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História Essencial da

Filosofia

Aula 01 - História das Histórias da Filosofia


por Olavo de Carvalho

Tipo: Grifos

Ano: 2023

Semestre/Trimestre: 1ª Semestre/2ª Trimestre


Grifos

Essência, como se sabe, é aquilo que uma coisa é, conforme sua natureza ou sua
constituição íntima, considerada desde o ponto de vista lógico e independentemente
das transformações temporais que ela possa sofrer, e até de sua existência ou não.
Pelo ponto de vista essencial, Napoleão Bonaparte já era Napoleão Bonaparte antes
de nascer, continuou sendo enquanto viveu e é Napoleão Bonaparte até hoje; ou seja,
sua morte não o transformou em outra pessoa.

O ponto de vista da essência é, por excelência, supratemporal, portanto,


supra-histórico.

sucessão temporal dos acontecimentos, considerada materialmente. Designa,


em segundo lugar, a ciência que estuda esta associação e também a própria dimensão
temporal da vida humana. Designa, enfim, as obras, os livros escritos com a narrativa
dos acontecimentos históricos.

Escolhi propositadamente a expressão "História Essencial" justamente


para dar a ideia dessa tensão entre dois pólos, a tensão que nos mostra, de um lado,
algo que permanece irredutivelmente igual ao que era no começo e que, de outro
lado, muda de aparência, muda de figura.

Essa tensão, a meu ver, é insolúvel; é uma das muitas tensões que definem
polarmente a própria existência humana.

A primeira amostra de História da Filosofia que temos está nas obras de


Aristóteles.

cada problema filosófico que atacou, ele sempre começou por abordá-lo desde a
narrativa das tentativas anteriores, feitas pelos seus antecessores, e com isto,
evidentemente, quase sem querer, inaugurou essa disciplina chamada História da
Filosofia.

Desses primeiros esboços aristotélicos surgem, bem mais tarde, nos


séculos XVII e XVIII, algumas resenhas narrativas de História da Filosofia
À medida que se produzem histórias desse primeiro tipo – que chamaremos
simplesmente de "histórias expositivas" -, a simples comparação de doutrinas acaba
sugerindo a idéia de que umas saem de dentro das outras, ou seja, de que uma teoria
aparece para responder uma anterior, para confirmá-la, para continuá-la, para
aperfeiçoá-la, pura impugná-la, e assim por diante. Portanto, não existe somente a
possibilidade do cotejo lado a lado, mas uma espécie de ligação interna entre as
doutrinas. À medida que se vão percebendo essas conexões, vai-se formando com
mais clareza a noção de escolas e de tradições que se prolongam no tempo, que são
confrontadas ou impugnadas por outras escolas e tradições, as quais, por sua vez,
também como respostas ou como alternativas, saem de certo modo de dentro das
primeiras.

Hegel entendia que o conteúdo da Filosofia era a própria História da Filosofia, ou


seja, que o desenvolvimento temporal da História da Filosofia era uma dialética
interna pela qual essa dimensão filosófica ia se revelando no tempo, como uma
espécie de tomada de consciência do espírito por si mesmo. Então, a História da
Filosofia já passa a ser a manifestação externa de um fenômeno de ordem interna ou
espiritual.

Isso quer dizer que a filosofia de Hegel se apresenta como uma espécie de conclusão
do movimento global da História da Filosofia até aquele ponto.

A objeção que podemos apresentar a esse tipo de História da Filosofia é a de que a


idéia de desenvolvimento temporal unitário só se aplica, a rigor, a seres que têm uma
existência contínua do ponto de vista orgânico, como, por exemplo, um animal ou
uma planta. Um animal, desde seu nascimento até sua morte, conserva integralmente
a sua forma intrínseca. Ele pode mudar um pouco na sua aparência exterior, mas
continua funcionando de acordo com as mesmas regras. Isto significa que a mesma
fórmula de funcionamento que faz um animal se alimentar e crescer quando é
pequeno, esta mesma fórmula o fará definhar e morrer quando ele for velho. Então,
evidentemente, quando estamos falando de fenômenos da natureza, existe uma
continuidade óbvia na história dessas entidades ou desses organismos tomados como
individualidades, e nós podemos captar essa unidade justamente porque a existência
de todos os seres da esfera do campo orgânico é uma existência limitada no tempo;
não existe nenhum ser destes que dure indefinidamente, não existe nenhum animal
eterno ou perene, nem animal nem planta. Corno existe um término definido para a
existência do bicho, podemos, evidentemente, raciocinar sobre ele concebendo
começo, meio e fim, porque esta é sua vida ou sua biografia.
seja a História em geral, seja a História da Filosofia em particular -, o processo não
tem término temporal definível, não sabemos quando isso vai terminar. Ou seja, em
nenhum ponto da História da Filosofia jamais alguém pôde assegurar com plena
certeza se a Filosofia era jovem, madura ou velha,

Dizemos também aí que a idéia de contemplar o movimento temporal das idéias


filosóficas como um movimento único, como uma dialética, uma lógica interna, essa
idéia não é de todo má; continua sendo uma necessidade, pelo próprio instinto
unificante que o ser humano tem.

continua sendo um esforço necessário, embora de certa maneira já declarado de


início como utópico e destinado a ter de ser refeito em novas bases a cada nova
geração que ataque esse problema.

