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Filosofia
Tipo: Grifos
Ano: 2023
Essência, como se sabe, é aquilo que uma coisa é, conforme sua natureza ou sua
constituição íntima, considerada desde o ponto de vista lógico e independentemente
das transformações temporais que ela possa sofrer, e até de sua existência ou não.
Pelo ponto de vista essencial, Napoleão Bonaparte já era Napoleão Bonaparte antes
de nascer, continuou sendo enquanto viveu e é Napoleão Bonaparte até hoje; ou seja,
sua morte não o transformou em outra pessoa.
Essa tensão, a meu ver, é insolúvel; é uma das muitas tensões que definem
polarmente a própria existência humana.
cada problema filosófico que atacou, ele sempre começou por abordá-lo desde a
narrativa das tentativas anteriores, feitas pelos seus antecessores, e com isto,
evidentemente, quase sem querer, inaugurou essa disciplina chamada História da
Filosofia.
Isso quer dizer que a filosofia de Hegel se apresenta como uma espécie de conclusão
do movimento global da História da Filosofia até aquele ponto.
Temos aí mais uma tensão. Por um lado, teríamos que buscar na História da Filosofia
a unidade do movimento, ou seja, teríamos que pegar a massa de fatos registrados em
livros e depoimentos ao longo de dois mil e tantos anos e tentar captar neles algum
perfil, de modo que pelo menos a história pudesse ser contada – e contada como uma
história única, pelo menos como uma mesma história ou como a história da mesma
coisa, não como um simples ajuntamento de fatos dispersos e inconexos. Por outro
lado, sabemos que essa tentativa de unificação só pode ter um sucesso parcial, porque
qualquer linha unitária de desenvolvimento que tenhamos conseguido discernir até o
ponto em que atamos - mesmo que tenha sido discernida da maneira mais correta,
mais exata e mais real que se possa imaginar -, no instante seguinte o rumo das coisas
pode tomar uma direção completamente diferente. Sua interpretação de conjunto irá
por terra, embora até aquele momento deva ser considerada correta, quando tiver que
ser integrada numa outra interpretação, que toma os fatos numa escala temporal
maior.
mas simplesmente reconstituir, com base nos documentos, nas provas, aquilo que
tinha acontecido, exatamente como tinha acontecido. Dizia ele: "A função da história
é contar as coisas como efetivamente se passaram, quer essa reconstituição possa
levar a uma interpretação, a uma compreensão de conjunto, quer, ao contrário, a
narrativa dos fatos, justamente por ser exata, só leve a problemas e contradições".
Entre uma narrativa que se compreende perfeitamente, que parece inteiramente
lógica, mas que não reflete a realidade dos fatos conforme aparece nos documentos, e
uma outra narrativa que, embora comprovada nos documentos e nos fatos, pareça no
fim das contas incompreensível e enigmática, o historiador deverá preferir esta
última.
Não por uma coincidência, a mesma autora, para fazer um contraste com a idéia da
"contemplatividade" aristocrática aristotélica, lança a idéia de que, já na fase
moderna, outras doutrinas que enfatizam a experimentação e a prática refletiriam uma
visão burguesa, em contraste com a visão aristocrática que teria sido a de Aristóteles.
Mas, por uma infortunada coincidência, justo os autores que ela cita como
representantes do novo estilo burguês de pensar eram todos exatamente aristocratas,
como Descartes e Bacon, em particular.
então, em resposta aos defeitos que foram encontrados nos dois anteriores - e o
defeito principal é que tanto as histórias expositivas quanto a história filosófica
consideravam apenas o movimento interno das idéias e não a realidade sociocultural.
E, note bem, nenhum desses três tipos resolve o problema, mas devem ser
considerados
patamares que, uma vez atingidos, não se pode mais descer abaixo deles.
