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Tertuliano (ca. 150/160-240?

A história da patrística latina desenrola-se primeiro e principalmente em terras africanas. De há muito a África
Setentrional – a antiga Cartago – tornara-se a província mais florescente do império romano; de par com a cultura e os
costumes romanos, adotara-se ali também a língua latina. Relativamente pouco atingida pelas lutas entre imperadores
e contra-imperadores, devido à sua remota situação geográfica, a velha colônia gozava de uma prosperidade invejável,
que aliás não deixava de beneficiar a própria Roma. Criaram-se assim as condições materiais necessárias para um
incremento notável da cultura literária e científica.

 A cidade antiga de Cartago foi fundada pelos fenícios na costa norte da África por volta de 800 a.C. Até ser
conquistada por Roma em 146 a.C., a cidade foi o centro mercantil do mar Mediterrâneo ocidental. Hoje,
Cartago é um subúrbio de Túnis, a capital da Tunísia.

Ruínas de Cartago. Moeda de ouro de Cartago, datada do século IV a.C. ou V a.C., mostra a deusa Perséfone.

É provável que o cristianismo se implantasse bastante cedo em Cartago, sendo anunciado, não pelos próprios
apóstolos, mas por pregadores vindos de Roma. Pelo ano 200 já havia ali uma numerosa comunidade cristã. Não
tardou em chamar a atenção das autoridades, que lhe moveram feroz perseguição. Neste período deve localizar-se
também a vida de Tertuliano, o protagonista literário da comunidade cristã africana.

A literatura cristã latina começou em Roma, mas, na própria Roma, os escritores de língua grega tiveram a
precedência. Justino, Taciano, Hipólito ensinaram em Roma e Atenágoras dirigia-se em grego ao imperador Marco
Aurélio, que também escrevia em grego. Para encontrar o equivalente latino de tais obras, é preciso esperar o fim do
século II e o início do século III. É tão-somente em meados do século III, quando o latim substituirá o grego como
língua litúrgica da comunidade cristã de Roma, que seu uso como língua literária cristã se encontrará definitivamente
estabelecido.

VIDA E OBRAS:: Filho de pais gentios, Quinto Setímio Florêncio Tertuliano nasceu em Cartago, provavelmente entre
150 e 160. É o primeiro e maior nome da apologética cristã de expressão latina. É, também, o primeiro da linhagem
dos grandes africanos. Nascido em Cartago em torno de 160 e foi ordenado padre [embora haja controvérsia sobre
este fato].

A princípio costumara escarnecer dos cristãos e levara uma vida dissoluta, segundo sua própria confissão posterior.
Todavia, terminou por abraçar a nova religião, movido, talvez, pela perseverança dos mártires. No entanto, deixou-se
conquistar pouco a pouco pelo montanismo, doutrina a que aderiu em 213, a qual parece tê-lo atraído pelo rigor
ascético de seus adeptos. Seu talento voltou-se, desde então, contra o cristianismo, que criticou com a mesma
aspereza no terreno da moral. Mas não tardou a desentender-se também com a seita montanista, o que o fez fundar
uma seita com sua própria doutrina. A data exata da morte de Tertuliano é desconhecida [por volta de 240], mas a
comunidade que reivindicava seu nome sobreviveu a ele. Os tertulianistas ainda possuíam sua própria igreja em
Cartago [uma basílica] no tempo de Santo Agostinho, o qual teve a satisfação de poder reconciliá-los com o
catolicismo. 

Era Tertuliano de gênio fogoso e colérico, e de uma fantasia ardente. Formado em jurisprudência, dispunha de um
domínio perfeito da língua latina. No De Pallio, onde se justifica por haver trocado a toga de tribuno pelo manto de
filósofo, deparamos textos quase indecifráveis. Senhor de um estilo admirável e de uma notável vivacidade mental,
comandava todos os recursos que fazem um grande jurista. Cunhou grande número de fórmulas incisivas, muitas das
quais, graças à sua extraordinária precisão, passaram a fazer parte integrante da terminologia teológica (p. ex. as
expressões: “Um Deus em três pessoas”, “Trinitas”, etc.). A par da Vulgata, a linguagem de Tertuliano foi a que mais
profundamente influiu no latim eclesiástico.