Temos aí mais uma tensão. Por um lado, teríamos que buscar na História da Filosofia
a unidade do movimento, ou seja, teríamos que pegar a massa de fatos registrados em
livros e depoimentos ao longo de dois mil e tantos anos e tentar captar neles algum
perfil, de modo que pelo menos a história pudesse ser contada – e contada como uma
história única, pelo menos como uma mesma história ou como a história da mesma
coisa, não como um simples ajuntamento de fatos dispersos e inconexos. Por outro
lado, sabemos que essa tentativa de unificação só pode ter um sucesso parcial, porque
qualquer linha unitária de desenvolvimento que tenhamos conseguido discernir até o
ponto em que atamos - mesmo que tenha sido discernida da maneira mais correta,
mais exata e mais real que se possa imaginar -, no instante seguinte o rumo das coisas
pode tomar uma direção completamente diferente. Sua interpretação de conjunto irá
por terra, embora até aquele momento deva ser considerada correta, quando tiver que
ser integrada numa outra interpretação, que toma os fatos numa escala temporal
maior.

ao mesmo tempo em que Hegel estava fazendo esse esforço de interpretação


filosófica do arco percorrido pela Filosofia até o seu tempo, mais ou menos
contemporaneamente estava se constituindo a História como ciência organizada tal
como hoje nós a conhecemos. O grande responsável por isso foi Leopold von Ranke,
que era uma espécie de contemporâneo e antagonista de Hegel. Ele não era
antagonista no campo filosófico - Ranke não se metia em discussões filosóficas -,
mas representava a alternativa oposta.

mas simplesmente reconstituir, com base nos documentos, nas provas, aquilo que
tinha acontecido, exatamente como tinha acontecido. Dizia ele: "A função da história
é contar as coisas como efetivamente se passaram, quer essa reconstituição possa
levar a uma interpretação, a uma compreensão de conjunto, quer, ao contrário, a
narrativa dos fatos, justamente por ser exata, só leve a problemas e contradições".
Entre uma narrativa que se compreende perfeitamente, que parece inteiramente
lógica, mas que não reflete a realidade dos fatos conforme aparece nos documentos, e
uma outra narrativa que, embora comprovada nos documentos e nos fatos, pareça no
fim das contas incompreensível e enigmática, o historiador deverá preferir esta
última.

O que resultou desse triplo conflito é um terceiro tipo de História da Filosofia,


considerada como uma ciência social, por sua vez. Se o primeiro tipo apenas
colocava as doutrinas umas ao lado das outras para que as pudéssemos comparar no
seu conteúdo lógico, e se o segundo tipo, hegeliano, as emendava umas às outras
como se fossem etapas de um único raciocínio, de uma única dialética ao longo do
tempo, agora surge um tipo de História da Filosofia que busca explicar de algum
modo o surgimento temporal das várias filosofias com base nos elementos culturais,
sociais, econômicos, jurídicos, psicológicos e religiosos do ambiente no qual elas
nasceram. Isso quer dizer que as filosofias são aí consideradas expressões da cultura
tomada no seu sentido mais amplo, variando, evidentemente, a noção que cada autor
tem a respeito do que vem a ser "cultura": uns acreditam que aí predominam os
fatores de ordem intelectual-espiritual; outros, os fatores econômicos; outros, os
fatores militares, e assim por diante.

E claro que esse modelo também produz inúmeros resultados, muito


brilhantes; porém, após algumas décadas de prática, podemos ver também as
limitações que existem nesse terceiro modelo, que vamos chamar provisoriamente
de Histórias Científicas da Filosofia. Não que sejam científicas, mas têm a pretensão
de sê-lo, na medida em procuram explicar o surgimento das ideias filosóficas como
explicariam, por exemplo, o surgimento de um novo estilo artístico, de um
movimento religioso- político, de um novo estilo de vestuário, de um novo estilo
arquitetônico e assim por diante. Ou seja, pega-se a cultura como um todo, e cada
uma das suas expressões particulares é vista como uma expressão, manifestação ou
efeito de fatores causais que o transcendem.

Se aceitamos a idéia de Karl Marx de que toda


sociedade tem uma infra-estrutura econômica que se define pelo seu sistema de
produção e pela estrutura de propriedade - e baseado nesse esquema aparece o que
ele chama de uma superestrutura, que seria a cultura, as leis, as formas políticas, os
valores, os hábitos e a linguagem -, então, evidentemente, teríamos que explicar a
superestrutura em função da infra-estrutura, e explicar a história cultural em função
da história econômica. Esta é uma alternativa possível.
O fato é que isso nunca deu certo. Por exemplo, certas idéias aparecerem
num período em que teoricamente a estrutura da economia não dava as condições
para que alguém pensasse daquele jeito. A tentativa de fazer as várias idéias
individuais corresponderem a grupos sociais definidos, o que é evidentemente uma
exigência básica do método marxista, também nunca funciona. O número de casos
em que o filósofo individual aparece falando contra o grupo social que teoricamente
representava parece ser até mais freqüente do que o oposto, quer dizer, o sujeito que
é um "porta-voz fidedigno" do seu grupo social.

diz que a ideia aristotélica do predomínio, da primazia da contemplação sobre a


ação, refletia uma concepção da aristocracia grega, porque a aristocracia "não pega
no pesado" e viveria, então, teoricamente, uma vida contemplativa. Mas se fosse uma
filosofia produzida por proletários ou por pequenos agricultores, ela enfatizaria, ao
contrário, a ação e não a contemplação, a vida prática e não a vida teorética! Quando
se vê isso pela primeira vez, parece que tudo está combinando, mas a dura realidade é
que a aristocracia grega não tinha atividade contemplativa alguma, era uma casta
essencialmente militar, na qual aquele pequeno grupo, ou seja, os filósofos da
Academia platônica e aristotélica aparecem como uns tipos anormais e totalmente
dissidentes.