Mas chega um ponto em que aquela linha de investigações atinge seu limite, quer
dizer, começa a dar problemas, então é preciso inventar algo novo. Acho que as
chamadas Histórias Científicas da Filosofia de fato chegaram ao seu limite e estão se
perdendo. Está na hora de inventarmos alguma coisa que possa tampar esses buracos
e permitir que o navio da História da Filosofia continue a sua viagem.
Dizia Husserl que, no começo das investigações científicas, a maior preocupação que
devemos ter é de delimitar muito corretamente o campo, o grupo, o conjunto dos
fenômenos que vamos estudar, para que ali não se metam de contrabando fenômenos
de ordem especificamente diferente, sobre os quais projetaremos explicações tiradas
de outros fenômenos que não servem para ele. No curso da história de qualquer
ciência, o número dessas mesclas indevidas é enorme, e, a cada vez que isso
acontece, às vezes temos dois, três, quatro séculos de investigações infrutíferas ou de
conclusões medonhamente erradas. Isso acontece com freqüência.
Husserl dizia também que é necessário termos uma idéia muito clara de onde uma
investigação científica pretende chegar, isto é, qual o tipo de resposta que se pretende
dar e qual o nível de validade que se pretende atribuir a essa resposta.
Houve uma mobilização mundial de cientistas para tapar a boca do sujeito, mas não
sei se ele tem razão ou não. Sei que a possibilidade de uma investigação científica
sobre a hipótese que ele lançou já está muito difícil de se realizar. A investigação
passou do domínio científico para o domínio político.
Como dizia Carl Schmidt, você vai somar os amigos contra os inimigos. Se os
amigos forem mais que os inimigos, você ganhou; se não forem, você perdeu. E é
exatamente assim que está a questão do Ambientalista cético, assim como milhares de
outras questões científicas.
A primeira das regras que formulam meu método pode ser enunciada assim:
1ª - Se existe uma História da Filosofia, é porque a Filosofia não nasceu pronta.
Alguém é capaz de refutar esse enunciado? Estou falando de uma realidade óbvia,
até banal, mas justamente por ser óbvia e banal constitui um desses pontos de
referência que podemos tomar como baliza durante todo o conjunto da nossa
investigação, sabendo que qualquer conclusão a que cheguemos na investigação dos
fatos particulares que pareça desmentir esse princípio será falsa; portanto, estaremos
na pista errada.
2a - Se a Filosofia não nasceu pronta, ela não pode ter nascido como uma realidade
existente, como uma estrutura dada, mas tem que ter d parecido sob a forma de um
projeto ou de uma
ambição a realizar.
temos que admitir que o primeiro filósofo, quando começou a filosofar, não tinha
filosofia alguma.
Existiria o enunciado de uma doutrina pronta, que teria que ser aceita ou rejeitada em
bloco, mais ou menos como acontece com as religiões, mas que não poderia ser
discutida, nem validada ou invalidada de modo parcial, o que é justamente uma
característica dos sistemas filosóficos.
O que são projetos humanos? Quais são as limitações e as condições internas da sua
realização no tempo?
Enunciados esses princípios, que ninguém é capaz de impugnar por serem princípios
absolutamente auto-evidentes - como idealmente devem ser auto-evidentes todos os
princípios de quaisquer ciências -, se de fato esses princípios foram apreendidos, é
necessário que passemos a usá-los daqui para diante como regras ou parâmetros com
os quais iremos validar ou invalidar as conclusões a que chegaremos na investigação,
agora material, dos fatos da História da Filosofia. Mas os princípios são tão gerais,
tão universais e tão obviamente válidos que é meio difícil aplicá-los diretamente aos
fatos: temos que fazer uma espécie de mediação e transição, ou seja, temos que fazer
dos princípios um conjunto de critérios, uma criteriologia que nos oriente passo a
passo na narrativa da História da Filosofia para sabermos se estamos ainda operando
dentro do mesmo campo de princípios ou se entramos numa grave contradição com
os princípios da ciência e, portanto, já passamos para um outro domínio
completamente diferente.
elas podem, afinal, ter suas próprias idéias e achar que, em vez de fazer isso, talvez
devêssemos fazer alguma coisa parecida ou uma outra coisa totalmente diferente.