As obras de Tertuliano mais interessantes para a história da filosofia são a Apologética (Apologeticum) [ = Apol.],
a Prescrição dos heréticos (De praescriptione haerecticorum) [ = Pr. Haer.] e seu tratado Da alma (de anima) [ = De
an.]. O Apologeticum ou Apologeticus é o seu escrito mais completo e visa convencer as autoridades romanas a
desistirem das suas perseguições aos cristãos. Após uma série de argumentos jurídicos, Tertuliano demonstra que as
acusações atiradas sobre os cristãos atingem antes os gentios e seus falsos deuses. Expõe a doutrina cristã e prova
que os cristãos sempre se portaram como bons cidadãos, embora se recusassem a oferecer sacrifícios. No De
praescriptione haerecticorum, Tertuliano defende a tradição cristã na interpretação das Sagradas Escrituras e combate
a ideia de que a filosofia poderia auxiliar o desenvolvimento da fé.O De anima discorre sobre a essência, as
propriedades, a origem a a imortalidade da alma. Esta, como essa construção ontológica de fundo, representa a
antítese exata do espiritualismo do Fédon [de Platão].

TRADIÇÃO E FILOSOFIA

É mais como jurista do que como filósofo que Tertuliano resolve o problema do direito exclusivo dos cristãos à
interpretação das Escrituras. Segundo a lei romana, toda pessoa que usou um bem durante um tempo suficiente podia
considerar-se legalmente proprietária deste. Se alguém lhe contestava a propriedade, ela podia opor como título o
direito de prescrição: longae praescriptionis possessio. 

O argumento da prescrição é frequentemente utilizado por Tertuliano. Determinava a Lei das Doze Tábuas que um
bem de que se fizesse uso incontestado pelo espaço de um ano, ou um terreno de que se usufruísse sem contestação
por espaço de pelo menos dois anos, passaria a ser propriedade legítima do usufrutuário.Tertuliano aplica esta regra à
teologia cristã. Os gnósticos pretendem interpretar as Sagradas Escrituras, mas injustamente, já que estas não lhe
pertencem de direito. A Igreja, ao contrário, pode apelar a uma tradição ininterrupta, a partir dos tempos primitivos até o
presente. Na base desta transmissão contínua da Escritura e da verdade, a Igreja retém um legítimo direito de
prescrição, ao passo que aos gnósticos, que são uns novatos, não cabe o menor direito a elas. ssim, Tertuliano nega
aos gnósticos suas pretensões de interpretar as Sagradas Escrituras. Aceitas e comentadas pelos cristãos desde a
origem, elas lhes pertencem de pleno direito; se os gnósticos pretendem utilizá-las, pode-se declará-los excluídos
dessa pretensão por via de prescrição. Portanto, Tertuliano levou imediatamente o problema para o terreno da
tradição. Esses argumentos maciços são característicos do seu estilo, feito mais de vigor e de sutileza astuta do que
de verdadeira fineza.

A doutrina cristã representa, antes de tudo, a verdade enquanto doutrina objetiva, e não enquanto profissão subjetiva.
Individualmente, os membros da Igreja estão sujeitos ao erro. Nenhuma dignidade eclesiástica, nem mesmo o martírio,
esta profissão suprema da fé, pode eximi-los de erro. Também o mártir herético continua sendo herege. É mister, pois
julgar as pessoas de acordo com sua fé, e não a fé de acordo com as pessoas.

(De praescriptione haerecticorum, 7, 16).

Por isso, a pessoa individual não é livre para aceitar ou rejeitar o cristianismo, segundo suas convicções pessoais, nem
para abraçar algumas de suas doutrinas e para rejeitar outras. A aceitação da fé cristã implica na renúncia do direito de
livre exame dessa fé.

(Ibid. 6, 15).

Pela mesma razão, a fé não admite progresso. Sendo a fé um fato objetivo, que é preciso aceitar como tal, não é lícito
acrescentar-lhe ou subtrair-lhe o que quer que seja: cumpre aceitá-la em sua integridade: “[…] sed nec eligere (licet),
quod aliquis de arbitrio suo induxerit“. 

(Ibid. 6, 15 s).