Não por uma coincidência, a mesma autora, para fazer um contraste com a idéia da
"contemplatividade" aristocrática aristotélica, lança a idéia de que, já na fase
moderna, outras doutrinas que enfatizam a experimentação e a prática refletiriam uma
visão burguesa, em contraste com a visão aristocrática que teria sido a de Aristóteles.
Mas, por uma infortunada coincidência, justo os autores que ela cita como
representantes do novo estilo burguês de pensar eram todos exatamente aristocratas,
como Descartes e Bacon, em particular.

um dos problemas filosóficos essenciais estaria resolvido, ou seja, nós já saberíamos


quais são as molas mestras, os motores do acontecer humano. Como isso continua em
discussão dentro da própria Filosofia, então o pressuposto básico desse tipo de
história é, evidentemente, uma falsidade.

então, em resposta aos defeitos que foram encontrados nos dois anteriores - e o
defeito principal é que tanto as histórias expositivas quanto a história filosófica
consideravam apenas o movimento interno das idéias e não a realidade sociocultural.

E, note bem, nenhum desses três tipos resolve o problema, mas devem ser
considerados
patamares que, uma vez atingidos, não se pode mais descer abaixo deles.

Mas chega um ponto em que aquela linha de investigações atinge seu limite, quer
dizer, começa a dar problemas, então é preciso inventar algo novo. Acho que as
chamadas Histórias Científicas da Filosofia de fato chegaram ao seu limite e estão se
perdendo. Está na hora de inventarmos alguma coisa que possa tampar esses buracos
e permitir que o navio da História da Filosofia continue a sua viagem.

Dizia Husserl que, no começo das investigações científicas, a maior preocupação que
devemos ter é de delimitar muito corretamente o campo, o grupo, o conjunto dos
fenômenos que vamos estudar, para que ali não se metam de contrabando fenômenos
de ordem especificamente diferente, sobre os quais projetaremos explicações tiradas
de outros fenômenos que não servem para ele. No curso da história de qualquer
ciência, o número dessas mesclas indevidas é enorme, e, a cada vez que isso
acontece, às vezes temos dois, três, quatro séculos de investigações infrutíferas ou de
conclusões medonhamente erradas. Isso acontece com freqüência.

Husserl dizia também que é necessário termos uma idéia muito clara de onde uma
investigação científica pretende chegar, isto é, qual o tipo de resposta que se pretende
dar e qual o nível de validade que se pretende atribuir a essa resposta.

Vejamos o caso do estatístico dinamarquês Lomborg. Ele lançou um livro, O


ambientalista cético1, no qual, juntando todos os dados probabilísticos oficiais dos
vários países, mostra que a "crise ecológica" não está acontecendo, ou pelo menos
não é tão grave quanto dizem;

Chegando nos políticos e empresários e traçando-lhes um panorama alarmista,


dizendo: "Olha, se vocês não me derem dinheiro para pesquisar esse negócio, o
mundo vai acabar!".

Houve uma mobilização mundial de cientistas para tapar a boca do sujeito, mas não
sei se ele tem razão ou não. Sei que a possibilidade de uma investigação científica
sobre a hipótese que ele lançou já está muito difícil de se realizar. A investigação
passou do domínio científico para o domínio político.

Como dizia Carl Schmidt, você vai somar os amigos contra os inimigos. Se os
amigos forem mais que os inimigos, você ganhou; se não forem, você perdeu. E é
exatamente assim que está a questão do Ambientalista cético, assim como milhares de
outras questões científicas.

A primeira das regras que formulam meu método pode ser enunciada assim:
1ª - Se existe uma História da Filosofia, é porque a Filosofia não nasceu pronta.

Alguém é capaz de refutar esse enunciado? Estou falando de uma realidade óbvia,
até banal, mas justamente por ser óbvia e banal constitui um desses pontos de
referência que podemos tomar como baliza durante todo o conjunto da nossa
investigação, sabendo que qualquer conclusão a que cheguemos na investigação dos
fatos particulares que pareça desmentir esse princípio será falsa; portanto, estaremos
na pista errada.

2a - Se a Filosofia não nasceu pronta, ela não pode ter nascido como uma realidade
existente, como uma estrutura dada, mas tem que ter d parecido sob a forma de um
projeto ou de uma
ambição a realizar.

temos que admitir que o primeiro filósofo, quando começou a filosofar, não tinha
filosofia alguma.

Existiria o enunciado de uma doutrina pronta, que teria que ser aceita ou rejeitada em
bloco, mais ou menos como acontece com as religiões, mas que não poderia ser
discutida, nem validada ou invalidada de modo parcial, o que é justamente uma
característica dos sistemas filosóficos.

Dificilmente se verá um filósofo impugnando ou validando o sistema do outro por


inteiro.

3a - A Filosofia surge com consciência desse projeto e ambição.


Se a Filosofia não nasceu pronta, se, portanto, ela nasce como um projeto ou uma
ambição e, mais ainda, se os primeiros filósofos transmitem algo desse projeto ou
dessa ambição aos seus discípulos - os quais, por sua vez, continuam empenhados de
algum modo em realizá-la -, isso significa que os próprios fundadores tinham
consciência de que se tratava de um projeto, de uma ambição e de algo a realizar, e
não de algo que já estivesse pronto.
Estes três princípios – 1º) "A Filosofia não nasceu pronta"; 2º) "A Filosofia é um
projeto ou ambição"; 3º) “A Filosofia surge com consciência desse projeto e
ambição" - mostram que a História da Filosofia, mesmo que não tenha nenhuma
constante, como dizia Hegel, tem, não obstante, uma constante negativa. Podemos
dizer que ela obedece às condições gerais da realização de qualquer projeto humano,
está limitada por essas condições.

Se a Filosofia é um projeto, e um projeto humano, quaisquer que sejam as condições


gerais de natureza ontológica, antropológica, sociológica, histórica que delimitem as
possibilidades da realização de qualquer projeto humano, a Filosofia também estará
submetida a essas limitações e condições.

O que são projetos humanos? Quais são as limitações e as condições internas da sua
realização no tempo?

