não se contenta com formas estruturais plásticas capazes de

explicar qualquer realidade particular, como em Lévi-Strauss. Sua postura está em aprisionar nas

estruturas os acontecimentos e os conjuntos, que são cognoscíveis empiricamente por meio de


procedimentos metodológicos, pois acontecimentos e conjuntos são determinados pelas

estruturas. Conhecendo-os é possível vislumbrar as estruturas que os costuram. (Ribeiro, 2009, p.


110)

Podemos concluir, assim, que para Braudel a análise sincrônica deve ser conjugada com a análise

diacrônica se quisermos ter o entendimento acerca dos fenômenos históricos ao longo do tempo e

do espaço. Em uma palavra, o contexto (sincronia) não pode ser isolado do processo ao longo do
tempo (diacronia), o que envolve o historiador em uma multiplicidade de tempos que não se

esgotam nas três definições de Braudel, mas que foram assim definidos como forma de simplificar a

análise histórica que lhe parecia mais adequada.

NA PRÁTICA

Com base no que foi discutido nesta etapa, analise com atenção o quadro a seguir intitulado A

batalha de Alexandre, pintado em 1529 pelo pintor alemão Albrecht Altdorfer, que retrata a batalha
de Isso, de 333 a.C., em que Alexandre, o Grande, obteve uma importante vitória contra o monarca

persa Dário III. Então, responda às seguintes questões: Como o tempo é representado nesse quadro?

Há uma representação das figuras em questão que condizem com a época a que a obra faz
referência? Caso ache necessário, consulte Capítulo 1 do livro de Reinhart Koselleck (2006) indicado

ao fim, na seção Referências.

Crédito: A Biblioteca De Arte Bridgeman/CC/PD.

FINALIZANDO

Vimos ao longo desta etapa como o conceito de tempo foi formulado, pensado e debatido entre

os pesquisadores, desde suas concepções advindas da física até os desdobramentos desenvolvidos


pelos historiadores. Percorremos as formulações constitutivas do tempo histórico e sua manifestação

na vida dos homens e das mulheres, assim como também tentamos evidenciar a presença do tempo

no fazer historiográfico. Neste sentido, foi delineado o que configura o anacronismo, o maior
equívoco que um historiador pode cometer em sua análise, assim como também buscamos

apresentar de forma clara e objetiva a influência das proposições de Fernand Braudel com suas três

dimensões da duração, isto é, os tempos longo, médio e breve.

REFERÊNCIAS

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BARROS, J. D. História, espaço e tempo: interações necessárias. Varia História, v. 22, n. 36, 2006,

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BURKE, P. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989). 2. ed. São

Paulo: UNESP, 1992.

CARDOSO, C. F. S. Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios. Bauru: Edusc, 2005.

COSTA, L. A.; FONSECA, T. M. G. Do contemporâneo: o tempo na história do presente. Arquivos

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FONTOURA, A. Teoria da história. Curitiba: InterSaberes, 2016.

HARTOG, F. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte:


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KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de


Wilma Patrícia Maas; Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006.

KUNIOCHI, M. N. Mauá e o jogo do anacronismo. Biblos, v. 16, 2004, p. 157-165.

RIBEIRO, J. E. Da sincronia à diacronia: os “três tempos” da “História Total” de Braudel a partir de


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RÜSEN, J. Razão histórica: teoria e história: fundamentos da ciência histórica. Trad. Estevão

Rezende Martins. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001.

RUST, L. D. Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média Central. São Paulo:

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