Mesmo dentro do campo arquitetônico, existem algumas igrejas muito antigas, cuja
construção atravessou várias gerações, que possuem um pedaço construído num estilo
completamente diferente do anterior. Por exemplo, algumas igrejas góticas possuem
duas torres completamente diferentes uma da outra. Por quê? É porque alguém veio
depois e achou que devia fazer uma coisa diferente ou não conseguiu fazer
exatamente igual. Ora, mas se isto é assim até mesmo dentro do campo arquitetônico,
quanto mais não o será na idéia de um projeto complexo como o da História da
Filosofia, como o da criação de uma filosofia! A partir do momento em que tivermos
enunciado qual o conteúdo do projeto inicial filosófico - "a idéia inicial da Filosofia
era esta" - isso quererá dizer que só existe uma maneira cientificamente válida de
contar a História da Filosofia: é a história da sucessão das etapas da consecução de
um projeto originário. Portanto, a história desse projeto terá que ser acompanhada
não só nas tentativas de realizá-lo literalmente, mas também nas tentativas de
impugná-lo, de modificá-lo ou de substituí-lo parcialmente ou no todo. Este método
nos permite, ao mesmo tempo, atender à reivindicação hegeliana da busca da unidade
do movimento como um todo, sem cair na falácia hegeliana de projetar uma unidade
sobre acontecimentos que, às vezes, não têm unidade nem conexão alguma. Permite
atender também à demanda da escola histórica de se ater aos fatos como eles
realmente aconteceram, mesmo quando a sucessão real dos fatos, longe de nos
sugerir uma unidade lógica, nos sugere apenas a unidade de um problema, a unidade
de uma confusão ou a unidade de um enigma. Ao longo da História da Filosofia,
veremos que o projeto filosófico, sofreu uma multidão de alterações, mas que não se
pode dizer que ele foi abandonado totalmente pelo simples fato de que as pessoas que
introduziram essas modificações continuam a acreditar que estão fazendo um negócio
chamado "filosofia" e que, deste modo, elas de alguma maneira vinculam a sua
atividade atual ao projeto originário, mesmo que ele seja o contrário dela. Ou seja, se
o indivíduo acha que o projeto filosófico originário é totalmente inviável,
contraproducente, absurdo, e que ele deve trocá-lo por alguma outra coisa, veremos
que, em alguns casos, esta "alguma outra coisa" se apresentava como uma não-
filosofia, como uma alternativa à Filosofia, ou seja, como algo que deveria suprimir a
prática filosófica.
Podemos desde já saber que a História da Filosofia, se ela tem alguma unidade, só
pode ser a unidade problemática de um projeto que, no tempo, continua pára, se
altera, se modifica, retoma o ponto originário num outro plano, e que, enfim, não
apenas luta para se realizar, mas luta para saber se deve se realizar; e luta para
descobrir os modos de se realizar e, às vezes, para ser cancelado e substituído por
outra coisa.
Por exemplo, o indivíduo que, hoje em dia, passa uma boa parte da sua existência
tentando assimilar as idéias de Leibniz, de São Tomás de Aquino ou de Aristóteles,
está recebendo uma influência que não é de maneira alguma do seu tempo, mas de
um tempo remoto.
Como existe na Filosofia uma espécie de uma tradição, ou seja, uma contínua
referência ao passado filosófico, absolutamente todos os filósofos sempre se reportam
a alguma coisa dos anteriores, seja para endossá-los, seja para contestá-los, seja para
discutir com eles. Como existe uma tradição, é absolutamente necessário que
entendamos que ela tem um peso específico próprio, que não depende de forma
alguma da cultura do seu tempo.
Essa história de dizer que "o sujeito é um homem do seu tempo" é uma
grandessíssima bobagem; ninguém pode ser exclusivamente "homem do seu tempo".