Enunciados esses princípios, que ninguém é capaz de impugnar por serem princípios
absolutamente auto-evidentes - como idealmente devem ser auto-evidentes todos os
princípios de quaisquer ciências -, se de fato esses princípios foram apreendidos, é
necessário que passemos a usá-los daqui para diante como regras ou parâmetros com
os quais iremos validar ou invalidar as conclusões a que chegaremos na investigação,
agora material, dos fatos da História da Filosofia. Mas os princípios são tão gerais,
tão universais e tão obviamente válidos que é meio difícil aplicá-los diretamente aos
fatos: temos que fazer uma espécie de mediação e transição, ou seja, temos que fazer
dos princípios um conjunto de critérios, uma criteriologia que nos oriente passo a
passo na narrativa da História da Filosofia para sabermos se estamos ainda operando
dentro do mesmo campo de princípios ou se entramos numa grave contradição com
os princípios da ciência e, portanto, já passamos para um outro domínio
completamente diferente.

A primeira delas é a de que nenhum projeto se transmite automaticamente aos seus


continuadores - qualquer idéia ou sugestão de algo a realizar que se queira transmitir
a outras pessoas não as obriga, de maneira alguma, a aceitar.

elas podem, afinal, ter suas próprias idéias e achar que, em vez de fazer isso, talvez
devêssemos fazer alguma coisa parecida ou uma outra coisa totalmente diferente.
Mesmo dentro do campo arquitetônico, existem algumas igrejas muito antigas, cuja
construção atravessou várias gerações, que possuem um pedaço construído num estilo
completamente diferente do anterior. Por exemplo, algumas igrejas góticas possuem
duas torres completamente diferentes uma da outra. Por quê? É porque alguém veio
depois e achou que devia fazer uma coisa diferente ou não conseguiu fazer
exatamente igual. Ora, mas se isto é assim até mesmo dentro do campo arquitetônico,
quanto mais não o será na idéia de um projeto complexo como o da História da
Filosofia, como o da criação de uma filosofia! A partir do momento em que tivermos
enunciado qual o conteúdo do projeto inicial filosófico - "a idéia inicial da Filosofia
era esta" - isso quererá dizer que só existe uma maneira cientificamente válida de
contar a História da Filosofia: é a história da sucessão das etapas da consecução de
um projeto originário. Portanto, a história desse projeto terá que ser acompanhada
não só nas tentativas de realizá-lo literalmente, mas também nas tentativas de
impugná-lo, de modificá-lo ou de substituí-lo parcialmente ou no todo. Este método
nos permite, ao mesmo tempo, atender à reivindicação hegeliana da busca da unidade
do movimento como um todo, sem cair na falácia hegeliana de projetar uma unidade
sobre acontecimentos que, às vezes, não têm unidade nem conexão alguma. Permite
atender também à demanda da escola histórica de se ater aos fatos como eles
realmente aconteceram, mesmo quando a sucessão real dos fatos, longe de nos
sugerir uma unidade lógica, nos sugere apenas a unidade de um problema, a unidade
de uma confusão ou a unidade de um enigma. Ao longo da História da Filosofia,
veremos que o projeto filosófico, sofreu uma multidão de alterações, mas que não se
pode dizer que ele foi abandonado totalmente pelo simples fato de que as pessoas que
introduziram essas modificações continuam a acreditar que estão fazendo um negócio
chamado "filosofia" e que, deste modo, elas de alguma maneira vinculam a sua
atividade atual ao projeto originário, mesmo que ele seja o contrário dela. Ou seja, se
o indivíduo acha que o projeto filosófico originário é totalmente inviável,
contraproducente, absurdo, e que ele deve trocá-lo por alguma outra coisa, veremos
que, em alguns casos, esta "alguma outra coisa" se apresentava como uma não-
filosofia, como uma alternativa à Filosofia, ou seja, como algo que deveria suprimir a
prática filosófica.

Podemos desde já saber que a História da Filosofia, se ela tem alguma unidade, só
pode ser a unidade problemática de um projeto que, no tempo, continua pára, se
altera, se modifica, retoma o ponto originário num outro plano, e que, enfim, não
apenas luta para se realizar, mas luta para saber se deve se realizar; e luta para
descobrir os modos de se realizar e, às vezes, para ser cancelado e substituído por
outra coisa.

Por exemplo, o indivíduo que, hoje em dia, passa uma boa parte da sua existência
tentando assimilar as idéias de Leibniz, de São Tomás de Aquino ou de Aristóteles,
está recebendo uma influência que não é de maneira alguma do seu tempo, mas de
um tempo remoto.
Como existe na Filosofia uma espécie de uma tradição, ou seja, uma contínua
referência ao passado filosófico, absolutamente todos os filósofos sempre se reportam
a alguma coisa dos anteriores, seja para endossá-los, seja para contestá-los, seja para
discutir com eles. Como existe uma tradição, é absolutamente necessário que
entendamos que ela tem um peso específico próprio, que não depende de forma
alguma da cultura do seu tempo.

Se estudarmos, por exemplo, as obras de Franz Brentano (Franz Brentano é um


grande filósofo do século passado, que passou a vida inteira resolvendo problemas
aristotélicos), poderemos descobrir alguns elementos da presença da cultura do seu
tempo por sinais indiretos, mas a presença aristotélica estará por toda parte:
Aristóteles é onipresente. É claro que esta influência, que veio de 2200 anos antes,
predomina sobre a influência da cultura do seu tempo.

Essa história de dizer que "o sujeito é um homem do seu tempo" é uma
grandessíssima bobagem; ninguém pode ser exclusivamente "homem do seu tempo".
Se cada um fosse homem "do seu tempo", simplesmente não teríamos História. Só
podemos ter uma dimensão histórica justamente porque transcendemos o nosso
tempo e, de alguma maneira, nos conecta- mos com outros tempos, passados e
futuros.