De fato, Tertuliano toma o cristianismo como um todo, que se impõe aos indivíduos a título de simples fé. Cada cristão
deve aceitar essa fé como tal, sem pretender fazer uma escolha nela, menos ainda julgá-la. As interpretações
metafísicas dos gnósticos são, pois, inaceitáveis, embora reivindiquem a razão, ou, antes, por isso mesmo. É-se cristão
por fé na palavra de Cristo e em nenhuma outra além da sua. Nesse contexto, Tertuliano apela à palavra de S. Paulo
[cf. Gálatas 1, 8]: “Mas, ainda que nós, ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos
temos pregado, seja anátema” (regula fidei), e ela basta.

“A regula fidei constitui, assim, a norma única a que devemos atender. Além de ser suficiente em si mesma, ela
também delimita o âmbito das nossas investigações. Toda transgressão desses limites conduz à heresia” (Pr. Haer. 13,
6; 25). Por isso é preferível permanecer na ignorância a expor-se ao perigo de ultrapassar os devidos limites:
“novissime ignorare melius est, ne quod non debeas noris, quia quod debeas nosti “. Os que se atém à norma da fé
conhecem tudo quanto lhes é necessário; o que passa daí é vã curiosidade; e o que contradiz àquela norma é pura
ignorância: “Adversus regulam (fidei) nihil scire ominia scire est” (Pr. Haer. 14, 25). Como se vê, Tertuliano rejeita por
completo a ideia de um desenvolvimento interno da fé com o auxílio da filosofia.

A CONDENAÇÃO DA FILOSOFIA

Pelo exposto, não admira que Tertuliano adotasse uma atitude radicalmente hostil para com a filosofia. É esta que ele
torna responsável, não sem clarividência, aliás, pela multiplicação das seitas gnósticas. Na sua opinião, os filósofos
não são apenas os partidários dos hereges: são os próprios patriarcas dos heréticos (De an. 3; 302, 29). Nenhum
filósofo antigo, nem mesmo Sócrates ou Platão conseguem fugir a esse veredicto impiedoso.
Para Tertuliano, no seio do cristianismo não há lugar para a filosofia. Nem poderia ser de outro modo, visto que pela fé
até mesmo os iletrados chegam a conhecer muitas verdades inacessíveis à filosofia.

Qualquer operário cristão já encontrou a Deus e dá testemunho dele, respondendo por suas ações a todas as
perguntas que se lhe possam fazer a respeito de Deus; Platão, ao contrário, afirma não ser fácil encontrar o arquiteto
do universo, e, mesmo que se o tenha encontrado, declara ser difícil fazê-lo conhecido de todos.

(De anima 3; 302, 29).

É verdade que certos filósofos ensinam por vezes doutrinas que se assemelham à fé cristã, mas, para Tertuliano, é por
acaso. Como os marinheiros batidos pela tempestade que encontram às cegas a entrada de um porto, eles tiveram
uma feliz cegueira, mas não é esse um exemplo a ser imitado.

Segundo Tertuliano, para o cristão, a filosofia, além de supérflua, representa um verdadeiro perigo, visto ser contrária à
fé. Não há como negar que ocasionalmente os filósofos toparam com a verdade e concordam conosco: “Plane non
negabis aliquando philosophos iuxta nostros sensisse” (Apol. 46, 9). Mas isto se deve atribuir a um erro feliz ou à sorte
cega: “Nonnumquam et in procella confusis vestigiis caeli et freti aliqui portus prospero errore, nonnumquam et in
tenebris aditus quidam et exitus deprehenduntur caeca felicitate” (Apol. 152).

Segundo Reale & Antiseri (2011, p.72), depois de ilustrar no Apologético a contrariedade dos filósofos e sua
imoralidade, Tertuliano contrapõe os filósofos aos cristãos do seguinte modo:

Em seu conjunto, que semelhança pode-se perceber entre o filósofo e o cristão, entre o discípulo da Grécia e o
candidato ao céu, entre o traficante da fama terrena e aquele que faz questão da vida, entre o vendedor de palavras e
o realizador de obras, entre quem constrói sobre a rocha e quem destrói, entre quem altera e quem tutela a verdade,
entre o ladrão e o guardião da verdade?

“A fé e a razão quase se contradizem”. Não há dúvida de que Tertuliano encontra uma oposição, e até uma
contradição, entre a fé e a filosofia; não se pode afirmar, porém, que admita uma contradição entre fé e a razão, se
bem que as suas expressões pareçam insinuá-la.