Se cada um fosse homem "do seu tempo", simplesmente não teríamos História. Só
podemos ter uma dimensão histórica justamente porque transcendemos o nosso
tempo e, de alguma maneira, nos conecta- mos com outros tempos, passados e
futuros.
Mais ainda, no século XVIII, a Europa estava em plena época de glória da física de
Newton, quer dizer, a física mecanicista, a física que acreditava que, partindo de três
ou quatro princípios auto-evidentes (os princípios são leis da natureza), praticamente
todo o restante da fenomenalidade cósmica poderia ser conhecida quase que por pura
dedução lógica ou matemática, ou seja, que se chegaria a descrever tão bem a
mecânica natural que praticamente nenhum fato escaparia da malha dos princípios
newtonianos. Isto no século XVIII. Ao mesmo tempo, tinha um sujeito chamado
Leibniz que dizia que não era nada assim, que haveria, no campo da natureza, um
certo coeficiente de indeterminação que, longe de ser uma margem de erro apenas,
era um dos elementos fundamentais, um dos pilares na natureza. Ou seja, a natureza,
longe de obedecer a uma causalidade mecânica inteiramente lógica, tinha em si
mesma, na sua própria constituição, algo de essencialmente incerto e essencialmente
imprevisível.
Ora, quando Leibniz disse isso, ninguém prestou a menor atenção e a física
continuou, e não só a física, mas todas as ciências da natureza continuaram
raciocinando dentro da linha da mecânica de Newton, com um sucesso tão grande
que, no final do século XIX, um outro sujeito disse que a ciência já tinha descoberto
praticamente tudo e que, no século seguinte, só restaria calcular alguns decimais
faltantes (já existia a formula geral, faltava só acertar as frações). De repente, chega
um sujeito chamado Einstein, outro chamado Max Planck, e viraram tudo isso de
cabeça para baixo. A conclusão é que o elemento indeterminístico, que tinha sido
ressaltado por Leibniz, revela-se realmente decisivo, a ponto de que hoje ninguém
teria coragem de negá-lo.
Se os homens fossem "filhos do seu tempo", eles nunca poderiam ir para fora dele,
nem sondar possibilidades que já não fazem parte do repertório do seu tempo, muito
menos modificar a história do seu tempo a partir de elementos colhidos em outros
tempos.
Quando um homem é totalmente "filho do seu tempo", isso significa que ele não
enxerga um centímetro para além do horizonte de visão da cultura do seu tempo
Geralmente, usa-se isso com relação a intelectuais e filósofos, quando se quer dizer
que eles eram indivíduos que estavam metidos de fato no fluxo vital dos problemas
da época.
É como se disséssemos: "Se só existe História, então não existe nem História". É
porque algumas coisas têm história e outras não têm que podemos contar a História!
(SOOU ESTRANHO, CONFERIR) Por exemplo, os triângulos não têm história; se
considerados geometricamente, eles não têm história. Fazem a mesma coisa desde
que o mundo é mundo; aliás, antes de o mundo existir eles também já faziam a
mesma coisa. Antes de o mundo existir, a soma dos quadrados dos catetos já dava o
quadrado da hipotenusa, embora ninguém tivesse percebido isso. E depois que o
mundo acabar, vai continuar a mesma coisa. Um mais um dava dois; dois mais dois
dava quatro, e depois de acabar o mundo também. Se não existissem essas realidades
trans-históricas ou meta-históricas, nãoexistiria também a dimensão histórica - ou
pelo menos nós seriamos incapazes de percebê-la, assim como uma gota d'água não
percebe que está dissolvida num montão de água. A História seria apenas um fluxo
inconsciente de átomos anônimos dissolvidos na unidade maior do movimento que
eles próprios desconhecem.
O fato é que não descobrimos essa fórmula até agora - e acho que a idéia mesma de
descobrir uma "fórmula" do desenvolvimento das idéias filosóficas autocontraditória
com a própria definição da Filosofia.