Mais ainda, no século XVIII, a Europa estava em plena época de glória da física de
Newton, quer dizer, a física mecanicista, a física que acreditava que, partindo de três
ou quatro princípios auto-evidentes (os princípios são leis da natureza), praticamente
todo o restante da fenomenalidade cósmica poderia ser conhecida quase que por pura
dedução lógica ou matemática, ou seja, que se chegaria a descrever tão bem a
mecânica natural que praticamente nenhum fato escaparia da malha dos princípios
newtonianos. Isto no século XVIII. Ao mesmo tempo, tinha um sujeito chamado
Leibniz que dizia que não era nada assim, que haveria, no campo da natureza, um
certo coeficiente de indeterminação que, longe de ser uma margem de erro apenas,
era um dos elementos fundamentais, um dos pilares na natureza. Ou seja, a natureza,
longe de obedecer a uma causalidade mecânica inteiramente lógica, tinha em si
mesma, na sua própria constituição, algo de essencialmente incerto e essencialmente
imprevisível.

Ora, quando Leibniz disse isso, ninguém prestou a menor atenção e a física
continuou, e não só a física, mas todas as ciências da natureza continuaram
raciocinando dentro da linha da mecânica de Newton, com um sucesso tão grande
que, no final do século XIX, um outro sujeito disse que a ciência já tinha descoberto
praticamente tudo e que, no século seguinte, só restaria calcular alguns decimais
faltantes (já existia a formula geral, faltava só acertar as frações). De repente, chega
um sujeito chamado Einstein, outro chamado Max Planck, e viraram tudo isso de
cabeça para baixo. A conclusão é que o elemento indeterminístico, que tinha sido
ressaltado por Leibniz, revela-se realmente decisivo, a ponto de que hoje ninguém
teria coragem de negá-lo.

Se os homens fossem "filhos do seu tempo", eles nunca poderiam ir para fora dele,
nem sondar possibilidades que já não fazem parte do repertório do seu tempo, muito
menos modificar a história do seu tempo a partir de elementos colhidos em outros
tempos.

Quando um homem é totalmente "filho do seu tempo", isso significa que ele não
enxerga um centímetro para além do horizonte de visão da cultura do seu tempo

Geralmente, usa-se isso com relação a intelectuais e filósofos, quando se quer dizer
que eles eram indivíduos que estavam metidos de fato no fluxo vital dos problemas
da época.

Quando um poeta, ou um filósofo, condena o seu tempo como um tempo mau, um


tempo de decadência, um tempo medíocre (o famoso verso de Rilke: "Para que um
poeta em tempos medíocres"), quando faz isso é porque ele tem consciência de que
certas possibilidades humanas, que existiam numa outra época e que talvez possam
voltar a existir no futuro, não existem no seu seu tempo. Ele se superpõe e julga - essa
é uma capacidade humana específica. Podemos também dizer que todo animal é uma
criatura do seu tempo; o anterior à sua biografia não existe e o posterior também não.
A rigor, a consciência temporal de um animal é bastante estreita: de algumas horas,
alguns minutos, às vezes alguns segundos.
É porque podemos apreender possibilidades humanas que eram efetivas em outras
épocas e compará-las umas com as outras (note-se que o primeiro tipo de História da
Filosofia que mencionei é exatamente isto) que podemos ter História, senão
estaríamos imersos no fluxo exatamente como uma gota d'água está dissolvida dentro
do rio que corre, sem podermos jamais levantar a cabeça para fora, nem para vermos
para onde o rio está indo. Se temos consciência histórica é porque realmente não
somos homens do nosso tempo.

Esse senso da eternidade ou da simultaneidade é a marca característica do ser


humano, é uma condição indispensável da possibilidade mesma de existir uma
História, porque, nesse sentido, os animais não têm história a cada geração; a história
deles termina e começa outra, de uma geração que ignora totalmente a anterior.
(...) Isto resultaria em você dizer o seguinte: "Olha, um princípio geométrico que
tenha sido descoberto na Grécia no tempo de Aristóteles só funciona como expressão
da cultura do tempo de Aristóteles, mas não como expressão de alguma realidade
geométrica que continue vivendo ainda hoje". Se você pegar o Teorema de Pitágoras,
ele teria sido uma expressão da situação histórica do tempo de Pitágoras, mas, depois
disso, triângulos mudaram e começaram a se comportar diferentemente, o que é um
absurdo total!

É como se disséssemos: "Se só existe História, então não existe nem História". É
porque algumas coisas têm história e outras não têm que podemos contar a História!
(SOOU ESTRANHO, CONFERIR) Por exemplo, os triângulos não têm história; se
considerados geometricamente, eles não têm história. Fazem a mesma coisa desde
que o mundo é mundo; aliás, antes de o mundo existir eles também já faziam a
mesma coisa. Antes de o mundo existir, a soma dos quadrados dos catetos já dava o
quadrado da hipotenusa, embora ninguém tivesse percebido isso. E depois que o
mundo acabar, vai continuar a mesma coisa. Um mais um dava dois; dois mais dois
dava quatro, e depois de acabar o mundo também. Se não existissem essas realidades
trans-históricas ou meta-históricas, nãoexistiria também a dimensão histórica - ou
pelo menos nós seriamos incapazes de percebê-la, assim como uma gota d'água não
percebe que está dissolvida num montão de água. A História seria apenas um fluxo
inconsciente de átomos anônimos dissolvidos na unidade maior do movimento que
eles próprios desconhecem.

A história do pensamento infelizmente está cheia desses curtos-circuitos, que fazem


parte do que vamos chamar de "a teratologia intelectual".O que é teratologia
intelectual? São as alterações falhadas do projeto. Alterações falhadas não por uma
coincidência, porque muitas vezes o sujeito tem uma boa idéia, mas não consegue
executar; são alterações falhadas porque o próprio enunciado da alteração já
enunciava alguma coisa impossível de se fazer, que o sujeito não percebeu que era
impossível. Aí estão as famosas "penas de amor perdidas": o sujeito passa a vida
tentando fazer um negócio e há um enunciado que já disse que ele não ia fazer.