Seus escritos, com efeito, nos deparam expressões assaz fortes; mas a sua mesma forma aforística permite uma certa
elasticidade de interpretação. Em qualquer hipótese, a fórmula “credo quia absurdum” [creio porque é absurdo] jamais
foi empregada por Tertuliano. Esta frase passa de uma interpretação de certas expressões suas, tais como: “ Crucifixus
est Dei Filius, non pudet, quia pudendum est. Et mortuus est Dei Filius, prorsus credibile, quia ineptum est. Et sepultus
resurrexit; certum est, quia impossibile est” [O Filho de Deus foi crucificado, do que não me envergonho, precisamente
porque é vergonhoso. E que o Filho de Deus tenha morrido, é de todo crível porque é desprovido de sentido. Ele foi
enterrado e ressuscitou: é certo porque é impossível]. Essas frases, que se leem no capítulo V de seu De carne Christi,
são de aparência voluntariamente provocadora. O que elas querem exprimir é simplesmente isso: se a fé não nos
propusesse nada de incompreensível, ela deixaria de ser crença, para transformar-se em ciência e conhecimento.

Se prorsus credibile, quia ineptum est [é de todo crível porque é desprovido de sentido] ou certum quia impossibile
est [é certo porque é impossível] , significam simplesmente que é preciso crer nisso, pois a fé só tem por objeto o
incompreensível, e é justamente por isso que é certa, pois a fé é mais segura que a razão. Se, ao contrário, tomamos
seu duplo quia ao pé da letra, fá-lo-emos dizer que a própria inépcia do dogma é o que o recomenda à aceitação da fé,
assim como sua impossibilidade garante a sua certeza. Tertuliano tê-lo-á pensado? Não era incapaz de tanto. Se foi
isso que quis dizer, a posteridade não o traiu ao resumir sua atitude na fórmula lapidar, que, no entanto, ele não
escreveu: Credo quia absurdum. Pensamento totalmente original desta vez, mas hesitamos em crer que mesmo um
orador tenha posto o critério do verdadeiro no absurdo.

É possível que Tertuliano queira dizer apenas que a razão, quando abandonada a si mesma, incide forçosamente em
erro, a menos que demande a própria fonte de verdade, que é Deus: “cui enim veritas comperta sine Deo?” [quem tem
a certeza da verdade sem Deus?](De an. 1; 299, 19). Esse encontro com a verdade se realiza na fé e pela fé. Mas esta
vem expressa, necessariamente em fórmulas obscuras e incompreensíveis, devido ao seu caráter supra-racional. De
sorte que a própria obscuridade vem a ser uma garantia de sua certeza.

Para Gilson (2007, p. 107), não havia nada de original em dizer que o dogma da redenção é impenetrável à razão: São
Paulo já constatara que o mistério da cruz, que é um escândalo para os judeus, é uma loucura para a sabedoria grega
(1 Cor 1, 18-25). Endurecendo a mesma ideia, Tertuliano deixou-se levar a efeitos oratórios cujo eco ainda se faz ouvir
hoje.

IDEIAS FILOSÓFICAS

Apesar dessa viva antifilosofia, Tertuliano, em certa medida, revela-se um estoico em ontologia [o estudo sobre o:
“substância”, o ser das coisas e dos seres]. Sendo assim, sempre que se põe a filosofar, envereda por caminhos os
mais falsos possíveis, do ponto de vista cristão, se é que se pode admitir que ele quis permanecer cristão.
Em psicologia [aqui no sentido dado à época de estudo da alma], Tertuliano propunha uma forma estranha de
materialismo; neste particular adota, em grande extensão, os pontos de vista do estoicismo. Para Tertuliano, a alma é
um corpo tênue e sutil análogo ao ar, dotado de três dimensões. Ela se difunde através do corpo inteiro, a cuja forma
se amolda. 

Só uma alma corporal pode agir sobre a matéria, isto é, sobre o seu corpo, e sofrer-lhe o influxo. Essa  materialidade da
alma permite a Tertuliano afirmar que ela é uma substância, porque tudo o que é real é material: “nihil enim, si non
corpus, nihil est incorporale, nisi quod non est” [nada há de fato se não existe corpo, nada é incorporal, exceto o que
não é]. Compreende-se, com isso, que a alma possa agir sobre o corpo e sofrer sua ação. Assim se explica, também, o
fato de a alma depender, para sua existência e permanência no corpo, da alimentação assimilada por este. Objeta-se
que o alimento da alma é a sabedoria, que é, ela própria, imaterial. Tertuliano responde com seu melhor talento: se
fosse verdade, muitos homens logo morreriam de fome.