A narrativa das relações entre cristianismo e Filosofia já é, por exemplo, um capítulo
especial da História da Filosofia. Às vezes, o fator que intervém não é sequer de
ordem doutrinal. Porque uma religião se parece com uma filosofia pelo menos sob
este aspecto, é uma doutrina; distingue-se por milhões de características, mas que é
uma doutrina é – pelo menos esse ponto elas têm em comum.
Esta é uma modificação interna, endógena, mas há aquelas que são exógenas.
Essa narrativa não será apenas uma sucessão de fatos inconexos, porque existe uma
constante referência ao projeto originário
[Aluno: E no caso de outros projetos que ignorem esse projeto originário, portanto,
que nem o continuem, nem o neguem, nem tentem modificá-lo?No caso de filosofias
diferentes, em sociedades diferentes, que não têm contato com os produtos (...), aí se
fala a história de cada uma das filosofias?…}
Esses projetos totalmente alheios ao campo filosófico podem interferir nele. Num
certo corte transversal no tempo, se você pegar uma época, vai ver que há vários
desenvolvimentos ali que se ignoram mutuamente.
Existe o problema dos meios materiais de informação, então há uma regra que todos
os historiadores admitem - geralmente uma regra metodológica, que diz que a difusão
dos fatos produz fatos. O fato de que um sujeito ficou sabendo de um certo fato é por
si mesmo um fato, e ademais ele pode reagir de alguma maneira à notícia, então aí é
duplamente um fato.
E temos que levar em conta o fato de que existem épocas inteiras sem filosofia
alguma; existem hiatos na História da Filosofia. Esses hiatos, claro que eles fazem
parte da história! Eles mostram que o projeto filosófico pode ser retomado depois de
muitas gerações, sem nenhum contato direto, sem nenhuma transmissãodireta. Isso
quer dizer que o projeto filosófico não se transmite só por tradição de pessoa a
pessoa, mas pela reconquista de um legado escrito.
Se você for escrever uma "História das tradições inhanbiquaras" – por exemplo,
chega lá na tribo inhanbiquara e diz: "Eu quero escrever a história das suas tradições"
- você vai ter um problema horrível para escrever aquilo, você não tem documentos!
Quer dizer então que, de geração em geração, não é que não se conserve nenhum
registro, mas se conserva um registro muito sumário, às vezes sob forma de síntese
mitológica. Certas coisas que aconteceram não são narradas com toda sua ordem
factual, são resumidas como numa figura poética. E você nunca sabe se aquilo
aconteceu mesmo, se alguém inventou, se é uma interpretação que fizeram de algo
que viram ou se foi uma invenção. Esses povos, Lévi-Strauss dizia que eles não têm
história, mas é um modo de dizer. Eles não têm história no sentido de que nós não
podemos escrever a sua história, mas é evidente que as marcas das coisas que
aconteceram às sucessivas gerações podem ter se conservado de algum modo, mesmo
que sejam desconhecidas das gerações seguintes.
Os bichos causam dó porque são vítimas inermes do acontecer. Nunca sabem para
onde estão indo. Se você extinguir uma espécie animal, o último a vai ser o membro
da espécie animal. O último leão, ele não sabe que é o último!
Ele não sabe o que está acontecendo, está totalmente na mão de fatores externos.
Graças a Deus, se você for o dono do animal, você é um desses fatores, e é um fator
atenuante.
Esta dimensão histórica é uma maravilha da vida humana. É isso aí que lhe dá um
privilégio especial, e sem você ter consciência deste privilégio toda sua visão da
realidade é totalmente deformada e desproporcional.
Isso não quer dizer que toda diferença possa ser reduzida a esse percentual. Isso é
uma limitação, não do homem, nem do macaco, mas da genética, evidentemente.
"Olha, este é um problema gravíssimo para a genética", porque essa é uma ciência
excepcionalmente burra. Ela pega um fenômeno desse tamanho e disso ela só
consegue enxergar 3%!