O fato é que não descobrimos essa fórmula até agora - e acho que a idéia mesma de
descobrir uma "fórmula" do desenvolvimento das idéias filosóficas autocontraditória
com a própria definição da Filosofia.
A narrativa das relações entre cristianismo e Filosofia já é, por exemplo, um capítulo
especial da História da Filosofia. Às vezes, o fator que intervém não é sequer de
ordem doutrinal. Porque uma religião se parece com uma filosofia pelo menos sob
este aspecto, é uma doutrina; distingue-se por milhões de características, mas que é
uma doutrina é – pelo menos esse ponto elas têm em comum.

Por exemplo, no século XVIII, o famoso terremoto de Lisboa, em que morreram


umas 120 mil pessoas, era um negócio absurdo para a época! Matar 120 mil pessoas
hoje é "aceitável", mesmo que não seja a natureza quem matou... Mas, naquela época,
o choque dessa catástrofe natural suscitou imediatamente, em toda Europa, a
discussão de um problema filosófico que fazia séculos ninguém estava muito
interessado: o da Teodicéia, ou justificação de Deus, baseada na pergunta: "Como é
que Deus permite algo assim?".

É um fato de ordem totalmente heterogênea, que, no entanto, repentinamente,


modifica o repertório das discussões filosóficas.

Esta é uma modificação interna, endógena, mas há aquelas que são exógenas.

O enunciado da filosofia de Hegel - quando ele diz que o conteúdo da Filosofia é


constituído pela própria História da Filosofia, o que ninguém tinha pensado antes - é
uma modificação endógena. Até aquele momento, contar aHistória da Filosofia não
era considerado como uma tarefa especificamente filosófica ou essencialmente
filosófica, mas apenas acidentalmente filosófica.

Só existe um projeto originário, inicial. E existem as modificações posteriores.

[Aluno: Mas existem várias filosofias no gênero humano. É possível falar


de todas elas como um projeto, ou reportáveis a um projeto?]

Não! Elas se reportam a um projeto, mas às vezes se reportam para abandoná-lo, ou


para impugná-lo, ou para substituí-lo por outra coisa. Por um lado, a História da
Filosofia é a história das tentativas de realização de um projeto, mas, por outro, é o
conjunto das tentativas para impugnar, para modificar esse projeto,para transformá-lo
em outra coisa completamente diferente. Isto também faz parte da História da
Filosofia…
Você não vai ter, então, uma unidade simples, como dizia Hegel, que é a unidade de
um desenvolvimento dialético interno, e também não vai ter uma multiplicidade
caótica de puros fatos. Mas existe uma tensão entre a unidade doprojeto, que de
algum modo se conserva até hoje, porque até hoje tem gente tentando realizar o
projeto originário, e, por outro lado, há a multiplicidade das forças internas e externas
que o modificam. Então, não estamos tentando chegar a uma explicação unificada no
sentido de captar leis ou constantes do desenvolvimento. Não, nós estamos tentando
realizar a tarefa que nos foi prescrita por Leopold von Ranke: "contar as escolhas
como elas realmente aconteceram".

Essa narrativa não será apenas uma sucessão de fatos inconexos, porque existe uma
constante referência ao projeto originário

[Aluno: E no caso de outros projetos que ignorem esse projeto originário, portanto,
que nem o continuem, nem o neguem, nem tentem modificá-lo?No caso de filosofias
diferentes, em sociedades diferentes, que não têm contato com os produtos (...), aí se
fala a história de cada uma das filosofias?…}

Esses projetos totalmente alheios ao campo filosófico podem interferir nele. Num
certo corte transversal no tempo, se você pegar uma época, vai ver que há vários
desenvolvimentos ali que se ignoram mutuamente.

Existe o problema dos meios materiais de informação, então há uma regra que todos
os historiadores admitem - geralmente uma regra metodológica, que diz que a difusão
dos fatos produz fatos. O fato de que um sujeito ficou sabendo de um certo fato é por
si mesmo um fato, e ademais ele pode reagir de alguma maneira à notícia, então aí é
duplamente um fato.

E temos que levar em conta o fato de que existem épocas inteiras sem filosofia
alguma; existem hiatos na História da Filosofia. Esses hiatos, claro que eles fazem
parte da história! Eles mostram que o projeto filosófico pode ser retomado depois de
muitas gerações, sem nenhum contato direto, sem nenhuma transmissãodireta. Isso
quer dizer que o projeto filosófico não se transmite só por tradição de pessoa a
pessoa, mas pela reconquista de um legado escrito.
Se você for escrever uma "História das tradições inhanbiquaras" – por exemplo,
chega lá na tribo inhanbiquara e diz: "Eu quero escrever a história das suas tradições"
- você vai ter um problema horrível para escrever aquilo, você não tem documentos!
Quer dizer então que, de geração em geração, não é que não se conserve nenhum
registro, mas se conserva um registro muito sumário, às vezes sob forma de síntese
mitológica. Certas coisas que aconteceram não são narradas com toda sua ordem
factual, são resumidas como numa figura poética. E você nunca sabe se aquilo
aconteceu mesmo, se alguém inventou, se é uma interpretação que fizeram de algo
que viram ou se foi uma invenção. Esses povos, Lévi-Strauss dizia que eles não têm
história, mas é um modo de dizer. Eles não têm história no sentido de que nós não
podemos escrever a sua história, mas é evidente que as marcas das coisas que
aconteceram às sucessivas gerações podem ter se conservado de algum modo, mesmo
que sejam desconhecidas das gerações seguintes.