Como ressalta Boehner & Gilson (2009, p. 134), é da Escritura que Tertuliano tira o argumento mais incisivo para a
corporeidade da alma. Ali, com efeito, superabundam as provas. Entre outras coisas, a Bíblia refere-se aos tormentos
do fogo sofridos pelas almas dos réprobos; ao rico anfitrião que, condenado ao inferno, solicita água do pobre Lázaro;
e não diz a Escritura que João contemplou, em êxtase, as almas dos mártires? (De an. 7; 308).

O homem é composto de duas entidades distintas: um espírito interior (spiritus tradux) e uma forma exterior, em que o
sopro pneumático se solidifica como em um envoltório, e da qual também recebe a forma. Pelo que a estrutura da alma
se assemelha em tudo à do corpo: “habens et ille (homo interior) oculos et aures suas, quibus Paulus dominum audire
et videre debuerat, habens et ceteros artus, per quos et in cogitationibus utitur et in somniis fungitur ” (“tendo ele (o
homem interior) os seus próprios olhos e ouvidos, pelos quais o Senhor fizera Paulo [2 Cor 12, 2-4] ouvir e ver, e tendo
outros membros, os quais são utilizados nos pensamentos e executados nos sonhos”). (De an. 311; 28). Portanto, o
intelecto e o próprio nous não passam de disposições corporais inerentes à alma.

“Há um conhecimento natural de Deus, literalmente herdado pela alma”. A mui citada palavra de Tertuliano sobre o
testemunho da alma naturalmente cristã (“testimonium animae naturaliter christianae“) deve entender-se em função da
teoria traducianista, por ele perfilhada.

“A alma dos filhos forma-se à maneira de um rebento, da alma paterna (traducianismo)”. Assim como a árvore lança o
rebento, assim uma parte da alma do pai se translada, pelo sêmen, ao filho em cujo corpo ela evolui e cresce
independentemente: “cuius (hominis) anima velut surculus quidam ex matrice Adam in propaginem deducta et
genitalibus feminae foveis commendata” (De an. 19; 331, 8).

De Adão a alma herdou, não apenas o pecado, como ainda a sua primitiva semelhança com Deus. É esta ideia que
sugeriu a Tertuliano a célebre doutrina do testimonium animae. Visto remontarem até Adão, graças a uma transmissão
contínua, todas as almas continuam retendo a similitude com Deus a ele conferida e, por este motivo, são naturalmente
cristãs. Logo, basta colher os testemunhos das almas, para, a partir deles, se poder conhecer a verdade. Tertuliano se
empenha por descobrir este “testimonium animae christianae” mediante uma análise da linguagem, das orações e das
exclamações espontâneas dos gentios; sua conclusão – bem mais interessante que a dos modernos psicanalistas – é
que a alma possui um saber inato da bondade de Deus e de sua própria imortalidade, bem como das penas e
recompensas futuras (cf. o escrito De testimonio animae: ML; 681-692).

De acordo com essa concepção da alma, Tertuliano admite que a propagação das almas na espécie humana se faz,
desde Adão, por transmissão dos pais aos filhos, quando da concepção. A alma é, aliás, esse homem interior de que
fala São Paulo e de que o homem exterior, ou corpo, é o envólucro. Ela forma, pois, um ser completamente constituído.
Dotada de órgãos que lhe são próprios, tem seus olhos, seus ouvidos e também seu intelecto. Este não é mais que
uma disposição interna e dotada de uma estrutura própria à substância material da alma. Já que a alma é como um
galho destacado da alma do pai, a herança dos caracteres se explica facilmente, tanto para o bem como para o mal. É
assim que o pecado original se transmitiu de pais a filhos, desde Adão, ao mesmo tempo que se propagava e se
multiplicava a alma do primeiro homem. Mas o homem foi feito à imagem de Deus, e essa semelhança divina também
se transmitiu por via de geração. Por conseguinte, ela ainda existe em nós, e é por isso que se pode dizer, em certo
sentido, que a alma de todo homem é naturalmente uma alma cristã: anima naturaliter christiana. A fórmula fez fortuna
e merecia melhor que a justificação que a acompanha. Em seu tratado sobre O testemunho da alma (De testimonio
animae), Tertuliano procura esse testimonium animae naturaliter christianae numa análise da linguagem comum, em
que os apelos espontâneos a Deus lhe parecem atestar o conhecimento confuso que toda alma tem da sua origem, da
sua imortalidade e de seus fins últimos.