Agora, se o geneticista entende que esse fator genético está imbricado no meio de
uma malha de outros fatores, ele dirá: "Olha, o que a genética tem a dizer a respeito é
muito pouco, porque nós só sabemos dos 3%"... Mas o sujeito não vai dizer isso
nunca; ele vai dizer que nós é que estamos limitados pelos 3%, não a ciência dele. Se
ele faz isso, está demonstrando que não sabe o que é ciência.
E vejam: nenhuma ciência estuda um objeto real, concreto, ela estuda sempre um
recorte abstrativo que faz do seu próprio jeito. Esse recorte abstrativo pode
corresponder a alguma diferença real existente no campo dos objetos, mas isso pode
às vezes não acontecer. Pode ser que o território de uma ciência seja todo ele fictício.
Por exemplo, se se descobrir que tudo aquilo que se chama de genética pode ter uma
explicação química, acabou a genética, ela não existe como um recorte
correspondente a uma diferença objetiva. As ciências são a toda hora absorvidas por
outras. Isso prova que elas estavam estudando irrealidades e que, quando despertam
do seu sonho, são imediatamente engolidas por uma estrutura científica maior.
Não! Não! É necessário que ele faça parte objetivamente da história do projeto – e
objetivamente significa também conscientemente, é claro! Pode ser uma participação
inconsciente... Não, eu não excluo essa hipótese, mas eu nunca vi nenhum exemplo
disto. Existem participações apenas semiconscientes. Por exemplo, quando chegamos
no século XX, o mundo anglo-saxônico é em grande parte dominado por uma certa
escola de pensamento, a Escola Analítica.
Isso quer dizer que, para se estudar a História da Filosofia anglo-saxônica, tem-se que
dar uma olhada no departamento de Letras, porque muitas vezes o crítico literário
está prosseguindo o diálogo com o projeto filosófico de uma maneira até mais
explícita do que faz o filósofo profissional.
'Ah, nós não sabemos o que é!". Mas isto aconteceu durante uma certa fase da qual
me parece que já estamos saindo. Quer dizer, as fases de confusão e de
obscurecimento também fazem parte da história do projeto.
Aluno: Sim, digamos (...) a segunda, que tem uma outra tradição filosófica, que não
tenha a menor idéia da existência dessa (...). E possível falar em dois projetos
filosóficos (...) ambos tem no mínimo características em comum, necessariamente?]
Isso tem que ser resolvido pelo método do Ranke: contar as coisas como elas
efetivamente aconteceram. Quer dizer, nós não vamos ter uma resposta teórica,
porque estamos buscando uma resposta histórica. Então, se você der a resposta
teórica de antemão, você está falhando no objetivo da própria ciência.
Esse Santo Afonso era um bispo, era confessor dos padres, e daí ele
descobriu que cada padre estava ensinando uma moral completamente diferente, isto
no século XVIII. Esse problema no mundo islâmico nunca existiu, porque tudo já
vem organizado dentro do princípio.
...A solução foi considerar...como tipos humanos especiais que conduzem sua
atividade dentro do seu grêmio, de tal maneira que isso não deva interferir em nada
na ordem das coisas. (…) para um círculo especializado e que o restante da sociedade
não tinha nem que entender.
Quando chega na década de 1930, já no século XX, por uma coincidência
providencial, o embaixador francês no Irã, Henry Corbin, interessou-se em começar a
traduzir tudo isso, então muito desse material saiu primeiro em francês e - ele era
embaixador na Pérsia - só depois em língua persa. Mais ainda, quando se deu a
revolução persa, a revolução iraniana, os aiatolás mandaram parar tudo isso.
Quando vemos toda essa tradição que se desenvolve a margem da filosofia ocidental,
todas elas têm alguma referência a Aristóteles, Platão e Sócrates.
"Ah! Escapa do nosso âmbito". Eu falo: "Não, esses pedaços que nós teremos que
deixar de lado fazem parte do nosso projeto, sim, nós estamos deixando-os de lado
apenas provisoriamente, por motivos práticos".