Veremos que a idéia de registro escrito não é só um componente externo da História


da Filosofia, mas uma condição dela mesma, uma condição interna, existencial. Se
todos tivessem feito como Sócrates, nós estaríamos mal-arrumados: a História da
Filosofia como disciplina não poderia haver. Vejam que as sociedades secretas e os
movimentos clandestinos, mesmo esses, que têm um belo interesse em esconder a sua
história, também têm a preocupação de registrá-la de algum modo. Mantém-se o
registro apenas escondido dos inimigos, mas para o pessoal de dentro algum registro
se conserva, senão a própria sociedade perderá o rumo do que está lhe acontecendo.
Esta dimensão humana da retomada da referência anterior é algo permanente na
história. No dia em que não acontecer mais isso, não existirá mais a dimensão
antropológica, nós não seremos mais gente.

Eles apenas não a efetivaram, não a atualizaram.

Os bichos causam dó porque são vítimas inermes do acontecer. Nunca sabem para
onde estão indo. Se você extinguir uma espécie animal, o último a vai ser o membro
da espécie animal. O último leão, ele não sabe que é o último!

Ele não sabe o que está acontecendo, está totalmente na mão de fatores externos.
Graças a Deus, se você for o dono do animal, você é um desses fatores, e é um fator
atenuante.
Esta dimensão histórica é uma maravilha da vida humana. É isso aí que lhe dá um
privilégio especial, e sem você ter consciência deste privilégio toda sua visão da
realidade é totalmente deformada e desproporcional.

Isso não quer dizer que toda diferença possa ser reduzida a esse percentual. Isso é
uma limitação, não do homem, nem do macaco, mas da genética, evidentemente.

"Olha, este é um problema gravíssimo para a genética", porque essa é uma ciência
excepcionalmente burra. Ela pega um fenômeno desse tamanho e disso ela só
consegue enxergar 3%!

Agora, se o geneticista entende que esse fator genético está imbricado no meio de
uma malha de outros fatores, ele dirá: "Olha, o que a genética tem a dizer a respeito é
muito pouco, porque nós só sabemos dos 3%"... Mas o sujeito não vai dizer isso
nunca; ele vai dizer que nós é que estamos limitados pelos 3%, não a ciência dele. Se
ele faz isso, está demonstrando que não sabe o que é ciência.

E vejam: nenhuma ciência estuda um objeto real, concreto, ela estuda sempre um
recorte abstrativo que faz do seu próprio jeito. Esse recorte abstrativo pode
corresponder a alguma diferença real existente no campo dos objetos, mas isso pode
às vezes não acontecer. Pode ser que o território de uma ciência seja todo ele fictício.
Por exemplo, se se descobrir que tudo aquilo que se chama de genética pode ter uma
explicação química, acabou a genética, ela não existe como um recorte
correspondente a uma diferença objetiva. As ciências são a toda hora absorvidas por
outras. Isso prova que elas estavam estudando irrealidades e que, quando despertam
do seu sonho, são imediatamente engolidas por uma estrutura científica maior.

Ou seja, ou se declaram seus herdeiros, seus continuadores, ou se voltam contra ele,


ou o criticam, ou procuram até desmoralizá-lo. O que faz Nietzsche? Nietzsche tenta
desmoralizar o projeto filosófico inteiro. Por isso mesmo, faz parte da história do
projeto. Aí se cria uma situação ambígua.
[Aluno: Então, para ser filosofia, bastaria simplesmente que o filósofo
manifestasse a consciência de que existe esse projeto?]

Não! Não! É necessário que ele faça parte objetivamente da história do projeto – e
objetivamente significa também conscientemente, é claro! Pode ser uma participação
inconsciente... Não, eu não excluo essa hipótese, mas eu nunca vi nenhum exemplo
disto. Existem participações apenas semiconscientes. Por exemplo, quando chegamos
no século XX, o mundo anglo-saxônico é em grande parte dominado por uma certa
escola de pensamento, a Escola Analítica.

Isso quer dizer que, para se estudar a História da Filosofia anglo-saxônica, tem-se que
dar uma olhada no departamento de Letras, porque muitas vezes o crítico literário
está prosseguindo o diálogo com o projeto filosófico de uma maneira até mais
explícita do que faz o filósofo profissional.

Vamos estudar, mais tarde, um breve texto de um excelente historiador


chamado Wolfgang Stegmüller, em que ele dá um breve panorama da fragmentação
da noção de Filosofia no século XX. Veremos como isso é um capítulo dramático, um
capítulo fascinante da história do projeto, porque as pessoas começam a fazer coisas
desencontradas que levam mais ou menos o mesmo nome, e, às vezes, não há sequer
a condição de um compreender o que o outro está fazendo. Creio que, hoje em dia,
neste ano 2002, nós já estamos saindo dessa situação descrita por ele por volta de
1960 a 1970.

'Ah, nós não sabemos o que é!". Mas isto aconteceu durante uma certa fase da qual
me parece que já estamos saindo. Quer dizer, as fases de confusão e de
obscurecimento também fazem parte da história do projeto.

Aluno: Sim, digamos (...) a segunda, que tem uma outra tradição filosófica, que não
tenha a menor idéia da existência dessa (...). E possível falar em dois projetos
filosóficos (...) ambos tem no mínimo características em comum, necessariamente?]
Isso tem que ser resolvido pelo método do Ranke: contar as coisas como elas
efetivamente aconteceram. Quer dizer, nós não vamos ter uma resposta teórica,
porque estamos buscando uma resposta histórica. Então, se você der a resposta
teórica de antemão, você está falhando no objetivo da própria ciência.

O cristianismo se espalha, note bem, como uma notícia de algo que


aconteceu. Quer dizer, houve um sujeito que esteve aí, disse que era filho de Deus,
fez um monte de curas miraculosas e, pior, morreu e daí reapareceu. O que foi que ele
disse? Ah! Uns dizem que foi isso, outros dizem que foi aquilo... Havia um monte de
versões, e essas versões tiveram que ser examinadas e comparadas, e só muito aos
poucos foi se estabilizando o que seria o conteúdo da doutrina cristã. O cristianismo
se espalha apenas com uma notícia de um fato - o próprio nome Evangelho quer dizer
"uma boa notícia".