“Deus é uma substância corpórea” Tertuliano deriva a tese da corporeidade de Deus da proposição de que tudo o que
é real é material; para ele, o que não é material não existe, é um puro nada. “Quis enim negavit Deum corpus esse, etsi
Deus spiritus est? Spiritus enum corpus sui generis in sua effigie” (Adv. Prax. 7). A despeito de sua corporeidade, Deus
é invisível, graças ao seu esplendor, exatamente como a substância do sol é invisível para nós, pois que nos cega: só
lhe percebemos os raios. Eis a razão por que não nos podemos representar a Deus salvo em forma humana (ibid. 14).

Já que tudo o que é, é um corpo e que Deus é, Deus é um corpo. Seguramente, é o mais sutil e tênue de todos os
corpos. É, também, o mais brilhante, a tal ponto que seu próprio brilho o torna invisível a nós; mas, afinal, é um corpo.
Não podemos representá-lo em si, mas sabemos que é uno, que é naturalmente uma razão e que a razão, nele,
constitui com o bem uma só e única coisa. Quando o momento de criar chegou, Deus gerou de si uma substância
espiritual, que é o Verbo. Estando essa substância  para Deus assim como os raios estão para o sol, ela é Deus como
os raios do sol são luz. É um Deus de Deus, uma Luz de Luz, que jorra do Pai sem diminuí-lo. Em contrapartida,o
Verbo não é todo o Pai, o que ele mesmo confessará mais tarde, quando disser, pela boca de Cristo: “O Pai é maior
que eu” (Jo 14, 28). Tendo assim justificado a existência do Verbo, Tertuliano acha-se à vontade para provar aos
estoicos que toda a sua doutrina do Logos confirma a verdade cristã. Deus criou o mundo de nada, mas o Verbo é a
própria razão segundo a qual ele o criou, ordenou e governou. Acaso não é isso que afirmavam os estoicos de Zenão e
Cleanto, quando falavam do Logos como de uma razão ou de uma sabedoria construtoras do mundo e que o penetram
por todas as partes? Quanto ao Espírito Santo, ele se soma ao Pai e ao Verbo sem quebrar a unidade de Deus, do
mesmo modo que o fruto constitui, com a raiz e o caule, uma só coisa, ou o estuário com o rio e sua nascente.
Motivada por sua criação, a geração do Verbo pelo Pai não é, propriamente dizendo, eterna, pois o Pai existiu sem ele.
Não se deve dizer, entretanto, que ela tenha tido lugar no tempo, pois o tempo só começa com a criatura. É, pois, uma
relação que não sabemos como exprimir.

Segundo Reale & Antiseri (2011, p. 73), Tertuliano deve ter absorvido essas teses sobretudo de Sêneca, que ele muito
admirava. Deus é corpo, embora sui generis, assim como também a alma é corpo.

APRECIAÇÕES

Percebe-se que a doutrina de Tertuliano é simples a ponto de ser simplista, mas esse escritor vigoroso e eloquente
tinha o dom das fórmulas contundentes e, como muitas permaneciam utilizáveis, mesmo sua defecção da Igreja não
impediu que sua influência se exercesse nesta. Havia nele, aliás, com os defeitos que se lhe veem até em excesso, um
ardor e uma sinceridade cativantes, que, para muitos, estiveram na origem de seus erros. As nuanças lhe pareciam
compromissos. É por isso que esse apóstolo da fé pura e da submissão sem reservas acabou como heresiarca de uma
seita ela mesma herética, e esse materialista se exclui sucessivamente de duas igrejas, porque as considerava
demasiado indulgentes para com as exigências do corpo. Também por esse aspecto do seu pensamento, Tertuliano se
parece estranhamente com Taciano (Gilson, 2007, p. 110).