Veja que o mesmo não acontece no mundo cristão. Para chegar a um


texto mais ou menos estabilizado já foi um problema, então o texto mesmo já é objeto
de discussão. No mundo islâmico, não tem isso. Por causa disso, então, forma-se
desde o início - e com a maior facilidade – uma moral islâmica e um direito, uma
jurisprudência islâmica, mediante a aplicação direta da letra do Corão. No mundo
cristão, para aparecer uma moral cristã e um direito cristão, foram séculos, séculos e
séculos. Para você ter idéia, a primeira formulação sistemática da moral cristã ocorre
no século XVIII, com Santo Afonso de Ligório.

Esse Santo Afonso era um bispo, era confessor dos padres, e daí ele
descobriu que cada padre estava ensinando uma moral completamente diferente, isto
no século XVIII. Esse problema no mundo islâmico nunca existiu, porque tudo já
vem organizado dentro do princípio.

Como existiu esse fenômeno do direito islâmico unificado desde o


princípio, as sociedades islâmicas se organizam desde o primeiro dia com base numa
grande coesão moral e jurídica; portanto, trata-se de uma ortodoxia muito rígida. Isto
quer dizer que a possibilidade da livre investigação intelectual era problemática nesse
contexto.

...A solução foi considerar...como tipos humanos especiais que conduzem sua
atividade dentro do seu grêmio, de tal maneira que isso não deva interferir em nada
na ordem das coisas. (…) para um círculo especializado e que o restante da sociedade
não tinha nem que entender.
Quando chega na década de 1930, já no século XX, por uma coincidência
providencial, o embaixador francês no Irã, Henry Corbin, interessou-se em começar a
traduzir tudo isso, então muito desse material saiu primeiro em francês e - ele era
embaixador na Pérsia - só depois em língua persa. Mais ainda, quando se deu a
revolução persa, a revolução iraniana, os aiatolás mandaram parar tudo isso.

Quando vemos toda essa tradição que se desenvolve a margem da filosofia ocidental,
todas elas têm alguma referência a Aristóteles, Platão e Sócrates.

é levado às vezes a enfrentar certos problemas de ordem, em primeiro lugar, lógica,


que os fazem arquitetar sistemas lógicos inteiros sem nunca ter ouvido falar de
Sócrates, nem de Aristóteles. Uns sem saber dos outros chegam a problemas
parecidos, o que mostra que a Filosofia como problema e como projeto é uma
dimensão possível da existência humana, e que ela pode reaparecer sem conexão
histórica.

Por exemplo, aqui, na tradição aristotélica, a disciplina chamado Lógica sempre


trabalhou na ideia linear da identidade, quer dizer, se é sim, é sim; se é não, é não.
Existe um confronto de sim com não na esfera dialética, mas isso se desenvolveu
pouco.

se chama de Lógica o estudo conjunto do que nós chamamos de identidade e de três


das suas negações possíveis. Então, o princípio de identidade é o seguinte: se é, é; se
não é, não é. Se é e não é, ao mesmo tempo, esse é um problema dialético, a
confrontação de contrários. Confrontação de contrários não faz parte da ciência da
Lógica, que aprimora apenas o raciocínio na linha de identidade. Mas no mundo
budista se chama isso de Lógica também. O budista admite quatro possibilidades: tem
o que é; tem o que não é; tem o que é e não é; e tem o que nem é, nem não é.

Essas coisas, então, tornam o campo da História da Filosofia imensamente maior do


que geralmente os manuais abordam
partem de um conceito demasiado limitativo do que seja a Filosofia, porque, não
tendo conseguido alcançar um conceito geral suficientemente abrangente de modo
que abarcasse todas as variações possíveis, eles fazem um conceito provisório de
ordem puramente empírica, que chama de Filosofia certas coisas que certas pessoas
têm feito. (…) "Filosofia é a unidade do conhecimento na unidade da consciência, e
vice-versa" -, esta é a definição que eu encontrei, e creio que ela é suficientemente
universal para abranger todas as manifestações possíveis.

estamos narrando um drama humano no qual o imprevisto, o descontínuo entram


exatamente como entram na vida de qualquer um de nós.

"Ah! Escapa do nosso âmbito". Eu falo: "Não, esses pedaços que nós teremos que
deixar de lado fazem parte do nosso projeto, sim, nós estamos deixando-os de lado
apenas provisoriamente, por motivos práticos".

Muitas histórias da Filosofia excluem, por exemplo, capítulos inteiros da


Filosofia Oriental, dizendo que não são "pertinentes" ao desenvolvimento daquilo.
Para mim, no meu ponto de vista, são pertinentes, sim! Quer dizer que a História da
Filosofia, tal como eu a entendo, é uma disciplina enormemente mais complexa, mas
baseada em princípios mais simples.

Leituras sugeridas BRÉHIER, Émile. Historia de la filosofia. Trad. Demetrio Nánez.


Buenos Aires: Sudamericana, 1962. 3 v. WEIL, Eric. Logique de la philosophie. 2.ed.
Paris: Vrin, 1967. VOEGELIN, Eric. Anamnesis. Gerhart Niemeyer (ed.).Columbia:
Univ. ofMissouri Press, J978. GOLDSCHMIDT, Victor. Temps physique et temps
tragique chez Aristote. Paris: Vrin, 1982. MARIAS, Julxan. Biografia de la filosofia.
Madrid: Alianza Editorial, 1980. SOURIAU, Etienne. L 'avenir de la philosophie.
Paris: Gallimard, 1982.

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