A grandeza do caráter de Tertuliano e o fulgor do seu talento fazem de Tertuliano uma das figuras mais fascinantes da
patrística latina. Em sua obra começa a tomar corpo, no seio do pensamento cristão, a tendência ao repúdio
incondicional da ordem natural, e notadamente, da filosofia. De um ponto de vista estritamente filosófico, a obra de
Tertuliano é de importância irrelevante. Seu materialismo crasso não poderia deixar de causar estranheza, e é um fato
que permaneceu estéril. Bem mais digna de atenção foi sua atividade apologética. De modo particular, Tertuliano fez-
se o advogado da Igreja em face do indivíduo, no que foi imitado pelo maior dos seus discípulos, Cipriano, de quem se
diz ter sido incapaz de separar-se dos escritos de Tertuliano; toda a vez que desejava consultá-los dizia simplesmente:
“De magistrum” (Boehner & Gilson, 2009, p. 136).

TEXTO SOBRE A CONDENAÇÃO DA FILOSOFIA

Eis as doutrinas de homens e demônios, nascidas do engenho da sabedoria mundana para encantar os ouvidos. Esta
é a sabedoria que o Senhor chama de estultice, aquele mesmo Senhor que, para confundir também a mesma filosofia,
escolheu o que passa por estulto aos olhos do mundo. Esta é a sabedoria profana que temerariamente pretende
sondar a natureza e os decretos de Deus. E as próprias heresias vão pedir seus petrechos à filosofia.

Dela se originam os tais éons e não sei que inúmeras outras formas, tal como a divisão tripartida do homem em
Valentim que, por sinal, foi um discípulo de Platão. Dela provém o “deus melhor” de Marcião, melhor, entenda-se,
graças à sua tranquilidade; pois Marcião viera dos estoicos. E se há o s que afirmam que a alma é mortal, é porque o
aprenderam dos epicureus; se há os que negam a ressurreição do corpo, é porque o tomaram de todas as escolas
filosóficas reunidas; se a matéria é equiparada a Deus, é porque tal é a doutrina de Zenão; e, quando se fala de um
Deus de fogo, isto se deve a Heráclito. Hereges e filósofos soem tratar dos mesmos assuntos: nuns e noutros
deparamos os mesmos temas enredados: qual a origem e o porquê do mal? Qual a origem e a natureza do homem? E,
para citar uma questão recentemente proposta por Valentim: Qual a origem de Deus? E a resposta? Da “entímese” e
do “éctroma” (isto é, do desejo e do parto prematuro)!

O infortunado Aristóteles, tu lhes ensinaste a dialética, esta arte de construir e destruir, tão ardilosa em suas
sentenças, tão afetada em suas supostas conclusões, tão teimosa em seus argumentos, tão atarefada com
logomaquias, a ponto de, enfadada consigo própria, tudo revogar, para terminar sem haver tratado de nada!

Eis aí a origem daquelas fábulas e genealogias intermináveis, daquelas questões estéreis, daqueles discursos que se
propagam como um cancro; é contra eles que nos alerta o Apóstolo, designando expressamente a filosofia como algo
de que é preciso acautelar-se, ao escrever aos Colossenses: “Estai alerta, para que ninguém vos colha no laço da
filosofia e de vãos sofismas, baseados em tradições humanas” e contrários à providência do Espírito Santo. É que ele
estivera em Atenas, e nos congressos ali realizados viera a conhecer a sabedoria humana, esta arremedadora e
adulteradora da verdade; aliás, ela mesma se encontra fracionada em numerosas heresias, em virtude da grande
multiplicidade de escolas que mutuamente se digladiam.

Que tem a ver Atenas com Jerusalém? Ou a Academia com a Igreja? Ou os hereges com os cristãos? A nossa
doutrina vem do pórtico de Salomão, que nos ensina a buscar o Senhor na simplicidade do coração. Que inventem,
pois, se o quiserem, um cristianismo de tipo estoico, platônico e dialético! Quanto a nós, não temos necessidade de
indagações depois da vinda de Cristo Jesus, nem de pesquisas depois do Evangelho. Nós possuímos a fé e nada mais
desejamos crer. Pois começamos por crer que para além da fé nada existe que devamos crer.

(De praescriptione haereticorum, c. 7).

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